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LENDAS DOS

JUDEUS
Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais
do midrash (particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-
1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.

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AS PRIMEIRAS COISAS CRIADAS
A CRIAÇÃO: As primeiras coisas criadas

No princípio, dois mil anos antes do céu e da terra, sete coisas


foram criadas: a Torá, escrita com fogo negro sobre fogo branco e
repousando sobre o colo de Deus; o Trono Divino, erguido no céu
e que mais tarde estaria sobre as cabeças dos Hayyot; o Paraíso à
direita de Deus, o Inferno à sua esquerda; o Santuário Celestial
diretamente à frente de Deus, tendo em seu altar uma jóia gravada
com o Nome do Messias, e a Voz que clama: “Voltai, filhos dos
homens”.

Quando decidiu a respeito da criação do mundo, Deus tomou


conselho com a Torá. A recomendação dela foi:

– Oh, Senhor, um rei sem um exército e sem cortesãos e


atendentes não merece o nome de rei, pois ninguém há perto para
prestar-lhe a homenagem devida.

A resposta agradou a Deus sobremaneira. Dessa forma ele ensinou


todas as coisas terrenas, através do seu divino exemplo, a nada
empreender antes de primeiro consultar os seus conselheiros.

O conselho da Torá foi dado com algumas reservas. Ela duvidava


do valor de um mundo terreno por causa do pecado do homem,
que iria por certo negligenciar os seus preceitos. Porém Deus
dissipou as suas dúvidas, dizendo a ela que o arrependimento
havia sido criado muito antes, e que os pecadores teriam
oportunidade de corrigir sua conduta. Além disso, o serviço do
templo seria investido de poder de remissão, e o Paraíso e o
inferno destinavam-se a fazerem sua obrigação como recompensa
e punição. Finalmente, o Messias era designado a trazer salvação,
que poria um fim a toda a pecaminosidade.

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Porém nem mesmo este mundo teria
permanecido, se Deus tivesse executado
o seu plano original de governá-lo sob o
princípio da justiça estrita.
Tampouco foi este mundo habitado pelo homem a primeira das
coisas terrenas criadas por Deus. Ele fez diversos mundos antes
deste, mas destruiu a todos, porque não se satisfez com nenhum
antes de criar o nosso. Porém nem mesmo este mundo mais
recente teria permanecido, se Deus tivesse executado o seu plano
original de governá-lo sob o princípio da justiça estrita. Foi apenas
quando viu que a justiça por si mesma traria a ruína do mundo
que ele associou à justiça a misericórdia, e fez com que ambas
governassem conjuntamente. Desta forma, desde o princípio de
todas as coisas prevaleceu a bondade divina, sem a qual nada teria
continuado a existir. Se não fosse por isso, as miríades de espíritos
malignos já teriam colocado um fim às gerações dos homens.
Porém a bondade de Deus ordenou que a cada mês de Nisã, por
ocasião do equinócio da primavera, os serafins aproximem-se do
mundo dos espíritos, e os intimidem de modo a que eles temam
fazer mal ao homem.

Além disso, se Deus em sua bondade não tivesse concedido


proteção aos fracos, os animais mansos já teriam sido há muito
tempo eliminados pelos animais selvagens. No mês de Tamuz, por
ocasião do solstício do verão, quando a força do beemote está no
seu auge, ele urra tão alto que todos os animais o ouvem, e por um
ano inteiro permanecem assustados e temerosos, e seus atos
tornam-se menos ferozes do que seriam por natureza. Novamente,
no mês de Tisri, por ocasião do equinócio do outono, o grande
pássaro ziz bate suas asas e dá o seu grito, para que todas as aves
de rapina, águias e abutres, recuem de medo, e passem a temer
lançaram-se sobre os outros e aniquilá-los em sua cobiça. Além
disso, não fosse a misericórdia de Deus, o vasto número de peixes
grandes teria rapidamente colocado um fim nos pequenos. Porém
por ocasião do solstício do inverno, no mês de Tebet, o mar torna-
se agitado, pois o leviatã espirra água, e os grandes peixes ficam

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inquietos; eles refream seu apetite, e os pequenos escapam da sua
rapacidade.

Finalmente, a bondade de Deus se manifesta na preservação de


seu povo, Israel. Ele não poderia ter sobrevivido à inimizade dos
gentios, se Deus não tivesse designado para ele protetores, os
arcanjos Miguel e Gabriel. Quando acontece de Israel desobedecer
a Deus, e é acusado de mau comportamento pelos anjos de outras
nações, ele é defendido pelos seus guardiões designados, com
resultado tão positivo que os outros anjos passam a temê-los. Uma
vez que os anjos das outras nações estão aterrorizados, as
próprias nações não ousam levar avante seus perversos intentos
contra Israel.

Para que a bondade de Deus reinasse na terra como no céu, aos


Anjos da Destruição foi designado um posto na extremidade mais
distante dos céus, do qual não devem nunca se mover, enquanto
os Anjos da Misericórdia circundam o trono de Deus, às suas
ordens.

O ALFABETO
A CRIAÇÃO: O alfabeto

Quando Deus estava para criar o mundo pela sua palavra, as vinte
e duas letras do alfabeto desceram da terrível e augusta coroa de
Deus onde haviam sido gravadas com uma pena de fogo
flamejante, posicionaram-se em pé ao redor de Deus, e uma após a
outra falou e pediu:

– Crie o mundo através de mim!

A primeira a vir à frente foi a letra Tav. Ela disse:

– Ó, Senhor do mundo! Seja da sua vontade criar o mundo através


de mim, visto que é através de mim que o senhor dará a Torá a
Israel pela mão de Moisés, como está escrito: “Moisés ordenou-
nos a Torá.”

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O Santo, bendito seja ele, respondeu e disse:

– Não.

– Por que não? – perguntou Tav.

E Deus respondeu:

– Porque nos dias que virão deverei colocar você como sinal de
morte sobre as frontes dos homens.

Assim que Tav ouviu essas palavras da boca do Santo, bendito seja
ele, retirou-se da sua presença desapontada.

A letra Shin deu um passo a frente e pediu:

– Ó, Senhor do mundo, crie o mundo através de mim, visto que o


seu próprio nome, Shaddai, começa comigo.

Infelizmente Shin é também a primeira letra de Shav, mentira, e


de Sheker, falsidade, e foi por isso desclassificada. Resh não teve
melhor sorte: foi observado que ela era a letra inicial de Ra’,
perverso, e de Rasha’, maligno, e diante disso a distinção de que
ela desfruta por ser a primeira letra no Nome de Deus, Rahum, o
misericordioso, em nada contava.

Kof foi rejeitada porque Kelalah, maldição, pesa mais do que o


fato de ser a primeira letra em Kadosh, o Santo. Em vão Tzade
chamou a atenção para a palavra Zaddik, o Justo: havia Zarot, os
infortúnios de Israel, testemunhando contra ela. A letra Pe tinha
Podeh, redentor, em seu favor, mas Pesha, transgressão, refletia
desonra sobre ela. Ayin foi declarada inadequada, porque embora
comece ‘Anawah, humildade, faz a mesma coisa por ‘Erwah,
imoralidade.

Samek disse;

– Ó, Senhor, seja da sua vontade começar a criação através de


mim, pois o senhor é chamado como eu de Samek, o Sustentador
de todas as coisas que tendem a cair.

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Mas Deus disse:

– Você é necessária no lugar em que está, e deve continuar a


sustentar todas as coisas que tendem a cair.

Nun é a primeira letra de Ner, “a lâmpada do Senhor”, que é “o


espírito dos homens”, mas também de Ner, “a lâmpada dos
ímpios”, que será apagada por Deus. Mem começa a palavra Melek,
rei, um dos títulos de Deus, mas como é também a primeira letra
de Mehumah, confusão, não teve chance de realizar o seu desejo. A
reivindicação de Lamed trazia sua própria refutação. Ela
apresentou o argumento de que era a primeira letra em Luhot, as
tábuas celestiais dos Dez Mandamentos, esquecendo que as
tábuas eram feitas em pedaços por Moisés. Kaf estava certa da
vitória: tanto Kisseh, o trono de Deus, quanto Kabod, sua honra, e
Keter, sua coroa, começam com ela. Deus teve de lembrá-la de que
iria bater uma contra a outra as suas mãos, Kaf, em desespero
pelos infortúnios de Israel. À primeira vista Yod parecia ser a letra
apropriada para o princípio da criação, devido à sua associação
com Yah, Deus, porém Yezer ha-Ra’, a inclinação para o mal,
também acontecia de começar com ela. Tet identificava-se com
Tob, o bem, porém o verdadeiro bem não é deste mundo; pertence
ao mundo que está por vir. Het é a primeira letra de Hanun, o
Gracioso; porém essa vantagem é vencida por seu lugar na palavra
para pecado, Hattat. Zain sugere Zakor, lembrança, mas é ela
mesma a palavra para arma, aquela que fere. Wav e He compõem
o Inefável Nome de Deus, e são portanto exaltados demais para
prestarem serviço no mundo terreno. Se Dalet representasse
apenas Dabar, a Palavra Divina, teria sido usada, mas representa
também Din, justiça, e sob o governo da lei sem o amor o mundo
teria caído em ruína. Finalmente, a despeito de lembrar Gadol,
grande, Gimel não foi escolhida, porque Gemul, retribuição,
começa com ela.

Depois que as revindicações de todas essas havia sido negadas, a


letra Bet aproximou-se do santo, bendito seja ele, e pediu diante
dele:

– Ó, Senhor do Mundo! Seja sua vontade criar o mundo através de


mim, levando-se em conta que os moradores do mundo dão

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louvor ao senhor através de mim, como é dito: “Bendito seja o
Senhor para sempre. Amém e amém”.

O Santo, bendito seja ele, atendeu imediatamente ao pedido de


Bet.

– Bendito o que vem em nome do Senhor – disse ele.

E criou o seu mundo através de Bet, como é dito: “Bereshit [No


princípio] Deus criou os céus e a terra”.

A única letra que absteve-se de fazer qualquer pedido foi a


modesta Alef, e Deus mais tarde recompensou sua humildade
concedendo a ela o primeiro lugar nos Dez Mandamentos.

O PRIMEIRO DIA
A CRIAÇÃO: O primeiro dia

No primeiro dia da criação Deus produziu dez coisas: os céus e a


terra, Tohu e Bohu, a luz e as trevas, o vento e a água, a duração do
dia e a duração da noite.

Embora o céu e a terra consistam de elementos inteiramente


diferentes, eles foram criados como uma unidade, “como um
panela e sua tampa”. Os céus foram formados da luz dos trajes de
Deus, e a terra da neve de debaixo do trono divino. Tohu é uma
faixa verde que engloba o mundo inteiro, e produz a escuridão, e
Bohu consiste nas pedras do abismo, que produzem a água. A luz
criada no princípio não é a mesma luz do sol, da lua e das estrelas,
que apareceram somente no quarto dia. A luz do primeiro dia era
de tal natureza que teria permitido que o homem enxergasse num
só relance o mundo inteiro de uma ponta a outra. Antecipando a
perversidade das gerações pecaminosas do dilúvio e da Torre de
Babel, que eram indignas de desfrutar da bençao dessa luz, Deus a
ocultou, mas no mundo que está por vir ela aparecerá aos
piedosos em sua glória original.

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Leva-se quinhentos anos para se
caminhar da terra ao céu, e de uma
extremidade do céu à outra, e é
necessário o mesmo tempo para se viajar
do oeste ao leste, ou do sul ao norte.
Diversos céus foram criados, na verdade sete, cada um com um
propósito particular. O primeiro, visível para o homem, não tem
função exceto a de encobrir a luz durante a noite, e por isso
desaparece a cada manhã. Os planetas estão presos ao segundo
céu; no terceiro o maná é fabricado para os piedosos no porvir; o
quarto contem a Jerusalém celestial juntamente com o Templo, no
qual Miguel ministra como sumo sacerdote e oferece as almas dos
piedosos como sacrifício. No quinto céu residem as hostes de
anjos, e cantam louvor a Deus, embora apenas durante a noite,
pois durante o dia a tarefa de dar glória a Deus nas alturas é de
Israel, na terra. O sexto céu é um lugar sinistro; ali originam-se a
maior parte das provações e visitações ordenadas para a terra e
seus habitantes. Empilhados naquele lugar estão neve e granizo;
há sótãos cheios de orvalho nocivo, armazéns abarrotados de
tempestades e porões que comportam reservas de fumaça. Portas
de fogo separam essas câmaras celestiais, que estão sob a
supervisão do arcanjo Metraton. Seu conteúdo pernicioso
maculou os céus até o tempo de Davi. O piedoso rei orou que Deus
expurgasse de sua exaltada morada qualquer coisa que estivesse
prenhe de maldade; não era próprio que tais coisas existissem tão
próximas ao Misericordioso. Apenas então elas foram transferidas
para a terra.

O sétimo céu, por outro lado, nada contém que não seja bom e
belo: o direito, a justiça e a misericórdia, os armazéns da vida, da
paz e da benção, as almas dos piedosos, as almas e espíritos
das gerações não-nascidas, o orvalho com o qual Deus reviverá os
mortos no dia da ressurreição e, acima de tudo, o Trono Divino,
cercado por serafins, pelos ofanins, pelos santos Hayyot e pelos
anjos ministrantes.

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Correspondendo aos sete céus, Deus criou sete terras, cada uma
separada da seguinte por cinco camadas. Acima da terra mais
inferior, Erez, jazem em sucessão o abismo, Tohu, Bohu, o mar e as
águas. Chega-se então à sexta terra, Adamah, cena da
magnificência de Deus. Do mesmo modo, Adamah é separada da
quinta terra, Arka, que contém o Gehenna e Shaa’re Mawet e
Sha’are Zalmawet e Beer Shahat e Tit ha-Yawen e o Abadon e o
Seol e onde as almas dos perversos são guardadas pelos Anjos da
Destruição. Semelhantemente, a Arka segue-se Harabah, “a seca”,
lugar de riachos e ribeirões, apesar de seu nome; a terra seguinte,
Yabbashah, “o continente”, contém os rios e nascentes.

Tebel, a segunda terra, é a primeira habitada por criaturas vivas,


trezentas e sessenta e cinco espécies, todas essencialmente
diferentes das da nossa terra. Algumas têm cabeças humanas
presas a um corpo de leão, serpente ou boi; outras têm corpos
humanos encimados pela cabeça de algum desses animais. Além
disso, Tebel é habitada por seres humanos com duas cabeças e
quatro mãos e pés – na verdade, têm todos os orgãos duplicados
exceto o tronco. Acontece de vez em quando que as partes dessas
pessoas duplas disputam umas com as outras, especialmente
quando comem e bebem, ocasião em que cada uma exige para si a
porção maior. Essa espécie de humanidade é notável por sua
grande piedade, outra diferença entre ela e os habitantes da terra.

A nossa própria terra chama-se Heled e, como as outras, está


separada de Tebel por um abismo, por Tohu, por Bohu, pelo mar e
pelas águas.

Hostes de anjos cantam louvor a Deus,


embora apenas durante a noite, pois
durante o dia a tarefa de dar glória a
Deus nas alturas é de Israel, na terra.
Dessa forma uma terra ergue-se acima da outra, da primeira à
sétima, e acima da sétima estão dipostos os céus, do primeiro ao
sétimo, sendo que o último deles está preso ao braço de Deus. Os
sete céus formam uma unidade, os sete tipos de terra formam uma
unidade, e os céus e a terra juntos formam também uma unidade.

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Quando Deus fez o presente céu e a presente terra, “o novo céu e a
nova terra” também foram gerados, bem como as cento e noventa
e seis mil palavras que Deus criou para sua própria Glória.

Leva-se quinhentos anos para se caminhar da terra ao céu, e de


uma extremidade do céu à outra, e também de um céu ao seguinte,
e é necessário o mesmo tempo para se viajar do oeste ao leste, ou
do sul ao norte. Apenas um terço deste vasto mundo é habitado,
sendo que os outros dois terços são divididos igualmente entre
água e terras desertas.

Além das porções habitadas a leste está o Paraíso com suas sete
divisões, cada uma designada aos piedosos de determinada
categoria. O oceano está situado a oeste, e é salpicado de ilhas que
são habitadas por muitos povos diferentes. Além dele, por sua vez,
está a estepe sem fim cheia de serpentes e escorpiões e destituída
de qualquer espécie de vegetação, quer sejam gramíneas ou
árvores. Ao norte estão os suprimentos de fogo-do-inferno, de
neve, granizo, fumaça, gelo, escuridão e tempestades, e naquela
vizinhança toda sorte de diabos, demônios e espíritos malignos.
Sua habitação é uma grande extensão de terra que levaria
quinhentos anos para atravessar. Além dela jaz o inferno. Ao sul
localiza-se a câmara contendo reservas de fogo, a caverna da
fumaça e a forja dos ventos e furacões. Acontece então que o vento
que sopra do sul traz calor e mormaço sobre a terra. Não fosse
pelo anjo Ben Nez, o Alado, que retém o vento sul com suas
plumas, o mundo seria consumido. Além disso, a fúria de suas
rajadas é temperada pelo vento norte, que aparece sempre como
moderador, qualquer que seja o outro vento que estiver soprando.

A leste, oeste e sul, céu e a terra tocam um ao outro, mas o norte


Deus deixou por terminar, para que a qualquer homem que
afirmasse ser deus fosse oferecida a tarefa de suprir a deficiência,
de modo a ser condenado como impostor.

A terra começou a ser construída pelo centro, com a pedra


fundamental do Templo, a Eben Shetiyah, pois a Terra Santa é o
ponto central da superfície da terra, Jerusalém é o ponto central
da Palestina e o Templo está situado no centro da Cidade Santa.
No santuário em si o Hekal é o centro, e a Arca santa ocupa o

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centro do Hekal, erigido sobre a pedra fundamental, que é dessa
forma o centro da terra. Dali lançou-se o primeiro raio de luz,
cortando a Terra Santa, e a partir dali iluminando toda a terra. A
criação do mundo, no entanto, não poderia ter tomado lugar até
que Deus banisse o senhor da escuridão. “Retire-se”, Deus disse a
ele, “pois desejo criar o mundo através da luz”. Apenas depois que
a luz havia sido formada surgiram as trevas, a luz governando o
céu, as trevas a terra. O poder de Deus manifestou-se não apenas
na criação do mundo de coisas, mas igualmente nas limitações que
ele impôs sobre cada uma. Os céus e a terra estenderam-se em
comprimento e largura como se aspirassem à infinitude, e foi
preciso a palavra de Deus para colocar um limite no alcance deles.

O SEGUNDO DIA
A CRIAÇÃO: O segundo dia

No segundo dia Deus criou quatro coisas: o firmamento, o inferno,


o fogo e os anjos. O firmamento não é o mesmo que o céu do
primeiro dia. Trata-se do cristal que se estende sobre as cabeças
dos Hayyot, do qual o céu deriva a sua luz, da mesma forma que a
terra deriva do sol a sua luz. Esse firmamento protege a terra de
ser inundada pelas águas do céu; ele forma a divisão entre as
águas de cima e as águas de baixo. Foi cristalizado na forma sólida
pelo fogo celeste, que ultrapassou os seus limites e condensou a
superfície do firmamento. Desta forma o fogo fez a divisão entre o
celestial e o terrestre por ocasião da criação, da mesma forma que
fez por ocasião da revelação no Sinai. O firmamento não tem mais
de três dedos de espessura, e apesar disso faz separação entre
dois corpos tão pesados quanto as águas inferiores, que são as
fundações do mundo inferior, e as águas superiores, que são as
fundações dos sete céus, do Trono Divino e da residência dos
anjos.

A separação das águas entre águas superiores e inferiores foi o


único ato dessa natureza realizado por Deus em conexão com a
obra da criação. Todos os outros foram atos unificadores. Este
causou, portanto, algumas dificuldades. Quando Deus ordenou:

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“Que as águas se ajuntem num só lugar, de modo que apareça a
terra seca”, certas porções recusaram-se a obedecer, e abraçaram-
se umas às outras ainda mais firmemente. Em sua indignação
contra as águas, Deus determinou que toda a criação se
dissolvesse novamente no caos. Ele chamou o Anjo da Face e
ordenou que destruisse o mundo. O anjo arregalou os olhos e
fogos abrasadores e espessas nuvens projetaram-se deles,
enquanto ele gritava:

– Aquele que divide em duas metades o Mar Vermelho! – e as


águas revoltosas não se moveram.

Todas as coisas estavam ainda sob perigo de destruição. Então


aquele que canta os louvores de Deus começou:

Tende piedade do teu mundo, não o


destruas; pois se o destruirdes, quem
cumprirá a tua vontade?
– Ó Senhor do mundo, nos dias que virão tuas criaturas cantarão
sem interrupção louvores a ti; bendizer-te-ão irrestritamente, e
glorificar-te-ão sem medida. Tu tomarás Abraão à parte de toda a
humanidade para ser teu; um de seus filhos tu chamarás de “meu
primogênito; e seus descendentes tomarão sobre si o jugo do teu
reino. Em santidade e pureza tu lhes conferirás a Torá, com as
seguinte palavras: “Eu sou o Senhor seu Deus”; a que eles
responderão: “Tudo que Deus tem falado faremos”. E agora
suplico-te, tende piedade do teu mundo, não o destruas; pois se o
destruirdes, quem cumprirá a tua vontade?

Deus assim apazigou-se. Retirou a ordem que determinava a


destruição do mundo, mas as águas ele colocou sob as montanhas,
para permanecerem ali para sempre.

A objeção das águas inferiores contra a divisão e a separação não


foi o único motivo para a sua rebelião. As águas haviam sido as
primeiras a dar louvor ao Senhor, e quando foi decretada a sua
separação em superiores e inferiores, as águas superiores
regozijaram-se, dizendo:

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– Bem-aventuradas somos nós, que temos o privilégio de habitar
junto ao nosso Criador e junto ao seu Trono Santo.

Assim celebrando elas lançaram-se para o alto, e proferiram


canção de louvor ao Criador do mundo. Tristeza recaiu sobre as
águas inferiores. Elas lamentaram:

– Ai de nós, que não fomos achadas dignas de habitar na presença


de Deus, e de louvá-lo juntamente com nossas companheiras.

Elas tentaram portanto alçar-se para o céu, até que Deus as


repeliu, pressionando-as contra a terra. Apesar disso elas não
deixaram de receber recompensa pela sua lealdade: quando
desejam dar louvores a Deus, as águas superiores precisam pedir
antes permissão às águas inferiores.

O segundo dia foi um dia desfavorável não apenas no sentido de


que introduziu uma separação no que antes havia sido apenas
unidade: foi também o dia que contemplou a criação do inferno.
Deus não pôde portanto dizer desse dia como disse dos outros, “e
viu que era bom”. Uma divisão pode ser necessária, mas não pode
ser chamada de boa, e o inferno certamente não merece o atributo
de bom.

O inferno tem sete divisões, uma abaixo da outra. Essas são


chamadas Sheol, Abaddon, Beer Shahat, Tit ha-Yawne, Sha’are
Mawet, Sha’are Zalmawet e Gehenna. São necessários trezentos
anos para se percorrer a altura, a largura ou a profundidade de
cada divisão, e seriam necessários seis mil e trezentos anos para
se atravessar uma extensão de terra correspondente à extensão
das sete divisões.

Há em cada caverna sete mil fendas, e


em cada fenda sete mil escorpiões.
Cada uma das sete divisões tem por sua vez sete subdivisões, e em
cada compartimento há sete rios de fogo e sete de granizo. A
largura de cada um é de mil varas, sua profundidade mil, seu
comprimento trezentos, e eles fluem um para dentro do outro,
sendo supervisionados por noventa mil anjos de destruição. Há,

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além disso, em cada compartimento sete mil cavernas, em cada
caverna sete mil fendas, e em cada fenda sete mil escorpiões. Cada
escorpião tem trezentos anéis, e em cada anel sete mil bolsas de
veneno, dos quais fluem sete rios de veneno mortal. O homem que
o toca explode imediatamente: cada membro é separado do corpo,
suas entranhas se esfacelam e ele cai de rosto no chão.

Há também cinco tipos diferentes de fogo no inferno. Um deles


devora e absorve, outro devora e não absorve, enquanto o terceiro
absorve e não devora; há ainda outro fogo que nem devora nem
absorve, e finalmente um fogo que devora o fogo. Há brasas do
tamanho de montanhas, brasas do tamanho de colinas e brasas do
tamanho do Mar Morto, e brasas que se assemelham a enormes
pedras, e há rios de asfalto e enxofre que fluem e borbulham como
brasas vivas.

A terceira criação do segundo dia foram as hostes de anjos – tanto


os anjos ministradores quanto os anjos de louvor. A razão pela
qual eles não foram trazidos à existência no primeiro dia foi para
que os homens não cressem que os anjos auxiliaram Deus na
criação do céu e da terra. Os anjos que são moldados de fogo têm
formas de fogo, mas apenas enquanto permanecem no céu.
Quando descem à terra, a fim de fazerem a vontade de Deus aqui
embaixo, são ou transformados em vento ou assumem a aparência
de homens. Há dez escalões hierárquicos, ou graus, entre os anjos.

Os de nível hierárquico mais exaltado são os que cercam o Trono


Divino por todos os lados: à direita, à esquerda, na frente e atrás,
sob a liderança dos arcanjos Miguel, Gabriel, Uriel e Rafael.

Deus os silencia: “Quietos, até que eu


tenha ouvido as canções e doces
melodias de Israel”.
Todos os seres celestiais louvam a Deus com as palavras: “Santo,
santo, santo é o Senhor dos exércitos”, mas nisso os homens têm
precedência sobre eles. Os anjos não podem começar sua canção
de louvor até que os seres terrenos tenham trazido sua exaltação a
Deus. Israel em particular tem a preferência dos anjos. Quando

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circundam o Trono Divino na forma de montanhas de fogo e
colinas flamejantes, e ensaiam levantar as vozes em adoração ao
Criador, Deus os silencia com as palavras:

– Quietos, até que eu tenha ouvido as canções, louvores, orações e


doces melodias de Israel.

Assim sendo, os anjos ministrantes e todas as outras hostes


celestiais aguardam até que os últimos ecos das doxologias de
Israel, erguendo-se da terra, tenham se extinguido, e só então
proclamam em alta voz: “Santo, santo, santo é o Senhor dos
exércitos”.

Quando se aproxima a hora da glorificação de Deus por parte dos


anjos, o augusto arauto divino, o anjo Shamiel, desce até as janelas
do céu mais inferior para escutar as canções, orações e louvores
que ascendem das sinagogas e casas de saber, e quanto terminam,
ele anuncia o seu fim aos anjos de todo o céu. Os anjos
ministrantes, aqueles que têm contato com o mundo sublunar,
dirigem-se agora a suas câmaras para seu banho de purificação.

Eles mergulham num riacho de fogo e chama por sete vezes, e


por trezentas e sessenta e cinco vezes examinam-se
cuidadosamente, para certificar-se que nenhuma mancha
permanece aderida a seus corpos. Só então sentem-se
dispensados para galgar sua escada de fogo e juntar-se aos anjos
do sétimo céu, e cercar o trono de Deus juntamente com Hashmal
e todos os santos Hayyot. Adornados de milhões de coroas
chamejantes, trajando vestes de fogo, todos os anjos em uníssono,
com as mesmas palavras e a mesma melodia, entoam canções de
louvor a Deus.

O TERCEIRO DIA
A CRIAÇÃO: O terceiro dia

Até esta altura a terra era plana e totalmente coberta de água. Mal
haviam se ouvido as palavras de Deus: “Ajuntem-se as águas”, e

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surgiram as montanhas e colinas, e a água acumulou-se em bacias
profundas. Mas a água era rebelde e recusava-se a ocupar os
lugares mais baixos, e ameaçou inundar a terra, até que Deus
forçou-a de volta ao mar e circundou o mar de areia. Agora,
sempre que a água sente-se tentada a transgredir ela contempla a
areia e recolhe-se. As águas estavam apenas imitando seu chefe
Rahabe, o Anjo do Mar, que rebelou-se contra a criação do mundo.
Deus havia ordenado a Rahabe que assumisse também a água. Ele
recusou-se, dizendo: “Já tenho o que basta”. A punição pela sua
desobediência foi a morte. Seu cadáver jaz nas profundezas do
oceano, e a água dispersa o mau cheiro que emana dele.

Agora, sempre que a água sente-se


tentada a transgredir ela contempla a
areia e recolhe-se.
A principal criação do terceiro dia foi o reino das plantas, tanto as
plantas terrestres quanto as do Paraíso. Primeiro foram feitos os
cedros do Líbano e as outras grandes árvores. Em seu orgulho por
terem sido colocadas em primeiro lugar, elas projetaram-se alto ar
acima, considerando-se as mais privilegiadas das plantas. Então
Deus disse:

– Eu abomino a arrogância e o orgulho, porque apenas eu sou


exaltado, e ninguém mais.

Ele então criou no mesmo dia o ferro, substância pela qual as


árvores caíam. As árvores começaram a chorar, e quando Deus
perguntou a razão das suas lágrimas elas disseram:

– Choramos porque criaste o ferro a fim de nos derrubar com ele.


O tempo todo nos havíamos crido as mais elevadas da terra, e
agora o ferro, nosso destruidor, foi chamado à existência.

Deus respondeu:

– Vocês mesmas proverão um cabo ao machado. Sem a sua


assistência o ferro não será capaz de fazer coisa alguma contra
vocês.

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A ordem de gerar semente segundo a sua espécie foi dada apenas
às árvores. Mas as diversas espécies de erva rasteira pensaram
consigo mesmas que se Deus não tivesse desejado divisões
segundo as espécies não teria instruído as árvores a darem fruto
segundo a sua espécie, cuja semente estivesse nele –
especialmente já que as árvores estavam inclinadas por sua
própria iniciativa a se dividirem em espécies. Por essa razão as
ervas rasteiras também se reproduziram segundo as suas
espécies. Isso ocasionou uma exclamação do Príncipe do Mundo:
“Dure para sempre a glória do Senhor; regozije-se o Senhor nas
suas obras”.

A obra mais importante realizada no terceiro dia foi a criação do


Paraíso. Dois portões de carbúnculo formam a entrada do Paraíso,
e seis miríades de anjos ministrantes o guardam. Cada um desses
anjos brilha com o esplendor do céu. Quando o justo aparece
diante dos portões, as roupas com que foi enterrado são tiradas
dele, e os anjos o vestem com sete vestimentas de nuvens de
glória, colocam sobre sua cabeça duas coroas, uma de pedras
preciosas e pérolas, a outra de ouro de Parvaim, depositam oito
murtas na sua mão, e proferem louvores diante dele e dizem: “Siga
seu caminho, e coma o seu pão com alegria”. Em seguida eles o
conduzem a um lugar repleto de rios, cercado por oitocentas
espécies de rosas e murtas. Cada [justo] tem um dossel segundo
seus méritos, e sob ele fluem quatro rios, um de leite, o outro de
bálsamo, o terceiro de vinho e o quarto de mel. Cada dossel é
coberto de uma vinha de ouro, e dela pendem trinta pérolas, cada
uma brilhante como Vênus. Sob cada dossel há uma mesa de
pedras preciosas e pérolas, e sessenta anjos postam-se junto de
cada homem justo, dizendo a ele: “Vá e coma com alegria o mel,
porque você ocupou-se com a Torá, que é mais doce do que o mel,
e beba o vinho reservado na uva desde os seis dias da criação, pois
você se ocupou da Torá, que é comparável ao vinho”.

Deus assenta-se no meio deles e expõe-


lhes a Torá.
O menos belo dos justos é bonito como José e o Rabi Johanan,
como os grãos de uma romã de prata sobre a qual descem os raios

17
do sol. Não há luz, pois “a luz dos justos brilha intensamente”. Eles
experimentam quatro transformações por dia, passando por
quatro estágios. No primeiro o justo é transformado em criança.
Ele entra na divisão das crianças, e desfruta das alegrias da
infância. Ele é então transformado num jovem, e entra na divisão
dos jovens, com os quais ele desfruta dos deleites da juventude.
Ele em seguida transforma-se em adulto, no auge do vigor, e
adentra a divisão dos homens, e experimenta os prazeres da idade
adulta. Finalmente ele é transformado em velho. Ele entra na
divisão dos velhos, e desfruta dos prazeres da velhice.

Há oitenta miríades de árvores em cada canto do Paraíso, sendo a


mais inferior delas mais excelente do que todas as árvores de
especiaria. Em cada canto há sessenta miríades de anjos cantando
com vozes melodiosas, e a árvore da vida ergue-se no meio e dá
sombra a todo o Paraíso. Ela tem quinze mil sabores, cada um
distinto do outro, e os perfumes variam da mesma forma. Sobre
ela pendem sete nuvens de glória, e ventos sopram sobre ela dos
quatro lados, de modo que seu aroma é bafejado de uma ponta do
mundo à outra. Sob ela assentam-se os eruditos e explicam a Torá.
Sobre cada um deles estendem-se dois dosséis, um de estrelas, o
outro de sol e lua, e uma cortina de nuvens de glória separa um
dossel do outro.

Além do Paraíso começa o Éden, contendo trezentos e dez mundos


e sete compartimentos para sete diferentes classes de piedosos.
No primeiro estão os “mártires vítimas do governo” como Rabi
Akiba e seus companheiros; no segundo estão os que foram
afogados; no terceiro Rabi Johanan ben Zakkai e seus discípulos;
no quarto aqueles que foram arrebatados na nuvem de glória; no
quinto os penitentes, que ocupam um lugar que mesmo um
homem perfeitamente piedoso não pode obter; no sexto estão os
jovens que não experimentaram o pecado em suas vidas; no
sétimo estão os pobres que estudaram a Bíblia e a Mishnah, e
conduziram uma vida de decência auto-respeitosa. E Deus
assenta-se no meio deles e expõe-lhes a Torá.

Quanto às sete divisões do Paraíso, cada uma tem doze miríades


de milhas de largura e doze miríades de milhas de extensão. Na
primeira divisão habitam os prosélitos que abraçaram o judaísmo

18
por sua próprio arbítrio, não por pressão. As paredes são de vidro
e os lambris de cedro. O profeta Obadias, ele mesmo um prosélito,
é o supervisor dessa primeira divisão. A segunda divisão é
construída de prata, e seus lambris são de cedro. Aqui vivem os
que se arrependeram, e Manassés, o filho penitente de Ezequias,
preside sobre eles. A terceira divisão é construída de ouro e prata.
Aqui habitam Abraão, Isaque e Jacó, todos os israelitas que saíram
do Egito e toda a geração que viveu no deserto. Também Davi está
ali, junto com todos os seus filhos exceto Absalão, sendo que um
deles, Quileabe, ainda vivo. E todos os reis de Judá estão ali, com
exceção de Manassés, filho de Ezequias, que preside sobre a
segunda divisão, a dos penitentes. Moisés e Arão presidem sobre a
terceira divisão. Aqui há preciosos vasos de ouro e prata e jóias e
dosséis e camas e tronos e lâmpadas, de ouro, de pedras preciosas
e de pérolas, o melhor de tudo que há no céu. A quarta divisão é
construída de belíssimos rubis, e seus lambris são de madeira de
oliva. Aqui habitam os perfeitos e constantes na fé, e os lambris
são de oliveira porque suas vidas foram para eles amargas como
azeitonas.

Elias toma a cabeça do Messias, coloca-a


no colo e diz: “Aquiete-se, porque o fim
está próximo”.
A quinta divisão é construída de prata, ouro e ouro refinado, e do
ouro mais puro e bdélio, e no meio dela passa o rio Gion. Seus
lambris são de prata e ouro, e exala dele um perfume mais
requintado do que o perfume do Líbano. As colchas das camas de
prata e de ouro são feitas de púrpura e azul, tecidas por Eva, e de
escarlata e pelo de bode, tecido por anjos. Aqui habita o Messias
num palanquim feito de cedro do Líbano, “senso seus pilares de
prata, o fundo de ouro, o assento de púrpura”. Com ele está Elias.
Ele toma a cabeça do Messias, coloca-a no colo e diz: “Aquiete-se,
porque o fim está próximo”. Em todas as segundas-feiras e quintas
e sábados e dias santos os patriarcas vem até ele, bem como os
doze filhos de Jacó, e Moisés, Arão, Davi e Salomão, e todos os reis
de Israel e de Judá, e choram com ele e confortam-no, e dizem a
ele: “Aquiete-se e coloque sua confiança no Criador, pois o fim está
próximo”. Também Corá e seu grupo, e Datã e Abiram e Absalão

19
vêm até ele toda quarta-feira e perguntam: “Quanto falta até que o
fim venha cheio de maravilhas? Quando nos trarás novamente à
vida, e dos abismos da terra nos alçarás?” O Messias lhes
responde: “Vão até seus pais e perguntem a eles”. Quando ouvem
isso eles ficam com vergonha e não vão perguntar aos seus pais.

Na sexta divisão habitam os que morreram realizando algum ato


piedoso, e na sétima divisão os que morreram de uma
enfermidade infligida como expiação pelos pecados de Israel.

O QUARTO DIA
A CRIAÇÃO: O quarto dia

O quarto dia da criação produziu o sol, a lua e as estrelas. Essas


esferas celestes não foram na verdade formadas neste dia; foram
criadas no primeiro dia, e meramente colocadas nos seus lugares
no céu no quarto dia.

No princípio o sol e a lua desfrutavam de poderes e privilégios


iguais. A lua falou com Deus e disse:

– Ó, Senhor, por que criaste o mundo com a letra Bet?

Deus respondeu:

– Para que ficasse conhecido das minhas criaturas que existem


dois1 mundos.

A lua:

– Ó, Senhor, qual dos mundos é maior, este mundo ou mundo que


está por vir?

Deus:

– O mundo que está por vir é maior.

A lua:

20
– Ó, Senhor, tu criaste dois mundos, um maior e um menor; criaste
o céu e a terra, sendo que o céu supera a terra; criaste o fogo e a
água, sendo a água mais forte do que o fogo, porque pode apagá-
lo. Agora criaste o sol é a lua, e é apropriado que um seja maior do
que o outro.

Então disse Deus à lua:

– Sei bem que sua intenção é que eu lhe faça maior do que o sol.
Como punição decreto que você fique com apenas um sexto da sua
luz.

A lua suplicou:

– Devo ser punida tão severamente por ter dito uma única
palavra?

Deus cedeu:

– No mundo futuro a sua luz lhe será restaurada, de modo que sua
luz será novamente como a luz do sol.

A lua não estava ainda satisfeita.

– Ó, Senhor – ela disse, – e a luz do sol, quão grande será naquele


dia?

A ira do Senhor acendeu-se então mais uma vez.

– Quê? Você está conspirando contra o sol? Tão certo quanto você
vive, no mundo que está por vir a luz dele será sete vezes mais
forte do que a luz que ele hoje irradia.

O sol percorre o seu curso como um noivo, sentado sobre um


trono com uma guirlanda ao redor da cabeça. Noventa e seis anjos
acompanham-no em sua jornada diária, em turnos de oito a cada
hora: dois à sua esquerda, dois à sua direita, dois à frente e dois
atrás. Forte como é, o sol poderia completar o seu curso do sul ao
norte num único instante, mas trezentos e sessenta e cinco anjos
restringem-no através de inúmeros ganchos de ferro. Cada dia um
dos anjos solta o seu gancho, de modo que o sol é obrigado a
gastar trezentos e sessenta e cinco dias no seu curso. O progresso

21
do sol em seu circuito é uma canção ininterrupta de louvor a Deus.
E é apenas essa canção que torna o seu movimento possível. Por
essa razão, quando quis ordenar que o sol se detivesse no seu
curso Josué ordenou que ele se calasse. Tendo calado sua canção
de louvor, o sol ficou imóvel.

O sol tem duas faces: uma, de fogo, voltada para a terra, e outra
de granizo, voltada para o céu, cuja função é aplacar o prodigioso
calor que irradia da oura face – de outro modo a terra pegaria
fogo. No inverno o sol volta sua face de fogo para cima, e dessa
forma o frio é produzido. Quando se põe no oeste ao entardecer o
sol mergulha no oceano e toma um banho, sendo seu fogo
extinguido, e por essa razão ele não dispensa fogo nem calor
durante a noite. Porém logo que alcança o leste na manhã seguinte
ele mergulha numa corrente de fogo, que acende-o e concede-lhe
calor, os quais o sol derrama sobre a terra. Da mesma forma a lua
e as estelas tomam banho numa corrente de granizo antes de
assumirem os seus postos à noite.

Quando o sol e a lua estão prontos para dar início ao seu ciclo de
tarefas eles aparecem diante de Deus e imploram que ele os
dispense de cumprir a sua obrigação, a fim de serem poupados de
contemplar a humanidade pecaminosa. É somente mediante
constrangimento que eles procedem com seu curso diário.
Retornando da presença de Deus sol e lua encontram-se cegados
pela radiância do céu, e não conseguem encontrar o caminho.
Deus, por essa razão, lança flechas, por cuja luz cintilante eles são
guiados. É devido à pecaminosidade do homem, a qual o sol é
forçado a contemplar em seus cursos diários, que ele enfraquece à
medida que se aproxima a hora do seu declínio, pois os pecados
têm um efeito corruptor e delibitante, e ele se põe no horizonte
como uma esfera de sangue, porque o sangue é o sinal de
corrupção.

De manhã, ao lançar-se no seu curso, as asas do sol tocam as


folhas das árvores do paraíso, e sua vibração é transmitida aos
anjos e aos santos Hayyot, às outras plantas e também às árvores
e plantas da terra, bem como a todos os seres da terra e do céu. É
sinal para que eles voltem seus olhos para o céu. Logo que
contemplam o Nome Inefável, que está gravado no sol, eles

22
erguem suas vozes em canções de louvor a Deus. No mesmo
momento é ouvida uma voz celestial que diz: “Ai dos filhos dos
homens, que não atentam em honrar a Deus como essas criaturas
que erguem agora suas vozes em adoração”. Essas palavras,
naturalmente, não são ouvidas pelos homens, da mesma forma
que eles não escutam o rangido do sol contra a roda na qual estão
presos todos os corpos celestes, embora o som seja
extraordinariamente alto. Essa fricção entre o sol e a roda produz
as partículas cintilantes que dançam nos raios de sol. Essas são
portadoras de cura aos doentes, as únicas criações doadores de
saúde do quarto dia, no todo um dia desafortunado, especialmente
para as crianças, sendo nele afligidas por doenças.

Quando Deus puniu a ciumenta lua, diminuindo sua luz e


esplendor de modo que ela deixasse de se equiparar ao sol como
havia sido originalmente, a lua caiu, e minúsculos fragmentos
soltaram-se do seu corpo. Esses são as estrelas.
1
A letra Bet, segunda letra do alfabeto hebraico, corresponde ao algarismo dois.

O QUINTO DIA
A CRIAÇÃO: O quinto dia

No quinto dia da criação Deus tomou fogo e água, e desses


elementos fez os peixes do mar. Os animais da água são muito
mais numerosos do que os da terra. Para cada espécie na terra,
com exceção da fuinha, há uma espécie correspondente na água e,
além disso, muitas outras encontradas apenas na água.

O regente sobre as criaturas do mar é o leviatã. Juntamente com os


outros peixes, ele foi feito no quinto dia. Originalmente ele foi
criado macho e fêmea como todos os outros animais. Porém
quando ficou evidente que um par desses monstros poderia
aniquilar toda a terra com a sua força, Deus matou a fêmea. Tão
imenso é o leviatã que para saciar sua sede ele requer toda a água
que flue do Jordão mar adentro. Sua comida consiste de peixes
que entram espontaneamente entre suas mandíbulas. Quando ele

23
está com fome um hálito quente sopra de suas narinas, que torna
as águas do grande mar quentes ao ponto da ebulição. Por mais
formidável que seja o behemoth, o outro monstro, ele sente-se
inseguro até que o leviatã tenha saciado a sua sede. A única coisa
que pode mantê-lo sob controle é o esgana-gato, um pequeno
peixe que foi criado com esse propósito, e diante do qual o
monstro queda em assombro. Porém o leviatã não é apenas
grande e forte; é além disso maravilhosamente formado. Suas
barbatanas irradiam ofuscante luz, sendo o próprio sol
obscurecido por ela, e também seus olhos projetam tamanho
esplendor que o mar é com freqüência repentinamente iluminado
por ele. Não é de admirar que essa fera maravilhosa seja o
brinquedo de Deus, com o qual ele passa seu tempo.

Apenas uma coisa torna o leviatã repulsivo: seu odioso cheiro, que
é tão forte que se penetrasse o próprio Paraíso torna-lo-ia
inabitável.

O verdadeiro propósito do leviatã é servir de iguaria aos justos


no mundo do porvir. A fêmea foi colocada em salmoura tão logo
morta, para ser preservada até o momento em que sua carne será
necessária. O macho está destinado a prover uma visão
extraordinária a todos os espectadores antes de ser consumido.
Quando sua última hora chegar Deus convocará os anjos para que
entrem em combate contra o monstro. Mas tão logo o leviatã lance
o seu olhar sobre eles os anjos fugirão, desfalecidos de medo, do
campo de batalha. Eles retornarão à carga com espadas, porém em
vão, porque suas escamas podem repelir o ferro como se fosse
palha. Eles não terão mais sucesso quando tentarem matá-lo
arremessando pedras e lanças; tais mísseis ricochetearão sem
causar a menor impressão no corpo do monstro. Desanimados, os
anjos desistirão do combate, e Deus ordenará que o leviatã e o
behemoth entrem em duelo um contra o outro. Como resultado
ambos cairão mortos, o behemoth esmagado por um golpe das
barbatanas do leviatã, o leviatá morto por um açoite da cauda do
behemoth. Da pele do leviatã Deus construirá tendas para abrigar
as multidões dos piedosos enquanto eles desfrutam dos pratos
feitos da sua carne. A quantidade designada a cada justo será
proporcional a seus merecimentos, e ninguém invejará ou se

24
ressentirá da porção maior de outro. O que sobrar da pele do
leviatã será esticado como toldo sobre Jerusalém, e a luz que se
projetará dela iluminará o mundo inteiro, e o que restar da sua
carne, depois que os justos tiverem saciado seu apetite, será
distribuído entre o restante dos homens.

No mesmo dia em que os peixes foram criados os pássaros, pois


essas duas espécies de animais são intimamente relacionadas uma
à outra. Os peixes são formados de água, os pássaros de terreno
pantanoso saturado de água.

Da mesma forma que o leviatã é o rei dos peixes, o ziz foi


apontado para governar sobre os pássaros. Seu nome vem da
variedade de sabores que sua carne tem; tem gosto disso, zeh, e
daquilo, zeh. O ziz é tão monstruosamente grande quanto o
próprio leviatã. Seus tornozelos repousam sobre a terra, e sua
cabeça chega ao próprio céu.

Aconteceu certa vez que viajantes num navio perceberam uma


ave: ela estava em pé sobre água, que meramente cobria-lhe os
pés, e sua cabeça chocava-se contra o céu. Os observadores
concluíram que a água não podia ser nada profunda naquele
ponto, e prepararam-se para tomar banho ali. Uma voz do céu os
advertiu: “Não desçam aqui! Certa vez um machado de carpinteiro
escorregou de sua mão neste local, e levou sete anos para chegar
ao fundo”. O pássaro que os viajantes viram era nada mais nada
menos do que o ziz. Suas asas são tão vastas que abertas
obscurecem o sol. Elas protegem a terra contra as tempestades do
sul; sem o seu auxílio a terra não seria capaz de resistir aos ventos
que sopram daquela direção. Certa vez um ovo de ziz caiu no chão
e quebrou. Seu líquido inundou sessenta cidades, e o impacto
esmagou trezentos cedros. Felizmente acidentes como esse não
ocorrem com freqüência: normalmente o pássaro faz seus ovos
deslizarem gentilmente para dentro do ninho. Esse infortúnio
ocorreu devido ao fato de que aquele ovo estava podre, e o
pássaro jogou-o fora descuidadamente.

O ziz tem outro nomem, Renanin, porque é o cantor celestial.


Devido à sua relação com as regiões celestiais ele é também
chamado de Seqwi, o vidente, e é além disso chamado de “filho do

25
ninho”, porque ao nascer seus filhotes desembaraçam-se de seus
ovos sem o auxílio da mãe; nascem, por assim dizer, diretamente
do ninho. Como o leviatã, o ziz é uma das iguarias que será servida
aos piedosos no final dos tempos, para compensar as restrições
alimentares impostas sobre eles, que proíbem-nos de consumir
aves imundas.

O SEXTO DIA
A CRIAÇÃO: O sexto dia

Da mesma forma que os peixes foram formados da água e os


pássaros de argila misturada com água, os mamíferos foram
formados da terra sólida; da mesma forma que o leviatã é o
representante mais notável dos peixes e o ziz dos pássaros, o
behemoth é o mais notável representante dos mamíferos. A força
do behemoth se equipara à do leviatã, tendo sido ele também
impedido, como o leviatã, de crescer e multiplicar-se, do contrário
o mundo não poderia continuar a existir. Depois de tê-lo criado
macho e fêmea, Deus privou-o imediatamente do desejo de
propagar sua espécie. Ele é tão monstruoso que requer a
vegetação de milhares de montanhas para sua alimentação diária.
Toda a água que flui pelo leito do Jordão num ano inteiro basta-lhe
para precisamente um único gole. Foi por essa razão necessário
conceder-lhe um corrente dedicada a seu uso exclusivo, corrente
que flui do Paraíso e chama-se Yubal. Também o behemoth está
destinado a ser servido aos bem-aventurados como apetitosa
iguaria, mas antes de desfrutarem da sua carne ser-lhes-á
permitido assistir ao combate mortal entre o leviatã e o behemoth,
como recompensa por terem se privado dos prazeres do circo e
das disputas dos gladiadores.

O leviatã, o ziz e o behemoth não são os únicos monstros; há


inúmeros outros, e fabulosos, como o re’em, animal de proporções
gigantescas do qual um único casal, macho e fêmea, existem. Se
fossem mais numerosos o mundo mal teria como manter-se
diante eles. A cópula dos re’em ocorre apenas a cada setenta anos,

26
pois Deus ordenou que o macho e a fêmea residissem em cantos
opostos da terra, um a leste, outro a oeste. A cópula resulta na
morte do macho, que é mordido pela fêmea e morre com a
mordida. A fêmea emprenha e permanece nesse estado por não
menos que doze anos. Ao final desse longo período ela dá a luz
gêmeos, um macho e uma fêmea. No ano que precede ao parto ela
é incapaz de se mover e morreria de fome, não fosse pela saliva
que brota copiosamente da sua boca, que rega e faz frutificar a
terra junto a ela, levando-a a produzir o que basta para o seu
sustento. Por um ano inteiro tudo que o animal consegue fazer é
rolar de uma lado para o outro, até que seu ventre finalmente se
rompe e saem os gêmeos. Sua aparição é portanto o sinal para a
morte da mãe re’em. Ela abre espaço para a nova geração, que está
por sua vez destinada a sofrer o mesmo destino da geração
anterior. Imediatamente após o nascimento um dos gêmeos parte
para leste e outro para leste oeste, para reencontrarem-se apenas
após a passagem de setenta anos, reproduzirem-se e morrerem.
Um viajante que viu certa vez um re’em descreveu-o com tendo
vinte quilômetros de altura, sendo o comprimento da sua cabeça
de oito quilômetros. Seus chifres têm uma circunferência de cem
metros, e sua altura é muito maior.

Uma das criaturas mais notáveis é o “homem da montanha”, Adne


Sadeh, ou, simplesmente, Adão. Sua aparência é exatamente a de
um ser humano, porém ele permanece preso ao chão por um
cordão umbilical, do qual sua vida depende. Quando o cordão é
cortado, ele morre. Esse animal mantém-se vivo com o que é
produzido no solo ao redor de si, dentro da distância que sua
corda permite que ele cubra. Nenhuma criatura pode aventurar-se
a adentrar o raio do seu cordão, pois ele ataca e destrói qualquer
coisa a seu alcance. Para matar o Adne Sadeh não se pode
aproximar-se dele; seu cordão umbilical deve ser rompido à
distância com um dardo, sendo que ele morre em seguida entre
gemidos e lamentos.

Certa vez aconteceu de um viajante encontrar-se hospedado


dentro da região em que esse animal é encontrado. Ele ouviu, sem
ser percebido, seu anfitrião conversando com a esposa sobre o
que deveriam fazer para honrar seu hóspede, e resolvendo servir
a ele “o nosso homem”, nas suas palavras. Pensando que havia

27
caído entre canibais, o estranho correu o mais rápido que pôde
para longe de seu hóspede, que tentava em vão impedi-lo. Ele
mais tarde descobriu que não havia existido nenhuma intenção de
recreá-lo com carne humana, mas apenas com a carne de um
estranho animal chamado “homem”.

Da mesma forma que o “homem da montanha” permanece fixado


ao chão pelo seu cordão umbilical, o barnacle cresce de uma
árvore pelo seu bico. É difícil dizer se ele é um animal que deve ser
abatido antes de ser consumido propriamente, ou se é uma planta
e pode ser comida sem nenhum cerimonial.

Dentre os pássaros a fênix é o mais fabuloso. Quando Eva deu a


todos animais um pouco da fruta da árvore do conhecimento, a
fênix foi o único pássaro que se recusou a comer, tendo sido então
recompensado com vida eterna. Depois de viver mil anos o seu
corpo se encolhe e as penas caem, até ficar pequeno como um ovo.
Esse é o núcleo do novo pássaro.

A fênix é também chamada de “guardiã da esfera terrestre”. Ela


acompanha o percurso do sol em seu circuito, estendendo as asas
e capturando os raios inflamados do sol. Não fosse a fênix a
interceptá-los, nem o homem nem outro ser inanimado teria como
sobreviver. Em sua asa direita estão inscritas em caracteres
imensos, com cerca de quatrocentos estádios de altura, as
seguintes palavras: “não é a terra que me dá origem, nem o céu,
mas somente as asas do fogo”. Seu alimento consiste em maná do
céu e orvalho da terra. Seu excremento é um verme, cujo
excremento é por sua vez a canela usada por reis e príncipes.
Enoque, que viu as fênices quando foi trasladado, descreve-as
como criaturas voadoras, fabulosas e de aparência estranha, com
pés e caudas de leão e cabeças de crocodilo; seu aspecto é de cor
púrpura semelhante ao arco-íris; seu tamanho, novecentas
medidas. Suas asas são como as dos anjos, sendo que cada uma
tem doze; as fênices assistem a carruagem do sol e acompanham-
no, levando calor e orvalho onde são ordenados por Deus. De
manhã, quando o sol dá início a sua jornada diária, as fênices e os
chaldriki cantam, e todos os pássaros batem suas asas,
regozijando o Doador de luz, e cantam uma canção ao comando do
Senhor.

28
Dentre os répteis a salamandra e o shamir são os mais fabulosos. A
salamandra origina-se de uma fogueira de madeira de murta
mantida ardendo continuamente por sete anos através de artes
mágicas. Não maior do que um camundongo, a salamandra é ainda
assim investida de propriedades peculiares. A pessoa que se
mancha com o seu sangue torna-se invulnerável, e a teia tecida
por ela é um talismã contra o fogo. As pessoas que viviam por
ocasão do dilúvio se vangloriavam de que, caso viesse um dilúvio
de fogo, protegeriam a si mesmas com o sangue da salamandra.

O rei Ezequias deve sua vida à salamandra. Seu perverso pai, o rei
Acabe, havia-o entregue aos fogos de Moloque, e ele teria sido
queimado vivo não tivesse sua mãe pintado o filho com sangue de
salamandra, de modo que o fogo não lhe causasse mal.

O shamir foi criado no crepúsculo do sexto dia da criação


juntamente com outras coisas extraordinárias. Ele tem o tamanho
de um grão de cevada, e possui a notável propriedade de cortar o
mais duro dos diamantes. Por essa razão ele foi utilizado para as
pedras do peitoral vestido pelo sumo sacerdote. Primeiro os
nomes das doze tribos foram traçados com tinta nas pedras a
serem engastadas no peitoral, e em seguida o shamir passou por
sobre as linhas, gravando-as. Uma circunstância formidável foi
que a fricção não produziu qualquer partícula das pedras. O
shamir foi também usado para lavrar as pedras com as quais o
Templo foi construído, porque a lei probia1 que ferramentas de
metal fossem utilizadas na obra do Templo.

O shamir não pode ser guardado num vaso de ferro ou de


qualquer outro metal, porque partiria em dois o receptáculo. Ele é
guardado embrulhado num pano de lã, que é por sua vez colocado
num cesto de chumbo cheio de grãos de cevada. O shamir foi
mantido no Paraíso até que Salomão precisasse dele, tendo
enviado sua águia para trazer até ele o verme. Com a destruição
do templo o shamir desapareceu. Destino semelhante recaiu sobre
o tahash, que foi criado com o propósito único de que sua pele
fosse utilizada no Tabernáculo. Assim que o Tabernáculo foi
completado o tahash desapareceu. Ele possuía um único chifre na
testa, tinha cores alegres como um peru e pertencia à classe dos
animais puros.

29
Dentre os peixes há também criaturas fabulosas, como os
cabritos-do-mar e os golfinhos, para não mencionar o leviatã. Um
marinheiro viu certa vez um cabrito-do-mar em cujos chifres
estava gravado: “Sou um pequeno animal marinho, mas apesar
disso atravessei 1500 quilômetros para me oferecer como comida
ao leviatã”. Os golfinhos são metade homem, metade peixe, e
mantém até mesmo relações sexuais com seres humanos; são por
isso chamados “filhos do mar”, pois num certo sentido
representam a raça humana na água.
1
E se me fizeres um altar de pedras, não o construirás de pedras lavradas; pois se sobre ele
levantares o teu buril, profaná-lo-ás. *Êxodo 20:25*

O SEXTO DIA, CONTINUAÇÃO

A CRIAÇÃO: O sexto dia, continuação


O GATO E O RATO

Embora todas as espécies do mundo animal tenham sido criadas


durante os dois últimos dias da criação, muitas características de
certos animais só surgiram mais tarde.

Gatos e camundongos, hoje inimigos, eram originalmente amigos.


Sua inimizade atual teve uma origem específica. Certa ocasião o
camundongo apareceu diante de Deus e disse:

– Eu e o gato somos parceiros, mas agora não temos o que comer.

O Senhor respondeu:

– Você está conspirando contra o seu companheiro só para poder


devorá-lo. Como punição ele é que vai devorar você.

Disse o camundongo:

– Ó, Senhor do mundo, o que eu fiz de errado?

30
Deus replicou:

– Ah, verme impuro, você deveria ter aprendido com o exemplo da


lua, que perdeu parte da sua luz por ter falado mal do sol, e o que
ela perdeu foi dado a seu oponente. As más intenções que você
nutre contra o seu companheiro serão punidas da mesma
maneira. Ao invés de devorar o gato, ele é que irá devorar você.

O camundongo:

– Ó, Senhor do mundo! Toda minha espécie será exterminada?

Deus:

– Vou cuidar para que um remanescente seu seja poupado.

Em sua indignação o camundongo mordeu o gato, e o gato por sua


vez atirou-se sobre o camundongo, perfurando-o com os dentes
até matá-lo. Desde aquele momento o camundongo tem tamanho
pavor do gato que não tenta nem mesmo se defender dos ataques
do inimigo, e vive escondido.

CÃES E GATOS

Do mesmo modo, cães e gatos desfrutavam de uma relação


amigável, e só mais tarde tornaram-se inimigos. Cão e gato eram
parceiros, e compartilhavam um com o outro do que quer que
tivessem. Aconteceu certa vez que nenhum dos dois foi capaz de
encontrar coisa alguma para comer por três dias. O cachorro
então propôs que encerrassem a parceria. O gato iria até Adão,
cuja casa teria por certo o bastante para ele comer, enquanto o
cachorro tentaria a sorte em outro lugar. Antes de se separarem
os dois juraram jamais recorrer ao mesmo mestre. O gato foi
habitar com Adão, e encontrou camundongos em número
suficiente para satisfazer o seu apetite. Vendo o quanto era útil
para espantar e exterminar os camundongos, Adão passou a tratar
o gato com toda gentileza.

O cachorro, por sua vez, passou maus bocados. Na primeira noite


depois da separação ele dormiu na caverna do lobo, que havia-lhe
oferecido abrigo por uma noite. Durante a noite o cão ouviu

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passos e foi contar a seu hospedeiro, que disse que ele fosse
expulsar os intrusos. Eram animais selvagens, e o cachorro por
pouco não perdeu a vida. Desconsolado, o cachorro fugiu da casa
do lobo e foi buscar refúgio com o macaco. Este recusou-se a
conceder a ele abrigo por uma noite que fosse, e o fugitivo foi
forçado a apelar para a hospitalidade da ovelha. Novamente o cão
ouviu passos no meio da noite. Obedecendo ao comando de sua
hospedeira ele saiu em perseguição dos ladrões, que revelou-se no
fim das contas serem lobos. O latido do cachorro informou os
lobos da presença da ovelha, de modo que ele causou
inocentemente a morte dela.

O cão havia agora perdido seu último amigo. Noite após noite ele
saía pedindo abrigo, sem jamais encontrar um lar. Ele finalmente
decidiu retornar à casa de Adão, que também concedeu-lhe abrigo
por uma noite. Quando os animais selvagens aproximaram-se da
casa, sob o manto da escuridão, o cão começou a latir e Adão
acordou, expulsando-os em seguida com seu arco e flecha.
Reconhecendo a utilidade do cachorro, Adão pediu que ele
permanecesse para sempre. Porém logo que viu o cachorro na
casa de Adão o gato começou a discutir com ele, repreendendo-o
por ter violado seu juramento. Adão fez o melhor que pôde para
apaziguar o gato: disse que ele mesmo tinha convidado o cão a
fazer dali a sua casa, e assegurou que o gato não perderia nenhum
privilégio com a presença do cachorro; ele queria que os dois
ficassem com ele. Mas foi impossível aplacar o gato. O cão
prometeu não tocar nem o gato nem qualquer coisa destinada a
ele, mas o gato disse que não podia viver na mesma casa com um
ladrão como o cachorro. As disputas entre cão e gato tornaram-se
a ordem do dia. Finalmente o cão disse que não agüentava mais e
deixou a casa de Adão, dirigindo-se á de Sete. Ele foi acolhido com
carinho por Sete e, da casa de Sete, continuou seus esforços de
reconciliação com o gato. Em vão. Sim, a inimizade entre o
primeiro cão e o primeiro gato são até hoje transmitidas a seus
descendentes.

A BOCA DO CAMUNDONGO

Até mesmo as peculiaridades físicas de determinados animais não


faziam parte do seu aspecto original, mas devem sua existência a

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algo que ocorreu depois dos dias da criação. O camundongo tinha
a princípio uma boca muito diferente da atual. Na Arca de Noé, na
qual todos os animais viviam pacificamente a fim de garantir a
preservação de cada espécie, o par de camundongos estava
sentado perto do gato. De repente esse último lembrou que seu
pai tinha o hábito de devorar ratos; pensando que não havia mal
algum em seguir o seu exemplo, o gato saltou sobre o
camundongo, que procurava sem sucesso por um buraco por onde
escapar. Então um milagre aconteceu: apareceu um buraco onde
não havia existido nenhum, e o camundongo buscou abrigo ali. O
gato perseguiu o camundongo, e embora não pudesse segui-lo
buraco adentro, conseguia enfiar a pata, tentando tirar o
camundongo de seu esconderijo. Depressa o camundongo abriu a
boca na esperança de que a pata entrasse nela, e o gato fosse
assim impedido de apertar as garras contra sua carne. Mas como a
cavidade da boca não era grande o bastante o gato conseguiu abrir
com as garras as bochechas do camundongo. Isso não ajudou
muito, pois apenas alargou a boca do rato, e a presa acabou
escapando. Depois de sua escapada feliz o camundongo
aproximou-se de Noé e disse:

– Ó, homem piedoso, costure por gentilza a minha bochecha onde


abriu-a meu inimigo, o gato.

Noé mandou que ele trouxesse um cabelo do rabo do porco, e com


este ele reparou o dano. Daí originou-se a linha com marca de
costura na boca de todo camundongo, até os nossos dias.

O CORVO

O corvo é outro animal que mudou sua aparência durante sua


estada na arca. Quando Noé pensou em enviá-lo para averigüar o
estado das águas, o corvo escondeu-se sob as asas da águia. Porém
Noé encontrou-o e disse:

– Vá ver se as águas baixaram.

O corvo implorou:

– Não tem outro pássaro que você possa enviar nessa missão?

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Noé:

– Meu poder estende-se apenas sobre você e sobre a pomba.

Mas o corvo não estava satisfeito, e disse a Noé com grande


insolência:

– Você está me enviando apenas para que eu encontre a morte, e


deseja a minha morte para que minha esposa esteja a seu serviço.

Por essa razão Noé amaldiçoou o corvo da seguinte forma:

– Que sua boca, que falou mal de mim, seja maldita, e seja sua
cópula com sua esposa realizada apenas através dela.

Todos os animais da arca disseram “Amém”. É por essa razão que


uma massa de saliva escorre da boca do corvo macho para dentro
da boca da fêmea durante a cópula, e é só assim que ela é
fecundada.

No todo o corvo é um animal sem atrativos. Ele permanece hostil


com seus filhotes até que seus corpos estejam cobertos de penas
negras, embora como regra geral os corvos amem uns aos outros.
Deus, por essa razão, coloca os corvos jovens debaixo de sua
proteção especial. Do excremento dos filhotes nascem vermes, que
lhes servem de alimentos nos três dias após o nascimento, até que
as penas brancas tornem-se negras e seus pais reconheçam-nos
como sua prole e passem a cuidar deles.

A culpa pelo desajeitado saltitar do corvo é dele mesmo.


Observando o passo gracioso da pomba ele ficou com inveja e
tentou imitá-lo. Como resultado ele quase quebrou todos os ossos,
sem nisso chegar perto de conseguir qualquer semelhança com a
pomba, sem mencionar que angariou contra si mesmo a zombaria
de todos os outros animais. Seu fracasso suscitou o escárnio deles.
Ele decidiu então retomar seu andar original, mas descobriu que
no intervalo o havia desaprendido. Como não era capaz de andar
de um jeito ou de outro, seu passo tornou-se um saltitar entre os
dois. Nisso vemos quão verdadeiro é que quem não está satisfeito
com sua modesta porção acaba perdendo o pouco que tem na luta
por coisas melhores e mais vultosas.

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O NOVILHO

O novilho é outro animal que sofreu mudanças com o passar do


tempo. Originalmente sua cabeça era completamente coberta de
pelos, mas hoje em dia ele não tem pelos no focinho, porque Josué
beijou-o no focinho durante o cerco de Jericó. Josué era um
homem extraordinariamente pesado. Cavalos, jumentos e mulas
não podiam com ele, partindo-se todos sob seu peso. Do que eles
não conseguiram fazer o novilho mostrou-se capaz. Em seu lombo
Josué cavalgou durante o cerco de Jericó, e em gratidão concedeu-
lhe um beijo no focinho.

A SERPENTE, A TOUPEIRA E O SAPO

A serpente também é diferente do que era no princípio. Antes da


queda do homem ela era o mais sagaz dos animais criados, e em
aparência lembrava de perto o homem. Andava em pé, e tinha
tamanho extraordinário. Depois da queda a serpente perdeu todas
as vantagens intelectuais que possuía em relação aos outros
animais, e degenerou também fisicamente: foi privada de pés, de
modo a não poder perseguir outros animais e matá-los. A toupeira
e o sapo também tiveram de ser feitos inofensivos de modo
similar; o primeiro não tem olhos, do contrário seria invencível, e
o sapo não tem dentes, do contrário nenhum animal aquático
poderia sobreviver.

A RAPOSA

Enquanto a sagacidade da serpente causou sua ruína, a sagacidade


da raposa manteve-a em posição vantajosa numa situação difícil.
Depois que Adão cometeu o pecado da desobediência Deus
entregou todo o reino animal ao poder do Anjo da Morte, e
ordenou que ele jogasse um par de cada espécie na água. Ele e o
leviatã teriam juntos, dessa forma, domínio sobre tudo que tem
vida. Quando o Anjo da Morte estava para executar a ordem divina
sobre a raposa, esta começou a chorar amargamente. O Anjo da
Morte perguntou a razão para as lágrimas, e a raposa respondeu
que estava lamentando o triste destino de seu amigo. Neste ponto
ela apontou para a imagem de uma raposa no mar, que nada mais
era que seu próprio reflexo na água. O Anjo da Morte, persuadido

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de que um representante da família da raposa já havia sido
atirado na água, deixou-a ir. A raposa contou esse truque ao gato,
que usou-o também contra o Anjo da Morte. Assim acontece que
nem gatos nem raposas estão representados no mar, embora
todos os outros animais estejam.

Quando passava os animais em revista o leviatã notou a ausência


da raposa, e foi informado do modo astuto pelo qual ela havia se
esquivado de sua autoridade. Ele enviou peixes grandes e
poderosos na missão de atraírem o ausente para dentro da água.

Andando na beira da água, a raposa notou o grande número de


peixes, e exclamou:

– Feliz de quem pode quando quiser satisfazer sua fome com


peixes como esses.

O peixe disse-lhe que bastava que ele os seguisse e seu apetite


seria satisfeito com facilidade. No mesmo momento informaram a
raposa da grande honra que a aguardava. O leviatã, disseram eles,
estava às portas da morte, e ele os havia enviado a fim de
designarem a raposa como seu sucessor. Os peixes estavam
prontos para carregar a raposa nos dorsos, de modo que ela não
precisava temer a água, e assim conduziriam-na até o trono, que
ficava sobre um enorme rochedo. A raposa cedeu a essas
persuasões, e desceu até a água. No mesmo momento um
sentimento de incomodação tomou posse dela. A raposa começou
a suspeitar que as mesas haviam sido viradas, e que ela estava
sendo feita de caça, ao invés de fazer os outros de caça como
costumava acontecer. Ela insistiu que os peixes lhe contassem a
verdade, e eles admitiram quem haviam sido mandados para
prendê-la para o leviatã, que queria seu coração a fim de se tornar
tão sábio quanto a raposa, cuja sabedoria ele tinha visto muitos
louvarem. A raposa disse em tom de repreensão:

– Por que não me disseram a verdade de uma vez? Eu poderia ter


trazido meu coração comigo para o rei Leviatã, que teria me
coberto de honras. Agora vocês sofrerão por certo grave punição
por não terem trazido comigo meu coração. As raposas, vejam,

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não carregam seus corações consigo, mas mantém-nos num lugar
seguro, e só quando precisam dele retiram-no dali.

Os peixes nadaram depressa até a praia, onde deixaram a raposa,


para que ela pudesse ir buscar seu coração. Mal havia colocado os
pés em terra firme a raposa começou a saltitar e a bramir. Quando
mandaram-na ir em busca do seu coração e segui-los, ela disse:

– Tolos, como eu poderia tê-los seguido água adentro, se meu


coração não estivesse comigo? Ou existe então alguma criatura
que possa sair por aí sem seu coração?

Os peixes responderam:

– Venha, venha de uma vez, isso é brincadeira sua.

Retrucou a raposa:

– Tolos, se fui capaz de passar a perna no Anjo da Morte, quanto


mais em vocês?

Os peixes tiveram então de voltar, fracassada sua missão, e o


leviatã não teve escolha a não ser confirmar o julgamento
provocador da raposa:

– De fato, a raposa é sábia de coração, e vocês, tolos.

TODAS AS COISAS LOUVAM AO


SENHOR
A CRIAÇÃO: Todas as coisas louvam ao Senhor

“Tudo que Deus criou tem valor.” Até mesmo os animais e insetos
que parecem à primeira vista inúteis e nocivos tem uma vocação a
cumprir. A lesma, que deixa atrás de si uma trilha pegajosa,
consumindo dessa forma a sua vitalidade, serve de remédio para o
furúnculo. A picada do marimbondo é curada aplicando-se à ferida
uma mosca doméstica esmagada. O mosquito, débil criatura, que

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capta alimento mas jamais o secreta, é específico contra o veneno
da víbora, e esse réptil venenoso cura por sua vez erupções,
enquanto que o lagarto é o antídoto ao escorpião.

Não apenas todas as criaturas servem o homem e contribuem para


o seu conforto, mas Deus também “ensina-nos através dos animais
da terra, e concede-nos sabedoria através das aves do céu”. Ele
concedeu a diversos animais admiráveis qualidades morais como
padrão para o homem. Se a Torá não nos tivesse sido revelada
poderíamos ter aprendido o cuidado para com as decências da
vida com o gato, que cobre seu excremento com terra; o respeito à
propriedade com as formigas, que jamais avançam sobre as
reservas umas das outras; e o cuidado para com uma conduta
decorosa com o galo, que quando deseja unir-se à galinha promete
comprar para ela um manto longo o bastante para chegar até o
chão, e quando a galinha lembra-o da promessa ele sacode sua
crista e diz: “que a minha crista seja tirada de mim se eu não
comprá-lo assim que tiver condições”.

O gafanhoto também tem uma lição a ensinar ao homem. Ele canta


durante todo o verão, até que seu ventre se rompe e a morte o
leva para si. Embora não desconheça o destino que o espera, ele
permanece cantando. Da mesma forma o homem deve cumprir
seu dever para com Deus, não importando as conseqüências. A
cegonha deve ser adotada como modelo em dois sentidos. Ela
guarda zelosamente a pureza de sua vida familiar, e para com seus
semelhantes é compassiva e misericordiosa. Mesmo o sapo tem o
que ensinar ao homem. Junto à água vive uma espécie de animal
que subsiste apenas de criaturas aquáticas. Quando percebe que
um desses está com fome o sapo vai até ele espontaneamente e
oferece-se como comida, cumprindo dessa forma a prescrição: “se
teu inimigo tem fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de
beber”.

“Se teu inimigo tem fome, dê-lhe de


comer; se tiver sede, dê-lhe de beber”.
Toda a criação foi chamada à existência por Deus para sua glória, e
cada criatura tem seu próprio hino de louvor através do qual

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exalta o criador. O céu e a terra, o paraíso e o inferno, o deserto e
os prados, rios e mares – todos têm seu modo próprio de prestar
homenagem a Deus. O hino de louvor da terra é: “dos confins da
terra ouvimos cantar: glória ao Justo!”. O mar exclama: “o SENHOR
nas alturas é mais poderoso do que o bramido das grandes águas,
do que os poderosos vagalhões do mar”.

Também os corpos celestes e os elementos proclamam o louvor de


seu criador: o sol, a lua, as estrelas, as nuvens e os ventos, o
relâmpago e o orvalho. O sol diz: “o sol e a lua param nas suas
moradas, ao resplandecer a luz das tuas flechas sibilantes, ao
fulgor do relâmpago da tua lança”; e as estrelas cantam: “só tu és
Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a
terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; tu os
preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”.

Cada planta, além disso, tem uma canção de louvor. A árvore


frutífera canta: “então cantarão de alegria todas as árvores do
bosque, na presença do Senhor, pois ele vem; pois vem julgar a
terra”; e as espigas do campo cantam: “os campos cobrem-se de
rebanhos, e os vales vestem-se de espigas; exultam de alegria e
cantam”.

Notável entre os que cantam louvores são os pássaros, e dentre


eles o maior é o galo. Quando Deus visita à meia-noite os piedosos
no Paraíso, as árvores dali irrompem em adoração, e suas canções
acordam o galo, que começa por sua vez a dar louvor. Por sete
vezes ele canta, e cada uma das vezes recita um verso. O primeiro
verso é: “levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó
portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é o Rei da
Glória? O Senhor, forte e poderoso, o Senhor, poderoso nas
batalhas”. O segundo verso: “levantai, ó portas, as vossas cabeças;
levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória.
Quem é esse Rei da Glória? O Senhor dos Exércitos, ele é o Rei da
Glória”. O terceiro: “levantai-vos, vós justos, e ocupai-vos da Torá,
para que seja grande a vossa recompensa no mundo vindouro”. O
quarto: “tenho aguardado pela tua salvação, ó Senhor!” O quinto:
“ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás
do teu sono?” O sexto: “não ames o sono, para que não
empobreças; abre os olhos e te fartarás do teu próprio pão”. E o

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sétimo verso cantado pelo galo diz: “já é tempo de trabalhar para
o SENHOR, pois a tua lei está sendo violada”.

A canção do abutre é: “eu lhes assobiarei e os ajuntarei, porque os


tenho remido; multiplicar-se-ão como antes se tinham
multiplicado” – o mesmo verso com o qual o pássaro anunciará, no
devido tempo, o advento do Messias. A única diferença será que
quando anunciar o Messias ele cantará esse verso pousado no
chão, sendo que ele o canta sempre sentado em outro lugar.

Tampouco os outros animais louvam menos do que os pássaros.


Mesmo as feras predadoras entoam adoração. O leão diz: “o
Senhor sairá como valente, despertará o seu zelo como homem de
guerra; clamará, lançará forte grito de guerra e mostrará sua força
contra os seus inimigos”. E a raposa exorta à justiça com as
seguintes palavras: “ai daquele que edifica a sua casa com
injustiça e os seus aposentos, sem direito! Que se vale do serviço
do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o salário”.

Sim, os peixes mudos do mar sabem proclamar o louvor de seu


Senhor. “Ouve-se a voz do SENHOR sobre as águas,” dizem eles,
“troveja o Deus da glória; o Senhor está sobre as muitas águas”,
enquanto o sapo exclama: “bendito seja o nome da glória do seu
reino, para todo o sempre”. Desprezíveis como são, mesmo os
animais rastejantes dão louvor a seu criador. O camundongo
exalta a Deus com as seguintes palavras: “porque tu és justo em
tudo quanto tem vindo sobre nós; pois tu fielmente procedeste, e
nós, perversamente”. E o gato canta: “todo ser que respira louve
ao Senhor. Louvai ao Senhor!”

O HOMEM E O MUNDO
ADÃO: O homem e o mundo

Com dez frases Deus criou o mundo, embora uma única frase
tivesse bastado. Deus queria deixar claro quão severa será a

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punição aplicada sobre os perversos, que destróem o mundo
criado através de até dez frases, e quão agradável a recompensa
destinada aos justos, que preservam o mundo através de até dez
frases.

O mundo foi feito para o homem, embora tenha sido a última de


suas criaturas a chegar. Isso foi proposital, porque o homem
deveria encontrar todas as coisas prontas para si. Deus foi o
anfitrião que preparou pratos finos, pôs a mesa e em seguida
conduziu o convidado ao seu lugar. Ao mesmo tempo, a aparição
tardia do homem sobre a terra deve ser vista como uma
admoestação à humildade. Que o homem se guarde do orgulho,
para não ter de ouvir a provocação de que o pernilongo é mais
velho do que ele.

A superioridade do homem sobre as outras criaturas fica


evidente no próprio modo da sua criação, completamente
diferente do delas. Ele foi o único criado pela mão de Deus: o
restante surgiu da palavra de Deus. O corpo do homem é um
microcosmo, um mundo completo em miniatura, e o mundo, por
sua vez, é um reflexo do homem. O cabelo da cabeça corresponde
às florestas da terra, suas lágrimas ao mar, sua boca ao oceano. O
mundo, além disso, é semelhante à órbita do olho do homem: o
oceano que engloba a terra é como o branco do olho, a terra seca é
a íris, Jerusalém a pupila e o Templo a imagem refletida na pupila.

“Por causa de Israel, criarei o mundo”.


Porém o homem é mais do que mera imagem do mundo. Ele alia
em si mesmo qualidades do céu e da terra. De quatro ele faz
lembrar os anjos, de quatro faz lembrar os animais. Sua
capacidade de se expressar, seu intelecto judicioso, sua postura
ereta, o fulgor do seu olhar – tudo isso faz dele um anjo. Por outro
lado ele come e bebe, expele dejetos do corpo, reproduz-se e
morre, como as feras do campo. Foi por isso que Deus disse antes
da criação do homem:

– Os seres celestiais não se reproduzem, mas são imortais; os


seres da terra se reproduzem, mas morrem. Criarei o homem a fim
de unir os dois, de modo a que quando ele pecar, quando

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comportar-se como animal, a morte o acometerá; mas se abster-se
de pecar, viverá para sempre.

Deus convocou todos os seres do céu e da terra para contribuírem


na criação do homem, e ele mesmo tomou parte nela. Por essa
razão todos esses amam o homem, e se ele viesse a pecar mostrar-
se-iam interessados na sua preservação.

O mundo inteiro, naturalmente, foi criado para o homem piedoso,


temente a Deus, que Israel produz com a oportuna condução da lei
de Deus revelada a ela. Portanto Israel é que foi levado em
consideração quando o homem foi feito. Todas as outras criaturas
foram instruídas a alterarem sua natureza se em algum momento
do curso da história Israel precisasse de ajuda. Ao mar foi
ordenado que se dividisse diante de Moisés, e ao céu que desse
ouvidos às palavras do líder; o sol e a lua foram instados a
pararem sob o comando de Josué, os corvos a alimentarem Elias, o
fogo a poupar os três jovens na fornalha, o leão a não causar dano
a Daniel, o peixe a cuspir Jonas e o céu a abrir-se para Ezequiel.

Em sua humildade, Deus consultou os anjos, antes da criação do


mundo, a respeito de sua intenção de criar o homem. Ele disse:

– Por causa de Israel, criarei o mundo. Farei divisão entre luz e


trevas, da mesma forma que no futuro farei por Israel no Egito:
densas trevas cobrirão a terra, e os filhos de Israel terão luz em
suas habitações; farei separação entre as águas abaixo do
firmamento e as águas acima do firmamento, da mesma forma que
farei por Israel: dividirei as águas para ele na travessia do Mar
Vermelho; no terceiro dia criarei as plantas, e farei da mesma
forma por Israel: produzirei para ele o maná no deserto; criarei os
grandes luminares para dividirem o dia e a noite, e farei o mesmo
por Israel: irei diante dele como uma coluna de nuvem durante o
dia e como uma coluna de fogo durante a noite; criarei as aves do
céu e os peixes do mar, e farei o mesmo por Israel: trarei para ele
codornizes do mar; da mesma forma que soprarei o fôlego da vida
nas narinas do homem, farei por Israel: darei a ele a Torá, a árvore
da vida.

Toda a criação foi condicional.

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Os anjos maravilharam-se de que tanto amor fosse dispensado ao
povo de Israel, e Deus disse a eles:

– No primeiro dia da criação farei o céu e o estenderei; da mesma


forma Israel erguerá o Tabernáculo como habitação da minha
glória. No segundo dia estabelecerei uma divisão entre as águas da
terra e as águas do céu; da mesma forma Israel pendurará no
Tabernáculo um véu para separar o lugar Santo do Santo dos
Santos. No terceiro dia farei com que a terra produza ervas e
vegetação; da mesma forma Israel, em obediência aos meus
mandamentos, comerá ervas na primeira noite da Páscoa, e
preparará para mim os pães da proposição. No quarto dia farei os
luminares; da mesma forma Israel fará para mim o candelabro de
ouro. No quinto dia criarei os pássaros; da mesma forma ele
moldará [sobre a Arca] os querubins de asas estendidas. No sexto
dia criarei o homem; da mesma forma Israel separará um homem
dos filhos de Arão para sumo-sacerdote a meu serviço.

Conseqüentemente, toda a criação foi condicional. Deus disse às


coisas que fez nos seis primeiros dias:

– Se Israel aceitar a Torá, vocês permanecerão e se perpetuarão;


de outro modo farei com que tudo retorne ao caos.

O mundo inteiro viveu portanto em suspense e temor até o dia da


revelação do Sinai, quando Israel recebeu e aceitou a Torá,
cumprindo assim a condição estabelecida por Deus no momento
em que criara o universo.

OS ANJOS E A CRIAÇÃO DO HOMEM


ADÃO: Os anjos e a criação do homem

Deus em sua sabedoria, tendo decidido criar o homem, pediu o


conselho de todos a seu redor antes de levar a cabo seu propósito
– exemplo para que o homem, não importa quão grande e notável
seja, não despreze o conselho dos humildes e fracos. Primeiro

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Deus chamou o céu e a terra, depois todas as coisas criadas, e por
último os anjos.

Os anjos não estavam todos de acordo. O anjo do Amor era a favor


da criação do homem, porque ele seria afetuoso e amoroso, mas o
anjo da Verdade se opunha, porque ele seria cheio de mentiras. E,
embora o anjo da Justiça fosse a favor, porque ele praticaria a
justiça, o anjo da Paz se opunha, porque ele seria contencioso.

A fim de invalidar o seu protesto, Deus atirou o anjo da Verdade


do céu contra a terra, e quando os outros bradaram em protesto
contra tratamento tão injurioso, Deus disse: “A verdade brotará da
terra1”.

As objeções dos anjos teriam sido muito mais veementes se eles


tivessem conhecido a verdade a respeito do homem. Deus havia
lhes contado apenas sobre os piedosos, ocultando deles que
haveria no gênero humano gente reprovável. Ainda assim, embora
conhecessem apenas metade da verdade, os anjos puseram-se a
clamar:

– Que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o


visites2?

Deus respondeu:

– As aves do céu e os peixes do mar, para que foram criados? De


que serve uma dispensa cheia de delícias finas, se não há
convidado para desfrutar delas?

E os anjos só puderam exclamar:

– Ó Senhor, nosso Senhor, quão admirável é teu nome em toda a


terra! Faze como é agradável a teus olhos.

Para um número não insiginificante de anjos sua oposição


trouxe conseqüências fatais. Quando Deus convocou o grupo sob a
liderança do arcanjo Miguel e perguntou-lhes sua opinião sobre o
homem, eles responderam com desdém:

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– Que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o
visites?

Deus estendeu imediatamente o seu dedo mínimo, e todos foram


consumidos pelo fogo exceto seu líder, Miguel. O mesmo destino
sobreveio ao grupo sob a liderança do arcanjo Gabriel; apenas ele
foi salvo da destruição.

O terceiro grupo consultado era comandado pelo arcanjo Labiel.


Ensinado pela terrível sina de seus predecessores, ele advertiu sua
tropa:

– Vocês viram que infortúnio recaiu sobre os anjos que disseram


“que é o homem, que dele te lembres?” Cuidemos para não
fazermos o mesmo, para que não soframos a mesma dura punição.
Pois Deus não deixará de fazer no fim o que planejou. É
aconselhável portanto que cedamos a seus desejos.

Assim advertidos, os anjos disseram:

– Senhor do mundo, é bom que pensaste em criar o homem. Cria-o


deveras de acordo com a tua vontade. Quanto a nós, seremos
assistentes e ministros dele.

Por causa disso Deus mudou o nome de Labiel para Rafael, o


Resgatador, porque sua hoste de anjos foi resgatada pelo sábio
conselho. Ele foi designado como anjo da Cura, que tem sob seu
cuidado todos os remédios celestiais, arquétipos dos remédios
utilizados na terra.
1
Salmo 85:11

2
Salmo 8:4

A CRIAÇÃO DE ADÃO
ADÃO: A criação de Adão

Quando finalmente o assentimento dos anjos foi dado à criação do


homem, Deus disse a Gabriel:

45
– Vá e me traga poeira dos quatro cantos da terra. Criarei o
homem a partir dela.

Gabriel foi cumprir a ordem do Senhor, mas a terra o repeliu,


recusando-se a deixar que ele juntasse poeira dela. Gabriel
repreendeu:

– Por quê, Terra, você não cede à voz do Senhor, que fundou-a
sobre as águas sem recorrer a escoras ou pilares?

A terra respondeu:

– Estou destinada a ser amaldiçoada, e amaldiçoada por causa do


homem1. Se o próprio Deus não vier tirar a poeira de mim, não
será qualquer outro a fazê-lo.

Quando ouviu isso Deus estendeu sua mão, pegou poeira do chão
e criou o primeiro homem a partir dela. Propositalmente esse pó
foi tirado dos quatro cantos da terra, para que se um homem do
oriente morresse no ocidente, ou um homem do ocidente
morresse no oriente, a terra não se recusasse a receber o morto,
dizendo para que voltasse ao lugar de onde havia sido tirado.
Quando acontece de um homem morrer, e no local em que é
enterrado, ali retorna ele à terra da qual foi gerado. A poeira era
além disso de várias cores: vermelha, negra, branca e verde –
vermelha para o sangue, negra para as entranhas, branca para os
ossos e veias e verde para a pele pálida.

Neste momento a Torá interferiu, dirigindo-se a Deus:

– Ó, Senhor do mundo! O mundo é teu, e podes fazer dele o que


parecer bom a teus olhos. Porém o homem que estás agora
criando será parco em dias e pleno de conflito e de pecado. Se não
é teu propósito ter longanimidade e paciência para com ele,
melhor seria não chamá-lo á existência.

Deus respondeu:

– É por acaso que sou chamado de longânimo e misericordioso2?

46
A graça e a ternura de Deus revelaram-se de forma particular no
fato dele ter retirado um punhado de poeira do lugar onde mais
tarde se ergueria um altar, dizendo:

– Farei o homem a partir deste lugar de reconciliação, para que ele


possa perdurar.
1
Gênesis 3:17

2
Êxodo 34:5,6

A ALMA DO HOMEM
ADÃO: A alma do homem

O cuidado com que Deus moldou cada detalhe do corpo do homem


nada é em comparação com sua solicitude na criação da alma
humana. A alma do homem foi criada no primeiro dia, pois é o
espírito de Deus movendo-se sobre a face das águas. Assim, ao
invés de ser o último, o homem é na verdade a primeira obra da
criação.

O espírito, ou, para chamá-lo pelo seu nome usual, a alma do


homem, possui cinco poderes diferentes. Através de um deles ela
escapa do corpo todas as noites, sobe até o céu e ali busca nova
vida para o homem.

A alma do homem foi criada no primeiro


dia, pois é o espírito de Deus movendo-
se sobre a face das águas.
Com a alma de Adão foram criadas as almas de todas gerações de
homens. Estão elas armazenadas num prontuário no sétimo dos
céus, de onde são retiradas à medida em que são necessárias para
cada corpo humano.

A alma e o corpo do homem são unidas da seguinte forma: quando


uma mulher concebe, o Anjo da Noite, Lailah, carrega o esperma

47
até a presença de Deus, e Deus decreta que sorte de ser humano
sairá dali – se será homem ou mulher, forte ou fraco, rico ou
pobre, bonito ou feio, alto ou baixo, magro ou gordo, e quais serão
todas as suas outras qualidades. Apenas a piedade e a impiedade
são deixadas sob a determinação do próprio homem. Deus estão
faz um sinal para o anjo responsável pelas almas e diz:

– Traga-me aquela alma assim-e-assim, que está escondida no


Paraíso, cujo nome é assim-e-assim, e cuja forma é assim-e-assim.

O anjo traz a alma designada, que faz uma reverência quando


entra na presença de Deus, e prostra-se diante dele. Naquele
momento Deus dá a ordem:

– Entre nesse esperma.

A alma abre sua boca e implora:

– Ah, Senhor do mundo, estou muito satisfeita com o mundo em


que tenho vivido desde o dia em que me chamaste à existência.
Por que desejas agora que eu entre nesse esperma impuro, eu que
sou santa e pura, e parte da tua glória?

Deus a consola:

– O mundo em que farei você entrar é melhor do que o mundo em


que você tem vivido; quando criei você, foi apenas com esse
propósito.

A alma é então forçada a entrar contra à vontade no esperma, e o


anjo carrega-a de volta para o útero da mãe. Dois anjos são
especificados para cuidarem que a alma não saia dele, nem caia
fora dele, e uma luz é colocada acima dela, através da qual a alma
pode ver de uma extremidade à outra do mundo.

De manhã um anjo a carrega ao Paraíso e mostra a ela os justos, ali


assentados em sua glória, com coroas sobre suas cabeças. O anjo
então diz à alma:

– Sabe quem são esses?

Ela responde que não, e o anjo prossegue:

48
– Esses que você contempla foram formados, como você, no útero
da mãe deles. Quando entraram no mundo esses guardaram a
Torá de Deus e seus mandamentos, e foram por isso tornados
participantes da bem-aventurança de que você os vê agora
desfrutar. Saiba que você irá também um dia deixar o mundo lá
embaixo, e que se guardar a Torá de Deus será achada digna de
sentar-se com esses piedosos. Se não, estará condenada ao outro
lugar.

De noite o anjo leva a alma ao inferno, e mostra os pecadores a


quem os Anjos da Destruição estão castigando com açoites de
fogo. Os pecadores estão todos bradando: “Ai de nós! Ai de nós!”,
mas nenhuma misericórdia é concedida a eles. O anjo pergunta
como antes:

– Sabe quem são esses?

Como antes a resposta é negativa, e o anjo continua:

– Esses que são consumidos pelo fogo foram criados como você.
Quando colocados no mundo eles não guardaram a Torá de Deus e
seus mandamentos, e vieram por isso para esta desgraça que você
os vê sofrer. Saiba que seu destino também é deixar o mundo. Seja
justa, portanto, e não perversa, para que possa ganhar o mundo
futuro.

Do mesmo modo que foi formada contra


a vontade, você agora nascerá contra a
vontade.
Entre a manhã e a noite o anjo carrega a alma de um lugar a outro,
mostrando onde ela vai viver e onde vai morrer, o lugar em que
será enterrada, e leva-a pelo mundo todo, apontando os justos e os
pecadores e todas as coisas. De noite ele a recoloca no útero da
mãe, onde ela permanece por nove meses.

Quando chega a hora de emergir do útero para o mundo, o mesmo


anjo dirige-se à alma:

– Chegou a hora de você sair para o mundo.

49
A alma objeta:

– Por que você me quer fazer sair para o mundo?

O anjo responde:

– Saiba que, do mesmo modo que foi formada contra a vontade,


você agora nascerá contra a vontade, e contra a vontade morrerá,
e contra a vontade prestará contas diante do Rei dos reis, o Santo,
bendito seja ele.

A alma está ainda relutante em deixar o seu lugar. O anjo faz um


carinho com os dedos nos lábios do nenê, apaga a luz à sua cabeça
e a traz para o mundo contra a vontade. Imediatamente a criança
esquece tudo que sua alma viu e aprendeu, e vem ao mundo
chorando, por ter perdido um lugar de refúgio e segurança e
descanso.

Quando chega a hora do homem deixar este mundo o mesmo anjo


aparece e pergunta:

– Você me reconhece?

O homem responde:

– Sim, mas por que você veio até mim hoje, e não outro dia?

O anjo diz:

– Para tirá-lo deste mundo, pois a hora da partida chegou.

O homem cai no choro, e sua voz alcança as extremidades do


mundo, porém nenhuma criatura ouve a sua voz, com exceção do
galo. O homem protesta:

– De dois mundos você me tirou, e para este mundo você me


trouxe.

Mas o anjo lembra:

– Eu não lhe disse que você foi formado contra a vontade, nasceu
contra a vontade e contra a vontade morreria? Agora, contra a

50
vontade, você terá de prestar contas de si mesmo diante do Santo,
bendito seja ele.

O HOMEM IDEAL
ADÃO: O homem ideal

Como todas as criaturas formadas nos seis dias da criação, Adão


saiu das mãos de Deus plenamente desenvolvido. Ele não era
como uma criança, mas como um homem de vinte anos de idade.
As dimensões do seu corpo eram gigantescas, atingindo da terra
ao céu ou, o que representa o mesmo, do oriente ao ocidente.
Entre as gerações seguintes dos homens, houve poucos cujas
medidas compararam-se a Adão em seu tamanho extraordinário e
perfeições físicas. Sansão possuía sua força, Saul seu pescoço,
Absalão seu cabelo, Asael sua ligeireza de pés, Uzias sua testa,
Josias suas narinas, Zedequias seus olhos e Zerubabel sua voz. A
história demonstra que essas excelências não representaram
bençãos para muitos de seus possuidores; levou à ruína quase
todos eles.

A força extraordinária de Sansão ocasionou sua morte; Saul


suicidou-se cortando o pescoço com sua própria espada; embora
corresse com agilidade, Asael foi atravessado pela espada de
Abner; Absalão ficou preso pelo cabelo a um carvalho, e assim
suspenso encontrou a morte; Uzias foi acometido de lepra na
testa; os dardos que mataram Josias entraram-lhe pelas narias, e
os olhos de Zedequias foram cegados.

A maioria dos homens herdou tão pouca da beleza quanto do


tamanho portentoso de seu primeiro pai. As mais belas mulheres,
comparadas a Sara, são como os grandes macacos comparados a
seres humanos. O mesmo acontece na comparação de Sara com
Eva, mas Eva era também um mero macaco quando comparada a
Adão. A figura dele era tão bela que bastava a sola do seu pé para
ofuscar o esplendor do sol.

51
Adão era tão bonito que bastava a sola
do seu pé para ofuscar o esplendor do
sol.
Suas qualidades espirituais andavam em paridade com seu
charme pessoal, pois Deus formara sua alma com cuidado
especial. A alma do homem era a imagem de Deus, e Deus enche o
mundo, de modo que a alma enche o corpo humano; da mesma
forma que Deus vê todas as coisas, e não é visto por ninguém, a
alma vê, mas não pode ser vista; da mesma forma que Deus guia o
mundo, a alma guia o corpo; da mesma forma que Deus em sua
santidade é puro, também é pura a alma; como Deus habita em
segredo, também a alma.

Quando estava para colocar a alma no corpo argiloso de Adão,


Deus disse:

– Por onde soprarei a alma dentro do homem? Pela boca? Não,


pois ele irá usá-la para falar mal de seu semelhante. Pelos olhos?
Com eles ele piscará libidinosamente. Pelos ouvidos? Esses darão
atenção a calúnia e blasfêmia. Soprarei a alma em suas narinas: da
mesma forma que elas discernem o que é impuro e rejeitam-no,
recebendo de bom grado o que é perfumado, os piedosos
esquivar-se-ão do pecado, e apegar-se-ão às palavras
da Torá.

As perfeições da alma de Adão manifestaram-se tão logo ele a


recebeu, mesmo antes que ele ganhasse vida. No intervalo de uma
hora que separou o soprar da alma no primeiro homem e o
momento em que ele ganhou vida, Deus revelou-lhe toda a
história da humanidade. Deus mostrou a Adão cada geração e seus
líderes; cada geração e seus profetas; cada geração e seus
professores; cada geração e seus eruditos; cada geração e seus
homens de estado; cada geração e seus juízes; cada geração e seus
integrantes piedosos; cada geração e seus integrantes comuns,
medianos; cada geração e seus integrantes ímpios. A história de
seus anos, o número de seus dias, o cálculo de suas horas e a
medida de seus passos foram todos revelados a ele.

52
No intervalo que separou o soprar da
alma no homem e o momento em que
ele ganhou vida, Deus revelou-lhe toda a
história da humanidade.
De sua própria vontade Adão abriu mão de setenta anos dos que
haviam sido designados a ele. Seu tempo designado de vida era
para ser de mil anos, um dos dias do Senhor. Mas Adão viu que um
único minuto de vida havia sido alocado para a grande alma de
Davi, e presenteou-a com setenta dos seus anos, reduzindo os
anos que lhe cabiam de mil para novecentos e trinta.

A sabedoria de Adão mostrou-se extremamente vantajosa quando


ele deu nome aos animais. Pareceu então que Deus, ao rebater os
argumentos dos anjos que se opunham à criação do homem, havia
falado bem quando insistira que o homem deveria possuir mais
sabedoria do que os anjos.

Adão tinha menos de uma hora de idade quando Deus reuniu


todo o mundo animal diante dele e dos anjos. Esses últimos foram
chamados para dar nome às diferentes espécies, mas não se
mostraram à altura da tarefa. Adão, no entanto, falou sem
hesitação:

– Ó Senhor do mundo! O nome apropriado para este animal é


touro, este cavalo, este leão, este camelo.

Ele dessa forma chamou a todos, um de cada vez, pelo seu nome,
adequando o nome à peculiaridade de cada animal. Deus então
perguntou-lhe como ele deveria se chamar, e ele disse “Adão”,
porque havia sido criado de Adamah, o pó da terra. Deus então
pediu a ele o seu próprio nome, e Adão disse:

– Adonai, “Senhor”, porque és Senhor de todas as criaturas –


sendo que Adonai era o nome que Deus havia dado a si mesmo, o
nome pelo qual os anjos o chamam, o nome que permanecerá
imutável para sempre.

53
Porém, não fosse o espírito santo, Adão não teria sido capaz de
encontrar nome algum; ele era na verdade profeta, e sua
sabedoria era uma qualidade profética.

Os nomes dos animais não foram a única herança deixada por


Adão para as gerações que seguiram-se a ele, pois a humanidade
deve a ele todos os ofícios, especialmente a arte de escrever, e foi
ele o inventor de todos os setenta idiomas. Ainda outra tarefa
Adão realizou pelos seus descendentes: Deus mostrou a ele toda a
terra, e Adão designou quais lugares seriam mais tarde ocupados
pelos homens, bem como os lugares que permaneceriam
desabitados.

A QUEDA DE SATANÁS
ADÃO: A queda de Satanás

As extraordinárias qualidades com que Adão foi abençoado, tanto


físicas quanto espirituais, suscitaram a inveja dos anjos. Esses
tentaram consumi-lo com fogo, e ele teria perecido, não tivesse a
mão protetora de Deus se estendido sobre ele, e estabelecido a
paz entre ele e os exércitos celestiais.

Satanás, em particular, tinha ciúme do primeiro homem, e seus


maus pensamentos levaram por fim à sua queda. Depois de ter
dotado Adão de alma, Deus convidara todos os anjos para virem e
prestarem-lhe reverência e homenagem. Satanás, o mais insígne
anjo do céu, dotado de doze asas ao invés das seis de todos os
outros, recusara-se a obedecer à ordem de Deus, dizendo:

– Criaste a nós, os anjos, a partir do esplendor da Shekiná, e agora


ordenas que nos prostremos diante da criatura que moldaste do
pó da terra!

Deus respondeu:

– Todavia o pó da terra exibe mais sabedoria e entendimento do


que você.

54
Satanás exigiu uma prova de inteligência com Adão, e Deus
assentiu, dizendo:

– Criei animais selvagens, pássaros e répteis. Tra-los-ei a todos


diante de você e de Adão. Se você for capaz de dar nomes a eles,
mandarei que Adão lhe preste homenagem, e você habitará junto
à Shekiná da minha glória. Caso contrário, no entanto, se Adão
chamá-los pelos nomes que designei a eles, você se sujeitará a
Adão, e ele terá um lugar no meu jardim, e o cultivará.

“Preste adoração à imagem de Deus!”


Assim disse Deus e dirigiu-se ao Paraíso, seguido por Satanás.
Quando viu a Deus, Adão disse a sua mulher:

– Venha, adoremos e prostemo-nos; ajoelho-mo-nos diante do


Senhor, nosso Criador.

Satanás tentou então atribuir nomes aos animais, tendo


fracassado nas duas primeiras tentativas, o touro e a vaca. Deus
conduziu dois outros animais até diante dele, o camelo e o
jumento, com o mesmo resultado. Deus voltou-se então para Adão,
e questionou-lhe a respeito dos nomes dos mesmos animais,
construindo suas perguntas de modo a que a primeira letra da
primeira palavra fosse a primeira letra do nome do animal posto
diante dele. Desta forma Adão foi capaz de adivinhar os nomes
corretamente, e Satanás viu-se forçado a reconhecer a
superioridade do primeiro homem. Ele porém irrompeu em
clamores bárbaros que atingiram o céu, recusando-se a prestar
homenagem a Adão como lhe havia sido ordenado.

O exército de anjos comandado por Satanás agiu da mesma forma,


a despeito dos protestos de Miguel, que foi o primeiro a prostrar-
se diante de Adão a fim de dar exemplo aos outros anjos. Miguel
dirigiu-se a Satanás:

– Preste adoração à imagem de Deus! Se você se recusar, o Senhor


Deus lançar-se-á em cólera contra você.

Satanás retrucou:

55
– Se ele se lançar em cólera contra mim, exaltarei meu trono acima
das estrelas de Deus, e serei como o Altíssimo!

Imediatamente Deus lançou Satanás e seu exército para fora do


céu sobre a terra, e é daquele momento que data a inimizade entre
Satanás e o homem.

A MULHER
ADÃO: A mulher

Quando abriu seus olhos pela primeira vez e contemplou o mundo


ao seu redor, Adão irrompeu em louvor a Deus:

— Quão grandes são tuas obras, Senhor!

Porém sua admiração pelo mundo ao seu redor não excedeu a


admiração que todas as coisas criadas dispensaram a Adão. Elas
tomaram-no por seu criador, e vieram prestar-lhe adoração. Ele
porém disse:

— Por que vocês vêem adorar a mim? Não, eu e vocês juntos


reconheceremos a majestade e o poder daquele que nos criou a
todos. “O Senhor reina” — declarou ele, — “e está revestido de
majestade!”

Não apenas as criaturas da terra: até mesmo os anjos chegaram a


pensar que Adão fosse senhor de todos, e eles estavam prestes a
saudá-lo com o “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos”
quando Deus fez com Adão caísse no sono; os anjos souberam
então que ele não passava de um ser humano.

O propósito do sono que recaiu sobre Adão era dar a ele uma
esposa, para que a raça humana pudesse se desenvolver e todas as
criaturas reconhecessem a diferença entre Deus e o homem.
Quando ouviu o que Deus estava decidido a fazer, a terra começou
a tremer e sacudir.

56
— Não tenho forças — ela disse – para prover comida para
multidão dos descendentes de Adão.

Por essa razão o tempo foi dividido entre Deus e a terra: Deus
ficou com a noite, a terra com o dia. O sono reconfortante sustenta
e fortalece o homem, proporciona-lhe vida e descanso, enquanto a
terra produz fruto com a ajuda de Deus, que a rega. Ainda assim o
homem tem de trabalhar a terra a fim de ganhar o seu sustento.

A decisão divina de conceder uma companheira a Adão veio ao


encontro dos anseios do homem, que havia sido tomado por uma
sensação de isolamento quando os animais vieram até ele em
pares para receberem seus nomes.

Apesar de todo cuidado empregado, a


mulher apresenta todas as falhas que
Deus procurou evitar.
A fim de banir sua solidão, a primeira mulher dada como esposa a
Adão foi Lilith. Como ele, Lilith foi criada do pó da terra; ela porém
permaneceu com ele por um

intervalo muito curto, porque insistia em desfrutar de igualdade


completa com seu marido. Ela justificava seus direitos a partir de
sua origem comum. Com a ajuda do Nome Inefável, que ela
proferiu, Lilith fugiu de Adão e desapareceu em pleno ar. Adão
veio reclamar diante de Deus que a mulher que ele lhe havia dado
o havia abandonado, e Deus enviou três anjos para capturá-la.
Esses foram encontrá-la no Mar Vermelho, e tentaram fazê-la
voltar com a ameaça de que caso não fosse ela perderia
diariamente cem de seus filhos-demônios.

Lilith, no entanto, preferiu essa punição a viver com Adão. Ela se


vinga ferindo crianças-de-colo — os meninos durante sua
primeira noite de vida, sendo que as meninas estão expostas a
seus desígnios perversos até os vinte anos de idade. O único modo
de afastar o mal é colocando nas crianças um amuleto que traz os
nomes de seus três anjos captores, pois esse foi o acordo feito
entre eles.

57
A mulher destinada a ser a verdadeira companheira do homem foi
tomada do corpo de Adão, pois “apenas quando semelhante é
unido a semelhante a união é indissolúvel”. A criação da mulher a
partir do homem foi possível porque Adão tinha originalmente
duas faces, que foram separadas com o nascimento de Eva.

Quando estava a ponto de criar Eva, Deus disse:

– Não farei a mulher a partir da cabeça do homem, para que ela


não ande de cabeça empinada em orgulho e arrogância; não a farei
a partir do olho, para que seus olhos não sejam licenciosos; não a
partir do ouvido, para que ela não fique ouvindo conversa alheia;
não a partir do pescoço, para que ela não seja insolente; não a
partir da boca, para que ela não seja tagarela; não a partir do
coração, para que ela não seja inclinada à inveja; não a partir da
mão, para que ela não seja intrometida; não a partir do pé, para
que ela não seja vagabunda. Irei formá-la a partir de uma parte
casta do corpo.

A cada membro e orgão que formava, Deus ia dizendo:

– Seja casto! Seja casto!

Entretanto, apesar de todo cuidado empregado, a mulher


apresenta todas as falhas que Deus tentou evitar. As filhas de Sião
foram arrogantes e andaram com pescoços empinados e olhos
licenciosos; Sara ouviu a conversa alheia em sua própria tenda,
quando o anjo falava com Abraão; Miriam foi mexeriqueira,
acusando Moisés; Raquel teve inveja de sua irmã Léia; Eva colocou
suas mãos sobre o fruto proibido, e Diná foi vagabunda.

A constituição física da mulher é muito mais complicada do que a


do homem, já que deve servir para a concepção;
semelhantemente, a inteligência da mulher amadurece mais cedo
do que a inteligência do homem. Muitas das diferenças físicas e
psíquicas entre os dois sexos podem ser atribuídas ao fato de que
o homem foi formado da terra e a mulher do osso. Mulheres
precisam de perfumes, homens não: a poeira do chão permanece
inalterada não importa por quanto tempo seja guardada; a carne,
no entanto, requer sal para ser mantida em boas condições. A voz
da mulher é estridente, a voz do homem não: quando alguma

58
carne macia é cozida, nenhum sol é ouvido, mas basta colocar um
osso na panela e ele racha de imediato. O homem é fácil de
aplacar, a mulher não: umas poucas gotas d’água bastam para
amolecer um torrão de terra, já um osso permanece duro, mesmo
que mergulhado em água por dias. O homem deve pedir à mulher
para ser sua esposa, e não a mulher o homem para ser seu marido,
porque foi o homem que teve de arcar com a perda de sua costela;
ele dá a investida no intento de cobrir o seu prejuízo.

As próprias de diferenças de modo de vestir e conduta social tem


suas razões na origem do homem e da mulher. A mulher cobre o
cabelo em memória do fato de ter sido Eva quem trouxe o pecado
ao mundo; ela tenta dessa forma esconder a sua vergonha. Os
mandamentos religiosos endereçados apenas às mulheres
remetem à história de Eva. Adão era a oferta alçada do mundo, e
Eva a maculou; como forma de expiação é ordenado às mulheres
que separem uma oferta alçada da massa de farinha. E, por ter
sido a mulher quem apagou a luz da alma do homem, a ela é
ordenado que acenda a lâmpada do Shabat.

O mundo está fundamentado em serviços


de amizade.
Adão foi levado a cair num sono profundo antes que a costela para
Eva fosse retirada do seu lado. Isso porque se ele tivesse
observado a sua criação ela não teria despertado amor nele. Até
hoje permanece verdade que os homens não são capazes de
apreciar os charmes de mulheres que observaram e conheceram
desde a infância. De fato, Deus havia criado uma mulher para Adão
antes de Eva, mas ele a rejeitou, porque ela havia sido feita na
frente dele. Conhecendo todos os detalhes de sua formação ele
sentiu repulsa por ela.

Porém quando despertou de seu sono profundo e viu Eva diante


dele em toda sua surpreendente beleza e graça, ele exclamou:

– Esta é aquela que levava meu coração a palpitar por inúmeras


noites!

59
Ele porém logo discerniu qual era a verdadeira natureza da
mulher. Ela, sabia ele, lograria convencer o homem fosse através
de súplicas ou lágrimas, elogios ou carícias. Ele por isso disse:

– Esse é o meu sino que nunca pára de tocar!

O casamento do primeiro casal foi celebrado com pompa jamais


repetida no curso de toda história. O próprio Deus, antes de
apresentá-la a Adão, vestiu e adornou a Eva como noiva. Sim, ele
interpelou os anjos, dizendo:

– Venham, prestemos serviços de amizade por Adão e sua


companheira, pois o mundo está fundamentado em serviços de
cordialidade, e esses me são mais agradáveis aos olhos do que os
sacrifícios que Israel irá oferecer sobre o altar.

Assim sendo, os anjos cercaram o pálio matrimonial e Deus


proferiu as bençãos sobre o casal, da mesma forma que o Hazan
faz sob o Huppah. Os anjos dançaram e tocaram instrumentos
musicais diante de Adão e Eva em suas dez câmaras matrimoniais
feitas de ouro, pérolas e pedras preciosas, que Deus havia
preparado para eles.

Adão deu a sua mulher o nome de Ishah e passou a chamar a si


mesmo de Ish, abandonando o nome Adão, que ele usara antes da
criação de Eva. Isso porque Deus acrescentara seu próprio nome
Yah aos nomes do homem e da mulher – a letra Yoide a Ish e a
letra He a Ishah, – para indicar que enquanto andassem nos
caminhos de Deus e observassem os seus mandamentos, seu
nome lhes seria um escudo contra todo mal. Porém se se
desviassem seu nome seria retirado, e ao invés de Ish restaria Esh,
o fogo, um fogo brotando de cada um e consumindo o outro.

ADÃO E EVA NO PARAÍSO


ADÃO: Adão e Eva no Paraíso

60
O Jardim do Éden foi a primeira habitação do primeiro homem e
da primeira mulher, e as almas de todos homens passam por ele
depois da morte, antes de chegarem ao seu destino final. Isso
porque as almas dos finados precisam passar por sete portais
antes de chegarem ao ‘Arabot celestial. Ali as almas dos piedosos
são transformadas em anjos, e ali permanecem para sempre,
louvando a Deus e banqueteando-se com a visão da glória da
Shekiná. O primeiro portal é a caverna de Macpelá, nas
vizinhanças do Paraíso, que está sob o cuidado e supervisão de
Adão. Se a alma que se apresenta diante do portal é digna, ele
grita: “Abram espaço! Seja bem-vindo!” A alma prossegue então
até chegar ao portão do Paraíso, guardado pelo querubim e pela
espada flamejante. Se não é achada digna, a alma é consumida pela
espada; do contrário recebe um passe de admissão no Paraíso
terrestre. Ali há um pilar de fumaça e de luz que se estende do
Paraíso ao portão do céu; se alma conseguirá escalá-lo e alcançar o
céu através dele dependerá do seu caráter. O terceiro portal,
Zebul, fica na entrada do céu. Se a alma é digna, o guarda abre o
portão e admite-a no Templo celestial. Miguel apresenta-a a Deus
e a conduz então ao sétimo portal, ‘Arabot, além do qual as almas
dos piedosos, transformadas em anjos, louvam ao Senhor e
alimentam-se da glória da Shekiná.

Apenas quem consegue abrir caminho


através da árvore do conhecimento pode
aproximar-se da árvore da vida.
No Paraíso erguem-se a árvore da vida e a árvore do
conhecimento, sendo que essa segunda forma uma sebe ao redor
da primeira. Apenas quem consegue abrir caminho através da
árvore do conhecimento pode aproximar-se da árvore da vida, que
é tão imensa que seriam necessários a um homem quinhentos
anos para atravessar uma distância igual ao diâmetro do seu
tronco, sendo que não é menos vasto o espaço sombreado por sua
coroa de ramos. De debaixo dela flui a água que irriga toda a terra,
abrindo-se em quatro correntes, o Ganges, o Nilo, o Tigre e o
Eufrates. Porém foi apenas durante os dias da criação que o reino
vegetal recorreu às águas da terra para o seu sustento. Mais tarde
Deus fez com que as plantas dependessem da chuva, isto é, das

61
águas superiores. As nuvens sobem da terra ao céu, de onde a
água é derramada nelas para que sirvam de conduto. As plantas
começaram a sentir o efeito da água apenas quando Adão foi
criado. Embora tenham vindo à existência no terceiro dia, Deus
não permitiu que elas brotassem e aparecessem acima da
superfícia da terra até que Adão orou pedindo-lhe comida, pois
Deus anseia pelas orações dos piedosos.

O Paraíso sendo o que era, Adão não tinha, naturalmente, que


trabalhar na terra. É verdade que Deus colocou o homem no
Jardim do Éden para tratar dele e mantê-lo, mas isso significava
apenas que ele deveria estudar ali a Torá e guardar os
mandamentos de Deus. Havia seis mandamentos em especial que
todo ser humano deveria obedecer: não adorar ídolos, não
blasfemar contra Deus, não cometer assassinato nem incesto, nem
assalto nem roubo – sendo que todas as gerações têm o dever de
instituir medidas de lei e ordem. Havia um mandamento adicional,
mas era uma proibição temporária: Adão deveria comer apenas as
ervas verdes do campo. A proibição contra o uso de animais para
alimento só foi revogada na época de Noé, depois do dilúvio. Adão,
no entanto, não foi privado de consumir de pratos de carne.
Embora não lhe fosse permitido matar animais para satisfazer o
seu apetite, os anjos traziam-lhe carne e vinho, servindo-o como
criados. E da mesma forma que ministravam-lheos anjos de
acordo com suas necessidades, faziam os animais. Esses
encontravam-se inteiramente debaixo do seu domínio, e recebiam
sua comida das mãos de Adão e de Eva. Em todos os sentidos o
mundo animal tinha uma relação diferente com Adão da sua
relação com os descendentes dele. Os animais não apenas
conheciam a língua do homem, mas respeitavam a imagem de
Deus, pelo que temiam o primeiro casal – porém tudo tornou-se o
oposto disso depois da queda do homem.

A QUEDA DO HOMEM
ADÃO: A queda do homem

62
Entre os animais a serpente era notável. De todos ela possuía as
mais excelentes qualidades, nalgumas das quais assemelhava-se
ao homem. Como o homem ela caminhava sobre dois pés, e tinha o
peso igual ao de um camelo. Não fosse a queda do homem, que
trouxe infortúnio também sobre elas, bastaria um par de
serpentes para realizar todo o trabalho que o homem tem de
fazer; além disso, elas teriam lhe fornecido prata, ouro, jóias e
pérolas. Na verdade, foi justamente essa habilidade da serpente
que causou a ruína do homem e sua própria ruína. Seus dons
intelectuais superiores levaram-na a ser infiel. Isso também
explica a inveja que tinha do homem, especialmente de suas
relações conjugais. A inveja da serpente fez com que ela
imaginasse diversos modos e maneiras de ocasionar a morte de
Adão. Ela conhecia bem demais o caráter do homem para tentar
exercitar seus exercícios de persuasão sobre ele, por isso abordou
a mulher, sabendo que as mulheres são facilmente enganadas.

“Da mesma forma que ele cria e destrói


mundos…”
Sua conversa com Eva foi habilmente planejada, de modo à
mulher não ter como escapar da armadilha. A serpente começou:

– É verdade que Deus disse “vocês não podem comer de toda


árvore do jardim”?

– Podemos – respondeu Eva – comer o fruto de todas as árvores


do jardim, exceto daquela que fica no meio do jardim. Essa não
devemos nem mesmo tocar, para que não sejamos feridos de
morte.

Ela disse assim porque em seu zelo de guardá-la de transgredir o


mandamento divino Adão havia proibido Eva de tocar a árcore,
embora Deus tivesse mencionado apenas o consumo do fruto.
Permanece verdadeiro o provérbio que diz: “melhor um muro
firme de dez palmos de altura do que um de cem metros que não
tem como ficar em pé”. Foi o exagero de Adão que permitiu à
serpente persuadir a mulher a provar do fruto proibido. A
serpente empurrou Eva contra a árvore e disse:

63
– Está vendo? Tocar a árvore não causou a sua morte. Comer o
fruto da árvore também não vai lhe fazer mal algum. Não foi nada
menos que perversidade que induziu a proibição, pois assim que
comerem vocês serão como Deus. Da mesma forma que ele cria e
destrói mundos, vocês terão também o poder de criar e destruir.
Da mesma forma que ele mata e faz voltar à vida, vocês terão
também o poder de matar e reviver. Ele mesmo comeu o primeiro
fruto da árvore, e criou em seguida o mundo. É por isso que ele os
proibiu de comer, para que vocês não criem outros mundos. Todo
mundo sabe que artesãos do mesmo ofício odeiam uns aos outros.
Além disso, vocês não perceberam que toda criatura tem
autoridade sobre a criatura criada antes dela mesma? O céu foi
feito no primeiro dia e é mantido no lugar pelo firmamento, feito
no segundo dia. O firmamento, por sua vez, está submetido às
plantas, criadas no terceiro dia, pois elas absorvem toda a água do
firmamento. O sol e os outros corpos celestes, criados no quarto
dia, exercem domínio sobre o mundo das plantas, que podem
amadurecer seus frutos e florescer apenas através da influência
deles. A criação do quinto dia, o mundo animal, exerce domínio
sobre as esferas celestes; veja o ziz, que pode escurecer o sol com
suas asas. Mas vocês são mestres de toda a criação, porque foram
os últimos a serem criados. Comam depressa o fruto da árvore que
está no meio do jardim e tornem-se independentes de Deus, para
que não aconteça que ele produza novas criaturas que exerçam
domínio sobre vocês.

“Ele mesmo comeu o primeiro fruto da


árvore”.
Para dar peso a essas palavras, a serpente começou a sacudir
violentamente a árvore, fazendo cair seus frutos. Ela comeu deles,
e disse:

– Da mesma forma que eu não morro comendo do fruto, vocês


também não morrerão.

Eva nada pôde fazer além de dizer a si mesma: “Tudo que meu
mestre me ordenou (pois era assim que ela chamava Adão) não
passam de mentiras!”. E estava determinada a seguir o conselho

64
da serpente. Ela porém não conseguiu forçar-se a desobedecer o
mandamento de Deus por completo. Eva chegou a um meio-termo
com sua consciência: comeu primeiro só a casca da fruta; em
seguida, vendo que a morte não lhe sobrevinha, comeu o fruto em
si.

Mal havia terminado, ela viu o Anjo da Morte diante de si.


Esperando que seu fim chegasse imediatamente, Eva determinou
fazer Adão também comer do fruto proibido, para que ele não se
casasse com outra mulher depois da sua morte. Foram necessários
lágrimas e queixumes da parte dela para convencer Adão a tomar
o passo fatídico. Não satisfeita, Eva deu o fruto a todos os seres
vivos, para que estivesse também sujeitos à morte. Todos
comeram e são todos mortais, com exceção do
pássaro malham, que recusou o fruto com as seguintes palavras:

– Não basta vocês terem pecado contra Deus e terem trazido a


morte sobre outros? Vocês vêem ainda até mim, tentando me
persuadir a desobedecer o mandamento de Deus, para que eu
coma e morra por causa disso? Não vou fazer o que vocês estão
querendo.

“Além disso, vocês não perceberam que


toda criatura tem domínio sobre a
criatura criada antes dela mesma?”
Ouviu-se então uma voz celestial que disse a Adão e Eva:

– A vocês a ordem foi dada, e vocês não a obedeceram. Ao


contrário, transgrediram-na e tentaram persuadir o
pássaro malham a fazer o mesmo. Ele foi fiel e me temeu, muito
embora eu não tivesse dado a ele mandamento algum. Afirmo
portanto que ele jamais provará a morte, nem ele nem os seus
descendentes: viverão todos para sempre no Paraíso.

Adão disse a Eva:

– Você me deu da árvore que eu a proibi de comer? Você me deu


dela sim, pois meus olhos se abriram, e estou com um azedo nos
dentes1 da boca.

65
Eva respondeu:

– Se tenho um azedo nos dentes, que os dentes de todos os seres


vivos tenho o azedo também.

O primeiro resultado foi que Adão e Eva ficaram nus. Antes disso
seus corpos haviam estado cobertos por uma pele córnea, e
envoltos na nuvem da glória. Mal haviam violado o mandamento
dado eles, caíram deles a nuvem de glória e a pele córnea, e
ficaram ali em sua nudez, envergonhados. Adão tentou juntar
folhas de árvores para cobrirem seus corpos, mas ouviu uma
árvore após a outra dizer:

– Esse é o ladrão que enganou seu Criador. Não! Não virá contra
mim o pé da insolência, nem me tocará a mão2 do perverso!

Apenas a figueira deu-lhe permissão de tirar suas folhas, porque o


figo era ele mesmo o fruto proibido. Adão teve a mesma
experiência do príncipe que seduziu uma das camareiras do
palácio. Quando o rei, seu pai, saiu em seu encalço, ele buscou em
vão refúgio entre as outras camareiras, mas apenas a que havia
ocasionado a sua desgraça prestou-lhe assistência.
1
Conforme Jeremias 31:30

2
Conforme Salmo 36:11

A PUNIÇÃO
ADÃO: A punição

Enquanto Adão permaneceu nu, buscando algum meio de escapar


do seu embaraço, Deus não apareceu a ele, pois não devemos “nos
esforçar para ver um homem na hora da sua desgraça”. Ele
esperou que Adão e Eva se cobrissem com folhas de figueira.
Porém mesmo antes que Deus falasse com ele, Adão sabia o que
estava para acontecer. Ele ouviu os anjos anunciarerm:

– Deus está dirigindo-se àqueles que habitam o Paraíso.

66
Ele ouviu mais, aquilo que os anjos estavam dizendo uns aos
outros sobre a sua queda, e o que estavam dizendo a Deus.
Perplexos, os anjos exclamavam:

– Quê? Ele ainda anda livremente pelo Paraíso? Não morreu


ainda?

Pelo que Deus se pronunciou:

– Eu disse a ele “no dia em que comer você certamente morrerá”.


Ora, vocês não sabem de que tipo de dia eu estava falando; se de
um dos meus dias de mil anos ou de um dos dias de vocês. Darei a
ele um dos meus dias: ele terá novecentos e trinta anos para viver,
e setenta para deixar aos seus descendentes.

Quando Adão e Eva ouviram Deus se aproximando, esconderam-


se entre as árvores – o que não teria sido possível antes da queda.
Antes de cometer o seu pecado, a altura de Adão ia da terra ao céu,
mas depois foi reduzida a cem côvados. Outra conseqüência do
seu pecado foi o medo que Adão sentiu quando ouviu a voz de
Deus; antes da queda ela não o inquietava de modo algum. Por
isso quando Adão disse “Ouvi a sua voz no jardim e tive medo”,
Deus replicou: “Antes você não tinha medo, agora tem?”

Deus conteve as repreensões a princípio. Em pé no portão do


Paraíso ele apenas perguntou: – Adão, onde está você?

Deus queria dar a ele a oportunidade de


se arrepender.
Através disso Deus estava querendo ensinar ao homem uma regra
de boas maneiras, a de nunca entrar na casa de outra pessoa sem
anunciar-se primeiro. Não há como negar que as palavras “onde
está você?” estavam prenhe de signficado; elas destinavam-se a
fazer com que Adão percebesse a vasta diferença entre seu estado
anterior e o atual: entre seu tamanho sobrenatural anterior e as
dimensões reduzidas de agora; entre o senhorio do Senhor de
antes e o senhorio da serpente de agora. Ao mesmo tempo, Deus
queria dar a ele a oportunidade de se arrepender do seu pecado,
para o qual Adão teria recebido o perdão divino. Porém, longe de

67
arrepender-se, Adão difamou a Deus, proferindo blasfêmias
contra ele. Quando Deus perguntou: “Você comeu da árvore que
eu mandei que não comesse?” Adão não confessou o seu pecado,
mas tentou justificar-se com as seguintes palavras:

– Ah, Senhor do mundo! Enquanto eu estava sozinho não caí em


pecado, mas logo que me veio essa mulher ela me tentou.

Deus replicou:

– Eu a dei a você para ajudá-lo, e você está se mostrando ingrato


ao acusá-la dessa forma, dizendo “foi ela que me deu o fruto da
árvore”. Você não a deveria ter obedecido, pois a cabeça é você,
não ela.

Deus, que sabe todas as coisas, já havia previsto exatamente isso, e


não havia criado Eva até que Adão lhe pedisse uma ajudadora,
para que ele tentasse colocar a culpa em Deus por ter criado a
mulher.

Adão tentava colocar em outra pessoa a culpa pelo seu delito, e o


mesmo fez Eva. A mulher, como seu marido, também não
confessou sua transgressão e orou por perdão, o que teria sido
concedido a ela. Gracioso como é, Deus não teria proferido
condenação sobre Adão e Eva antes deles se mostrarem
obstinados. Não foi assim com a serpente. Deus infligiu a maldição
sobre a serpente sem ouvir a sua defesa, porque a serpente é
perversa, e os iníquos são bons argumentadores. Se Deus a tivesse
questionado a serpente teria perguntado:

– O senhor deu-lhes um mandamento e eu o neguei. Por que eles


obedeceram a mim e não ao senhor?

Por isso Deus não entrou numa discussão com a serpente, mas
decretou diretamente as seguintes dez punições: a boca da
serpente foi fechada e ela perdeu a capacidade de falar; suas mãos
e pés foram cortados fora; a terra lhe foi dada como alimento; ela
é forçada a sofrer dor intensa durante a troca de pele; inimizade
passou a existir entre ela e o homem; se ela comer as iguarias mais
finas ou beber as bebidas mais doces, essas se transformarão em
pó na sua boca; a gravidez da fêmea dura sete anos; as pessoas

68
tentarão matá-la logo que a virem; mesmo no mundo futuro,
quando todos os seres serão benditos, ela não escapará a punição
decretada para ela; e desaparecerá da Terra Santa se Israel seguir
nos caminhos do Senhor.

Além disso, Deus disse à serpente:

– Criei você para reinar sobre todos os animais, tanto os animais


domésticos quanto as feras do campo, mas isso não lhe satisfez.
Você será por essa razão mais maldita do que qualquer animal
doméstico ou fera do campo. Criei você para ter uma postura
ereta, mas isso não lhe satisfez. Você deverá por essa razão andar
sobre sua barriga. Criei você para comer a mesma comida que o
homem, mas isso não lhe satisfez. Você deverá por essa razão
comer poeira todos os dias da sua vida. Você procurou causar a
morte de Adão a fim tomar dele a sua esposa. Eu por isso
estabeleço inimizade entre você e a mulher.

Quão verdadeiro é que aquele que cobiça o que não lhe é devido
não apenas não obtém o que deseja, mas perde também aquilo
que tem!

Os anjos estavam presentes quando a condenação foi proferida


contra a serpente (pois Deus havia convocado o Sinédrio dos
setenta e um anjos ao sentar-se para julgá-la), portanto a execução
do decreto contra ele foi confiada aos anjos. Eles desceram do céu
e cortaram as mãos e os pés da serpente. Seu sofrimento foi
tamanho que seus berros de agonia foram ouvidos de uma
extremidade a outra do mundo.

O veredito contra Eva consistiu também de dez maldições, sendo


que o seu efeito é ainda perceptível até hoje na condição física,
espiritual e social da mulher. Não foi o próprio Deus que anunciou
a Eva a sua sina. A única mulher com quem Deus jamais falou foi
Sara. No caso de Eva ele valeu-se dos serviços de um intérprete.

Finalmente, a punição de Adão também foi dividida em dez partes:


ele perdeu seu traje celestial – Deus o despiu; com dificuldade ele
teria de ganhar o seu pão; a comida que ele comia se
transformaria de boa em ruim; seus filhos vagariam pela terra;
seu corpo secretaria suor; ele teria uma inclinação para o mal; na

69
morte seu corpo seria presa de vermes; os animais teriam poder
sobre ele, no sentido de que poderiam matá-lo; seus dias seriam
poucos e cheios de adversidade; e no fim ele teria de prestar
contas de toda a sua conduta sobre a terra.

Deus teria permitido que eles


permanecessem no Paraíso.
Esses três pecadores não foram os únicos a receberem punição. A
terra não teve melhor sorte, sendo culpada de vários delitos. Em
primeiro lugar, ela não havia obedecido por completo à ordem
que Deus dera no terceiro dia, de produzir “árvores frutíferas”. O
que Deus desejara era uma árvore cuja madeira fosse agradável ao
paladar da mesma forma que o fruto. A terra produziu árvores que
davam frutos, mas a árvore em si não era comestível. A terra, além
disso, não

cumpriu o seu dever em relação ao pecado de Adão. Deus havia


designado o sol e

a terra para testemunharem contra Adão caso ele transgredisse. O


sol, em

conformidade com isso, escurecera no instante em que Adão


tornara-se culpado de desobediência; porém a terra, não sabendo
como apontar a queda de Adão, desconsiderou-a por completo. A
terra sofreria também uma punição dividida em dez partes: sendo
antes independente, a terra teria agora de esperar para ser regada
pela chuva do alto; os grãos que ela produz seriam suscetíveis a
ressecamento e mofo; ela teria de produzir toda espécie de
vermes odiáveis; a partir daquele momento ela seria dividida em
vales e montanhas; teria de fazer

crescer árvores infecundas, que não dão fruto; espinhos e


abrolhos brotariam

dela; muito seria semeado na terra, mas pouco colhido; no futuro


a terra terá

70
de revelar o sangue que abriga, não podendo mais encobrir seus
mortos; e, finalmente, ela deveria envelhecer como uma roupa.

Quando Adão ouviu as palavras “você produzirá espinhos e


abrolhos” dirigidas [por Deus] à terra, seu rosto começou a suar, e
ele disse:

– Quê? Será que eu e meu gado comeremos do mesmo coxo?

O Senhor teve misericórdia dele, e disse:

– Por causa do suor do seu rosto, você comerá pão.

A terra não foi a única coisa criada a sofrer com o pecado de Adão.
O mesmo destino sobreveio à lua. Quando a serpente seduziu
Adão e Eva, expondo a sua nudez, ambos choraram amargamente,
e com eles choraram o céu, o sol e as estrelas, e todos os seres
criados e coisas diante do trono de Deus. Os próprios anjos e seres
celestiais lamentaram a transgressão de Adão. Apenas a lua riu,
pelo que Deus se enfureceu e diminuiu a sua luminosidade. Ao
invés de brilhar de forma invariável como o sol, ao longo de todo o
dia, a lua envelhece rápido, e é obrigada a nascer e renascer vez
após outra.

A conduta insensível da lua ofendeu a Deus, não apenas pelo


contraste com a compaixão demonstrada por todas as outras
criaturas, mas porque ele mesmo enchera-se de pena de Adão e
sua esposa. Ele fez para eles roupas da pele tirada da serpente, e
teria feito ainda mais; teria permitido que eles permanecessem no
Paraíso, se eles apenas tivessem se mostrado arrependidos. Mas
Adão e Eva recusaram-se a se arrepender e tiveram de partir, para
que seu entendimento semelhante ao divino não os levasse a
pilhar a árvore da vida e aprendessem a viver para sempre. De
certo modo, ao expulsá-los do Paraíso, Deus não deixou que o
atributo divino da justiça prevalecesse por completo. Ele associou
misericórdia à justiça, e enquanto partiam ele disse:

– Ah, que pena que Adão não foi capaz de guardar o mandamento
dado a ele nem por um pouco de tempo!

71
Para guardar a entrada do Paraíso, Deus designou os querubins,
também chamados de espadas flamejantes eternamente
revolventes, porque os anjos podem alternar-se entre um formato
e outro de acordo com a necessidade. Ao invés da árvore da vida,
Deus deu a Adão a Torá, que é semelhantemente uma árvore da
vida para os que se apegam a ela, permitindo que ele habitasse no
oriente, nas proximidades do Paraíso.

Tendo a sentença sido pronunciada sobre Adão, Eva e a serpente,


o Senhor ordenou que os anjos conduzissem o homem e a mulher
para fora do Paraíso. Esses começaram a chorar e suplicar
amargamente, e os anjos tiveram pena deles, deixando de cumprir
a ordem divina até que pudessem pedir a Deus que mitigasse o
seu severo veredito. Porém o Senhor foi irredutível:

– Fui por acaso eu que cometi uma transgressão ou pronunciei


falso julgamento?

Também a oração de Adão, que lhe fosse dado de comer o fruto da


árvore da vida, foi negada – porém com a promessa de que, se ele
levasse uma vida piedosa, ser-lhe-ia dado o fruto no dia da
ressurreição, e viveria para sempre.

Eles haviam desfrutado dos esplendores


do Paraíso por poucas horas.
Vendo que Deus estava irremediavelmente decidido, Adão
começou a chorar e implorar aos anjos que lhe dessem pelo
menos permissão para levar consigo especiarias de doce aroma
para fora do Paraíso, para que lá fora ele também pudesse
oferecer ofertas a Deus, e suas orações fossem aceitas diante do
Senhor. Pelo que os anjos foram até Deus e disseram:

– Rei da eternidade, ordena-nos que demos a Adão temperos de


doce aroma do Paraíso.

E Deus ouviu a oração deles. Adão colheu açafrão, nardo, cálamo e


canela, e além disso toda sorte de sementes para o seu sustento.
Carregando essas coisas, Adão e Eva deixaram o paraíso e vieram
à terra. Eles haviam desfrutado dos esplendores do Paraíso por

72
um brevíssimo período, de umas poucas horas. Foi na primeira
hora do sexto dia da criação que Deus teve a idéia de criar o
homem; na segunda hora ele pediu o conselho dos anjos; na
terceira ele juntou terra para o corpo do homem; na quarta,
formou Adão; na quinta revestiu-o de pele; na sexta seu corpo sem
alma estava completo, de modo que ele podia postar-se de pé; na
sétima a alma foi soprada nele; na oitava o homem foi conduzido
ao Paraíso; na nona foi dada a ele a ordem divina que proibia-o de
comer o fruto da árvore no meio do jardim; na décima ele
transgrediu essa ordem; na décima primeira foi julgado, e na
décima segunda hora foi expulso do Paraíso para expiação do seu
pecado.

Esse dia fatídico foi o primeiro do mês de Tishrei, por isso Deus
disse a Adão:

– Você será o protótipo dos seus filhos. Da mesma forma que você
foi julgado por mim neste dia e absolvido, os filhos de Israel serão
julgados por mim neste dia de Ano Novo, e serão absolvidos.

Cada dia da criação produziu três coisas: o primeiro, o céu, a terra


e a luz; o segundo, o firmamento, o gehenna e os anjos; o terceiro,
árvores, ervas e o Paraíso; o quarto, o sol, a lua e as estrelas; o
quinto, peixes, pássaros e o leviatã. Como Deus planejava
descansar no sexto dia, o Sábado, trabalhou em dobro na sexta-
feira, produzindo seis criaturas: Adão, Eva, gado, répteis, feras do
campo e demônios. Os demônios foram criados logo antes do
início do Sábado e são, por essa razão, espíritos sem corpo – o
Senhor não teve tempo de criar-lhes corpos.

O Senhor não teve tempo de criar corpos


para os demônios.
No crepúsculo entre o sexto dia e o Sábado dez criações foram
produzidas: o arco-íris, mantido invisível até o tempo de Noé; o
maná; as fontes de água, das

quais Israel tiraria água para saciar sua sede no deserto; a


inscrição sobre as duas placas de pedra dadas no Sina; a pena com
a qual a inscrição foi escrita; as duas placasem si; a boca da mula

73
de Balaão; o túmulo de Moisés; a caverna na qual habitariam
Moisés e Elias, e a vara de caminhada de Arão, com suas flores e
amêndoas maduras.

O SÁBADO NO CÉU
ADÃO: O sábado no céu

Antes que o mundo fosse criado ninguém havia para louvar a Deus
e conhecê-lo. Por essa razão ele criou os anjos e os santos Hayyot,
o céu e todo o seu exército e também Adão. Todos esses deveriam
louvar e glorificar o seu Criador. Durante a semana da criação, no
entanto, não era apropriado louvar o Senhor e proclamar o seu
esplendor. Apenas no Sábado, quando toda a criação cessou, os
seres da terra e do céu, todos juntos, irromperam em cântico e
adoração enquanto Deus subia até seu trono e tomava assento
nele. Era no Trono da Alegria que ele assentava-se, e fez passar
todos os anjos diante de si – o anjo da água, o anjo dos rios, o anjo
das montanhas, o anjo das colinas, o anjo dos abismos, o anjo dos
desertos, o anjo do sol, o anjo da lua, o anjo das Plêiades, o anjo de
Orion, o anjo das ervas, o anjo do Paraíso, o anjo do Gehenna, o
anjo das árvores, o anjo dos répteis, o anjo dos animais selvagens,
o anjo dos animais domésticos, o anjo dos peixes, o anjo dos
gafanhotos, o anjo dos pássaros, o anjo-chefe sobre os anjos, o
anjo de cada um dos céus, o anjo-chefe de cada divisão dos
exércitos celestiais, o anjo-chefe dos Hayyot, o anjo-chefe dos
querubins, o anjo-chefe dos ofanim, e todos os outros esplêndidos,
terríveis e poderosos anjos.

Esses todos compareceram diante de Deus com grande alegria,


banhados numa torrente de alegria, e regozijaram-se e dançaram
e cantaram, e exaltaram o Senhor com muitos louvores e muitos
instrumentos.

Era no Trono da Alegria que ele


assentava-se.

74
Os anjos ministrantes começaram:

– Dure para sempre a glória do Senhor!

E o restante dos anjos retomaram a canção com as seguintes


palavras:

– Alegre-se o Senhor nas suas obras!

Arabot, o sétimo céu, estava cheio de júbilo e glória, esplendor e


força, poder e força e orgulho e magnificência e grandiosidade,
louvor e celebração, cântico e alegria, lealdade e integridade,
honra e adoração.

O Senhor chamou então o Anjo do Sábado para assentar-se num


trono de glória, e trouxe diante dele os anjos-chefes de todos os
céus e de todos os abismos, e convocou-os a dançar e celebrar,
dizendo:

– É Sábado diante do Senhor!

Os príncipes exaltados do céu responderam:

– Diante do Senhor é Sábado!

Foi permitido até mesmo a Adão subir ao mais alto céu, para
participar dos festejos por causa do Sábado.

Foi conferindo a alegria do Sábado sobre todos os seres, sem


excetuar Adão, que o Senhor dedicou sua criação. Ao ver a
majestade do Sábado, sua honra e grandiosidade, e a felicidade
que conferia a todos, por ser a fonte de toda alegria, Adão entoou
uma canção de louvir ao dia do Sábado. Deus então disse a ele:

– Você canta uma canção em louvor ao dia do Sábado, e a mim, o


Deus do Sábado, não canta canção alguma?

Diante do que o Sábado ergueu-se do seu assento e prostrou-se


diante de Deus, dizendo:

– Bom é dar graças ao Senhor.

75
E toda criação acrescentou:

– E cantar louvores ao seu nome, ó, Altíssimo.

Este foi o primeiro sábado, e esta foi sua celebração no céu por
parte de Deus e dos anjos. Os anjos foram informados na mesma
ocasião que em em dias futuros Israel observaria aquele dia como
santo de modo similar.

– Separarei para mim mesmo um povo dentre todos os povos –


Deus disse a eles. – Esse povo guardará o Sábado, e eu o
santificarei para que seja o meu povo, e eu serei o seu Deus. De
todos que tenho visto, escolhi toda a semente de Israel, e o
designei como meu filho primogênito, e o santifiquei para mim
mesmo por toda a eternidade, a ele e ao Sábado, para que guarde o
Sábado e abstenha-se nele de qualquer trabalho.

Para Adão o Sábado teve um significado peculiar. Quando ele foi


forçado a abandonar o Paraíso no crepúsculo da véspera de
Sábado, os anjos disseram enquanto ele se afastava:

– Adão não passou nem sequer uma noite residindo na sua glória.

O Sábado então apareceu diante de Deus para defender Adão, e


disse:

– Ó Senhor do mundo, nos seis dias de trabalho nenhuma criatura


foi morta. Se o senhor começar agora matando Adão, o que será da
santidade e da benção do Sábado?

Deste modo Adão foi resgatado dos fogos do inferno, que seriam a
punição adequada para seus pecados. Ele em gratidão compôs
uma salmo em honra ao Sábado, que Davi mais tarde incorporou
no seu saltério.

Ainda outra oportunidade foi concedida a Adão de aprender e


apreciar o valor do Sábado. A luz celestial, através da qual Adão
podia contemplar o mundo de ponta a ponta, deveria por justiça
ter desaparecido imediatamente após o seu pecado. Porém, por
consideração ao Sábado, Deus permitiu que essa luz continuasse a
brilhar, e os anjos, ao entardecer do sexto dia, entoaram uma

76
canção de louvor e gratidão a Deus, pela luz radiante que brilhava
noite adentro. Apenas quando o Sábado foi embora a luz celestial
cessou, para consternação de Adão, que temia que a serpente
pudesse atacá-lo no escuro. Deus porém iluminou o seu
entendimento, e ele aprendeu a esfregar duas pedras uma contra a
outra e desta forma produzir luz para suprir suas necessidades.

A luz celestial foi apenas uma das sete dádivas preciosas das quais
Adão desfrutou antes da queda e que serão concedidas novamente
ao homem apenas na era messiânica. As outras são a
resplandescência do seu rosto, a vida eterna, a elevada estatura, os
frutos do solo, os frutos da árvore e as luminárias do céu, o sol e a
lua – pois no mundo que há de vir a luz da lua será como a luz do
sol, e a luz do sol será sete vezes mais intensa.

O ARREPENDIMENTO DE ADÃO
ADÃO: O arrependimento de Adão

Expulsos do Paraíso, Adão e Eva construíram para si uma cabana,


e por sete dias ficaram sentados em grande aflição, lamentação e
pesar. Ao final dos sete dias, atormentados pela fome, saíram e
foram procurar comida. Por outros sete dias Adão cruzou a região
de um lado a outro, procurando o tipo de delícias finas de que
haviam desfrutado no Paraíso. Foi em vão: ele nada encontrou.
Eva então disse a seu marido:

– Meu senhor, se lhe agrada, mate-me. Talvez Deus leve-o então de


volta para o Paraíso, pois o Senhor Deus ficou irado com você por
minha causa.

Porém Adão rejeitou esse plano com aversão, e saíram ambos


novamente em busca de comida. Nove dias se passaram, e nada
ainda tinham encontrado que se assemelhasse ao que tinham tido
no Paraíso. Viram apenas comida adequada para gado e animais
selvagens. Adão então propôs:

77
– Façamos penitência. Talvez Deus nos perdoe e tenha pena de
nós, e nos dê alguma coisa para sustentar a vida.

Sabendo que Eva não era forte o bastante para suportar a


mortificação da carne que ele propunha infligir sobre si mesmo,
Adão prescreveu-lhe uma penitência diferente da sua.

Nenhuma palavra saia da sua boca, pois


somos indignos de suplicar a Deus.
– Levante-se – ele disse, – vá até o Tigre, pegue uma pedra e fique
em pé sobre ela na parte mais profunda do rio, onde a água chega-
lhe na altura do pescoço. Que nenhuma palavra saia da sua boca,
pois somos indignos de suplicar a Deus: nossos lábios estão
impuros em razão do fruto proibido da árvore. Permaneça na água
por trinta e sete dias.

Para si mesmo Adão determinou quarenta dias de jejum, enquanto


ele permanecia em pé no rio Jordão, da mesma forma que Eva
deveria ficar nas águas do Tigre. Depois de ajustar a pedra no
meio do Jordão e subir nela com as águas chegando-lhe ao
pescoço, ele disse:

– Conclamo a você, água do Jordão: aflija-se comigo, e reúna ao


meu redor todas as criaturas nadantes que vivem em você. Que
elas me cerquem e lamentem comigo e, ao invés de golpearem de
aflição os seus próprios peitos, golpeiem a mim. Não foram eles
que pecaram, mas apenas eu!

Logo vieram todos, os residentes do Jordão, e cercaram-no, e


daquele momento em diante a água do Jordão parou, cessando de
fluir.

A penitência que Adão e Eva impuseram a si mesmos despertou


receios em Satanás. Ele temia que Deus perdoasse o pecado deles,
e por isso planejou desviar Eva do seu propósito. Passados dezoito
dias ele apareceu a ela disfarçado de anjo; fingindo condoer-se
dela, começou a bradar, dizendo:

78
– Saia desse rio e não chore mais! O Senhor Deus ouviu a sua
lamentação, e sua penitência foi aceita por ele! Todos os anjos
suplicaram ao Senhor em seu favor, e ele enviou-me para tirá-la
da água e dar a vocês o sustento de que desfrutavam no Paraíso,
cuja perda vocês têm estado lamentando.

Enfraquecida como estava por suas penitências e mortificações,


Eva cedeu à insistência de Satanás, e ele a conduziu até onde
estava seu marido. Adão reconheceu-o de imediato, e entre
lágrimas clamou:

– Ah Eva, Eva, onde está agora a sua penitência? Como você pôde
deixar-se seduzir novamente pelo nosso adversário, ele que
roubou de nós nossa permanência no Paraíso e toda alegria
espiritual?

Pelo que Eva começou a chorar e clamar:

– Tenha vergonha, Satanás! Por que você nos hostiliza sem razão?
O que foi que fizemos para que você nos persiga com tamanha
malícia?

Com um suspiro profundo, Satanás contou-lhes de que forma


Adão, de quem tivera inveja, tinha sido o verdadeiro motivo da
sua queda. Tendo perdido sua glória através do homem, tinha
determinado fazer com que ele fosse expulso do Paraíso.

Ele entendeu que o que tinha deplorado


era o curso da natureza.
Depois de ouvir a confissão de Satanás, Adão orou a Deus:

– Senhor meu Deus! Minha vida está em suas mãos. Retira de mim
esse adversário, que busca levar minha alma à destruição, e
concede-me a glória a que ele não tem mais direito.

Satanás desapareceu imediatamente, mas Adão prosseguiu em sua


penitência, ficando em pé nas águas do Jordão por quarenta dias.

Enquanto permanecia dentro do rio Adão percebeu que os dias


iam ficando mais curtos, e teve medo de que o mundo pudesse

79
estar escurecendo por causa do seu pecado, e desabaria em breve.
Para evitar a perdição ele passou oito dias em oração e jejum.
Porém depois do solstício do inverno, quando viu os dias
tornando-se mais longos novamente, Adão passou oito dias
festejando, e no ano seguinte celebrou ambos os períodos, o
anterior e o posterior ao solstício. É por isso que os pagãos
celebram as calendas e a saturnália em honra aos seus deuses,
embora Adão tenha consagrado ambos os dias em honra a Deus.

Na primeira vez em que viu o sol se pôr Adão também foi tomado
de apreensão e temor. Aconteceu na conclusão do Sábado, e Adão
disse:

– Ai de mim! Por minha causa, pelo meu pecado, a terra escureceu,


e ficará novamente sem forma e vazia. Assim será executada a
punição de morte que Deus proferiu contra mim!

Toda a noite ele passou em lágrimas, bem como Eva, que chorava
sentada de frente para ele. Quando o dia começou a clarear ele
entendeu que o que tinha deplorado era o curso da natureza, e
trouxe uma oferta para Deus, um unicórnio cujo chifre foi criado
antes dos cascos, e sacrificou-o no lugar onde mais tarde se
ergueria o altar em Jerusalém.

O LIVRO DE RAZIEL
ADÃO: O livro de Raziel

Depois de ser expulso do Paraíso Adão orou a Deus com as


seguintes palavras:

– Ó Deus, Senhor do mundo! O senhor criou o mundo inteiro para


honra e glória do Poderoso, e fez da forma que lhe agradou. Seu
reino é por toda a eternidade, e seu reinado por todas as gerações.
Nada lhe está oculto, e nada escondido dos seus olhos. O senhor
criou-me como obra das suas mãos, e estabeleceu-me como
governante sobre as suas criaturas, para que eu exercesse
domínio sobre as suas obras. Porém a ardilosa e execrável

80
serpente seduziu-me com desejo e com lascívias; seduziu, é
verdade, a esposa do meu coração. O senhor, no entanto, não
revelou-me o que sobrevirá a meus filhos e às gerações depois de
mim. Sei muito bem que nenhum ser humano é capaz de ser
íntegro aos seus olhos. E que é minha força para que eu me
coloque na sua presença com rosto impudente? Não tenho boca
com que falar nem olho com o qual ver, pois verdadeiramente
pequei e cometi transgressão, e por causa dos meus pecados fui
expulso do Paraíso. Devo arar a terra da qual fui tomado, e os
demais habitantes da terra, os animais selvagens, não mais, como
antes, demonstram assombro e temor diante de mim. A partir do
instante em que comi da árvore do conhecimento do bem e do mal
a sabedoria me abandonou: sou um tolo que nada sabe, um
ignorante que nada compreende. Agora, misericordioso e gracioso
Deus, peço que volte novamente a sua compaixão ao cabeça das
suas obras, ao espírito que instilou nele e à alma que soprou nele.
Venha ao meu encontro com a sua graça, pois o senhor é gracioso,
tardio em irar-se e pleno de amor. Que a minha oração alcance o
trono da sua glória, e a minha súplica o trono de sua misericórdia;
que o senhor se incline na minha direção com amor. Que as
palavras da minha boca sejam aceitáveis, e o senhor não dê as
costas à minha petição. O senhor é desde a eternidade e será até a
eternidade; era rei, e será rei. Tenha agora misericórdia da obra
das suas mãos; conceda-me conhecimento e compreensão, para
que eu saiba o que sobrevirá a mim, à minha posteridade e a todas
as gerações que virão depois de mim, e o que me sobrevirá a cada
dia e a cada mês. Não negue a mim o auxílio dos seus servos e dos
seus anjos.

No terceiro dia depois que Adão ofereceu essa oração, enquanto


sentava às margens do rio que flui do Paraíso, apareceu a ele, na
hora mais quente do dia, o anjo Raziel, trazendo nas suas mãos um
livro. O anjo dirigiu-se a Adão com as seguintes palavras:

– Adão, porque está tão desanimado? Porque tão aflito e ansioso?


As suas palavras foram ouvidas no momento em que, entre apelos
e súplicas, você as proferiu, e recebi a incumbência de ensinar-lhe
palavras puras e compreensão profunda, de torná-lo sábio através
do conteúdo do livro sagrado que trago nas mãos, e de dar-lhe a
conhecer o que irá lhe sobrevir até o dia da sua morte. Quanto a

81
todos os seus descendentes e todas as gerações posteriores, se
lerem este livro em pureza, com um coração devoto e uma mente
humilde, e obedecerem aos seus preceitos, tornar-se-ão como
você: eles também saberão de antemão o que acontecerá, em qual
mês e em qual dia ou qual noite. Tudo estará manifesto para eles:
saberão e compreenderão se uma calamidade está por vir, uma
fome ou animais selvagens, inundações ou seca; se haverá
abundância de grão ou escassez; se os perversos governarão o
mundo; se gafanhotos devastarão a terra; se os frutos cairão das
árvores ainda verdes; se furúnculos afligirão os homens; se
guerras predominarão, ou doenças ou pragas entre homens e
gado; se o bem foi resolvido no céu, ou o mal; se o sangue fluirá, e
o rumor de morte dos abatidos será ouvido na cidade. E agora,
Adão, venha e dê ouvidos a tudo que lhe direi a respeito da
natureza deste livro e da sua santidade.

O anjo Raziel então leu do livro e, quando ouviu as palavras do


santo volume proferidas pela boca do anjo, Adão caiu no chão,
tomado de pavor. Porém o anjo o encorajou:

– Levante-se, Adão – ele disse. – Coragem, não tenha medo, aceite


este livro de mim e guarde-o, pois dele você extrairá
conhecimento e se tornará sábio, e irá também ensinar o conteúdo
dele a todos que forem dignos de saberem o que ele contém.

No momento em Adão pegou o livro uma chama de fogo brotou


das proximidades do rio, e o anjo subiu sobre ela em direção ao
céu. Adão então soube que o que havia falado com ele era um anjo
de Deus, e que o livro vinha do próprio Rei Santo, e usou-o em
santidade e pureza. Esse é o livro do qual podem ser aprendidas
todas as coisas que vale à pena saber, e todos os mistérios; que
ensina também como invocar os anjos e fazê-los aparecerem
diante dos homens, e responderem todas as suas perguntas.
Porém não são todos que podem fazer uso do livro, apenas aquele
que é sábio e temente a Deus, e recorre a ele em santidade. Esse
estará seguro contra todos os conselhos perversos, sua vida será
serena, e quando a morte tirá-lo do mundo, encontrará repouso
num lugar onde não há nem demônios nem espíritos do mal, e das
mãos dos perversos será velozmente resgatado.

82
A DOENÇA DE ADÃO
ADÃO: A doença de Adão

Depois de viver novecentos e trinta anos Adão foi tomado de uma


enfermidade, e sentiu que seus dias estavam chegando ao fim. Ele
chamou todos os seus descendentes e reuniu-os diante da porta
da casa de adoração na qual oferecia suas orações a Deus, a fim de
dar-lhes sua última benção. Sua família ficou perplexa de
encontrá-lo deitado em seu leito de enfermidade, pois não sabiam
o que era dor e sofrimento. Sete anunciou sua disposição de ir até
os portões do Paraíso e pedir a Deus que deixasse um de seus
anjos trazer para Adão um de seus frutos. Adão, porém, explicou-
lhes o que eram doença e dor, e que Deus os havia infligido sobre
ele como punição pelo seu pecado.

Adão sofria brutalmente; a doença arrancava dele lágrimas e


gemidos de dor. Chorando aos soluços, Eva disse:

– Adão, meu senhor, dê-me metade da sua enfermidade e eu a


levarei sobre mim de bom grado. Não foi então por minha causa
que isso lhe sobreveio? Por minha causa você sofre dor e angústia.

Adão, porém, explicou-lhes o que eram


doença e dor.
Adão pediu a Eva que fosse com Sete aos portões do Paraíso
implorar que Deus tivesse misericórdia dele; que mandasse seu
anjo pegar um pouco do óleo que flui da árvore da sua
misericórdia e entregasse aos seus mensageiros. O ungüento lhe
traria descanso, e mandaria embora a dor que o consumia. No seu
caminho para o Paraíso, Sete foi atacado por um animal selvagem.
Eva gritou para o agressor:

– Como ousa tocar a imagem de Deus?

A resposta veio imediatamente:

83
– A culpa é sua! Se não tivesse aberto a sua boca para comer do
fruto proibido, minha boca não estaria agora aberta para destruir
um ser humano.

Porém Sete repreendeu:

– Morda a sua língua! Deixe em paz a imagem de Deus até o dia do


julgamento.

O animal abriu caminho para eles, dizendo:

– Vejam, deixo passar a imagem de Deus.

E esgueirou-se de volta para o seu esconderijo.

Chegados aos portões do Paraíso, Eva e Sete começaram a chorar


amargamente, e com muitas lamentações imploraram a Deus que
desse a eles do óleo da árvore da sua misericórdia. Por horas eles
oraram assim. Finalmente apareceu o arcanjo Miguel, e disse-lhes
que vinha na qualidade de mensageiro de Deus para informar que
o pedido deles não podia ser concedido. Adão morreria dali a
poucos dias, e como estava sujeito à morte, assim estariam os seus
descendentes. Apenas por ocasião da ressurreição, e apenas para
os piedosos, o óleo da vida seria fornecido, juntamente com toda a
bem-aventurança e os deleites do Paraíso.

A morte é o destino de toda a nossa raça.


Retornando a Adão eles relataram o que havia acontecido, e Adão
disse a ela:

– Que grande desgraça você trouxe sobre nós ao despertar


tamanha ira! Veja, a morte é o destino de toda a nossa raça! Chame
os nossos filhos e os filhos de nossos filhos, e conte a eles a forma
como pecamos.

E enquanto Adão jazia prostrado em seu leito de dor, Eva contou-


lhes a história da queda deles.

84
EVA NARRA A HISTÓRIA DA QUEDA
ADÃO: Eva narra a história da queda

Depois que fui criada Deus dividiu o Paraíso e todos os animais


que ele continham entre Adão e eu. O leste e o norte foram
designados a Adão, juntamente com todos os animais do sexo
masculino. Eu era a senhora do oeste e do sul e de todos os
animais do sexo feminino. Satanás, remoendo a desgraça de ter
sido expulso do exército celestial, resolveu provocar a nossa ruína
e assim vingar-se do seu fracasso. Ele conquistou a serpente para
o seu lado, observando que antes da criação de Adão os animais
podiam desfrutar de tudo que crescia no Paraíso, mas agora
estavam restritos ao consumo de ervas rasteiras. A expulsão de
Adão do Paraíso traria, portanto, benefícios para todos. A serpente
hesitou, pois temia a ira de Deus, mas Satanás acalmou seus
temores:

– Disponha-se apenas a ser meu vaso, e falarei através da sua boca


um discurso que se mostrará capaz de seduzir o homem.

“O que você está fazendo no Paraíso?”


A serpente então ficou suspensa no muro que cerca o Paraíso, a
fim de poder conversar comigo a partir de fora. Isso aconteceu
precisamente quando meus dois anjos da guarda haviam subido
ao céu para suplicar ao Senhor. Eu estava portanto inteiramente
sozinha, e quando Satanás assumiu a forma de um anjo e inclinou-
se junto ao muro externo do Paraíso, entoando canções seráficas
de louvor, fui enganada, pensando que fosse um anjo. Iniciou-se
então uma conversa, Satanás falando através da boca da serpente:

– Eva é você?

– Sim, eu mesma.

– O que você está fazendo no Paraíso?

– O Senhor colocou-nos aqui para cultivá-lo e comer dos seus


frutos.

85
– Que bom. Mas vocês não podem comer de todas as árvores.

– Podemos sim, com exceção de uma, a árvore que fica no meio do


Paraíso. Foi só dela que Deus nos proibiu de comer; do contrário,
disse ele, morreremos.

A serpente esforçou-se de todo modo para me persuadir de que eu


não tinha nada a temer – que Deus sabia que no dia em que eu e
Adão comessemos do fruto da árvore, seríamos como ele mesmo.
Tinha sido inveja que havia levado a Deus a não comermos dele.

Apesar dessa insistência, permaneci firme, recusando-me a tocar a


árvore. A serpente então se dispôs a colher um fruto da árvore
para mim. Diante disso abri o portão do Paraíso, e ela deslizou
para dentro. Mal havia entrado ela exclamou:

– Estou arrependida do que disse. Acho melhor não dar a você o


fruto da árvore proibida.

Esse foi um astucioso ardil para tentar-me ainda mais. Ela disse
que consentiria em dar-me o fruto apenas se eu prometesse que
faria meu marido comer dele também. O juramento que me fez
fazer foi o seguinte:

– Pelo trono de Deus, pelos querubins e pela árvore da vida, darei


a meu marido deste fruto, para que ele também coma.

A serpente subiu na árvore e injetou no


fruto o seu veneno.
Em seguida a serpente subiu na árvore e injetou no fruto o seu
veneno, o veneno da inclinação para o mal, e inclinou até o chão o
galho do qual ele crescia. Peguei o fruto, mas soube de imediato
que tinha sido despojada da integridade com a qual havia estado
vestida. Comecei a chorar, por causa disso e por causa do
juramento que a serpente havia arrancado de mim.

A serpente desapareceu da árvore enquanto eu procurava folhas


para cobrir a minha nudez, mas todas as árvores ao meu alcance
haviam deixado cair suas folhas no momento em que comi do

86
fruto proibido. Apenas uma reteve suas folhas, a figueira, a
própria árvore cujo fruto havia sido proibido para mim. Chamei
Adão, e usando palavras blasfemas consegui convencê-lo a comer
do fruto. Porém mal ele havia ultrapassado seus lábios, Adão
tornou-se consciente de sua verdadeira condição e bradou contra
mim:

– Mulher perversa, que foi que você fez comigo? Você me privou
da glória de Deus.

Naquele mesmo instante Adão e eu ouvimos o arcanjo Miguel


tocar sua trombeta, e os anjos exclamando:

– Assim diz o Senhor, venham comigo ao Paraíso e ouçam a


sentença que proferirei sobre Adão.

Escondemo-nos, porque temíamos o julgamento de Deus.


Assentado em sua carruagem puxada por querubins, e
acompanhado por anjos que proferiam seu louvor, o Senhor
apareceu no Paraíso. À sua chegada as árvores nuas novamente
produziram folhas. Seu trono erguia-se junto à árvore da vida.
Deus dirigiu-se a Adão:

– Adão, onde você está escondido? Acha que não posso encontrá-
lo? Pode uma casa esconder-se do seu arquiteto?

Adão tentou colocar a culpa em mim, que havia prometido mantê-


lo inocente diante de Deus; eu, por minha vez, acusei a serpente.
Mas Deus distribuiu justiça sobre nós três. A Adão ele disse:

“Amargamente oprimido, você jamais


experimentará qualquer doçura.”
– Você não obedeceu os meus mandamentos mas deu ouvidos à
voz da sua mulher, por isso maldito será o solo apesar de todo o
seu esforço. Quando você cultivá-lo ele se recusará a lhe entregar
a sua força. Ele lhe dará espinhos e cardos, e com o suor do seu
rosto você comerá o pão. Você enfrentará muitas adversidades,
perderá as forças e ainda assim não achará descanso.
Amargamente oprimido, você jamais experimentará qualquer

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doçura, sendo castigado pelo calor e açoitado pelo frio. Você
labutará muito, porém sem acumular riqueza. Você engordará,
porém deixará de viver. Os animais sobre os quais você é mestre
se levantarão contra você, porque não obedeceu a minha ordem.

Sobre mim Deus proferiu a seguinte sentença:

– Você sofrerá angústia e dolorosa tortura na hora do parto. Em


tristeza você dará a luz seus filhos, e na hora do parto, quando
estiver perto de perder a vida, você confessará e exclamará:
“Senhor, senhor, salve-me nesta hora, e jamais voltarei a ceder ao
prazer carnal”. Porém ainda assim o seu desejo permanecerá
continuamente voltado para o seu marido.

Na mesma ocasião toda sorte de enfermidades foi decretada sobre


nós. Deus disse a Adão:

– Por ter dado as costas à minha aliança, infligirei setenta pragas


sobre a sua carne. A dor da primeira praga se apoderará dos seus
olhos, a dor da segunda praga a sua audição, e uma após a outra as
setenta pragas recairão sobre você.

À serpente Deus disse:

– Por ter se tornado vaso do Maligno, enganando os inocentes,


você será maldita, mais do que qualquer animal de criação ou
animal selvagem. A comida que você desejar comer lhe será
subtraída, e você comerá poeira todos os dias da sua vida. Você se
arrastará sobre seu peito e sobre sua barriga, e será privada de
suas mãos e pés. Você perderá suas orelhas, suas asas e todos os
outros membros que usou para seduzir a mulher e o marido dela,
levando-os a serem expulsos do Paraíso. Colocarei inimizade entre
você e a descendência do homem: ela lhe ferirá a cabeça e você lhe
ferirá o calcanhar, até o dia do julgamento.

A HORA DA MORTE

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Quando Adão estava à beira da morte, totalmente despreparado
que estava para abandonar o mundo quando havia ainda tanto a
ser experimentado, o anjo da morte teve pena dele e disse:

– Quero consolá-lo com um milagre que você não conhece; sua


vida se perpetuará através dos seus descendentes.

Quando Jesus estava à beira da morte, totalmente despreparado


que estava para abandonar o mundo quando havia ainda tanto a
ser feito, o anjo da morte, sabendo que Jesus não tinha filhos, teve
pena dele e disse:

– Quero consolá-lo com um milagre que você não conhece: sua


vida se perpetuará através dos seus seguidores.

Quando eu estiver à beira da morte, totalmente despreparado que


estarei para abandonar o mundo quando haverá ainda tanto a ser
dito, o anjo da morte dirá:

– Você não teve filhos e não terá seguidores, mas quero consolá-lo
com um milagre que você conhece.

E dir-me-á ao ouvido o que eu sempre soube.

A MORTE DE ADÃO
ADÃO: A morte de Adão

No último dia da vida de Adão, Eva disse a ele:

– Por que eu deveria continuar a viver, se você não vai estar mais
aqui?

Por quanto tempo terei de permanecer depois da sua morte? Diga-


me!

Adão assegurou-lhe que ela não teria de esperar muito:


morreriam juntos, e seriam enterrados no mesmo lugar. Ele
ordenou que Eva não tocasse o seu cadáver até que um anjo de

89
Deus tomasse as providências necessárias a respeito dele; ela
deveria, além disso, começar a orar imediatamente a Deus, até que
sua alma escapasse do seu corpo.

Enquanto Eva estava de joelhos em oração chegou um anjo, e


disse a ela que se levantasse.

– Erga-se, Eva, da sua penintência – ordenou ele. – Veja, seu


marido abandonou o seu invólucro mortal. Levante-se, e veja o
espírito dele ascendendo até o seu Criador, a fim de comparecer
diante dele.

E, para sua surpresa, Eva avistou uma carruagem de luz, puxada


por quatro águias resplandecentes e escoltada por anjos. Nessa
carruagem jazia a alma de Adão, que os anjos estavam levando
para o céu. Chegando ali eles queimaram incenso, até que nuvens
de fumaça cobriam o céu, e puseram-se a orar para que Deus
tivesse misericórdia daquele que era sua imagem e obra das suas
santas mãos.

Em seu assombro e seu pavor Eva chamou Sete, e pediu que ele
contemplasse a visão e explicasse as visões celestiais que
ultrapassavam a sua compreensão.

– Quem podem ser – ela perguntou – os dois etíopes que estão


acrescentando suas orações às do seu pai?

Sete disse-lhe que eram o sol e a lua, tornados negros por não
poderem emitir brilho diante do Pai das luzes.

Mal ele havia falado e um anjo tocou sua trombeta, e todos os


anjos bradaram em formidável uníssono:

– Bendita seja a glória do Senhor sobre suas criaturas, pois


demonstrou misericórdia sobre Adão, obra das suas mãos!

Um serafim tomou então Adão e carregou-o até o rio Aqueronte,


lavou-o três vezes e levou-o até a presença de Deus, assentado no
seu trono, que estendeu sua mão, ergueu Adão e entregou-o ao
arcanjo Miguel, com as seguintes palavras:

90
– Erga-o até o Paraíso do terceiro céu, e deixe a alma dele ali até o
grande e temível dia ordenado por mim.

Miguel executou o mandado divino, e todos os anjos entoaram


uma canção de louvor, exaltando a Deus pelo perdão que havia
concedido a Adão.

“Agora eu lhe prometo a ressurreição”.


Miguel em seguida pediu a Deus permissão para preparar o corpo
de Adão para a sepultura. Concedida a permissão, Miguel retornou
à terra, acompanhado por todos os anjos. Assim que adentraram o
Paraíso terrestre todas as árvores floresceram, e o perfume
emitido por elas fez com que todos os homens caíssem no sono,
com exceção de Sete. Deus então disse a Adão, cujo corpo jazia no
chão:

– Se você tivesse guardado o meu mandamento, não poderiam


regozijar-se os culpados que levaram-no a esta condição. Mas eu
garanto a você, transformarei em tristeza a alegria de Satanás e de
seus companheiros, e a sua tristeza se transformará em alegria.
Restituirei o seu domínio, e você ocupará o trono daquele que o
seduziu, enquanto ele será condenado, juntamente com os que lhe
dão ouvidos.

Em seguida, ao comando de Deus, os três grandes arcanjos


cobriram o corpo de Adão com linho, e derramarem sobre ele óleo
aromático. Com Adão enterraram também o corpo de Abel, que
jazia sem ser enterrado desde que fora assassinado por Caim,
porque todos os esforços do assassino para ocultá-lo haviam sido
em vão. Vez após outra o cadáver havia brotado para fora da terra,
e dela saíra uma voz que dizia: “nenhuma criatura poderá
repousar no interior terra até que o primeiro de todos tenha
devolvido a mim o pó com o qual foi formado”. Os anjos
carregaram os dois corpos, o de Adão e o de Abel, para o Paraíso
(o corpo de Abel jazera até aquele momento numa pedra sobre a
qual os anjos o haviam colocado) e enterraram-nos juntos no local
de onde Deus havia retirado o pó para formar Adão.

– Adão, Adão! – Deus disse ao corpo de Adão.

91
– Eis-me aqui, Senhor – ele respondeu.

E Deus falou:

– Eu lhe disse uma vez: “você é pó e ao pó voltará”; agora eu lhe


prometo a ressurreição. Você despertará no dia do julgamento,
quando todas as gerações de homens que brotarão da sua
descendência erguer-se-ão do túmulo.

Deus então selou a sepultura, para que ninguém fizesse mal a ele
durante os seis dias que teriam de passar até que sua costela lhe
fosse devolvida, mediante a morte de Eva.

A MORTE DE EVA
ADÃO: A morte de Eva

Eva passou chorando o intervalo entre a morte de Adão e a sua. O


que a incomodava em particular era não conhecer o paradeiro do
corpo de Adão, pois ninguém além de Sete havia estado desperto
quando o anjo o enterrara. Quando aproximou-se a hora de sua
própria morte, Eva suplicou para ser enterrada no mesmo lugar
em que jaziam os restos do marido.

– Senhor de todos os poderes! – orou ela – Não separe a sua serva


do corpo de Adão, de quem me tirou e de cujos membros me
formou. Permita-me, mulher indigna e pecadora, adentrar a
habitação dele. Da forma como estivemos juntos no Paraíso, não
separados um do outro; da forma como fomos tentados a
transgredir a sua lei, não separados um do outro; da mesma
forma, Senhor, não separe-nos agora.

Ao final da oração, erguendo os olhos para o céu, acrescentou a


petição: “Senhor do mundo! Receba o meu espírito!”, e entregou
sua alma a Deus.

Adão não deve ser responsabilizado pela


morte dos homens.

92
O arcanjo Miguel veio e ensinou Sete a preparar Eva para o
sepultamento, depois do que três anjos desceram e enterraram o
corpo no túmulo com Adão e Abel. Miguel então disse a Sete:

– Você deve enterrar todos os homens dessa forma, até o dia da


ressurreição – e depois de dar essa ordem, acrescentou: – Não
lamente a morte por mais do que seis dias. O repouso do sétimo
dia é o símbolo da ressurreição no último dia, pois no sétimo dia
Deus descansou de toda obra que havia criado e feito.

Embora a morte tenha sido trazido ao mundo por Adão, ele não
pode ser responsabilizado pela morte dos homens. Certa ocasião
ele disse a Deus:

– Não me preocupa a morte dos perversos, mas não me agradaria


que os piedosos me condenassem e colocassem em mim a culpa
pela sua morte. Não faça, eu lhe rogo, menção da minha culpa.

E Deus prometeu que satisfaria o seu desejo. Portanto, quando um


homem está para morrer, Deus lhe aparece e diz que sente-se e
coloque por escrito tudo o que fez durante a sua vida, “pois”, Deus
diz a ele, “você está morrendo por causa dos seus próprios atos de
perversidade”. Quando o registro está concluído, Deus ordena que
a pessoa sele o documento com seu selo pessoal. Este é o
documento que Deus apresentará no dia do julgamento,
declarando a cada um os seus próprios feitos. Logo que a vida do
homem é extinguida ele é apresentado a Adão, a quem acusa
invariavelmente de ter causado a sua morte. Adão, porém, rejeita
a acusação:

– Cometi uma única transgressão. Haverá algum de vocês, por


mais piedoso que seja, que não seja culpado de mais de uma?

O NASCIMENTO DE CAIM
AS DEZ GERAÇÕES: O nascimento de Caim

93
Houve dez gerações entre Adão e Noé, para que ficasse
demonstrado quão paciente é o Senhor – pois todas as gerações
provocaram-no à ira, até que ele trouxe sobre elas o dilúvio. Por
causa da impiedade deles Deus mudou o seu plano de chamar mil
gerações entre a criação do mundo e a revelação da lei no monte
Sinai; novecentos e setenta e quatro dessas ele suprimiu antes do
dilúvio.

A perversidade entrou no mundo com o primeiro ser nascido de


mulher, Caim, filho mais velho de Adão. Quando concedeu o
Paraíso ao primeiro casal da humanidade, Deus advertiu-os em
particular contra a prática do intercurso carnal um com o outro.
Porém, depois da queda de Eva, Satanás abordou-a disfarçado de
serpente; o fruto dessa união foi Caim, ancestral de todas as
gerações ímpias que se rebelaram contra Deus e levantaram-se
contra ele. O parentesco de Caim com Satanás, que é o anjo
Samael, ficou patente em sua aparência seráfica. Por ocasião do
seu nascimento brotou de Eva a exclamação:

– Através de um anjo do Senhor foi-me dado um homem!

Adão não esteve na companhia de Eva durante a gravidez que


gerou Caim. Depois de sucumbir pela segunda vez às tentações de
Satanás, permitindo-se ser interrompida em sua penitência, Eva
deixara seu marido e partira para oeste, temendo que sua
presença pudesse continuar a trazer-lhe aflição. Adão permaneceu
no leste.

Quando completaram-se os dias para ela dar à luz e começou a


sentir as dores de parto, Eva rogou a Deus por auxílio, mas ele não
deu ouvidos às suas súplicas.

– Quem levará a notícia a meu senhor Adão? – ela perguntou a si


mesma. – Vocês, luminárias do céu, eu lhes rogo, contem a meu
mestre Adão quando voltarem para o leste!

Naquela mesma hora Adão exclamou:

– A lamentação de Eva atingiu-me os ouvidos! Talvez a serpente a


tenha assediado novamente! – e apressou-se ao encontro da
esposa.

94
Ao encontrá-la em sofrimento profundo, Adão implorou a Deus
em seu favor, e surgiram doze anjos, acompanhados de dois
poderes celestiais. Todos esses assumiram juntos postos à direita
e à esquerda de Eva, enquanto Miguel, também em pé à sua
direita, passava a mão sobre ela, descendo do rosto até o seio, e
dizia:

– Abençoada seja você, Eva, por causa de Adão. Foi devido às


súplicas e as orações dele que fui enviado para prestar-lhe
assistência. Prepare-se para o nascimento do seu filho.

Imediatamente nasceu o menino, uma figura radiante. Não


demorou e o bebê pôs de pé, correu para longe e voltou trazendo
na mão um talo de capim, que deu à sua mãe. Por isso ele recebeu
o nome de Caim, palavra hebraica para haste de capim.

Adão tomou então Eva e o menino para sua casa no leste. Deus
mandou-lhe diversos tipos de sementes, pela mão do anjo Miguel,
e Adão foi ensinado a cultivar o solo e fazê-lo produzir grãos e
frutos, a fim de sustantar sua família e sua posteridade.

Depois de algum tempo Eva deu à luz um segundo filho, a quem


deu o nome de Hebel/Sopro, “porque”, disse ela, “ele nasceu para
morrer”.

FRATRICÍDIO
AS DEZ GERAÇÕES: Fratricídio

O assassinato de Abel por parte de Caim não veio como algo


totalmente inesperado para os pais deles. Num sonho Eva havia
visto o sangue de Abel fluindo para dentro da boca de Caim, que
bebia dele avidamente, embora seu irmão implorasse para que ele
não o tomasse todo para si. Quando Eva contou o sonho a Adão ele
disse, em tom de lamentação:

– Ah, que isso não pressagie a morte de Abel pela mão de Caim!

95
Ele separou os dois rapazes, designando a cada um uma moradia
distinta, e a cada um dos dois ensinou um ofício diferente. Caim
tornou-se lavrador do solo, Abel guardador de ovelhas. Tudo em
vão: apesar dessas precauções, Caim matou seu irmão.

“Vejo agora que atos de bondade não


levam a nada”.
A hostilidade de Caim para com Abel teve mais de uma origem. Ela
começou quando Deus mostrou apreciação pela oferta de Abel, e
demonstrou aceitá-la enviando fogo do céu para consumi-la,
enquanto a oferta de Caim foi rejeitada.

Eles trouxeram seus sacrifícios no décimo-quarto dia de Nissan,


seguindo a orientação de seu pai, que assim havia dito aos filhos:

– Este é o dia no qual, em tempos futuros, Israel oferecerá os seus


sacrifícios. Portanto vocês também, tragam sacrifício ao seu
Criador neste dia, para que ele tenha prazer em vocês.

O lugar que eles escolheram para apresentar a oferta foi o lugar


onde se ergueria mais tarde o Templo de Jerusalém. Abel
selecionou do seu rebanho o melhor para o sacrifício, porém Caim
primeiro comeu sua refeição, e depois de satisfazer seu apetite
ofereceu a Deus o que sobrara, uns poucos grãos de linhaça –
como se não fosse ofensa bastante oferecer a Deus um fruto do
solo, o mesmo solo que Deus havia amaldiçoado! Não é de se
admirar que seu sacrifício não tenha sido aceito em seu favor. Ele
recebeu além disso uma repreensão:

– Se você corrigir a sua conduta, sua culpa será perdoada; se não,


você será entregue ao poder da inclinação para o mal. Ela está
batendo à sua porta, mas depende de você se você a dominará ou
será dominado por ela.

Caim achou que havia sido injustiçado, e seguiu-se uma discussão


entre ele e Abel.

– Eu achava – disse Caim – que o mundo havia sido criado através


da bondade, mas vejo agora que atos de bondade não levam a

96
nada. Deus governa o mundo com poder arbitrário, do contrário
por que teria aceitado a sua oferta e não também a minha?

Abel discordou dele, insistindo que Deus recompensa as boas


obras sem fazer distinção de pessoas. Se seu sacrifício havia sido
aceito graciosamente por Deus e o de Caim não, era porque as
suas obras eram boas e as de Caim perversas.

Porém esse não foi o único motivo do rancor de Caim para com
Abel. Em parte foi o amor de uma mulher que ocasionou o crime.
A fim de assegurar a propagação da raça humana, uma menina
(destinada a ser sua esposa) nasceu junto com cada um dos filhos
de Adão. A irmã gêmea de Abel era de uma beleza fora do comum,
e Caim a desejou – pelo que vivia planejando modos e maneiras
para livrar-se do irmão.

“E se eu te matar, quem vai requerer de


mim o seu sangue?”
Não demorou e a oportunidade se apresentou. Certo dia uma
ovelha que pertencia a Abel pisoteou uma plantação de Caim.
Tomado de fúria, este exclamou:

– Que direito você tem de de viver na minha terra e deixar que


suas ovelhas se alimentem aqui?

Abel retrucou:

– E que direito você tem de usar os produtos das minhas ovelhas,


fazendo para si roupas da lã que elas produzem? Se você despir a
lã do meu rebanho, com a qual está vestido, e me pagar pela carne
das reses que já comeu, então eu abandonarei a sua terra, como
você deseja, e viverei voando em pleno ar, se conseguir.

Pelo que Caim disse:

– E se eu te matar, quem vai requerer de mim o seu sangue?

– Deus – respondeu Abel, – que nos trouxe ao mundo, irá me


vingar. Ele exigirá o meu sangue da sua mão, se você me matar.
Deus é o juiz, e visitará com suas perversidades os perversos, e

97
com suas maldades os maus. Se você me matar, Deus saberá o seu
segredo, e dar-lhe-á punição.

Essas palavras deixaram Caim ainda mais furioso, pelo que atirou-
se sobre o irmão. Abel era mais forte do que ele e o teria vencido,
mas no último momento Caim implorou por misericórdia, e o
gentil Abel, que havia imobilizado o irmão, deixou-o ir. Mal o havia
libertado, Caim voltou-se novamente contra ele, e o matou. É
portanto verdadeiro o ditado: “não faça o bem ao mau, para que o
mal não recaia sobre você”.

A PUNIÇÃO DE CAIM
AS DEZ GERAÇÕES: A punição de Caim

A morte de Abel foi a mais cruenta possível. Sem saber qual


ferimento seria fatal, Caim foi atirando pedras sobre todas as
partes do seu corpo, até que uma atingiu-o no pescoço e infligiu a
morte.

Depois de cometer o assassinato Caim resolveu fugir, dizendo a si


mesmo:

– Meus pais exigirão de mim satisfação a respeito de Abel, pois


não há outro ser humano sobre a terra.

Ele havia acabado de refletir dessa forma quando Deus lhe


apareceu, e dirigiu-se a ele com as seguintes palavras:

– Dos seus pais você pode fugir, mas pode também fugir da minha
presença? Pode alguém se esconder num lugar tão secreto que eu
não possa vê-lo? Pobre de Abel por ter demonstrado misericórdia
de você, e por não tê-lo matado quando podia. Pobre dele por ter
dado a você a oportunidade de matá-lo.

“Foi o senhor quem o matou.”

98
Quando Deus lhe perguntou “Onde está seu irmão Abel?”, Caim
respondeu:

– Sou por acaso o guardião do meu irmão? É o senhor que vigia


todas as criaturas, e pede satisfação de mim! É verdade, eu o
matei, mas foi o senhor quem criou em mim a inclinação para o
mal. O senhor guarda todas as coisas, por que permitiu que eu o
matasse? Foi o senhor quem o matou, pois se tivesse olhado
favoravelmente para a minha oferta, como fez com a dele, eu não
teria tido razão para invejá-lo, e não o teria matado.

Porém Deus disse:

– O sangue do seu irmão, brotando de seus muitos ferimentos,


clama contra você, e também o sangue de todos os justos que
poderiam ter sido gerados dos lombos de Abel.

A alma de Abel também denunciou o assassino, pois não pôde


encontrar descanso em lugar algum; não pôde subir ao céu, nem
habitar na sepultura com seu corpo, pois nenhuma alma humana
havia feito qualquer das duas coisas antes. Apesar disso Caim
recusou-se a confessar a sua culpa. Ele insistiu que nunca tinha
visto um humem morrer; como poderia saber que atirar pedras
em Abel acabaria causando a sua morte? Então, por causa de Caim,
Deus amaldiçoou o solo, para que não produzisse fruto para ele.
Com um único castigo Caim e a terra foram punidos, a terra por
ter abrigado o cadáver de Abel ao invés de deixá-lo acima do chão.

Na dureza do seu coração, Caim disse:

– Ó, Senhor do mundo! Há por acaso informantes que denunciem


os homens diante do senhor? Meus pais são os únicos seres
humanos vivos, e eles nada sabiam do que fiz. O senhor habita o
céu, como poderia ficar sabendo das coisas que acontecem na
terra?

Deus respondeu:

– Tolo! Eu sustento o mundo inteiro. Eu o fiz, eu o suportarei.

99
Essa resposta deu a Caim a oportunidade de fingir
arrependimento.

– O senhor suporta o mundo inteiro – disse ele – e meu pecado


não pode suportar? É verdade, meu pecado é grande demais para
ser suportado. Mas foi apenas ontem que o senhor baniu meu pai
da sua presença, e hoje está banindo a mim. Logo será dito, de
fato, que o negócio do senhor é banir.

Embora isso não passasse de dissimulação, e não verdadeiro


arrependimento, Deus concedeu perdão a Caim, e removeu
metade do seu castigo sobre ele. Originalmente o decreto
condenava-o a ser fugitivo e errante sobre a terra. Agora ele não
precisava mais vagar eternamente, mas deveria permanecer
fugitivo. E ser obrigado a suportá-lo foi difícil o bastante, pois a
terra tremeu sob Caim, e todos os animais, selvagens e
domésticos, entre eles a amaldiçoada serpente, reuniram-se,
planejando devorá-lo a fim de vingar o sangue inocente de Abel.
Finalmente Caim não foi mais capaz de suportar, e rompendo em
lágrimas, exclamou:

– Para onde me ausentarei do seu Espírito? Para onde fugirei da


sua face?

A fim de protegê-lo do massacre das feras, Deus gravou na testa de


Caim uma letra do seu nome santo, e disse além disso aos animais:

– A punição de Caim não será como a punição dos futuros


assassinos. Ele derramou sangue, mas ninguém havia para dar-lhe
instrução. De agora em diante, portanto, quem matar será morto.
Deus então deu-lhe o cachorro como proteção contra as feras
selvagens e, a fim de marcá-lo como pecador, afligiu-lhe com lepra.

“Tão poderoso é o arrependimento, e eu


não sabia!”
O arrependimento de Caim, mesmo sendo insincero, produziu
resultados bons. Quando Adão o encontrou e perguntou que
condenação havia sido decretada contra ele, Caim contou como
seu arrependimento aplacara a ira de Deus, e Adão exclamou:

100
– Tão poderoso é o arrependimento, e eu não o sabia!

Por essa razão ele compôs um hino de louvor a Deus, que


começava com as seguintes palavras: “Boa coisa é confessar seus
pecados ao Senhor!”

O crime cometido por Caim teve conseqüências perniciosas não


apenas para ele mesmo, mas também para toda a natureza. Antes
os frutos que a terra produzia quando ele arava o solo tinham o
sabor das frutas do Paraíso. Agora seu trabalho nada produzia
além de espinhos e abrolhos. O solo alterou-se e deteriorou-se no
exato instante do fim violento de Abel. Na parte da terra onde a
vítima vivia, por tristeza pela sua perda, as árvores e as plantas
recusaram-se a dar seus frutos. Foi só com o nascimento de Sete
que as plantas que cresciam na porção de terra que pertencia a
Abel começaram a florescer e produzir novamente. Elas porém
nunca recuperaram seus poderes anteriores. Antes a videira
produzia novecentas e vinte e seis variedades diferentes de frutos,
agora produzia apenas uma. O mesmo aconteceu com todas outras
espécies; apenas no mundo que há de vir elas recuperarão seus
poderes originais.

A natureza também foi modificada pelo sepultamento do corpo de


Abel. Por um longo tempo ele jazeu exposto, porque Adão e Eva
não sabiam o que fazer com ele. Sentados ao lado dele eles
choravam, enquanto o fiel cão de Abel vigiava para que não lhe
fizessem mal nenhum pássaro ou animal selvagem. Certa ocasião,
em meio ao seu lamento, os pais observaram um corvo raspando a
superfície do solo em determinado lugar, e em seguida enterrando
ali um pássaro morto de sua própria espécie. Adão, seguindo o
exemplo do corvo, enterrou o corpo de Abel, e o corvo foi
recompensado por Deus. Seus filhotes nascem com penas brancas,
pelo que os pássaros mais velhos os abandonam, não
reconhecendo-os como sua própria prole, mas tomando-os por
serpentes. Porém Deus os alimenta até que a sua plumagem se
torna negra, e os pais retornam a eles. Como recompensa
adicional, Deus concede o seu pedido quando os corvos pedem
chuva.

101
OS DESCENDENTES DE CAIM
AS DEZ GERAÇÕES: Os descendentes de Caim

Caim sabia muito bem que sua culpa de sangue seria visitada
sobre ele na sétima geração, pois assim Deus havia decretado
contra ele. Ele esforçou-se, portanto, para imortalizar seu nome
através de monumentos, e tornou-se construtor de cidades. A
primeira chamou-se Enoque, batizada com o nome do seu filho,
porque a partir do nascimento de Enoque Caim passou a
experimentar alguma medida de descanso e paz. Além dessa Caim
fundou outras seis cidades. Essa edificação de cidades era um ato
de perversidade, porque ele as cercava com uma muralha,
forçando sua família a permanecer do lado de dentro. Suas outras
iniciativas foram todas igualmente perversas: a punição que Deus
lhe ordenara não efetuara nenhum aperfeiçoamento moral.

Eles dedicavam todo seu amor e atenção


às esposas estéreis.
Caim pecava a fim de assegurar o seu próprio prazer, porém seus
vizinhos sofriam prejuízo como resultado. Ele aumentava os bens
de sua casa através de rapina e violência e incitava seus
conhecidos a buscarem prazeres e pilhagens através de roubo,
tornando-se um grande líder de homens de conduta perversa. Ele
introduziu ainda uma mudança na simplicidade de vida na qual os
homens vinham vivendo, sendo o inventor dos pesos e das
medidas. Dado que os homens viviam de modo inocente e
generoso enquanto nada sabiam dessas artes, Caim transformou o
mundo em maliciosa velhacaria.

Como Caim foram todos os seus descendentes, perversos e sem


piedade, pelo que Deus resolveu destruí-los.

O fim de Caim lhe sobreveio na sétima geração dos homens, e lhe


foi infligida pela mão de seu tataraneto Lameque. Lameque era
cego, e quando saía para caçar era conduzindo pelo seu filho mais
novo, que informava o pai quando havia caça à vista, a qual
Lameque então abatia com seu arco e flecha. Certa vez ele e o filho

102
saíram numa caçada, e o rapaz discerniu à distância alguma coisa
que tinha chifres; ele tomou-a por um animal de alguma espécie, e
disse ao cego Lameque que fizesse sua flecha voar. A mira foi boa,
e a presa caiu. Quando chegaram perto da vítima o rapaz
exclamou:

– Pai, o senhor matou algo que se parece um ser humano em todos


os sentidos, exceto que tem um chifre na cabeça.

Lameque soube de imediato o que acontecera – tinha matado seu


ancestral Caim, que Deus marcara na testa com um chifre. Em seu
desespero ele bateu as mãos uma contra a outra, matando
inadvertidamente seu filho entre elas. Infortúnio seguiu-se a
infortúnio. A terra abriu a sua boca e engoliu as quatro gerações
nascidas de Caim – Enoque, Irade, Meujael e Metusael. Lameque,
cego como era, não podia voltar para casa; teve de permanecer ao
lado dos cadáveres de Caim e de seu filho. Ao entardecer suas
esposas, procurando-o, encontraram-no ali. Quando ouviram o
que ele tinha feito quiseram separar-se dele, ainda mais por
saberem que qualquer descendente de Caim estava condenado à
aniquilação. Porém Lameque argumentou:

– Se Caim, que cometeu assassinato de forma premeditada, foi


punido apenas na sétima geração, eu, que não tive a intenção de
matar ser humano algum, posso esperar que a retribuição seja
adiada por setenta e sete gerações.

Lameque foi com suas esposas até Adão, que ouviu ambas as
partes e decidiu o caso em favor de Lameque.

Caim introduziu uma mudança na


simplicidade de vida na qual os homens
vinham vivendo.
A corrupção daquela época, e em especial a depravação da
linhagem de Caim, fica evidente no fato de que Lameque, bem
como todos os homens na geração do dilúvio, casavam-se com
duas mulheres, uma com o propósito de criar filhos, a outra a fim
de entregarem-se às indulgências da carne – pelo que essa

103
segunda era tornada infértil por meios artificiais. Como os homens
daquela época tinham inclinação ao prazer ao invés de desejo de
cumprirem seu dever para com a raça humana, eles dedicavam
todo seu amor e atenção às esposas estéreis, enquanto as outras
esposas passavam seus dias como viúvas, sem alegria e em
depressão.

As duas esposas de Lameque, Ada e Zilá, deram à luz dois filhos


cada um; Adá dois meninos, Jabal e Jubal, e Zilá um menino, Tubal-
Caim e uma menina, Naamá. Jabal foi o primeiro entre os homens
a edificar templos aos ídolos, e Jubal inventou a música cantada e
tocada dali em diante. O nome de Tubal-Caim foi bem dado,
porque ele completou a obra de seu ancestral Caim; Caim cometeu
assassinato, e Tubal-Caim, o primeiro a saber afiar o ferro e o
cobre, forneceu os instrumentos usados em guerras e combates.
Naamá, “a adorável”, ganhou seu nome devido aos sons doces que
produzia de seus címbalos quando chamava os adoradores a
prestarem tributo aos ídolos.

OS DESCENDENTES DE ADÃO E LILITH


AS DEZ GERAÇÕES: Os descendentes de Adão e Lilith

Quando as esposas de Lameque ouviram a decisão de Adão, que


deveriam continuar a viver com o marido, viraram-se para Adão e
disseram:

– Médico, cure a si mesmo!

Elas referiam-se ao fato de que Adão vinha ele mesmo vivendo


separado da esposa desde a morte de Abel, pois havia dito:
“porque eu deveria gerar filhos, se é para expô-los à morte?”

Embora evitasse o intercurso com Eva, Adão era visitado em seus


sonhos por espíritos do sexo feminino, e dessa união com elas
foram gerados demônios de várias espécies, que foram dotados de
capacidades peculiares.

104
Seu método consistia em escrever umas
poucas palavras num pedaço de papel,
que ele fazia então seu aluno engolir.
Certa vez viveu na Palestina um homem muito rico e devoto, que
teve um filho chamado Rabi Hanina. Esse homem conhecia a Torá
de cor. Quando estava a ponto de morrer ele mandou chamar seu
filho, o Rabi Hanina, e disse a ele, como último pedido, que ele
estudasse a Torá dia e noite, colocasse em prática os
mandamentos da lei e fosse amigo fiel dos pobres. Disse também
que ele e sua esposa, mãe do Rabi Hanina, morreriam no mesmo
dia, e que os sete dias de luto pelos dois terminariam na véspera
da Páscoa. Disse ao filho que não lamentasse em excesso, mas
fosse ao mercado naquele dia e comprasse o primeiro artigo que
lhe oferecessem, não importando o preço que custasse. Se fosse
algo comestível, deveria prepará-lo e servi-lo com grande
cerimônia. Seus gastos e seu trabalho seriam recompensados.

Tudo aconteceu conforme o previsto: o homem e a esposa


morreram naquele dia, e o final da semana de luto coincidiu com a
véspera da Páscoa. O filho por sua vez cumpriu a vontade do pai:
foi até o mercado, onde veio ao seu encontro um velho
oferecendo-lhe para comprar uma travessa de prata com tampa.
Ele a comprou como seu pai havia dito que fizesse, embora o
preço fosse exorbitante. A travessa foi colocada sobre a mesa
do Sêder, e quando o Rabbi Hanina ergueu a tampa havia dentro
uma segunda travessa, e dentro dela um sapo vivo, saltando e
pulando alegremente. Ele deu ao sapo comida e bebida, e ao fim da
festa ele havia ficado tão grande que o Rabi Hanina fez para ele
uma caixa, dentro da qual ele vivia e comia. Com o passar do
tempo a caixa ficou pequena, e o rabi construiu um quarto,
colocou o sapo dentro e deu-lhe comida e bebida em abundância –
tudo isso a fim de não violar o último desejo do pai.

Porém o sapo engordou e cresceu, consumindo tudo que seu dono


possuía, até que o Rabi Hanina foi finalmente privado de todas as
suas posses. O sapo então abriu a boca e começou a falar:

105
– Meu caro Rabbi Hanina – disse ele, – não se preocupe. Vendo que
você me criou e cuidou de mim, peça-me qualquer coisa que o seu
coração desejar, e lhe será concedido.

– Eu nada desejo – respondeu o Rabbi Hanina, – além de que você


me ensine toda a Torá.

O sapo concordou e ensinou-lhe de fato toda a Torá, e também os


setenta idiomas dos homens. Seu método consistia em escrever
umas poucas palavras num pedaço de papel, que ele fazia então
seu aluno engolir. Dessa forma o rabi aprendeu não apenas a Torá
e os setenta idiomas, mas também as línguas dos animais e dos
pássaros.

Depois disso o sapo disse à esposa do Rabi Hanina:

– Você cuidou bem de mim, e eu não lhe dei recompensa alguma.


Mas sua compensação será dada a você antes que eu vá embora,
basta que vocês dois me acompanhem à floresta. Ali vocês verão o
que farei por vocês.

Assim sendo, eles foram à floresta com ele. Chegando lá o sapo


começou a gritar, e ao som de sua voz reuniu-se toda sorte de
animais selvagens e pássaros. Ele ordenou que esses trouxessem
pedras preciosas, tantas quanto pudessem carregar. Deveriam
também trazer ervas e raízes para a esposa do Rabi Hanina, que
ele ensinou a usar como remédio para todas as espécies de
doenças. Tudo isso eles deveriam levar para casa consigo. Quando
estavam prestes a voltar para casa, o sapo disse-lhes assim:

– Que o Santo, bendito seja, tenha misericórdia de vocês, e os


recompense por todo trabalho que tiveram por minha causa, sem
sequer perguntarem quem sou. Devo agora revelar-lhes minha
origem: sou filho de Adão, um filho que ele gerou durante os cento
e trinta anos em que esteve separado de Eva. Deus concedeu-me o
poder de assumir qualquer forma ou disfarce que desejar.

O rabi Hanina e sua esposa deixaram sua casa e ficaram muito


ricos, desfrutando do respeito e da confiança do rei.

106
SETE E SEUS DESCENDENTES
AS DEZ GERAÇÕES: Os descendentes de Sete

As exortações das esposas de Lameque produziram efeito em


Adão. Depois de cento e trinta anos de separação ele voltou para
Eva, e o amor que ele nutria por ela era agora muitas vezes mais
forte do que antes. Quando não estava corporeamente com ele,
Eva estava presente nos seus pensamentos. O fruto de sua união
foi Sete, que estava destinado a ser ancestral do Messias.

Sete nasceu formado de tal modo que não foi necessário executar
nele o rito da circuncisão. Dessa forma Sete foi um dos treze
homens que de algum modo nasceram perfeitos1. Adão gerou-o à
sua imagem e semelhança, ao contrário de Caim, que não havia
sido à sua imagem e semelhança. Sete tornou-se assim, no sentido
mais genuíno, pai da raça humana, especialmente dos piedosos,
enquanto que os depravados e ímpios são descendentes de Caim.

Mesmo durante o tempo de vida de Adão os descendentes de Caim


tornaram-se perversos ao extremo, morrendo um após o outro,
cada um mais perverso do que o anterior. Eram intoleráveis na
guerra, veementes em roubalheiras, e se algum deles se mostrasse
hesitante em matar gente, seria não obstante ousado em agir
injustamente e promover dano visando seu próprio lucro.

Quanto a Sete, quando chegou à idade na qual foi capaz de


discernir o que era bom tornou-se um homem virtuoso, e como
tinha excelente caráter, deixou filhos que imitaram suas virtudes.
Todos os seus filhos provaram ser de boa índole; habitaram a
mesma região sem dissensões, felizes e sem que qualquer
infortúnio lhes sobreviesse, até morrerem. Foram também os
inventores daquela espécie singular de sabedoria que estuda os
corpos celestes e sua ordem. Para que suas invenções não se
perdessem antes que fossem suficientemente divulgadas,
ergueram dois pilares, diante da previsão de Adão de que o
mundo seria destruído numa ocasião pela força do fogo e em

107
outra ocasião pela violência e quantidade da água. O primeiro
pilar era de barro, o segundo de pedra; gravaram suas
descobertas em ambos, para que caso o pilar de barro fosse
destruído pela inundação restasse o pilar de pedra e exibisse suas
descobertas para a humanidade, informando também que
houvera outro pilar, feito de barro, erguido por eles.

ENOS
AS DEZ GERAÇÕES: Enos

Perguntaram a Enos o nome do seu pai e ele disse “Sete”. Os que


perguntavam, a gente do seu tempo, prosseguiram:

– E o pai de Sete, quem foi?

Enos:

– Adão.

– E o pai de Adão, quem foi?

– Adão não teve pai nem mãe, Deus formou-o do pó da terra.

– Mas o homem não se parece em nada com pó!

– Depois de morrer o homem retorna ao pó, como Deus disse: “o


homem ao pó voltará”. Mas no dia da sua criação o homem foi
feito à imagem de Deus.

– E a mulher, como foi criada?

– Macho e fêmea os criou.

– Mas como?

– Deus tomou água e terra e moldou-os na forma de homem.

– Mas como? – insistiram os que o questionavam.

108
Enos tomou seis torrões de terra, misturou-os e modelou-os,
formando uma imagem a partir de pó e argila.

– Mas – disseram as pessoas – essa imagem não anda nem tem


qualquer sopro de vida.

Enos foi então mostrar como Deus soprara o fôlego da vida nas
narinas de Adão, mas quando começou a soprar na imagem que
tinha formado Satanás entrou nela, e a figura começou a andar, e
as pessoas do seu tempo que haviam estado perguntando a Enos
sobre esses assuntos saíram correndo atrás dela, dizendo:

– Qual é a diferença entre ajoelhar diante desta imagem e


demonstrar deferência a um homem?

Suas feições passaram a lembrar


centauros e macacos, e os demônios
perderam o medo dos homens.
A geração de Enos foi por essa razão a primeira de adoradores de
ídolos, e a punição pela sua insensatez não demorou a chegar.
Deus fez com o mar ultrapassasse seus limites, e parte da terra foi
inundada. Foi também ocasião em que as montanhas tornaram-se
rochas, e os cadáveres dos homens começaram a apodrecer. Outra
conseqüência do pecado da idolatria foi que as feições dos homens
deixaram de ostentar a imagem e semelhança de Deus, como
faziam os rostos de Adão, Sete e Enos. Suas feições passaram a
lembrar centauros e macacos, e os demônios perderam o medo
dos homens.

Porém as práticas idólatras introduzidas na época de Enos


trouxeram uma conseqüência ainda mais grave. Quando Deus
expulsou Adão do Paraíso a Shekiná ficou para trás, entronizada
acima de um querubim sob a árvore da vida. Os anjos desciam em
hostes do céu e iam até ela para receber suas instruções, e Adão e
seus descendentes sentavam-se junto do portão para aquecer-se
no esplendor da Shekiná, sessenta e cinco vezes mais brilhante do
que o esplendor do sol. Este brilho da Shekiná cura as doenças de

109
todos sobre os quais recai, e nem insetos nem demônios podem
aproximar-se deles ou fazer-lhes mal.

Foi assim até o tempo de Enos, quando os homens começaram a


ajuntar ouro, prata, pedras preciosas e pérolas de todas as partes
da terra, e fizeram com eles ídolos de mil parasangas de altura. E
que é pior: através das artes mágicas ensinadas a eles pelos anjos
Uza e Azael, fizeram-se passar por mestres das esferas celestes e
forçaram o sol, a lua e as estrelas a servirem-nos ao invés de a
Deus. Isso levou os anjos a perguntarem a Deus:

– “O que é o homem, para que te lembres dele?” Porque o senhor


abandonou o mais alto céu, o assento da sua glória e seu exaltado
trono no Arabot e desceu até os homens, que prestam adoração a
ídolos, colocando-o no mesmo nível que eles?

A Shekiná foi assim induzida a deixar a terra e ascender ao céu,


em meio ao clangor e o trinado das trombetas das miríades de
exércitos celestiais.

A QUEDA DOS ANJOS


AS DEZ GERAÇÕES: A queda dos anjos

A depravação da humanidade, que começou a manifestar-se no


tempo de Enos, havia se multiplicado enormemente no tempo de
seu neto Jarede, devido à queda dos anjos. Quando viram as belas
e atraentes filhas dos homens, os anjos cobiçaram-nas, e disseram:

– Tomaremos esposas apenas dentre as filhas dos homens, e


geraremos filhos com elas.

Seu líder Shemhazai disse:

110
– Temo por mim que vocês não coloquem esse plano de vocês em
execução, e seja apenas eu a sofrer as conseqüências de um
grande pecado.

E eles todos responderam:

– Faremos um juramento, comprometendo-nos individualmente e


em grupo a não abandonarmos o plano, mas levá-lo a cabo.

Duzentos anjos desceram ao cume do monte Hermom, que deve


seu nome a esta precisa ocasião, pois os anjos haviam jurado
cumprir seu propósito sob pena de Herem/anátema. Sob a
liderança de vinte capitães eles se macularam com as filhas dos
homens, às quais ensinaram feitiços, encantos, o modo correto de
se cortar raízes e a eficácia das plantas. O resultado desses
casamentos mistos foi uma raça de gigantes de três mil varas1 de
altura, os quais consumiram os recursos dos homens. Quando
todas as reservas haviam se esgotado, e vendo que não podiam
obter mais nada deles, os gigantes voltaram-se contra os homens e
devoraram muitos deles, e o restante dos homens começou a
transgredir contra as aves, animais selvagens, répteis e peixes,
comendo sua carne e bebendo seu sangue.

A terra então protestou contra esses malfeitores, mas os anjos


decaídos continuaram a corromper a humanidade. Azazel ensinou
os homens a fazerem facas, armas, escudos e cotas de malha para
usarem em carnificinas. Mostrou-lhes os metais e como trabalhá-
los, bem como pulseiras e toda espécie de quinquilharias;
ensinou-os a usar ruge nos olhos e a embelezarem os cílios, e a se
enfeitarem com as jóias mais raras e preciosas e toda sorte de
tintas. O chefe dos anjos caídos, Shemhazai, instruiu-os a respeito
de exorcismos e da técnica de cortar raízes; Armaros ensinou-os a
conjurar feitiços; Barakel, a divinação pelas estrelas; Kawkabel, a
astrologia; Ezekil, a augurar através das nuvens; Arakiel, a ler os
sinais da terra; Samsawil, os sinais do sol; e Seriel, os sinais da lua.

Enquanto todas essas abominações corrompiam a terra, o piedoso


Enoque vivia num lugar secreto. Ninguém dentre os homens
conhecia seu local de residência, ou sabia o que havia acontecido

111
com ele, pois ele habitava com os anjos sentinelas e os santos.
Certa ocasião ele ouviu uma voz endereçada a ele:

– Enoque, você que é um escriba de integridade, vá até


os sentinelas do céu, que abandonaram o alto céu, o lugar de
eterna santidade, a fim de se contaminarem com mulheres,
fazendo o que homens fazem, tomando esposas para si e
entregando-se nos braços da destruição sobre a terra. Vá e
anuncie a eles que não encontrarão paz nem perdão; todas as
vezes que tiverem alegria em sua descendência eles verão a morte
violenta dos seus filhos, e suspirarão diante da ruína de suas
crianças. Orarão e suplicarão para sempre, mas jamais obterão
misericórdia ou paz.

Enoque foi até Azazel e os demais anjos caídos, a fim de anunciar a


condenação proferida contra eles. Ficaram todos apavorados;
tomados de tremor, imploraram a Enoque que preparasse para
eles uma petição e fosse lê-la para o Senhor do céu, pois eles não
podiam falar com Deus como antes, nem levantar os olhos para o
céu, por vergonha diante dos seus pecados.

Enoque fez o que eles pediam, e numa visão foi-lhe concedida a


resposta que ele deveria levar de volta aos anjos. Em sua visão
Enoque foi elevado ao céu sobre nuvens, e colocado diante do
trono de Deus. Deus disse:

– Vá e diga aos sentinelas do céu que o mandaram para interceder


por eles: “Na verdade eram vocês que deveria pedir em favor dos
homens, não homens em favor de vocês. O que levou vocês
renegaram os céus elevados, santos e eternos, e poluir-se com as
filhas dos homens, tomando-as como esposas, fazendo como as
raças da terra e gerando gigantes? Os gigantes gerados pela união
de seres de carne e seres espirituais serão chamados na terra de
espíritos malignos, e a terra será a habitação deles. Espíritos
malignos procederão de seus corpos, pois foram criados do alto, e
os santos sentinelas são seu princípio e sua origem; serão
espíritos malignos sobre a terra, e de espíritos malignos serão
chamados. Os espíritos do céu têm o céu por habitação, mas a
habitação dos espíritos da terra, nascidos sobre a terra, é a terra.
Os espíritos dos gigantes irão devorar, oprimir, atacar, guerrear e

112
causar destruição sobre a terra, e infligirão tormento. Não
consumirão nenhuma espécie de comida, tampouco terão sede, e
serão invisíveis. Esses espíritos se levantarão contra os filhos dos
homens e contra as mulheres, porque procederam delas. Desde os
dias do assassinato e da destruição e da morte dos gigantes,
momento em que os espíritos abandonarem a alma de sua carne, a
fim de destruírem sem incorrerem em julgamento – assim eles
destruirão até o dia em que seja consumada a grande consumação
do grande mundo”. Agora, quanto aos sentinelas que o enviaram
para interceder por eles, que residiam anteriormente no céu, diga
a eles: “Vocês estavam no céu, e embora as coisas ocultas não
tivesse ainda sido reveladas a vocês, vocês conhecem mistérios
sem valor, e na dureza do seu coração repassaram esses mistérios
para as mulheres, e através deles homens e mulheres ocasionam
muita maldade sobre a terra”. Diga portanto a eles: “Vocês não
tem paz!”

ENOQUE, GOVERNANTE E MESTRE


AS DEZ GERAÇÕES: Enoque, governante e mestre

Depois de viver por um longo tempo afastado dos homens,


Enoque ouviu certa ocasião um anjo que o chamava:

— Enoque, Enoque, prepare-se e abandone a casa e o lugar


secreto em que você tem se escondido, e assuma autoridade sobre
os homens, para ensinar-lhes os caminhos em que devem andar e
as obras que devem praticar a fim de viverem em conformidade
com Deus.

Enoque abandonou sua reclusão e foi até aos locais freqüentados


pelos homens, juntou-os ao redor de sim e instruiu-os na conduta
agradável a Deus. Mandou mensageiros a todos os lugares para
anunciar: “Vocês que desejam conhecer os caminhos de Deus e
uma conduta íntegra, venham até Enoque!”

Por causa disso um vasto número de pessoas congregou-se ao


redor dele, a fim de ouvirem a sabedoria que ele estava pronto a

113
ensinar e aprenderem da sua boca o que é certo e errado. Até
mesmo reis e príncipes, nada menos do que trinta deles, uniram-
se a Enoque e submeteram-se à sua autoridade, para serem
ensinados e guiados por ele da mesma forma que ele ensinava e
guiava os demais.

Dessa forma a paz reinou sobre o mundo durante os duzentos e


quarenta e três anos em que a influência de Enoque prevaleceu.

Ao final desse período, no ano em que Adão morreu e foi


enterrado com grandes honras por Sete, Enos, Enoque e
Matusalém, Enoque resolveu retirar-se novamente da convivência
dos homens e devotar-se exclusivamente ao serviço de Deus. Ele
porém recolheu-se gradualmente: no começo ele passava três dias
em oração e louvor a Deus, e no quarto dia voltava até seus
discípulos e oferecia-lhes instrução. Muitos anos se passaram
dessa forma: ele passou a vê-los uma vez por semana, depois uma
vez por mês e finalmente um vez por ano.

Os reis, príncipes e todos os outros que ansiavam por ver Enoque


e ouvir suas palavras não ousavam aproximar-se dele durante os
seus períodos de recolhimento. Tamanha era a majestade que
descia sobre seu rosto que eles não olhavam para ele, temendo
por suas vidas. Eles portanto decidiram que todos os homens
deveriam apresentar suas questões diante de Enoque no dia em
que ele aparecesse entre eles.

Era poderosa a a impressão deixada pelo ensino de Enoque sobre


os que o ouviam. Prostravam-se todos diante dele e exclamavam:

— Longa vida ao rei! Longa vida ao rei!

Certo dia, enquanto Enoque dava audiências a seus seguidores,


um anjo apareceu e lhe fez saber que Deus havia decidido
estabelecê-lo como rei sobre todos os anjos da terra, já que até
aquele momento ele havia reinado sobre homens. Enoque
convocou todos os habitantes da terra e disse-lhes assim:

— Fui chamado para subir ao ceu, e não sei o dia em que deverei
ir para lá. Irei portanto ensiná-los sabedoria e integridade até a
hora de partir.

114
Mais alguns dias Enoque passou entre os homens, e durante todo
o tempo que lhe restou deu-lhes instrução referente à sabedoria,
ao conhecimento, a uma conduta de temor a Deus e à devoção, e
estabeleceu lei e ordem para regulamentar as relações humanas.
Então os que estavam reunidos ao seu redor viram um gigantesco
corcel descer do céu, e falaram dele a Enoque, que respondeu:

— Este cavalo é para mim, pois chegou o dia e a hora de eu deixá-


los para nunca mais ser visto.

E assim foi. O corcel aproximou-se de Enoque e ele montou, sem


cessar ao mesmo tempo de instruir o povo, exortando-os e
conclamando a que servissem a Deus e andassem em seus
caminhos. Oitocentas mil pessoas seguiram-no ao longo de um dia
inteiro; porém no segundo dia Enoque insistiu que seu séquito
desse meia-volta:

— Vão para casa, para que a morte não lhes sobrevenha por me
seguirem mais adiante.

A maioria deu ouvidos às suas palavras e deu meia-volta, mas


alguns permaneceram com ele por seis dias, mesmo depois dele os
ter advertido a voltarem para não morrerem. No sexto dia da
jornada ele disse aos que o acompanhavam:

— Vão para casa, por que amanhã subirei ao céu, e qualquer um


que estiver perto de mim morrerá.

Apesar disso alguns de seus companheiros permanecerem ao lado


dele:

— Para onde você for nós iremos. Pelo Deus vivo, apenas a morte
nos separará.

No sétimo dia Enoque foi levado ao céu numa carruagem de fogo


puxada por cavalos flamejantes. No dia seguinte os reis que
haviam dado meia-volta a tempo mandaram mensageiros para
inquirir o destino dos homens que haviam se recusado a separar-
se de Enoque, pois tinham anotado quantos eram. No local a partir
do qual Enoque havia ascendido eles encontraram neve e enormes
pedras de granizo e, quando cavaram para procurar, acharam os

115
corpos de todos que haviam ficado para trás com Enoque. Apenas
Enoque não estava entre eles: estava no alto, no céu.

A ASCENSÃO DE ENOQUE
AS DEZ GERAÇÕES: A ascensão de Enoque

Essa não foi a primeira vez que Enoque esteve no céu. Uma vez
antes disso, enquanto vivia entre os homens, foi-lhe permitido ver
todas as coisas que há na terra e no céu. Numa hora em que ele
estava dormindo um pesar profundo desceu-lhe sobre o coração;
em seu sonho ele chorou, sem saber o que o pesar significava, nem
tampouco o que lhe sobreviria. Então lhe apareceram dois homens
muito altos; seus rostos eram como o sol, seus olhos como
lâmpadas incandescentes, e fogo brotava de seus lábios; suas asas
eram mais brilhantes do que ouro, suas mãos mais brancas do que
a neve. Eles puseram-se em pé diante da cama de Enoque e
chamaram-no pelo nome. Enoque despertou do sono e apressou-
se a prestar-lhes reverência, aterrorizado. Esses homens então lhe
disseram:

— Ânimo, Enoque, não tenha medo. O eterno Deus mandou-nos


até você, e hoje mesmo você subirá ao céu conosco. Conte aos seus
filhos e criados, e diga que não o procurem até que o Sehor o traga
de volta.

Enoque fez como lhe foi dito, e depois que ele havia falado com
seus filhos, instruindo-os a não darem as costas para Deus e a
guardarem os julgamentos dele, esses dois homens o chamaram,
tomaram-no em suas asas e colocaram-no sobre as nuvens, que
passaram a deslocar-se cada vez mais para cima, até depositá-lo
no primeiro céu. Aqui foram mostrados a ele os duzentos anjos
que governam as estrelas, bem como seu serviço celestial. Aqui ele
viu também os depósitos de neve e de gelo, de nuvens e de
orvalho.

116
«Recebemos ordens de acompanhá-lo
até este ponto.»
Dali eles o levaram até o segundo céu, onde Enoque viu os anjos
caídos em prisão, que não obedeceram aos mandamentos de Deus,
tendo ouvido o conselho de sua própria vontade. Os anjos caídos
lhe disseram:

— Ah, homem de Deus! Rogue por nós ao Senhor!

Ele respondeu:

— Quem sou eu, homem mortal, para rogar por anjos? Quem sabe
para onde estou indo, ou o que me espera?

Eles então levaram-no ao terceiro céu, onde foi-lhe mostrado o


Paraíso, com todas as árvores de belíssimas cores e seus frutos
maduros e saborosos, bem como toda espécie de alimento que
produziam, brotando com delicioso aroma. No meio do Paraíso ele
viu a árvore da vida, no lugar em que Deus repousa quando vem
ao Paraíso. Essa árvore, em sua excelência e sua doce fragrância,
não pode ser descrita; é mais bela do que qualquer outra coisa
criada, e em todos os seus lados é semelhante a ouro e a carmim,
sendo transparente como o fogo e cobrindo todas as coisas. De
suas raízes no jardim brotam quatro fontes, das quais fluem, leite,
mel, óleo e vinho; suas correntes descem até o Paraíso do Éden,
que se localiza na fronteira entre a região terrena da
corruptibilidade e a região celeste da incorruptibilidade, e daí
contornam a terra. Ele viu também os trezentos anjos que cuidam
do jardim, e com vozes incessantes e abençoado cântico servem ao
Senhor todos os dias. Os anjos que conduziam Enoque explicaram-
lhe que este lugar está preparado para os justos, enquanto que o
terrível lugar de tortura, preparado para os pecadores, encontra-
se nas regiões setentrionais do terceiro céu. Ele viu toda sorte de
torturas e escuridão impenetrável, e não há ali luz alguma, exceto
um fogo sombrio que queima incessantemente. Aquele lugar tem
fogo por todos os lados, e por todos os lados frio e gelo, pelo que
tanto queima quanto congela. E os anjos, terríveis e sem piedade,
empunham armas violentas, e sua tortura é sem clemência.

117
Os anjos levaram-no então ao quarto céu, e mostraram-lhe todas
as suas entradas e saídas, bem como todos os raios de luz do sol e
da lua. Ele viu as quinze miríades de anjos que saem com o sol e
servem-no durante o dia, e os mil anjos que o servem durante a
noite. Cada anjo tem seis asas, e segue adiante da carruagem do
sol, enquanto cem anjos mantém o sol aquecido e acendem-no. Viu
também as maravilhosas e estranhas criaturas chamadas fênices e
chalkidri, que cuidam da carruagem do sol e o acompanham,
levando calor e orvalho. Mostraram-lhe também os seis portões a
leste do quarto céu, por onde o sol parte e os seis portões a oeste
por onde ele se recolhe, bem como os portões pelos quais sai a lua
e aqueles pelos quais ela retorna. No meio do quarto céu ele viu
um exército armado, servindo ao Senhor com címbalos e orgãos e
vozes que jamais cessam.

No quinto céu Enoque viu as inúmeras hostes dos anjos chamados


Grigori. Sua aparência era semelhante à dos homens, seu tamanho
maior do que os gigantes, suas feições macilentas, seus lábios
silentes. Quando perguntou quem eles eram, os anjos
responderam:

— Esses são os Grigori, cujo príncipe Salamiel rejeitou o santo


Senhor.

Enoque então disse aos Grigori:

— Por que vocês ficam parados, irmãos, e não servem na presença


do Senhor? Por que não desempenham suas tarefas diante do
Senhor, de modo a não irá-lo até o fim?

Eles ouviram aquela repreensão, e quando as trombetas soaram


juntas, em sonoro clamor, os Grigori começaram também a cantar
em uma só voz, e suas vozes chegaram à a presença do Senhor em
tristeza e ternura.

No sétimo céu Enoque viu os sete grupos de anjos que organizam


e estudam as revoluções das estrelas e as mudanças da lua e a
revolução do sol, e supervisionam as boas e más condições do
mundo. Organizam também ensinos e instruções e falares doces e
cântico e todo tipo de louvor glorioso. Eles mantém em sujeição
todas as coisas vivas, tanto no céu quanto na terra. Em meio a eles

118
há sete fênices e sete querubins e sete criaturas aladas, cantando
numa só voz.

Quando chegou ao sétimo céu e viu os exércitos flamejantes dos


grandes arcanjos e forças incorpóreas e senhorios e principados e
autoridades, Enoque ficou aterrorizado, tremendo de pavor.
Aqueles que o conduziam então tomaram-no e o colocaram no
meio deles, e disseram:

— Ânimo, Enoque. Não tenha medo.

E mostraram-no de longe o Senhor, assentado em seu trono


elevado, enquanto todos os exércitos celestiais, divididos em dez
gradações, tendo se aproximado, postaram-se de pé sobre os dez
degraus de acordo com a sua graduação e prestaram reverência
ao Senhor. Em seguida prosseguiram cada um para o seu posto em
meio a celebração e júbilo e luz sem limites, cantando cânticos em
voz suave e gentil e servindo-o gloriosamente. Dia e noite não se
afastam nem partem, permanecendo diante da face do Senhor,
efetuando sua vontade, querubins e serafins ao redor do seu
trono.

«Poste-se diante da minha face para


sempre.»
E as criaturas de seis asas cobrem por inteiro o seu trono,
cantando em voz suave diante da face do Senhor:

— Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos; o céu e a terra


estão cheios da sua glória.

Depois que Enoque havia visto tudo isso os anjos que o conduziam
lhe disseram:

— Enoque, recebemos ordens de acompanhá-lo até este ponto.

Eles então partiram, e Enoque não os viu mais. Permaneceu na


extremidade do sétimo céu, tomado de terror, dizendo a si
mesmo:

— Ai de mim! O que foi me sobrevir!

119
Mas então veio Gabriel e disse a ele:

— Não tenha medo, levante-se e venha comigo, e permaneça


diante da face do Senhor para sempre.

Enoque respondeu:

— Ah, meu senhor, meu espírito me abandonou em temor e


tremor. Chame de volta os homens que me trouxeram a este lugar!
Eu confiei neles, e com eles eu me postaria diante da face do
Senhor.

Gabriel então levou-o agilmente, como uma folha carregada pelo


vento, e colocou-o diante da face do Senhor.

Enoque caiu de joelhos e adorou ao Senhor, que disse a ele:

— Enoque, não tenha medo. Levante-se e poste-se diante da


minha face para sempre.

E Miguel levantou-o do lugar, e ao comando do Senhor removeu


dele suas roupas terrenas, ungiu-o com o óleo santo e o vestiu;
quando Enoque olhou para si mesmo, estava semelhante a um dos
gloriosos de Deus, e então abandonaram-no o temor e o tremor.

Deus chamou um de seus arcanjos que era mais sábio que todos os
outros, e colocara por escrito todos os feitos do Senhor, e disse a
ele:

— Traga os livros do meu almoxarifado, dê uma pena a Enoque e


interprete os livros para ele.

O anjo fez como lhe fora ordenado, e instruiu Enoque por trinta
dias e trinta noites, e seus lábios não cessaram de falar, enquanto
Enoque escrevia todas as coisas a respeito do céu e da terra, de
anjos e homens, e tudo aquilo sobre o que é próprio ser instruído.
Ele também escreveu sobre as almas dos homens, aquelas que não
chegam a nascer, e sobre os lugares preparados para elas para
sempre. Copiou tudo com precisão, e escreveu trezentos e
sessenta e seis livros.

120
No oitavo milênio não haverá anos, nem
meses, nem semanas, nem dias, nem
horas.
Depois que Enoque havia recebido todas as instruções do arcanjo,
Deus revelou-lhe grandes segredos, cujo teor os próprios anjos
desconhecem. Contou-lhe de que forma, a partir da mais inferior
escuridão, o visível e o invisível haviam sido criados; como ele
formara o céu, a luz, a água e a terra; narrou também a queda de
Satanás e a criação e o pecado de Adão, e revelou-lhe ainda que a
duração do mundo será de sete mil anos, e que o oitavo milênio
será ocasião em que não haverá contagem de tempo: nenhum fim,
nem anos, nem meses, nem semanas, nem dias, nem horas.

O Senhor concluiu essa revelação a Enoque com as seguintes


palavras:

— Entrego você agora a Samuil e Raguil, que trouxeram-no aqui.


Vá com eles para a terra, e conte a seus filhos as coisas que eu
disse a você, bem como o que testemunhou do céu mais inferior
até o meu trono. Dê-lhes obras escritas por você, para que as
leiam, e distribuam os livros aos filhos dos filhos deles, de geração
em geração e de uma nação a outra. E eu darei a você meu
mensageiro Miguel para [guardar] os seus escritos e os escritos de
seus pais, Adão, Sete, Enos, Quenan, Malalel e seu pai Jarede. Não
os requererei até a última era, pois já instrui meus dois anjos,
Ariuk e Mariuk, a quem coloquei na terra como seus guardiães, e
ordenei que os guardem, a fim de que o relato do que farei na sua
família não se perca no dilúvio que está por vir. Pois por causa da
perversidade e da maldade dos homens eu trarei um dilúvio sobre
a terra, e destruirei a todos, mas pouparei um homem íntegro da
sua descendência juntamente com todos na sua casa, que agirão
em conformidade com a minha vontade. Da descendência desses
eu levantarei uma geração numerosa, e por ocasião da extinção
dessa família eu mostrarei a eles os livros escritos por você e pelo
seu pai, e os guardiães desses livros sobre a terra os mostrarão
aos homens íntegros e aos que me agradam. Esses os transmitirão
à geração seguinte e esses, tendo-os lido, serão glorificados por
fim mais do que antes.

121
Enoque foi então mandado de volta à terra para permanecer ali
por trinta dias instruindo seus filhos. Porém antes que ele saísse
do céu Deus mandou-lhe um anjo cuja aparência era como neve,
cujas mãos eram como gelo. Enoque olhou para ele, e seu rosto
enregelou-se diante do fato de que homens pudessem suportar a
visão daquele homem.

Os anjos que haviam-no levado ao céu colocaram-no na sua cama,


no lugar em que seu filho Matusalém o aguardava dia e noite.

Enoque reuniu seus filhos e todos na sua casa, e instruiu-os


fielmente a respeito de todas as coisas que havia visto, ouvido e
escrito, e deu seus livros a seus filhos, para que os guardassem e
lessem, insistindo que não ocultassem os livros, mas mostrassem-
nos a todos que tivessem desejo de conhecimento.

Quando se completaram os trinta dias o Senhor enviou escuridão


sobre a terra, e uma penumbra ocultou os homens que estavam
com Enoque. Os anjos apressaram-se em tomar Enoque e
carregaram-no ao céu mais elevado, onde o Senhor o recebeu e
colocou-o diante de sua face; a escuridão então abandonou a terra,
e houve luz. As pessoas voltaram a ver e não compreenderam que
Enoque havia sido tomado, e glorificaram a Deus.

Enoque nasceu no sexto dia do mês de Sivan, e foi levado ao céu


no mesmo mês, no mesmo dia e na mesma hora em que nasceu.
Matusalém apressou-se juntamente com todos os seus irmãos,
filhos de Enoque, e ergueu um altar no lugar chamado Acuzã, de
onde Enoque havia sido tomado para o céu. Os anciãos do povo
vieram para a festividade e trouxeram presentes para os filhos de
Enoque, e fizeram grande celebração, festejo e júbilo por três dias,
louvando a Deus por ter concedido tamanho sinal através de
Enoque, que havia encontrado favor juntamente com eles.

O TRASLADO DE ENOQUE
AS DEZ GERAÇÕES: O traslado de Enoque

122
A pecaminosidade dos homens foi a razão pela qual Enoque foi
trasladado ao céu; assim disse o próprio Enoque ao rabi Ishmael.
Depois que a geração do dilúvio transgrediu e disse a Deus “Deixe-
nos em paz, porque não queremos conhecer os seus caminhos”,
Enoque foi carregado ao céu, para servir ali como testemunha de
que Deus não era um Deus cruel, a despeito da destruição
decretada sobre todas as coisas vivas da terra.

Quando Enoque, sob a condução do anjo ‘Anpiel, foi carregado da


terra para o céu, os seres santos, os ofanins, os serafins, os
querubins, todos os que movem o trono de Deus, bem como os
espíritos ministrantes cuja substância é fogo consumidor — todos
esses, à distância de seiscentos e cinqüenta milhões e
trezentas parasangas, perceberam a presença de um ser humano,
e exclamaram:

— De onde vem esse odor de um nascido de mulher? Como pode


ele entrar no mais elevado dos anjos reluzentes de fogo?

Porém Deus respondeu:

— Ah, meus servos e exércitos, vocês, meus querubins, ofanins e


serafins, não seja isto ofensa para vocês, pois todos os filhos dos
homens rejeitaram a mim e à minha potente autoridade e
prestaram reverência aos ídolos, pelo que transferi a Shekiná da
terra para o céu. Porém esse homem, Enoque, é o eleito dos
homens. Há nele mais fé, justiça e integridade do que em todos os
outros; ele é a única recompensa que extraí do mundo terrestre.

Antes que Deus pudesse ser admitido no serviço junto ao trono


divino os portões da sabedoria foram abertos para ele, bem como
os portões da compreensão, do discernimento, da vida, da paz, da
Shekiná, da força e do poder, da potência, da amabilidade, da
graça, da humildade e do temor ao pecado.

Equipado por Deus com sabedoria, sagacidade, discernimento,


conhecimento, erudição, compaixão, amor, bondade, graça,
humildade, força, poder, potência, esplendor, beleza, harmonia de
proporções e todas as outras qualidade de excelência em medida
extraordinária, mais do que já foi concedido a qualquer ser
celestial, Enoque recebeu ainda muitos milhares de bençãos de

123
Deus, e sua altura e extensão tornaram-se idênticos à altura e à
extensão do mundo; trinta e seis asas foram anexadas ao seu
corpo, à direita e à esquerda, cada uma delas grande como o
mundo, e lhe foram concedidos trezentos e sessenta e cinco mil
olhos, cada um deles brilhante como o sol.

Um trono magnífico foi erguido para ele ao lado dos portões do


sétimo palácio celestial, e um arauto proclamou em todo o céu a
respeito de Enoque que dali em diante ele deveria ser chamado de
Metatron nas regiões celestes.

— Nomeio meu servo Metatron príncipe e líder sobre todos os


príncipes do meu domínio, com única exceção dos oito príncipes
augustos e exaltados que levam meu nome. Qualquer anjo que
tiver um pedido a me propor deve apresentar-se diante de
Metatron, e aquilo que a meu comando ele ordenar vocês devem
observar e colocar em prática, pois o príncipe da sabedoria e o
príncipe do discernimento estão a serviço dele, e irão lhe revelar
as ciências dos celestiais e dos terrestres, o conhecimento da
ordem presente do mundo e o conhecimento da ordem futura do
mundo. Além disso, faço-o guardião dos tesouros dos palácios no
céu ‘Arabot, e dos tesouros de vida que estão no mais alto céu.

Pelo amor que nutria por Enoque, Deus trajou-o com uma roupa
magnífica, à qual estavam presos todos os tipos de luminárias
existentes, e uma coroa reluzente com 49 pedras preciosas, cujo
esplendor penetrava todas as partes dos sete céus e os quatro
cantos da terra. Na presença da família celestial Deus colocou essa
coroa sobre a cabeça de Enoque, chamando-o de “pequeno
Senhor”. [A coroa] traz também as letras através das quais o céu e
a terra foram criados, e os rios e mares, montanhas e vales,
planetas e constelações, relâmpago e trovão, neve e granizo,
tempestade e furacão — estas e também todas as coisas
necessárias no mundo, bem como os mistérios da criação.

Mesmo os príncipes do céu tremem quando vêem Metatron, e


prostram-se diante dele; são tomados de assombro diante de sua
magnificência e majestade, e do esplendor e da beleza que
irradiam dele. Mesmo Samael, o maior entre eles, mesmo Gabriel,
o anjo do fogo, Bardiel, o anjo do relâmpagao, Za’miel, o anjo do

124
furacão, Zakkiel, o anjo da tempestade, Sui’el, o anjo do terremoto,
Ra’shiel, o anjo do redemoinho, Shalgiel, o anjo da neve, Matriel, o
anjo da chuva, Shamshiel, o anjo do dia, Leliel, o anjo da noite,
Galgiel, o anjo do sistema solar, Ofaniel, o anjo da roda da lua,
Kobabiel, o anjo das estrelas e Rahtiel, o anjo das constelações.

Quando Enoque foi transformado em Metatron seu corpo tornou-


se fogo celestial — sua carne tornou-se chama, suas veias fogo,
seus ossos brasas ardentes, a luz de seus olhos claridade celestial,
seus glóbulos oculares tochas de fogo, seu cabelo flama reluzente,
todos os seus membros e orgãos faíscas ardentes, e sua
constituição um fogo consumidor. À sua direita cintilavam chamas
de fogo, à sua esquerda ardiam tochas de fogo, e por todos os
lados ele era cingido por tempestade e redemoinho, por furacão e
soar de trovões.

MATUSALÉM
AS DEZ GERAÇÕES: Matusalém

Depois do traslado de Enoque, Matusalém foi proclamado


governante da terra por todos os reis. Ele seguiu nas pegadas do
pai, ensinando a verdade, o conhecimento e o temor de Deus aos
filhos dos homens durante toda a sua vida, sem desviar-se do
caminho da retidão nem para a esquerda nem para a direita.

Matusalém livrou o mundo de milhares de demônios, a


posteridade que Adão havia gerado com Lilith, a mais demoníaca
entre os demônios-fêmea. Esses demônios e espíritos malignos
buscavam ferir e mesmo matar qualquer homem que
encontrassem, até que Matusalém apareceu suplicando pela
misericórdia de Deus.

125
Ele passou três dias em jejum, depois do que Deus deu a ele
permissão de escrever o seu Nome Inefável numa espada, com a
qual matou noventa e quatro miríades de demônios num unico
minuto — até que Agrimus, o primogênito dentre eles, veio até
Matusalém implorando que ele parasse, ao mesmo tempo em que
lhe entregou os nomes dos demônios e diabretes. Assim
Matusalém prendeu os reis deles em cadeias de ferro, enquanto
que os restantes fugiram e esconderam-se nas câmaras e recessos
mais interiores do oceano. E foi por causa dessa maravilhosa
espada, por meio da qual os demônios foram mortos, é que ele
recebeu o nome de Matusalém/homem da lança.

Era homem tão piedoso que compunha duzentas e trinta


parábolas em louvor a Deus para cada palavra que proferia.
Quando ele morreu as pessoas ouviram uma grande comoção no
céu, e viram novecentas fileiras de lamentadores, correspondendo
às novecentas ordens da Mishnáque ele havia estudado, e lágrimas
rolaram dos seres santos sobre o lugar em que ele havia morrido.
Vendo a dor dos celestiais, as pessoas na terra também
lamentaram o fim de Matusalém, e Deus por essa razão os
recompensou, acrescentando sete dias ao tempo de graça que
havia ordenado antes de trazer a destruição sobre a terra por
meio de um dilúvio de água.

O NASCIMENTO DE NOÉ
NOÉ: O nascimento de Noé

Matusalém tomou uma esposa para seu filho Lameque, e ela deu à
luz um filho. O corpo do bebê era branco como a neve e vermelho
como uma rosa em flor; o cabelo da sua cabeça e seus compridos
cachos eram brancos como a lã, e seus olhos como raios de sol.
Quando abria os olhos ele iluminava toda a casa, tal qual o sol, e
toda a casa ficava inteiramente repleta de luz.

Assim que foi tomado da mão da parteira ele abriu sua boca em
louvor ao Senhor da integridade. Seu pai, Lameque, ficou com
medo dele e fugiu. Foi até seu próprio pai, Matusalém, e disse:

126
— Gerei um filho estranho. Ele não é como um ser humano, mas se
parece com os filhos dos anjos do céu. Sua natureza é diferente;
ele não é como nós, seus olhos são como raios de sol e suas feições
são gloriosas. A mim parece que ele não foi gerado por mim, mas
por anjos, e temo que nos seus dias alguma maravilha recaia sobre
a terra. E agora, meu pai, estou aqui para pedir e implorar que o
senhor vá até Enoque, nosso pai, e descubra com ele a verdade,
pois ele reside entre os anjos.

Quando ouviu as palavras do filho Matusalém foi até Enoque, nos


confins da terra, e chamou-o em voz alta. Enoque ouviu a sua voz e
apareceu diante dele, e perguntou a razão de sua vinda.
Matusalém contou-lhe a causa de sua ansiedade, e pediu que a
verdade lhe fosse revelada.

Enoque respondeu, dizendo:

— O Senhor fará uma coisa nova sobre a terra. Sobrevirá à terra


uma grande destruição e um dilúvio de um ano. Esse filho que lhe
foi concedido será poupado sobre a terra, e os três filhos dele
serão salvos com ele, quando morrer toda a humanidade sobre a
terra. Haverá uma grande punição sobre a terra, e a terra será
purificada de toda impureza. Agora faça saber a seu filho Lameque
que o menino que nasceu é de fato seu filho, e que ele deve ser
chamado de Noé/descanso, pois ele será deixado [ileso] em
beneficio de vocês. Ele e os filhos dele serão salvos da destruição
que recairá sobre a terra.

Depois de ouvir de seu pai essas palavras, que lhe revelara todas
as coisas ocultas, Matusalém voltou para casa e deu ao menino o
nome de Noé, pois daria à terra motivo de alegria em
compensação por toda a destruição.

Apenas seu avô, Matusalém, chamava-o de Noé; seu pai e todos os


demais chamavam-no de Menaém. Sua geração era obcecada por
magia, e Matusalém temia que seu neto fosse enfeitiçado caso seu
verdadeiro nome fosse conhecido, pelo que o manteve em
segredo. Menaém, “Aquele Que Conforta”, cabia-lhe tão bem
quanto Noé; indicava que ele seria um consolador, porém apenas
se os malfeitores do seu tempo se arrependessem de seus delitos.

127
Logo na ocasião do seu nascimento sentiu-se que ele traria
conforto e libertação. Quando o Senhor lhe dissera “Maldito é o
solo por sua causa”, Adão havia perguntado “Por quanto tempo?”,
e Deus respondera “Até que nasça um menino conformado de tal
forma que não será necessário executar nele o rito da
circuncisão”. Isso cumpriu-se em Noé, que foi circuncidado desde
o ventre de sua mãe.

Noé mal havia chegado ao mundo e percebeu-se uma notável


mudança. Desde de que o solo havia sido amaldiçoado por causa
do pecado de Adão acontecia que quando se semeava trigo o que
brotava e crescia era aveia. Isso parou de acontecer com o
surgimento de Noé, e a terra passou a produzir os frutos que se
plantava nela. Além disso foi Noé que, quando chegou à
maturidade, inventou o arado, a foice, a enxada e outros
implementos usados no cultivo do solo. Antes dele os homens
lavravam a terra com suas próprias mãos.

Houve outro sinal para indicar que o filho nascido de Lameque


estava destinado a desempenhar um papel extraordinário. Ao
criar Adão Deus dera a ele o domínio sobre todas as coisas: a vaca
obedecia o lavrador e o sulco do arado deixava-se abrir com
facilidade. Porém com a queda de Adão as coisas rebelaram-se
contra ele; a vaca passou a recusar obediência ao lavrador, e o
sulco do arado tornou-se reticente. Noé nasceu e tudo voltou a ser
como era antes da queda do homem.

Antes do nascimento de Noé o mar costumava transgredir os seus


limites duas vezes por dia, de manhã e à noitinha, inundando a
terra a ponto de molestar as sepulturas. Depois do seu nascimento
o mar passou a restringir-se aos seus limites. E a fome que afligia
o mundo na época de Lameque, a segunda das dez grandes fomes
determinadas a lhe sobrevir, cessou sua devastação com o
nascimento de Noé.

A PUNIÇÃO DOS ANJOS CAÍDOS


NOÉ: A punição dos anjos caídos

128
Quando atingiu a maturidade Noé seguiu os passos de seu avô
Matusalém, enquanto todos os outros homens voltaram-se contra
esse piedoso rei. Longe de obedecerem os seus preceitos,
perseguiram a inclinação maligna de seus corações e perpetraram
toda sorte de feitos abomináveis.

Em grande parte foram os anjos caídos e sua posteridade de


gigantes que ocasionaram a depravação da humanidade. O sangue
derramado pelos gigantes clamava da terra até o céu, e os quatro
arcanjos acusaram os anjos caídos e seus filhos diante de Deus,
pelo que ele deu-lhes uma série de ordens. Uriel foi enviado a Noé
para anunciar que a terra seria destruída por um dilúvio, e ensiná-
lo como salvar sua própria vida. A Rafael foi dito que acorrentasse
o anjo caído Azazel, arremessasse-o num poço com pedras
pontiagudas e perfurantes no deserto de Dudael, e cobrisse-o de
trevas, para que assim permanecesse até o grande dia do
julgamento, quando seria jogado num poço ardente do inferno, e a
terra seria curada da corrupção que ele havia intentado contra ela.
Gabriel foi encarregado de agir contra os ilegítimos e réprobos, os
filhos que os anjos haviam gerado com as filhas dos homens,
precipitando-os em conflitos mortais uns contra os outros. A
descendência de Shemhazai foi colocada nas mãos de Miguel, que
levou-os em primeiro lugar a testemunharem a morte de seus
filhos em combate sangrento uns contra os outros, e em seguida
amarrou-os e fixou-os debaixo das montanhas da terra. onde
permanecerão por setenta gerações, até o dia do julgamento,
quando serão carregados dali ao poço ardente do inferno.

A queda de Azazel e de Shemhazai aconteceu da seguinte forma:


quando a geração do dilúvio começou a praticar idolatria Deus
ficou profundamente entristecido. Os dois anjos, Shemhazai e
Azazel, então levantaram-se e disseram:

— Ó, Senhor do mundo! Aconteceu o que foi previsto por ocasião


da criação do mundo e do homem: “Que é o homem, para que te
lembres dele?”

E Deus disse:

— E o que será do mundo sem o homem?

129
Responderam os anjos:

— Ocuparemo-nos nós dele.

E Deus disse:

— Sei muito bem disso, e sei que se habitassem sobre a terra a


inclinação maligna tomaria conta de vocês, e vocês seriam mais
perversos ainda do que os homens.

Os anjos suplicaram:

— Dê-nos permissão de habitar entre os homens, e o senhor verá


que honraremos o seu nome.

Deus concedeu o seu pedido, dizendo:

— Desçam e habitem entre os homens.

Quando chegaram à terra e contemplaram a beleza e a graça das


filhas dos homens os anjos não conseguiram conter sua paixão.
Shemhazai viu uma moça chamada Istehar e perdeu por ela o
coração. Ela prometeu que se entregaria a ele depois que ele lhe
ensinasse o Nome Inefável, por meio do qual ele se alçava até o
céu. Ele concordou. Porém assim que tomou conhecimento do
Nome ela o pronunciou, e ascendeu ao céu ela mesma ao céu, sem
cumprir sua promessa ao anjo. E Deus disse:

— Por ter-se mantida longe do pecado, darei a ela um lugar entre


as sete estrelas, para que os homens nunca a esqueçam.

E ela foi colocada na constelação das Plêiades.

Shemhazai e Azazel, no entanto, não abandonaram a idéia de


entrar em alianças com as filhas do homem, e o primeiro teve dois
filhos. Azazel começou a projetar os adereços e os ornamentos
através dos quais as mulheres seduzem os homens. Diante disso
Deus mandou Metraton dizer a Shemhazai que tinha resolvido
destruir o mundo e provocar um dilúvio. O anjo caído começou
então a chorar o destino do mundo e de seus dois filhos. Se o
mundo viesse abaixo o que eles iriam comer, eles que careciam
diariamente de mil camelos, mil cavalos e mil novilhos?

130
Os dois filhos de Shemhazai, chamados Hiwwa e Hiyya, tiveram
sonhos. Um deles viu uma grande pedra coberta de terra, e a terra
estava toda marcada com linha após linha de escrita. Um anjo
então veio, e com sua faca obliterou todas as linhas, deixando
sobre a terra apenas quatro letras. O outro filho viu uma alameda
aprazível plantada com toda sorte de árvores. Mas os anjos vieram
trazendo machados e derrubaram as árvores, deixando uma única
árvore com três de seus galhos.

Quando acordaram, Hiwwa e Hiyya foram até seu pai, que


interpretou-lhes os sonhos:

— Deus trará um dilúvio, e ninguém escapará com vida a não ser


Noé e seus filhos.

Quando ouviram isso os dois começaram a gritar e chorar, mas


seu pai confortou-os:

— Calma, calma, não se aflijam. Todas as vezes que os homens


cortarem ou erguerem pedras, ou lançarem embarcações, os
nomes de vocês será invocados: Hiwwa! Hiyya!

Esta profecia os aplacou.

Shemhazai então fez penitência. Posicionou-se suspenso entre o


céu e a terra, e nesta posição de pecador penitente ele paira até
hoje. Azazel, no entanto, persistiu obstinadamente em seu pecado
de desencaminhar a humanidade através de atrativos sensuais.
Por essa razão dois bodes eram sacrificados no Templo no Dia do
Perdão, um por Deus, para que perdoasse os pecados de Israel, o
outro por Azazel1, para que levasse os pecados de Israel.

Ao contrário de Istehar, a donzela piedosa, Naamah, a atraente


irmã de Tubal-Caim, desencaminhou os anjos com sua beleza, e da
sua união com Shamdon nasceu o demônio Asmodeu. Ela era
despudorada como todos os descendentes de Caim, e como eles
propensa a indulgências bestiais.

As mulheres e os homens cainitas tinham o costume de andarem


nus em todo lugar, entregando-se a todo tipo concebível de prática
libidinosa. Tais foram as mulheres cuja beleza e charme sensual

131
tentaram os anjos para longe do caminho da virtude. Os anjos, por
outro lado, mal haviam-se rebelado contra Deus e descido à terra
quando perderam suas qualidades transcendentais, sendo
investidos de corpos sublunares, de modo que a união com as
filhas dos homens tornou-se possível.

O fruto dessas alianças entre os anjos e as mulheres cainitas foram


os gigantes, conhecidos por sua força e pecaminosidade; como
indica o próprio nome que receberam, Emim/aterrorizantes, os
gigantes inspiravam temor. Tiveram além desse muitos outros
nomes. Às vezes eram chamados Refaim/fantasmas, porque
bastava olhar para eles para enfraquecer o coração; ou eram
chamados simplesmente de Gibborim/gigantes, porque eram tão
enormes que suas coxas mediam dezoito varas; ou pelo nome
Zamzummin, porque eram grandes mestres da guerra; ou pelo
nome Anakim/pescoçudos, porque tocavam o sol com seus
pescoços; ou pelo nome Ivim, porque, como a serpente, sabiam
julgar as qualidades do solo; ou, finalmente, pelo nome
Nefilim/caídos, porque, ao ocasionarem a queda do mundo, eles
mesmos caíram.

A GERAÇÃO DO DILÚVIO
NOÉ: A geração do dilúvio

Enquanto os descendentes de Caim assemelhavam-se a seu


ancestral em sua depravação e pecaminosidade, os descendentes
de Sete levavam uma vida piedosa e ordeira, sendo que a
diferença entre as duas linhagens refletia-se em seus locais de
residência. A família de Sete fixara-se nas montanhas próximas ao
Paraíso, enquanto a família de Caim residia no campo de Damasco,
o lugar onde Abel foi assassinado por Caim.

Infelizmente, na época de Matusalém, logo após a morte de Adão,


a família de Sete corrompeu-se à maneira dos cainitas. As duas
linhagens uniram-se uma à outra a fim de cometerem toda espécie
de perversidade. O resultado dos casamentos entre elas foram os
Nephilim, cujos pecados ocasionaram o dilúvio sobre o mundo.

132
Em sua arrogância esses alegavam ter o mesmo pedigree da
posteridade de Sete, e comparavam-se a príncipes e homens de
ascendência nobre.

A licenciosidade desta geração deveu-se até certo ponto às


condições favoráveis de que desfrutava a humanidade antes do
dilúvio. Não conheciam trabalho árduo nem preocupação, e como
resultado de sua extraordinária prosperidade tornaram-se
insolentes; em sua arrogância, voltaram-se contra Deus.

Uma única semeadura produzia uma colheita suficiente para


suprir as necessidades de quarenta anos, e por meios mágicos as
pessoas conseguiam fazer com que os próprios sol e lua se
dispusessem ao seu serviço.

A criação de filhos não lhes dava qualquer trabalho. Nasciam


depois de uns poucos dias de gravidez, e imediatamente após o
nascimento sabiam andar e falar; ajudavam eles mesmos a mãe a
cortar o cordão umbilical. Certa vez um recém-nascido, correndo
para buscar uma luz para que sua mãe pudesse cortar o cordão
umbilical, encontrou o chefe dos demônios, e teve início uma
altercação entre os dois. Ouviu-se de repente o canto do galo, e o
demônio fugiu depressa, gritando para o bebê:

— Vá contar à sua mãe que se não fosse o canto do galo eu teria


matado você!

O bebê retrucou:

— Vá contar à sua mãe que se não fosse meu cordão umbilical eu


teria matado você!

Foi essa vida sem preocupações que deu a eles espaço e tempo
livre para suas infâmias. Por algum tempo Deus, em sua bondade
paciente, foi tolerante com as perversidades dos homens, mas sua
tolerância terminou quando as pessoas começaram a viver vidas
devassas — pois “Deus é paciente com todos os pecados, menos
com a imoralidade”.

O outro pecado que apressou o fim da geração perversa foi sua


rapacidade. Tão astuciosas eram suas depredações que a lei não

133
podia tocá-los. Se um camponês trazia ao mercado uma cesta de
vegetais, as pessoas passavam-lhe do lado e, uma após outra,
subtraiam um pedacinho de cada vez; cada pedaço não tinha
grande valor em si, mas logo ao vendedor não restava o que
vender.

Mesmo depois que havia decidido pela destruição dos pecadores,


Deus permitiu que sua misericórdia prevalecesse, pelo que
mandou-lhes Noé, que exortou-os por cento e vinte anos a
corrigirem sua conduta, acenando sempre com a ameaça do
dilúvio. Eles porém nada faziam além de ridicularizá-lo. Quando
viram ocupando-se da construção da arca, perguntavam:

— Pra quê essa arca?

Noé:

— Deus trará um dilúvio sobre vocês.

Os pecadores:

— Que espécie de dilúvio? Se ele mandar um dilúvio de fogo,


contra isso nós sabemos nos proteger. Se for um dilúvio de água e
a água brotar do solo, fecharemos [os buracos] com barras de
ferro; se descer do alto, conhecemos uma solução para isso
também.

Noé:

— As águas brotarão de sob os seus pés, e vocês não terão como


impedi-las.

Eles em parte persistiram na dureza de seus corações porque Noé


havia anunciado que o dilúvio não desceria enquanto o piedoso
Matusalém habitasse entre eles. Quando encerrou-se período de
cento e vinte anos de suspensão da pena que Deus havia
apontado, Matusalém morreu, mas em consideração pela memória
desse homem piedoso Deus deu a eles uma semana adicional, a
semana de luto por ele. Durante esse período de graça as leis da
natureza foram suspensas: o sol levantava-se no oeste e punha-se
no leste. Aos pecadores Deus deu as guloseimas que aguardam o

134
homem no mundo futuro, a fim de mostrar-lhes aquilo a que
estavam perdendo direito. Mas tudo isso mostrou-se infrutífero e,
tendo Matusalém e os outros homens piedosos da geração dele
partido desta vida, Deus trouxe o dilúvio sobre a terra.

O LIVRO SANTO
NOÉ: O livro santo

Foi necessária grande sabedoria na construção da arca, que


deveria ter espaço para abrigar todos os seres da terra, até mesmo
os espíritos. Apenas para os peixes não foi necessário prover
lugar. Noé adquiriu a sabedoria necessária no livro que Adão deu
ao anjo Raziel, no qual todo conhecimento celestial e terreno está
registrado.

Enquanto o primeiro casal estava ainda no paraíso, aconteceu


certa vez que Samael, acompanhado de um rapazinho, chegou até
Eva e pediu que ela ficasse de olho em seu filho até que ele
voltasse. Eva prometeu que o faria.

Quando voltou de uma caminhada pelo paraíso, Adão encontrou


com Eva uma criança berrando e chorando muito; em resposta à
sua pergunta, Eva contou-lhe que o menino era de Samael. Adão
ficou irritado, e sua irritação foi crescendo à medida em que o
menino chorava e berrava com mais violência. Em sua
exasperação, Adão desferiu-lhe um golpe que acabou matando o
garoto.

O cadáver porém não parou de chorar e lamentar-se, e não parou


nem mesmo quando Adão cortou-o em pedaços. Para livrar-se da
praga Adão cozinhou os restos do menino, e ele e Eva comeram-
no.

Mal tinham terminado e Samael apareceu exigindo seu filho. Os


dois malfeitores tentaram negar tudo; fingiram que não sabiam do
menino. Porém Samael disse a eles:

135
— Quê! Vocês ousam mentir, quando no futuro Deus dará a Israel
a Torá, que diz: “não darás falso testemunho”?

Enquanto eles assim falavam, a voz do menino assassinado fez-se


ouvir do coração de Adão e Eva, e disse a Samael as seguintes
palavras:

— Pode ir embora! Penetrei o coração de Adão e o coração de Eva,


e jamais deixarei em paz os seus corações, nem os corações de
seus filhos, nem os dos filhos de seus filhos, até o fim de todas as
gerações.

Samael partiu, mas Adão ficou profundamente arrependido;


vestiu-se de saco e cinza e jejuou por muitos, muitos dias, até que
Deus apareceu a ele e disse:

— Meu filho, não tenha medo de Samael. Darei a você um remédio


que irá ajudá-lo contra ele, porque foi a meu pedido que ele foi até
você.

— Qual é esse remédio? — perguntou Adão.

Deus:

— A Torá.

Adão:

— E onde está a Torá?

Deus então deu a ele o livro do anjo Raziel, o qual ele estudou dia e
noite. Passado algum tempo os anjos visitaram Adão e, invejosos
da sabedoria que ele havia extraído do livro, tentaram destruí-lo
através de astúcia, chamando-o de deus e prostando-se diante de
Adão, apesar do protesto deste:

— Não ajoelhem-se diante de mim! Exaltem a Deus comigo;


louvemos juntos o seu nome.

Porém a inveja dos anjos era tamanha que eles acabaram


roubando o livro que Deus dera a Adão, atirando-o no mar. Adão
procurou-o em vão em todo lugar, e a perda afligiu-o

136
profundamente. Mais uma vez ele jejuou por muitos dias, até que
Deus lhe apareceu e disse:

— Não tenha medo! Darei o livro de volta a você.

Deus chamou então Rahab, o anjo do mar, e ordenou que ele


recobrasse o livro do mar e o devolvesse a Adão, e assim ele fez.

Com a morte de Adão o livro santo desapareceu, porém mais tarde


a caverna na qual fora escondido foi revelada num sonho a
Enoque. Foi desse livro que Enoque extraiu seu conhecimento da
natureza, da terra e dos céus, tornando-se através dele tão sábio
que sua sabedoria ultrapassou a de Adão. Depois de ter guardado
seu conteúdo na memória, Enoque escondeu o livro novamente.

Ora, quando resolveu trazer o dilúvio sobre a terra, Deus mandou


o arcanjo Rafael até Noé, levando a seguinte mensagem:

— Com isto dou a você o livro santo, para que lhe sejam
manifestos todos os segredos e mistérios que ele contém, a para
que você saiba como cumprir o mandado dele em santidade,
pureza, modéstia e humildade. Nele você aprenderá como
construir a arca de madeira de gôfer, dentro da qual você, seus
filhos e sua esposa encontrarão proteção.

Noé tomou o livro e, quando passou a estudá-lo, o espírito santo


veio sobre ele, e passou a conhecer todas as coisas necessárias
para a construção da arca e para o arrebanhamento dos animais. O
livro, que era feito de safiras, Noé levou consigo para dentro da
arca, tendo-o colocado antes num estojo dourado. Durante todo o
tempo em que ele esteve na arca o livro serviu-o de relógio, pelo
qual ele distinguia a noite do dia.

Antes de morrer Noé confiou o livro a Sem, e este por sua vez a
Abraão. De Abraão ele chegou, passando por Jacó, Levi, Moisés e
Josué, até Salomão, que extraiu dele toda sua sabedoria, sua
habilidade na arte da cura e seu domínio sobre os demônios.

137
OS OCUPANTES DA ARCA
NOÉ: Os ocupantes da arca

A arca foi completada de acordo com as instruções contidas no


livro de Raziel. A próxima tarefa de Noé foi reunir os animais.

Ele teria de levar consigo nada menos do que trinta e duas


espécies de pássaros e trezentas e sessenta e cinco espécies de
répteis. Deus, no entanto, ordenou aos animais que se dirigissem
até a arca, e sem que Noé tivesse de mover um dedo todos eles
agruparam-se ali.

Na verdade os animais compareceram em número maior do que


seria necessário, pelo que Deus instruiu Noé a sentar-se junto à
porta da arca e prestar atenção em quais animais deitavam e quais
ficavam em pé assim que chegavam à entrada. Os primeiros
pertenceriam à arca, porém não esses últimos.

Assumindo seu posto como lhe havia sido ordenado, Noé ficou
observando uma leoa acompanhada de seus dois filhotes. Os três
animais estavam deitados, mas os dois filhotes começaram a
brigar com a mãe, que logo levantou-se e ficou em pé ao lado deles
— e Noé levou os filhotes para dentro da arca.

Os animais selvagens, os animais domésticos e os pássaros que


não foram aceitos ficaram em pé ao redor da arca por um total de
sete dias, porque o ajuntamento dos animais ocorreu uma semana
antes que o dilúvio descesse. No dia em que eles chegaram à arca
o sol escureceu, as fundações da terra tremeram, luziram
relâmpagos e soaram trovões como nunca havia acontecido antes,
porém ainda assim os pecadores não se arrependeram: nada
mudaram na sua conduta perversa durante aqueles sete últimos
dias.

Quando o dilúvio finalmente desabou, setecentos mil dos filhos


dos homens reuniram-se ao redor da arca e imploraram pela
proteção de Noé.

Em voz muito alta ele respondeu:

138
— Não eram vocês que viviam em rebelião contra Deus, dizendo
“Deus não existe”? Ele então trouxe ruína sobre vocês, a fim de
aniquilá-los e destruí-los da face da terra. Não tenho estado
profetizando essas coisas entre vocês ao longo destes cento e
vinte anos, sem que vocês desses ouvidos à voz de Deus? E agora
vocês querem ficar vivos!

— Que seja! — gritaram os pecadores. — Estamos dispostos a


voltarmos para Deus, desde que você abra a porta da sua arca e
nos receba, de modo a que vivamos ao invés de morrer.

Noé respondeu:

— Isso vocês fazem agora, quando é tão urgente a sua


necessidade. Porque não voltaram para Deus nos duzentos e vinte
anos do período de graça em que Deus colocou-me entre vocês?
Agora vocês vêm e falam assim, mas é porque suas vidas correm
perigo. Deus portanto não ouvirá nem lhes dará ouvidos; vocês
nada conseguirão.

A multidão de pecadores tentou então entrar na arca à força, mas


os animais selvagens que vigiavam ao redor da arca lançaram-se
sobre eles. Muitos foram mortos mas alguns escaparam, apenas
para encontrarem a morte nas águas do dilúvio.

A água sozinha não foi capaz de ocasionar-lhes a morte, pois eram


gigantes em força e estatura. Quando Noé os ameaçava com o
castigo divino eles costumavam responder:

— Se as águas do dilúvio vierem de cima, nunca nos chegarão à


altura do pescoço; se vierem de baixo, as solas dos nossos pés são
grandes o bastante para tampar as nascentes.

Porém Deus fez com que cada gota passasse pelo antes de cair na
Geena

terra, de modo que o calor da chuva queimava a pele dos


pecadores — punição apropriada para os seus crimes. Da mesma
forma que foram aquecidos por seus desejos sensuais, que os
inflamavam a excessos de imoralidade, foram castigados com água
aquecida.

139
Nem mesmo na hora da morte os pecadores conseguiram
suprimir seus instintos perversos. Quando a água começou a
jorrar das nascentes eles começaram a atirar seus filhinhos dentro
delas, na tentativa de estancar o dilúvio.

Foi pela graça de Deus, e não por seus próprios méritos, que Noé
encontrou na arca refúgio para a força devastadora das águas.
Embora tenha se mostrado mais íntegro do que seus
contemporâneos, não era ainda sim digno das maravilhas
realizadas em seu favor. Noé tinha fé tão pequena que não entrou
na arca até que a água lhe chegava na altura dos joelhos.
Escaparam o perigo com ele sua piedosa esposa Naamá, filha de
Enos, seus três filhos e suas respectivas esposas.

Noé não casou até completar quatrocentos e noventa e oito anos


de idade; o Senhor então disse a ele que tomasse uma esposa para
si. Sua intenção tinha sido não colocar filhos no mundo, sabendo
que morreriam todos no dilúvio, pelo que teve apenas três filhos,
nascidos não muito antes que o dilúvio viesse.

Deus lhe deu um número pequeno de filhos, a fim de poupá-lo da


necessidade de construir uma arca grande demais caso eles se
mostrasse piedosos. E poupá-lo também, caso se mostrassem
depravados como os demais da sua geração, da tristeza de
testemunhar a sua destruição.

Da mesma forma que Noé e sua família foram os únicos a não


compartilharem do caráter corrompido da sua época, os animais
acolhidos na arca haviam também vivido uma vida natural. Pois
naquela época os animais eram tão imorais quanto os homens: o
cão unia-se ao lobo, o galo ao pavão, e muitos outros viviam sem
qualquer pureza sexual. Os que se salvaram foram os que se
mantiveram imaculados.

Antes do dilúvio os animais impuros era mais numerosos do que


os animais puros. Depois do dilúvio a proporção foi invertida,
porque sete pares de animais puros foram preservados na arca
para cada dois pares de animais impuros.

Um animal, o reem, Noé não pode receber na arca, por causa do


seu enorme tamanho. Em vista disso Noé amarrou-o à arca, e o

140
reem acompanhou-os correndo atrás. Noé também não conseguiu
espaço para o gigante Ogue, rei de Basã, que escapou do dilúvio
amarrado no topo da arca, sobre a qual veio sentado. Noé
alimentou-o diariamente através de um buraco, pois Ogue havia
prometido que ele e seus descendentes seriam seus escravos
perpetuamente.

Duas criaturas muito peculiares também encontraram refúgio na


arca. Dentre os seres que vieram até Noé pedindo abrigo, estava a
Falsidade. Foi-lhe negada a entrada porque não tinha um
companheiro, e Noé estava apenas admitindo animais em pares.
Falsidade saiu então em busca de um parceiro, e encontrou o
Infortúnio, que juntou-se à Falsidade com a condição de poder
apropriar-se de tudo que a Falsidade obtivesse para si. O par foi
dessa forma admitido à arca. Quando saíram, Falsidade percebeu
que tudo que juntava desaparecia de imediato, e foi procurar seu
companheiro para uma explicação.

— Não concordamos — disse o Infortúnio à Falsidade — que eu


poderia ficar com tudo que você conseguisse?

Assim a Falsidade teve de partir de mãos vazias.

O DILÚVIO
NOÉ: O dilúvio

Recolher os animais para dentro da arca foi a parte mais fácil da


tarefa imposta sobre Noé. Seu maior desafio foi prover-lhes
acomodações e comida para um ano.

Muitos anos mais tarde Sem, filho de Noé, relatou a Eliezer, servo
de Abraão, a história das suas experiências com os animais dentro
da arca. Eis o que ele disse:

— Tivemos enormes dificuldades na arca. Os animais diurnos


tinham de ser alimentados de dia, e os animais noturnos de noite.
Meu pai não sabia que comida dar à pequena zikta. Um dia ele

141
cortou uma romã ao meio e da fruta caiu um verme, que foi
imediatamente devorado pela zikta. Dali em diante meu pai moía
farelo e deixava até que criasse vermes, que ele usava para
alimentar o animal. O leão teve febre o tempo todo, e dessa forma
não incomodou os ouros, porque não gostava de comida seca. O
animal urshana meu pai encontrou dormindo num canto da
embarcação, e perguntou se ele precisava de alguma coisa para
comer. Sua resposta foi: “Vi que o senhor estava muito ocupado e
não quis incomodar”. Ao que meu pai disse: “Seja da vontade do
Senhor abençoá-lo com a vida eterna”, e sua benção se tornou
realidade.

As dificuldades aumentaram quando o dilúvio começou a jogar a


arca de um lado para o outro. Todos dentro dela eram sacudidos
como lentilhas numa panela. Os leões começaram a urrar, os bois
mugiam, os lobos uivavam, e todos os animais deram vazâo à sua
agonia, cada um com o som que era capaz de produzir.

Também Noé e seus filhos, achando que a morte estava próxima,


romperam em lágrimas. Noé orou a Deus:

— Ó, Senhor, ajude-nos, pois não podemos suportar o mal que nos


assedia. As ondas erguem-se ao nosso redor, as torrentes da
destruição nos aterrorizam e morte olha-nos de frente. Ah, ouça a
nossa oração, liberte-nos; incline-se na nossa direção e seja
compassivo para conosco. Resgate-nos e salve-nos!

O dilúvio foi produzido pela união das águas masculinas, que estão
acima do firmamento, edas águas femininas, que brotam da terra.
As águas superiores precipitaram-se no espaço quando Deus
removeu duas estrelas da constelação das Plêiades. Depois disso, a
fim de parar o dilúvio, Deus teve de transferir duas estrelas da
constelação da Ursa para a constelação das Plêiades. É por isso
que a Ursa corre atrás das Plêiades; ela quer seus filhos de volta,
mas eles lhe serão restaurados apenas no mundo futuro.

Durante o ano do dilúvio houve mudanças nas esferas celestiais.


Enquanto o dilúvio durou o sol e a lua não produziram luz, razão
pela qual Noé recebeu seu nome, “O do descanso”, pois em seu
período de vida o sol e a lua descansaram. A arca era iluminada

142
por uma pedra preciosa, cuja luz era mais intensa durante a noite
do que durante o dia, possibilitando assim que Noé distinguisse o
dia da noite.

O dilúvio durou um ano inteiro. Começou no décimo-sétimo dia


de Chesvan, e a chuva estendeu-se por quarenta dias, até o
vigésimo-sétimo dia de Kislev. Essa punição correspondeu ao
crime daquela geração pecaminosa. Eles levavam vidas imorais e
geraram filhos bastardos, cujo estágio embrionário dura quarenta
dias.

Do dia 27 de Kislev até o primeiro de Sivan, um período de cento e


cinqüenta dias, a água permaneceu com a mesma profundidade,
quinze varas acima do solo. Durante esse período todos os
perversos foram destruídos, cada homem recebendo a punição
que merecia. Caim estava entre os que pereceram, e assim a morte
de Abel foi vingada. Tão poderosa foram as águas em sua
destruição que o corpo do próprio Adão não foi poupado em seu
túmulo.

Em primeiro de Sivan as águas começaram a declinar, um quarto


de vara por dia, e ao fim de sessenta dias, no dia dez de Av, o topo
das montanhas ficou visível. Muitos dias antes, no dia dez
de Tamuz, Noé havia soltado um corvo, e uma semana depois uma
pomba, na primeira de suas três saídas, que foram repetidas em
intervalos de uma semana.

Demorou do primeiro dia de Av até o primeiro dia de Tishrei para


que a água desaparecesse por completo da face da terra. Porém o
solo permaneceu tão lamacento que os ocupantes da arca tiveram
de permanecer dentro dela até o dia vinte e sete de Chesvan,
completando assim um ano solar, que consiste de doze luas e onze
dias.

Noé havia experimentado todo tipo de dificuldade para


determinar o estado da água. Quando decidiu enviar um corvo,
este disse a ele:

— O Senhor, seu mestre, me odeia, e você também me odeia. Seu


mestre me odeia porque, embora tenha mandado que entrassem
na arca sete pares de animais puros, mandou que entrassem

143
apenas dois pares de animais impuros, grupo ao qual pertenço.
Você me odeia, porque não escolheu como mensageiro um dos
pássaros dos quais há sete pares na arca, mas escolheu a mim, e
da minha espécie só há um par. Ora, suponha que eu morra de
calor ou de frio: o mundo não ficaria privado de uma espécie
inteira de animais? Ou não será o caso que você tenha lançado um
olhar lascivo sobre minha companheira, e quer agora livrar-se de
mim?

Diante do que Noé respondeu:

— Infeliz! Sou obrigado a viver separado da minha própria esposa


na arca. Quanto menos me ocorreria o tipo de pensamento dos
quais você me acusa!

A saída do corvo não teve sucesso, porque assim que viu o cadáver
de um homem ele passou a devorá-lo, e não obedeceu às ordens
dadas a ele por Noé. Por essa razão foi enviada uma pomba.

Perto do entardecer a pomba voltou com uma folha de oliveira no


bico, tirada do monte das Oliveiras em Jerusalém, pois a Terra
Santa não havia sido devastada pelo dilúvio. Ao colhê-la, a pomba
disse a Deus:

— Ah, Senhor do Mundo, prefiro que meu sustento se mostre


amargo como a oliveira, desde que me seja dado pela sua mão, do
que, sendo doce, eu seja entregue nas mãos dos homens.

NOÉ SAI DA ARCA


NOÉ: Noé sai da arca

Embora a terra tenha assumido sua antiga condição ao fim do ano


de punição, Noé não saiu da arca até receber de Deus ordem para
fazê-lo. Ele disse a si mesmo: “Ao comando de Deus entrei na arca;
a seu comando sairei dela”.

144
Porém quando Deus lhe disse que saísse da arca Noé se recusou,
pois temia que depois de viver sob terra seca por algum tempo e
gerar filhos, Deus traria outro dilúvio. Ele não saiu da arca até
Deus jurar que jamais voltaria a visitar a terra com um dilúvio.

“Isso eu lhe disse para que você pudesse


implorar misericórdia para a terra”.
Quando saiu da arca e pisou em céu aberto, Noé chorou
amargamente diante da devastação causada pelo dilúvio, e disse a
Deus:

— Senhor do mundo! O senhor, que é chamado de misericordioso,


deveria ter tido misericórdia das suas criaturas!

— Ah, pastor tolo, agora você me diz isso — Deus respondeu. —


Mas não foi o que fez quando me dirigi a você com palavras
generosas, e disse: “Vi em você um homem perfeito e justo em sua
geração, e trarei um dilúvio sobre a terra para desturir toda a
carne. Faça para você uma arca de madeira de gôfer”. Isso eu disse
a você, deixando claras todas essas circunstâncias, para que você
pudesse implorar misericórdia para a terra. Mas assim que ouviu
que seria resgatado na arca você deixou de se preocupar com a
ruína que recairia sobre a terra. Você nada fez além de construir
uma arca para si mesmo, na qual foi salvo; mas agora que a terra
está devastada, abre a boca para interceder e orar.

Noé percebeu que era culpado de insensatez. A fim de reconhecer


seu pecado e buscar a reconciliação com Deus, ele trouxe um
sacrifício. Deus aceitou com seu favor a oferta, pelo que Noé
recebeu esse nome.

O sacrifício não foi oferecido por Noé com suas próprias mãos. Os
serviços sacerdotais associados a ele foram executados por seu
filho Sem, e houve uma razão para isso. Um dia na arca Noé
esquecera de dar a ração ao leão, e o animal faminto desferira-lhe
tamanho golpe com sua pata que Noé ficou aleijado para sempre
depois disso. E, como portador de um defeito físico, ficou
impedido de executar as funções de sacerdote.

145
Os sacrifícios consistiram num boi, uma ovelha, um bode, duas
pombas e duas rolinhas. Noé escolheu essas espécies porque
supôs que fossem apropriadas para sacrifícios, visto que Deus
ordenara que levasse na arca sete pares de cada um. O altar foi
erguido no mesmo lugar em que Adão, Caim e Abel apresentaram
seus sacrifícios, e onde mais tarde se ergueria o altar do santuário
em Jerusalém.

Completado o sacrifício, Deus abençoou Noé e seus filhos. Fez


deles governantes do mundo como Adão havia sido, e deu-lhes a
ordem “Sejam férteis e multipliquem-se!” — pois durante sua
estadia na arca ambos os sexos, tanto de homens quanto de
animais, haviam vivido separados um do outro, porque enquanto
abate-se uma calamidade pública a continência é indicada mesmo
para os que são deixados ilesos. Essa norma de conduta foi violada
na arca apenas por Cão, filho de Noé, pelo cachorro e pelo corvo, e
por isso cada um recebeu uma punição; a punição de Cão foi que
todos os seus descendentes teriam pele escura.

Como garantia de que não voltaria a destruir a terra, Deus


pendurou o seu arco [de flecheiro] sobre a nuvem. Mesmo se os
homens voltassem a rebaixar-se novamente ao pecado, o arco
declararia que seus pecados não voltariam a causar dano ao
mundo. No curso das eras houve ocasiões em que os homens
foram piedosos o bastante para não terem de viver com medo da
punição, e durante esses períodos o arco não era visível.

Deus liberou a Noé e seus descendentes o consumo da carne de


animais como alimento, que era proibido desde a época de Adão.
Eles porém deveriam abster-se de consumir sangue.

Assim ele outorgou as sete leis de Noé, cuja observância é


obrigação de todos os homens, não apenas de Israel. Deus
prescreveu em particular a ordem contra o derramamento de
sangue humano. Quem derramasse sangue humano deveria ter o
seu sangue derramado. Mesmo se os juízes humanos deixassem o
culpado em liberdade o seu castigo acabaria por encontrá-lo: ele
morreria de morte não-natural, semelhante à que havia infligido
sobre seu proximo. De fato, mesmo se fossem animais a matarem
pessoas, a vida que haviam subtraído seria requerida deles.

146
A MALDIÇÃO DA EMBRIAGUEZ
NOÉ: A maldição da embriaguez

Noé perdeu a alcunha de “piedoso” quando começou a ocupar-se


da sua vinha. Ele tornou-se um “homem da terra”, e essa primeira
tentativa de produzir vinho gerou, ao mesmo tempo, o primeiro a
beber em excesso, o primeiro a amaldiçoar seus familiares e o
primeiro a instituir a escravidão.

Aconteceu assim: Noé encontrou a vinha que Adão trouxera


consigo do Paraíso, por ocasião da sua expulsão. Noé
experimentou as uvas, achou-as saborosas e resolveu plantar a
vinha e cuidar dela.

No mesmo dia em que ele plantou a vinha ela deu fruto, e no


mesmo dia ele colocou-a na prensa de lagar, extraiu o suco, bebeu,
ficou bêbado e foi desonrado. Seu assistente no cultivo da vinha
foi Satanás, que acontecia de estar passando por ali no exato
momento em que ele plantava a muda que havia encontrado.
Satanás lhe perguntou:

— O que você está plantando aqui?

— Um vinhedo.

— E quais são as qualidades do fruto que ele produz?

— Seu fruto é doce, quer no seco ou no úmido. Produz vinho, que


alegra o coração do homem.

— Que me diz de sermos parceiros nessa empreitada de cultivar


um vinhedo?

— Fechado!

Satanás então matou um cordeiro e em seguida, sucessivamente,


um leão, um porco e um macaco. O sangue de cada um que ia
sendo morto ele fez fluir sob a vinha. Dessa forma ele transmitiu a

147
Noé as qualidades do vinho: antes de bebê-lo o homem é inocente
como um cordeiro; se bebe moderadamente, sente-se forte como
um leão; se bebe mais do que pode aguentar, fica parecendo um
porco; e se bebe ao ponto da intoxicação, passa a comportar-se
como um macaco, dançando, cantando e dizendo obscenidades,
sem saber o que está fazendo.

Isso não deteve Noé, mas também não o deteve o exemplo de


Adão, cuja queda foi ocasionada também devido ao vinho: o fruto
proibido tinha sido a uva, com a qual ele se embebedara.

Em sua embriaquez Noé dirigiu-se para a tenda da sua esposa. Seu


filho Cão viu-o ali, contou aos irmãos o que havia encontrado e
disse:

— O primeiro homem teve apenas dois filhos, e um matou o outro;


esse Noé tem três filhos, e deseja além desses gerar um quarto.

Não satisfeito com essas palavras desrespeitosas dirigidas contra


o pai, a esse pecado de irreverência Cão acrescentou o ultraje
ainda maior de tentar executar no pai uma operação cujo fim era
impedir a procriação.

Quando despertou do seu vinho e ficou sóbrio, Noé proferiu uma


maldição contra Cão na pessoa de seu filho mais novo, Canaã. O
próprio Cão ele não tinha como prejudicar, visto que Deus
conferira uma benção sobre Noé e seus três filhos quando haviam
saído da arca. Por essa razão ele colocou a maldição sobre o
último filho de seu filho, de modo a impedi-lo a gerar um filho
mais novo do que os três que já tinha.

Os descendentes de Canaã têm olhos vermelhos, porque Cão viu a


nudez de seu pai; têm lábios mal-formados, porque Cão usou os
lábios para contar aos irmãos sobre a condição imprópria do pai;
tem cabelo enrolado, porque Cão torceu o pescoço a fim de ver a
nudez do pai; e andam nus, porque Cão não cobriu a nudez do pai.
Dessa forma Noé foi vingado, pois é do caráter de Deus distribuir
justiça medida por medida.

“Amem um aos outros”

148
Canaã teve de sofrer vicariamente pelo pecado do pai. Porém uma
parte da punição lhe foi infligida por sua própria culpa, porque foi
Canaã que chamou a atenção de Cão para a condição revoltante de
Noé. Cão era, ao que parece, apenas o pai honesto desse filho
terrível. No testamento com as últimas vontades de Canaã para
seus filhos estava escrito: “Não digam a verdade; não fiquem longe
do roubo; vivam dissolutamente; odeiem seu mestre com ódio
mortal; amem uns aos outros”.

Da mesma forma que Cão teve de enfrentar punição pela sua


irreverência, Sem e Jafé foram recompensados pelo modo filial e
respeitoso com o qual tomaram um manto, colocaram-no sobre os
ombros e, andando de costas e com os rostos virados para o outro
lado, cobriram a nudez do pai. Nus foram os descendentes de Cão,
egípcios e etíopes, levados em cativeiro e ao exílio pelo rei da
Assíria, enquanto os assírios, descendentes de Sem, não tiveram
sua nudez exposta nem mesmo quando o anjo do Senhor
queimou-os em seu acampamento: suas roupas permaneceram
intocadas sobre seus cadáveres. E, num tempo que ainda virá,
quando Gogue sofrer sua derrota, Deus proverá vestes funerárias
e local de sepultamento para ele e sua multidão de descendentes,
posteridade de Jafé.

Embora tanto Sem quanto Jafé tenham se mostrado pestrativos e


respeitosos, foi Sem a merecer a maior recompensa de louvor. Foi
ele o primeiro a dispor-se a cobrir o pai; Jafé uniu-se a ele quando
a boa ação já havia sido iniciada. Por essa razão os descendentes
de Sem receberam, como recompensa especial, o talit, peça de
roupa usada por eles, enquanto os descendentes de Jafé têm
apenas a toga. Uma distinção adicional concedida a Sem foi a
menção de seu nome em conexão com a benção de Noé. “Bendito
seja o Senhor, Deus de Sem”, ele disse, embora como regra geral o
nome de Deus não fosse associado ao nome de uma pessoa viva,
mas apenas ao de alguém que já houvesse partido desta vida.

A relação entre Sem e Jafé foi expressa na oração que seu pai
proferiu sobre eles: Deus concederia uma terra de belezas a Jafé, e
seus filhos seriam convertidos que residiriam nas academias de
Sem. Ao mesmo tempo Noé deixou claro por suas palavras que
a Shekináhabitaria apenas o primeiro templo, erigido por

149
Salomão, descendente de Sem, e não no segundo templo, cujo
construtor seria Ciro, descendente de Jafé.

OS DESCENDENTES DE NOÉ
ESPALHAM-SE PELO MUNDO
NOÉ: Os descendentes de Noé espalham-se pelo mundo

Quando ficou sabendo que seu pai o havia amaldiçoado, Cão fugiu
envergonhado, e fixou-se com sua família numa cidade construída
por ele, à qual deu o nome de sua esposa, Neelatamauque. Com
inveja de seu irmão, Jafé seguiu seu exemplo: construiu uma
cidade e deu a ela o nome de sua esposa, Adataneses. Sem foi o
único filho de Noé que não o abandonou. Nas redondezas da casa
do pai, junto à montanha, Sem construiu sua cidade, à qual deu
também o nome de sua esposa, Zedequetelbabe. Essas três
cidades ficam próximas ao monte Lubar, a elevação sobre a qual
repousou a arca. A primeira encontra-se ao sul, a segunda a oeste,
a terceira a leste.

Noé conseguiu inculcar em seus filhos e nos filhos de seus filhos as


ordenanças e mandamentos que conhecia. Ele em particular
advertiu-os contra a libertinagem, contra a impureza e contra toda
sorte de perversidade que havia provocado o dilúvio sobre a terra.
Ele os repreendeu por viverem longe uns dos outros e pela inveja
que nutriam, pois temia que depois de sua morte eles chegariam a
derramar sangue humano. Contra isso ele advertiu-os
severamente, para que não fossem aniquilados da terra como os
que os haviam precedido.

Outra lei que Noé transmitiu-lhes para que observassem foi que a
fruta de uma árvore não deveria ser usada nos três primeiros anos
em que a árvore frutificar. Mesmo no quarto ano, as frutas
deveriam ser consumidas apenas pelos sacerdores, depois que
uma parte delas fosse oferecida no altar de Deus.

Ao terminar de fornecer esses ensinos e prescrições, Noé disse:

150
— Pois da mesma forma Enoque, nosso ancestral, exortou seu
filho Matusalém, e Matusalém seu filho Lameque, e Lameque
transmitiu-me tudo que seu pai lhe havia dito que fizesse; agora
eu os exorto, meus filhos, como Enoque exortou seu filho. Quando
ele era vivo em sua geração, que foi a sétima geração do homem,
ele ordenou e testificou essas coisas a seus filhos e aos filhos de
seu filho, até o dia de sua morte.

No ano 1569 depois da criação do mundo Noé dividiu a terra entre


seus filhos, na presença de um anjo. Cada um deles estendeu a
mão e tirou um pedaço de papel do peito de Noé. No papel de Sem
estava escrito “o meio da terra”, e essa porção tornou-se herança
para seus descendentes por toda a eternidade. Noé exultou que
aquela porção tivesse sido designada a Sem. Dessa forma se
cumpria a benção que proferira sobre ele, “Deus… nas tendas de
Sem”, pois três lugares santos situavam-se dentro dessa área: o
santo dos santos no Templo, o Monte Sinai, ponto central do
deserto, e o Monte Sião, o ponto central do umbigo da terra.

O sul coube a Cão, e o norte tornou-se herança de Jafé. A terra de


Cão é quente, a terra de Jafé é fria, mas a de Sem não é fria nem
quente: tem clima temperado.

A divisão da terra ocorreu perto do fim da vida de


Pelegue/Divisão, nome dado por seu pai Éber, o qual, sendo
profeta, sabia que a divisão da terra ocorreria perto da hora final
de seu filho. O irmão de Pelegue recebeu o nome de
Joctã/Pequeno, porque em sua época a duração da vida humana foi
abreviada.

Os três filhos de Noé, ainda em pé na presença dele, dividiram por


sua vez a sua porção entre os seus filhos, enquanto Noé ameaçava
com sua maldição qualquer um que tentasse se apropriar de uma
área que não lhe tivesse sido designada. E todos exclamavam:

— Assim seja! Assim seja!

Dessa forma foram dividas cento e quatro terras e noventa e nove


ilhas entre setenta e duas nações, cada uma com uma língua
própria, e usando dezesseis alfabetos diferentes. A Jafé foram
destinadas quarenta e quatro terras, trinta e três ilhas, vinte e

151
duas línguas e cinco alfabetos; Cão recebeu trinta e quatro terras,
trinta e três ilhas, vinte e quatro línguas e cinco alfabetos; Sem
recebeu vinte e seis terras, trinta e três ilhas, vinte e seis línguas e
seis alfabetos — um alfabeto a mais do que receberam seus
irmãos; este alfabeto extra é o hebraico.

A terra designada como herança dos doze filhos de Jacó foi


temporariamente concedida a Canaã, Sidom, Hete, os jebuseus, os
amorreus, os girgaseus, os heveus, os arqueus, os sineus, os
arvadeus, os zemareus e os hamateus. Era dever dessas nações
cuidar da terra até que seus verdadeiros possuidores chegassem.

Mal haviam os filhos de Noé e os filhos de seus filhos tomado


posse das áreas designadas a eles, os espíritos imundos
começaram a seduzir os homens e atormentá-los com dor e toda
sorte de sofrimento, de modo a levá-los à morte física e espiritual.

Diante das súplicas de Noé, Deus mandou o anjo Rafael, que


expulsou noventa por cento dos espíritos imundos da terra,
deixando apenas dez por cento para Mastema/hostilidade, a fim de
punir os pecadores através deles.

Rafael, assistido pelo chefe dos espíritos imundos, revelou naquela


ocasião a Noé todos os remédios que residem nas plantas, para
que ele recorresse a eles quando necessário. Noé registrou-os
num livro, que transmitiu a seu filho Sem. A esta fonte reportam
todos os livros médicos dos quais os sábios da Índia, de Arã, da
Macedônia e Egito extraem seu conhecimento. Os curandeiros da
Índia devotaram-se especialmente ao estudo das especiarias e
árvores curativas; os arameus eram bem versados no
conhecimento das propriedades de grãos e sementes, e
traduziram para sua própria língua os antigos livros médicos. Os
sábios da Macedônia foram os primeiros a aplicar o conhecimento
médico de forma prática, enquanto os egípcios procuravam
efetuar curas através de astrologia e de artes mágicas; foram eles
a ensinar o Midrash dos caldeus, composto por Kangar, filho de Ur,
filho de Quesede.

Os conhecimentos médicos foram se espalhando cada vez mais até


a época de Esculápio. Esse sábio macedônio, acompanhado por

152
quarenta magos doutos, viajaram país por país até chegarem à
terra além da Índia, na direção do Paraíso. Eles esperavam
encontrar alguma madeira da árvore da vida, e dessa forma
divulgar sua própria fama ao redor do mundo. Suas esperanças
foram frustadas. Quando chegaram ao local, encontraram árvores
curativas e madeira da árvore da vida mas quando estendiam suas
mãos para pegar o que desejavam um relâmpago lançou-se
da espada que se volvia por todos os lados, derrubou-os ao chão e
queimou-os por completo. Com eles desapareceu todo o
conhecimento da medicina, e não reviveu até a época do primeiro
Artaxerxes, sob a condução do sábio macedônio Hipócrates,
Dioscorides de Baala, Galeno de Caftor e o judeu Asafe.

A DEPRAVAÇÃO DA HUMANIDADE
NOÉ: A depravação da humanidade

Com a expansão da humanidade a corrupção acentuou-se.


Enquanto Noé era vivo os descendentes de Sem, Cão e Jafé
apontaram um príncipe para governar cada um dos três grupos:
Ninrode sobre os descendentes de Cão, Joctã sobre os
descendentes de Sem e Feneque sobre os descendentes de Jafé.
Dez anos depois da morte de Noé o número de pessoas sujeitas
aos três príncipes era da escala de milhões.

Quando esse enorme contingente de homens, em suas incursões,


chegou à Babilônia, disseram uns aos outros:

— Vejam, chegará a hora em que, no fim dos dias, vizinho se


apartará de vizinho e irmão de irmão, e travarão guerra uns
contra os outros. Venham, construamos para nós uma cidade, e
uma torre cujo topo chegue até o céu; dessa forma faremos com
que nosso nome se torne celebrado sobre a terra. Agora
fabriquemos tijolos, e cada um escreve seu nome sobre o seu
tijolo.

Todos concordaram com essa proposta, exceto os doze piedosos,


entre eles Abraão, que recusaram-se a juntar-se aos outros. Esses
foram agarrados pelo povo e levados diante dos tres príncipes, aos
quais forneceram a seguinte razão para a sua recusa:

153
— Não fabricaremos tijolos, e tampouco permaneceremos com
vocês, pois não reconhecemos nenhum outro além do único Deus,
a quem servimos. Ainda que vocês nos atirem no fogo para
queimar com os tijolos, não abraçaremos a conduta de vocês.

Ninrode e Feneque foram tomados de tamanha fúria pela posição


dos doze homens que resolveram atirá-los ao fogo. Porém Joctã,
além de ser temente a Deus, era parente próximo dos homens que
estavam sendo julgados, e tentou salvá-los. Joctã propôs a seus
dois colegas que concedessem a eles um postergamento de sete
dias. Tal era a deferência que lhe era concedida como primaz
entre os três, que seu plano foi aceito. Os doze foram encarcerados
na casa de Joctã.

De noite ele mandou que cinquenta de seus servidores colocassem


os prisioneiros montados sobre mulas e os levassem para as
montanhas, para que escapassem à punição. Joctã proveu-lhes
sustento para um mês; ele estava convicto de que nesse meio
tempo o sentimento com relação a eles iria mudar, ou o próprio
Deus ajudaria os fugitivos.

Onze dos prisioneiros assentiram com gratidão a esse plano.


Apenas Abraão o rejeitou:

— Vejam, hoje fugimos para as montanhas a fim de escapar do


fogo, mas se animais selvagens das montanhas nos atacarem e
devorarem, ou se a comida faltar, teremos sido apanhados pelo
povo da terra em fuga e morrendo em nossos pecados. Ora, tão
certo quanto vive o Senhor, em quem confiamos, não sairei deste
lugar no qual eles me aprisionaram, e se for o caso de que deverei
morrer pelos meus pecados, morrerei pela vontade de Deus, em
conformidade com o seu desejo.

Em vão Joctã tentou persuadi-lo a partir, mas Abraão permaneceu


firme em sua recusa. Ficou sozinho, deixado para trás, na prisão
domiciliar, enquanto os outros onze empreenderam sua fuga. Ao
término do período de remissão, quando o povo voltou exigindo a
morte dos doze cativos, Joctã só tinha Abraão para apresentar a
eles. Como desculpa, disse que os demais haviam conseguido fugir
durante a noite.

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Quando o povo estava prester a agarrar Abraão e atirá-lo no forno
de cal, houve de repente um terremoto e uma língua de fogo
lançou-se para fora da forno. Todos que estavam ali ao redor,
oitenta e quatro mil pessoas, foram consumidos, enquanto Abraão
permaneceu intocado. Ele então foi ao encontro de seus onze
amigos nas montanhas e relatou-lhes o milagre que havia ocorrido
em seu favor. Voltaram todos com ele e, sem serem molestados
pelo povo, deram louvor e graças a Deus.

NINRODE
NOÉ: Ninrode

O primeiro líder a corromper os homens foi Ninrode. Seu pai,


Cuche, havia casado com a mãe de Ninrode já em idade avançada.
Na qualidade de filho da sua velhice, Ninrode, fruto dessa união
tardia, era especialmente querido por ele.

O pai de Ninrode deu a ele roupas feitas das peles com as quais
Deus cobrira Adão e Eva na ocasião em que deixaram o Paraíso.
Cuche havia chegado à posse delas através de Cão. De Adão e Eva
as peles haviam passado a Enoque, e dele a Matusalém, e dele a
Noé, e este as havia levado consigo para dentro da arca. Quando os
ocupantes da arca estavam para deixar o seu refúgio, Cão roubara
as vestes e as escondera, passando-as adiante finalmente para seu
primogênito Cuche. Cuche, por sua vez, mantivera as peles
escondidas por muitos anos. Quando seu filho Ninrode fez vinte
anos, Cuche deu-as a ele.

Essas vestimentas tinham uma propriedade assombrosa: quem as


trajava tornava-se ao mesmo tempo invencível e irresistível. As
feras e aves do campo prostaram-se diante de Ninrode logo que
viram-no vestido com elas, e ele tornou-se ainda vitorioso em
todos os seus combates com os homens. A fonte desta força
inconquistável as pessoas desconheciam; atribuíam-na à sua
bravura pessoal, pelo que apontaram-no como seu rei.

Isso ocorreu depois de um conflito entre os descendentes de


Cuche e os descendentes de Jafé, conflito do qual Ninrode

155
emergeu triunfante, tendo afugentado o inimigo por completo
com o auxílio de um punhado de combatentes.

Ninrode escolheu Sinar como sua capital. A partir dali ele


estendeu cada vez mais o seu domínio, até chegar, através de
astúcia e força, à condição de governante único do mundo. Foi
primeiro mortal a alcançar domínio universal; o nono governante
a possuir o mesmo poder será o Messias.

A impiedade de Ninrode acompanhou o incremento do seu poder.


Desde o dilúvio não havia existido pecador como Ninrode, que
criava ídolos de madeira e pedra e prestava-lhes adoração. Não
satisfeito em viver por si mesmo uma vida sem Deus, fazia tudo
que podia para tentar seus súditos a que abraçassem os caminhos
da maldade, no que tinha a assistência e cumplicidade de seu filho
Mardon. Este seu filho superava o pai em iniquidade; foi a época e
a vida desses dois que inspirou o provérbio “dos ímpios procede a
impiedade.”

O formidável sucesso que acompanhava todas as iniciativas de


Ninrode gerou um resultado sinistro. Os homens deixaram de
acreditar em Deus, passando a crer em sua própria bravura e
habilidade, atitude com a qual Ninrode buscava converter o
mundo todo. Pelo que as pessoas diziem: “desde a criação do
mundo não houve outro como Ninrode, potente caçador de
homens e feras e pecador diante de Deus”.

Mas não foi suficiente para a ambição maligna de Ninrode. Como


se não bastasse levar os homens para longe de Deus, fez todo o
possível para que lhe prestassem as honras que cabem à
divindade. Apregoou-se como deus, e fez para si um trono que
imitava o trono de Deus: uma torre construída a partir de uma
rocha redonda, sobre a qual colocou um trono de cedro, sobre o
qual erguiam-se por sua vez, um após o outro, quatro tronos — de
ferro, de cobre, de ouro e de prata. Coroando todos eles, sobre o
trono de ouro, repousava uma pedra preciosa, de formato
redondo e tamanho gigantesco. Esta servia-lhe de torno e, quando
ele se assentava sobre ela, todas as nações vinham e prestavam-
lhe divina adoração.

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A TORRE DE BABEL
NOÉ: A torre de Babel

A perversidade e a irreligiosidade de Ninrode atingiram seu


clímax na construção da torre de Babel. Seus conselheiros
apresentaram o projeto de edificação da torre, Ninrode
concordou, e foi executado em Sinar por uma multidão de
seiscentos mil homens. O empreendimento era nada mais nada
menos do que rebelião contra Deus, e entre os edificadores havia
três classes de rebeldes. O primeiro grupo dizia “subamos até o
céu e travemos guerra contra ele”, o segundo grupo dizia
“subamos até o céu, instalemos ali nossos ídolos e prestemos
adoração a eles”, e o terceiro dizia “subamos até o céu e
devastemo-lo com nossos arcos e lanças”.

Muitos anos foram gastos na construção da torre, que atingiu


tamanha altura que era necessário um ano inteiro para chegar ao
topo. Um tijolo tornou-se, portanto, mais precioso aos olhos dos
construtores do que um ser humano. Se um homem caía e
encontrava sua morte, ninguém se dava conta, mas se um tijolo
caía e se quebrava todos choravam, porque seria necessário um
ano para substitui-lo.

Tão obcecados estavam em atingir o seu propósito que não


permitiam que uma mulher interrompesse seu trabalha na
confecção de tijolos mesmo quando chegava a hora do parto.
Modelando tijolos ela dava à luz seu filho e, amarrando-o junto ao
corpo com um lençol, continuava fazendo tijolos.

Não diminuíam jamais o ritmo do trabalho, e das alturas


vertiginosas que haviam atingido lançavam continuamente flechas
em direção ao céu. Viam que as flechas voltavam cobertas de
sangue, pelo que reforçavam a sua ilusão e gritavam:

— Matamos todos que estão no céu!

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Diante disso Deus voltou-se para os setenta anjos que circundam
seu trono e disse:

— Ora, desçamos e confundamos a linguagem deles, para que não


entendam a fala um do outro.

E assim foi. A partir daquele momento ninguém soube o que o


outro estava dizendo. Se um pedia argamassa, o outro lhe dava um
tijolo; num acesso de fúria, o segundo jogava o tijolo no primeiro e
o matava. Muitos morreram dessa forma, e os restantes foram
punidos de acordo com a rebeldia da sua conduta. Os que haviam
dito “subamos até o céu, instalemos ali nossos ídolos e prestemos
adoração a eles”, Deus transformou em macacos e fantasmas; os
que havia proposto atacar o céu com suas armas, Deus fez com
que lutassem uns com os outros de modo a que caíssem em
combate; e os que haviam decidido travar uma guerra contra Deus
no céu foram espalhados por completo sobre a face da terra.

Quanto à torre incompleta, uma parte afundou terra adentro,


outra foi consumida pelo fogo; apenas um terço permaneceu de
pé. O lugar onde foi construída a torre jamais perdeu sua
qualidade peculiar: qualquer um que passa por ali esquece tudo
que sabe.

Em relação ao tamanho da sua transgressão, foi branda a punição


infligida sobre a geração pecaminosa da torre. Por sua rapinagem
a geração do dilúvio foi destruída por completo, enquanto que a
geração da torre foi poupada a despeito de suas blasfêmias e de
todos seus demais atos ofensivos a Deus. A razão disto está em
que Deus tem em alta conta a paz e a harmonia. Por isso a geração
do dilúvio, em que as pessoas entregavam-se a saques e
depredações e nutriam ódio uns pelos outros, foi extirpada até a
raiz, enquanto a geração da torre de Babel, em que as pessoas
conviviam amigavelmente e amavam umas às outras, foi poupada
pelo menos em parte.

Além da punição do pecado e dos pecadores através da confusão


da fala, outra circunstância notável permanece ligada à descida de
Deus à terra — sendo esta uma das dez descidas dessa natureza
que devem ocorrer entre a criação do mundo e o dia do

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julgamento. Foi nessa ocasião que Deus e os sessenta anjos que
circundam seu trono fizeram um sorteio sobre diversas nações da
terra. A cada anjo foi sorteada uma nação, e a sorte de Israel
recaiu sobre Deus. A cada nação foi destinado um idioma, sendo o
hebraico — a linguagem usada por Deus na criação do mundo —
reservada para Israel.

AS GERAÇÕES PERVERSAS
ABRAÃO: As gerações perversas

Entre Noé e Abraão houve dez gerações; isso ocorreu de modo a


demonstrar a clemência de Deus, porque todas essas gerações
provocaram a sua ira, até que nosso pai Abraão veio e recebeu a
recompensa por todas. Foi por causa de Abraão que Deus se
mostrou longânimo e paciente durante as vidas dessas dez
gerações.

Não apenas isso, o próprio mundo foi criado devido aos méritos
de Abraão. Seu advento foi revelado a seu ancestral Reú, que
proferiu a seguinte profecia por ocasião do nascimento de seu
filho Serugue: “Desta criança, na quarta geração, nascerá aquele
que fará sua habitação no altíssimo; ele será chamado de perfeito
e sem mácula e será pai de nações; sua aliança não será anulada, e
sua descendência se multiplicará para sempre.”

Na verdade já não era sem tempo que o “amigo de Deus”


aparecesse sobre a face da terra. Os descendentes de Noé estavam
afundando cada vez mais na devassidão; começavam a envolver-
se em disputas e assassinatos, a comer sangue, a construir cidades
fortificadas e muralhas e torres, a colocar um único homem como
rei sobre toda a nação, a travar guerras, povo contra povo, nação
contra nação e cidade contra cidade; praticavam toda sorte de
maldade, adquirindo armas e ensinando a arte da guerra a suas
crianças. Começaram a fazer prisioneiros e vendê-los como
escravos. Começaram a fazer para si imagens fundidas, cada um

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passando a adorar a imagem fundida que fizera para si, pois os
espíritos malignos, sob a liderança de Mastema, desviavam-nos
para o caminho do pecado e da impureza. Por essa razão Reú deu
a seu filho o nome de Serugue/ramificado, porque toda a
humanidade se desviara para o caminho do pecado e da
transgressão. Quando Serugue atingiu a maioridade ficou
demonstrado que o nome fora bem escolhido, pois ele também
adorou ídolos, e quando teve ele mesmo um filho, chamado Naor,
instruiu-o nas artes dos caldeus, ensinando-o a ser adivinho e
praticar artes mágicas de acordo com os sinais dos céus.

Quando chegou a hora e Naor teve um filho, Mastema mandou


corvos e outros pássaros para que despojassem a terra e
roubassem dos homens os frutos de seu trabalho. Logo que
deitavam a semente no sulco do arado, e antes que pudessem
cobri-la com terra, os pássaros vinham e levavam-na da superfície
do solo. Por isso Naor deu a seu filho o nome de Tera/vagabundo,
porque os corvos e outros pássaros atormentavam os homens e
devoravam suas sementes, reduzindo-os à miséria.

O NASCIMENTO DE ABRAÃO
ABRAÃO: O nascimento de Abraão

Tera casou-se com Emtelai, filha de Karnavo, e o fruto da sua


união foi Abraão. Seu nascimento tinha sido lido nas estrelas por
Ninrode, pois esse rei perverso era também um hábil astrólogo, e
ficou manifesto a ele que nos seus dias nasceria um homem que se
levantaria contra ele e exporia triunfalmente a mentira da sua
religião. Em seu terror diante do destino previsto para ele pelas
estrelas, Ninrode mandou chamar seus príncipes e governadores,
e pediu-lhes que o aconselhassem a respeito da questão.

Eles responderam:

— Nossa recomendação unânime é que o senhor construa uma


grande casa, coloque uma guarda na entrada, e faça anunciar em
todo o seu reino que todas as mulheres grávidas devem dirigir-se

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até ali com suas parteiras, as quais devem permanecer com elas
até que tenham dado à luz. Quando chegar a hora do parto e a
criança nascer, será dever da parteira, se for menino, matá-lo. Se
for menina, será mantida viva, e a mulher recebera presentes e
vestidos caros, enquanto um arauto promulgará: “Assim é tratada
a mulher que tem uma filha!”

O rei agradou-se da recomendação deles, e fez com que uma


proclamação fosse publicada no reino inteiro, convocando todos
os arquitetos para que construíssem uma grande casa, com
sessenta varas de altura e oitenta de largura. Uma vez concluída
ele emitiu uma segunda proclamação, convocando todas as
mulheres grávidas até a casa, onde deveriam permanecer em
regime de confinamento.

Oficiais foram apontados para levar as mulheres até a casa, e


guardas foram colocados nela e nos seus arredores, para impedir
que escapassem. Ele além disso mandou parteiras para a casa, e
ordenou que matassem os filhos homens no próprio seio de suas
mães. Se a mulher desse à luz uma filha, a parteira deveria
envolvê-la em bisso, seda e trajes bordados, e levá-la para fora da
casa de detenção entre grandes honrarias.

Nada menos do que setenta mil crianças foram massacradas dessa


forma. Então os anjos foram à presença de Deus e disseram:

— O senhor não vê o que está fazendo Ninrode filho de Canaarl,


aquele pecador e blasfemador, matando tantas crianças inocentes
que nada de mal fizeram?

Deus respondeu:

— Santos anjos, sei e vejo, pois não durmo nem caio no sono.
Contemplo e conheço as coisas secretas e as coisas que são
reveladas, e vocês testemunharão o que farei a esse pecador e
blasfemador, pois voltarei minha mão contra ele para castigá-lo.

Foi nessa época que Tera tomou como esposa a mãe de Abraão, e
ela estava grávida. Quando, depois de três meses de gravidez, seu
corpo cresceu e seu semblante empalideceu, Tera disse a ela:

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— O que está afligindo você, minha esposa? Porque seu semblante
está tão pálido e seu corpo tão inchado?

— Todo ano sofro desse mal — ela respondeu.

Mas Tera não se deu por satisfeito, e insistiu:

— Mostre-me o seu corpo. A mim parece que você está esperando


um bebê. E, se estiver, não nos cabe violar a ordem de nosso deus
Ninrode.

Quando ele apalpou o corpo da esposa, um milagre aconteceu. A


criança ergueu-se até ficar sob os seios dela, e Terá não sentiu
nada com as mãos.

— Você está dizendo a verdade — ele disse à esposa, e nada ficou


visível até o dia do parto.

Quando chegou a hora a mulher deixou a cidade tomada de grande


terror e perambulou na direção do deserto, caminhando ao longo
da orla de um vale, até deparar-se com uma caverna. Ela entrou
nesse refúgio, e no dia seguinte foi tomada de dores e deu à luz um
filho. Como que com o esplendor do sol, toda a caverna encheu-se
com a luz do semblante da criança, e a mãe encheu-se de júbilo. O
filho que ela gerou foi nosso pai Abraão.

Lamentando-se, a mãe disse ao filho:

— Triste é que você tenha nascido numa época em que o rei é


Ninrode. Por sua causa setenta mil meninos foram massacrados, e
por causa de você estou aterrorizada, com medo que ele ouça da
sua existência e mate você. Melhor é que você morra nesta
caverna do que meus olhos tenham de vê-lo assassinado no meu
seio.

Ela removeu o vestido que trajava e envolveu com ele o menino.

— O senhor permaneça com você. Que ele não lhe falte nem o
deixe.

E abandonou-o sozinho na caverna.

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O BEBÊ PROCLAMA DEUS
ABRAÃO: O bebê proclama Deus

Dessa forma Abraão foi deixado na caverna, sem quem cuidasse


dele, e começou a chorar. Deus mandou o anjo Gabriel para dar-
lhe leite, e o anjo fez com que o leite fluísse do dedo mindinho da
mão direita do bebê — e desse dedo ele mamou até os dez anos de
idade.

O bebê então levantou-se e começou a andar, deixando a caverna e


seguindo pela orla do vale. Quando o sol se pôs e surgiram as
estrelas, ele disse:

— Esses são os deuses!

Mas veio o amanhecer e as estrelas não se viam mais, pelo que ele
disse:

— Não devo prestar-lhes adoração, pois não são deuses.

Então surgiu o sol, e ele disse:

— Este é meu deus; a ele prestarei louvor.

Mas o sol também se pôs, e ele disse:

— Esse não é deus.

Ao contemplar a lua ele chamou-a de deus, aquele a quem haveria


de prestar adoração. Mas a lua foi obscurecida, e ele exclamou:

— Esse também não é deus! Deve haver Um que coloca-os a todos


em movimento.

Ele ainda refletia consigo mesmo quando o anjo Gabriel


aproximou-se dele e saudou-o:

— Paz seja com você.

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— E paz seja com você — respondeu Abraão, e perguntou: —
Quem é você?

— Sou o anjo Gabriel, mensageiro de Deus — disse o anjo, e levou


Abraão até uma nascente próxima.

Ali Abraão lavou o rosto, as mãos e os pés e orou a Deus, pondo-se


de joelhos e prostrando-se no chão. Enquanto isso a mãe de
Abraão pensava nele com tristeza e lágrimas, e saiu da cidade a
fim de procurá-lo na caverna em que o tinha abandonado. Não
encontrando o filho, chorou amargamente.

— Que tristeza a minha, ter dado à luz você apenas para ser presa
de animais selvagens, ursos, lobos e leões!

Ela foi até a orla do vale, e ali achou o filho, mas não o reconheceu,
porque ele havia crescido muito.

— Paz seja com você — ela disse ao rapaz.

— E paz seja com você — ele respondeu, e prosseguiu: — Por que


você veio ao deserto?

— Vim da cidade para procurar o meu filho — ela respondeu.

— Quem trouxe seu filho para cá? — inquiriu ainda Abraão.

— Fiquei grávida de meu esposo Tera — respondeu a mãe, — e


quando chegou a hora de dar à luz fiquei procupada com o filho no
meu ventre, com medo de que o rei viesse, o filho de Canaã, e o
matasse como fez com os outros setenta mil meninos que
nasceram. Mal cheguei à caverna e me sobrevieram as dores de
parto, e dei à luz um menino, a quem deixei na caverna,
retornando para casa. Agora voltei para procurá-lo, mas não
encontro.

— Essa criança da qual você fala — disse Abraão, — que idade


tem?

A mãe:

— Cerca de vinte dias.

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Abraão:

— E pode haver mulher no mundo que abandone seu filho recém-


nascido no deserto, e só volte para procurá-lo vinte dias depois?

A mãe:

— Quiçá Deus se mostrará um Deus misericordioso!

Abraão:

— Sou eu o filho que você veio procurar aqui no vale.

A mãe:

— Meu filho, como você cresceu! Mal tem vinte dias, e já pode
andar e usar a boca para falar!

Abraão:

— Assim é, e dessa forma, mãe, é manifesto a você que existe um


Deus grande, terrível, vivo e sempiterno que vê mas não pode ser
visto. Ele está nas alturas do céu, e toda a terra está cheia da sua
glória.

A mãe:

— Meu filho, existe Deus além de Ninrode?

Abraão:

— Sim, mãe, o Deus do céu e Deus da terra também é o Deus de


Ninrode, filho de Canaã. Portanto vá e leve essa mensagem até
Ninrode.

A mãe de Abraão voltou à cidade e contou a seu esposo, Tera, que


havia encontrado o filho deles. Tera, que era um príncipe e um
maioral na casa do rei, dirigiu-se até o palácio real e prostou-se de
rosto no chão diante do rei. Rezava a norma que aquele que se
prostrava diante do rei não tinha permissão para erguer a cabeça
até que o rei lhe dissesse para fazê-lo. Ninrode deu permissão
para que se levantasse e fizesse sua solicitação.

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Tera então contou tudo que havia acontecido com sua esposa e
seu filho. Quando ouviu a história Ninrode foi tomado de terrível
temor, e perguntou a seus conselheiros e príncipes o que fazer
com o rapaz. Eles responderam:

— Nosso rei e nosso deus, por que está atemorizado por causa de
uma criancinha? Há miríades e miríades de príncipes nos seus
domínios, governantes de milhares, governantes de centenas,
governantes de grupos de cinquenta, governantes de grupos de
dez, e administradores sem conta. Mande o menor dos seus
príncipes buscar o garoto e jogá-lo na prisão.

Mas o rei replicou:

— Vocês já viram um bebê de vinte dias andando sozinho, abrindo


a boca para falar e usando a língua para proclamar que há um
Deus no céu, que ele é um e não há outro além dele, que vê e não é
visto?

E todos os princípes reunidos foram tomados de horror diante


dessas palavras.

Nesse momento Satanás apareceu em forma humana, vestindo um


traje de seda negra, e pôs-se de joelhos diante do rei.

— Erga a cabeça e faça sua solicitação — disse Ninrode.

— Rei, por que tanto medo, e por que estão todos apavorados
diante de um rapazinho? Deixe-me dizer qual medida o rei deve
tomar: abra seu arsenal e dê armas a todos os príncipes, oficiais e
governadores, bem como a todos os guerreiros, e mande-os
buscar o menino para viver a seu serviço e debaixo do seu
domínio.

Essa recomendação, dada por Satanás, o rei aceitou e seguiu:


mandou um grande pelotão armado para trazer Abraão até ele.
Quando viu o exército se aproximando o menino ficou apavorado,
e entre lágrimas implorou a Deus por socorro. Em resposta à sua
oração Deus mandou o anjo Gabriel até ele.

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— Não fique temeroso nem inquieto — disse o anjo, — pois Deus
está com você. Ele o resgatará das mãos de todos os seus
adversários.

Deus ordenou que Gabriel colocasse nuvens escuras e espessas


entre Abraão e seus assaltantes. Transtornados diante das nuvens
cerradas eles fugiram, voltaram a seu rei, Ninrode, e disseram:

— Vamos fugir e ir para longe deste lugar!

O rei então deu dinheiro a todos os seus príncipes e servos, e junto


com seu rei partiram todos para residir na Babilônia.

A PRIMEIRA APARIÇÃO PÚBLICA DE ABRA

ABRAÃO: A primeira aparição pública de Abraão

Então Abraão, ao comando de Deus, recebeu do anjo Gabriel


ordens para seguir Ninrode até a Babilônia. Ele argumentou que
não estava de modo algum equipado para empreender uma
investida militar contra o rei, mas Gabriel acalmou-o com as
seguintes palavras:

— Você não precisa de provisões para o caminho, nem de cavalos


para cavalgar, nem de guerreiros para travar guerra contra
Ninrode; não precisa de carruagens nem de cavaleiros. Apenas
sente-se sobre o meu ombro, e irei eu mesmo levá-lo até a
Babilônia.

Abraão fez como lhe havia sido dito, e num piscar de olhos viu-se
diante dos portões da cidade de Babilônia. Diante da ordem do
anjo ele entrou na cidade, e proclamou em alta voz a seus
habitantes:

— O Eterno é o Único Deus, e não há outro além dele. É o Deus do


céu, o Deus dos deuses, e o Deus de Ninrode. Reconheçam-no
como verdade, todos vocês, homens, mulheres e crianças.

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Reconheçam também que eu sou Abraão, servo dele, o fiel
ministro da sua casa.

“O Eterno criou o mundo para que os homens


acreditassem nele.”
Abraão encontrou seus pais na Babilônia, e viu também o anjo
Gabriel, que mandou-o anunciar a seu pai e sua mãe a verdadeira
fé. Abraão então lhes disse:

— Vocês servem um ser humano como vocês, e prestam adoração


a uma estátua de Ninrode. Vocês não sabem que uma estátua tem
boca mas não fala, tem olhos mas não vê, tem ouvidos mas não
ouve? Não veem que não pode andar por seus próprios pés, e que
não há nela vantagem alguma, seja para si mesma ou para os
outros?

Quando ouviu essas palavras Tera persuadiu seu filho a segui-lo


para dentro de casa, onde Abraão contou-lhe tudo que havia
acontecido — como havia num dia completado uma viagem de
quarenta dias. Tera então foi a Ninrode e contou-lhe que seu filho
Abraão havia aparecido repentinamente na Babilônia. O rei
mandou chamar Abraão, que veio à presença dele com seu pai.

Abraão passou pelos magnatas e dignitários até chegar ao trono


real, que tomou com ambas as mãos, passando a sacudi-lo com
firmeza e a dizer em voz muito alta:

— Ah, Ninrode, patife miserável, que nega a essência da fé; que


nega o Deus vivo e imutável e Abraão seu servo, o fiel ministro da
sua casa. Reconheça-o e repita depois de mim as seguintes
palavras: “O Eterno é o Único Deus, e não há outro além dele; é
incorpóreo, vivo e sempiterno; não dorme nem cai no sono, e
criou o mundo para que os homens acreditassem nele”. E confesse
também acerca de mim, reconhecendo que sou o servo de Deus e
o fiel ministro da sua casa.

Enquanto Abraão proclamava em voz alta essas coisas os idólos


caíram de rosto no chão, e com eles também o rei Ninrode. Pelo

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intervalo de duas horas e meia o rei jazeu sem vida, e quando sua
alma lhe retornou, Ninrode disse:

— É sua voz, Abraão, ou a voz de Deus?

— Essa voz — respondeu Abraão — é a voz da menor das


criaturas que Deus chamou à existência.

Diante do que Ninrode disse:

— Verdadeiramente o Deus de Abraão é um Deus grande e


poderoso, o rei dos reis.

E ordenou a Tera que pegasse seu filho e o levasse dali, voltando a


sua própria cidade, e pai e filho fizeram como o rei havia
ordenado.

O PREGADOR DA VERDADEIRA FÉ
ABRAÃO: O pregador da verdadeira fé

Quando Abraão completou vinte anos seu pai, Tera, adoeceu, e


disse o seguinte a seus filhos Harã e Abraão:

— Meus filhos, eu os esconjuro pelas suas vidas a venderem para


mim esses dois ídolos, pois não tenho dinheiro para pagar as
nossas despesas.

Harã cumpriu o desejo de seu pai, mas quando alguém abordava


Abraão a fim de comprar dele um ídolo, e perguntava o preço. ele
respondia:

«Não vê que ele ainda está com o machado


na mão?»
— Três minas — e perguntava em seguida: — Quantos anos você
tem?

Se a pessoa respondia “trinta”, ele dizia:

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— Você tem trinta anos e está disposto a prestar adoração a um
ídolo que acabei de fazer hoje mesmo?

O homem então ia embora. Quando outro se aproximava de


Abraão e perguntava:

— Quanto é esse ídolo?

— Cinco minas — ele respondia, e perguntava novamente: —


Quantos anos você tem?

— Cinquenta.

— Você tem cinquenta anos e está disposto a ajoelhar-se diante do


ídolo que fiz hoje mesmo?

Diante do que o homem também ia embora.

Abraão então pegou dois ídolos, colocou-lhes uma corda ao redor


do pescoço e, com os rostos voltados para baixo, começou a
arrastá-los pelo chão, gritando enquanto isso:

— Quem quer comprar um ídolo de que nada se aproveita, seja


para si mesmo ou para aquele que o adquire para prestar-lhe
adoração? Tem boca, mas não fala; tem olhos, mas não vê; pés,
mas não anda; ouvidos, mas não ouve.

As pessoas que ouviram ficaram impressionadas com as palavras


de Abraão. Enquanto ele seguia pelas ruas encontrou uma velha
senhora que aproximou-se dele com a intenção de comprar um
ídolo, bom e grande, a fim de adorar e amar.

— Minha senhora, minha senhora — disse Abraão — não sei de


nenhuma vantagem quer nos grandes quer nos pequenos, seja
para os outros, seja para si mesmos. E o que houve com aquela
grande estátua que a senhora comprou do meu irmão Harã, a fim
de prestar adoração?

— Ladrões — respondeu ela — vieram de noite e roubaram a


imagem, enquanto eu ainda estava no banho.

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— Se é assim — Abraão continuou a questioná-la — como pode a
senhora prestar adoração a um ídolo que não é capaz de salvar a si
mesmo dos ladrões? Quanto menos será capaz de salvar os outros,
gente como a senhora, do infortúnio? Como pode a senhora dizer
da imagem que adora que é um deus? Se é deus, porque não
salvou-se das mãos daqueles bandidos? Não, no ídolo nada se
aproveita, seja para si mesmo, seja para quem o adora.

— Se é verdade o que você está dizendo — retrucou a mulher, — a


quem eu deveria servir?

— Sirva o Deus dos deuses — respondeu Abraão, — o Senhor dos


senhores, que criou o céu e a terra, o mar e tudo que nele há. Ele é
o Deus de Ninrode e o Deus de Terá, o Deus do oriente, do
ocidente, do sul e do norte. Quem é Ninrode, aquele cão, para
chamar a si mesmo de Deus e para que lhe seja prestada
adoração?

Abraão conseguiu abrir os olhos daquela senhora, que tornou-se


zelosa missionária do verdadeiro Deus. Quando descobriu os
ladrões que haviam levado seu ídolo, e eles lho devolveram, ela
usou uma pedra para fazê-lo em pedaços. Enquanto vagava pelas
ruas, ela gritava:

— Quem quiser salvar sua alma da destruição e ser próspero em


todas as suas iniciativas, sirva o Deus de Abraão.

Dessa forma ela converteu muitos homens e mulheres à


verdadeira crença.

Rumores das palavras e dos feitos da velha senhora chegaram aos


ouvidos do rei, que mandou buscá-la. Quando ela compareceu o
rei repreendeu-a severamente, perguntando como ela ousava
servir um deus que não fosse ele mesmo.

– Você é um mentiroso — respondeu a senhora — que nega o


único Deus, a essência da fé, além do qual não há deus. Você vive
pela generosidade dele, mas presta adoração a outro, repudiando
o verdadeiro Deus, seus ensinos e seu servo Abraão.

171
A senhora pagou com a vida pelo fervor da sua fé. Ninrode, no
entanto, foi tomado de intensos temor e terror, porque as pessoas
se mostravam cada vez mais apegadas aos ensinos de Abraão, e o
rei não sabia como lidar com o homem que solapava os
fundamentos da antiga fé.

A conselho dos príncipes, Ninrode organizou um festival de setes


dias, ao qual todos foram ordenados comparecer em trajes de
estado, usando seus adereços de ouro e prata. Através dessa
manifestação de riqueza e moder, Ninrode esperava intimidar
Abraão e trazê-lo de volta para a fé do rei. Através de Tera,
Ninrode convidou Abraão para vir até sua presença, para que ele
tivesse oportunidade de ver sua grandeza e sua riqueza, a glória
de seu domínio e sua multidão de príncipes e servidores. Abraão,
no entanto, recusou-se a comparecer diante do rei. Em
contrapartida, Abraão concordou quando seu pai pediu que em
sua ausência ele vigiasse os ídolos dele e do rei, e cuidasse deles.

Sozinho com os ídolos, e enquanto repetia as palavras “o Eterno é


Deus, o Eterno é Deus”, Abraão derrubou os ídolos de seus tronos
e passou a golpeá-los com um machado, começando no maior e
terminando no menor. Ele despedaçava os pés de um e decepava a
cabeça de outro; arrancava os olhos de um, esmagava as mãos de
outro. Quando todos estavam mutilados, Abraão foi embora, mas
antes colocou o machado nas mãos do maior dos ídolos.

Concluído o banquete o rei retornou, e quando viu todos os seus


ídolos feitos em pedaços passou a investigar quem havia cometido
o dano. Quando Abraão foi apontado como responsável pela
afronta, o rei mandou chamá-lo e perguntou o motivo de seu
delito.

— Não fui eu! — replicou Abraão. — Foi o ídolo grande quem


despedaçou todos os outros. Não vê que ele ainda está com o
machado na mão? Se não acredita em mim, pergunte e ele lhe dirá.

NA FORNALHA ARDENTE

172
ABRAÃO: Na fornalha ardente

Ora, o rei estava profundamente irado com Abraão, e ordenou que


ele fosse colocado na prisão, onde mandou que o guarda não lhe
desse nem pão nem água. Porém Deus ouviu a oração de Abraão e
mandou até o seu calabouço o anjo Gabriel. Por um ano o anjo
residiu com ele e proveu-o de toda sorte de alimento; uma fonte
de água fresca abriu-se diante dele, e dela Abraão bebia.

Ao final de um ano os maiorais do reino apresentaram-se diante


do rei e aconselharam-no a lançar Abraão no fogo, para que o
povo acreditasse em Ninrode para sempre. O rei então publicou
um decreto ordenando que todos os súditos do rei em todas as
suas províncias, homens e mulheres, jovens e velhos, trouxessem
madeira por quarenta dias, a qual ele fez com que fosse colocada
numa imensa fornalha e acendida. As chamas lançaram-se até o
céu, e as pessoas ficaram absolutamente aterrorizadas diante do
fogo.

Foi então ordenado ao guarda da prisão que trouxesse Abraão e o


arremessasse nas chamas. O guarda lembrou o rei que Abraão não
tinha tido comida nem bebida por um ano, e que deveria portanto
estar morto, mas Ninrode queria vê-lo colocar-se diante da cela e
chamar o seu nome. Se Abraão respondesse, o guarda deveria
atirá-lo na pira. Se tivesse morrido, seus restos deveriam ser
enterrados e sua memória completamente apagada dali em diante.

O guarda ficou estupefato quando ao seu grito “Abraão, você está


vivo?”, veio a resposta “sim, estou”. Ele perguntou ainda:

— Quem lhe trouxe água e comida todo esse tempo?

— Comida e bebida — respondeu Abraão — concedeu-me aquele


que está sobre todas as coisas, o Deus de todos os deuses e Senhor
de todos os senhores, o único que faz maravilhas, aquele que é o
Deus de Ninrode, Deus de Tera e Deus do mundo inteiro. Ele provê
comida e bebida para todos os seus seres. Ele vê, mas não pode ser
visto; está no alto no céu e está presente em todos os lugares, pois
tudo ele supervisiona e em favor de todos provê.

173
O resgate miraculoso de Abraão da morte por inanição e sede
convenceu o guardião da prisão da verdade de Deus e de seu
profeta Abraão, e ele reconheceu publicamente sua fé em ambos.
A ameaça do rei, de que o mataria se não abjurasse, não bastou
para desviá-lo de sua nova e verdadeira fé. Quando o executor
ergueu a espada e a pôs junto à sua garganta para matá-lo, o
guarda exclamou:

— O Eterno é Deus: Deus de todo o mundo e também do


blasfemador Ninrode.

Mas a espada não foi capaz de cortar a sua carne. Quanto mais
forte era pressionada contra sua garganta, mais se fazia em
pedaços.

Ninrode, no entanto, não estava disposto a abandonar seu


propósito de fazer Abraão sofrer a morte pelo fogo. Um dos
oficiais do rei foi enviado para trazê-lo da prisão. Porém mal tinha
o mensageiro dado início à tarefa de atirá-lo no fogo, uma
labareda projetou-se da fornalha e o consumiu. Inúmeras
tentativas foram feitas de arremessar Abraão na fornalha, mas
sempre com o mesmo resultado: aquele que agarrava era ele
mesmo queimado, e muitas vidas foram perdidas.

Satanás apareceu em forma humana e aconselhou o rei a colocar


Abraão numa catapulta, e dessa forma arremessá-lo no fogo;
assim ninguém precisaria aproximar-se das chamas. O próprio
Satanás construiu a catapulta. Depois de testá-la três vezes com
pedras colocadas no mecanismo, amarraram Abraão pelas mãos e
pelos pés, e estavam a ponto de consigná-lo às chamas. Naquele
momento Satanás, ainda disfarçado em forma humana,
aproximou-se de Abraão e disse:

— Se você quer salvar-se do fogo de Ninrode, ajoelhe-se diante


dele e creia nele.

Mas Abraão rejeitou a tentação com as seguintes palavras:

— Seja o Eterno a repreendeer você, blasfemador maldito e sujo!

E Satanás deixou-o.

174
Então a mãe de Abraão veio até ele e implorou que ele prestasse
adoração a Ninrode a fim de escapar do infortúnio iminente. Mas
ele disse a ela:

— Mãe, a água pode aplacar o fogo de Ninrode, mas o fogo de Deus


jamais se apagará.

Ao ouvir essas palavras, ela disse:

— Que o Deus a quem você serve o resgate do fogo de Ninrode!

Abraão foi finalmente colocado na catapulta, de onde ergueu os


olhos para o céu e disse:

— Ah, Senhor, meu Deus, o senhor está vendo o que este pecador
planeja fazer comigo.

Sua confiança em Deus era inabalável. Quando os anjos receberam


permissão divina para salvá-lo, e Gabriel aproximou-se dele para
perguntar “Abraão, posso salvá-lo do fogo?”, ele respondeu “O
Deus em quem confio, o Deus do céu e da terra, ele irá me
resgatar”. Deus, vendo o espírito de submissão de Abraão,
ordenou ao fogo: “Esfrie, e tranquilize meu servo Abraão”.

Nenhuma água foi necessária para apagar o fogo. As toras


irromperam em flor, e todas as diferentes espécies de madeira
produziram fruto, cada árvore segundo a sua espécie. A fornalha
transformou-se num régio jardim de delícias, e os anjos sentaram-
se ali com Abraão.

Quando viu o milagre, o rei disse:

— Excelente feitiçaria! Você deixa manifesto que o fogo não tempo


poder sobre você, e ao mesmo tempo mostra-se ao povo sentado
num jardim de delícias.

Porém os oficiais de Ninrode se interpuseram numa só voz:

— Não, nosso senhor, não é feitiçaria. É o poder do grande Deus, o


Deus de Abraão, além do qual não há deus. Nós reconhecemos que
ele é Deus, e Abraão seu servo.

175
Todos os oficiais e todo o povo creram naquela hora em Deus, no
Eterno, o Deus de Abraão, e exclamaram todos:

— O Senhor é Deus do céu e da terra, e não há outro.

Abraão era em tudo superior, não apenas ao rei Ninrode e seus


assistentes, mas também aos homens piedosos do seu tempo, Noé,
Sem, Éber e Assur. Noé absolutamente não se preocupava em
propagar a verdadeira fé em Deus. Mergulhado em prazeres
materiais, seu interesse era plantar sua vinha. Sem e Éber
mantinham-se escondidos e, quanto a Assur, havia dito:

— Como posso viver no meio desses pecadores?

E partira em seguida da terra.

O único que permanecia inabalável era Abraão. “Não abandonarei


a Deus”, ele dizia, e Deus por isso não o abandonava. a ele que não
tinha dado ouvidos nem a seu pai nem a sua mãe.

O miraculoso livramento de Abraão da fornalha ardente,


juntamente com sua fortuna posterior, foi cumprimento e
explicação do que seu pai, Tera, havia lido nas estrelas. Tera tinha
visto a estrela de Harã consumida de fogo, ao mesmo tempo em
que enchia e reinava sobre todo o mundo. O significado agora era
claro: Harã tinha uma fé irresoluta; não conseguia decidir entre
Abraão e os idólatras. Quando aconteceu de aqueles que não
adoravam os ídolos serem lançados na fornalha ardentes, Harã
pensou consigo da seguinte maneira: “Abraão, sendo mais velho
do que eu, será chamado antes de mim. Quando ele sair triunfante
da prova de fogo, declararei minha fidelidade a ele”.

Depois que Deus resgatou Abraão da morte, quando chegou a hora


de Harã fazer sua confissão de fé, ele anunciou sua adesão a
Abraão. Porém mal se aproximara da fornalha quando foi tomado
pelas chamas e consumido, porque sua fé em Deus não era firme.
Tera tinha lido bem as estrelas, ficava agora claro: Harã fora
queimado, e sua filha Sara tornou-se esposa de Abraão, cujos
descendentes enchem a terra.

176
A morte de Harã foi digna de nota em outro sentido: foi a primeira
vez, desde a criação do mundo, em que um filho morreu enquanto
seu pai era vivo.

O rei, os oficiais e todo o povo, que tinham testemunhado as


maravilhas realizadas por Abraão, vieram até ele e prostarem-se
diante dele. Porém Abraão disse:

— Não se ajoelhem diante de mim, mas de Deus, Mestre do


universo, que os criou. Sirvam-no e andem nos seus caminhos,
pois foi ele quem livrou-me das chamas; foi ele quem criou a alma
e o espírito de cada ser humano, e é ele que forma o homem no
útero de sua mãe e o traz ao mundo. Ele salva de toda
enfermidade os que colocam nele a sua confiança.

O rei então dispensou Abraão, depois de enchê-lo com uma


abundância de presentes preciosos, entre os quais dois escravos
que haviam sido criados no palácio real. Um deles se chamava
‘Ogi, o outro Eliezer. Os oficiais seguiram o exemplo do rei, e
deram a Abraão prata, ouro e pedras preciosas. Porém nem todos
esses presentes alegraram o coração de Abraão tanto quanto os
trezentos seguidores que juntaram-se a ele e aderiram à sua
religião.

ABRAÃO EMIGRA PARA HARÃ


ABRAÃO: Abraão emigra para Harã

Por um período de dois anos Abraão pode dedicar-se sem


perturbação à sua escolhida tarefa de converter os corações dos
homens a Deus e seus ensinos. Em seu piedoso empreendimento
foi auxiliado por sua esposa Sara, com quem havia casado nesse
meio tempo. Enquanto ele exortava os homens e buscava
convertê-los, Sara dirigia-se às mulheres. Ela foi uma
colaboradora digna de Abraão. De fato, seus poderes proféticos
superavam os do seu marido; devido a eles, ela era por vezes
chamada de Iscah, “a vidente”.

177
Ao final de dois anos aconteceu que Ninrode teve um sonho. Nesse
sonho ele viu-se com seu exército próximo à fornalha ardente do
vale, dentro da qual Abraão havia sido arremessado. Um homem
semelhante a Abraão saiu da fornalha e correu atrás do rei com
espada desembainhada, enquanto o rei fugia aterrorizado.
Enquanto corria, o perseguidor atirou um ovo na cabeça de
Ninrode; de dentro dele uma poderosa torrente começou a jorrar,
e por ela todo o exército do rei morreu afogado. Apenas o rei
sobreviveu, e com ele três homens. Quando Ninrode examinou
seus companheiros, observou que usavam trajes reais, e em
aspecto e estatura lembravam ele mesmo. A torrente voltou a
assumir a forma de ovo, e dela saiu um pintinho, que voou,
sentou-se na cabeça do rei e bicou um de seus olhos.

O rei viu-se desconcertado em seu sono, e quando acordou seu


coração batia como um pilão, e seu terror era impossível medir.
De manhã, quando levantou, mandou chamar seus sábios e magos,
e contou-lhes o sonho. Um dos sábios, por nome Anoko, ficou em
pé e disse:

— Fique sabendo, ó rei, que esse sonho indica o infortúnio que


Abraão e seus descendentes farão sobrevir sobre o senhor.
Chegará o tempo em que ele e seus seguidores travarão guerra
contra o seu exército, e irão aniquilá-lo. O senhor e os três reis,
seus aliados, serão os únicos a escapar da morte. Porém mais
tarde o senhor perderá a sua vida nas mãos de um dos
descendentes de Abraão. Considere, ó rei, que seus sábios leram
nas estrelas esse seu destino, há cinquenta e dois anos, por
ocasião do nascimento de Abraão. Enquando Abraão viver sobre a
terra o rei não gozará de segurança, nem o seu reino.

Ninrode levou muito a sério as palavras de Anoko, e mandou que


alguns de seus servos saíssem à captura de Abraão para matá-lo.
Acontece que Eliezer, o escravo que Abraão havia recebido de
presente de Ninrode, estava naquela ocasião na corte do rei. Com
grande pressa ele correu até Abraão para convencê-lo a fugir
antes que chegassem os oficiais do rei. Seu mestre aceitou o
conselho e foi refugiar-se na casa de Noé e Sem, onde ficou
escondido por um mês inteiro. Os oficiais do rei relataram que,
apesar dos mais zelosos esforços, Abraão não podia ser

178
encontrado. A partir desse momento o rei deixou de preocupar-se
com Abraão.

Quando Terá foi visitar o filho em seu esconderijo, Abraão propôs


que deixassem aquela terra e fixassem residência em Canaã, a fim
de escaparem da perseguição de Ninrode.

— Considere — ele disse — que não foi por sua causa que Ninrode
o cobriu de honras: foi para vantagem pessoal dele. E mesmo que
ele continue a derramar os maiores benefícios sobre o senhor, o
que são esses se não vaidade terrena? De nada servem riquezas e
bens no dia da ira e da fúria. Ouça o que estou dizendo, meu pai:
partamos para a terra de Canaã, e sirvamos o Deus que o criou,
para que tudo lhe vá bem.

Noé e Sem assistiram e reforçaram os esforços de Abraão em


persuadir Tera, pelo que Tera consentiu em abandonar o seu país.
Ele, Abraão e Ló, filho de Harã, partiram para Harã com suas
famílias. Aquela terra eles acharam agradável, bem como seus
habitantes, que prontamente cederam à influência do espírito
humano de Abraão e de sua piedade. Muitos passaram a obedecer
os seus preceitos e tornaram bons e tementes a Deus.

A resolução de Tera de abandonar seu país nativo por Abraão e


fixar residência em terras estrangeiras, bem como seu impulso de
fazê-lo mesmo antes que o chamado divino visitasse o próprio
Abraão — esses foram tomados pelo Senhor como um grande
mérito para Tera, pelo que lhe foi permitido ver seu filho Abraão
governar como rei de todo o mundo. Pois quando o milagre
aconteceu, e Isaque nasceu de seus envelhecidos pais, o mundo
inteiro dirigiu-se até Abraão e Saram exigindo saber o que eles
haviam feito para que coisa tão grandiosa tivesse sido realizada
em seu favor. Abraão contou-lhes tudo que havia acontecido entre
ele e Ninrode, o modo como ele havia se mostrado pronto a ser
queimado para a glória de Deus, e o modo como o Senhor o havia
resgatado das chamas. Em demonstração de admiração por
Abraão e seu ensino, os povos apontaram-no como seu rei, e em
comemoração ao nascimento assombroso de Isaque, a moeda
cunhada por Abraão trazia as figuras de um velho casal num dos
lados e de um jovem casal no outro, pois por ocasião do

179
nascimento de Isaque tanto Abraão quanto Sara rejuvenesceram:
o cabelo branco de Abraão ficou preto, e as rugas no rosto de Sara
desapareceram.

Por muitos anos Tera viveu para testemunhar a glória de seu filho,
pois sua morte não ocorreu até que Isaque fosse um jovem de
trinta e cinco anos. Porém uma recompensa ainda maior
aguardava sua boa obra: Deus aceitou seu arrependimento, e
quando deixou esta vida Tera adentrou o Paraíso ao invés do
inferno, muito embora tivesse vivido muitos de seus dias em
pecado. De fato, tinha sido por sua culpa que Abraão quase
perdera sua vida nas mãos de Ninrode.

A ESTRELA NO ORIENTE
ABRAÃO: A estrela no oriente

Tera havia sido um alto oficial na corte de Ninrode, e era tido em


alta conta pelo rei e seus ministros. Nascera-lhe um filho, a quem
ele chamara de Abrão, porque o rei o alçara a um posto elevado.

Na noite do nascimento de Abraão os astrólogos e sábios de


Ninrode foram à casa de Tera, comeram e beberam, e celebraram
com ele naquela noite. Quando saíram de casa eles ergueram os
olhos para o céu para observar as estrelas e, para sua surpresa,
viram uma enorme estrela que surgiu do oriente, correu ao longo
do

«Estabeleça um preço para me dar o seu


filho.»
céu e engoliu as quatro estrelas nos quatro cantos. Ficaram todos
atônitos diante dessa visão, mas entenderam o que representava e
compreenderam sua importância. Disseram uns aos outros:

— Isso apenas significa que o filho que nasceu a Tera esta noite
crescerá e será fértil; significa que ele se multiplicará e possuíra

180
toda a terra, ele e seus descendentes para sempre, e abaterá
grandes reis e herdará suas terras.

Foram para casa naquela noite e acordaram cedo na manhã


seguinte, e reuniram-se na sua casa de reuniões. Então disseram
uns aos outros:

— Ora, a visão que tivemos noite passada permanece oculta do


rei: ele não foi informado dela. Se essa coisa chegar ao
conhecimento dele mais tarde, ele nos dirá “Por que vocês
ocultaram esse assunto de mim?”, e seremos todos mortos. Vamos
agora e contemos ao rei aquilo que vimos, bem como sua
interpretação, e estaremos livres dessa culpa.

Eles foram ao rei e contaram da visão que tinham tido, bem como
sua interpretação, e acrescentaram a recomendação de que ele
pagasse a Tera o valor do bebê, em dinheiro, e matasse a criança.

Em conformidade com isso, o rei mandou chamar Tera, e quando


chegou disse a ele:

— Foi-me contado que seu filho nasceu ontem à noite, e que um


sinal maravilhoso foi observado no céu por ocasião do céu
nascimento. Ora, me dê o menino, para que possamos matá-lo
antes que algum mal nos sobrevenha através dele, e darei em
troca dele a sua casa cheia de ouro e prata.

— Isso que o senhor me promete — respondeu Tera — é como a


história do homem que disse à sua mula: “eu lhe darei uma grande
pilha de cevada, uma casa cheia, desde que você me deixe cortar-
lhe a cabeça”. A mula respondeu: “De que uso será a cevada para
mim, se você cortar-me a cabeça? Quem irá comer aquilo que você
me der?” Da mesma forma eu digo: “O que posso fazer com prata e
ouro depois da morte do meu filho? Quem será meu herdeiro?”

Porém quando viu que a ira do rei se atiçava diante dessas


palavras, Tera acrescentou:

— Qualquer coisa que o rei desejar fazer a este seu servo, assim
seja feito. Até mesmo meu filho está à disposição do rei, sem a

181
necessidade de qualquer compensação ou pagamento; ele e seus
dois irmãos mais velhos.

O rei, no entanto, disse:

— Meu desejo é adquirir seu filho mais novo por um preço.

— Dê-me três dias — respondeu Tera — para considerar o


assunto e consultar minha família.

O rei concordou com essa condição, e no terceiro dia mandou


chamar Tera e disse:

— Estabeleça um preço para me dar o seu filho, como eu lhe disse,


e se você não o fizer mandarei matar a todos na sua casa: nem um
cachorro lhe restará.

Então Tera tomou o filho que sua criada havia dado à luz naquele
dia, e trouxe o bebê ao rei, e recebeu a compensação por ele. O rei
pegou a criança e esmigalhou-lhe a cabeça contra o chão,
pensando que fosse Abraão. Enquanto isso Tera tomou seu filho
Abraão, junto com a mãe da criança e sua ama, e escondeu-os
numa caverna, para onde levava provisões uma vez ao mês. O
Senhor estava com Abraão na caverna, e ele cresceu, embora o rei
e seus servos achassem que Abraão estivesse morto.

Quando Abraão completou dez anos ele, sua mãe e sua ama saíram
da caverna, pois o rei e seus servos haviam esquecido o caso de
Abraão.

Naquele tempo todos os habitantes da terra, com exceção de Noé e


os da sua casa, transgrediam contra o Senhor, e cada homem fez
para si um deus, deuses de madeira e de pedra, incapazes de falar,
de ouvir e de libertar da aflição. O rei e seus servos, e Tera com os
da sua casa, foram os primeiros a adorarem imagens de madeira e
de pedra. Tera fez doze deuses de enormes dimensões, de madeira
e de pedra, correspondendo aos doze meses do ano, e prestava-
lhes adoração a seu turno, de acordo com o mês a que
correspondiam.

182
O VERDADEIRO CRENTE
ABRAÃO: O verdadeiro crente

Certa vez Abraão entrou no templo dos ídolos da casa de seu pai, a
fim de trazer-lhes sacrifícios, e encontrou um deles, chamado
Marumate e feito de pedra lavrada, prostrado no chão diante do
deus de ferro de Naor. O ídolo era pesado demais para alguém
erguê-lo do chão sem ajuda, pelo que Abraão chamou seu pai para
ajudar a colocar Marumate de volta no lugar. Enquanto moviam a
estátua a cabeça se soltou; Tera pegou então uma pedra e lavrou
com cinzel um outro Marumate, fixando a cabeça do primeiro no
novo corpo que fizera. Depois continuou e fez mais cinco deuses,
todos os quais entregou a Abraão, mandando que os vendesse nas
ruas da cidade.

Abraão selou sua mula e foi até a hospedaria onde os mercadores


de Fandana, na Síria, paravam em seu caminho para o Egito.
Quando chegou à hospedaria um dos camelos que pertencia aos
mercadores baliu, e o som assustou sua mula de tal forma que ela
saiu correndo desabalada, quebrando três dos ídolos.

«Foi ele que atirou-se ao fogo para que sua


refeição pudesse ser preparada.»
Os mercadores não apenas compraram os ídolos em bom estado
que ele trazia, mas deram-lhe ainda dinheiro pelos quebrados,
pois Abraão contou-lhes o quanto estava receoso de aparecer
diante do pai com menos dinheiro do que esperava reveber pelo
trabalho das suas mãos.

Esse incidente levou Abraão a refletir sobre a inutilidade dos


ídolos. “O que essas coisa perversas fizeram ao meu pai?” ele disse
a si mesmo. “Então ele não é o deus dos seus deuses? Não é devido
ao lavor, esforço e planejamento dele que eles chegam a existir?
Não seria mais apropriado que eles prestassem adoração e meu
pai do que ele a eles, considerando-se que são obra das suas
mãos?”

183
Pensando nessas coisas ele chegou à casa do pai, entrou e
entregou-lhe o dinheiro pelas cinco imagens. Tera encheu-se de
júbilo e disse:

— Meus deuses o abençoem, porque me trouxe o preço pelos


meus ídolos, e meu trabalho não foi em vão.

Mas Abraão retrucou:

— Ouça, Tera, meu pai: são os seus deuses os abençoados pelo


senhor, pois o senhor é o deus deles! O senhor os moldou; a
benção deles é destruição, e seu auxílio vaidade. Eles são
incapazes de ajudar a si mesmos; como poderão ajudar o senhor
ou abençoar a mim?

Tera ficou furioso com Abraão, por ter proferido esse discurso
contra os seus deuses. Abraão, refletindo sobre a ira do pai,
deixou-o e saiu da casa, porém Tera chamou-o de volta e disse:

— Junte os cavacos de carvalho que sobraram das imagens que fiz


antes de você voltar, e prepara-me o jantar.

Abraão dispôs-se prontamente a cumprir a ordem do pai, e


enquanto juntava as lascas de madeira encontrou um pequeno
deus entre eles, cuja testa trazia a inscrição “Deus Barisate”.

Abraão atirou os cavacos no fogo e colocou Barisate junto dele.

— Atenção, Barisate! — disse ele. — Cuide para que o fogo não


apague até eu voltar. Se começar a apagar, sopre sobre as brasas e
a chama será atiçada novamente.

Falando assim, foi embora. Quando voltou, Abraão encontrou


Barisate caído de costas, gravemente queimado. Sorrindo, disse a
si mesmo:

— É, Barisate, você não é capaz nem de manter um fogo aceso e


preparar comida.

E, enquanto ele falava, o ídolo foi consumido em cinzas.

184
Abraão levou os pratos ao pai, que comeu e bebeu, ficou satisfeito
e agradeceu a seu deus Marumate. Mas Abraão disse ao pai:

— Não agradeça Marumate, agradeça a seu deus Barisate, pois foi


ele, pelo seu grande amor pelo senhor, que atirou-se no fogo para
que sua refeição pudesse ser preparada.

— Onde está ele agora? — exclamou Tera.

— Converteu-se em cinza pela força do fogo — respondeu Abraão.

— Grande é o poder de Barisate! — disse Tera. — Vou fazer-me


outro hoje mesmo, e amanhã ele me preparará comida.

Essas palavras de seu pai fizeram com que Abraão risse consigo
mesmo, mas ao mesmo tempo sua alma entristecia-se diante da
obstinação de Tera. Ele não hesitou em deixar clara sua posição
sobre os ídolos:

— Pai — disse ele, — não importa qual dos dois deuses o senhor
bendiga. Não há sentido no seu comportamento, pois as imagens
que estão no santo templo são mais dignas de oração do que as
suas. Zuqueu, deus de meu irmão Naor, é mais venerável do que
Marumate, pois é feito de ouro: quando ficar velho poderá ser
moldado novamente. Já quando Marumate ficar frágil ou partir-se
em pedaços não poderá ser refeito, pois é de pedra. O deus Jouave,
que está acima dos outros deuses ao lado de Zuqueu, é mais
venerável do que Barisate, que é de madeira, pois foi malhado de
prata e habilidosamente lavrado pelos homens de modo a mostrar
a sua magnificência. Já o seu Barisate, antes que o senhor o
moldasse em deus com seu machado, estava enraizado na terra,
erguendo-se ali grande e tremendo, na glória de seus ramos e
flores. Agora está seco e sua seiva esvaiu-se. De sua elevada
posição Marumate caiu à terra; do esplendor reduziu-se a
mesquinhez. Sua face empalideceu-se, e ele mesmo foi queimado
pelo fogo e consumido até as cinzas: não existe mais. E agora o
senhor diz “Vou fazer-me outro hoje mesmo, e amanhã ele me
preparará comida”. Pai, o fogo é mais digno de adoração do que
seus deuses de ouro e prata e madeira e pedra, porque pode
consumi-los. Mas tampouco o fogo chamo de deus, porque o fogo
sujeita-se à água, que o apaga. A água também não considero um

185
deus, pois é tragada pela terra; digo que a terra é mais venerável,
porque vence a água. Porém a terra também não chamo de deus,
pois é ressecada pelo sol; digo que o sol é mais venerável do que a
terra, porque ilumina o mundo todo com seus raios. Porém o sol
também não chamo de deus, porque sua luz é obscurecida quando
chega a escuridão. A lua e as estrelas não chamo ainda de deuses,
porque sua luz também se extingue quando passa sua hora de
brilhar. Mas ouça o que vou lhe dizer, meu pai, Tera: o Deus que
criou todas as coisas, ele é o verdadeiro Deus. Ele tingiu os céus e
dourou o sol, e deu esplendor à lua e também às estrelas; secou a
terra de entre as muitas águas, e também colocou o senhor sobre a
terra e, quanto a mim, buscou-me a despeito da confusão dos
meus pensamentos.

O ICONOCLASTA
ABRAÃO: O iconoclasta

Tera, no entanto, não estava convencido. Em resposta à pergunta


de Abraão, sobre qual Deus havia criado o céu e a terra e os filhos
dos homens, Tera levou-o até um salão onde se erguiam doze
ídolos grandes e uma multidão de ídolos menores, apontou para
eles e disse:

— Aqui estão aqueles que fizeram tudo que você vê sobre a terra,
aqueles que criaram a mim e a você e todos os homens sobre a
terra.

Ele em seguida inclinou-se em reverência aos seus deuses e saiu


da sala com seu filho.

Abraão foi então até sua mãe e disse a ela:

— Meu pai mostrou-me aqueles que fizeram o céu e a terra e


todos os filhos dos homens. Agora, mande trazer depressa um
cabrito do rebanho e prepare uma carne saborosa, para que eu
ofereça aos deuses do meu pai; quem sabe através dessa oferta eu
me torne aceitável para eles.

186
Sua mãe fez como ele havia pedido, mas quando trouxe a oferta
aos deuses Abraão viu que eles não tinham voz, nem audição, nem
movimento, e que nenhum deles estendeu a mão para comer.
Abraão zombou deles:

— Está certo, a carne saborosa que preparei não está de acordo


com o seu paladar, ou talvez seja porção pequena demais para
vocês. Amanhã vou preparar uma nova carne saborosa, mais
gostosa e mais abundante do que essa, para ver o que acontece.

Os deuses, no entanto, permaneceram mudos e imóveis diante da


segunda oferta de carne saborosa, tal como diante da primeira,
pelo que o espírito de Deus veio sobre Abraão, que clamou:

— Ai de meu pai e de sua geração perversa, cujos corações estão


inclinados à vaidade, que servem ídolos de madeira e de pedra,
incapazes de comer, de cheirar, de ouvir, de falar; que têm boca
mas não falam, olhos mas não veem, ouvidos mas não ouvem,
mãos mas não sentem, pernas mas não se movem!

Abraão então pegou uma machadinha e quebrou todos os deuses


do seu pai, e depois de quebrá-los todos colocou a machadinha na
mão do maior dos deuses. Em seguida saiu. Tera, tendo ouvido o
barulho da machadinha contra a pedra, correu até o salão dos
ídolos e chegou quando Abraão estava saindo. Quando viu o que
havia acontecido saiu correndo atrás de Abraão e disse:

— Que maldade é essa que você fez com meus deuses?

— Levei uma carne saborosa para eles — respondeu Abraão. —


Quando me aproximei para que pudessem comer, todos
estenderam a mão para pegar a carne antes que o grande tivesse
se servido. Enfurecido por causa desse comportamento, ele pegou
a machadinha e quebrou-os todos. Olhe, a machadinha ainda está
na mão dele, como o senhor pode ver.

Tera ficou indignado com Abraão e disse:

— É mentira! Esses deuses por acaso tem alma, espírito ou poder


para fazer tudo isso que você me disse? Não são por acaso
madeira e pedra? Não fui eu mesmo que os fiz? Foi você que

187
colocou a machadinha na mão do deus maior, e foi você que
inventou dizer que ele matou a todos.

Abraão respondeu ao pai:

— Como pode o senhor, então, servir esses ídolos nos quais não
há poder para fazer coisa alguma? Por acaso esses ídolos em que o
senhor confia podem salvá-lo? Podem ouvir suas orações quando
o senhor os invoca?

Depois de dizer essas e semelhantes palavras, admoestando seu


pai a corrigir sua conduta e deixar de adorar ídolos, Abraão pulou
diante de Tera, pegou a machadinha do ídolo grande, despedaçou-
o com ela e saiu correndo.

Tera correu até Ninrode, ajoelhou-se diante dele e pediu que


ouvisse a sua história, do filho que lhe havia nascido cinquenta
anos atrás, e o que havia feito aos seus deuses, e o que havia dito.

— Agora, então, meu senhor e rei — disse ele, — mande que ele
venha até a sua presença, para que o senhor o julgue em
conformidade com a lei, para que sejamos livres deste mal.

Quando foi trazido à presença do rei Abraão contou-lhe a mesma


história que havia contado a Tera, sobre o deus grande que havia
destruído os menores, mas o rei respondeu:

— Ídolos não falam, nem comem, nem se movem.

Abraão então repreendeu-o por adorar deuses incapazes de


qualquer coisa, e admoestou-o a servir o Deus do universo. Suas
últimas palavras foram:

— Seu o seu coração perverso não der ouvidos às minhas


palavras, levando-o a abandonar sua má conduta e passar a servir
o Deus eterno, você morrerá de forma vergonhosa nos últimos
dias: você, sua família e todos os ligados a você: todos que ouvem
as suas palavras e imitam a sua má conduta.

O rei ordenou que Abraão fosse lançado na prisão, e ao fim de dez


dias fez com que comparecessem diante dele todos os príncipes e

188
grandes homens do reino, aos quais expôs o caso de Abraão. O
veredito do grupo foi que o acusado deveria ser queimado; em
conformidade com isso o rei fez com que um grande fogo fosse
preparado por três dias e três noites, em sua fornalha em Kasdim,
e Abraão foi levado da prisão até ali para ser queimado.

Todos os habitantes daquela terra, cerca de novecentos mil


homens, bem como as mulheres e crianças, vieram ver o que seria
feito com Abraão. Quando ele foi trazido os astrólogos o
reconheceram e disseram ao rei:

— Com certeza, este é o homem que conhecemos quando criança;


foi por ocasião do seu nascimento que a estrela grande engoliu as
quatro estrelas. Preste atenção, porque o pai dele transgrediu as
suas ordens e zombou da sua autoridade, pois trouxe outra
criança até o senhor e o senhor a matou.

Tera ficou muito apavorado, temendo a ira do rei, e admitiu que o


tinha enganado. Quando o rei perguntou: “Quem foi que o
aconselhou a agir assim? Não esconda nada e você não morrerá”,
Tera acusou falsamente Harã, que por ocasião do nascimento de
Abraão tinha trinta e dois anos, de tê-lo aconselhado a enganar o
rei. Ao comando do rei, Abraão e Harã, despidos de todas as
roupas com exceção de suas ceroulas, com as mãos e pés
amarrados com cordas de linho, foram lançados dentro da
fornalha. Harã, cujo coração não era perfeito diante do Senhor,
pereceu no fogo, e os homens que os atiraram na fornalha também
foram queimados por chamas que se lançaram sobre eles. Apenas
Abraão foi salvo pelo Senhor, e não foi queimado, muito embora as
cordas que o amarrassem tenham sido consumidas. Por três dias e
três noites Abraão caminhou dentro do fogo, e todos os servos do
rei vieram lhe contar:

— Olhe, vimos Abraão andando no meio do fogo.

A princípio o rei não lhes deu crédito, mas quando alguns de seus
príncipes mais leais corroboraram as palavras dos servos ele
levantou-se e foi ver por si mesmo. Ele então ordenou aos servos
que tirasse Abraão do fogo, mas eles não conseguiram, porque as
chamas se lançavam sobre eles da fornalha. Quando tentaram

189
novamente, ao comando do rei, aproximar-se da fornalha, as
chamas se projetaram para fora e queimaram seus rostos, de
modo que oito deles morreram no total. O rei então disse a
Abraão:

— Como é que você não foi consumido pelo fogo?

E Abraão respondeu:

— O Deus do céu e da terra, em quem confio e quem todas as


coisas sob o seu poder, ele me livrou do fogo no qual você fez que
eu fosse lançado.

ABRAÃO EM CANAÃ
ABRAÃO: Abraão em Canaã

Com dez tentações Abraão foi tentado, e ele resistiu a todas,


ficando demonstrado quão grande era o seu amor. A primeira
prova a que foi submetido foi a partida de sua terra natal. As
dificuldades que enfrentou foram numerosas e severas, e Abraão
além disso tinha reservas contra deixar sua casa. Ele disse a Deus:

— Será que não dirão de mim: “ele está se empenhando para


trazer todas as nações para debaixo das asas da shekiná/glória
divina, mas agora abandona seu velho pai em Harã e vai embora”?

Porém Deus respondeu:

— Descarte do pensamento qualquer preocupação com seus pais


ou com seus familiares. Eles podem até dirigir a você palavras
gentis, mas estão todos de acordo no propósito de arruiná-lo.

Abraão então deixou seu pai em Harã e peregrinou até Canaã,


acompanhado pela benção de Deus, que disse a ele: “Farei a partir
de você uma grande nação; eu o abençoarei e farei com que seu
nome se torne grande”. Essas três bençãos foram designadas para
neutralizar as consequências negativas que, ele temia,
ocasionariam a emigração — pois viajar de um lugar para o outro

190
interfere com o crescimento da família, diminui o patrimônio e
prejudica a reputação de que a pessoa desfrutava.

A maior de todas as bençãos, no entanto, foi quando Deus disse: “E


você mesmo, seja uma benção”, sendo que seu significado ~e que
todos que entraram em contato com Abraão foram abençoados.
Até mesmo os navegadores no mar tornaram-se devedores dele
pelo sucesso de suas viagens. Deus, além disso, manteve a
promessa que fez a ele de que no futuro seu nome seria
mencionada nas Bençãos — que Deus seria louvado como o
Escudo de Abraão, distinção conferida a nenhum outro mortal
além de Davi. Porém as palavras “E você mesmo, seja uma benção”
só serão cumpridas no mundo futuro, quando a semente de
Abraão será conhecida entre as nações e sua geração entre os
povos como “a descendência que o Senhor abençoou”.

Na primeira vez em que foi dito a Abraão que deixasse sua terra
não lhe foi dito para qual país deveria imigrar — e por obedecer
esse comando de Deus sua recompensa se mostraria
proporcionalmente maior. Abraão demonstrou sua confiança em
Deus, pois disse:

— Estou pronto a ir para onde for que o senhor me mandar.

O Senhor então disse a ele que fosse para uma terra que ele
mesmo iria revelar; mais tarde, quando Abraão foi a Canaã, Deus
apareceu a ele, e ele soube que aquela era a terra prometida.

Quando entrou em Canaã Abraão não soube imediatamente que


aquela era terra que lhe havia sido designada por herança, mas
ainda assim encheu-se de alegria por ter entrado nela. Na
Mesopotâmia e em Aramnaharaim, cujos habitantes havia visto
comendo, bebendo e agindo com impudência, ele sempre havia
desejado: “ah, que minha porção não seja nesta terra”; porém
quando chegou a Canaã e observou que ali as pessoas se
dedicavam diligentemente ao cultivo da terra, Abraão disse: “ah,
que minha porção seja nesta terra!”

E Deus disse a ele:

— À tua descendência darei esta terra.

191
Feliz diante desta boa nova, Abraão erigiu um altar ao Senhor a
fim de agradecer-lhe por essa promessa, depois seguiu viagem
para o sul, na direção do lugar onde mais tarde se ergueria o
Templo. Em Hebrom ele erigiu outro altar, tomando dessa forma
posse da terra por completo. Semelhantemente, erigiu um altar
em Ai, porque previu o infortúnio que ali recairia sobre a sua
descendência, por ocasião da conquista da terra sob a liderança de
Josué. Esse altar, ele esperava, seria capaz de impedir os terríveis
resultados que se seguiriam.

Cada altar erguido por ele tornava-se o centro de suas atividades


missionárias. Tão logo chega ao lugar em que desejava se
demorar, Abraão montava primeiro uma tenda para Sara, depois
outra para si mesmo, e passava em seguida a fazer convertidos e
trazê-los para debaixo das asas da shekiná. Dessa forma ele
cumpria o seu propósito de levar todos os homens a confessarem
o nome de Deus.

Por enquanto Abraão não passava de um estrangeiro em sua terra


prometida. Depois da divisão da terra entre os filhos de Noé,
quando todos haviam ocupado as porções que lhes haviam sido
designadas, aconteceu que Canaã, filho de Cão, viu como era boa a
terra que se estendia do Líbano ao Rio do Egito, e recusou-se a
partir para o seu próprio lote. Ele fixou-se na terra acima do
Líbano, a leste da orla do Jordão e a oeste da orla do mar. Cão, seu
pai, e seus irmãos Cuche e Mizraim disseram a ele:

— Você está morando numa terra que não é sua, porque não nos
foi designada quando as sortes foram lançadas. Não faça isso! Se
insistir nesse erro você e seus filhos cairão, malditos, sobre a
terra, em rebelião. Foi rebelião você fixar-se nesta região, e
através de rebelião seus filhos tombarão, e sua descendência será
destruída para toda a eternidade. Não fique vivendo na terra de
Sem, pois a Sem e aos filhos dele essa porção de terra foi
designada. Maldito é você, e maldito será diante de todos os filhos
de Noé por conta dessa maldição, pois fizemos um juramento
diante do santo juiz e diante de nosso pai Noé.

Porém Canaã não deu ouvidos às palavras de seu pai e de seus


irmãos; habitou com seus filhos na terra do Líbano de Hamate até

192
a própria entrada do Egito. Embora os cananeus tivessem se
apropriado ilegalmente daquela terra, Abraão respeitou-lhes os
direitos, colocando focinheiras em seus camelos para impedir que
se apascentassem na propriedade de outros.

SUA ESTADIA NO EGITO


ABRAÃO: Sua estadia no Egito

Mal Abraão havia se estabelecido em Canaã, irrompeu uma


devastadora fome — uma das dez fomes que Deus designou para
castigo dos homens. A primeira ocorreu no tempo de Adão,
quando Deus amaldiçoou o solo por causa dele; a segunda foi no
tempo de Abraão; a terceira forçou Isaque a abrigar-se entre os
filisteus; as devastações da quarta levou os filhos de Jacó ao Egito
para comprar trigo por alimento; a quinta veio no tempo dos
juízes, quando Elimeleque e sua família tiveram de buscar refúgio
na terra de Moabe; a sexta ocorreu durante o reinado de Davi e
durou três anos; a sétima aconteceu nos dias de Elias, que havia
jurado que nem orvalho nem chuva cairiam sobre a terra; a oitava
foi aquela do tempo de Eliseu, quando uma cabeça de asno foi
vendida por oitenta peças de prata; a nona é a fome que sobrevêm
aos homens gradativamente, de tempos em tempos; a décima
flagelará os homens antes do advento do Messias, e essa será “não
fome de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do
Senhor”1.

A fome no tempo de Abraão só prevaleceu em Canaã, e havia sido


infligida sobre a terra a fim de testar a fé dele. Abraão não
murmurou e não demonstrou qualquer sinal de impaciência com
relação a Deus, que havia lhe dito pouco tempo antes para
abandonar sua terra nativa por uma terra de privação. A fome
forçou-o a deixar Canaã por algum tempo, e ele dirigiu-se ao Egito,

193
para conhecer a sabedoria dos sacerdotes e, se necessário, dar-
lhes instrução sobre a verdade.

Na viagem de Canaã para o Egito Abraão observou pela primeira


vez a beleza de Sara. Casto como era, ele não havia jamais olhado
para ela, porém agora, quando cruzavam um riacho, ele viu o
reflexo da sua beleza na água como se fosse o esplendor do sol.
Pelo que disse a ela:

— Os egípcios são gente muito sensual; vou colocá-la num baú


para que nenhum mal me sobrevenha por sua causa.

Na fronteira do Egito, os coletores de impostos perguntaram o


conteúdo do baú, e Abraão disse que estava trazendo cevada nele.

— Não — disseram eles, — está cheio de trigo.

— Muito bem — respondeu Abraão, — estou pronto a pagar a


taxa pelo trigo.

Os oficiais então arriscaram outro palpite:

— Está cheio de pimenta!

Abraão concordou em pagar a taxa pela pimenta e não recusou a


pagar a taxa por ouro, e finalmente pedras preciosas. Vendo que
ele não se opunha a taxa alguma, por mais alta que fosse, os
coletores de impostos encheram-se de suspeita e insistiram que
ele abrisse o baú e deixasse-os examinar o conteúdo.

Quando abriram à força o baú, o Egito inteiro resplandeceu com a


beleza da Sara. Comparada a ela, as outras belezas eram como
homens comparados a macacos. Sara superava a própria Eva.
Cada servo do faraó ofereceu um um preço mais alto para comprá-
la, embora opinassem também que beleza tão radiante não
deveria permanecer propriedade de um só indivíduo. Foram
relatar a questão ao rei, e o faraó mandou uma poderosa tropa
armada para trazer Sara ao palácio; tão encantado ele ficou com
os charmes dela que os que haviam trazido a notícia de sua
chegada ao Egito receberam abundantes dádivas.

194
Em lágrimas, Abraão elevou uma oração a Deus com as seguintes
palavras: “É essa minha recompensa por confiar no senhor? Por
sua graça e sua longanimidade, não permita que minha esperança
seja envergonhada”.

Sara também implorou a Deus: “Ó Deus, o senhor ordenou o meu


mestre Abraão a deixar a sua casa, a terra de seus ancestrais, e
viajar a Canaã, e prometeu recompensá-lo se ele cumprisse os
seus mandamentos. Agora fizemos como o senhor nos ordenou:
deixamos nosso país e nossas famílias, e viajamos para uma terra
estranha, a um povo que nos era até então desconhecido. Viemos
para cá salvar nossa gente da fome, e agora esse terrível
infortúnio nos sobrevêm. Ah, Senhor, ajude-me e salve-me da mão
desse inimigo, e pela sua graça mostre-me o seu benefício”.

Um anjo apareceu a Sara enquanto ela estava na presença do rei, a


quem o anjo não tornou-se visível, e disse que ela tivesse coragem:

— Não tenha medo, Sara: Deus ouviu a sua oração.

O rei perguntou a Sara sobre o homem na companhia de quem


viera ao Egito, e Sara chamou Abraão de seu irmão. O faraó
prometeu fazer de Abraão um homem grande e poderoso, e fazer
em favor dele qualquer coisa que ela desejasse. Fez com que
Abraão recebesse muito ouro e prata, e diamantes e pérolas,
ovelhas e bois, escravos e escravas, e designou-lhe uma residência
nos átrios do palácio real. Pelo amor que nutria por Sara, o faraó
redigiu um contrato de casamento pelo qual lhe transferia tudo
que possuía na forma de ouro e prata e escravos e escravas, e
ainda a província de Gosém, a região ocupada posteriormente
pelos descendentes de Sara, por ser de direito sua propriedade.
Ainda mais notável, deu-lhe como escrava sua própria filha Hagar,
pois preferia ver sua filha como serva de Sara do que reinando
como concubina em outro harém.

Toda essa sua generosidade de nada adiantou. Durante a noite,


quando o faraó aproximava-se de Sara, um anjo aparecia armado
com um bastão. Se o faraó apenas tocava o calçado de Sara para
removê-lo do pé, o anjo plantava-lhe um golpe na mão; se pegava-
lhe no vestido, seguia-se um segundo golpe. Antes de cada golpe o

195
anjo perguntava a Sara se tinha permissão de desferi-lo; se ela
ordenava que ele desse ao faraó um momento para se recuperar, o
anjo obedecia e fazia como ela lhe ordenara.

E outro grande milagre aconteceu. O faraó, seus nobres e seus


servos, e até mesmo as paredes de sua casa e sua cama foram
afligidos com lepra, de modo que ele não tinha como entregar-se a
seus desejos carnais. A noite em que o faraó e sua corte receberam
essa merecida punição foi a décima quinta noite de Nisã, a mesma
noite na qual Deus posteriormente visitou os egípcios a fim de
redimir Israel, os descendentes de Sara.

Horrorizado pela praga enviada sobre ele, o faraó inquiriu de que


modo podia livrar-se dela. Ele consultou os sacerdotes, através
dos quais descobriu a verdadeira causa de sua aflição, que
também foi corroborada por Sara. Ele então chamou Abraão e
devolveu-lhe a esposa, pura e intocada, e pediu desculpas pelo
ocorrido, explicando que sua intenção tinha sido ligar-se por laços
de família a Abraão, que ele pensava ser irmão de Sara, através do
casamento com ela. Ele ofertou ao marido e à esposa ricos
presentes, e assim partiram para Canaã, depois de uma estadia de
três meses no Egito.

Chegando em Canaã, procuraram as mesmas pousadas em que


haviam dormido anteriormente, a fim de pagar suas contas, e
também a fim de ensinar, pelo seu exemplo, que não vale à pena
buscar um novo lugar para se viver, a não ser quando se é forçado
a tanto.

A estadia de Abraão no Egito foi de grande utilidade para os


habitantes daquele país, porque ele demonstrou aos sábios da
terra quão vazias e vãs eram suas concepções da realidade, tendo
também ensinado a eles astronomia e astrologia, desconhecidas
no Egito antes da chegada dele.

O PRIMEIRO FARAÓ
ABRAÃO: O primeiro faraó

196
O governante egípcio cujo encontro com Abraão mostrou ser
ocasião tão infeliz foi o primeiro a levar o nome de Faraó. Os reis
que o sucederam foram nomeados a partir dele.

A origem do nome está ligada à vida e às aventuras de Rakyon, o


Despossuído, um homem bonito, sábio e pobre que vivia na terra
de Shinar. Encontrando-se incapaz de se sustentar em Shinar,
Rakyon resolveu partir para o Egito, onde esperava exibir sua
sabedoria diante do rei, Ashwerosh, filho de Anam. Quem sabe
Rakyon encontrasse graça aos olhos do rei, e ele lhe desse a
oportunidade de se sustentar e de tornar-se um grande homem.
Quando chegou ao Egito ele descobriu que era costume do país
que o rei vivesse retirado em se palácio, distante da vista do povo.
Num único dia do ano ele aparecia em público, e recebia a todos
que tinham alguma petição a submeter a ele.

Profundamente desapontado, Rakyon ficou sem saber o que fazer


para ganhar a vida naquele país estranho. Foi obrigado a passar a
noite numa ruína, faminto como estava. No dia seguinte decidiu
tentar ganhar alguma coisa vendendo verduras, mas como não
conhecia os costumes do país seu empreendimento não foi bem
sucedido. Malfeitores o assaltaram, tomaram sua mercadoria e
fizeram dele alvo de zombaria. Na segunda noite, que ele foi
forçado a passar novamente na ruína, um plano astucioso foi
amadurecendo em sua mente. Ele levantou-se, reuniu uma turma
de trinta homens vigorosos e levou-os ao cemitério, onde
ordenou-os, em nome do rei, a cobrar duzentas peças de prata por
cada corpo que enterrassem; sem o pagamento nenhum enterro
deveria ser realizado. Desse modo ele conseguiu acumular uma
grande fortuna em oito meses; não apenas acumulou prata, ouro e
pedras preciosas, mas anexou uma tropa considerável, armada e
montada, à sua pessoa.

No dia em que o rei apareceu entre o povo, as pessoas começaram


a reclamar dessa taxa sobre os mortos:

— O que é isso que o senhor está infligindo sobre seus servos: não
permitir que ninguém seja enterrado sem que lhe seja pago prata
e ouro? Eis algo que jamais aconteceu desde os dias de Adão: que
os mortos não sejam enterrados a não ser mediante pagamento!

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Sabemos que é privilégio do rei tomar uma taxa anual dos vivos,
mas o senhor toma tributo também dos mortos, e o faz dia após
dia. Ah rei, isso não podemos mais suportar, pois por essa razão
toda a cidade está arruinada.

O rei, que nada suspeitava dos feitos de Rakyon, foi tomado de


grande fúria quando o povo lhe informou a respeito deles.
Mandou que ele e sua tropa armada comparecessem diante dele.

Rakyon não veio de mãos vazias. Foi precedido por um milhar de


rapazes e moças, montados em corcéis e trajando indumentárias
riquíssimas; esses foram dados como presente ao rei. Quando ele
mesmo apareceu diante do rei, Rakyon veio trazendo ouro, prata e
diamantes em abundância, bem como um magnífico cavalho de
batalha. Esses presentes e a exibição de pompa não deixaram de
impressionar o rei, e quando Rakyon, em palavras bem estudadas
e com toda persuasão, descreveu-lhe o empreendimento,
conquistou não apenas o rei para o seu lado, mas com ele toda a
corte. O rei lhe disse:

— De agora em diante você não será mais chamado


Rakyon/Despossuído, mas Faraó/Mestre dos pagamentos, pois
chegou a coletar taxas dos mortos.

Tão profunda foi a impressão produzida por Rakyon que o rei, os


grandes e o povo decidiram de comum acordo colocar o governo
do reino nas mãos de Faraó. Sob a suserania de Ashwerosh ele
passou a administrar a lei e a justiça ao longo do ano; só no dia em
que aparecia diante do povo o rei proferia julgamento e decidia
casos. Por via do poder que lhe foi conferido e de estratagemas
astuciosos, Faraó conseguiu usurpar a autoridade real, coletando
impostos de todos os habitantes do Egito. Apesar disso era amado
pelo povo, e foi decretado que todo governante do Egito traria dali
em diante o nome de Faraó.

* * *
Lendas dos Judeus é uma compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais
do midrash (particularmente o Talmude) pelo talmudista lituano Louis Ginzberg (1873-
1953). Lendas foi publicado em 6 volumes (sendo dois volumes de notas) entre 1909 e 1928.

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