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Será a China o próximo bastião da globalização mundial? Por mais surpreendente que o
questionamento pareça, a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos
abriu justamente essa possibilidade. O temor daqui para frente é que ele seja não
somente o maior, mas também o primeiro de uma próxima geração de líderes a jogar na
lata de lixo da história os preceitos que marcaram o planeta desde o fim da 2ª Guerra
Mundial. Movimentos parecidos já são vistos em outras potências como a França, onde a
radical nacionalista Marine Le Pen é favorita para o pleito presidencial do ano que vem.
Hoje, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), uma das
principais instâncias decisórias internacionais, possui apenas a minoria de seus políticos
alinhados com os ideais da globalização. Em 2017, com a posse de Trump e a possível
vitória de Le Pen, todos os cinco membros do conselho com poder de veto levarão no
peito credenciais nacionalistas. Além de Estados Unidos e França, completam o grupo a
líder do Brexit Teresa May (Reino Unido), o autoritário e expansionista Vladimir Putin
(Rússia) e o chefe ditatorial Xi Jinping (China). “Por incrível que pareça, o que tem
compromisso maior com a globalização é o chinês”, diz Oliver Stuenkel, professor de
relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo.
Fator econômico
Pode não parecer, mas o protecionismo econômico defendido pelos novos líderes também
pode custar vidas. Muitos dos principais acadêmicos do mundo acreditam que a abertura
de fronteiras comerciais leva a paz às nações envolvidas. Isso porque as trocas comerciais
fazem aumentar o custo de entrar em conflitos com parceiros dos quais se depende
economicamente. Não obstante, as compras e vendas globais, que no ano passado
estavam no patamar dos US$ 16 trilhões, em 2016 crescerão no ritmo mais lento desde a
crise internacional de 2008. Além de bloquear produtos e custar vidas, o fenômeno ainda
impede o desenvolvimento. Das 100 maiores empresas dos Estados Unidos, metade foi
aberta por imigrantes ou seus filhos. O país se firmou como a maior potência mundial por
conseguir atrair e integrar novas ondas de estrangeiros. O próprio Trump é neto de
alemães que cruzaram o Atlântico e se estabeleceram em Nova York. Até mesmo o Brasil
viu um intenso desenvolvimento e dinamização depois da chegada não só da mão de obra,
mas também das ideias de locais como Itália e Japão na virada do século 20. “Se Trump
cumprir o que prometeu vai haver um aumento da onda protecionista por um bom
tempo”, afirma Rubens Penha Cisny, professor da Escola Brasileira de Economia e
Finanças da FGV.
O presidente eleito também disse que vai diminuir a importância de blocos chave da
organização mundial atual, como o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta,
na sigla em inglês). Deu a entender, até mesmo, que escantearia a ONU, que ele acusa de
jamais fazer nada de prático. Uma das maiores apostas dos Estados Unidos hoje, o Acordo
Transpacífico, que facilita relações de troca entre doze países, pode nunca sair do papel
na administração do empresário. Um dos pilares do chamado Ocidente, a ameaça à
aliança militar Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) pode oferecer as
maiores consequências. A Otan nada mais é do que a promessa de proteção mútua em
caso de ataques a qualquer um dos membros. De acordo com o professor de relações
internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Carlos Gustavo
Poggio Teixeira, caso o presidente russo Vladimir Putin decida invadir pequenos países
como a Letônia e a Lituânia e mesmo assim Trump não fizer nada, o movimento pode dar
início a uma nova ordem global. “Na prática, será o fim da Otan”, diz.
A globalização é um fenômeno cujo princípio não possui data precisa. Pode-se voltar
muitos séculos no passado em busca de sinais de uma integração crescente entre nações.
Desde o fim da 2ª Guerra, porém, o processo se intensificou. Nos mais recentes surtos
isolacionistas da potência americana, justamente nos anos que antecederam os dois
conflitos mundiais, as consequências foram nefastas. Agora, os especialistas não sabem
ao certo como lidar com o problema, já que é a própria população quem está escolhendo
os caminhos. “Trump e Brexit não acontecem em dois países quaisquer, mas nas duas
democracias mais maduras do mundo”, afirma Stuenkel. “Se aconteceu lá pode acontecer
em qualquer outro lugar.”
Donald Trump já era um famoso empresário do ramo imobiliário nos Estados Unidos
quando estreou um programa de tevê em que demitia participantes até contratar o
finalista. O jogo foi um sucesso e virou uma franquia, ganhando versões inclusive no
Brasil. Doze anos depois, o excêntrico apresentador de 70 anos pediu aos americanos que
o contratassem. Como presidente, ele traria de volta os anos de prosperidade. Faria a
“América grande de novo”. Os eleitores compraram essa ideia e o escolheram como o
próximo presidente do país, contrariando os prognósticos que davam como certa a vitória
da experiente, mas desgastada, Hillary Clinton.
No último ano e meio, Trump surpreendeu o público de diversas maneiras. Desde que foi
eleito, surpreendeu de novo ao adotar um tom conciliador. “Serei presidente para todos
os americanos”, discursou em Nova York, momentos após a confirmação da vitória.
“Trabalhando juntos, vamos começar a tarefa urgente de reconstruir nossa nação e
renovar o sonho americano.” Depois do encontro com Barack Obama na quinta-feira 10, o
republicano afirmou que gostaria de ter o presidente como conselheiro, marcando o início
de uma transição pacífica, em contraste com a campanha mais polarizadora da história
recente do país. “Devemos a Trump uma mente aberta e uma chance de governar”, disse
Hillary, emocionada, ao reconhecer a derrota.
Ninguém sabe quem será o Trump presidente. Um estranho dentro de seu próprio partido,
o empresário é o primeiro presidente desde Dwight Eisenhower (general que governou
entre 1953 e 1961) a se eleger sem ter construído uma carreira política. Na corrida
presidencial, mentiu sem pudor, inventou números, escondeu sua declaração de
impostos, prometeu coisas que estarão fora de sua alçada de poder. Na Casa Branca,
talvez ele seja um moderado – não é religioso como os membros do Tea Party –, talvez se
iluda com a confiança que recebeu.
Com isso, o país que era visto como uma força de estabilidade passa a ser poço de
instabilidade. Sob Trump, os EUA podem encerrar mais de 20 anos de prosperidade
econômica de seu maior aliado na América Latina: o México. Para além do muro, que nos
moldes propostos pelo republicano seria impossível de construir, há perspectiva de
revisão ou invalidação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, um dos grandes
eixos de diálogo entre os dois países. “Uma relação que era excelente passará a ser muito
difícil”, diz Roberto Abdenur, embaixador do Brasil em Washington de 2004 a 2006 e
membro do conselho do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Em campanha,
Trump chegou a dizer que pretendia deportar dois milhões de criminosos mexicanos – um
número que ninguém sabe, ao certo, de onde veio.
Em linha com a agenda de rupturas, Trump também anunciou que pretende exigir que os
28 aliados que compõem a Organização do Tratado do Atlântico Norte, uma das mais bem
sucedidas alianças militares da história, paguem pela proteção que recebem dos EUA –
isso também serve para o Japão, aliado histórico que abriga mais de 20 bases americanas.
O temor é de que, com o abandono dos americanos, a China amplie sua área de influência
e a Rússia ganhe força no Leste Europeu, anexando nações como Estônia, Letônia e
Lituânia, como já aconteceu com a Crimeia e partes da Ucrânia. “O que Trump parece
não entender é que proteger esses países não é um favor que o Pentágono faz”, afirma o
embaixador Abdenur. “Protegê-los é estratégico para o próprio país.”
Dos temas que mais preocupam os aliados tradicionais dos americanos, a boa relação com
o presidente russo, Vladimir Putin, ocupa o topo. “A Rússia foi um dos primeiros países a
parabenizar Trump pela vitória”, lembra Graham, do Instituto Brookings. “O presidente
eleito admira Putin e Putin o admira.” A simpatia mútua pode refletir nos rumos da
Guerra da Síria. Nos últimos anos, os EUA apoiaram os rebeldes contra o presidente
Bashar al-Assad, amigo de Moscou. Agora, há espaço para Washington apoiar uma solução
para o fim da guerra que inclua a manutenção de Assad no poder, hipótese que horroriza
a União Europeia e as instituições de defesa dos direitos humanos. Permitir a expansão da
influência russa no continente estaria em linha com a ideia de não intervenção que
parece permear a política externa de Trump e que pode se manifestar até numa das
grandes bandeiras do republicano: o combate ao grupo Estado Islâmico (EI). Como Trump
tem mostrado pouca disposição para entrar em novos conflitos, o entendimento entre os
especialistas é de que seus esforços para derrotar os terroristas se limitarão a dar
continuidade à operação militar em Mossul, no Iraque, iniciada por Obama.
AUTÊNTICO
Trump subverteu a maneira de fazer campanha. Assumiu a figura de falastrão como sendo
sua verdadeira personalidade, sem máscaras. No meio do caminho, falou demais, ofendeu
de mexicanos a deficientes físicos. Reduziu mulheres às suas características físicas.
Contrariou assessores, suprimiu o politicamente correto. Desafiou a cúpula partidária,
intimidou jornalistas e colocou em dúvida a credibilidade do sistema eleitoral americano.
No último debate com Hillary Clinton, chegou a sugerir que não aceitaria o resultado das
urnas se elas apontassem para a vitória da democrata. Investiu um terço do que Hillary
colocou em anúncios de tevê, mesmo porque também arrecadou bem menos dinheiro. Ela
levantou US$ 513 milhões, ele, US$ 255 milhões. Entre os poucos grupos que o apoiaram
publicamente, o mais ruidoso foi a Associação Nacional de Rifles, principal lobista da
venda e do porte de armas no país – mas mais importante que tudo isso: Trump ganhou
muita mídia espontânea. Até março, quando ainda disputava as primárias, recebeu o
equivalente a US$ 2 bilhões em cobertura gratuita, nos cálculos do jornal The New York
Times.
Com esse aparato, a imagem de autêntico colou. Apesar dos inúmeros comentários
sexistas que fez nos últimos meses e durante toda a carreira – sobretudo, no período em
que foi dono de concursos de beleza –, Trump obteve mais da metade dos votos das
mulheres brancas, uma fatia do eleitorado que se mantém fiel ao Partido Republicano.
Isso não dissipou, contudo, as desconfianças sobre o efeito que seu governo teria nos
direitos das mulheres. “A Presidência de Trump será devastadora para nós”, disse à ISTOÉ
a texana Gloria Feldt, presidente do “Take the Lead” (“Assuma a liderança”), movimento
que incentiva a participação feminina em posições de liderança. “A começar pela
Suprema Corte. Ele vai nomear ao menos um juiz, que deverá se opor aos direitos
reprodutivos.” Segundo Gloria, isso inclui o aborto, mas também se traduz em resistência
a ações afirmativas, como uma legislação que garanta a igualdade de remuneração entre
homens e mulheres. “O futuro dos direitos femininos não estará no nível federal, mas nos
Estados”, afirma.
Parte da surpresa com a vitória de Trump é resultado justamente dos erros das pesquisas
de opinião. Elas falharam em detectar quem eram os potenciais eleitores, inclusive
aqueles que se decidiram de última hora – em alguns Estados, é possível se registrar no
momento da votação. Considerando que Hillary esteve consistentemente na frente do
empresário na maioria das sondagens semana após semana, os institutos projetaram que
ela estaria na frente no dia 8 também. Alguns chegaram a colocar sua chance de vitória
acima de 90%. Mas, nessas eleições, o número de indecisos foi extraordinariamente alto:
acima de 10%, segundo o estatístico Drew Linzer. Em 2008 e 2012, esse índice ficou entre
4% e 6%.
Os institutos de pesquisa podem argumentar, contudo, que acertaram o resultado
nacionalmente. Hillary, afinal, ganhou no voto popular, mas perdeu no colégio eleitoral,
como o correligionário Al Gore, em 2000. Isso não significa que a maioria dos americanos
prefira a candidata. Entre as distorções do sistema eleitoral do país, em alguns Estados
não há nem campanha, porque eles são solidamente favoráveis a um dos dois grandes
partidos. Os candidatos, então, preferem investir seus recursos em regiões onde de fato
possam conseguir o apoio dos delegados. É assim na Califórnia, por exemplo. Se os
republicanos tivessem alguma chance por lá, talvez mais eleitores tivessem se animado a
votar em Trump.