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C O L E C Ç Ã O V I D A E C U L T U R A

JA K O B V O N U EX K Ü LL

Dos animais
e dos homens
Digressões pelos seus próprios mundos

Doutrina do Significado

T r a d u ç ã o de
A LB ER TO C A N D EIA S e A N ÍB A L GARCIA P E R E IR A
*
Capa de
A. PED RO
*
T ítulo da edição original
ST R E IF Z U G E D URCH D IE U M W E L TE N
VON T IE R E N UND M EN SC H EN
*
Reservados todos os direitos pela legislação em vigor
*
E dição feita por acordo com a EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL» LISBOA
BOW OHLTS D EU TSC H E EN Z Y K LO PA D IE Rua dos C a e ta no s, 22
INTRODUÇÃO

Não há, certamente, camponês que tendo batido com


o seu cão matos e bosques não tenha travado conheci­
mento com um animalzinho que, suspenso dos ramos dos
arbustos, espia a sua vítim a, homem ou bicho, para sobre

Fig. 1 — Carraça

ela se precipitar e se saciar com o seu sangue, inchando,


das dimensões de, o máximo, dois milím etros, até ao
volume de uma ervilha (fig. I).
A carraça, ou carr^pato, nomes por que se designa

[29]
esse animal,1não é realmente perigosa, mas nem por isso perfurar a membrana absorve qualquer líquido, contanto
deixa de ser um hóspede incômodo dos mamíferos, e que este esteja a temperatura conveniente.
mesmo do homem. O seu ciclo biológico foi de tal modo Se a carraça cai sobre qualquer coisa fria, depois
esclarecido par trabalhos recentes que dele podemos de o sinal de ácido butírico ter funcionado, então errou
traçar um relato exacto. de hospedeiro, e tem de voltar a trepar para o seu posto
Do ovo sai um pequeno ser ainda não completamente de espia.
desenvolvido, a que faltam um par de patas e os órgãos O lauto festim de sangue que a carraça goza é, sim ul­
da reprodução. Nesta fase já pode atacar animais de tem ­ taneamente, o seu último repasto, pois que agora nada
peratura variável, como, por exemplo, lagartos, que espera lhe resta senão deixar-se tombar no chão, fazer a postura
emboscado na extremidade da haste de uma erva. Depois e morrer.
de sofrer algumas mudas, os órgãos que lhe faltavam Os breves acidentes da vida da carraça dão-nos uma
acabam por se desenvolver, passando então a caçar ani­ adequada pedra-de-toque da solidez do ponto de vista bio­
mais de temperatura constante. Já fecundada, a fêmea lógico, comparado com o método fisiológico, como até
sobe, com as suas já então oito patas, até à parte supe­ aqui se tem aplicado. Para o fisiólogo, cada ser vivo é
rior de um arbusto que lhe agrade, para, de altura conve­ um objecto que se situa no seu mundo-próprio do
niente, se deixar cair sobre pequenos mamíferos furtivos homem. Examina-lhe os órgãos e o seu funcionamento
que passem ao seu alcance, ou arrastar por animais de total, como um técnico examinaria uma máquina que seja
maior porte. nova para ele. O biólogo, ao contrário, toma em conta
O caminho para a sua torre de vigia descobre-o o ani- que cada ser vivo é um sujeito, que vive num mundo
malzinho, que é desprovido de olhos, valendo-se do seu que lhe é particular, de que ele constitui o centro; e, por
tegumento, sensível à luz. A aproximação da vítim a é isso, pode comparar-se, não a uma máquina, mas apenas
revelada ao salteador, que além de cego é também surdo, ao maquinista que maneja a máquina.
pelo seu sentido do olfacto. As emanações de ácido Resumindo, a questão pode pôr-se assim: a carraça
butírico que provêm das glândulas da pele dos mamífe­ é uma máquina ou um maquinista? É um mero objecto ou
ros servem para a carraça de sinal de advertência para um sujeito?
abandonar o seu posto de vigia e lançar-se sobre a presa. A fisiologia interpretará a carraça em termos de uma
Se vem a cair sobre qualquer animal de temperatura cons­ máquina e dirá: na carraça podem-se distinguir recepto­
tante, que um apurado sentido térmico lhe denunciou — res, isto é, órgãos dos sentidos, e efectores, isto é, e
então atingiu a sua vítim a, e só falta agora, ainda com o órgãos de acção, que, por meio de dispositivo coorde­
auxílio do seu sentido do tacto, encontrar uma zona tanto nador no sistema nervoso central, estão mutuamente rela­
quanto possível livre de pêlos, para se introduzir, até para cionados. O conjunto é uma máquina de que se não dis­
trás da cabeça, nos tecidos cutâneos daquela; e põe-se cerne o maquinista.
a sugar lentamente o sangue quente que jorra. «É exactamente nisso que está o erro», objectará o
Experiências feitas com membranas artificiais e com biólogo. «Nenhuma das partes do corpo da carraça tem
outros líquidos que não sangue mostraram que a carraça as características de uma máquina, em toda elã""ó~que'
é desprovida de sentido do gosto, pois que depois de actua são maquinistas.>•

[30] [ 31 ]
cará o biólogo. «Do que se trata, principalmente, é de
O fisiólogo continuará inabalável: «Na carraça,
maquinistas e não de partes de máquinas. Porque todas
precisamente, verifica-se que todas as actividades assen­
e cada uma das células do arco-reflexo funcionam não
tam exclusivamente em reflexos (1), e o arco-reflexo cons­
com transmissão de movimento, mas com transporte de
titu i a base de cada máquina animal (fig. 2). Este começa
estímulo. Um estímulo, porém, deve ser notado por um
por um receptor, fsto é, um dispositivo que só admite
sujeito e essencialmente não provém de um objecto.»
certas influências exteriores, como ácido butírico e calor,
Qualquer parte de uma máquina, um badalo de um
mas rejeita tudo mais. E term ina num músculo que põe
sino, por exemplo, trabalha apenas maquinalmente quando
de determinada maneira é posto a oscilar. Quaisquer

y-CHD-f
outras intervenções despertam nele respostas como o
fariam em qualquer mero pedaço de metal. Ora, desde
Asz £ John M üller (1), nós sabemos que um músculo se com­
porta de uma forma completamente diferente. A qualquer
Flg. 2 — Arco-reflexo intervenção exterior ele responde sempre da mesma
maneira: por uma contracção. Toda a intervenção exterior
é por ele transformada no mesmo estímulo; a todas res­
em actividade um efector, o dispositivo locomotor, ou o ponde com o mesmo impulso que obriga o corpo da célula
dispositivo perfurador. à contracção.
As células sensoriais, que libertam a excitação dos John M üller demonstrou ainda que todas as acções
sentidos, e as células motoras, que libertam o impulso exteriores que incidem nos nossos nervos visuais, sejam
de movimento, funcionam apenas como peças conecto- elas ondas do éter, compressões ou correntes eléctricas,
ras que conduzem as ondas excitadoras, absolutamente produzem uma sensação visual, isto é, as nossas células
materiais, que são originadas nos nervos, sob a acção do sensoriais visuais respondem com o mesmo sinal-per-
choque exterior. Todo o arco-reflexo trabalha com trans­ ceptivo.
missão de movimento, como qualquer máquina. Nenhum Disto devemos concluir que cada célula viva é um
factor subjectivo, como seja, um ou mais maquinistas, maquinista, que assinala e actua, e por isso possui «assi-
intervém no fenômeno, seja como for.» nalamento» ou percepção e «activação» ou impulso. As
«O que se passa é exactamente o contrário», repli- m últiplas marcas e acções do sujeito-animal total são,
por conseqüência, atribuíveis ao trabalho de conjunto de
(’) Reflexo, originalmente, significa a captação e reenvio de
pequenos maquinistas celulares, cada um dos quais
um raio de luz, por um espelho. Aplicado aos seres vivos, o termo somente decide sobre um sinal-perceptivo ou um sinal-
reflexo significa a captação de um estímulo exterior por um recep­ -de-impulso.
tor e a resposta provocada pelo estímulo do efector do ser vivo. Para que seja possível uma cooperação ordenada, o
No fenômeno o estímulo transforma-se em excitação nervosa, que
tem de passar por várias estações para ir do receptor ao efector.
O caminho assim seguido designa-se por arco-reflexo. (Nota da ed. (') Fundador da moderna fisiologia (1801-1858). (Nota da ed.
alemã.) alemã.)

[32]
3 - A. IIOMENS [33]
organismo se^ve-se das células do cérebro (que são tam­ Outro tanto, exactamente, se passa no órgão-de-
bém maquinistas elementares), e agrupa metade delas -impulso. Nele as células-de-impulso desempenham o
como «células assinaladoras» ou células-de-percepção na papel de maquinistas elementares, que, neste caso, con­
parte do céreèro receptora de estímulos, isto é, no soante as suas actividades, ou impulsos, se ordenam em
«órgão-assinalador, ou de-percepção», em faixas mais ou grupos bem articulados. Também aqui existe a possibili­
menos extensas. Estas faixas correspondem a grupos de dade de os impulsos individualizados se concentrarem em
estímulos exteriores que entram como perguntas no unidades que actuam sobre os músculos, a elas subordi­
sujeito-animal. A outra metade das células do cérebro nados, como impulsos encadeados ou melodias de impul­
utiliza-as o organismo como «células activadoras» ou sos, ritmicamente articulados. Depois do que os efectores
células-de-impulso, e agrupa-as em faixas com que postos em acção pelos músculos imprimem aos objectos
comanda os movimentos dos efectores, que comunicam situados fora do sujeito a sua realidade.
ao mundo exterior as respostas do sujeito-animal. A marca-de-acção que os efectores imprimem ao
As faixas das células-de-percepção constituem o objecto é directamente reconhecível — como a ferida que
«órgão-de-percepção» do cérebro, e as faixas das células- o ferrão da carraça produz na pele do mamífero por ela
-de-impulso, o «órgão-de-impulso». atacado. Mas, primeiro, a d ifíc il descoberta dos sinais
Se, pois, nos permitim os imaginar um órgão-de-per­ característicos do ácido butírico e do calor completou o
cepção como um centro de faixas de percepção alternadas quadro da carraça laboriosa no seu mundo-próprio.
e maquinistas celulares que são os portadores de percep­ Em sentido-figurado. p_ode dizer-se que cada sujeito-
ções específicas, no entanto elas conservam-se entida­ -animal apreende o seu obiecto-com -as—duas hastes de
des espacialmente distintas. Os seus sinais-perceptivos urna- tenaz — uma haste de perceber out ra de impulsio-
permaneceriam também distintos, se não tivessem a pos­ nar. Com uma confere-lhe um atributo. com_a_outxa^Jima_
sibilidade de se fundirem em novas unidades, fora do marca-de-acção. Por este meio certas propriedades do
órgão-de-percepção, espacialmente fixado. Ora tal possi­ objecto passam a ser portadoras de sinal-caracterís­
bilidade existe efectivamente. Os sinais-perceptivos dej tico, certas outras, de marca-de-acção. Como todas as
um grupo de células-de-percepção reúnem-se fora do propriedades de um objecto estão ligadas umas às outras
órgão-de-percepção, na realidade fora do corpo de animal, pela estrutura deste, as atingidas pelo sinal-de-impulso
em unidades que passam a ser atributos dos objectos devem exercer no objecto a sua influência sóbre as por­
situados fora do sujeito-animal. Este facto é bem conhe­ tadoras de sinal-característico e também actuar sobre
cido de todos. Todas as nossas sensações humanas, que estas modificando-as, o que resumidamente melhor se
f iguram os nossos assinalamentos, ou percepções, espe.- exprime dizendo: a marca-de-acção cancela o sinal-carac-
cíficos, convergem nos atributos dos objectos exteriores, terístico.
que nos sérvem como sinais-característicos que utiliza­ O número e a ordenação das células-de-percepção
mos. A sensação «azul» passa a ser a «cor azul» do céu; que por meio dos seus sinais-perceptivos assinalam os
a sensação «verde» passa a ser a «cor verde» da relva, objectos do seu mundo-próprio com sinais-característicos
etc. No sinal-característico, ou carácter, azul, reconhece­ e o número e ordenação das células-de-impulso que por
mos o céu, no carácter verde reconhecemos a relva. meio dos seus sinais-de-impulso dão aos mesmos objec-

[34] [ 35]
tos marcas-de-acção são, principalmente, e a par da
feição aos seus mundos-próprios. Aos primeiros corres­
selecção de estímulos que os receptores realizam e da
pondem mundos-próprios simples, aos segundos, mundos-
ordenação dos músculos que permite aos efectores mani­
-próprios complexos.
festarem-se, decisivos no desenrolar de cada forma de
E agora situemos no esquema do ciclo-de-função a
comportamento de todos os sujeitos animais.
carraça como sujeito e o mamífero como objecto. V erifi­
O objecto, somente no que respeita ao comporta­
ca-se imediatamente que decorrem segundo um plano
mento, é como se devesse possuir as propriedades neces­
três ciclos-de-função, e uns a seguir aos outros. As glân­
sárias, que por um lado pudessem se rvir como portado­
dulas cutâneas do mamífero constituem o portador de
ras de sinais-característicos, e por outro de portadoras
sinal característico do prim eiro ciclo, pois o estímulo
ácido butírico liberta no órgão-de-percepção sinais-per-
ceptivos, específicos, que são transportados para a peri­
Mundo ie Percepção feria como carácter olfactivo. Os fenômenos que se pas­
sam no órgão-da-percepção provocam por indução (em
Receptor que tal consiste, ignoramo-lo) no órgão-de-impulso impul­
órgão <fc Percepção Portador de sinal característico sos correspondentes, que produzem o movimento dos
membros locomotores e a queda do animal. A carraça
Órgão de impulso Portador de marca de acção ao cair confere aos pêlos do mamífero a marca-de-acção
Efector do choque, que então, por seu turno, liberta um carácter
táctil pelo que o carácter olfactivo do ácido butírico é
Mundo de acção cancelado. O novo carácter provoca um movimento de
vaguear, até que na primeira zona sem pêlos é remido
Fig. 3 — Ciclo-de-Função pelo carácter calor, e aí começa o trabalho de perfu­
ração.
Sem dúvida trata-se aqui de três reflexos que se vão
de marcas-de-acção que devessem estar em associação anulando sucessivamente e são sempre desencadeados
por ajustamento mútuo. por acções físico-químicas objectivamente determináveis.
As relações de sujeito com objecto estão ilustradas Mas quem se contente com esta verificação e julgue ter
no esquemã~3õ~ciclo-de-funcão (fig. 3). Ele mostra como com ela resolvido a questão, mostra apenas que não
sujeito e objecto se ajustam reciprocamente e constituem alcançou o verdadeiro problema. Não é o estímulo quí­
um todo que obedece a um plano. Se, além disso, se supõe mico do ácido butírico que se debate, nem tão-pouco o
que um sujeito se liga a um ou vários objectos por vários estímulo mecânico (desencadeado pelos pêlos), nem
ciclos-de-função, fica-se, então, fazendo uma ideia do ainda o estímulo térm ico da pele, mas apenas o facto
conceito fundamental da doutrina do mundo-próprio, a de saber porquê, entre as centenas de acções que resul­
saber: todos os sujeitos animais, os mais simples como tam das propriedades do corpo do mamífero, só três se
os mais complexos, estão ajustados com a mesma per­ tornam portadoras de sinais característicos relativamente
à carraça, e porquê essas três e não outras.
[36]
[37]
Não se trata de qualquer reciprocidade de forças vei, que nos desvenda uma perspectiva muito mais vasta
entre dois objettos, mas sim das correlações entre um dos mundos-próprios.
sujeito vivo e o\seu objecto, e estas manifestam-se num É imediatamente evidente que a inesperada fortuna
plano inteiramente diferente, a saber entre as percep­ da passagem de um mamífero por sob o ramo sobre que
ções do sujeito e o estímulo do objecto. a carraça se encontra é muito rara. Este inconveniente
nem pelo grande número de carraças que se emboscam
A carraça está suspensa, imóvel, da extremidade de
nos arbustos é suficientemente compensado para asse­
um ramo numa clareira. Pela sua situação oferece-se-lhe
gurar a subsistência da espécie. A faculdade de a carraça
a oportunidade de cair sobre um mamífero que por ali
poder viver muito tempo sem se alimentar, aumenta as
passe. De todo o ambiente não incide sobre ela nenhum probabilidades de v ir a passar uma presa ao seu alcance.
estímulo. Então, aproxima-se um mamífero, de cujo san­ Essa faculdade possui-a a carraça em grau invulgarmente
gue ela necessita para o desenvolvimento da sua proie. elevado. No Instituto Zoológico de Rostock conserva­
E agora qualquer coisa de bem maravilhoso se passa: ram-se vivas carraças que chegaram a jejuar durante
de todas as acções provenientes do corpo do mamífero dezoito anos ('). Isso a nós, homens, ser-nos-ia impossí­
só três passam a co nstituir estímulos e, essas, em vel. O tempo no nosso mundo-humano é constituído por
seqüência bem determinada. Do vasto mundo que rodeia uma série de momentos curfíssím os, durante os qüãís
a carraça fulguram três estímulos, como sinais luminosos ò mundo não manifesta qualquer mudança. Duraoi£~um
dentre as trevas, e servem à carraça de guias, que ela momento o mundo conserva-se invariável. Q momento do
confiadamente segue até atingir o seu objectivo. Para
tal ser possível as carraças são dotadas, além do seu
(') A carraça está, sob todos os pontos de vista, organizada
corpo com os seus receptores e efectores, de três sinais- para resistir a um longo período de jejum. As células seminais que
-perceptivos que pode utilizar como três sinais caracte­ a fêmea recebeu e conserva dentro de si durante o período de
rísticos. E é por meio destes que à carraça o flu ir do seu espera estão contidas dentro de cápsulas, até o sangue do mamí­
comportamento é tão determinadamente prescrito que fero chegar ao estômago da carraça. Quando isso se dá elas são
postas em liberdade e fecundam os óvulos que esperavam nos
ela só pode realizar actos perfeitamente determinados.
ovários. Em contraste com a adaptação perfeita dacarraça aoseu
Todo o opulento mundo ambiente que rodeia a car- objecto-presa, que ela acaba por encontrar, está a fraquíssima pro­
raça se contrai e se transforma num quadro mesquinho babilidade de que tal suceda, mesmo apesar do longo tempo de
que essencialmente consiste ainda em três sinais carac- espera possível. Bodenheimer tem perfeitamente razão quando fala
t eríst7cõs~ê tres marcas-dé-acção^^a-seu mundo-próprio. de um péssimo, isto é, de um mundo reconhecidamente desfavo­
rável em que vive a maioria dos anirfnais. Somente, este mundo não
A indigência desse mundo-próprio ajusta-se, porém, é o mundo-próprio de cada um delés, mas o mundo ambiente de
estreitamente à segurança do comportamento, e segu­ todos. Mundo-próprio óptimo, isto é, reconhecidamente favorável, e
rança vale mais que riqueza. Do exemplo da carraça pode mundo ambiente péssimo, pode considerar-se a regra geral. Porque
deduzir-se o que é fundamental na estrutura dos mundos- sucede sempre deverem tombar muitos indivíduos para que a espé­
cie subsista. Se o mundo ambiente não fosse, para certa espécie,
-próprios dos diferentes seres, e é válido para todos os péssimo, então esta, devido ao seu mundo-próprio, óptimo, podia
animais. Mas a carraça possui uma faculdade muito notá- conquistar a supremacia sobro todas as outras. (Noto do autor.)

[ 38 ] [ 39]
homem é de 1/18 segundos (*). Veremos adiante que a Kant, unidade que ela aproveitará no aspecto científico-
duração do momento varia com os diferentes animais, -natural da doutrina dos mundos-próprios, ao acentuar-se
mas seja qual for o valor que queiramos estabelecer para o papel decisivo do sujeito.
o caso da carraça, a possibilidade de suportar um mundo-
-próprio invariável durante dezoito anos está fora do
1. OS ESPAÇOS DOS MUNDOS-PRÓPRIOS
alcance de todas as probabilidades. Adm itiremos, pois,
que a carraça durante o seu período de espera se encon­
Assim como um gastrônomo, do bolo só escolhe as
tra como que num estado de letargia, que também em
passas, assim também a carraça, das coisas do seu
nós interrompe o tempo por horas. Somente, o tempo no
ambiente só seleccionou o ácido butírico. Não nos inte­
mundo-próprio da carraça pára, durante o seu período de
ressa saber que sensação gustativa as passas desper­
espera, não por horas apenas, mas por vários anos, e ela
tam no gastrônomo, mas apenas o facto de as passas se
volta à actividade quando o sinal de aviso «ácido butírico» tornarem sinais-característicos do seu mundo-próprio,
a desperta para a nova fase de actividade. pois que, para ele, são dotadas de significado biológico
Que ganhámos com esta noção? Alguma coisa muito especial; assim, também, não perguntamos como o ácido
significativa. O tempo, que serve de moldura a todo o butírico cheira ou sabe à carraça, mas registamos apenas
acontecer, apresenta-se como a única constante objectiva o facto de o ácido butírico ter passado a ser biologica­
perante a variada mudança do seu conteúdo, e agora mente significante como sinal-característico carraça.
vemos que o sujeito controla o tempo do seu mundo-pró- Contentamo-nos com o adm itir que no órgão-de-per-
prio. Ao passo que até agora dizíamos: sem tempo não cepção da carraça devem existir células de percepção
pode e xistir nenhum sujeito vivente, devemos agora que manifestam os seus sinais-perceptivos, como o admi­
dizer: sem um sujeito vivente não pode e xistir qualquer tim os igualmente relativamente ao órgão assinalador do
tempo. gastrônomo. A única diferença é que a percepção do
No próximo capítulo veremos que outro tanto sucede ácido butírico passa a ser um sinal característico do seu
com o espaço: sem um sujeito vivente não pode existir mundo-próprio, ao passo que é a percepção das passas
nem qualquer espaço nem qualquer tempo. Com isto o que, no gastrônomo, passa a ser um sinal característico
encontrou a biologia unidade definitiva na doutrina de do seu.
O mundo-próprio do animal, que exactamente preten­
demos estudar, é apenas uma fracção do mundo ambiente
(') Demonstra-o o cinema. Na passagem de um film e, os qua­ que nós vemos desenrolar-se em volta do animal — e este
dros devem suteder-se e deter-se alternadamente. Para que apare­
mundo ambiente não é mais que o nosso mundo-próprio
çam com pérfeita nitidez, as exposições instantâneas e distintas
devem ser ocultadas por um anteparo. A ocultação produzida, ver­ humano. O primeiro problema no estudo dos mundos-
dadeiramente passa despercebida, se entre a ocultação e a exposi­ -próprios consiste em escolher, dentre os sinais carac­
ção medear um intervalo de tempo de 1/18 segundos. Se esse terísticos do mundo que o rodeia, aqueles que são par­
tempo fosse mais longo resultaria uma tremulação insuportável. ticulares ao animal e com eles construir o seu mundo-
(Nota do autor.) -próprio. O sinal característico «passas» deixa a carraça

[40] [41]
perfeitamente indiferente, ao passo que o sinal caracte­
rístico ácido butírico desempenha no seu mundo-próprio
um papel importante. No mundo-próprio do gastrônomo o
que tem significado acentuado é, não o sinal caracterís­
tico ácido butírico mas o sinal característico «passas».
Cada sujeito fia as suas correlações como os fios
de uma aranha, relativamente a determinadas proprie­
dades das coisas, e tece-as numa sólida teia que suporta
a sua existência.
Quaisquer que possam ser as correlações entre o
sujeito e ds objéctõs do seu mundo ambiente elas ocor­
rem sempre exteriormente ao sujeito em que temos de
escolher os sinais característicos. Os sinais característi­
cos, ou qualidades, são, por isso, sempre de qualquer
modo espacialmente ligados^ e, pois que eles se libertam
uns aos outros numa certa ordem, são também ligados
temporalmente.
Só por excessiva leviandade alimentamos a ilusão
de as correlações do sujeito, outro que não nós, com as
coisas do seu mundo-próprio existirem no mesmo espaço
e no mesmo tempo que as que nos ligam às coisas do
nosso próprio mundo humano. Esta ilusão é alimentada
pela suposição da existência de um mundo único em que
todos os seres vivos estão encerrados. Daí, a convicção
geralmente aceite, de que deve haver um único espaço
e um único tempo para todos os seres vivos. Só recen­
temente surgiram no espírito dos físicos dúvidas sobre
a existência de um universo com um espaço válido para
todos os seres. Que tal espaço não pode e xistir resulta
já do facto de cada homem viver em três espaços que
se penetram mutuamente, completando-se, mas que tam­
bém até certo ponto se contrapõem.

[42]
5. FORMA E MOVIMENTO
COMO SINAIS-CARACTERÍSTICOS

Mesmo que se quisesse adm itir que, no caso do


mundo-próprio do ouriço-do-mar, todos os sinais-caracte-

[ 71 ]
rísticos, ou notas, dos diferentes indivíduos-reflexos são
dotados de uma representação em espaço, e por isso cada
um se encontra num local diferente do de cada outro —
não havia, contudo, nenhuma possibilidade de relacionar
estes locais uns com os outros. Por isso a este mundo-
-próprio devem necessariamente faltar os sinais caracte­
rísticos de forma e de movimento que pressupõem a
ligação de vários locais de uns com os outros — e é isso
o que se dá. Forma e movimento aparecem pela primeira
vez em mundos de percepção superiores. Ora nós estamos

Flg. 20 — Gralha-de-blco-vermelho e gafanhoto

habituados a adm itir, graças às experiências adquiridas


no nosso mundo-próprio, que a forma de um objecto é
a nota, ou sinal-característico, dada em prim eiro lugar, e
que o movimento sobrevem ocasionalmente como sinal-
-característico secundário. Isto porém não é o que se
passa em muitos mundos-próprios dos animais. Neles,
forma em repouso e forma em movimento não são dois
sinais-característicos inteiramente independentes um do
outro, podendo também ocorrer o movimento sem forma,
como sinal-característico independente.
A fig. 20 representa a gralha-de-bico-vermelho, ou
Fig. 19 b — Mundo-próprio do ouriço-do-mar corvacho, caçando gafanhotos. A gralha é completamente

[ 72] [73]
incapaz de descobrir um gafanhoto em repouso, e só o Mas que o movimento independente de forma pode
ataca quando ele salta. figurar como sinal característico, pode-se concluir da
Nestas circunstâncias conjecturamos imediatamente fig. 21, que representa comparadamente o que se passa
que a forma çlo gafanhoto em repouso é bem conhecida com a vieira no seu mundo ambiente e no seu mundo-
da gralha, mas^por causa da erva que dissimula não é por -próprio.
aquela reconhfecida como unidade, exactamente como No mundo ambiente do molusco, e ao alcance da
nós só com dificuldade conseguimos destacar num dese- vista dos seus cem olhos, encontra-se o seu mais encar­
nho-quebra-cabeças uma forma conhecida. Segundo esta niçado inimigo, a estrela-do-mar, astéria. Enquanto esta
maneira de ver, a forma só ao saltar se distingue das dis- se conserva imóvel, não tem qualquer acção sobre o
simuladoras imagens circumvizinhas. molusco. A sua forma característica não é para ele um
Mas segundo outras experiências é de adm itir que sinal. Mas logo que ela se põe em movimento, o molusco
a gralha não reconhece a forma do gafanhoto em repouso estende, como reacção, os seus longos tentáculos, que
mas apenas está adaptada a reconhecer a forma em funcionam de órgãos do olfacto; aproximando-se da
movimento. Isto explicaria «a simulação da morte» de estrela-do-mar e recebem o novo estímulo. A seguir, o
muitos insectos. Quando a sua forma imóvel não existe molusco ergue-se e afasta-se nadando.
essencialmente no mundo de percepção do inimigo per­ As experiências têm mostrado ser indiferente a
seguidor, eles por meio desse subterfúgio, escapam-se forma ou a cor que um objecto móvel possua. Pois que,
a salvo desse mundo de percepções do inim igo e nunca no mundo-próprio do molusco, ele manifesta-se sempre
podem ser descobertos quando ele os procura. como sinal característico, se o seu movimento é tão
Eu construí um «anzol» para moscas, que se compõe lento como o da estrela-do-mar. Os olhos da vieira não
de uma varazinha de que suspendi por um fio fino uma são adequados para distinguir a forma ou a cor mas,
ervilha revestida de visco. Se por meio de uma leve vibra­ exclusivamente, um certo ritm o de movimento, o ritmo
ção da varazinha pusermos a ervilha em movimento no próprio do seu inimigo. Mas este não fica, por este meio,
parapeito de uma janela sobre que haja muitas moscas, completamente caracterizado: para que o segundo ciclo-
sempre algumas se lançarão sobre a ervilha, ficando pega­ -de-função se desencadeie é preciso que, primeiro, sobre­
das a ela, podendo depois verificar-se que são sempre venha um sinal olfactivo; então o molusco afasta-se da
machos. proximidade do inimigo, fugindo, e, por meio deste sinal-
O fenômeno representa uma espécie de falsas -de-acção, o sinal característico do inimigo é finalmente
núpcias. No caso de moscas que voam em volta de um anulado.
lustre, é ainda de machos que se lançam sobre fêmeas Durante muito tempo supôs-se que no mundo-próprio
que por ali voam, que se trata. A ervilha ao agitar-se da minhoca existia um sinal característico para a forma.
Imita o sínal-característico de fêmea que voa e por isso Já Darwin sugerira a esse respeito que a minhoca se com­
é tomada, nunca tal sucedendo quando está imóvel, do portava como se reagisse à forma tanto de folhas, como
que se pode ainda concluir que fêmeas imóveis e fêmeas de agulhas de pinheiro.
a voar são dois sinais-característicos distintos. A minhoca transporta para a sua alongada moradia,

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folhas e agulhas de pinheiro (fig. 22), que lhe servem
indiferentemente de protecção e de alimento. Verifica-se
que quando se tenta fazer entrar numa galeria estreita
e com o pecíolo para a frente, a maior parte das folhas,
elas encontram certa resistência. Pelo contrário, enro-

Fig. 22— A capacidade de discernimento


pelo gosto, na minhoca

lam-se facilmente e não se nota qualquer resistência


quando é o vértice que vai à frente. Quanto às agulhas
de pinheiro, que se desprendem dos ramos sempre aos
pares, essas devem fazer-se entrar na galeria não com
Fig. 21 — Mundo ambiente e mundo-próprio da vieira
o vértice mas com a base para a frente.

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Do. facto de a minhoca se utilizar, sem encontrar d ifi­ A fig. 23 apresenta uma comparação imaginada do
culdades, de folhas e de agulhas de pinheiro, concluíra-se mundo-ambiente e do mundo-próprio da abelha para ilus­
que a forma çlestes objectos, que no mundo-de-acção da tra r o que se passa. Vemos a abelha, no seu mundo-
minhoca desempenham um papel tão importante, devia -ambiente de um prado florido, distinguir entre as flores
e xistir no seu mundo-de-percepção como nota-carac- abertas e os botões. Situada a abelha no seu mundo-pró­
terística. prio e reduzindo as flores, segundo a sua forma, a estre­
Verificou-se* que esta conclusão era incorrecta. Pôde las ou cruzes, os botões passarão a te r a forma não
demonstrar-se que as minhocas arrastam para dentro das recortada de círculos.
suas galerias pequenas varazinhas, todas com a mesma Daqui concluiremos ainda o significado biológico
forma e que se tinham revestido de gelatina, indiferente­ desta nova particularidade das abelhas, assim revelada.
mente com uma ou a outra extremidade para a frente. Só as flores abertas, não os botões, têm para elas um
Mas quando se polvilha com pó de um vértice de folha significado.
de cerejeira uma das extremidades da varazinha, e a outra Mas as correlações de significado são, como nós já
com pó da sua parte basilar, as minhocas distinguem per­ vimos na carraça, os únicos guias seguros na exploração
feitam ente as duas extremidades como se fossem o vér­ dos mundos-próprios. Para o caso é perfeitamente indife­
tice e a base da própria folha. rente que as formas descontínuas, decomponíveis, sejam
Apesar de a minhoca se comportar perante as folhas fisiologicam ente eficientes.
de maneira relacionada com a sua forma, não é realmente O problema-da-forma foi reduzido por estes trabalhos
pela forma, mas pelo gosto, que ela se orienta. Este a uma fórmula mais simples. Basta adm itir que as células
arranjo é muito feliz, porque os órgãos-de-percepção da de percepção para os sinais locais se articulam em dois
minhoca são constituídos segundo um modelo demasiado grupos no órgão-de-percepção, umas segundo o esquema
sim ples para produzir sinais de forma. Este exemplo mos­
«decomposta», ou aberta, outras segundo o esquema «não
tra-nos como a natureza sabe*ç,vitar dificuldades que a
decomposta», ou fechada. Não há quaisquer outras dis­
nós parecem insuperáveis.
tinções. Se os esquemas se afastam disto, então resul­
No caso da minhoca também nada havia de percep­
tam deles «imagens perceptivas» que se conservam
ção de forma. Tanto, pois, mais instantemente se põe
inteiramente gerais, que, como novas e muito belas inves­
a questão de saber — em que animais é legítim o conjec-
tigações mostram, incluem no caso das abelhas, cores
turar que a forma existe originalmente como sinal-carac-
e cheiros.
terístico do seu mundo-próprio?
Nem a minhoca, nem a vieira, nem a carraça, dis­
Esta questão foi resolvida mais tarde. Foi possível
põem desses esquemas. Carecem, por isso, no seu mun­
demonstrar que as abelhas pousam de preferência em
do-próprio, de verdadeiras imagens-perceptivas.
coisas cujas formas recortadas são virtualm ente decom-
poníveis em outras mais simples, como estrelas e cruzes,
evitando, pelo contrário, formas inteiriças, como círculos
e quadrados.

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* '0\

O
Fig. 23 — Mundo ambiente e mundo-próprio da abelha

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