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Culpa e Má Consciência

Culpa e Castigo

Formação da Má Consciência

A Domesticação do Homem Animal

Qual a relação da má consciência com o ressentimento?


Qual a relação da má consciência com a domesticação do homem/ cultura e civilização?
Qual a relação do sacerdote ascético com a má consciência?

Qual a relação da má consciência com a negação da vida?


Qual a relação da má consciência com a moral dos escravos?

O que é a consciência para Nietzsche? Ela existe? O que é a consciência moral para
Nietzsche? Como surge a consciência para Nietzsche?

Prevalência de um tipo de moral - a moral do ressentimento - que quer


justamente formar na consciência do ser humano o sentimento de culpa

A segunda dissertação oferece a psicologia da consciência: a


mesma não é, como se crê, “a voz de Deus no homem” — é o
instinto de crueldade que se volta para trás, quando já não
pode se descarregar para fora. A crueldade pela primeira vez
revelada como um dos mais antigos e indeléveis67 substratos
da cultura.

De acordo com Nietzsche, o objetivo da segunda dissertação da Genealogia da Moral é


construir a psicologia da consciência no homem, ou seja, mostrar por meio do
procedimento genealógico que ela não é, como pregam os defensores da moral cristã, “a
voz de Deus no homem”, e nem possui um fundamento transcendente, divino ou
metafísico, mas que foi construída por meio de processos históricos e culturais. E mais:
que o processo da origem e desenvolvimento da consciência moral no homem não se
deu de modo pacífico, mas foi fruto do instinto de crueldade do homem (EH,
Genealogia da Moral, p. 65).
Desse modo, o grande problema que Nietzsche se coloca, nessa segunda parte da
Genealogia da Moral, é saber “como veio ao mundo aquela outra ‘coisa sombria’, a
consciência da culpa, a ‘má consciência’?” (GM, II, § 4), isto é, o problema da origem e
do desenvolvimento sentimento de culpa no homem.
Descartando de imediato a concepção de que a consciência moral seja inata no homem,
tendo, pois, uma origem divina, Nietzsche vai mais uma vez vasculhar o passado moral
do homem para encontrar nele a origem e os sentidos dos conceitos que fundamental a
moral vigente em sua época.

A memória soaria como um tipo de antinatureza, bem como a própria moralidade, que o
obriga a extrapolar o instante e a viver segundo conceitos fixos na memória e na ação, o que
lhe permite até mesmo “fazer promessas”.
A origem da memória marca a capacidade do homem em fazer promessas, em se tornar um
ser moral, confiável. Ela é condição necessária para a existência da civilização entendida
como adestramento e cerceamento dos impulsos. Esta memória passará em algum período
da humanidade, a fazer parte do gênero humano.
A promessa tornou-se ativa, no sentido de um “não-mais-querer-livrar-se” dessa memória,
de continuar querendo o passado das ações. Nietzsche chamou isso de memória da vontade,
que é uma memória não exatamente do passado, não uma memória de traços, mas uma
memória do futuro, que se estende e se direciona para o futuro, que permite retomar
continuamente o passado, as ações promovidas no passado, de modo a vislumbrar suas
consequências futuras.
Como surgiu no homem a capacidade de prometer? A partir desse momento, Nietzsche
analisa a origem da responsabilidade e a noção de moralidade do costume.

Vida é... instintos = vida. Negação dos instintos é igual à negação da vida.

Ascétimo – luta contra os instintos básicos. Negação dos instintos básicos é igual à
negação da vida.
Contudo, a violência que era algo prazeroso para o homem, passou a
ser encoberta pelo véu da justiça, da moral e do dever com o decorrer do tempo. A
sociedade moderna, ao arrancar a violência como característica do homem na
sociedade, passou a interiorizá-la através do sentimento de culpa e má
consciência.

Os instintos humanos são contrários aos ideais ascéticos.


O que significa fazer promessas?
Significa assumir compromissos e honrá-los. Esses compromissos nem sempre se
limitam ao âmbito privado, mas dizem repeito também à relação do indivíduo com a
sociedade, com a comunidade...

O que significa criar um animal capaz de fazer promessas?


Para que o homem possa fazer promessas e seja capaz de cumpri-las, ele precisa antes
desenvolver a faculdade da memória, oposta a uma outra que nele é inata: o
esquecimento. Memória aqui não diz respeito à lembrança dos fatos passados, não é
apenas um não-mais-poder-livrar-se da impressão recebida, mas sim um ativo não-mais-
querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma memória da vontade, de
modo que entre a disposição de querer e o ato verdadeiro de descarga da vontade, possa
ser interposto por outros atos de vontade, sem que se quebre esta longa cadeia do
querer. A memória, portanto, aqui não diz respeito ao passado, mas é um dirigir-se ao
futuro.

O esquecimento também possui um significado diferente ao corriqueiro. Esquecer não é


simplesmente um deixar de lembrar, mas ‘uma força inibidora ativa, positiva no mais
rigoroso sentido’, pois somente através dela o que foi experimentado, vivenciado e
acolhido não penetra na consciência preservando a saúde psíquica, e possibilitando à
consciência vivenciar coisas novas e estar liberada para as funções necessárias para a
vivência do momento presente.

Criar um animal que pode fazer promessas é uma tarefa paradoxal, porque o homem é
em seu estado mais primitivo, pré histórico, um animal que vive do instante presente,
que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte,
precisou - o que só pode lhe pode ser permito por meio da faculdade do esquecimento –
precisou desenvolver em si, em seu estado civilizatório, uma faculdade oposta, uma
memória, que faz com que o esquecimento seja suspenso nos casos em que se deve
prometer.

Mas para poder vencer seus instintos básicos e deixar de viver do instante presente, e
poder projetar no futuro a sua vontade, o homem precisou aprender muita coisa: a
distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e
antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os
meios para o fim, calcular, contar, confiar, e para isso, precisou tornar-se ele próprio
confiável, constante, necessário, para poder enfim tornar-se confiável para os outros e
poder responder por si como projeção futura (porvir).

dentro da sociedade não se pode


deixar de cumprir certos compromissos, foi desta forma que o bicho homem se
transformou em um indivíduo soberano de sua vontade. Assim o sujeito passou a
ter a capacidade de fazer valer sua vontade no porvir, independente do curso das

A criação da consciência moral, para Nietzsche, então, relaciona-se com


desenvolvimento da responsabilidade no homem. Este desenvolvimento por sua vez
liga-se à tarefa de fazer surgir no homem, “escravo momentâneo do afeto”, uma
faculdade oposta ao esquecimento.

Como pode um animal que vive do presente, da realização imediata dos seus
instintos básicos ser capaz de fazer e cumprir promessas?

Por sua vez, a tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas pressupõe a tarefa
mais imediata de tornar o homem necessário, uniforme, igual entre iguais, constante e
portanto confiável.

Somente por meio da moralidade dos costumes e dos meios violentos que servem para
adestrar o homem, bem como por meio da camisa de força social (as pressões sociais) é
que o homem pode ser tornado confiável.
Esse autêntico trabalho do homem em si próprio, durante o período mais longo de sua
existência, o período pré-histórico, não obstante o que nele também haja de tirania,
dureza, estupidez e idiotismo, é a cultura.

A moralidade dos costumes precede a historia universal (Deleuze). A cultura é a


atividade pré histórica do homem, e consiste em sempre dar ao homem hábitos, de fazê-
lo obedecer às leis, de adestrá-lo. Adestrar o homem significa formá-lo de tal modo que
ele possa acionar suas forças reativas. O objetivo principal da cultura é o de reforçar a
consciência. É preciso dar a essa consciência que se define pelo caráter fugidio das
excitações, a essa consciência que se apoia na faculdade do esquecimento, uma
consistência e uma firmeza que ela não tem por si mesma. A cultura dota a consciência
de uma nova faculdade que, aparentemente, se opõe à faculdade do esquecimento: a
memória. Mas a memória da qual se trata aqui não é a memória dos traços. Essa
memória original não é mais função do passado, mas função do futuro. Não é memória
da sensibilidade, mas da vontade. Ela é faculdade de prometer, engajamento futuro,
lembrança do próprio futuro. Lembrar-se da promessa feita não é lembrar-se de que foi
feita em tal momento passado, mas de que se deve mantê-la em tal momento futuro. Eis
aí precisamente o objetivo seletivo da cultura: formar um homem capaz de prometer,
portanto dispor do futuro, um homem livre e poderoso. Só um homem assim é ativo; ele
aciona suas reações, nele tudo é ativo ou acionado. A faculdade de prometer é o efeito
da cultura como atividade do homem sobre o homem; o homem que pode prometer é o
produto da cultura como atividade genérica.
Compreendemos porque a cultura não recua, em principio, diante de nenhuma
violência: “talvez não haja nada de mais terrível e mais inquietante na pré historia do
homem do que sua mnemotécinca... sempre havia suplícios, matirios e sacrifícios
sangrentos, quando o homem julgava necessário criar uma memória para si. Antes de
chegar ao objetivo (o homem livre, ativo e poderoso), quantos suplícios são necessários
para adestrar as forças reativas, para constrangê-las a serem acionadas. A cultura sempre
empregou o seguinte meio: fez da dor um meio de troca, uma moeda, um equivalente;
precisamente o exato equivalente de um esquecimento, de um dano causado, de uma
promessa não cumprida. A cultura referida a esse meio chama-se justiça; o próprio meio
chama-se castigo. Dano causado = dor sofrida, eis a equação do castigo que determina
uma relação do homem com o homem. Essa relação. Entre homens é determinada,
segundo a equação, como relação de um credor e de um devedor: a justiça torna o
homem responsável por uma dívida. A relação credor-devedor exprime a atividade da
culta em seu processo de adestramento ou de formação. Correspondendo à atividade pré
histórica, essa própria relação é a relação do homem com o homem, “a mais primitiva
entre indivíduos”, anterior mesmo “às origens de qualquer organização social”. Mais
ainda, serve de modelo “aos complexos sociais mais primitivos e mais grosseiros”. É no
crédito, não na troca, que Nietzsche vê o arquétipo da organização social. O homem que
paga com sua dor o dano que causa, o homem considerado responsável por uma dívida,
o homem tratado como responsável por suas forças reativas: aí está o meio utilizado
pela cultura para atingir seu objetivo. – Nietzsche nos apresenta então a seguinte
linhagem genérica: 1º) A cultura como atividade pré histórica ou genérica, tarefa de
adestramente e de seleção; 2º) o meio utilizado por essa atividade, a equação do castigo,
a relação da dívida, o homem responsável; 3º) o produto dessa atividade: o homem
ativo, livre e poderoso, o homem que pode prometer.

Qual seria o produto desse imenso processo no qual a sociedade e sua moralidade do
costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas meios? Segundo
Nietzsche é “o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da
moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral, em suma o homem da vontade
própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas - e nele encontramos
uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e esta nele encarnado, uma
verdadeira consciência de poder e liberdade, este senhor do livre arbítrio, este soberano,
que sabe que é superior aos que não podem prometer e responder por si – os homens do
ressentimento – e com esse domínio de si, também lhe é dado o domínio sobre as
circunstâncias; sobre a natureza e todas as criatura menos seguras e mais pobres de
vontade. O homem livre, o possuidor de uma duradoura e inquebrantável vontade, tem
nessa posse a sua medida de valor: olhando para os outros a partir de si, ele honra e
despreza: honra seus iguais, os fortes e confiáveis, e despreza os que não podem
prometer, os fracos e débeis.
O orgulhoso conhecimento do privilégio da responsabilidade, a consciência dessa rara
liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, que tornou-se nele instinto
dominante, este homem soberano chama de sua consciência.

Poder responder por si, e com orgulho, ou seja, poder também dizer Sim a si mesmo – é
um fruto maduro também um fruto tardio.
Como fazer no bicho homem uma memória?
Nietzsche vai buscar na pré historia do homem a longa historia e variedade das formas
que o conceito maduro de consciência moral adquiriu ate se constituir no que se
entendia por consciência em sua época.

O animal homem é um ser voltado para o instante, a verdadeira encarnação do


esquecimento.
Tal problema não fora resolvido com meios e respostas suaves. A memória fora
originada no homem por meio da dor, pois somente o que não cessa de causar dor fica
na memória.

A formação da memória e portanto da criação da consciência moral não tem nada de


puro e imaculado, mas pelo contrario, tem muito de crueldade.
A memória fora criada por meio de sacrifícios, martírio, mortificação. Criar memória é
substituir as ideias provenientes dos instintos básicos por ideias racionais, provenientes
do ideal ascético. Tornar ideias fixas, indeléveis, onipresentes.

Quanto pior de memória a humanidade, tanto mais terrível o aspectos de seus costumes;

Objetivo: vencer o esquecimento e manter presentes algumas elementares exigências do


convívio social.
Aquisição da memória com os meios mais terríveis, para sujeitar seus instintos básicos
plebeus e a brutal grosseria destes.
O animal homem é um escravo momentâneo do afeto e da cobiça...
O homem animal refreia seus instintos básicos para se tornar um animal confiável e
cumprir suas promessas, a fim de viver os benefícios da sociedade. Com a ajuda dessa
espécie de memória chegou-se finalmente à razão.

A razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, todos esses privilégios e adereços do


homem foi conquistado a um alto preço.

Como surgiu no homem o sentimento de culpa, a consciência de culpa, a má


consciência?
O grande conceito moral de culpa teve origem no conceito muito material de dívida.
O castigo como reparação desenvolveu-se alheio a qualquer suposição acerca da
liberdade ou não liberdade da vontade.
O surgimento do sentimento de justiça não tem a ver com a ideia de que o criminoso
merece castigo porque podia ter agido de outro modo (sentido moderno; compreensão
tardia da relação entre justiça e castigo)
Durante a pré historia humana não se castigou porque se responsabilizava o delinquente
por seu ato, ou seja, por ele ser considerado culpado (conceito moral), mas pela raiva
devida a um dano sofrido; ele era castigado porque causou um dano; raiva que se
desafoga em quem causou o dano. Mas como a dor pode ser equivalente à compensação
de um dano sofrido. A relação dano x dor retira sua força da relação contratual entre
credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de pessoas jurídicas e que por sua
vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico.

Precisamente nessas relações contratuais fazem-se promessas; justamente nelas é


preciso construir uma memória naquele que promete; nelas se pode desconfiar. O
devedor, então, para infundir confiança em sua promessa de restituir e para reforçar na
consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um contrato empenha ao
credor, casão não consiga pagar, algo que ainda possua e sobre o qual ainda tenha
poder, até mesmo seu próprio corpo. Assim, o credor podia infligir ao corpo do devedor
toda sorte de humilhações e torturas. A lógica dessa forma de compensação está na
equivalência da substituição de uma vantagem diretamente relacionada ao dano por uma
espécie de satisfação intima, concebida ao credor como reparação e recompensa – a
satisfação de poder livremente descarregar seu poder sobre um impotente, o prazer de
fazer o mal pelo simples prazer de o fazer, o prazer de ultrajar. Esta satisfação era tanto
maior quanto mais baixa fosse a posição do credor na ordem social, pois, através da
punição ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores; experimenta enfim
ele mesmo a sensação exaltada de poder desprezar e maltratar alguém como inferior. E
mesmo no caso em que o poder de punir é passado a uma autoridade, o credor sente ao
menos o prazer de ver o devedor sendo desprezado e maltratado. A compensação
consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade.

É na esfera das obrigações legais, e não em um pressuposto metafísico, que Nietzsche


constata que está a origem dos conceitos morais como culpa, consciência, dever,
sacralidade do dever, em voga em sua época.
E seu inicio como tudo grande na terra está fortemente marcado por sangue.
Foi na pré historia do homem que se entrelaçou também a ideia de culpa e sofrimento.
Diante de suas constatações Nietzsche pergunta: em que medida pode o sofrimento ser
compensação para a dívida? Ele oferece sua hipótese: na medida em que fazer sofre era
altamente gratificante; na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer
pelo dano, por um extraordinário contraprazer: causar sofrer; dar livre vazão aos seus
instintos mais cruéis; às suas forças; à sua vontade de poder. O prazer de causar
sofrimento era mais valioso quanto mais contradizia o posto e a posição social do
credor.
E nessa relação entre sofrimento e dívida não está presente o conceito de vingança. Faz-
se sofrer não por vingança, mas pelo prazer de fazer sofrer. É o prazer de fazer sofrer
que compensa o desprazer do dano sofrido. A introdução do conceito de vingança nessa
relação levaria ao mesmo problema: como pode fazer sofre ser uma satisfação? A
crueldade era o grande prazer festivo da humanidade antiga. A maldade desinteressada
era considerada um atributo normal do homem.

Naquela época, quando a humanidade não se envergonhava ainda de sua crueldade, a


vida na terra era mais contente do que na modernidade, que existem pessimistas. O
ensombrecimento do céu acima do homem aumentou à medida que cresceu a vergonha
do homem diante do homem.

A vergonha dos instintos básicos de crueldade constitui uma forma de negação da vida.
O olhar pessimista enfastiado, a desconfiança diante do enigm da vida, o gélido Não do
nojo da vida – estas não são características da época pré histórica, mas da época
moderna, que só surgem após a moralização e ao amolecimento doentios, em virtude
dos quais o bicho homem aprende afinal a se envergonhar de seus instintos. Em seu
processo de melharamento pela moral cristã o homem desenvolveu em si afetos que
tornaram repulsivas a inocência e a alegria do animal, e sem sabor a própria vida. Na
época moderna, quando o sofrimento é sempre lembrado como o primeiro argumento
contra a existência, é bom recordar as épocas em que se julgava o contrario, porque não
se prescindia do fazer-sofrer, e via-se nele um encanto de primeira ordem, um
verdadeiro chamariz à vida, à sua afirmação alegre.

Mas talvez, segundo Nietzsche, se possa admitir a possibilidade de que o prazer na


crueldade não esteja realmente extinto:ele apenas aparece transposto para o plano
imaginativo e psíquico e com nomes diferentes sob uma capa que os faz parecer
inofensivos: a compaixão, as nostalgias da cruz, pois o que revolta no sofrimento não é
o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido. Mas nem para o cristão, que interpretou o
sofrimento como redentor, capaz de expiar pecados, nem para o ingênuo das eras
antigas, que explicava todo o sofrimento em consideração a espectadores ou a seus
causadores, existia tal sofrimento sem sentido.
Para que o sofrimento oculto e não testemunhado pudesse ser abolido do mundo e
honestamente negado, o homem se viu então obrigado a inventar deuses e seres
intermediários que veem o sofrimento de todos e dar sentido ao sofrimento de todos. Foi
com a ajuda de tais invenções que a vida conseguiu a façanha de justificar a si mesma,
justificar o seu mal.

É justificado todo mal cuja visão distrai um deus. Os deuses como amigos de
espetáculos cruéis.
O livre arbítrio, a absoluta espontaneidade do homem no bem e no mal, foi inventado
para que o homem adquirisse o direito de pensar que o interesse nos deuses por ele, na
virtude humana, não poderia jamais se esgotar, pois um mundo concebido de modo
inteiramente determinista seria previsível aos deuses, tornando-se logo cansativo.

O sentido de culpa, da obrigação pessoal, teve origem na mais antiga e primordial


relação pessoal, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que
pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra.
Também a comunidade mantém com seus membros essa importante relação básica, a do
credor com seus devedores.
A comunidade garante aos indivíduos proteção, cuidado, paz e confiança, falta de
preocupação com certos abusos e hostilidade a que está exposto o homem de fora, o sem
paz; desde que precisamente em vista desses abusos e hostilidades o individuo se
empenhou e se comprometeu com a comunidade.

Se o indivíduo não satisfizer a obrigação devida à comunidade, credor traído, ela exigira
o pagamento. O dano imediato é o que menos importa; o criminoso é sobretudo um
infrator. O criminoso é um devedor que não só não paga os proveitos e adiantamentos
que lhe foram concedidos, como também atenta contra seu credor. O devedor então não
será apenas privado desses benefícios como também lhe será mostrado o quanto eles
valem. A comunidade o afastará de si. O castigo aqui é uma cópia do comportamento
normal perante o inimigo odiado.

Aumentando o poder de uma comunidade, ela não mais atribui tanta importância aos
desvios do indivíduo, porque eles já não põem ser considerados tão subversivos e
perigosos para a existência do todo. O malfeitor já não é expulso e a ira coletiva já não
pode se descarregar livremente sobre ele. Ao contrário, a partir de então ele é
cuidadosamente defendido e abrigado pelo todo, protegido em especial da cólera dos
que prejudicou diretamente. Quanto mais poderosa uma comunidade mais leve o seu
direito penal. Se houver um enfraquecimento dessa comunidade, formas mais duras
voltam a se manifestar no direito penal.
O credor se torna sempre mais humano na medida em que se torna mais rico e o quanto
de injuria ele pode suportar sem sofre e por fim a própria medida de sua riqueza. A
justiça, que iniciou com tudo é resgatável, tudo tem que ser pago, termina por fazer vista
grossa e deixar escapaz os insolventes – termina como toda coisa boa sobre a terra,
suprimindo a si mesma. A autossupressao da justiça; a graça é privilégio do poderoso.

Os que tentaram buscar a origem da justiça no ressentimento incorreram em erro. O


ressentido tenta sacralizar a vingança em nome da justiça, como se no fundo a justiça
fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido – e depois promover, com a
vingança, todos os afetos reativos.

O ultimo terreno conquistado pelo espírito da justiça é o do sentimento reativo. Ser justo
é sempre uma atitude positiva; ativa. O homem ativo, violento, excessivo, está sempre
bem mais próximo da justiça que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto
avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem
reativo.

Nietzsche destaca dois problemas decorrentes da origem e da finalidade do castigo. A


origem de uma coisa e a finalidade dela são coisas diferentes. Assim, se imaginou que o
castigo fora inventado para castigar. Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas
indícios de que uma vontade de poder se assenhereou de algo menos poderoso e lhe
imprimiu o sentido de uma função.
Mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; com isto não se
percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas,
criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente
precede a “adaptação”; com isto se nega, no próprio organismo, o papel dominante dos
mais altos funcionários, aqueles nos quais a vontade de vida aparece ativa e
conformadora.

Há que se distinguir dos aspectos no castigo: o que nele é relativamente duradouro, o


costume, o ato, uma certa sequencia rigorosa de procedimentos (forma) e o que é fluido,
o sentido, o fim, a expectativa ligada à realização desses procedimentos.
Pressuposição: que o procedimento seja anterior à sua utilização no castigo; que o
castigo tenha sido introduzido, interpretado no procedimento – que há muito já existia,
mas empregado em outro sentido – Quanto ao sentido, o castigo é polissêmico.

Para Nietzsche, o sentimento de culpa não encontra sua origem no castigo. Mas entre os
criminosos o remorso é algo extremamente raro.

O desenvolvimento do sentimento de culpa foi detido, mais do que tudo, precisamente


pelo castigo. Os que puniam não revelaram consciência de estar lidando com um
culpado, mas sim com um causador de danos.

O genuíno efeito do castigo não é o sentimento de culpa, mas a intensificação da


prudência, um alargamento da memória, uma vontade de passar a agir de maneira mas
custa, desconfiada e sigilosa, a percepção de ser demasiado fraco para muitas coisas, a
melhoria da faculdade de julgar a si próprio. O que em geral se consegue com o castigo,
em homem e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle
dos desejos; assim, o castigo doma o homem, mas não o torna melhor.

Hipótese sobre a origem da má consciência:

Para Nietzsche, a ma consciência é uma profunda doença que o homem teve que
contrair sob a pressão da radical mudança que sobreveio a ele quando se viu
definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.
A mais radical das mudanças que viveu.
O homem animal adaptado à natureza selvagem, à vida errante, à guerra, à
aventura, vivendo dos seus instintos, do momentâneo – subtamente seus instintos
ficaram sem valor e suspensos. Sentiram deslocados, inadequados, pois seus velhos
impulsos reguladores e inconscientemente certeiros ficaram reduzidos a pensar, inferir,
calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos à sua consciência – seu órgão mais frágil
e falível.
Houve para ele um grande sentimento de desgraça e mal-estar, e além disso, os velhos
instintos não cessaram repentinamente de fazer suas exigência, embora, dificilmente,
muito raramente fosse possível lhe dar satisfação. Nesse novo mundo, o animal homem
teve de buscar novas gratificações, disfarçadas, por meio da sublimação de seus
instintos de crueldade, pois, todos os instintos que não se descarregam para fora,
voltam-se para dentro – a isto Nietzsche chama de interiorização do homem: é assim
que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”, sua consciência.
Assim, o mundo interior, originalmente estreito, foi se expandindo e se estendendo,
adquirindo profundidade, largura e altura; foi se tornando complexo, na medida em que
o homem foi inibido em sua descarga para fora.

“Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que


entre duas membranas, foi se expandindo e se
estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na
medida em que o homem foi inibido em sua descarga
para fora.”

As práticas de crueldade com que a organização do Estado se protegia dos velhos


instintos de liberdade (os castigos, a camisa de força social, a moralidade dos costumes)
fizeram com que todos os instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem
para trás, contra o homem mesmo.

‘A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na


destruição: tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: está é a origem
da má consciência.’

O próprio homem, que por falta de inimigos e resistências exteriores, fechado em um


opressiva estreiteza e regularidade de costumes, teve que se transformar ele mesmo em
seu adversário para poder descarregar de alguma forma seus instintos, sua vontade de
potência, foi o inventor da má consciência.

Com a má consciência foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual ate hoje
não se curou a humanidade: o sofrimento do homem com o homem, consigo mesmo:
[esse sofrimento do homem consigo mesmo] como resultado de uma violenta separação
do seu passado animal, com que um salto e uma queda em novas situações e condições
de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até
então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava.

Com essa interiorização do homem, com sua alma animal voltada contra si mesmo,
tomando partido contra si mesma, algo novo surgia na terra, algo profundo, inaudito,
enigmático, pleno de contradição e de futuro, que o aspectos da terra se alterou
substancialmente. O homem precisava de espectadores para essa sua nova forma de
sofrimento, por isso criou os deuses.

Pressupostos para a hipótese nietzschiana da origem da ma consciência:

1) Que a mudança não tenha sido gradual nem voluntária e que não tenha
representado um crescimento orgânico no interior das novas condições
existenciais, mas uma ruptura, uma violência, uma fatalidade inevitável, contra a
qual não havia luta e nem sequer ressentimento.
2) Que a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável,
assim como tivera inicio com um ato de violência, foi levada a termo somente
com atos de violência, ou seja, que o mais antigo Estado, em consequência
apareceu como uma terrível tirania, e assim prosseguiu seu trabalho até que tal
matéria-prima humana e semianimal ficou não só amassada e maleável, mas
também dotada de uma forma.
Com a palavra Estado Nietzsche quer se referir que esta forma de organização social
não iniciou por meio de um contrato, mas foi resultado submissão de povos nômades e
sem organização a uma raça de bestas louras, de conquistadores e senhores, organizada
guerreiramente e com força para organizar.

Os nobres guerreiros senhoriais não sabem o que é culpa, responsabilidade,


consideração; eles são organizadores natos, criam algo novo onde quer que chegam,
imprimem formas, uma estrutura de domínio harmônica. Neles não nasceu a ma
consciência mas sem eles ela não teria nascido; pois foi com sua violência que um
enorme quantum de liberdade foi eliminado do mundo, ou pelo menos tornado latente,
interiorizado nos escravos por eles subjugados. Esse instinto de liberdade tornado
latente à força, reprimido, recuado, encarcerado no intimo, por fim capaz de desafogar-
se somente em si mesmo, foi, de modo embrionário, a ma consciência.

No fundo é a mesma força ativa, que age grandiosamente nos nobres guerreiros
senhoriais, que interiormente, embora em escala menor e mais mesquinha, dirigida para
trás, cria a ma consciência e constrói ideais negativos; é aquele mesmo instinto de
liberdade (a vontade de poder): só que interiorizada, voltada para trás, contra o próprio
possuidor ao invés de ser exteriorizada, extravasada.

somente que a matéria na qual se extravasa a natureza


conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem
mesmo, o seu velho Eu animal — e não, como naquele
fenômeno maior e mais evidente, o outro homem, outros
homens.

Ver Deleuze e as forças ativas e reativas – ressentimento e má consciência.

Todavia, essa má consciência ativa também fez afinal vir à luz uma profusão de beleza e
afirmação nova e surpreendente e talvez mesmo a própria beleza...
Só assim se pode entender como um ideal contrário ao que afirma a vida pode se
autoconsiderar contraditoriamente como bom, mesmo sendo construído em bases
contraditórias como ausência de si, abnegação e sacrifício.
Mas aqui se pode entender também de que espécie é, desde o início, o prazer que sente
o desinteressado, o abnegado, o que se sacrifica: “este prazer vem da cruledade.”
Apenas isso, no momento, sobre a origem do “não-
egoísmo” como valor moral, e para delimitação do terreno
no qual ele cresceu: somente a má consciência, somente
a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira
para o valor do não-egoísmo.

A má consciência é uma doença, mas uma doença tal como a gravidez.

Nietzsche investiga em seguida as condições em a ma consciência atingiu a sua mais


terrível e mais sublime forma e suas consequências (o que realmente surgiu então no
mundo).

Retorno a um ponto de vista anterior.


A relação de direito privado entre o devedor e seu credor, foi introduzida (na pré
historia/na historia?) numa relação entre os vivos e seus antepassados.
Na comunidade tribal, pré histórica, a geração que vive sempre reconhece para com a
anterior e em especial para com a primeira, a fundadora da estirpe, uma obrigação
jurídica, e não um mero vinculo de sentimento. A convicção que prevalece é a de a
comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e as realizações dos antepassados e
de que é preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações, ou seja, reconhece-se uma
divida, que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em
sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e
adiantamentos a partir de sua força. O que se lhes pode dar em troca? Sacrifícios, festas,
musica, homenagens e sobretudo obediência aos costumes, pois estes são enquanto obra
dos antepassados, também são seus preceitos e ordens. Eles se perguntam: é possível
lhes dar o bastante? Esta suspeita permanece e aumenta: de quando em quando exige
um imenso resgate, algo monstruoso como pagamento ao credor, como por exemplo, o
sacrifício do primogênito.
O medo do ancestral e do seu poder, a consciência de ter dividas para com ele, cresce
necessariamente na exata medido em que cresce o poder da estirpe, na medida em que
ela mesma se torna vitoriosa, independente, venerada e temida. E, de modo contrário, o
debilitamento da estirpe faz com que o medo do espírito do fundador diminua, pois esse
infortúnio da estirpe é sinal da fraqueza do poder do ancestral.
Por essa lógica, os ancestrais das estirpes mais poderosas adquirem com o tempo, por
força da fantasia do temor crescente, proporções gigantescas e terminam transfigurados
em deuses. Na época pré histórica essa consciência de divida aos antepassados não tinha
sentido de piedade. Somente com a formação das estirpes nobres é que os ritos aos
antepassados vão se tornar práticas de piedade.

Finalização do processo de evolução da consciência de culpa

A consciência de ter dívidas para com a divindade não se extinguiu após o declínio da
forma de organização da comunidade baseada nos vínculos de sangue; do mesmo modo
como herdou as noções de bom e ruim da nobreza de estirpe, juntamente como seu
fundamental pendor psicológico a estabelecer hierarquias, a humanidade recebeu, com a
herança das divindades tribais e familiares, também o peso das dívidas ainda não pagas,
e o anseio de resgatar-se. Essa transição é marcada por aquelas vastas populações de
escravos e servos da gleba, que se adaptaram ao culto

Dos deuses dos senhores, seja através da coerção, seja por servilismo e imitação: a partir
delas esse legado se alastrou em todas as direções.

O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante milênios, e


sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às alturas o
conceito e o sentimento de Deus. Segundo Nietzsche,

(Toda a história de luta, vitória, conciliação e fusão étnica,


tudo o que antecede a definitiva hierarquização de todos
os elementos populares, em toda grande síntese racial,
reflete-se no caos das genealogias dos deuses, nas
sagas de suas lutas, vitórias e conciliações; o progresso
em direção a impérios universais é também o progresso
em direção a divindades universais; o despotismo, com
seu triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o
caminho para algum monoteísmo.)

O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também o
máximo de sentimento de culpa.

Essa é segundo Nietzsche, a origem da consciência de culpa, do nexo entre as noções de


culpa, dever e seus pressupostos religiosos.

Mas como se deu a moralização desses conceitos?

Com a moralização das noções de culpa e dever, com seu afundamento na ma


consciência, houve a tentativa de inverter a direção do desenvolvimento acima descrito,
ou ao menos deter esse movimento: justamente a perspectiva de um resgate definitivo
deve se encerrar, de modo pessimista, de uma vez por todas; a impossibilidade de
remissão da dívida por parte do homem fazem as noções de culpa e dever se voltar para
trás, primeiramente contra o próprio homem, o devedor, mas também contra o credor. E
esse foi o grande golpe de gênio do cristianismo, segundo Nietzsche
o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o
próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único
que pode redimir o homem daquilo que para o próprio
homem se tornou irredimível — o credor se sacrificando
por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por
amor a seu devedor!...

Os instintos reprimidos passam a ser vistos como rebelião contra Deus

Mas o que realmente se passou com tudo isso e sob tudo isso:
essa vontade de se torturar, essa crueldade reprimida do
bicho-homem interiorizado, acuado dentro de si mesmo,
aprisionado no “Estado” para fins de
domesticação, que inventou a má consciência para se
fazer mal, depois que a saída mais natural para esse
querer-fazer-mal fora bloqueada — esse homem da má
consciência se apoderou da suposição religiosa para levar
seu automartírio à mais horrenda culminância. Uma dívida
para com Deus: este pensamento tornou-se para ele um
instrumento de suplício. Ele apreende em “Deus” as
últimas antíteses que chega a encontrar para seus
autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta
esses instintos como culpa em relação a Deus (como
inimizade, insurreição, rebelião contra o “Senhor”, o “Pai”,
o progenitor e princípio do mundo), ele se retesa na
contradição “Deus” e “Diabo”, todo o Não que diz a si, à
natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta
fora de si como um Sim, como algo existente, corpóreo,
real, como Deus, como santidade de Deus, como Deus
juiz, como Deus verdugo, como Além, como eternidade,
como tormento sem fim, como Inferno, como
incomensurabilidade do castigo e da culpa.

Para Nietzsche, há uma loucura da vontade nessa crueldade psíquica:


a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível,
até ser impossível a expiação, sua vontade de crer-se
castigado, sem que o castigo possa jamais equivaler à
culpa, sua vontade de infectar e envenenar todo o fundo
das coisas com o problema do castigo e da culpa, para de
uma vez por todas cortar para si a saída desse labirinto
de “ideias fixas”, sua vontade de erigir um ideal — o do
“santo Deus” — e em vista dele ter a certeza tangível de
sua total indignidade.

Já que o homem não pode mais ser cruel contra os outros ele precisa dar vazão a seus
instintos de crueldade sendo cruel consigo mesmo.

Estará o homem tendo o prazer em se sentir culpado para merecer a atenção e o carinho
de Deus?

Impedido de dar vazão à sua animalidade por meio da ação o homem inventa para si
uma ficção por meio da qual possa sentir o prazer de fazer sofrer, nem que a vítima seja
ele mesmo.

Dessa doença terrível, dessa noite de tormenta e absurdo, segundo Nietzsche, foi de
onde ressoou o grito do amor, o grito do mais sequioso êxtase, da salvação no amor.

Os gregos, reflexos de homens nobres e senhores de si, são um exemplo, para


Nietzsche, de que a concepção de deuses não conduz necessariamente à criação da ma
consciência, pois, aqueles se utilizaram dos deuses precisamente para manter afastada a
ma consciência, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrario,
portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus. Para os gregos os infortúnios sofridos
por eles eram causados pelos deuses e não por eles mesmos.

Nietzsche conclui com três interrogações: o que ocorre exatamente, você está erguendo
ou demolindo um ideal? Talvez lhe perguntem... mas porque na se perguntam a si
mesmos quanto custou nesse mundo a construção de cada ideal? Quanta realidade teve
de ser denegrida e negada, quanta mentira teve de ser santificada, quanta consciência
transformada, quanto “Deus” sacrificado?

Os homens modernos são os herdeiros da vivissecção da consciência e da


autoexperimentação de milênios. Já por tempo demais o homem considerou suas
propensões naturais com olhar ruim de tal modo que elas nele se irmanaram com a ma
consciência (ou seja, as propensões naturais são vistas como transgressões contra a
natureza humana, corrompida, e ofensas a Deus).

Uma tentativa inversa é em si possível – mas quem é forte o bastante para isso? – ou
seja, as propensões inaturais, todas essas aspirações ao Além, ao que é contrario aos
sentidos, aos instintos, a natureza, ao animal, em suma, os ideias ate agora vigentes,
todos ideais hostis à vida, difamadores do mundo, é que devem ser irmanados à ma
consciência.

A quem se dirigir atulamente com tais esperanças e pretensões? Se teria como


adversários precisamente os homens bons, e também, é claro, os cômodos, os
conciliados, os vãos, os sentimentais, os cansados.

O que ofende mais fundo, o que separa mais radicalmente, do que deixar perceber o
rigor e a elevação com que se trata a si mesmo?

Por outro lado, o mundo se mostra afável, afetuoso quando se se deixa levar pela
existência. Mas para esse fim seria preciso uma outra espécie de homens, homens fortes
e nobres, o homem superior, que afastara tudo de toda transcendência e toda
insignificância, cuja solidão ser compreendida como fuga da realidade, quando na
realidade é penetração na realidade, sua redenção da maldição que o ideal existente
sobre ela lançou.

Esse homem do futuro é que salvará a humanidade não só do ideal vigente, como
daquilo que dele forçosamente nasceu, do grande nojo, da vontade do nada, do niilismo;
esse redentor que tornará novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade
e ao homem sua esperança. Esse anticristão, antiniilista, esse vencedor de Deus e do
nada: terá que vir um dia...

Nietzsche reconhece que essa tarefa não cabe a ele, mas a um mais futuro, mais jovem,
mais forte que ele...

p. 10
Tal concepção aparece especialmente na crítica de Nietzsche à moral cristã,
sendo, então, a má consciência apontada como um produto do cristianismo,
que associou, por exemplo, àquela luta contra a sensualidade até mesmo o
perigo de uma danação eterna e produziu, durante sua história, inúmeros
“filhos de má consciência”

é que também ao utilizar o termo “má consciência” em sua crítica à moral


cristã, Nietzsche conserva o significado que ele possui para o próprio
cristianismo, entendendo-o como um conflito interior, um remorso derivado do
confronto entre as ações realizadas e certos pressupostos morais idealizados
por seu autor.10

p. 11

A apresentação da uma “hipótese própria” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 321 /


GM II 16), construída a partir das variações de formas de elementos
encontrados atrás da “má consciência”, ocorre na segunda dissertação da
Genealogia da moral. Ali, é possível acompanhar as buscas genealógicas do
filósofo pela origem daquele fenômeno tardio, a partir da pergunta: “mas como
vem à terra aquela outra ‘coisa sombria’, a consciência de culpa, a ‘má
consciência’?” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 297 / GM II 4).12

A busca genealógica de Nietzsche pela origem da “má consciência” e dos


elementos que a constituem tem início, em especial, a partir da seção 4,13 no
âmbito da transformação do homem em um animal regular e calculável. As
constatações às quais o filósofo chega a partir dessa investigação são duas: a
primeira, que nesse solo não cresceu aquela “planta mais sinistra e mais
interessante de nossa vegetação terrestre” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 320 /
GM II 14); e, a segunda, que ali apareceram alguns elementos indispensáveis
para o surgimento da “má consciência”. São eles as noções de “equivalência” e
“dívida”14 (NIETZSCHE, v. 5, p. 297 e 298 / GM II 4), oriundas das relações
básicas de comércio e que posteriormente serão reapropriadas e introduzidas
no “mundo de conceitos morais” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 300 / GM II 6).

Segundo Nietzsche, conquanto a violência aplicada sobre o homem tenha uma


participação decisiva nessa etapa do processo civilizatório, ela não produziu
qualquer “aflição interior” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 320 / GM II 14), da
mesma forma como não despertou no culpado o “sentimento de culpa”,
entendido como remorso.15 Ao contrário, naquele longo período o sentimento
de culpa foi, antes, detido pelo castigo, o qual, no geral, no máximo endurece o
homem, “torna-o mais esperto e alarga sua memória” (NIETZSCHE, 1988, v. 5,
p. 321 / GM II 15).
Após concluir que a “má consciência” não teve sua origem naquela violência
empregada para incutir no homem uma memória de suas dívidas, Nietzsche
faz, no parágrafo 16, uma nova busca genealógica, remontando àquele
momento do processo civilizatório em que o homem primitivo teve de
abandonar os antigos instintos para ingressar na sociedade de paz. Ali, o
filósofo se depara pela primeira vez com aquela forma de sofrimento que
caracteriza a “má consciência”, o “sofrimento do homem com o homem,
consigo mesmo” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 323 / GM II 16).

Trata-se da má consciência que se produz como uma fatalidade decorrente da


separação do homem de seu passado animal. Segundo Nietzsche, quando o
homem se viu “definitivamente encerrado na proscrição da sociedade e da
paz”, os antigos instintos ficaram “subitamente sem valor e suspensos”, porém,
eles “não cessavam de fazer suas exigências”, forçando o homem a buscar
“gratificações subterrâneas”.

A constatação de Nietzsche, nesse ponto, é lapidar: “todo instinto que não se


descarrega para fora, volta-se para o interior – isto é o que eu denomino a
interiorização do homem” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 322 / GM II 16). Quando
aquela crueldade do animal homem foi reprimida e todo aquele “querer-fazer-
mal” já não encontrava mais o “caminho natural” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p.
332 / GM II 22), tudo isso foi dirigido para o interior do homem, dando origem à
má consciência.

Um fenômeno que pode ser identificado, portanto, como uma doença, porém,
como uma doença na mesma medida em que a gravidez pode ser pensada
como uma doença, pois, se ela torna o homem “pleno de contradição”, torna-o,
também, “pleno de futuro” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 323 / GM II 16). Como
se com ela se justificasse a desnaturalização do homem, do mesmo modo
como a criança justifica todo o sofrimento e as dores do parto da mãe.

A descrição dessa forma primitiva de má consciência pelo filósofo, primeira que


encontramos no seu texto, coloca em relevo uma importante peculiaridade:
nesse momento a má consciência pode ser entendida como um fenômeno
psicológico ou mesmo patológico, mas não moral. Em sua origem mais
primitiva, ela não possui ainda todas as implicações que irá apresentar quando
for absorvida no âmbito da interpretação religiosa, conforme é descrito por
Nietzsche no desdobramento de sua hipótese.

Mais adiante, na argumentação de Nietzsche, nos parágrafos 17 e 18, vamos


encontrar ainda uma avaliação do caráter ativo daquela forma primitiva de má
consciência. Depois, a partir da seção 19, em um recorte antropológico, o
filósofo retoma o caminho que o conduz à “má consciência”, mostrando como
os elementos encontrados nas antigas formas do direito privado, em especial
as noções de dever e dívida, foram absorvidos pelo discurso religioso,
assumindo papel decisivo para a variação no conceito “má consciência”. Em
seguida, nos parágrafos 21 e 22, Nietzsche refere-se diretamente à
moralização dessas noções e também ao modo como o próprio sofrimento do
homem receberá um significado dentro de uma interpretação moral-religiosa.

A introdução de noções básicas do direito privado no “mundo dos conceitos


morais” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 300 / GM II 6) tem início nas antigas
sociedades tribais, quando uma geração reconhece uma dívida para com a
geração anterior, em especial para com a primeira geração, a fundadora da
estirpe. Forma-se, então, uma espécie de obrigação jurídica dos “homens
atuais” com seus “antepassados” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 327 / GM II 19)
que cresce juntamente com a comunidade, pois o sucesso obtido pela estirpe é
atribuído aos seus antecessores, que, na forma de espíritos, não cessam de
conceder vantagens à estirpe. Reconhecida a dívida, portanto, seguem-se as
tentativas de pagamento, por meio de sacrifícios oferecidos aos antepassados
e também da obediência aos costumes, entendidos como obras deles.

Segue-se também a desconfiança sobre as possibilidades de pagamento de


tais dívidas e, por conseguinte, o medo de tais credores,16 cujo poder
monstruoso é verificado pelo próprio crescimento da comunidade protegida por
eles, e admitido pelos membros da estirpe que terminam por transfigurar os
ancestrais em deuses.
Mesmo o declínio dos laços de sangue dos antigos agrupamentos humanos
não rompe aquela cadeia de obrigações. Ao contrário, o reconhecimento
daquelas dívidas e o anseio por resgatá-las são herdados pela humanidade em
um processo que é marcado: primeiro, pela separação entre a divindade tribal
e a tribo na qual ela teve sua origem; segundo, pela proliferação do culto
àquela divindade, “por aquelas vastas populações de escravos e servos da
gleba que [...] se adaptaram ao culto dos deuses dos seus senhores”; terceiro,
pelo “desenvolvimento em direção a impérios universais”, o que é também um
“desenvolvimento em direção a divindades universais” (NIETZSCHE, 1988, v.
5, p. 329 / GM II 20) e; quarto, pelo “advento do deus cristão que, como o Deus
máximo alcançado até agora, trouxe também, por isso mesmo, ao mundo o
máximo de manifestação de sentimento de culpa” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p.
330 / GM II 20).

Nas seções 21 e 22, Nietzsche apresenta o passo decisivo no


“desenvolvimento da consciência de culpa” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, GM II 19),
tratando, então, diretamente da moralização dos conceitos de “culpa” e “dever”,
o que equivale ao “afundamento na consciência” dessas noções (NIETZSCHE,
1988, v. 5, p. 330 / GM II 21). Tendo em vista a absorção daquelas noções pelo
discurso religioso, o filósofo afirma que internalização do sentimento de culpa
ocorre quando aquele antigo “devedor”,17 é transformado em pecador, quando
sua dívida não é mais para com outros homens ou para com os ancestrais,
mas para com Deus. Uma dívida que ele reconhece, assim como reconhece a
impossibilidade de resgatá-la, e espera, por conseguinte, a danação eterna
como seu destino. Nesse ponto, tem-se a culminância da “má consciência” em
uma “espécie de loucura da vontade” e no desregramento daquela violência
dirigida contra si mesmo, que se configura, então, em uma “vontade do homem
de se achar culpado e desprezível até a impossibilidade de expiação, de
acreditar ser castigado, sem que o castigo pudesse jamais equivaler à culpa”
(NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 332 / GM II 22).

Se o sofrimento do homem com o homem é algo tão antigo quanto a sua


introdução nos limites básicos de uma sociedade, a interpretação moral desse
sofrimento é algo recente, tardio, e configura uma variação no significado
daquele fenômeno. Contudo, a variação em questão não é apenas teórica, a
interpretação religiosa não apenas confere uma explicação para o sofrimento
interior do homem, que passa a ser entendido como uma decorrência do
pecado, ela opera uma interiorização dessas noções até que elas passam a
produzir aquele tipo de sofrimento. Trata-se, portanto, de um aprofundamento
na consciência das noções de culpa e do sentimento de culpa. A partir de
então, as exigências dos velhos instintos, por exemplo, passam a ser não
apenas avaliadas como pecado, mas sentidas como tal e tornadas objeto de
vergonha para o homem (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 302 / GM II 7).

Trata-se, assim, de “infectar e envenenar todo o fundo das coisas com o


problema do castigo e da culpa” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 332 / GM II 22),
em uma forma de doença que não lembra mais a gravidez, mas a loucura.

“ressentimento” no delineamento do homem do ressentimento e na


caracterização da moral do ressentimento.

“má consciência” Nietzsche se coloca como expectador, identificando a origem


daquela espécie de sofrimento interior e acompanhando a transformação
conceitual operada na sua apropriação pela interpretação moral-religiosa e sua
introdução no mundo dos conceitos morais.

Tendo em vista os dois conceitos enquanto designação de um fenômeno


psicológico, o fenômeno da “interiorização do homem”, tem-se ao certo um
ponto de convergência entre ambos que não pode ser ignorado. O
ressentimento configura-se em um movimento “para trás”, para o interior do
homem, do material que deveria ter sido lançado para fora no momento de uma
adversidade e que se acumula nele na forma de rancor e de sede de vingança.
Por sua vez, a má consciência tem sua origem em um movimento semelhante,
quando os instintos de liberdade do homem já não podem seguir seu caminho
natural para fora e se voltam para o interior do homem. Ambos os termos
traduzem, portanto, de alguma forma, modos de interiorização, modos de
sofrimento interior e modos de violência do homem sobre si mesmo.
Nesse sentido, tanto a má consciência quanto o ressentimento são tomados
pela interpretação religiosa e recebem um significado18 associado à noção de
culpa e de pecado. Dessa forma, a interpretação religiosa muda a sua direção,
tornando o sofredor um pecador.19 Contudo, mesmo nesse caso, algumas
peculiaridades devem ser observadas. A primeira delas diz respeito ao material
interiorizado; e a segunda ao efeito que tal interiorização produz no interior do
homem. No ressentimento, o que é lançado para o interior do homem é o ódio,
o rancor e a sede de vingança originados da obstrução para a efetiva reação
daquele homem fraco, que não consegue enfrentar as adversidades da vida, e
o efeito produzido por esse material é uma espécie de dispepsia à obstrução e
à desordem desse mundo interior. Por sua vez, o que é lançado para o interior
do homem no caso da má consciência, em especial na sua forma primitiva, são
as forças instintivas, as quais, ativas, atuam como uma força plástica e
modeladora: “apenas que a matéria na qual se extravasa a natureza
conformadora e violentadora dessa força é aqui o homem mesmo”
(NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 326 / GM II 18). Embora em um âmbito menor,
portanto, a força dirigida para trás, no caso da má consciência, é “no fundo, a
mesma força ativa que naqueles violentos artistas e organizadores age de
forma grandiosa em suas obras e constrói o Estado” (NIETZSCHE, 1988, v. 5,
p. 325 / GM II 18). O efeito dessa interiorização, conforme aponta o filósofo, é
um alargamento do mundo interior do homem que, “originalmente estreito como
que apertado entre duas peles, foi se separando e crescendo e foi adquirindo
profundidade, largura e altura” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 322 / GM II 16).
Ou seja, em linhas gerais os dois fenômenos podem ser associados, como faz
o próprio filósofo quando, em outro contexto, não recorre a tais peculiaridades
em sua construção argumentativa, por exemplo, ao referir-se ao padecimento
interior do homem na seção 15 da terceira dissertação da Genealogia da moral.
Contudo, elas apresentam dessemelhanças sutis, que são exploradas pelo
filósofo, em especial, nos textos e contexto que estamos analisando. Neles, o
ressentimento caracteriza o fraco, sua obstrução para a ação e o esforço de
domínio do fraco, ao passo que a má consciência, em especial em sua
configuração primitiva, está associada a forças ativas, as quais, mesmo
inibidas, seguem atuando como forças modeladoras, que produzem nele, por
exemplo, aquilo que ele irá chamar, posteriormente, de “sua ‘alma’”
(NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 322 / GM II 16).

A diferença entre ambos é acentuada, porém, quando se considera o papel


conferido ao termo “ressentimento”, não apenas no âmbito de uma descrição
fisiopsicológica, mas como a caracterização de um fenômeno social. Nesse
sentido, enquanto o uso do termo “má consciência” se mantém nos limites do
indivíduo, como um fenômeno que se passa no interior do homem, o
ressentimento é útil também para designar uma vontade de poder operante que
impõe interpretações e formas. Como faz, por exemplo, como uma “grande
política da vingança” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 269 / GM I 8) que impõe
significados aos valores morais, aos ideais religiosos, às concepções de justiça
e ao discurso com pretensa nuance de equidade dos cientistas, os quais
expressam o ódio e a sede de vingança e nascem “do espírito do
ressentimento” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 310 / GM II 11).

Nesse sentido, seria o caso de se avaliar a hipótese se a própria “má


consciência”, quando é apropriada pela interpretação cristã e entrelaçada com
a noção de Deus, ganhando um sentido dentro do discurso religioso, não seria
um produto do ressentimento, um produto do homem do ressentimento, que,
segundo Nietzsche, “carrega na consciência a invenção da ‘má consciência’”
(NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 311 / GM II 11). Da mesma forma como, enquanto
uma “‘má consciência’ ativa”, ela é o produto do “instinto de liberdade”, de uma
força plástica e modeladora que, na linguagem de Nietzsche, se chama
“vontade de poder” (NIETZSCHE, 1988, v. 5, p. 326 / GM II 18).

Sob esse aspecto, ainda, admitindo tal hipótese, em que a fluidez de sentidos
da má consciência depende de sua inserção em um sistema de finalidades, é
possível retomar a ideia de que a má consciência corresponderia tanto a um
adoecimento quanto à abertura de novas possibilidades de futuro para o
homem. Isso porque, de fato, a tensão que ela produz pode conduzir a uma
elevação do tipo homem, conquanto que essa tensão mesma seja
reinterpretada e se faça dela uma “‘má consciência’ ativa” (NIETZSCHE, 1988,
v. 5, p. 326 / GM II 18). Do ressentimento, ao contrário, mesmo se for
considerado seu caráter polissêmico, dificilmente poderia falar de um
“ressentimento ativo”, pois ele corresponde à descrição da fraqueza e do seu
modo de operar.

Motivo pelo qual, mesmo quando associado a uma doença, como se tem em
Ecce homo (NIETZSCHE, 1988, v. 6, p. 272-273 / EH, Por que sou tão sábio,
6), a conclusão mais plausível é que o ressentimento é algo a ser evitado,
como faz Nietzsche, que afirma em relação aos sentimentos de vingança
característicos do ressentimento: “nos períodos de décadence eu os proibi a
mim por prejudiciais; tão logo a vida voltou a ser rica e orgulhosa o bastante
para isso, eu os proibi como abaixo de mim”. (NIETZSCHE, 1988, v. 6, p. 273 /
EH, Por que sou tão sábio, 6). E isso se impõe como uma exigência de higiene,
para se ter uma boa ordem psíquica e liberar a consciência para atividades
mais nobres.

A origem da má consciência

As consequências da ma consciência

A moralização da ma consciência

O sentimento de culpa e o pecado

A ma consciência e a negação da vida

A ma consciência e o ideal ascético

A ma consciência e o ressentimento

A ma consciência e os valores morais

A ma consciência e a moral crista


SACERDOTE CRISTÃO, INTERIORIZAÇÃO E DÍVIDA
Apesar do domínio das forças reativas, as forças ativas no
homem enfermo não são eliminadas. Através da organização
moral da vida humana, as forças ativas são constantemente
impedidas de vazarem para o exterior e, por isso, tomam uma
outra direção, voltando-se para dentro do homem: “Todos os
instintos que não se descarregam para fora voltam-se para
dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem... A
hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na
mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os
possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência” 48.

Nietzsche diz que esse movimento crescente de interiorização


das forças ativas somente tornou-se possível a partir do
surgimento do Estado. Portanto, a má consciência não existia
nos fundadores do Estado, mas surgiu como conseqüência do
que eles fundaram: “Neles [os fundadores do Estado] não
nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles
ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso
dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas,
um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do
mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que
latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já
compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado,
encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em
si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má
consciência” 49.

As forças ativas, enquanto estão bloqueadas no seu


movimento para o exterior, multiplicam as dores internas no
homem reativo. Domesticado pelo Estado, o homem tornou-se,
gradualmente, um animal cruel consigo mesmo. Nietzsche nos dá
uma imagem contundente desse homem que está ferido pela sua
domesticação: “esse animal que querem amansar, que se fere nas
barras da própria jaula” 50.

Percebemos que esse primeiro aspecto


da má consciência, o da interiorização das forças ativas, é
inseparável do ressentimento. Ruminando, cada vez mais, as
impressões recebidas, as forças reativas passam a ser dominantes.
Ora, o homem do ressentimento é aquele que é incapaz de
afirmar as suas forças ativas e por isso o seu sofrimento parece ser
interminável: ele sofre pelas coisas que não deveriam ser do jeito
que aconteceram, e também sofre por estar impedido de agir, de
fazer vazar as suas forças ativas, de viver conforme àquilo que o
levaria à expansão da sua vontade de potência. O sofrimento do
homem reativo é, então, duplo: ruminação das marcas e
interiorização das forças ativas.
Mas a aliança entre o ressentimento e a má consciência vai
além disso. No ressentimento, no seu segundo aspecto, o
indivíduo considerado culpado é identificado e punido. A esperança do sofredor
é que, após a consumação da vingança, as
suas dores, finalmente, desaparecerão, já que, segundo
Nietzsche, “todo sofredor busca instintivamente uma causa para
seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais
especificamente, um agente culpado suscetível de sofrimento –
em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto
descarregar os seus afetos... pois a descarga de afeto é para o
sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu
involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de
qualquer espécie” 51.

Apesar da punição imposta ao suposto


causador do seu tormento, o homem reativo continua,
inevitavelmente, sofrendo. Por mais que os culpados sejam
punidos, permanecer vivo, para ele, ainda continua a ser um
grande fardo. Com sua vontade de potência entravada, com suas
forças ativas interiorizadas, ele sente que a dívida para com o
poder cresce ainda mais. Algo de errado continua a acontecer
com a vida dessa ovelha – e ela precisa cada vez mais de ajuda.

Diante disso, o sacerdote ascético cristão vai interpretar a dor


interna, ou seja, a má consciência, como uma dívida para com
Deus. Surge a assombrosa noção de pecado como fruto da
transgressão às leis divinas, que serve como explicação sacerdotal
para o sofrimento do indivíduo ressentido. A culpa que, através
da interpretação do sacerdote judaico, era do homem ativo
(“sofro, portanto alguém deve ser culpado”), passa a ter como
objeto, através da interpretação do sacerdote cristão, o próprio
homem reativo (“sofro porque eu mesmo sou o culpado”).

Antes que o ódio do ressentimento se dirija até mesmo contra o


poder sacerdotal, o sacerdote cristão inverte a direção da
acusação: “De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse
estranho pastor – ele o defende também de si
mesmo... ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia
e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no
qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é
continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo
que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar
habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve
fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer
simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do
ressentimento” 52.

Ao inventar um novo sentido para a dor através da noção


de pecado, o sacerdote cristão estabelece para o enfermo uma
dívida impagável para com Deus, o que caracteriza o segundo
aspecto da má consciência. A estranha noção de que há vantagens
no sofrimento, pois somente os que sofrem é que serão salvos,
tornou os enfermos cada vez mais submetidos ao poder
sacerdotal. “Uma dívida para com Deus”, diz Nietzsche sobre o
homem doente, “este pensamento tornou-se para ele um
instrumento de suplício. Ele apreende em ‘Deus’ as últimas
antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis
instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em
relação a Deus” 53.

Por meio de Paulo de Tarso (54)54, o


cristianismo deu continuidade à moral dos fracos estabelecida pelo
sacerdote judaico ao universalizar-se, ou seja, o cristianismo não se opõe, de
fato, ao judaísmo. A interpretação da dor como
efeito de um pecado e como meio para alcançar a salvação da
alma, foi suficientemente contagiosa para a expansão da moral
judaico-cristã: “Paulo, o ódio chandala a Roma, ao ‘mundo’,
feito carne, feito gênio, o judeu, o judeu eterno par excellence...
O que ele intuiu foi como se podia, com ajuda do pequeno
movimento sectário cristão à margem do judaísmo, atear ‘fogo’
no mundo... ele compreendeu que necessitava da fé na
imortalidade para tirar o ‘valor’ do mundo, que o conceito de
‘inferno’ ainda se tornaria senhor de Roma – que com o ‘além’
se mata a vida...” 55.

Para a manutenção do seu poder sobre os que sofrem, o


sacerdote cristão precisa ferir (através da noção de pecado) para
depois ser “médico” 56. E qual é a “cura” que ele oferece? A
expiação da dor, não através do ódio, mas através da
compaixão... Somente serão salvos os humildes, sofredores, os
que praticam o “bem”... Ele serve-se disso para fundar o seu
reino: a fórmula “Jesus morreu pelos nossos pecados!” foi
convincente o suficiente para transformar o ódio judaico no
amor cristão: “Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que
fazem!”. Mas é evidente que essa transformação é apenas
imaginária, porque o cristianismo continua carregado de ódio
contra a vida. E foi por meio desse “amor” que o cristianismo,
segundo Nietzsche, deu o seu golpe de gênio: “...o próprio
Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus
pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o
homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se
sacrificando por seu devedor, por amor
(é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” 57.

O sacerdote diz: “Livrai-vos das tentações da carne!”.


Quando isso não acontece (o que é inevitável – e isso as igrejas
sabem muito bem), o doente vê a sua dívida aumentar, pois, afinal
de contas, a imagem do risco de viver a dor que ele sente nesta
vida se prolongar numa outra vida, eternamente no inferno, causalhe
certamente um grande tormento. A opção que lhe resta é
correr em direção ao sacerdote para confessar os seus pecados na
esperança de redimir-se... Eis a grande estratégia da manutenção
do poder sacerdotal (ou de qualquer outro poder): rolar a dívida,
tornando-a impagável para manter o devedor sempre sob o seu
jugo – e o uso da sexualidade, por exemplo, está a serviço desse
nefasto sistema de reprodução da má consciência (o adultério, a
homossexualidade e outras proibições que precisaram ser
inventadas pela igreja para que o devedor sinta-se cada vez mais...
devedor!). Portanto, sem a invenção da dívida impagável, não há
poder. Afinal, não existe manutenção do poder sem o
arrependimento dos seus servos. Assim, o penitente abaixa a
cabeça diante do sacerdote para pedir-lhe clemência... O que é o
crucifixo, senão um símbolo do pecado que está espalhado por
todos os lados para que o devedor nunca se esqueça da sua
dívida?... O que é a dívida para com a família, para com o
empregador, para com as leis, para com a sociedade, para com o
Estado? São armadilhas do poder que mantêm as forças ativas do
homem aprisionadas.

Podemos, agora, distinguir melhor os elementos que


constituem o insano investimento no poder: ressentimento
(marcas fixadas na consciência, bloqueio das novas experimentações),
vontade de negação (a realidade, como
mudança contínua, é dura demais para ser afirmada), triunfo das
forças reativas (conservação dos modos de vida estabelecidos),
má consciência (interiorização das forças ativas), o sacerdote
ascético (o médico das almas doentes e guia indispensável para
os infelizes), ressentimento e má consciência como aspectos
formais (a culpa é do outro, a culpa é minha) e o ideal ascético
(a salvação da alma, a esperança de alcançar uma vida feliz). Não
foi por acaso que Nietzsche disse que o homem é, “considerado
relativamente, o animal mais malogrado, o mais doentio, que
mais perigosamente se desviou de seus instintos – e com tudo
isso, é verdade, também o mais interessante!” 58.

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