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Uma reflexão sobre o destino da democracia, aqui e hoje, em Atenas é de algum modo
perturbante, porque obriga a pensar o fim da democracia precisamente no lugar onde nasceu.
Na verdade, a hipótese que gostaria de sugerir é a de que o paradigma governamental
dominante na Europa de hoje não só não é democrático como não pode sequer ser
considerado político. Irei portanto demonstrar que a sociedade europeia já não é uma
sociedade política: é algo totalmente novo para o qual nos falta ainda uma terminologia
apropriada e para o qual teremos, portanto, de inventar uma nova estratégia.
Gostaria de começar com um conceito que, desde setembro de 2001, parece ter substituído
qualquer outra noção política: segurança. Como sabem, a fórmula “por razões de segurança”
opera hoje em todos os domínios, da vida quotidiana aos conflitos internacionais, enquanto
palavra‐chave de imposição de medidas que as pessoas não teriam motivos para aceitar. Irei
tentar demonstrar que o real propósito das medidas de segurança não é, como é assumido, o
de prevenir perigos, problemas ou sequer catástrofes. Serei então obrigado a traçar uma
genealogia curta do conceito de “segurança”.
201846 “Por uma Teoria do Poder Destituinte” de Giorgio Agamben | cinco dias
Uma das possibilidades de traçar essa genealogia seria inscrever a sua origem e história no
paradigma do estado de excepção. Nesta perspectiva, poderíamos relacioná‐las com o princípio
romano de Salus Publica Suprema Lex, “a segurança pública é a mais alta lei”, e relacioná‐la com
a ditadura romana, com o princípio canónico de que a necessidade não reconhece qualquer lei,
com os comites de salut publique da revolução francesa e finalmente com o Artigo 48 da
República de Weimar, a base jurídica do regime Nazi. Tal genealogia seria correcta, mas não
creio que possa realmente explicar o funcionamento dos dispositivos e das medidas de
segurança que nos são familiares. Embora o estado de excepção tenha sido originalmente
concebido enquanto medida provisória, destinada a lidar com um perigo imediato no sentido
de restaurar uma situação normal, as razões de segurança são hoje a tecnologia permanente de
governo. Quando em 2003 publiquei um livro onde procurei demonstrar, justamente, como é
que o estado de excepção se estava a tornar, nas democracias ocidentais, no sistema de
governo normal, não podia imaginar que o meu diagnóstico se revelaria tão preciso. O único
precedente óbvio foi o regime Nazi. Quando Hitler tomou o poder em fevereiro de 1933
proclamou de imediato um decreto suspendendo os artigos da constituição de Weimar relativos
às liberdades pessoais. O decreto nunca foi revogado e todo o Terceiro Reich pode ser
considerado como um estado de excepção que durou 12 anos.
O que acontece hoje é, no entanto, outra coisa. Não foi declarado qualquer estado de
emergência formal e, contudo, vagas noções não jurídicas – razões securitárias – são evocadas
para instaurar um constante estado de emergência arrepiante e ficcional, sem que qualquer
ameaça seja identificável. Um exemplo dessas noções não jurídicas que são utilizadas enquanto
factores instigadores de emergência é o conceito de crise. Para lá do significado jurídico de
julgamento em tribunal, convergem na história deste termo duas tradições semânticas que,
como vos será evidente, advêm do verbo grego crino: um verbo da medicina e da teologia. Na
tradição médica, crisis significa o momento em que o médico tem de julgar e de decidir se o
paciente irá morrer ou sobreviver. O dia ou os dias em que estas decisões são tomadas são
chamados crisimoi, os dias decisivos. Na teologia, a crisis é o último julgamento proclamado por
Cristo no fim dos tempos. Como podem ver, o que é essencial em ambas as tradições é a
ligação a um momento especifico no tempo. Na utilização presente do termo, é abolida esta
ligação. A crise e o julgamento são separados do seu correspondente temporal e coincidem
agora com o decurso cronológico do tempo, de modo que, não apenas na economia e na
política, mas em todos os aspectos da vida social, a crise coincide com a normalidade e torna‐
se, deste modo, apenas uma ferramenta de governo. Consequentemente, a capacidade de
decidir desaparece de vez e processo contínuo de tomada de decisões não decide
absolutamente nada. Para o formular em termos paradoxais, podemos dizer que, encarando um
estado de excepção contínuo, o governo tende a tomar a forma de um perpétuo golpe de
estado. Este paradoxo seria uma descrição precisa do que sucede tanto aqui na Grécia como em
Itália, onde governar significa fazer uma série continua de pequenos golpes de estado. O
presente governo italiano não é legitimo.
É por isso que creio que, para compreender a peculiar governamentalidade sob a qual vivemos,
o paradigma do estado de excepção não é desadequado. Irei portanto seguir a sugestão de
Michel Foucault e investigar a origem do conceito de segurança no início da economia
moderna, por François Quesnais e os Fisiocratas, cuja influência na governamentalidade
moderna não pode ser sobrestimada. Começando com o tratado de Vestfália, os grandes
estados europeus absolutistas começam a introduzir no seu discurso político a ideia de que o
soberano deve cuidar da segurança dos seus sujeitos. Mas Quesay é o primeiro a estabelecer a
segurança enquanto a noção central na teoria do governo e isto de um modo bastante
peculiar.
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Um dos principais problemas com que os governos tinham de lidar na altura era o da fome.
Antes de Quesnay, a metodologia habitual era a de prevenir a fome através da criação de
celeiros públicos e da proibição da exportação de cereais. Ambas as medidas tinham efeitos
negativos na produção. A idea de Quesnay foi a de inverter o processo: em vez de tentar
prevenir as fomes, decidiu deixá‐las acontecer e dotar‐se da capacidade de as governar quando
sucedessem, liberalizando tanto as trocas internas como externas. “Governar” retém aqui o seu
significado etimológico cibernético: um bom kybernes, um bom piloto, não evita as
tempestades; mas, se uma ocorre, tem de ser capaz de governar o seu barco, utilizando a força
das ondas e dos ventos para a navegação. É este o significado do lema “laissez faire, laissez
passer“: não é apenas a deixa do liberalismo económico: é um paradigma de governo, que
concebe a segurança ﴾sureté, nas palavras de Quesnau﴿ não enquanto a prevenção de perigos,
mas pelo contrário enquanto a habilidade de os governar e conduzir a bom porto, uma vez que
tenham lugar.
Umas das esferas importantes onde o axioma é operativo é a dos dispositivos de segurança
biométrica, que permeia cada vez mais todos os aspectos da vida social. Quando as tecnologias
biométricas apareceram no Séc. XVIII com Alphonse Bertillon em França e com Francis Galton na
Inglaterra, o inventor das impressões digitais, não foram pensadas para prevenir crimes, mas
apenas para reconhecer delinquentes reincidentes. Apenas quando ocorria um segundo crime
se podia utilizar os dados biométricos para identificar o ofensor.
Mas o passo mais extremo só foi dado nos nossos dias e está ainda no processo de total
implementação. Com o desenvolvimento de novas tecnologias digitais, com scanners ópticos
que podem facilmente gravar não apenas impressões digitais mas também a retina ou a
estrutura da íris ocular, os dispositivos biométricos tendem a ultrapassar as esquadras e os
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É fácil imaginar os perigos representados por um poder que possa ter à sua disposição, de
forma ilimitada, a informação biométrica e genética de todos os seus cidadãos. Com um poder
semelhante, a exterminação dos judeus, realizada com base em documentação bem menos
eficiente, poderia ter sido total e incrivelmente rápida. Mas não vou alongar‐me neste aspecto
importante do problema da segurança. As reflexões que gostaria de partilhar convosco
abordam, pelo contrário, as transformações da identidade política e das relações políticas que
estão envolvidas nas tecnologias securitárias. Esta transformação é tão extrema que podemos
legitimamente perguntar não só se a sociedade onde vivemos é ainda uma sociedade
democrática, mas também se esta sociedade pode ser considerada política.
A hipótese que vos gostaria de propor é a de que este factor político fundamental entrou num
processo irrevogável que podemos apenas definir enquanto um processo de despolitização
crescente. O que era no início um modo de vida, uma condição activa essencial e irredutível,
tornou‐se agora um estatuto jurídico exclusivamente passivo, no qual a acção e a inacção, o
privado e o público, são progressivamente obscurecidos e se tornam indistinguíveis. Este
processo de despolitização da cidadania é tão evidente que não me vou demorar nele.
Irei antes tentar demonstrar como o paradigma da segurança e dos dispositivos de segurança
jogaram um papel decisivo neste processo. A crescente extensão aos cidadãos das tecnologias
concebidas para criminosos tem consequências inevitáveis na identidade política do cidadão.
Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não é uma função da personalidade
social e do seu reconhecimento pelos outros, mas antes uma função da informação biológica,
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com a qual não tem qualquer relação, como os arabescos das impressões digitais e a disposição
dos genes na dupla hélice do DNA. O elemento mais neutro e privado torna‐se no factor
decisivo da identidade social, que irá portanto perder todo o seu carácter público.
Se a minha identidade é então determinada por factos biológicos, que não dependem da minha
vontade e sobre os quais não tenho controlo, então a construção de algo como uma identidade
política e ética torna‐se problemático. Que relação posso estabelecer com as minhas impressões
digitais ou com o meu código genético? A nova identidade é uma identidade sem a pessoa, por
assim dizer, na qual o espaço da política e da ética perde o seu sentido e tem de ser pensado a
partir do zero. Enquanto o cidadão grego era definido por uma oposição entre o público e o
privado, entre a oikos, que era o lugar da vida reprodutiva, e a polis, o local da acção política, o
cidadão moderno parece antes mover‐se numa zona de indiferença entre o privado e o público,
ou, para citar termos Hobbesianos, entre o corpo físico e o político.
A materialização espacial desta zona de indiferença é a videovigilância das ruas e das praças das
nossas cidades. De novo, um dispositivo que foi concebido para utilização nas prisões é
aplicado aos locais públicos. É evidente que um local gravado em vídeo deixa de ser uma ágora
e torna‐se num híbrido público e privado, uma zona de indiferença entre a prisão e o fórum.
Esta transformação do espaço político é certamente um fenómeno complexo que implica uma
multiplicidade de causas, entre as quais, num especial lugar, o nascimento do biopoder. A
primazia de uma identidade biológica sobre uma identidade política está directamente
relacionada com a politização da vida nua nos estados modernos. Mas não devemos nunca
esquecer que o nivelamento da identidade social na identidade corporal começou com as
tentativas de identificação de criminosos reincidentes. Não deveríamos surpreender‐nos se hoje
a relação normal entre o estado e os seus cidadãos é composta pela suspeita, pelo
arquivamento policial e pelo controle. O princípio secreto que comanda a nossa sociedade pode
ser assim formulado: todo o cidadão é um potencial terrorista. Mas que tipo de estado é este
que se rege por um principio desses? Podemos ainda designá‐lo de estado democrático?
Podemos ainda considerá‐lo político? Em que tipo de estado vivemos hoje?
Como provavelmente sabem, Michel Foucault, no seu livro Vigiar e Punir e nos seus cursos no
Collége de France, esboçou uma classificação tipológica dos estados modernos. Foucault mostra
como o Estado do Ancien Regime, que ele designa de estado territorial ou soberano e cujo lema
era fazer morrer e deixar viver, se desenvolveu progressivamente num estado populacional e
num estado disciplinar, cujo lema é agora o inverso ao fazer viver e deixar morrer, na medida
em que se ocupa da vida do cidadão no sentido de produzir corpos saudáveis, ordenados e
dóceis.
O Estado no qual vivemos agora já não é um estado disciplinar. Gilles Deleuze sugeriu chamar‐
lhe um “estado de controlo”, porque o que este deseja não é ordenar e impor disciplina, mas
antes gerir e controlar. A definição de Deleuze é correcta, porque a gestão e o controle não
coincidem necessariamente com ordem e disciplina. Ninguém o disse tão claramente como o
agente policial italiano que, após os motins de Génova em julho de 2001, declarou que o
governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas que gerisse a desordem.
debates que precederam a votação destas leis, poderão verificar que polícia e segurança se
definem uma à outra, mas que nenhum dos oradores ﴾Brissot, Heraut de Séchelle, Gensonné﴿ é
capaz de definir polícia ou segurança enquanto conceito isolado.
O nome deste elemento indecidível já não é hoje, como era no séc. XVII, a razão de estado: mas
antes “razões securitárias”. Um estado securitário é um estado policial: mas, repito, na teoria
jurídica a policia é uma espécie de buraco negro. Tudo o que podemos dizer é que quando a
chamada “Ciência da Polícia” surge no Séc. XVIII, a “polícia” é entregue à sua etimologia do
grego “politeia” e oposta enquanto tal à “política”. Mas é surpreendente ver que a polícia
coincide agora com a sua verdadeira função política, enquanto o termo política é reservado à
política externa. Von Justi, no seu tratado sobre Policey Wissenschaft, chama então politique à
relação de um estado com outros estados, enquanto chama polizei à relação de um estado
consigo próprio. Vale a pena reflectir nesta definição: ﴾cito﴿ “A polícia é a relação de um estado
consigo próprio”.
A hipótese que gostaria de aqui sugerir é que, submetendo‐se ao signo da segurança, o estado
moderno abandonou o domínio da política e entrou numa terra de ninguém, cuja geografia e
fronteiras são ainda desconhecidas. O Estado Securitário, cujo nome parece referir uma ausência
de cuidados ﴾securus de sine cura﴿ deverá, pelo contrário, preocupar‐nos sobre os perigos que
representa para a democracia, porque nele se tornou impossível a vida política, e democracia
significa precisamente a possibilidade de uma vida política.
Mas gostaria de concluir – ou simplesmente de parar a minha palestra ﴾na filosofia, como na
arte, não há conclusão possível, há apenas a possibilidade de abandonar o trabalho﴿ com algo
que, tanto quanto posso verificar, é talvez o mais urgente dos problemas políticos. Se o Estado
que temos perante nós é o estado securitário que descrevi, temos de repensar novamente as
estratégias tradicionais dos conflitos políticos. O que devemos fazer, que estratégia devemos
seguir?
O paradigma securitário implica que cada dissenso, cada tentativa mais ou menos violenta de
derrubar a sua ordem, cria uma oportunidade de o governar numa direção rentável. Isto é
evidente na dialéctica que vincula o terrorismo e o estado numa espiral viciosa sem fim. A partir
da revolução francesa a tradição política da modernidade concebeu mudanças radicais sobre a
forma de um processo revolucionário que age enquanto pouvoir constituante, o “poder
constituinte” de uma nova ordem institucional. Creio que temos de abandonar este paradigma e
procurar pensar algo como uma puissance destituante, uma “potência destituinte”, que não
possa ser capturada na espiral de segurança.
201846 “Por uma Teoria do Poder Destituinte” de Giorgio Agamben | cinco dias
É um poder destituinte deste género que Benjamin pensa no seu ensaio On the Critique of
Violence quanto tenta definir uma violência pura que consiga “romper com a dialéctica falsa da
violência que faz as leis, e da violência que as mantém”, um exemplo do qual seria a greve geral
proletária de Sorel. “Na ruptura deste ciclo”, escreve no final do ensaio, “sustentado pelas
formas míticas da lei, na destituição da lei e de todas as forças nas quais depende, e finamente
na abolição do poder do estado, é fundada uma nova época histórica”. Enquanto um poder
constituinte destrói a lei apenas para a recrear sob uma nova forma, o poder destituinte, na
medida em que depõe de uma vez por todas a lei, pode realmente abrir uma nova época
histórica.
Pensar esse poder puramente destituinte não é uma tarefa fácil. Benjamin escreveu que nada é
tão anárquico quanto a ordem burguesa. No mesmo sentido, no seu último filme, Pasolini faz
um dos seus quatro mestre de Saló dizer aos seus escravos: “a verdadeira anarquia é a anarquia
do poder”. É precisamente porque o poder se constitui através da inclusão e da captura da
anarquia e da anomia que é tão difícil ter um acesso imediato a estas dimensões e que é tão
difícil pensar hoje em algo como uma anarquia verdadeira ou uma anomia verdadeira. Creio
que uma praxis que tivesse sucesso em expor claramente a anarquia e a anomia capturadas nas
tecnologias securitárias do governo poderia agir enquanto um poder puramente destituinte.
Mas esta não é apenas uma tarefa teórica: significa antes de mais a redescoberta de uma forma‐
de‐vida e o acesso a uma nova figura dessa vida política cuja memória o Estado Securitário
tenta a todo o custo apagar.