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Alexandra Kollontai

MARXISMO E
REVOLUÇÃO
SEXUAL
TEORIA o bases
TEORIA o>
TEORIA
TEORIA

Global e d i t o r a
Título Original:
Marxisme et Révolution Sexuelle
edição François Maspero, 1977

1a. edição
Copyright © 1982

Tradução, seleção e prefácio:


Ana Corbisier

Capa:
Carlos Clémen

Revisão:
Célio Franco de Godoy Jr.
Silvana I. Afram

Composição:
Marcos J. A. Duarte

Montagem:
Paulo Nonato

Fotolitos:
Rubens Seballòs (capa)
RM Fotolito

Direitos reservados por


ç lo b a t e d i t o r a e d i s t r i b u i d o r a í t d a
Rua França Pinto, 836 - CEP 04016
Fones: 549-3137 - 549-9640 - 544-2917
Caixa Postal 45329 - 01000 - V. Mariana
SÃO PAULO - S.P.

Impressão:
Editora Parma Ltda.
ÍNDICE

PREFÁCIO

I— A CRISE DA FAMÍLIA ................................ 11


— O fim do casamento monogâmico .................. 13
— Os problemas da prostituição .......................... 30
— A união livre ..................................................... 36

II — MULHERES CELIBATÁRIAS .......................... 53

III — PRIM EIRAS EXPERIÊNCIAS .................... .. 83


— A sociedade de a m a n h ã .......... ....... ............. . 85
— Revolução na vida cotidiana............................ 87
— A revolução nos costum es..................... .. 101
Prefácio

Alexandra Kollontai viveu na Rússia pré-revolucionária do fim


do século passado. De origem burguesa, aderiu às idéias de
mudança, participando ativamente da preparação da revolução e do
período que se seguiu a 1917. Suas idéias sobre a libertação da
mulher eram muito avançadas para a época, sobretudo num país em
que a grande maioria do povo era formado por camponeses com
idéias muito conservadoras sobre família, relação entre os sexos,
trabalho da mulher, etc. Durante os primeiros anos da revolução,
Alexandra Kollontai foi comissária do povo no setor de atendimento
à maternidade e à infância. Nesse cargo, pôde ver transformados em
leis alguns princípios que entendia constituir os fundamentos para as
relações entre o homem e a mulher na sociedade comunista do
futuro: o aborto foi liberado, o casamento religioso abolido, a união
não legalizada reconhecida da mesma maneira que o casamento civil,
a mulher deixou de ser obrigada a adotar o nome do marido, salvo no
caso em que assim o desejasse, podendo então haver uma troca de
sobrenomes entre os cônjuges, o divórcio era livre. Marxista,
Alexandra Kollontai sabia que só outra organização econômica
permitiría que tais medidas fossem realmente postas em prática. Daí
ter estimulado a instalação de restaurantes comunitários, edifícios
comuns, com lavanderias coletivas e outros serviços, creches e outras
instituições para cuidar do bebê e da criançaC'). No entanto, a Rússia
de 1917,.sofrendo as conseqüências de séculos de feudalismo, da
penúria da guerra civil e da la. Guerra Mundial, e do bloqueio dos
países capitalistas, não conseguiu resolver estes problemas.em sua
totalidade. Com o passar dos anos, isso foi se refletindo nas leis.
Estabeleceram-se restriçõesi ao aborto e ao divórcio; as uniões não(*)

(*) Buscando liberar a mulher para o trabalho profissional e a vida independente


do homem.

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registradas deixaram de ser reconhecidas pelo Estado, a mulher
voltou a adotar o nome do homem.
Quase um século depois, a maioria de suas idéias ainda é um
sonho para nós, brasileiras. Em nosso país, o aborto é proibido, o
divórcio é*recente e foi regulamentado com inúmeras restrições, a
mulher é obrigada a adotar o nome do marido, o código civil
consagra, na sociedade conjugal, a superioridade do homem sobre a
mulher, não existem condições que aliviem a mulher dos encargos
domésticos e da educação dos filhos: faltam creches, jardins-da-
-infância, escolas; lavanderias coletivas, restaurantes públicos nos
locais de moradia, nas escolas e nos locais de trabalho; os edifícios
com serviços comunitários existem apenas nas grandes capitais
como Rio, São Paulo e Brasília e se destinam à minoria em condições
de pagar seus elevados aluguéis. A maternidade não é considerada
uma preocupação social, ao contrário, é razão de desemprego
sumário, ainda que a lei o proiba. Todos esses entraves ao
desenvolvimento da mulher como pessoa continuam influindo em
suas relações com o homem, maculando a relação amorosa com um
sem número de compromissos financeiros e familiares. A moradia
em favelas, cortiços/casas de cômodo, pensões, impedem o desen­
volvimento das relações sexuais entre o homem e a mulher. As
condições de trabalho — horas extras, horários noturnos^transporte
precário — dificultam a convivência, fazendo da vida, não a busca e
o encontro da felicidade e da realização como seres humanos, mas
um duro fardo a ser carregado.
Enquanto isso se verifica entre os trabalhadores, a proibição do
aborto, a dificuldade de emprego; o alto custo de vida atinge
também os setores médios da nossa sociedade, tornando tensa e
preocupada as relações entre os jovens, que tentam romper o rígido
código moral tradicionalmente vigente entre nós. Embora a
liberalização das relações sexuais entre os jovens de classe média
pudesse significar uma diminuição da prostituição, o desemprego no
campo e na cidade e a má distribuição da riqueza social são per­
manentes estímulos ao aumento deste escândalo, considerado
normal e “eterno” em nosso país. Só a classe média intelectualizada
das grandes cidades, já existente na Rússia de Alexandra Kollontai,
consegue aproximar-se da relação de camaradagem e liberdade com
que sonhava a autora para toda a sociedade. Isto se deve a que, neste
setor, reuniram-se possibilidades de trabalho bem remunerado para
a mulher, acesso financeiro ao aborto e visão crítica da sociedade,
permitindo-lhe violentar os valores morais dominantes. No entanto,
por ser um setor minoritário, não pode ser tomado como norma de
conduta média em nossa sociedade, para cuja maioria um

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relacionamento entre homem e mulher de igual para igual e uma vida
realizada para a mulher como ser humano continua a ser um sonho
distante,
A partir de meados dos anos setenta, òs movimentos chamados
femininos” e “feministas” tiveram um novo impulso no Brasil. Os
primeiros, devido ao agravamento dos problemas sociais, em
conseqüência do “milagre brasileiro”, lutavam contra a alta do custo-
-de-vida, por creches e postos de saúde. Os segundos, influenciados
pelo contato com seus congêneres europeus por parte de exiladas de
retorno ao país, de certa forma importaram uma problemática de
país desenvolvido que recentemente, devido ao agravamento da crise
econômica do capitalismo, vêm tendo suas teses postas em questão
por suas lideranças (l). Tudo parece indicar que, sem respaldo da
sociedade, infra-estrutura material e razoáveis condições de
trabalho para a mulher, as teses do movimento feminista encontram
dificuldades para se implantar e desenvolver. Ao contrário, no
decorrer da luta por melhores condições de vida, principalmente
naqueles aspectos que interessam sobretudo à mulher, o problema de
seu relacionamento em pé de igualdade com o homem se coloca na
prática, tanto em termos de reflexão da mulher sobre si mesma como
em termos da atitude do homem em relação a ela. Essa relação entre
mudança social e feminismo é a grande contribuição de Alexandra
Kollontai.
Neste livro, os modelos “mulher antiga” e “nova mulher” são
expostos com grande clareza, permitindo que nos vejamos retratadas
fielmente para podermos pensar comportamentos que são nosso
cotidiano. Alexandra Kollontai foi uma sonhadora e uma
revolucionária. Lutou para transformar seus sonhos em realidade,
não existindo distanciamento entre o que pregava e o que fazia.
Sonhadoras somos também todas as que imaginamos um mundo
onde o homem e a mulher possam ser companheiros e amantes,
trabalhadores por necessidade de realização pessoal e coletiva e não
por compulsão financeira, e, sobretudo, felizes. Revolucionárias
gostaríamos de ser, logrando poder dizer um dia, que as idéias de
Alexandra Kollontai já foram superadas porque realizadas.

São Paulo, agosto de 1981


Ana Corbisier(*)

(*) Ver a recente autocrítica de Betty Freedman, publicada pela revista Isto É.

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I. A CRISE DA FAMÍLIA
Os textos desta primeira parte foram extraídos do principal
livro de Alexandra Kollontai, consagrado à condição feminina: “As
bases sociais da questão feminina”, publicado em 1909.
Reproduzimos quase inteiramente o segundo capítulo, que aborda
os problemas do casamento e da família. Os outros assuntos tratados
nessa obra de mais de quatrocentas páginas se referem à luta das
mulheres pela independência econômica e pelos direitos políticos.
Embora alguns problemas levantados permaneçam atuais, os dados
e as condições descritas já não correspondem à realidade atual. Por
isso preferimos reproduzir apenas os textos que dizem respeito à
evolução e declínio da família.
Nem todas as idéias de Alexandra Kollontai sobre o assunto são
originais. Ela se inspira, evidèntemente, em Engels (A origem da
família, da propriedade privada e do Estado) e em Auguste Bebel (A
mulher e o socialismo) que cita muitas vezes. Mas, sua análise da
desagregação da família se enriquece com uma descrição da vida de
certas camadas da população na Rússia, que amplia nossos
conhecimentos sobre o período revolucionário. Quanto a suas
reflexões sobre a luta a travar, levantam um grande número de
problemas que estão longe de estarem resolvidos sessenta anos mais
tarde e que constituem ainda o ponto central da ideologia dos
movimentos feministas atuais. (*)

(*) Nota da edição francesa.

11
O fim do casamento monogâmico. (i)
“A forma atual da família não é a última. Uma
sociedade nova vai criar uma nova forma de
família”.
Karl Kautsky. Comentários sobre o programa de
Erfurt.

Examinaremos um outro aspecto da questão feminina: o


problema da família. Será necessário mencionar a importância que
assume atualmente, para a verdadeira emancipação da mulher, a
solução deste problema espinhoso e complexo? É óbvio que a
aspiração das mulheres à igualdade de direitos não será plenamente
satisfeita pela luta pela emancipação política, a obtenção de um
doutorado ou outros graus acadêmicos, ou salário igual por trabalho
igual. Para tornar-se realmente livre, a mulher tem que se
desembaraçar das cadeias que faz pesar sobre ela a forma atual,
ultrapassada e constrangedora, da família. Para a mulher, a solução
do problema familiar não é menos importante que a conquista da
igualdade política e o estabelecimento de sua plena independência
econômica.
As formas atuais, estabelecidas pela lei e pelo costume, da
estrutura familiar, fazem com que a mulher sofra, não apenas
enquanto ser humano, mas também como esposa e como mãe. Na
maioria dos países civilizados, o Código Civil situa a mulher em uma
situação de maior ou menor dependência em relação ao homem e
atribui ao marido não apenas o direito de dispor dos bens de sua
mulher, mas também de reinar sobre ela moral e fisicamente. Basta
lembrar o Código Civil francês, segundo o qual, a partir do dia da
assinatura do contrato de casamento, a mulher perde toda a
capacidade civil. Seus bens passam à administração do marido; não
pode executar nenhum ato jurídico sem o consentimento do
marido; mesmo o aluguel do apartamento exige a concordância do
“amo e senhor”; as mais severas leis protegem o caráter sagrado do
lar, sancionando assim, totalmente, uma dupla moral: o adultério do
marido — e, ainda assim, em condições especiais — é punido pela lei
com uma simples multa, enquanto que o fato de a mulher infringir a
fidelidade conjugal lhe vale dois anos de prisão. Sobre a mulher não
casada pesa o poder paterno, embora, não se casando, permaneça um
pouco mais livre e independente. Em troca, as leis francesas vigiam

( I) I ítulo original do capítulo: O casamento e o problema da família.

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atentamente sua “virgindade” e punem duramente a mãe solteira, no
sentido de que todas as consequências do concubinato caem
apenas sobre ela: como se sabe, segundo o artigo 350 do Código Civil
francês, “a pesquisa da paternidade é proibida”.
Se, em outros países, as leis são menos severas com relação à
mulher, nem por isso deixam de afirmar, em maior ou menor grau, o
princípio da subordinação legal da mulher a seu esposo e senhor.
Em nosso país, a Rússia, as mulheres casadas não podem
contrair um empréstimo sem o consentimento do marido. Do mesmo
modo, as letras de câmbio assinadas sem o acordo do marido são
declaradas sem valor. De acordo com nossas leis, a mulher deve
obediência a seu marido e o poder deste está acima do poder dos
pais. A mulher também tem o dever de partilhar a habitação do
marido, e ainda muito recentemente, este podia fazer reconduzir
manu militari a “esposa insubmissa” que tivesse desejado escapar-
lhe, como se fosse um ser odioso e às vezes mesmo francamente
odiável...
E, onde termina a submissão familiar oficial, legalizada, da mu­
lher, começa a “opinião pública”, como se diz, a exercer seus direitos.
Esta opinião pública é criada e mantida pela burguesia, com o
objetivo de proteger a “sagrada instituição da propriedade”. Ela
serve para sancionar uma “dupla moral” hipócrita. A sociedade
burguesa encerra a mulher num estojo econômico intolerável,
pagando seu trabalho com um salário irrisório; priva-a do direito
que tem todo cidadão de elevar a voz para defender seus direitos
pisoteados e se limita a lhe oferecer, bondosamente, esta escolha: ou
o jugo conjugal, ou os amplexos da prostituição, abertamente
desprezada e condenada, mas secretamente encorajada e mantida.
Será necessário aprofundar os aspectos sombrios da vida conju­
gal atual, os sofrimentos da mulher, estreitamente relacionados às
estruturas familiares de hoje? Já se falou e escreveu suficientemente
sobre o assunto. A literatura está repleta de quadros negros sobre
nossa desordem conjugal e familiar. Quantas tragédias psicológicas
cresceram nesse terreno, quantas vidas mutiladas, quantas existên­
cias envenenadas! No momento, basta-nos apenas destacar que a
estrutura atual da família oprime as mulheres de todas as classes e de
todas as camadas da população. Os hábitos e tradições perseguem a
mãe solteira do mesmo modo, seja qual for a camada da população a
que pertença; as leis põem sob a tutela do marido tanto a burguesa
como a proletária e a camponesa.
Encontramos então, enfim, um ponto da questão feminina onde
as mulheres de todas as classes podem efetivàmente estender-se as

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mâos e lutar juntas contra as condições de sua submissão? Será que
os sofrimentos comuns, o desgosto comum apagam o fosso de
antagonismo de classe e criam uma comunidade de aspirações e de
tarefas para as mulheres de distintos campos? Quem sabe, no terreno
dos desejos e dos objetivos comuns, uma colaboração de burguesas e
proletárias será realizável? Afinal de contas, as feministas burguesas
lutam ao mesmo tempo por formas mais livres de casamento e pelo
direito à maternidade : levantam a voz em defesa da prostituta que
todo mundo persegue. Vejam como a literatura feminista é rica em
pesquisas sobre novas formas de união entre o Homem e a mulher e
de audaciosos esforços pela “igualdade m o rar entre os sexos! De
fato, se, no domínio da libertação econômica, as burguesas se
arrastam atrás do exército de milhões de proletárias que abrem
caminho à “nova mulher”, na luta pela solução da questão familiar, a
bandeira não pertencerá às militantes feministas?

Em nosso país, a Rússia, as mulheres da pequena burguesia_


isto é, este exército de mulheres com uma situação independente que,
de repente, nos anos 1860, foram lançadas ao mercado de trabalho —
praticamente resolveram há muito tempo, a título individual, muitos
dos complexos aspectos da questão matrimonial, passando
audaciosamente por cima do casamento religioso tradicional e
substituindo a forma consolidada da família por uma união fácil de
romper, que corresponde melhor às necessidades de uma camada
intelectual, móvel, da população. Mas soluções individuais,
subjetivas, para a questão, não transformam a situação e não
embelezam nada o sombrio quadro da vida de família. Se algo pode
destruir a forma atual da família, não são os esforços titânicos de
individualidade mais ou menos fortes, mas sim as forças produtivas,
aparentemente inertes e no entanto poderosas, que, incansavelmen­
te, passo a passo, reconstroem a vida em novas bases...

Tentemos, pois, responder aqui a duas questões essenciais: 1.


Graças aos esforços de quem — proletárias ou feministas — a mulher
vai se libertar progressivamente do jugo da família? 2. Existe
efetivamente uma comunidade de aspirações entre as proletárias e as
militantes feministas no campo da questão familiar, ou, aqui como
em todos os outros campos, existe um antagonismo de classe,
dividindo nitidamente as mulheres em dois campos opostos, talvez
hostis?

Será preciso mostrar, além disso, que, na estrutura familiar de


hoje, nem tudo vai bem, que a forma pretensamente monogâmica da

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família freqüentemente se desagrega e destrói em suas próprias
raízes? Fixada e imobilizada à força, no interesse da propriedade
burguesa, por um Código Civil complexo, a família contemporânea
perde a cada dia sua estabilidade, sua antiga solidez. Os laços
naturais, que antigamente uniam a família numa célula social
indivisível, se enfraquecem e se rompem, ao mesmo tempo em que
morrem as formas econômicas que as geraram. Uma união familiar
sólida, soldada, indestrutível, onde todo o poder pertencia ao que
nutria, a quem obtinha sozinho todos os bens — o marido e pai — tal
era o ideal de vida familiar que correspondia às necessidades do
nascente Terceiro Bstado. Na época em que o Terceiro Estado mal
começava a desempenhar sua importante missão— a acumulação de
riquezas fabulosas no seio da família — a solidez e a estabilidade das
formas familiares eram uma das condições de sucesso da burguesia
em sua luta pela existência contra as outras camadas da população.
Não é_à toa que a burguesia dos séculos XVII e XVIII fazia valer sua
moralidade e opunha complascentemente suas virtudes familiares
aos costumes de uma nobreza .depravada e frívola, que não
compreendera o grande segredo da acumulação capitalista e que
considerava a família não como guardiã, mas como dissipadora das
riquezas acumuladas, Para aumentar a solidez da família, para
incrementar o prestígio das virtudes familiares, o Terceiro Estado fez
tudo o que dele dependia. Usou a religião, que prega a indissolubili-
dade do sacramento do matrimônio, a lei, que pune o adultério da
mulher, e a moral, que apregoa o caráter sagrado do lar. E, quando a
burguesia conquistou uma posição social dominante, quando todos
os fios da produção mundial estavam reunidos em suas mãos, sua
moral, suas regras de conduta e seus códigos civis, cujo objetivo era
precisamente proteger seus interesses de classe, tornaram-se pouco a
pouco a lei, obrigatória também para as outras camadas da
população. A moral do Terceiro Estado foi reconhecida como a
moral de toda a humanidade. Estreitos interesses materiais de classe
obrigaram a burguesia a preocupar-se com a “pureza” do leito
nupcial e a proceder à caça aos “filhos ilegítimos” , isto é, aqueles que
não podiam nem deviam herdar, nem sequer uma parcela dos
tesouros acumulados pela família; esses interesses materiais
contribuíram para o fortalecimento da norma da dupla moral e para
o estabelecimento de severas disposições legais no campo do direito
familiar. E todos nós, educados nas normas artificiais de uma moral
sexual cujo objetivo exclusivo era proteger os interesses da
burguesia, inclinamo-nos diante destes princípios de classe como se
fossem categorias puramente Ideológicas. Estamos prontos a
reconhecê-los como os princípios normativos da vida moral.

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k
Ao mesmo tempo que o modo de produção capitalista foi
proclamado forma definitiva e eterna da vida econômica da
humanidade, o casamento monogâmico foi declarado instituição
locial permanente e intangível. Qualquer ponto de vista
evolucionista sobre o casamento foi perseguido e condenado com a
mesma fúria empregada para contestar e negar o evolucionismo na
vida econômica da sociedade. A propriedade e a família estão
demasiadamente ligadas: se um desses pilares do mundo burguês se
Vê abalado, a solidez do outro torna-se questionável. Aí está porque
t burguesia sempre defendeu tão cuidadosamente suas bases
familiares; porque sempre defendeu e continua a defender com tal
ardor as vetustas formas da estrutura matrimonial de hoje.

Mas a evolução econômica percorrida pela humanidade —


declínio da pequena produção artesanal, triunfo do trabalho
mecanizado, crescimento colossal das Cidades, ritmo febril de sua
atividade industrial e comercial — esta evolução não podia deixar de
ie refletir nas formas de vida em família e devia abalar as bases,
consideradas inabaláveis, da família burguesa.

Há já um século que um debate ininterrupto opõe os defensores


das velhas idéias sobre a família, considerada como uma instituição
locial inatingível, e os partidários das novas teorias, para os quais a
forma atual da vida matrimonial não é senão uma categoria histórica
transitória. Mais ainda que os estudos históricos e os estudos
etnográficos, a realidade viva confirma a cada dia a instabilidade da
família atual e sua desagregação inelutável. Cada vez são mais raras
as vozes que afirmam ser a família atual uma instituição inatingível e
permanente, e o próprio debate sobre as relações familiares já se situa
em outro plano. Os ideólogos burgueses estão atualmente ocupados
com o seguinte problema: que reformas permitirão conservar em sua
integridade a célula familiar burguesa, que medidas é preciso adotar
para impedir sua decomposição futura?

Nada irrita tanto a burguesia como a afirmação dos adeptos do


socialismo científico, segundo a qual mudanças radicais na vida
familiar são inevitáveis, relacionadas com a reorganização completa
da vida econômica da sociedade em bases novas, coletivistas. Com
um ardor redobrado, os ideólogos burgueses põem-se a gritar agora
que a família, tãl como é atualmente, pode se adaptar, conservando
intacta sua integridade, a qualquer reforma social, e que uma
mudança das relações de produção não conduz necessariamente a
uma revolução na forma de coabitação dos sexos.

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Será realmente assim?
Uma forma de relações sociais entre os homens, seja qual for,
exige, para ser sólida, a existência das causas econômicas que, em seu
tempo, fizeram nascer precisamente esta forma de relações sociais e
não outra. Na época em que predominava a economia natural, a
família era antes de mais nada uma célula econômica, produtora de
todos os bens indispensáveis ao grupo de pessoas em questão (2).
À medida que se desenvolvia e se fortalecia a economia de
tróca, os membros da família tinham cada vez mais condições de
satisfazer suas necessidades sem sua ajuda enquanto célula
econômica; entretanto, até o século XIX, ou seja, até a aurora da
grande produção capitalista, a família conservava uma série de
pequenas funções econômicas, que permaneciam o elemento
determinante e decisivo na moral da união conjugal. Enquanto a
família era, em maior ou menor grau, um valor produtivo, sua
existência social estava garantida; laços vitais poderosos uniam seus
membros muito mais solidamente do que podiam fazê-lo as leis mais
severas e as regras morais mais coercitivas. Mas, a partir dó
momento em que a grande produção capitalista arrancou das mãos
da família suas prerrogativas econômicas, esta perdeu seu valor
enquanto célula econômica necessária e foi condenada, ao mesmo
tempo, a uma lenta e inelutável desagregação.
De fato, onde estão, hoje, estes laços econômicos sólidos que ■
tornavam a família tão viva e tão estável? Tornemos, para começar, a
família burguesa, e vejamos quais são, entre as funções que lhe j
pertenciam há séculos, as que conservou até hoje. 1
A atividade produtiva da família, no sentido de fabricação da
longa iista dos objetos de primeira necessidade, foi reduzida ao',
mínimo; o domínio da economia doméstica limitou-se até tornar-se j
irreconhecível. Onde poderiamos encontrar, hoje, uma família
burguesa fabricando suas velas, seu sabão è sua cerveja, sua linhâ e
seu tecido, conservando produtos para o inverno, cozendo seu pão,
fazendo roupas para toda a casa? Não há necessidade nem vantagem,
em gastar as forças dos membros da família para produzir ou<
fabricar objetos, ainda que de primeira necessidade, que podem ser
comprados por preços baixos em qualquer supermercado. Um após

(2) “A família é o elemento ativo; nunca estaciona, mas passa de uma formai
inferior a outra superior, à medida que a sociedade de desenvolve de im grau inferior a
um gfau mais elevado”. CENaELS, F. A Origem da família, dapropriedade privada e
do Estado, Paris, Éditions sociales, 1971, pág. 34)

18
outro, os ramos da produção escaparam às mãos da economia
doméstica, para se transformarem em objetos de especulação
industrial. Com o desenvolvimento e o triunfo da grande produção
capitalista, a família perdeu seu antigo papel de célula produtora e,
deixando de ser uma unidade econômica independente, perdeu
pouco a pouco sua importância na vida econômica da sociedade (3 ).
Mas se, no seio da família, a fabricação e a produção dos o bjetos
de uso corrente acabaram, quem sabe não conservou outras funções
econômicas? Pois enfim, no decorrer dos numerosos séculos de sua
existência, a família não foi apenas criadora independente de
riquezas, mas também fiel guardiã destas. A casa, o mobiliário, o
tesouro familiar, tudo isso foi por ela piedosamente protegido e
conservado.
Pouco móvel, presa à propriedade, à terra, à casa, a família do
passado recente era o aparelho mais seguro para a conservação das
riquezas familiares e, nessas condições, a solidez dos laços familiares
estava estreitamente ligada aos interesses materiais da descendência.
A desagregação da família significaria a dispersão, a dilapidação dos
bens familiares.
Atualmente as coisas mudaram: os bancos e outros
estabelecimentos de poupança tomaram totalmente conta da função
de conservação dos bens que a família desempenhava; são esses
estabelecimentos, e não as uniões morais e sexuais, os casais, que
assumem a guarda e a conservação das riquezas familiares já
acumuladas. Além disso, essas riquezas assumem cada vez mais a
forma de títulos ao portador, que não exigem nenhum cuidado
especial por parte dos membros da família. Com a mobilidade
sempre crescente da vida, com o desenvolvimento dos meios de
comunicação que permite às famílias mudarem-se mais
freqüentemente, um mobiliário volumoso torna-se um fardo; nessas
condições, a única forma de valores não onerosa são o dinheiro e os
títulos. É assim que a antiga função habitual da família — a
conservação das riquezas familiares acumuladas — escapa ao círculo
das obrigações familiares.
Mas será o consumo — esta condição indispensável da vida
familiar — praticado na mesma medida que antigamente no seto do

(3) Em nosso país, a Rússia, onde a grande produção capitalista ainda não tem
uma importância, preponderante, pertencem ao domínio da economia doméstica
incomparavelmente mais funções econômicas do que no Ocidente; uma série de ramos
da economia que, no estrangeiro, já passaram às mãos da produção capitalista, são
ainda, entre nós, atributos da economia doméstica.

19
lar? O recinto familiar cedeu lugar aos restaurantes, clubes, casas
mobiliadas, hotéis. A grande burguesia rica passa a metade de sua
vida a passear pelas estações de água elegantes e a gozar dos serviços
dos grandes hotéis; a média e a pequena burguesia, para se
desembaraçarem dos aborrecidos trabalhos de casa e reduzir as
despesas domésticas, habitam as casas mobiliadas, comeni em res­
taurantes, trabalham nas bibliotecas e nos laboratórios públicos,
nos museus e galerias nacionais.
À medida que, em consequência da demanda crescente de
força de trabalho barata em todos os campos, a mulher é atraída para
fora de sua estreita célula familiar e vai se somar à população ativa,
esse gênero de vida se difunde cada vez mais. Enquanto o único
sustentáculo econômico da família era o marido, enquanto que,
graças a seü salário, era o único que trazia para casa os bens materiais
acessíveis à família, enquanto o bem-estar da mulher e dos filhos
dependia essencialmente dele, a família estava cercada e
estreitamente unida por laços que são muitas vezes desconhecidos
das famílias de hoje. Atualmente, na pequena e mesmo na média
burguesia, a mulher assume, cada vez mais, com seu salário, uma
parte das necessidades domésticás; a dependência da mulher em
relação ao marido, da filha em relação ao pai, se destrói pela raiz e
um depois do outro se enfraquecem os poderosos laços que outrora
ligavam uns aos outros os membros da família burguesa.
Que sobrou para a família, em nossos dias? Que funções lhe são
atribuídas ainda, que laços prendem ainda seus membros? Talvez a
educação dos filhos? Mas onde estão as mães e os pais burgueses que
se ocupam pessoalmente da educação e da instrução de sua progênie?
Não apenas a pequena e a média burguesia, mas a grande burguesia
já não despreza os estabelecimentos de ensino público. As escolas
maternais e primárias experimentam uma expansão sem
precedentes, sem falar dos estabelecimentos de ensino secundário e
superior. A função de educar, exatamente como os outros papéis da
família, saiu da célula familiar para passar à responsabilidade da
sociedade e do Estado.
Que resta, depois disso, para a família? Qual é sua tarefa na
estrutura individualista de classe da sociedade contemporânea?
Exclusivamente a transmissão, em linha direta, do patrimônio
adquirido. Os múltiplos obstáculos colocados atualmente ao
divórcio pretendem favorecer o cumprimento desta única tarefa da
família atual — família que não está a serviço das necessidades
morais da pessoa, mas dos interesses da propriedade. Todo o
histórico do casamento contemporâneo nos mostra que esta
instituição fõi criada com objetivos puramente utilitários e que

20
apenas em casos raros, devidos a um acaso especialmente feliz, nela
se introduz um elemento moral, sob forma de afeição recíproca entre
os cônjuges.
Uma vez seu poder fortalecido, a burguesia deixou cair á
mascara da hipocrisia e se pôs a exibir publicamente seus casamentos
como uma espécie de transações comerciais, de negócios bem
sucedidos. Em vez da união de “dois corações apaixonados” que os
ideólogos da burguesia gostam de descrever, o casamento torna-se
cada vez mais frequentemente, nas condições atuais, uma compra
cínica de dote, ou venda de títulos de nobreza. Osxasamentos reali­
zados por anúncios classificados tornaram-se tão comuns que nem o
sentido moral do burguês mais estrito se preocupa com eles. Quanto
ao fim feliz destes casamentos de razão”, o número cada vez maior
de divórcios basta como testemunha (4). Os pedidos de dissolução de
casamento se tornaram tão numerosos que um juiz vienense
exclamou com desespero: “Breve, as queixas em conseqüência de
matrimônios rompidos serão tão freqiientes quanto as queixas por
vidros quebrados”.
As estatísticas nao estão em condições de fornecer um quadro
exato do número dos casamentos rompidos pelo fato de que um
grande número de cônjuges que se separam não apelam para as
formalidades do divórcio. Não podemos esquecer, também, que as
leis de todos os Estados entravam de todas as formas a dissolução
dos casamentos e, assim, impedindo pela força aseparação do casal,
evitam frequentemente a ruptura de uniões tão úteis quanto a união
dos milhões com os títulos de nobreza, ou da terra com o capital...
Entretanto, se na classe burguesa a família se desagrega
inelutavelmente, se dia após dia desaparecem os laços que garantiam
sua vitalidade, isso significa que em todas as outras camadas da
população desenvolve-se o mesmo processo inevitável de declínio da
família? Sabemos que, em seu tempo, a família da nobreza feudal
caiu em uma decadência completa e se desagregou da forma mais
clara e mais irremediável; mas, na mesma época, o Terceiro Estado
nascente velava sobre as tradições familiares, vendo, com justeza, na
integridade do princípio da família uma sólida muralha para
proteger seu crescente poderio social. Hoje, também, quem sabe, só a
família de média e da grande burguesia se desagrega, enquanto que,
na pequena burguesia, no campesinato, por exemplo, os princípios
familiares permaneceram vivos?

(4) Bebel, A. A mulher e o socialismo.

21
Sem falar no campesinato da Europa ocidental, que sofre
totalmente as influências sob as quais a família se desagrega nas
outras camadas da burguesia, vemos também, em nosso
campesinato russo “retrógrado”, uma brutal evolução das relações
familiares. O simples fato da passagem da “grande” família o clã
— à “pequena” família, o simples fato das inúmeras partilhas, já
constitui uma prova evidente da desagregação das antigas formas da
estrutura familiar camponesa.
A “pequena” família, como se sabe, se funda em bases
econômicas totalmente diferentes: nela, a mulher recebe, ao mesmo
tempo, uma maior liberdade de ação e a possibilidade de adquirir
uma posição independente de “patroa*, de gerente da casa. Na
“grande” família — o clã — não é senão um dos numerosos
executores da vontade de outrem, ou seja, do chefe da família, na
ausência de uma divisão do trabalho bem determinada, não lhe cabe
nenhuma iniciativa e, por mais que se mate no trabalho, não existe
nenhuma possibilidade de avaliar quantitativamente sua contribui­
ção para as riquezas da economia familiar. Dai a depreciação de seu
trabalho, daí seu estado de dependência total. Na “pequena família,
a mulher não trabalha menos, às vezes até mais, mas, em troca, é ela
que dirige este óu aquele ramo da exploração familiar, e a
quantidade e qualidade de seu trabalho podem ser facilmente
avaliadas. É sobre ela que se apóia a economia doméstica, no mais
amplo sentido do termo, inclusive a fiação, a tecelagem, as
necessidades do rebanho, e mesmo a venda dos produtos da
exploração; e só em alguns períodos é apenas a auxiliar do marido
nos trabalhos do campo. Por outro lado, o marido não se considera
no direito de imiscuir-se na gestão de sua mulher. “Na Pequena
Rússia — nota Alexandra Efimemko — onde, em conseqüência de
costumes e condições históricas especiais, a família clânica se
dispersou muito mais cedo do que na Grande Rússia, esta divisão do
trabalho, dos deveres e dos direitos, atingiu um grau muito alto. O
marido não se imiscui jamais na atividade de sua mulher, deixando-
-a livre para julgar e agir como lhe parece correto* É assunto da
mulher”, dizem os pequenos russos” (5). Mas justamente, na Pequena
Rússia, a vida quotidiana da camponesa é muito mais suportável que
na Grande Rússia, onde ainda reina o velho princípio da família
clânica.
Esta independência relativamente grande de que goza a mulher
na pequena família faz dela, naturalmente, uma partidária veemente

(5) Efimemko, Alexandra. Estudos sobre a vida popular.

22
desta forma de relações familiares, e leva a camponesa a usar de
todos os meios de que dispõe para obter a divisão da terra; entram em
jogo, aqui, tanto a calúnia, quanto a adulação ou a insociabilidade.
“O povo, afirma Alexandra Efimemko, entre os Grandes Russos
como entre os outros eslavos, não esconde que a mulher é uma feroz
adversária da vida clânica e considera esta a principal causa da
decadência da antiga ordem de coisas” (6). Se esta afirmação não é
totalmente exata, é característica; é certo que existem causas para a
decadência da vida clânica que são mais profundas que a
“insociabilidade” ou o “mau humor” das mulheres. Antes também as
mulheres brigavam; não foi isso, entretanto, que levou à generaliza­
ção das partilhas e à passagem da “grande” à “pequena” família.
A solidez das bases da família está na atitude hostil à extensão
da economia de troca ao campo. Este é um fato bem conhecido.
Onde o campesinato ainda não foi envolvido pela corrente mundial
das trocas comerciais, nos lugares onde prevalece ainda a antiga
economia fechada, natural, a velha forma da família patriarcal
mantém-se em toda sua imunidade arcaica. Neste caso, a família
permanece, antes de tudo, uma célula econômica, produtora de
todos os bens necessários à vida, uma célula muito importante e
mesmo indispensável a cada um de seus membros. Os laços
econômicos que unem a família camponesa garantem sua estabilida­
de e sua vitalidade. Neste caso, o divórcio está fora da questão.
E verdade que não se trata de casamento como “uniões morais”!
mas sim de uma união que se baseia totalmente na base real das'
relações de produção. Nossa família camponesa russa, clânica, com
todos seus monstruosos vestígios do passado, com sua condenação
sem recurso da mulher à escravidão, com o ilimitado poder do
“senhor” sobre o lar, pôde sobreviver sem mudanças até nossos dias
unicamente porque nosso campesinato conservou até o fim do século
XIX as antigas formas de relações econômicas, há muito tempo
ultrapassadas e abandonadas pelos outros povos.
Entretanto, as velhas normas imobilizadas da vida patriarcal
perdem sua estabilidade a partir do momento em que a economia
camponesa se vê envolvida pela corrente geral das trocas mundiais de
mercadorias. Os princípios morais da vida familiar, que pareciam
tão inatingíveis e imutáveis há algumas dezenas de anos, tornam-se
cada vez menos categóricos, e tão fora de moda quanto o tecido das
camisas de linho feito em casa e a fabricação do arado.

(6) Idem, ibidem.

23
A passagem da “grande” família camponesa à “pequena” —
passagem que tem as causas econômicas que indicamos — não faz
senão acelerar o processo de futuro deslocamento da família. Por
mais que os costumes populares levem para o seio da “pequena”
família os princípios que privam a mulher de qualquer direito e
fazem-na depender do chefe de família, a prática da vida entra
brutalmente em contradição com esses princípios. As próprias
condições econômicas da “pequena” família garantem à mulher uma
certa independência econômica e engendram nas camadas mais
obscuras do campesinato um conflito entre os costumes ja
ultrapassados e as relações reais da vida. É o primeiro passo para o
aparecimento da “questão feminina” no meio camponês.
A considerável multiplicação dos votos monásticos femininos é
testemunha do crescimento do descontentamento das mulheres
camponesas com a evolução das formas familiares. Em 1855, havia
7.091 noviças; em 1912, eram 32.029. Sem dúvida, a atração do
convento para as camponesas (entre elas principalmente são
recrutadas as noviças) traduz seu desejo crescente de escapar ao peso
da vida familiar camponesa, com sua perpétua precariedade
econômica e seu trabalho estafante. O gosto pelo véu que se
desenvolve entre as jovens do campo mostra o mesmo fenômeno. As
futuras religiosas, fazendo voto de celibato oficial, nem por isso
recusam o amor; ao contrário, tendo conquistado uma certa
independência na família (seus ganhos são considerados sagrados e
ninguém ousaria tocá-los), elas gozam também de sua liberdade no
domínio dos sentimentos. Esta aspiração à vida monástica, à
religião, assim como o desejo de ir para a cidade, para o centro
industrial, a fim de ganhar sua vida, traduz o desenvolvimento da
consciência das camponesas, que começam a não poder mais com
sua submissão familiar. O deslocamento da família camponesa é |
especialmente sensível entre nós, na Rússia, nas localidades que
enviam mulheres em abundância ao mercado de trabalho agrí­
cola. (7)
A mulher que se afasta centenas de léguas, que muda de estado,
para ganhar um salário agrícola, a mulher que participa dos
trabalhos de estação, já constitui um novo tipo de camponesa, cuja
psicologia lembra mais a da operária de fábrica do que a da dona-de-
-casa resignada da aldeia, que se encarrega docilmente de todos os

(7) Ter-se-á uma idéia do grande número de mulheres que participam dos
trabalhos de estação, se Se tem em conta que no ano de 1880, para 11 distritos, apenas
do governo de Tver, havia 20.929 por ano.

24
ônus da vida doméstica, consagrados pelas tradições da vida
patriarcal. Nestas circunstâncias, a própria família adquire um outro
aspecto, perde seu caráter fechado e esclerosado para tornar-se
móvel, à vontade e, consequentemente, mais fácil de romper-se.
Penetrando nos cantos mais afastados do campo, as novas relações
de produção se submetem e modificam as antigas formas de
coabitação social. Implantando-se na aldeia, permeando todas as
relações agrárias locais, o capitalismo não apenas modifica a
fisionomia da família camponesa da Europa ocidental, mas desfere
golpes decisivos nos hábitos patriarcais de nosso campesinato russo.
Lentamente, mas constantemente, vê-se acontecer na fa m ília
camponesa uma série de modificações profundas, que destroem sua
secular e inabalável estabilidade...
Falta a camada mais numerosa da sociedade contemporânea —
a classe dos proletários. Como se apresentam as coisas para a fa m ília
nesta classe da população? Não será possível encontrar, ao menos
aqui, condições suscetíveis de garantir a vitalidade da estrutura
familiar atual? Pode-se, ao menos, levantar seriamente esta questão?
Onde esta a família, para o operário de hoje, para aquele que vende
sua força de trabalho? (8)
Mal desponta a aurora e o marido e a mulher se apressam em
deixar sua habitação pequena e pobre para responder docilmente ao
apelo da sirene da fábrica e se submeter com resignação ao poder de
seu senhor sem alma e todo poderoso — a máquina. Até uma hora
tardia da noite, o casal fica fora de casa; as crianças estão confiadas
aos cuidados do bom Deus; no melhor dos casos, é uma vizinha idosa
ou que j á não pode trabalhar que se ocupa deles... A rua, barulhenta,
suja, depravada, é a educadora, a primeira escola dos filhos dos
proletários... Se a fábrica é distante da casa, os pais, na hora do
almoço, não têm tempo de vir dar uma olhada em sua casa ao
abandono. Os locatários, homens e mulheres, os doentes, os
alcoólatras, os velhos e as crianças — todos os intrusos, os
estrangeiros — destroem a última ilusão de isolamento familiar. E a
miséria, que obceca, bate à porta e espreita com olhos ávidos a
desgraça inesperada — doença, desemprego, morte de um membro
da família, nascimento de um filho — para fincar suas unhas afiadas

(8) “O modo de produção capitalista, na maioria das vezes, não suprime, para o
operário, de organizar sua vida particular; mas suprime todos os aspectos agradáveis
desta vida para só lhe deixar os aspectos sombrios, principalmente o esgotamento da
mulher e seu isolamento da vida social. Hoje, o trabalho da mulher na fábrica não a
liberta do trabalho doméstico; acrescenta um novo fardo ao antigo”. (Kautsky , K.
Comentários sobre o programa de Erfurt).

25
na família proletária, rompê-la e dispersá-la pelo mundo... Em tais
condições, o casamento, ainda que resultante de uma recíproca
inclinação, transforma-se rapidamente em um jugo intolerável, que
cada um por seu lado tenta esquecer na vodca...
O baixo salário do marido, a demanda permanente, por parte
do capital, de mãos femininas baratas, lançam a mulher nos braços
abertos da produção capitalista. Mas a partir do momento em que
as portas da fábrica se fecham atrás da mulher trabalhadora, está
selada a sorte da família proletária. Lenta, mas inexoravelmente, a
vida familiar do operário caminha para a ruína. O lar se extingue e
deixa de ser o centro de união dos membros da família.
Que ironia, que blasfêmia, em todas essas exclamações
sentimentais da burguesia sobre o “caráter sagrado” do “lar” e da
“maternidade”, quando milhões, dezenas de milhões de mães não
têm condições de desempenhar nem mesmo suas funções mais
elementares. Ao apelo imperioso do capital, as mães arrancam de seu
seio o bebê que ainda não distingue o dia da noite e vêm docilmente
marcar passo na porta da fábrica. Os defensores burgueses do
casamento e da maternidade sabem perfeitamente que, ainda no
ventre da mãe, as crianças são deformadas ou estropiadas pelas
emanações e os gazes nocivos (9), que milhões de crianças morrem
por terem absorvido substâncias tóxicas com o leite materno, que,
nos barracos de madeira, nos períodos de acúmulo de serviço,
centenas de crianças abandonadas à sua própria sorte morrem
carbonizadas, que existem mães que envenenam lentamente seus
filhos com ópio, para que seu choro não as impeça de terminar uma
encomenda urgente. Mas a hipocrisia da burguesia não tem limites.
Que lhe importa se filhos de operárias empregadas em fábricas de
palitos de fósforos ou de mercúrio, em vidrarias, ou em fábricas de
parafina nasçam com um esqueleto deformado, uma atividade vital
fraca, ou nasçam apenas para morrer com dolorosas convulsões?
Que lhe importa se os nascimentos prematuros e as crianças nati-
-mortas são o resultado inevitável do sistema de exploração
revoltante do trabalho das mulheres na indústria? Que lhe importa
se, levados à ira pela fome e a miséria, mães se livrem de seus filhos
nos “fazedores de anjos”, se as estatísticas revelam um aumento
contínuo dos abortos, e se entre essas “mães criminosas” existem não

(9) Nos abortos proletários frequentemente se encontra chumbo, mercúriojodo,


fósforo, nicotina e outros venenos.
I
26
apenas jovens abandonadas por seus namorados, mas também
esposas legítimas de proletários, respeitáveis mães de família? oi»
Apesar de todo o escandaloso horror destes fatos quotidianos,
os hipócritas defensores burgueses da família atual continuam a
cantar, com um entusiasmo sem limites, o hino do “papel sagrado da
mãe” e saem à luta contra o trabalho profissional da mulher (só nas
palavras, é claro) que afasta a mãe do berço de seu filho.
“O dever sagrado da maternidade”! Mas como poderá se
manifestar este papel da mulher, na classe operária, levandó^se em
conta as condições atuais do trabalho assalariado feminino? Onde
está o cuidado indispensável à saúde da criança, onde este mínimo de
condições de higiene necessárias para salvaguardar a vida do bebê? A
mortalidade infantil, sobretudo no primeiro ano, atinge no
proletariado proporções assustadoras. “Enquanto que, no primeiro
ano, morrem 8% dos filhos da classe burguesa, diz Lily Braun,
morrem 30% das crianças operárias da mesma idade. Nos bairros
ricos de Friedrichstadt, em Berlim, de cada 1.000 recém-nascidos,
morrem 148. No bairro pobre dé Wedding, em 1.000, morrem 348!
(...) A mortalidade infantil nos centros industriais mostra a estreita
relação que existe entre esta mortalidade e o desenvolvimento do
trabalho feminino” (li).
Com relação a isso, a indústria do tabaco é um dos ramos mais
prejudiciais: é entre operárias desta indústria que se encontra o maior
número de crianças nati-mortas, e mesmo quando a criança nasce
viva, espera-a um lento envenenamento pelo leite da mãe,
impregnado de nicotina. A mortalidade infantil também é enorme
quando as mães trabalham na indústria do papel; na Alemanha,
atinge 48%. Os filhos das operárias têxteis podem esperar a mesma
sorte: na Inglaterra, para mães empregadas no tratamento de
matérias fibrosas, a mortalidade das crianças de menos de um ano é
de 22%; na Alemanha, de 38%.

(10) “Na Inglaterra, não são apenas as mães solteiras que recorrem ao aborto,
tentando assim salvar sua honra, mas também mulheres casadas, que sórdidos
cálculos ou então a miséria obrigam a destruir o fruto de suas entranhas”. (Chachkov.)
“Em Londres, no meio de uma noite de janeiro, uma mulher se aproxima de um
cidadão, na rua, e lhe pergunta: “Onde fica o posto de polícia?” “O que você vai fazer
lá?” Pergunta o transeunte. “Entregar-me, porque matei meu filho”. “Por que você fez
isso?” “Por necessidade, não agiientava mais vê-lo passar fome”. Será preciso tecer
comentários sobre este sombrio diálogo?

(11) Braun , L. Profissão e maternidade.


M;is o que espera os filhos das famílias proletárias, se j
conseguirem escapar a todos os perigos mortais semeados í
generosamente em seu caminho, antes e depois do nascimento? A
fome, o frio, a miséria, as reprimendas enraivecidas, os golpes de
mãos cansadas, o desejo provocado pelo desespero: “Antes não >
.
tivesse nascido!”; depois, os sombrios anos de aprendizagem e, nos \
momentos de lazer, a rua, as rixas, as lutas e muitos, muitos golpes...
Eis o que, na sociedade atual, chama-se de educação “sob o olhar
vigilante da mãe”. \
Não, as ternas mamães da burguesia podem fechar os olhos o j
quanto quiserem à futura sociedade coletivista, com seus princípios
de educação social, poderão acusar os socialistas de não terem '
“alma” e de pretenderem a barbárie de lhes subtrair seus “queri­
dos pequerruchos”, pode-se dizer de antemão que qualquer í
forma de educação, desde que seja diferente da atual, salvará milhões j
de jovens vidas... Pelo menos não existirão mais essas infelizes
crianças que suas mães prendem no pé da cama antes de ir trabalhar, ,
nem estes martiriológios a que estamos acostumados, graças a ::i
acidentes trágicos — tal criança foi esmagada por um carro, ou então
caiu da janela, ou se afogou numa bacia d’água... A vida dos filhos .
dos proletários é tão revoltante, tão cheia de bárbaras privações e de \
sofrimentos que não são para a sua idade, que, para eles, perder seus ;
pais ou sua família é muitas vezes um benefício. Os orfanatos,
construídos pelos filantropos ou pelo Estado, são muitas vezes o
caminho da salvação para os filhos dos proletários.
Que as ternas mamães burguesas, que se indignam contra os <
socialistas só porque estes pretendem “arrancar os bebês dos braços '
de suas mães”, confessem sinceramente quantas mães proletárias j
podem hoje, na sociedade burguesa, permanecer junto ao berço de ;
seu filho (12). Com efeito, é impossível fechar os olhos diante do
aumento incessante do trabalho entre as mulheres casadas. Na
Alemanha, em doze anos, o número das operárias casadas aumentou ;
de 300.000; em 1882, havia na Alemanha, para 1.000 operárias, 173
casadas, e em 1895, 215. Segundo os últimos cálculos, em 1.000 ^

(12) “Antigamente, certos proprietários de escravos separavam os maridos das


mulheres e tiravam de seus pais os adolescentes em idade de trabalhar; os capitalistas .5
ultrapassaram em horror a escravidão: eles tiram de suas mães os bebês que dão aos í
estrangeiros para educar; cada dia, milhares de crianças passam por isso; deles se
encarregam instituições beneficentes, encarregados de facilitar para as mães a separa-;
ção”. (Kautsky , K. Comentários sobre o programa de Erfurt. “A destruição da ,
família na classe operária”.) '

28 ■
1
operárias, há 450 casadas na Áustria, perto de 220 na Alemanha,
aproximadamente 200 na França; de fato, os números são mais
elevados, pois as estatísticas só fazem entrar na categoria de casadas
aquelas cujo casamento foi consagrado pela lei e pela Igreja,
enquanto que, entre os proletários, as uniões livres são cada vez mais
ffeqíientes e nessas uniões, a mulher — enquanto esposa e mãe —
tem por sua conta todas as obrigações familiares habituais.
A insegurança material da família proletária leva a mulher
casada ao trabalho na fábrica, e, enquanto existir o trabalho
assalariado, enquanto o capital tiver interesse em atrair para a
produção uma mão-de-obra mais barata, não haverá nenhuma razão
para esperar uma diminuição do trabalho na fábrica entre as
operárias casadas.
Segundo testemunhos coletados pelos inspetores do trabalho da
região da Alsácia-Lorena, 82% das operárias casadas se fizeram
empregar pelas indústrias pór falta total de outro meio de subsistên­
cia; em Aix-la-Chapelle, a proporção de mulheres casadas empurra­
das para as fábricas por uma miséria sem saída era ainda mais alto:
88%; em Slesvig, atingia 96%! (13). Os senhores empresários,
frequentemente os mais encarniçados adversários da emancipação
da mulher e de sua independência, quando se trata das mulheres de
sua própria classe, reconhecem com cínica franqueza que a mulher
casada é o objeto de exploração mais caro á seu coração. Como não!
O que não suportaria a operária mãe de família, o que não está
pronta a aceitar, que condições de trabalho, por mais draconianas
que sejam e mais revoltantes, não suportaria, para não chegar em
casa com as mãos vazias, para não mais ouvir esse choro de crianças
com fome que rasga o coração!... As jovens, para os fabricantes, são
demasiado independentes, demasiado audaciosas e insolentes e,
ainda por cima, deixam-se influenciar pela propaganda das idéias
perniciosas muito mais facilmente que as mulheres casadas com
encargo de família. Nada de espàntoso, pois, em que os patrões
façam o que possam para atrair àsua empresa as operárias casadas.
E nesta situação, quando, por um lado, a necessidade econômica leva
a mulher a ganhar sua vida, e quando, por outro lado, a empresa
capitalista a acolhe de braços abertos, não nos podemos espantar se a
família proletária caminha rápida e irresistivelmente para a
desagregação completa.
Assim, por mais que a burguesia grite que os princípios
familiares são imutáveis e intangíveis, a família — a família fechada,

(13) Hirsch, Verbrechen und Prostitulion.

29
autárquica, estreitamente individualista de hoje — está condenada à
desagregação e à morte. Aos olhos do mundo inteiro, o lar se
extingue em todas as classes e camadas da população, e, obviamente, 3
nenhuma medida artificial poderá reanimar sua chama agonizante...

Os problemas da prostituição
“O casamento é um dos aspectos da vida sexual da sociedade
burguesa; o outro é a prostituição. O casamento é a ‘cara’ da
medalha, a prostituição, sua ‘coroa’ . Se o homem não se satisfaz no
casamento, procura satisfazer-se com a prostituta. Para os homens,
celibatários por vocação ou por necessidade, assim como para os
homens casados mas decepcionados em sua expectativa, é muito
mais fácil satisfazer o desejo sexual do que para as mulheres” (14).
Desprezada por todos, perseguida por todos, mas secretamente
estimulada, a prostituição, sob suas flores suntuosas mas
envenenadas, abafa tudo o que resta das virtudes familiares.
Cobrindo a sociedade com uma espécie de limo podre, ela envenena,
com seu hálito empesteado, as alegrias puras da união amorosa dos
sexos. Atualmente, a prostituição atinge proporções colossais, tais
como a humanidade jamais conheceu, mesmo nos períodos de sua
maior decadência espiritual.
Qual o peso dos “dichteriões” gregos semi-religiosos, dos
lupanares romanos, da prostituição alegre das “mulheres de
soldado”, ou séria da Idade Média, do deboche cínico, abertamente
condenado mas secretamente encorajado, da época da Reforma,
qual o peso das milhares de jovens frívolas do século XVIII diante da
venda maciça do corpo feminino, praticada hoje?
Tal como uma infecção contagiosa, a prostituição se expande dei
lugar para lugar, de país para país, de cidade em cidade, envenenan-

(14) Bebel, A. A mulher e o socialismo.

30
o a atmosfera da vida social contemporânea. Profissões inteira
d e S i a í . 1? " 38 ^ S° dedade CStã0 SUbmetÍdas à sua influência

A duplicidade hipócrita com relação à nrostitni^n à


característica da burguesia e põe em relevo o fato de que também aí
numa questão que parece tocar a humanidade inteira e la T e m ^ l’
posição classe. De fato, a prostituição, este apêndice obrigatório
da sociedade de classes contemporâneas, este corretivo daÊforma
coercitiva fora de moda da família atual, ^esa p r S r n e m e s X e
a classes despossuídas. É aí, nos porões escuros e nauTeabundos
que crescem seus funestos germes; é no corpo do proletariado aue nò
mergulha suas unhas venenosas e, apesar de que seu
afo fétido que apodrece toda a atmosfera social é antes He mQic
da para a classe operária uma calamidade. Eis porque a buraue"
sia nao sente, de nenhuma maneira, necessidade detocar o alarmf
o grosso do contingente das mulheres venaTs^^fosse S r í e d d S
classe possuidora, é de se supor aue sua a titn H e l0™e° d° p e la
questão seria muitíssimo d S n S C° m reIação a esta

O por quê da atitude ambígua dos governos de todos os naíses


ante a prostituição deve ser buscado precisamente neste nnntr,
v.s.a de claeee, do q o d e5,a q u e ^ I K
impregnada. Condenada pela religião, punida pela sociedade e
mesmo pela lei, a prostituição nem por isso é menos, não apenas
tolerada, mas regulamentada pelo Estado. Declarada necessária
para a satisfaçao das necessidades sexuais naturais dos homens a
prostitmçao, desde a formação da sociedade de classes, tornou-sê de
uma forma ou de outra, um “pára-raios contra a orgia” a garantia
dos princípios familiares e a guardiã da virtude das '“hfnesta ”
burguesas. Não estamos falando da prostituição no mundo a n t £
pré-cnstão. Mas, mesmo na Idade Média, os goíemos I s
magistrados, de um lado toleravam todos esses bordéis, casas de
mulheres, casas de encontros, etc., e, de outro, editavam uma série
ompleta de leis e de decretos de inumana crueldade submetendo a
prostituta a todo tipo de humilhação, ultrajes e torturas Os reis
gozavam dos serviços das prostitutas, admitiam-nas em suas cortes
nomeavam funcionários especiais para administrá-las, o que não os
f o r í í í 3 l humllhá-las> Persegui-las e martirizá-las de todas as
formas e às vezes, fazer morrer centenas delas, sob o golpe de um
êxtase religioso ou de um momento de arrependimento hipócrita A
burguesia e a Igreja, que também gozam amplamente dos serviços da
prostituição, e que secretamente a mantêm, fustigavam-na e
perseguiam-na. O povo, que via aí uma expressão aberta e
terrivelmente desprotegida de sua própria servidão, a odiava com

31
todas as forças de sua alma impulsiva e se esforçava por todos os
meios por destruir infelizes vítimas desta vergonhosa indústria, por
fazer-lhes “passar o gosto da coisa”, cobrindo-as de injúrias,
golpeando-as, torturando-as, matando-as, demolindo as casas de
tolerância. Mas por mais que o povo lutasse contra a venda do corpo
feminino, a sociedade de classes, que tornara inevitável a venda da
força de trabalho, fazia sem cessar novas vítimas da “paixão
pública”.
A sociedade contemporânea, ao substituir a tortura e o assassi­
nato periódicos das prostitutas pelo assassinato moral com o apoio
de leis e rigorosos regulamentos, não se diferencia da crueldade
medieval. Na época do Consulado, o Terceiro Estado, com o
racionalismo que lhe é próprio, e sua tendência a proteger seus
interesses com ajuda de um arsenal jurídico, pela primeira vez
proclamou o princípio de uma regulamentação pública da
prostituição. A vigilância médico-policial foi instituída na França
em 1800, e foi em 1802 que se distribuiu pela primeira vez a “carteira
amarela”.
A prostituição, até então apenas tolerada pelo Estado, tornou-
-se fenômeno reconhecido pelo poder e legalizado. Entretanto, a
hipocrisia costumeira não permite confessar abertamente a falência
das velhas formas familiares e o inevitável crescimento da
prostituição no terreno das relações capitalistas. Toda a legislação
russa sobre a indústria vergonhosa está permeada por esse espírito
hipócrita. No interesse de salvaguardar a família burguesa,
sementeira de herdeiros do capital, o comércio do corpo feminino é
encorajado, mas, do ponto de vista da moral oficial, é severamente
condenado e sem indulgência; e para conservar a seus próprios olhos
o prestígio de sua “elevada pureza moral”, a sociedade burguesa se
apressa em acusar as prostitutas de ultrajar sua aparente virtude e
envenena de todas as maneiras possíveis a vida já bastante difícil
destas infelizes “servas do vício”.
Quando em Moscou se analisou a possibilidade de instituir uma
comissão médico-policial, propôs-se primeiro impor aos bordéis
uma contribuição para o Estado. Mas esta idéia foi abandonada por
inconveniente, “principalmente porque a primeira cobrança de um
imposto qualquer sobre as mulheres públicas não estaria de acordo
com nossas leis e podería fazer crer que o governo se permite comer­
ciar com a obscenidade, ao mesmo tempo em que esta é severamente
punida pela lei”.
Na Alemanha, a mesma duplicidade — o proprietário que
abriga uma prostituta é perseguido pelo Código Penal. Mas “ao

32
mesmo tempo, a polícia é obrigada a tolerar que milhares de
mulheres se prostituam, devendo proteger suas atividades a partir do
momento em que estão inscritas no registro de prostitutas e se
submetem aos regulamentos, por exemplo, ao controle médico
periódico. Mas se o governo admite as prostitutas e, por isso mesmo,
incentiva sua indústria, deve admitir também que vivam em casas e
mesmo — no interesse da ordem e da saúde públicas — que existam
casas especiais onde possam exercer sua profissão. Quantas
contradições! Por um lado, o Estado reconhece oficialmente que a
prostituição é necessária; por outro lado, condena as prostitutas e o
proxenetismo. Esta atitude do Estado mostra que, para a sociedade
atual, a prostituição é uma esfinge cujo enigma não está em
condições de resolver (15).
Tal é a lógica da sociedade burguesa contemporânea.
A prostituição, enquanto fenômeno social, é o fruto natural da
sociedade de classes contemporânea. Mas isso não é tudo; os
próprios textos que regulamentam a “profissão” estão inteiramente
impregnados de um ponto de vista de classe. “Uma diferenciação de
classe da prostituição — observa o professor Elistratov —,
cuidadosamente respeitada na prática pela política de costumes,
percorre, como um fio vermelho, uma série de regulamentos” (16).
Nossa legislação só admite controle obrigatório e detenção no
hospital para as mulheres que “rodam a bolsinha”, de “má fama”, as
prostitutas de “baixo nível” (isto é, de condição social inferior). É o
que estabelece o artigo 158 dos decretos de 1890; o velho édito
senatorial de 1763 diz mais ou menos a mesma coisa: “(...)
ordenamos entretanto, para as mulheres cuja obscenidade é
manifesta, que apenas sejam examinadas e deportadas as de baixo
nível ou vagabundas”.
Nesse sentido, a ordem do ministro do Interior dirigida aos
governadores de províncias em 17 de outubro de 1844, e que serve
ainda hoje de base à fiscalização da prostituição nas províncias
russas, toma uma posição ainda mais clara. “É óbvio que só poderão
ser submetidas às medidas que os senhores considerarem oportunas,
as pessoas passíveis de o serem, por seu modo de vida, sua
‘ qualidade ’ e outras ‘ referências sociais \ O mesmo princípio faz
parte do regulamento especial de certas vilas; e, se há derrogações,
seu caráter acidental e as indulgências permitidas às mulheres de

(15) Bebel, A. A mulher e o socialismo.


(16) Prof. Elistratov, O registro das mulheres na categoria das prostitutas.

33
classe alta destacam com especial nitidez o caráter de classe destas
disposições.
O escândalo desta regulamentação está no fato de recair
inteiramente sobre as mulheres de classe pobre; diante das
prostitutas ricas, a polícia, assim como os regulamentos, não fazem
senão tirar o chapéu. “Pode-se dizer que, em toda parte, são as
prostitutas mais pobres que são fiscalizadas. Os policiais não são
suficientemente hábeis e às vezes não têm nem mesmo a possi- ",
bilidade de desmascarar uma prostituta de alto coturno.
Para isso é preciso muito tato, sob pena de vir a pagar caro. Além
disso, as prostitutas desta espécie encontram sempre defensores
prontos a livrá-las, ou pelo menos a pagar fiança por elas. Em todas
as cidades predominam as prostitutas de baixa classe. Quanto mais a
vigilância é mal feita, menos existem prostitutas nos meios burgueses
e cultos. A polícia, a fim de evitar um trabalho suplementar e
aborrecimentos, reprime as pobres e as que “rodam a bolsinha” (17).
Pelo fato de a prostituta de alto coturno, na maioria das vezes,
pertencer por suas origens à classe burguesa, o olho vigilante da
repressão médico-policial passa por ela sem vê-la, para se ocupar
com zelo redobrado das mulheres cuja posição social não inspira
confiança aos poderes instituídos. “Nos barracos onde habitam as
mulheres da classe operária, a desgraça e o vício estão tão
estreitamente mesclados que não é possível, à primeira vista,
distingui-los um do outro. Aliás, o policial não tem nem o tempo nem
o desejo de refletir — ele liquida rapidamente o assunto e... sem
apelação: a mulher que prendeu na rua, no hotel da esquina ou no
abrigo noturno é considerada prostituta; age com ela como se o
fosse, ainda que, além do fato de não ter onde morar ou traba­
lhar, nada prove que se dedica ao comércio do corpo” (18).
As regras atuais da vigilância médico-policial constituem
perigosa ameaça para todas as mulheres proletárias, especialmente
para as que vivem na periferia. Mesmo sem falar dos períodos de
desemprego agudo, quando a mulher está naturalmente, “sem razão
justificada”, na rua, a proletária se arrisca, a qualquer moment%ou
dia feriado, a ser submetida a um controle infamante. A cartgira‘cfe
identidade perdida ou qualquer outro golpe do acaso dobra a
gravidade de sua situação e põe-na freqüentenrénte'diante desta
alternativa: ou acetyar ser expulsa e envèkda spbjjpÉSOltaà sua cidade

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(17) A prostituição nas cidades, citado pelo prof, Elistratov, op. cit.
(18) A prostituição vigiada, citado pelo prof, Elistratov, op. cit.

34
natal, ou se submeter ao controle médico-policial (e, neste caso, mas
apen as n este caso, a comissão médica se encarrega de fazê-la tirar um
novo documento). Claro que esta situação não existe apenas na
Rússia, mas em todos os países burgueses. “Não está submetida a
controle — diz o Dr. Blachko— quase toda a prostituição elegante, o
que chamamos de “moças-programa”, que constituem para a polícia
uma espécie de invulneráveis. A massa submetida a controle é quase
sempre formada pela camada mais infeliz e mais deserdada. Dócil e
estupidamente, a cada ano, e durante décadas, estas filhas do destino
fazem seu passeio habitual aos centros de exames” ( 19).
A sociedade de classes atual encontrou até a forma de dividir a
prostituição, desprezada por todo o mundo, em duas classes. A
“qualidade superior”, a das prostitutas ricas, é absorvida pela classe
burguesa, a quem serve, com quem vive numa certa intimidade e com
quem, até um certo ponto, divide os privilégios. A “qualidade
inferior” — carne da carne da classe operária ou do campesinato
pobre — bebe até a última gota o cálice da servidão, da humilhação e
do desgosto...
Fica claro que o problema da abolição da prostituição, o
problema do saneamento das relações entre os sexos, é o próprio
problema da classe operária, problema ligado da maneira mais
estreita e mais indissolúvel às condições de trabalho e de produção.
Se, para as outras classes e camadas da população, a solução das
questões do casamento e, pois, da prostituição, tem sobretudo um
interesse psicológico e moral, para o proletariado, é uma das
questões fundamentais da vida, um dos elementos determinantes do
futuro. A luta contra a prostituição e as formas monstruosas da
família atual, em outras palavras, a luta contra as instituições de
classe do mundo burguês contemporâneo, decorre diretamente da
luta geral do proletariado e constitui parte integrante desta luta.
(...) Não, se efetivamente o movimento abolicionista triunfasse
entre nós, se o exército de prostitutas começasse a crescer mais
lentamente, as feministas seriam menos responsáveis do que
qualquer outra por esses felizes acontecimentos. Não são às
sofisticadas resoluções das feministas que a mulher deverá ser grata,
mas ao partido operário, que luta pela mudança das relações
econômicas e sociais existentes. Pode-se afirmar com certeza que os
quadros que engendram como uma necessidade a dependência
material da prostituição reduzir-se-ão a cada nova conquista da
classe operária no campo das relações econômicas e jurídicas.

( 19) Blachko , A Prostituição.

35
)x_A união livre
A família, a família burguesa contemporânea, coin suas
tradições morais e bases civis, entrou em crise de longa duração. Os
casamentos são cada vez mais precários e a prostituição toma
proporções inquietantes. Este fato é reconhecido igualmente pelas
feministas burguesas e pelas pessoas que partilham as concepções do
proletariado. As dificuldades da vida conjugal hoje abafam, em
maior ou menor medida, as mulheres de todas as camadas da
população — este é também um fenômeno indiscutível. É necessário,
portanto, examinar se existe uma coincidência de tendências entre as
feministas e as trabalhadoras nos métodos de estudo e de solução da
questão familiar, e graças ao esforço de quem, feministas ou
proletariado inteiro, a mulher poderá ser liberada do pesado jugo
familiar.
Vejamos primeiro o que as feministas querem obter no domínio
das relações familiares e conjugais.
As feministas mais à direita, as que estão próximas, por sua
situação social, da alta burguesia, dão prioridade a duas questões: 1.
A substituição do casamento religioso pelo casamento civil, o que ao
mesmo tempo facilitaria o divórcio; 2. A possibilidade de separação
dos bens dos cônjuges nos países em que ainda não existe essa
separação.
Essas duas reivindicações apresentam, sem dúvida nenhuma,
uma importância muito grande para as mulheres da média e da alta
burguesia, para as representantes do capital sob qualquer de suas
formas; seria para elas a melhor maneira de defender seus interesses
materiais, de um lado protegendo, através do casamento legal, os
bens associados do pai e da mãe para seus filhos, e de oútro,
preservando sua total independência econômica com relação ao
marido.
Enquanto representantes da alta burguesia, era evidentemente
neste espírito que nossas progressistas faziam questão de elaborar
suas reivindicações na questão familiar. O programa do partido
feminino progressista declara: “No campo do direito familiar, é
preciso instituir o casamento por ato cartorial, obrigatório pàra
todos. A consagração religiosa do matrimônio deve ser deixada à
livre escolha de cada um. O divórcio será facilitado e suas formas
simplificadas. Os pais devem gozar de igual poder sobre seus filhos.
A mulher será em tudo igual ao homem, terá direito à metade das
economias da família e a legalização deverá torná-la
economicamente independente de seu marido se, por razões

36
familiares, nao tem condições de ganhar sua vida. A legislação deve
instaurar igualmente uma ampla proteção aos filhos, em particular
aos que nascem fora do casamento”.
Partindo do ponto de vista de que a estrutura econômica e
social existente é imutável, as progressistas desejam apenas
introduzir algumas correções nas relações conjugais e familiares
atuais, correções que não sapam absolutamente as raízes da família
burguesa. O corretivo assim introduzido pretende não apenas
-melhorar as relações recíprocas entre as pessoas unidas pelos laços
legais do matrimônio, mas também tornar mais sólida e mais viável a
forma atual da família. O casamento e a família são instituições não
menos sagradas e intangíveis que a propriedade privada. E as
feministas de direita de todos os países arvoram ardentemente sua
defesa, ao quererem desembaraçar a família e o casamento dos
elementos que estão em contradição com o princípio da igualdade
dos sexos e prejudicam os interesses materiais das mulheres.
As feministas de esquerda encaram o problema de outra
maneira. Não podemos esquecer que elas provêm principalmente
dos meios cultos, onde as mulheres têm uma atividade independente,
que não possuem fortuma herdada ou adquirida de outra forma, mas
que fizeram sua independência na vida com o salário que ganham.
Para estas mulheres, o problema familiar perde ser caráter terreno e
do campo jundico-material, passa para o campo moral por
excelência; para elas, a salvaguarda da instituição do casamento
como meio de garantir a transmissão aos filhos dos bens dos pais não
representa mais o papel que tem entre as mulheres da alta burguesia.
O casamento, mesmo reformado, mesmo com um divórcio mais
fácil, não tem para elas nenhum atrativo. O casamento legalizado é
antes de tudo, para a mulher, o meio de encontrar alguém definitivo
para alimentá-la e mantê-la, na pessoa do legítimo esposo. Vias a
intelectual independente não tem necessidade do casamento
enquanto transação econômica; mesmo sem marido é
suficientemente independente em termos materiais, enquanto que
qualquer regularização e legalizaçao de uma ligação só pode reduzir
esta independência e restringir esta liberdade da qual a burguesia
emancipada habitualmente se orgulha. Daí porque a palavra-de-
-ordem das feministas de esquerda na questão familiar não é uma
reforma da legislação do matrimônio, mas o triunfo do princípio da
“união livre”, do “amor livre”. Esta palavra-de-ordem, lançada pela
primeira vez, no começo do século XIX, pelas socialistas, permanece
ainda hoje o lema favorito das feministas mais emancipadas; são
numerosas as que fazem do “amor livre” o centro da questão
feminina. Declarando ousadamente guerra à hipocrisia da dupla

37
moral, travaram com intrepidez o combate contra as massas de
filisteus burgueses cheios de raiva e cuspindo veneno. Abaixo a
regularização oficial das uniões entre namorados, abaixo as
cerimônias e as formalidades! O consentimento livre, tal a panacéia
contra todos os males que esmagam a mulher; o único laço que
consagra a união é o amor. Poder seguir a tendência de seu coração
sem se preocupar com os preconceitos burgueses, tal é o caminho
mais seguro que levará a mulher a sua libertação moral, tal é o único
meio de resolver a questão familiar. Assim raciocinam as burguesas
mais progressistas de todos os países.
Seus passos são seguidos, senão teoricamente, pelo menos na
prática, por nossas igualitaristas mais emancipadas. Mas é curioso
notar que, nem na plataforma da “União pela igualdade dos
direitos”, nem em seus estatutos, nossas igualitaristas sequer
mencionam uma reforma nas relações conjugais. A União recruta
seus, membros principalmente entre as mulheres com trabalho
independente e certa autonomia material, e esta é talvez a razão pela
qual a questão do casamento e da regulamentação das relações
conjugais e familiares não têm para as igualitaristas esta importância
primordial que adquire para os membros do partido progressista.
Em todo caso, é um fato que a União não atribui nenhuma atenção à
questão do casamento. Nossas intelectuais russas, autônomas e
independentes, já se acostumaram, a partir dos anos 60, a resolver o
problema do casamento “cada um por si”, e no plano prático,
enquanto suas irmãs da Europa ocidental se ocupam de sua solução
teórica. Em nenhuma parte do mundo, nos círculos feministas,
discute-se tão pouco quanto na Rússia os problemas do casamento e
da família, mas também em nenhuma parte do mundo o princípio da
“união livre” penetrou tanto nos hábitos. Este fenômeno foi sem
dúvida beneficiado pelo crescimento espantosamente rápido, no seio
do proletariado intelectual reformado, com seu eterno sentimento de
insegurança e de incerteza diante do amanhã, por um nomadismo
forçado e pelo hábito adquirido por homens e mulheres de contarem
apenas consigo mesmos e assumirem sem ajuda externa os encargos
da vida. De onde uma psicologia original, que se traduz pela recusa
em “construir um lar”, pelo hábito da liberdade e da independência,
pela incapacidade de suportar qualquer cadeia, seja ela qual for. Esta
relativa liberdade de costumes, esse desprezo consciente pelas
tradições e preconceitos burgueses, esse costume da união fora do
casamento, adotado pelas camadas intelectuais, estão em completa
discordância com a situação de dependência e de opressão que vive a
mulher nos meios camponeses e pequenos-burgueses, onde os velhos
princípios estão ainda sólidos, onde a mulher ainda não foi envolvida

38
pela corrente mundial da produção capitalista e arrastada pela vaga
do trabalho e da atividade humana. Mas o capitalismo ataca
sorrateiramente essas fortalezas inexpugnáveis das boas e velhas
tradições russas e pouco a pouco vence costumes, petrificados em sua
imutabilidade, pelos quais as famílias dos camponeses, dos
comerciantes e dos pequenos-burgueses se isolam do mundo.
Que curiosa e simpática imagem de novos tipos de mulheres —
estas mulheres que ousaram — nos fornece a literatura estrangeira
dos últimos vinte anos! É a heroína séria de Grent-Aliena, adversária
do princípio do casamento legalizado, a alma agitada de Renata
Fuchs (Wassermann), a audácia juvenil de Dora Seak (Mackay), a
mulher médica Lansovelo ( P rincesas d e ciência), orgulhosa de sua
independência, plenamente consciente do grande valor de sua rica
individualidade, retrato encantador, em seu gênero, de mulher
celibatária. Nossa literatura russa revelou muito menos belos tipos
de mulheres e jovens “que ousaram”, porque toda a atmosfera de
provas própria a nossa in teligen tsia deixou pouco espaço a
semelhantes “audácias”, e aquilo pelo que luta ainda a feminista
emancipada francesa ou alemã entrou há anos já nos hábitos da
intelectual russa independente. Mas estas conquistas particulares de
uma camada muito pequena da população russa são uma gota
d’água perto do oceano de provas e de desgostos familiares em que se
afogam a cada dia milhões de mulheres das outras camadas da
sociedade.
Também a atitude de indiferença dos membros da “União para
a igualdade de direitos”, que pretende desempenhar um papel
dirigente, “acima das classes”, no movimento feminino na Rússia,
com relação à. reforma das relações conjugais e familiares, é bem
característica. Esta questão, que toca de tão perto e tão
dolòrosamente cada mulher do proletariado, sobretudo entre nós, na
Rússia, recebe apenas o silêncio, como algo que não merecesse
nenhuma atenção especial por parte destas militantes políticas sérias
como gostam de ser tratadas nossas igualitaristas. Reclamar
reformas no campo da vida conjugal e da maternidade constitui uma
tarefa desprezível para esta “organização política” que a União
pretende ser. Entretanto, se a reorganização da família não faz parte
das reivindicações imediatas da União, nossas igualitaristas “de
esquerda” devem ter, apesar de tudo, um ideal comum no que diz
respeito às relações conjugais. Neste caso, qual é ele?
A luta heróica de algumas jovens da burguesia, que lançaram a
luva na face da sociedade para ter o direito de “ousar amar” sem
condenações nem obstáculos, deve servir de exemplo para todas as
mulheres que enlanguecem sob as cadeias familiares — tal a idéia que

39
ostentam as feministas estrangeiras mais emancipadas; e tal é
também a opinião de nossas igualitaristas mais avançadas. Em
outras palavras, no espírito das feministas, a questão do casamento
será resolvida independentemente das condições ambientais,
independentemente de uma mudança da estrutura econômica da
sociedade, simplesmente graças a heróicos esforços individuais e
isolados. Basta que a mulher “ouse” e o problema do casamento se
resolverá por si mesmo.
Mas as mulheres menos heróicas balançam a cabeça com ar de
dúvida: “Para vocês é fácil, vocês, as heroínas de romance que um
autor previdente dotou de um bom capitalzinho, de amigos
desinteressados e de um encanto extraordinário que leva todos a lhes
oferecer seus serviços, para vocês é fácil desafiar o mundo. Mas, o
que podem fazer as que não têm capital, salário suficiente, amigos,
encanto extraordinário?” E o problema da maternidade, que se
ergue diante do olhar ansioso da mulher com sede de liberdade? O
“amor livre” será possível, será realizável, não como um fato isolado
e excepcional, mas como um fato normal, na estrutura econômica
atual da sociedade, como uma norma preponderante e reconhecida
por todos? Será possível ignorar o elemento determinante da forma
atual do casamento e da família, ou seja, a propriedade privada?
Sérá possível, neste mundo individualista, afastar, sem prejuízo dos
interesses da mulher, toda regulamentação do casamento, sua única
garantia de que não arcará com todo o peso da maternidade? Será
que não vai acontecer com a mulher o que aconteceu com o operário?
A supressão dos entraves graças aos regulamentos corporativos,
sem que novas obrigações fossem instituídas para os patrões,
abandonou os trabalhadores ao poder sem controle do capital, e a
sedutora palavra-de-ordem “livre associação do capital e do
trabalho” transformou-se em meio de desavergonhada exploração
do trabalho pelo capital. Na sociedade de classes atual, tudo fazer
para realizar o “amor livre” em vez de tentar libertar a mulher do
antigo jugo familiar, não significará fazê-lo arcar com um novo peso:
a responsabilidade dos filhos? “Para a mulher — diz Bebel, com
razão — o consentimento privado tem tão pouco valor como o fato
de poder, em todos os ramos do trabalho acessíveis a suas forças e a
suas capacidades; obter seus meios de subsistência. Nos dois casos
permanece oprimida, uma vez que nem a liberdade econômica nem a
possibilidade de se casar e de se divorciar mais facilmente podem
protegê-la contra a opressão e a exploração econômicas e sociais.
Enquanto a situação social da mulher (e precisamente sua situação
econômica) não for totalmente independente e igual à do homem,
enquanto os direitos políticos dos dois sexos não forem iguais, o

40
caráter privado do casamento ser-lhe-á tão inútil quanto a mais bela
das constituições para um povo cujos direitos e liberdade dependem
da boa vontade do governo e das classes dominantes, que detêm não
apenas a riqueza, mas também o poder material e espiritual” (20).
Só uma série de reformas radicais no campodas relações sociais,
transferindo-se as obrigações da família para a sociedade e o Estado,
criaria um terreno favorável, no qual o princípio do “amor livre”
podería em certa medida realizar-se. Mas será possível considerar
seriamente o fato de que o Estado de classe atual, por mais
“democrático” que seja, esteja pronto a assumir todas as obrigações
diante da mãe, e com mais razão da infância, obrigações que
atualmente incumbem à família, enquanto célula individualista? Só
uma transformação radical das relações de produção pode criar as
condições sociais indispensáveis para evitar à mulher os aspectos
negativos da fórmula elástica do “amor livre”. Com efeito, não são
transparentes a confusão e a desorganização de costumes sexuais
que, nas condições atuais, se escondem atrás desta fórmula? Vejam
estes senhores, empresários e administradores de sociedades
industriais, aproveitarem-se à sua maneira do “amor livre”,
obrigando as operárias, funcionárias e empregadas, a se submeter
a seus caprichos sexuais, sob pena de dispensa. Estes patrões, que
depravam sua empregada para mandá-la embora quando está
grávida, já não estavam aplicando a fórmula do “amor livre”?
“Mas não é desta liberdade que estamos falando” — dirão as
campeãs da união livre. Ao contrário, exigimos a instauração de uma
‘ moral única’, igualmente obrigatória para o homem e para a
mulher, insurgimo-nos contra o desregramento dos costumes
sexuais de hoje, proclamamos que só é pura a união livre fundada em
um amor verdadeiro”. Mas não pensam vocês caras amigas, que seu
ideal de “união livre”, posto em prática no contexto econômico e
social atual, pode dar resultados muito próximos da fórmula
desnaturada de liberdade sexual? O princípio do “amor livre” só
poderá entrar em vigor sem trazer novos sofrimentos à mulher,
quando esta estiver livre das cadeias materiais que a tornam hoje
duplamente dependente: seu marido e o capital. O acesso das
mulheres a um trabalho independente e à autonomia econômica fez
surgir uma certa possibilidade de “amor livre”, sobretudo para as
intelectuais que exercem profissões melhor remuneradas. Mas a
dependência da mulher com relação ao capital permanece, e esta
dependência sé agrava à medida que cresce o número de mulheres

(20) Bebel , A. A situação da mulher.

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proletárias levadas a vender sua força de trabalho. Poderá a palavra-
-de-ordem do “amor livre” melhorar a sorte dessas mulheres que
ganham apenas o suficiente para não morrer de fome? E depois, o
“amor livre” já se pratica em larga escala na classe operária, de tal
forma que a burguesia mais de uma vez ergueu clamores contra a
“depravação” e a “imoralidade” do proletariado. Mas notem:
quando as feministas, com muitas efusões, falam de novas formas de
união fora do casamento para as burguesas emancipadas, chamam-
-nas de “amor livre”; mas quando se trata da classe operária, estas
mesmas uniões fora do casamento levam a pecha de “relações sexuais
desregradas”. É bem característico.
Para a proletária, entretanto, levando em conta as condições
atuais, a vida em comum continua tão penosa, por suas
conseqiiencias, quer seja livre ou consagrada pela Igreja. Para a
esposa e a mãe proletária, o cerne do problema conjugal e familiar
consiste, não em seus aspectos externos, rituais ou civis, mas nas
condições econômicas e sociais que determinam as complexas
obrigações familiares a que deve corresponder a mulher da classe
operária. Evidentemente, para ela também, é importante saber se seu
marido pode dispor do salário que ela ganha, se ele tem legalmente o
direito de obrigá-la a viver com ele mesmo se ela já não o deseja, se
pode ficar com os filhos contra sua vontade, etc. Mas não são estes
parágrafos do Código Civil que determinam a real situação da
mulher na família, e não são eles que resolverão o difícil problema
familiar. Seja a união legalizada pelo juiz, consagrada pela Igreja ou
construída sobre o princípio do livre consentimento, a questão do
casamento perdería sua acuidade para a maioria das mulheres se, e
somente se, a sociedade as desobrigasse das mesquinhas
preocupações com o trabalho doméstico — inevitáveis hoje neste
sistema de economias domésticas individuais e dispersas —-,
assumisse o encargo da infância, estivesse em condições de proteger
a maternidade e dar uma mãe a cada filho, pelo menos nos primeiros
meses de vida.

As feministas lutam contra um fetiche: o casamento legalizado e


consagrado pela Igreja; a proletária vai às causas que determinaram
a forma atual do casamento e da família e, quando tenta mudar
radicalmente essas condições, ela sabe que está favorecendo, por isso
mesmo, uma reforma das relações entre os sexos. Aí está a diferença
radical entre as maneiras burguesas e proletária de abordar o
complexo problema da família.
Acreditando ingenuamente na possibilidade de criar novas
formas de relações conjugais e familiares no sombrio pano de fundo

42
da sociedade de classes contemporânea, as feministas e os
reformadores sociais do campo da burguesia buscam ansiosamerite
estas novas formas. Já que a própria vida ainda não as suscitou, é
preciso inventá-las a qualquer preço. Deve haver, afinal de contas,
uma forma perfeita de relações entre os sexos que, mesmo na
sociedade atual, resolva o difícil problema da família. E os ideólogos
do mundo burguês — publicitários, escritores,' mulheres
progressistas, partidários da emancipação — se encarregam de
propor, cada um por sua vez, sua panacéia familiar, sua nova
fórmula de casamento.
Casamento — dizem uns — consiste em seguir livremente e sem
entraves a queda da natureza humana, que abarca o corpo e a alma; é
a união de dois indivíduos, igualmente livres e gozando os mesmos
direitos, não tendo nenhuma obrigação um em relação ao outro,
nenhuma responsabilidade mútua; é uma união que pode se
prolongar durante anos, mas pode também durar apenas um
momento breve, mas intenso, que chega ao êxtase. O essencial é que
nenhum laço, nenhuma cadeia, excluídas as emoções pessoais, pese
sobre os dois membros do casal.

O casamento — dizem outros — mesmo livre, mesmo


desembaraçado de todo laço exterior, deve permanecer a base da
célula familiar fechada. Reanimar o lar que se extingue, eis o objetivo
da nova, livre, ideal união, fundada não no cálculo secamente
material, não na coabitação superficial e ritual de duas indivi­
dualidades estranhas, mas em harmoniosa comunhão de duas
almas e de dois corpos, união amistosa no plano espiritual e amoroso
no plano físico. A harmonia dos sentimentos físicos e morais é a base
deste casamento; quanto a seu objetivo, consiste em gerar uma
descendência sadia, em todos os sentidos do termo.
O casamento —r diz o velho Bjornson (e, seguindo-o, uma parte
das feministas), este severo crítico da licença sexual de hoje, este
reformador ingênuo da moral sexual — o casamento é uma
instituição sagrada, à qual não se deve e não se pode aspirar se não se
é puro e sem pecado. Viver na continência absoluta antes do
casamento, permanecer virgem até os 25 anos para os homens e até
os 20 anos para as mulheres, observar em seguida estrita fidelidade
conjugal, a monogamia no exato sentido do termo, sem nenhuma
exceção hem indulgência. Assim Bjornson resolve o problema da
família, assim espera de um só golpe trazer luz e alegria à união
conjugal e acabar para sempre com a prostituição. Quanto ao mundo
da exploração, este mundo cheio de injustiça, onde reina uma
estreita moral de classe e o poder não partilhado do capital,

43
permanece são e salvo. A monogamia em nossa sociedade! A
abolição da prostituição! Ingênua crença na possibilidade de inverter
a linha da moral sexual capitalista.
Que imagem utópica transmitem estas fórmulas de casamento!
Como parecem pálidos paliativos, em nossa atual estrutura familiar!
“União livre”, “a mor livre”! Para que essas fórmulas possam nascer,
é preciso antes de mais nada proceder a uma reforma radical de todas
as relações sociais entre os homens; mais ainda, é preciso que as
normas da moral sexual, e com elas toda a psicologia humana,
sofram uma evolução profunda, fundamental. Estará a psicologia do
homem de hoje realmente disposta a admitir o amor livre? E o ciúme,
que corrói até os espíritos mais elevados? E o sentimento do direito
de propriedade, tão profundamente arraigado, não só no corpo, mas
também no espírito do companheiro? E a incapacidade de se inclinar
com deferência diante de uma manifestação da individualidade do
outro, o hábito, seja de dominar o seu amado, seja de fazer dele o
escravo? E este sentimento tão amargo, tão profundamente amargo,
de abandono e de infinita solidão que nos domina quando o ser
amado nos deixa e já não nos ama? Para quem ou para que se
voltará o homem só, o individualista, quando estiver no auge destas
provas? A “coletividade”, com suas alegrias, dores e aspirações, será,
rio melhor dos casos, um “objetivo” a que dedicar suas forças morais
e intelectuais. Mas será que o homem de hoje é capaz de comungar
com essa coletividade a ponto de senti-la realizar-se nele e ele, nela?
Estará a vida da coletividade em condições de substituir suas
pequenas alegrias pessoais? Sem uma alma irmã, “única”, mesmo um
socialista, mesmo um coletivista, fica infinitamente só em nosso
mundo de antagonismos. E é só na classe operária que aparece o
pálido clarão precursor de novas relações entre homens, mais
unidos, com um espírito mais social.
O problema da família é complexo e múltiplo, como a própria
vida, e não vai ser nossa organização social que permitirá resolvê-
-lo... (...)

Mas independentemente das condições puramente objetivas,


será que não existem, na psicologia do proletariado, e especialmente
de sua fração feminina, elementos que se opõem a uma restauração
dos antigos princípios familiares? Insensível, mas inelutavelmente,
pelo próprio fato de se ter inserido no processo da produção social, a
mulher emancipa-se e se desliga do lar, e já não é capaz de, um dia,
voltar as costas ao caminho percorrido para sua libertação; e,
evidentemente, já não quer o pesado fardo dos trabalhos domésticos.
Vejam com que rapidez se transforma o psiquismo da operária, da

44
profissional que participa da produção social e, portanto, da luta de
classes! Vemos desenvolverem-se nela traços muito preciosos, que
antes absolutamente não lhe pertenciam: o espírito independente, o
amor pela liberdade, a capacidade de se unir à coletividade. A
operária que, no decorrer de muitas gerações, passou pela dura
escola do trabalho e da luta das proletárias, a mulher temperada na
forja da fábrica, que se habituou a ser considerada primeiro uma
camarada e um ser humano igual aos outros e só depois uma
representante de seu sexo, já não aceitará o jugo familiar, ainda que
embelezado por uma série de reformas jurídicas e sociais e, menos
ainda, voltará a ser uma mulher dependente, mantida pelo marido ou
amante.
Esquecemos depressa demais este importante elemento quando
estudamos a questão do casamento e da família futuros. Mesmo as
militantes socialistas não consideram suficientemente a mudança da
psicologia feminina sob a influência das mudanças nas relações
sociais. Na 4.a Conferência das Mulheres Social-democratas da
Alemanha, no momento da discussão sobre o problema da
maternidade, ainda se ouviram vozes — isoladas, é verdade —
defender a família e os deveres domésticos da mulher. Assim, a
delegada de Magdebourg, ao discutir a resolução sobre a proteção à
gravidez e ao parto das mulheres da classe operária, declarou que,
para proteger a mulher contra os perigos que ameaçam sua saúde e
sua vida, e as de seu filho, só havia uma medida radical a tomar: obter
por uma luta comum um tal nível para os salários masculinos que as
mulheres já não teriam necessidade de trabalhar fora de casa. Mas a
Conferência não compartilhou o ponto de vista da delegada de
Magdebourg, e a resolução adotada defende a opinião exatamente
oposta.
As condições da produção expulsaram a mulher de sua casa,
fizeram-na esquecer suas obrigações domésticas e maternais; mas, ao
mesmo tempo, forjaram um ser humano. “Os operários — diz
Lafargue — foram os primeiros a tirar consequências lógicas da
participação das mulheres na produção social: à mulher do lar que
era o ideal do artesão, substituíram a mulher companheira de luta
pelo aumento dos salários e pela libertação do trabalho; só a burgue­
sia ainda não compreendeu que seu ideal estava de há muito
ultrapassado e que era preciso renová-lo para que estivesse de acordo
com as condições atuais do meio social” (21). Seja qual for o despeito
que sinta o partidário dos princípios familiares e da submissão da

(21) Lafargue, Paul. A questão feminina.

45
mulher, seja qual for o esforço que faça para trazè-la de volta ao lar e
às suas “alegrias”, a mulher que experimentou alegrias mais vastas,
que tomou consciência de si mesma como ser humano independente
e preciosa companheira de trabàlho, já não vende sua personalidade
liberada pelo prato de lentilhas, a concha fechada do recôndito do
lar... Por mais que digam os partidários dos princípios familiares
atuais, a tendência da evolução social mostra que a família fechada,
tal como existe atualmente, vive seus últimos dias e está irremedia­
velmente condenada a perecer com a sociedade de classes
antagônicas.
Examinamos às fórmulas de casamento mais características das
feministas. Qual será, dentre elas, a mais aceitável? Qual dentreelas
se aproximará mais do ideal das futuras relações entre os sexos que
está em vias de nascer no seio das massas operárias? E, em geral, será
o caso de comparar tal ou qual fórmula de casamento, de comparar
as diferentes normas de relações familiares? Será que a solução do
problema da família consiste, efetivamente, em apenas im aginar a
melhor forma possível de união Conjugal?
Quem conhece as teses fundamentais do materialismo histórico
sabe que os homens são impotentes para modificar a seu bel prazer
as formas de sua vida social já que essas formas decorrem
logicamente das relações de produção econômicas existentes. Tudo o
que se pode fazer é sentir a tendência da evolução que já se
desenvolve no organismo social, e acelerar o ritmo desse processo de
transformação, que, geralmente, não se faz sem dor. Quem quiser
imaginar como serão as relações conjugais possíveis no futuro deve,
antes de mais nada, seguir atentamente a evolução dos princípios
familiares atuais. O capitalismo destrói a família, mas o processo de
socialização da produção que está em curso contribuirá para a
criação de novas formas de vida social comum. Lenta, mas
irrevogavelmente, as obrigações familiares passam a ser, uma depois
da outra, encargos da sociedade e do Estado. Funções familiares qüe,
ainda há pouco, pareciam ser atributos eternos da célula familiar,
tornaram-se tarefas permanentes desta ou daquela coletividade. As
explorações individuais isoladas, fechadas em si mesmas, dão lugar a
vastas empresas cooperativas, nas quais, além de luz e água comuns
para dezenas de famílias, existem também cozinha e refeitório
comunitários (22). Creches, jardins-da-infância e berçários liberam a
(22) “Nos países em que a produção capitalista está mais desenvolvida —
Inglaterra e América do Norte — constata-se que numerosas famílias de modestos
recursos já preferem as boardinghouses à economia doméstica individual. São os
germes de um movimento em favor das cooperativas familiares, que se esforçam por
resolver o problema em grande escala” (Schlesinger-E kstein. A Mulher no começo
do século XX).

46
mãe trabalhadora da tarefa insuperável de garantir à nóva geração
uma educação sadia e racional. Na atmosfera risonha, higiênica e
moralmente sã das creches e berçários, sob a direção de educadoras e
de pedagogas profissionais, as crianças ficam protegidas do ar
viciado das habitações operárias, deixam de comer mingau de
farinha em vez de pão, estão a salvo do frio, da fome, das pancadas e
outros atributos inevitáveis desta “educação” atual chamada
eufemisticamente de “educação sob o olhar atento da mãe”. Claro
que, atualmente, todas essas creches, escolas maternais e escolas
primárias estão nas çnãos das “benfeitoras da alta” e não da classe
da população que realmente atendem, estão cheias de imperfeições e
de insuficiências; assim, só podemos considerá-las como os pálidos
protótipos das formas de comunidade que não apenas existirão no
futuro, mas às quais a humanidade nova certamente saberá dar um
conteúdo novo, insuflar um espírito novo. Nestas sementeiras da
geração que chega serão inoculados, nos jovens espíritos que estão se
formando, uma preciosa disposição à sociabilidade e à
solidariedade, o hábito de ver o mundo através do prisma da
coletividade e não através de seu “eu”, isolado e egoísta.
As ternas mamães burguesas levantam as mãos ao céu com
horror ao lhes mostrarmos que a própria vida, passo a passo, lhes
tira das mãos a educação dos filhos para confiá-la a especialistas
mais qualificados. “Pará costurar sapatos é preciso aprender,
enquanto que, para guiar e formar objetos tão delicados quanto os
espíritos infantis, basta o instinto materno?”clama Clara Zetkin.
Quantas pessoas foram prejudicadas por esse instinto cego, que se
acredita capaz de substituir conhecimentos científicos e preparação
especializada. Que as mães burguesas, tão boas, em lugar de
aparentar, hipocritamente, espantar o espectro da educação
socializada, procurem responder a esta pergunta: realmente, sera
apenas sobre seus ombros que recai a responsabilidade da educação
de seus filhos? E as governantas, instrutoras, empregadas, babás e até
amas-de-leite? É com a maior facilidade que as burguesas se livram
de todos os aborrecidos cuidados que as crianças exigem às custas de
mulheres da outra classe, da classe “inferior”. Confiam até sua
boquinha ávida ao seio de uma estranha — de uma proletária. A
educação socializada, como se trata da sociedade futura, é um
perpétuo espantalho para as burguesas. Mas será que ela já não
existe, de forma truncada e alterada?
Mas as burguesas não querem reconhecer a insignificância de
seu papel na família atual; sabem muito bem o vazio que se esconde
atrás das grandes frases como “deveres das mães” e, se confessassem
francamente, não restaria nenhuma justificativa moral para a sua
vida de “mulheres teúdas e manteúdas” por seu marido legítimo, vida
que hoje levam sem remorsos, orgulhosas de si próprias, as matronas
burguesas...
A passagem da função educadora da família para a sociedade
fará desaparecer os últimos laços que uniam a célula familiar
fechada; a velha família burguesa vai se desagregar ainda mais
rapidamente, e na atmosfera ambiente veremos se desenhar, com
nitidez cada vez maior, as silhuetas ainda pálidas das futuras relações
conjugais. E como serão essas silhuetas ainda enevoadas pelas
influências atuais?
Será necessário repetir que a forma constrangedora atual do
casamento será substituída pela união livre de indivíduos livres? O
ideal do amor livre, que ocorre à imaginação sedenta das mulheres
que lutam por sua emancipação, está sem dúvida de acordo com a
norma de união entre os sexos a ser instaurada pela sociedade
coletivista. As influências sociais são tão complexas, sua ação é tão
diversificada, que atualmente é impossível imaginar com precisão
qual a fôrma que moldará, depois de uma mudança radical em toda a
estrutura da sociedade, as relações conjugais do futuro. Mas a lenta
evolução das relações sexuais que se processa sob nossos olhos
demonstra claramente que o casamento ritual e a família fechada e
constrangedora estão condenadas ao desaparecimento.
As feministas vão cantar vitória: finalmente não pudemos
desprezar seu ideal: o amor livre, a união livre! Mas será realmente o
ideal “delas”? Será que não nasceu e amadureceu no próprio seio da
classe operária, sob a influência da “ triste necessidade”, sob a
pressão de condições econômicas todo-poderosas? Lenta mas
constantemente, sem barulho nem frases, vemos acontecer dia após
dia, no proletariado, uma evolução das normas familiares, e se
desembaraçar o caminho diante do único princípio viável: a união
livre.
Por necessidade, ô proletário não tem possibilidade de se casar
cedo: seu salário não basta nem à sua subsistência, como poderia
pensar em fundar família? Mas o coração não espera e manifesta
suas exigências independentemente do nível do salário. O resultado é
a união livre, união cujas consequências, nas condições atuais, caem
todas sobre a mulher, mas que dá ao menos à proletária uma
satisfação: o homem não pode exercer sobre ela o papel de “amo e
senhor”. E a proletária, acostumada a sua independência e a sua
relativa liberdade, aceita cada vez menos a servidão familiar, e se
ainda se importa com o casamento é apenas como meio de fazer o
homem suportar uma parte das despesas com a manutenção do filho.

48
À medida que se estende o modo de vida comunitário em bases
cooperativas, as funções econômicas da família perdem cada vez
mais seu valor, o que favorece a passagem do casamento a uma união
puramente moral. Além disso, sob a influência das transformações
nas condições econômicas, a psicologia da classe operária também se
transforma, radicalmente. Se existe uma classe capaz, na estrutura
econômica atual, de vislumbrar as normas ainda mal visíveis da
futura moral sexual, é sem dúvida, antes de qualquer outra, o
proletariado.
Apesar do veneno difundido por uma prostituição amplamente
disseminada, as relações entre os sexos no meio proletário estão
muito mais próximas da psicologia da humanidade futura que se
delineia diante de nós. A “dupla moral”, que envenena a vida de
tantas mulheres, não desempenha nesse caso, absolutamente, o papel
decisivo que tem nos meios burgueses e não desfigura tantas jovens
existências. Será verdadeiramente a mãe solteira este ser
desprezível e objeto de reprovação que ainda é aos olhos da hipócrita
moralidade burguesa? A virgindade da adolescente — qualidade
indispensável para o marido-proprietário, garantia de que a mulher
não introduzirá na família “um elemento de sangue estranho” —
perde seu valor na classe operária, onde as questões de sucessão nada
significam, e a jovem “com um passado” se casa tão facilmente
quanto a jovem “sem passado”, desde que não carregue a mancha da
prostituição legalizada. “Na classe operária — nota o Dr. Blachko —
a maioria dos homens e mulheres entre 18 e 25 anos, mantém relações
sexuais sem se preocuparem com o casamento. Esta classe nunca
considerou o amor livre como um pecado grave. No meio proletário,
onde a herança é, no mais das vezes, inexistente, a noção de herdeiro
legítimo é inútil; quando as pessoas se unem, não por interesses
financeiros ou de outro tipo, mas por simples inclinação do coração,
é natural que se preocupem muito menos com a “validade” de sua
união. E se, no momento atual, não existisse a forma simplificada do
casamento civil, por um lado e, de outro, a difícil situação em que a
sociedade coloca as mães e os filhos ilegítimos, quem sabe, talvez,
nessas camadas sociais, a instituição do casamento estaria ainda
mais fortemente abalada” (23).
A infidelidade da mulher — fonte de dramas sombrios e causa
obrigatória de divórcio na classe burguesa — não é considerada
pelos operários como injúria indelével à “honra” do marido. O
operário aceita muito mais facilmente do que o camponês a

(23) Bl a c h k o , A Prostituição no começo do século X X .

49
infidelidade da mulher porque, para ele, só elementos morais pesam
no julgamento deste fato; ao contrário, para o camponês, com sua
mentalidade de proprietário, a infidelidade da mulher se agrava com
considerações acessórias, inconscientes, de ordem econômica.
Evidentemente, os partidários burgueses de costumes mais livres,
incapazes de se desfazerem de seus preconceitos de classe, tomam-se
de um santo horror quando lhes pintamos os costumes livres ou,
segundo sua terminologia, “bestialmente licenciosos” — da classe
operária. O número crescente de crianças “concebidas ilegalmente”
inspira aos estatísticos um especial horror. Mas em vez de desistir
dessas fórmulas burocráticas de nascimentos legítimos e
“ilegítimos”, entregam-se a lamentações sobre a corrupção^ dos
costumes, sobre a necessidade de “elevar o nível moral do
proletariado. E a reboque dos ideólogos burgueses vêm as
feministas — as mesmas feministas que reivindicam para si próprias
uma revisão de todos os valores morais. Não se pode negar,
evidentemente, que a influência nefasta do capitalismo, as
insuportáveis condições de vida e de trabalho da classe operária,
introduzem muitos elementos anormais e imorais na atmosfera
moral que cerca o trabalhador e a trabalhadora, e desfiguram, às
vezes de maneira indelével, a face moral do proletariado. A
exigüidade e a superlotação das habitações, o salario miserável das
mulheres, o trabalho exaustivo e excessivamente longo, as crianças
mal cuidadas, a ausência de interesses culturais, tudo isso traz
consequências extremamente aflitivas, encorajando a prostituição, a
depravação das crianças, a bebedeira, a grosseria dos costumes. Mas
mesmo nessa atmosfera envenenada encontramos um terreno mais
favorável à elaboração da psicologia do futuro do que no meio
burguês; só aqui, na classe operária, podem crescer os brotos, ainda
amarelados e fracos, das futuras relações sexuais, mais livres. O
proletariado é a única classe onde o elemento de cálculo econômico é
quase totalmente excluído da união conjugal, a única onde o
casamento é um ato psico-fisiológico, isto é, exatamente como o
desejariam as feministas.
É contudo, duvidoso que estas últimas estejam de acordo
quanto a isso. Como? Mas não são elas — as mulheres emancipadas
— as portadoras da nova moral, o destacamento de vanguarda que
luta para libertar as mulheres do jugo familiar? É difícil, muito difícil
para a mulher da burguesia perceber que a portadora da nova
verdade social e moral não é ela, mas sua irmã proletária, que se
acostumou a tratar, inelutavelmente, com ar desdenhoso e protetor.
As novas normas morais que se elaboram na classe operária sob
a influência do processo de transformaçao social e economica, se

50
expandem pouco a pouco para as demais camadas da população.
Assim como, em seu tempo, a moral ao mesmo tempo puritana e
grosseiramente sensual do Terceiro Estado» suplantou as normas
morais mais espiritualizadas mas menos constrangedoras da
cavalaria feudal, assim também, em nossos dias, a ética em formação
na classe operária conquista pouco a pouco seüs direitos sobre a
moral burguesa que até bem pouco tempo parecia inabalável. Afinal
de contas, a moral dominante é a que amadlurece no seio da classe
que as relações de produção da época considerada reforçam.
Mas as feministas não concordam com este ponto de vista.
Estão firmemente convencidas que a chama da libertação familiar
das mulheres está em suas mãos. Não discutiremos com elas para
saber quem gritou em primeiro lugar, tanto» mais que o grito pela
“união livre”, pelo “amor livre”, é interpretado de maneiras
totalmente diversas por elas e por nós. Não se trata, aqui, de deter-
-nos sobre essas diferenças de concepção, voltaremos a elas em outra
ocasião. No momento, é importante destacar ainda uma vez que, se
se quer lutar para libertar a mulher do jugo familiar, é preciso dirigir
as armas não contra as próprias formas das relações conjugais, mas
contra as causas que as engendraram.
Só travando dia após dia a luta de classes nas fileiras da classe
operária a mulher terá direito a exigir a existência de uma
organização social onde possa escolher uma profissão, consagrar-se
à maternidade ou pôr suas forças a serviço da sociedade, da arte, da
ciência, onde a jovem e viva tendência de seu coração já não será
mutilada e deformada em benefício das tradições e dos preconceitos.
A humanidade liberada conhecerá um amor autenticamente livre e
as alegrias de uma maternidade livre e sadia.
“Mas, exclamarão os espíritos realistas, tudo isso é para o
futuro, para um futuro longínquo, encoberto pelas nuvens de longos
anos sombrios. Mas nós queremos viver agora, trabalhar e lutar não
apenas pela felicidade das gerações futuras, mas pelo da nossa”.
Justa e legítima reivindicação! Mas quem, além dos socialistas, dar-
-lhe-á resposta? Falem com as feministas: perguntem a elas o que a
mulher deve fazer agora para não arcar com todo o peso do jugo
familiar; ouvirão os conselhos que já conhecem: “exijam um divórcio
mais fácil”, “exijam a supressão do casamento religioso, a separação
dos bens”, “ignorem as formas exteriores do casamento e sigam
ousadamente as inclinações de seu coração!” Mas diante desta
enxurrada de “desiderata” feministas, a operária abre os braços,
perplexa. “Todas essas reformas terão apenas repercussão restrita
nos interesses mais imediatos e mais urgentes das mulheres da classe
operária!”

51
Veiamos agora o que propõe o partido operário, como medidas
imediatas, às mulheres trabalhadoras esmagadas por um duplo fardo
— os deveres domésticos e o trabalho na fábrica. Ao contrário das
feministas, este partido não se vangloria com a esperança de obter
uma solução radical à questão familiar e ao problema da mater­
nidade no contexto da sociedade capitalista atual; e por isso
aue não tem em mãos estas fórmulas mágicas que as feministas
distribuem tão generosamente. Mas sabe que, em conseqüencia de
uma série de medidas sociais e políticas, é possível aliviar a penosa
situação das mulheres e das mães, proteger a saúde e mesmo a vida da
futura geração. Estas medidas devem, em primeiro lugar, favorecer e
acelerar o processo econômico que destrói a pequena unidade
econômica familiar e que, tirando os cuidados domesticos_ dos
ombros das mulheres trabalhadoras, transmite essas obngaçoes a
coletividades especialmente adaptadas; em segundo lugar, tem como
tarefa defender os interesses da criança e da mãe, promover uma
ampla legislação protetora, que inclua o seguro materno; e, entim,
em terceiro lugar, estas medidas devem tender a transferir o cuidado
pela infância da família para o Estado ou para uma administraçao
local, evidentemente com a condição expressa que um e outro
esteiam plenamente democratizados. Mas e claro que essas
reivindicações só produzirão efeito na medida que o nível de vida
do proletariado aumentar, em conseqüência das conquistas gerais da
classe operária; em caso contrário, com a miséria e a ausência de
direitos, nenhuma legislação de proteção, nenhum seguro materno,
nada poderá aliviar de maneira tangível o fardo da mulher casada.
( •••)
II. MULHERES CELIBATÁRIAS

Este texto é o primeiro capítulo de um livro escrito em 1918- “A


nova moral! e a classe operária”. É interessante notar que o novo tipo
de heroina que Alexandra Kollontai descobre em um grande número
de romances de sua época é cada vez mais raro nas obras dos autores
contemporâneos, de um ou outro sexo. Algumas notáveis exceções
nao fazem senão confirmar esta constatação. Esta “mulher
cehbataria independente espiritual e afetivamente, está longe de ter
supejado no romance ocidental a apaixonada submissa e feliz em sê-
-lo, ou o “manto religioso”. Na literatura soviética atual, a mulher
que possui as virtudes que Kollontai atribui à mulher celibatária é
quase sempre casada. (*)

( * ) D a tradução francesa.

53
Mulheres Celibatárias (i)

1.
Quem é ela, esta nova mulher? Será que existe? Não será pibdu-
to da imaginação criadora de literatos modernos em busca de novi­
dades sensacionalistas? Olhem em torno de si, observem, pensem, e
ficarão convencidos: a nova mulher está aí, ela existe.
Já a conhecemos, já a encontramos na vida, em todos os níveis
da escala social — da operária à cientista, da modesta empregada à
artista brilhante. E o que é mais surpreendente: encontrafnos cada
dia mais a nova mulher na rua, mas foi só nos últimos anos que
começamos a reconhecer seus traços nas heroínas da literatura. A
vida das últimas décadas forjou uma mulher de novo tipo
psicológico, com necessidades novas, emoções novas, enquanto que
a literatura continuava a pintar a mulher do passado, reproduzindo o
tipo antigo que desaparecia da vida. Que luminosas figuras da nova
mulher que surgia nos deu a realidade russa dos anos 70-80! Mas os
escritores passavam sem vê-las, sem sentir o seu perfume, sem ouvi­
das, nem tocá-las ou distingui-las ... Com seu pincel macio,
Tourguenev esbarrou nelas, mas mesmo ele pintou imagens mais
pálidas, mais pobres que a realidade. Foi só em seu poema em prosa
dedicado à jovem russa que Tourguenev se inclinou diante da
comovente imagem daquela que ousou transpor o limiar sagrado.
As heroínas, cujos nomes as páginas da história gravaram,
foram seguidas por uma longa série de desconhecidas, que morreram
como abelhas em unia colméia perturbada. Seus cadáveres
pontilhavam o caminho espinhoso do futuro tão desejado. Seu
número aumentava, multiplicava-se a cada ano. Mas os escritores e
Ô8 poetas continuavam a passar sem vê-las, com uma espessa venda
nos olhos. Prisioneiro das imagens tradicionais da mulher, o olhar
do escritor era incapaz de perceber, de se apropriar da nova realidade
• de se deixar envolver por ela. A literatura, ao aperfeiçoar-se, ao de-
Mnvolver-se, procurando caminhos novos, novas cores e palavras,
OOfltinuava obstinadamente pintando frágeis criaturas enganadas,
Abandonadas, dolorosas, esposas ávidas de vingança, sedutoras
jrcsas do homem-caçador, “naturezas incompreendidas” sem
iVOntade, puras, desbotadas, encantadoras jovens...
r
,o

UlO'original do capítulo: A nova mulher.


Flaubert escrevia Madame Bovary no momento em que, a seu
lado, vivia em carne e osso, sofria e afirmava seu “eu" humano e
feminino, George Sand, essa luminosa anunciadora do novo tipo de
mulher que despertava para a vida.
Tolstoi estudava a psicologia, reduzida pela escravidão secular
da mulher, de uma Ana Karenina, acariciava a imagem da
encantadora e inofensiva Kitty, jogava com a ardente natureza de
fêmea de uma Natacha Rostova, enquanto a implacável realidade
gera as novas mulheres em número sempre maior. Nem os maiores
talentos do século XIX sentiram a necessidade de substituir a graça
encantadora de suas heroínas pelas características que anunciavam a
nova mulher em gestação. E foi só a literatura dos últimos .quinze
anos, só os mais recentes escritores, e especialmente escritoras, que
não puderam deixar em silêncio o tipo nascente, não puderam deixar
de gravá-lo em suas obras.
Hoje este tipo já não constitui uma novidade sensacional: já
existe não apenas em um romance de “vanguarda”, de tese, que
discute algum complexo problema atual, mas também em um relato
modesto, sem pretensões.
É evidente que o tipo da “nova mulher” varia de um país
para outro, que o fato de pertencer a esta ou àquela camada social
dá-lhe sinais particulares. Os traços psicológicos da heroína, seus
desejos, seus objetivos vitais podem diferir consideravelmente. Mas
por mais diversas que sejam essas novas heroínas, encontramos nelas
algo em comum, algo de “raça”, que nos permite imediatamente
distingui-las da mulher do passado. Estas viam o mundo de outra
forma, reagiam de outra forma, tomavam a vida de outro jeito. Não é
preciso possuir conhecimentos históricos ou literários especiais para
reconhecer o rosto da nova mulher na densa multidão das mulheres
do passado. Nem sempre nos damos conta que consistem esses
novos traços, onde está a diferença. Mas um fato é claro: em alguma
parte, na região do subconsciente, nosso critério já está formado.
Com sua ajuda classificamos, determinamos os tipos femininos.
Quem são, pois, estas novas mulheres?
Não são as jovens encantadoras e “puras”, cujo romance se
interrompia com um casamento feliz; não são esposas, sofrendo com
a infidelidade do marido, ou culpadas elas próprias de adultério; não
são solteironas, chorando um amor infeliz de juventude; não são
“escravas do amor”, vítimas de tristes condições de vida òu de sua
própria natureza “viciosa”. Não, é um novo tipo de heroínas, com
suas próprias exigências diante da vida, um tipo que afirma sua
personalidade, que protesta contra a múltipla submissão da mulher

56
diante do Estado, da família, da sociedade, um tipo que luta por seus
direitos e que representa o sexo. “Mulheres celibatárias”, este o nome
que cada vez mais se atribui a este tipo.
O tipo feminino essencial do passado recente era a esposa, a
mulher, ressonância, acessório, complemento do marido. A mulher
celibatária está longe de ser um eco; deixou de ser um simples reflexo
do homem. A mulher celibatária possui seu próprio mundo interior;
vive penetrada por interesses humanos gerais, é externa e interior­
mente independente. Há 20 anos uma definição como esta não diria
nada; nem a nosso espírito, nem a nosso coração. A jovem, a mãe, a
amante ou a mundana, do gênero Helena Kourakine (2), era moeda
corrente, clara, compreensível. Mas para a mulher celibatária, nem
na literatura, nem na vida, havia lugar. Quando, na história, surgiam
mulheres com traços que lembravam a heroína contemporânea,
eram consideradas desvios acidentais em uma norma, fenômenos
psicológicos.
Mas a vida não pára e a roda da história, girando em ritmo cada
vez mais rápido, já obriga os homens de uma única geração a adotar
noções diferentes, a enriquecer seu vocabulário com uma
palavra nova. A nova mulher, celibatária, da qual nossas avós e mes­
mo nossas mães não tinham nem idéia, existe, é um fato real e vivo.
As novas mulheres, celibatárias, são as milhões de figuras de
roupas cinzentas, que, de madrugada, caminham em fila
interminável dos bairros operários para as fábricas, para as estações
e os ônibus. As mulheres celibatárias são as dezenas de milhares de
mulheres, jovens e já gastas que, nas grandes cidades, vivem em seus
solitários quitinetes, aumentando o número dos “casais independen­
tes”. São as jovens, as mulheres que travam uma luta surda e inin­
terrupta pela vida, que passam seus dias atrás de uma escrivaninha,
de um PBX, dos balcões das lojas. As mulheres celibatárias
são as jovens de alma fresca, com a cabeça cheia de sonhos e de
projetos audaciosos, que batem à porta dos templos da ciência e da
arte, que, com passo firme, “masculino”, percorrem a cidade em
busca de uma aula mal paga, de algum trabalho esporádico. A
mulher celibatária está sentada à mesa do laboratório, acabando
uma experiência, buscando nos arquivos, apressando-se para seu
trabalho na clínica, preparando um discurso político.
Como essas figuras se parecem pouco às heroínas do passado, às
sedutoras, tocantes mulheres de Tourguenev, de Tchekov, às

(2) Tolstoi, Guerra e paz.

57
heroínas de Zola, de Maupassant, aos tipos femininos impessoais e
virtuosos da literatura alemã e inglesa, mesmo dos anos 1880 e
começo dos anos 1890! A vida cria novas mulheres que a literatura
reflete.
Em longa fita colorida desfilam diante de nós as heroínas do
novo tipo feminino. À frente, pelos espessos espinhos da realidade
contemporânea, caminha com seu passo tranquilo, orgulhoso,
resoluto, a operária Mathilde (3). As asperezas da vida ferem ate o
sangue suas mãos e seus pés, rasgam seu peito. Mas este rosto
endurecido, mergulhado no desgosto e nos sofrimentos, nao tem um
tremor; só rugas amargas e profundas em torno da boca, só um olhar
invencivelmente orgulhoso que brilha com um lampejo mais trio.
Uma dor nova, um raio de alegria — rara viajante no meio operário
— passam sem tocá-la. Mathilde permanece na montanha,
orgulhosa, inabalável, invencível, envolta em seu chale cinzento.
Estátua da tristeza. Seus olhos voltam-se para o desconhecido, ela vê
o futuro, acredita nele. Tocada por precoces encontros com a vida,
Mathilde veio para a cidade. A frescura, a juventude, a saúde ferviam
nela. Bateu às portas da fábrica e o monstro de tijolos engoliu mais
uma vítima. Mas Mathilde não teme a vida. Com passo seguro e
orgulhoso, transpõe as armadilhas que o destino irônico arma para a
jovem que erra solitária. A lama e as baixezas da vida não aderem à
sua roupa limpa. Mathilde carrega, pela vida, inabalável, com uma
ignorância ingênua, seu “eu” humano, claro e puro. E apenas uma
jovem operária, solitária e pobre, mas se orgulha de ser o que é, de
sua força interior, de sua independência. Depois, o primeiro
envolvimento, terno e claro como a própria juventude, a primeira
alegria da maternidade. Primeira sensação da dependência amorosa,
a tímida revolta pela liberdade perdida. E a onda de uma nova
paixão, ardente como o verão. Os sofrimentos, os tormentos do
amor, desejo, dor, decepção, e de novo a maternidade, e de novo a
solidão. Mas não temos diante de nós a jovem abandonada,
“perdida”, pobre ser esmagado. Não, é uma individualidade, uma
mãe orgulhosa, solitária, fechada em si mesma. A personalidade de
Mathilde cresce, se fortalece, e cada dor nova, cada nova página da
vida não fazem senão revelar, com mais nitidez, seu “eu” poderoso,
inabalável.
Ao lado de Mathilde, avançando docemente com pés descal­
ços escurecidos e machucados pelo calor e pelo mau tempo,
caminha Tatiana, a jovem filha de Riasan(4). Parte com vagabundos

(3) Do célebre romance alemão de Hauptmann , Kart Mathilde.


(4)Gorki, Máximo. Notas de um passante.

58
sem asilo, sem lar como ela mesma. “Um pedaço de cobre num monte
de ferro velho devorado pela ferrugem”. Hoje trabalhando em
Maikop, durante a colheita, amanhã perambulando pelo Don, com
um grupo de companheiros eventuais.
Os homens andam ao acaso, à espreita de um ganho qualquer.
Tatiana vai com eles. Livre como o vento, solitária como o capim da
estepe. Não é cara a ninguém. Ninguém a defende. Face a face peito
a peito, trava uma luta ininterrupta, infatigável, contra o destino
que, implacável, a fustiga; não há ternura, sô existem durezas pará as
mulheres celibatárias como Tatiana ou Mathilde. Mas Tatiana não
se dobra com as chicotadas da vida; leva na alma, bem escondido um
sonho — o sonho de um futuro terrestre, inocentemente claro, como
um dia de verão sem uma lufada de vento. Ela vai pelo mundo e
procura sua felicidade. Mas esta, como se escarnecesse dela, foge
sempre para mais longe. E a doce e sonhadora Tatiana de Riasan
voltada ardentemente para a vida, não reconhece senão migalhas de
raras alegrias terrestres.
Um passante emocionou-a; ela chora, seenflama, e se entrega a
ele simplesmente, sinceramente, como se dão essas mulheres
solitárias, celibatárias por necessidade, operárias nômades, ’
arrancando à vida suas pequenas alegrias terrestres. Mas, unir sua
vida à do passante, isto não: “Não é para mim; não, eu não quero! Se
você fosse um camponês, certamente, mas assim, não tem sentido'
Não se mede a vida por horas, mas por anos”.
E parte, sorrindo-lhe docentemente em sinal de adeus; parte em
busca de seu sonho de felicidade, levando seus pensamentos, como sé
estivesse sozinha no mundo e como se só a ela incumbisse a tarefa de
criar tudo de novo.
Assim avançam Mathilde e Tatiana, esmagando as urtigas da
vida, abrindo com o peito e as mãos o caminho novo para o futuro
desejado. Atrás delas, as novas mulheres de outras camadas sociais
se apressam por chegar ao caminho aberto. Esbarram nos espinhos e
se ferem, e seus pés, desabituados das pedras pontiagudas, se cobrem
de feridas. Rubros filetes de sangue correm sob seus passos. Mas é
impossível parar: uma multidão ininterrupta, cada vez mais densa,
avança em direção ao caminho aberto que se alonga sempre.
Desgraça às fracas! Desgraça às cansadas! Desgraça às que olham
para trás, para o passado distante! A multidão que tem pressa e
avança, afasta-as do caminho. E, cabeça baixa, longe do novo
caminho, ficam as vencidas que lançaram um olhar para o castelo
cinzento da escravidão passada.
Na multidão das que caminham pela nova estrada,

59
reconhecemos heroínas de todas as nacionalidades, de todas as
camadas sociais. Na frente, a silhueta esbelta da atriz Magda<5), esta
jovem mãe solteira, orgulhosa de sua arte, de suas lutas, da audaciosa
consigna: “Soü eu mesma e me fiz assim com minhas próprias
forças”. Magda superou as tradições familiares de uma cidadezinha
do interior; lançou seu desafio à moral burguesa. “Pecou” na casa
paterna, em sua pátria, mas está orgulhosa. Conhece o valor de sua
individualidade e defende, inflexível, o direito de ser ela mesma.
“Crescer além do ‘pecado’ é mais do que a pureza que vocês pregam
aqui”.
Resolutamente, a audaciosa, inteligente, ardente jovem Olga (6)
entra no caminho novo. -Emancipou-se de uma família judia
tradicionalista e, tendo vencido uma série de obstáculos, engolfou-se
no turbilhão de uma grande cidade européia. Aí participa de um
círculo escolhido de intelectuais, “a nata da sociedade , e a vida
brilhante de um centro cultural capitalista se abre diante dela. A luta
pela vida, contra o desemprego dos intelectuais, pela auto-
-afirmação, como individualidade humana e como mulher. Olga vive
como vivem milhares de jovens intelectuais em uma grande cidade
civilizada, uma, existência solitária, de trabalho. Não teme a vida e
pede audaciosamente ao destino seu quinhão de felicidade pessoal. O
homem que ama lhe é próximo e estranho ao mesmo tempo. As
estradas de suas vidas se cruzam por um momento. A vida em
comum não corresponde a seus interesses mútuos. O amor é apenas
uma parcela de suas vidas intensas e múltiplas. A paixão diminui, se
apaga; o amor morre também*. Separam-se. E, de novo, não é uma
frágil jovem que temos diante de nós, mas uma individualidade que
bebeu da taça onde o vinho se mistura ao veneno. Olga é mais forte
que o homem que escolheu. Nas horas de tristeza, de desgosto
amoroso, ele corre para ela, a única amizade fiel. Na complicada vida
de Olga, rica de acontecimentos e de lutas, o romance de amor é só
um episódio.
Na multidão de novas mulheres, com sua bela cabeça erguida,
caminha com passo seguro a médica Lansovelo (7), a mulher
celibatária típica. Sua vida é a ciência e o exercício da medicina. As
salas de clínica são ao mesmo tempo seu templo e seu lar. Conquistou
a estima e o reconhecimento de seu valor por parte de seus colegas
homens; afasta com doçura, mas obstinadamente, suas tentativas
matrimoniais. Precisa de sua liberdade, de sua solidão, para obra

(5) Sudermann, A Pátria.


(6) Grete M eisel-H ess , Intelectuais.
(7) Yver , Colette. Princesas de ciência.

60
amada, sem a qual não podería viver. Roupas severas, uma vida
medida em horas de trabalho, a luta pela clientela, o triunfo do amor-
-próprio quando o diagnóstico está correto. Um arrepio percorre o
leitor diante desta figura de “mulher emancipada”. Mas, de repente,
numa cena observada por acaso, a doutora se mostra muito
diferente. É o período de férias e ela descansa no campo com seu
amigo, médico também. Aí é mulher; aí reina seu “eu” feminino.
Suas roupas são esvoaçantes, claras, seu riso é alegre. Não esconde
sua relação e se, em Paris, não vive com seu amigo, é porque é mais
cômodo para os dois, enquanto colegas.
Ultrapassando a severa doutora corre a ardente Teresa (8), toda
fogo e paixão. É uma socialista austríaca, uma propagandista
ardente. Esteve presa, trabalha para o partido com toda sua alma.
Mas quando a onda da paixão a submerge, não renuncia ao
sorridente raio da vida, não se envolve hipocritamente no gasto
manto da virtude feminina. Não. Dá a mão ao homem escolhido e
parte por algumas semanas, para beber da taça da alegria amorosa e
convencer-se de sua profundidade. Quando descobre sua
banalidade, afasta-se sem desgosto, sem amargura, e retoma seu
trabalho. Para Teresa, como para a maioria de seus companheiros
homens, o amor é apenas uma etapa, uma parada momentânea na
estrada da vida. O objetivo existencial, seu conteúdo, é o partido, a
idéia, a propaganda, o trabalho.
Com muita calma, outra mulher nova escolhe seu caminho:
Agnes Petrovna (9), uma das primeiras heroínas russas do tipo
“celibatário”. É escritora e secretária de redação, antes de tudo uma
mulher de trabalho. Quando trabalha, quando um pensamento a
ocupa, ou uma idéia, nada nem ninguém existe para ela. “Não sei
dividir, e por isso preciso de minha liberdade; nenhum amor far-me-á
abandoná-la”. Mas quando volta da redação e troca sua roupa de
trabalho por outra, bem confortável, gosta de se sentir apenas
mulher e de experimentar seu encanto sobre o homem. Não busca no
amor o conteúdo e o objetivo da vida, mas o que nele habitualmente
buscam os homens: “o repouso, a poesia, a luz”. Não reconhece, nem
ao homem amado, nenhum poder sobre si, sobre o seu “eu”.
“Pertencer a um homem como uma coisa, dar-lhe sua vontade,
seu coração, devotar toda sua inteligência e todas suas forças à sua
felicidade, fazê-lo conscientemente, com alegria, certamente, pode
tornar uma mulher feliz. Mas por que tudo isto para um só? (...) Se é

(8) Schnitzler. A Estrada para a liberdade.


(9) T. Stchepkina-Koupernik. Uma delas.

61
preciso esquecer de si mesma, eu o faria não por um só, não para que
só ele tenha uma boa refeição e um sono tranqüilo, mas para dezenas
de outros infelizes”. E quando Miatlev tenta atingir a liberdade de
Agnes, quando põe seu amor entre ela e seu trabalho, Agnes
considera rompido o laço entre eles, e seus caminhos se separam.
Sem pressa, com um vislumbre de hesitação, segue Agnes
uma figura menos completa de mulher celibatária, Vera
Nikodimovna (10). Pertence à antiga geração, com um matiz de
modernismo. Tem um passado, e este passado, que terminou de
“forma terrivelmente banal”, deixou sombrios vestígios em sua alma.
Não foi apenas a fisiologia que levou a razoável e fria Vera aos braços
de um homem. “Ninguém sabe como foi pouco sensual, como foi
diferente de um simples “abandonar-se”, diz ela a sua amiga. Havia
algo mais. O que, então? A sede da maternidade? Talvez a busca de
uma alma irmã, este anzol perigoso, que fisga até as celibatárias mais
inteligentes. Desde então, Vera vive cercada de homens que a
desejam. Evitando aproximar-se deles, mantém suas esperanças, por
um hábito herdado das gerações passadas: a sedução torna-se sua
especialidade. Mas hoje faz questão de sua liberdade, e fora do
namoro de salão, Vera é uma individualidade, uma mulher de
trabalho e de pensamento.
Sorrindo tristemente, passa o doce vulto de Mary (li), a
tuberculosa. Em seguida, pisando firme com seus sapatos usados,
corre, procurando trabalho, a pequenina, valorosa e combativa
Tânia (12). Atrás delas ressoa o riso mau da vulgar Annette(i3), de
espírito pobre, espécie de paródia da mulher celibatária. Com
ingenuidade brutal, a heroína de Sanjar, Anna (14), procura
passagem no novo caminho. De mãos dadas caminham Mira, Lídia e
Nelly (15). Cada uma tem algo de seu, de sagrado, de não apenas
feminino. Mesmo a pequena Lídia, de aparência tão insignificante,
tem sua vaidade, sua ambição. Quando o amor chega, quando a
natureza da mulher faz suas exigências, todas estas jovens, que já não
sentem o antigo terror sentimental, atravessam a barreira proibida. E
isso feito, a vida de mil elos as envolve. O amor foi apenas uma
melodia iniciadora.

(10) Pota penico No nevoeiro.


(11) Winnítchenk.0, Na balança da vida.
(12) Winnitchenko. Na balança da vida.
(13) Idem, ibidem.
(14) Sánjar . Notas de Anna.
(15) Grigoriev. O declínio.

62
Encantando nosso olhar peJa fineza de sua alma, parecendo
toda pintada em suaves tons de aquarela, deslisa, evitando as
asperezas, a atriz de Variedades, Renée (1 6 ) . As ilusões desfeitas, o
coração ferido, deixou seu marido, desafiou o mundo ao qual
pertencera até então. Agora, sua vida está na arte, na dança e nas
pantomimas que cria. Uma vida errante, cansativa, trabalhosa, Não
procura as aventuras, antes foge delas: seu coração está ferido
demais. A liberdade, a independência e a solidão são seus únicos
desejos pessoais. Mas quando Renée, depois de um longo dia de
trabalho, senta-se perto da lareira em seu apartamento solitário, tem
a sensação que a melancolia da solidão de olhos baços entra e se
posta atrás de sua cadeira.
“Estou acostumada a viver sozinha — escreve em seu diário —
mas, hoje, sinto-me tão solitária. Afinal, não sou independente, li­
vre?... e... terrivelmente só”. Não haverá nesta queixa algo da mulher
antiga, acostumada a ouvir ao seu redor vozes conhecidas e amadas,
a sentir uma ternura que lhe é necessária? Quando Renée encontra
em seu caminho um amor obstinado, um laço, deixa-se envolver e
levar pela maré que sobe. Mas a paixão não cega, não perturba seu
cérebro acostumado à análise.
“São apenas meus sentidos — verifica com tristeza — só existe
o delírio de meus sentidos”. Renée volta a si. O novo amor não foi o
que procurava. Nos braços do amante, sente-se solitária como antes.
E foge, porque este amor está tão distante de suas exigências
amorosas.
Sua carta de adeus ao homem que. está deixando é um
documento sobre a mulher contemporânea, sobre as novas
exigências que sua alma faz à vida.
Atrás dela passa a heroína de Benett (1 7 ) , uma escritora. Um
impulso de êxtase, de adoração, lança-a nos braços de um grande
músico, mas esta paixão significa apenas um encontro consigo
mesma, sua auto-afirmação, a revelação de seu talento de escritora,
um comportamento diante da vida mais calmo, mais refletido, mais
consciente. Quando, mais tarde, um novo amor acontece, não foge
espavorida, como teriam feito as heroínas dos antigos romances
ingleses — que se achavam indignadas e definitivamente “perdidas”
— mas, ao contrário, avança sorrindo a seu encontro.
Ardentemente lança-se, inquieta, Maia (18), a apaixonada, com

(16) Colette. A vagabunda.


(17) Benett. O amor sagrado.
( 1 8 ) M eisel-H ess, G r e t e , A Voz.

63
seu espírito irônico. Todos os acontecimentos de sua vida são apenas
etapas na busca de si mesma, no desenvolvimento de sua
personalidade: luta com a família pela independência, ruptura com o
primeiro marido, breve romance com um herói oriental, segundo
casamento, cheio de complicações psicológicas, violenta luta interior
entre a mulher antiga e a mulher nova que vivem nela; de novo a
ruptura, a busca; enfim encontra o homem que sabe respeitar sua voz
interior — este símbolo da personalidade —, reconhecer seu valor e
criar esta união amorosa inteiramente livre com que sonhou durante
toda sua vida.
A vida de Maia é cheia de complicações psicológicas e de
acontecimentos; o que, há muito tempo, teria quebrado uma mulher
do passado — traição do homem amado, ruptura com dois maridos
— serve apenas de lição para Maia, permite-lhe examinar-se
melhor e compreender-se. Inconscientemente, segue o conselho de
Goethe: recomeçar a vida a cada dia, como se estivesse apenas
Começando... “Minha vontade forte e valente, que nada pôde
quebrar, salvou-me. Minha vontade inconsciente de conservação,
tal a mão de um anjo da guarda, conduziu-me pela vida”, diz Maia.
Entretanto, ainda existem muitos restos do passado em Maia. A
nova mulher, independente, interiormente livre, luta sempre com a
tendência atávica a tornar-se a sombra do marido, sua ressonância.
Como são bem conhecidos esses esforços ingênuos e repetidos, por se
adaptar, mesmo interiormente, ao gosto do homem que ama, por
-corrigir-se na linha de ideal de seu eleito. Como se, por si própria,
não tivesse valor, como se sua personalidade apenas se pudesse medir
pelas atitudes dos homens para com ela. É o traço atávico das
mulheres que levou até uma personalidade tão magnífica, luminosa e
sedutora quanto a de George Sand, ora a abandonar a terra com
Musset, o entusiasta, ora a tentar a política, renunciando ao vôo para
o mundo estrelado da criação artística. Mas a própria
individualidade tão forte de George Sand opunha limites a estas
experiências. Chegava o momento em que George Sand sentia que
começava a se perder, que, adaptando-se, a mulher Aurora Dude-
vant devoraria, esmagaria o audacioso, rebelde e ardente sonha­
dor — o poeta George Sand. Então, erguia-se de repente rompendo
implacavelmente a antiga ligação. E, quando tal decisão
amadurecera em sua alma, nada podia alterá-la, nenhum poder.
Nem mesmo sua própria paixão era capaz de romper a vontade desta
forte personalidade. Quando Aurora Dudevant, em um outono
sombrio, deixa sua casa para um último e breve encontro com o
amante, embora sua decisão de romper já esteja tomada, não
precisamos temer por George Sand, sentimos que este encontro não

64
muda sua resolução. É apenas o último tributo da paixão agonizante
que George Sand presta à chorosa Aurora. A etapa está vencida, um
ponto termina o episódio.
A Maia de Meisel-Hess é naturalmente menor, mais /raca que
George Sand. Mas, nela também, há limites à adaptação aos desejos
do amado, e sua tendência atávica a renunciar, apagar-se, dissolver-
-se no amor, esbarra numa personalidade humana já desenvolvida e
determinada. No momento preciso, Maia também sabe se erguer e
seguir sua voz interior...
Como é difícil para a mulher de hoje libertar-se desta
capacidade, formada por centenas de séculos, de assimilar-se ao
homem que o destino “lhe deu por senhor”! Como é difícil para ela
convencer-se que, também para a mulher, é um crime renunciar a si
mesma, ainda que em favor do amado, ainda que em nome do amor.
Ao lado de Maia caminha com passo firme a ambiciosa e
racional Outa ( 1 9 ). Outa é atriz; toda sua vida é uma valorização do
“eu” que situa mais alto que tudo no mundo. Parece que a própria
arte só lhe é cara como um meio de desenvolver e revelar mais ampla
e variadamente sua forte personalidade. Ê uma reação natural contra
o rebaixamento secular da mulher, contra sua renúncia ao direito de
ser para si mesma.
Uma ambição forte e ardente, uma razão fria, um imenso
egoísmo e um excepcional talento de atriz relegam a mulher, em
Outa, para um canto escuro. Indiferentes, passa ao lado da felicidade
pessoal, do infinito apego de Klodd. Aprecia seu amor porque lhe
agrada contemplar nele o seu reflexo, como num espelho. Quando,
levado pelo desespero, torturado por sua fria indiferença, Klodd a
trai, Outa chora, mas não é a mulher que está ofendida nela, é a
artista exposta a todos os olhares, que O adorador ousou deixar por
uma rival. Não é o amor humilhado que soluça, mas o orgulho
ferido. Outa permanece, até o fim, fiel <a si própria. Carrega através
da vida sua frieza de alma e a adoração (de seu próprio “eu”. Mas não
será porque Outa não tem este fogo sagrado que faz as grandes
artistas que uma mulherzinha fútil e fogiosa pode triunfar dela, que é
fina, inteligente e grande por sua compireensão da arte, mas a quem
falta o calor criador?
Na multidão passa uma artista, Tiânia, mimada pela vida (20).
E uma mulher casada, mas pertence ao tíipo das mulheres celibatárias

(19) M ann , Heinrich. A caça ao amor.


(20) Nagrodskaia , A cólera de Dionísio.

65
tanto quanto Maia, casada três vezes. Isso corresponde à fisionomia
interior de ambas. Mesmo vivendo sob o mesmo teto que seu marido
legal, Tânia permanece como antes, uma individualidade livre e
independente. Franze as sobrancelhas quando seu marido a
apresenta a seus amigos como sua mulher, sem chama-la pelo nome
de solteira. Cada um vive em seu próprio mundo: ela, em sua arte,
ele, na ciência. É um casal de bons amigos, unidos por sólidos laços
espirituais que, no entanto, não interferem em sua mútua liberdade.
Esta atmosfera límpida é perturbada pela paixão cega,
puramente física, de Tânia pelo belo macho Stark. Tânia ama,
naturalmente, não sua fisionomia espiritual, não sua “alma”, mas “o
eterno masculino” pelo qual se sentiu atraída desde o primeiro
encontro. Negligencia sua fisionomia espiritual, como o faziam até
então os homens em relação à alma de uma mulher, mesmo
ardentemente amada, respondendo com embaraço impotente
quando uma Ania, Maia ou Lisa fazia a queixa habitual: “e sua alma,
sua alma você não entrega!”... A atitude de Tânia para com Stark
tem alguma coisa de masculino. Sentimos que, como personalidade,
ela é mais colorida, mais forte e maior do que ele. Tânia é humana
demais, pouco fêmea demais para que uma simples paixão possa
satisfazê-la; ela própria reconhece que sua paixão por Stark não
enriquece, ao contrário, empobrece sua alma, resseca-a. E
característico que Tânia sofra menos com o pensamento de sua
infidelidade em relação ao marido, que com a consciência, nos
momentos em que a embriaguez da paixão diminui, da
incompatibilidade de um tal amor com o trabalho metódico,
paciente, que constitui sua vida. A paixão devora suas forças e seu
tempo, impede o livre trabalho criador. Começa assim a se perder e a
perder o quer tem de mais precioso na vida. Vai embora, volta para o
marido, não porque este seja o “dever”, não por piedade, mas por
amor a si própria e para salvar sua personalidade (21). Com Stark,
poderia se perder. Vai embora, grávida de um filho de Stark. Vai-se
quando a paixão ainda não se apagou. Que heroína dos romances de
antigamente teria coragem suficiente para agir como Tânia?
A mesma escolha faz uma das primeiras mulheres do novo tipo
psicológico, a Élida de Ibsen. Quando o “homem do mar” exige que
Élida o siga e seu marido lhe dá plena liberdade para escolher, Élida

(2l) O autor deveria ter parado aqui. O resto do romance com Stark é artificial.
Na Tânia que se adapta às circunstâncias, renegando sua arte, transformada em objeto
de prazer para Stark apenas, já não reconhecemos a antiga corajosa e íntegra
personalidade de Tânia. É lamentável que o autor tenha de tal forma caluniado sua
Tânia.

66
fica com este, consciente de conservar assim sua liberdade interior, e
sabendo que a perdería se se fosse com o “homem do mar”.
Compreendeu que estava ameaçada pelo mais terrível cativeiro para
uma mulher, o cativeiro da paixão, pelo póder de quem tem um
coração de mulher entre as mãos.
Modestamente, Josefa (22), cujo caráter é firme e o espírito
lúcido, procura seu caminho, afastando os arbustos de espinhos que
ainda obstruem a beira da estrada. Prepara o caminho para a
independência econômica das mulheres de meio burguês; indica o
roteiro para as mulheres de profissões liberais. Com passo indeciso, a
fina e prudente Christa Rouland (23) experimenta a estrada, deliciosa
figura espiritual de mulher que desperta, interroga o mundo com
grandes olhos muito abertos, procurando a nova verdade. Mulher
que, pela primeira vez, toma consciência de si mesma. Seu lema é:
“Eu sou ‘eu’ , você é você; nós só somos um, no amor”.
Escondendo a tragédia de sua alma, sua grande tristeza
humana, Helena (24),a heroína de Youchkevitch, passa timidamente,
à beira da estrada, com os olhos fechados ainda para a nova verdade.
Não é uma mulher celibatária, nem mesmo uma mulher
verdadeiramente nova; traços do novo e do velho se mesclaram em
um nó complicado. Nela, o “eterno feminino” é colorido e poderoso;
sua alma doce de mulher devotada, amante, está entregue às
contradições femininas e até às mentiras de escrava, mas seu espírito
rebelde, curioso, questiona sem cessar e faz de Helena um figura do
tipo novo. Youchkevitch pintou-a em tons suaves e tocou em sua
imagem com amor e precaução, como se temesse quebrar com uma
palavra essa delicada alma de mulher, agonizante na tragédia do
espírito.
Na multidão das mulheres, novas, distinguimos Renata Fuchs
(25),esta alma rebelde que soube conservar sua pureza de espírito
através da vergonha e da lama por onde passou. Seu rosto está
impregnado de uma calma majestosa; em seus braços jovens dorme
uma criança, o futuro homem novo. Ao seu lado, a heroína de Grent

(22) F rapan, lisa. T ra b a lh o .


(23) Dohm , Hedwig. C h r ista R o u la n d .
(24) Youchkevitch. S a íd a d o círcu lo .
(25) Wassermann, J. R e n a ta F u ch s.

67
Aliena (26) leva orgulhosamente pela mão sua menina, filha do amor,
de uma união que, como demonstração, rechaçou a forma legal.
Com gestos apressados, Maria (27) caminha rápido para o seu
laboratório de química; seu sorriso é claro: encontrou a harmonia da
vida. Com a cabeça alta, a prostituta Mylada (28) conduz, pela lama
da vida que a envolve, sua missão sagrada... Escondendo-se sob a
máscara da mulher “coquete”, a socialista-revolucionária Ana
Sienenovna (29) ultrapassa sua própria paixão. Rindo dos
preconceitos do mundo, a estudante inglesa Fanny (30) desliza com
seu passo leve, sem deixar que seu vestido fique preso nos espinhos
da vida. Outro rosto nos saúda, a estudante do Norte longínquo, Ana
Mahr (31). As heroínas de Bjoernson, de Jonas Lie (32), de Jakobsen,
de Loffler, tentam seguir o caminho novo. Inquieta, como se
escutasse ressoar em sua alma a voz da mulher antiga, Jenny (33)
avança hesitante. Como a Tânia de Nagrodskaia, deixa o pai da
criança que espera para que a maternidade não reforce ainda mais
laços que começam a pesar-lhe. Mas a voz da mulher antiga lembra o
passado, desperta sentimentos, concepções esquecidas. Jenny pára,
olha para trás e cai...
Mas ao lado dela passam figuras sempre novas de mulheres que
despertam, que se revoltam, que buscam.
A doce e encantadora silhueta de Françoise Houdon (34), com
seu amor-piedade por Christophe, e sua paixão por outro, de
temperamento de fogo, insaciável ambição de artista, vontade de
ferro, alma sensível e delicada. O tipo vivo e tão real da operosa
Cecília (35), de forças equilibradas, ignorando que, em sua calma
“conquista”, está a nova verdade. A sufragista Julia France (36); a
refugiada russa Maria Antine (37), jovem judia que obtém os direitos
de cidadania americana e consegue uma situação garantida; e todas

(26) Allena, Grent. A mulher que ousou.


(27) Winnitchenko. Na balança da vida.
(28) J erusalem, Else. O besouro sagrado.
(29) Rounow, O. Luta.
(30) Shaw, Bernard. Começo precoce.
(31) Hauptmmann, G. Solitárias.
(32) U e , J. A s filhas do comandante.
(33) Undsett, S. Jenny.
(34) Rollanp, Romain. Jean Christophe.
(35) Idem , ibidem.
(36) G. Aterton , Julia France e sua época.
(37) Marie 'Antine, A terra prometida.

68
as heroínas de Rikarda Huch (38), de Gabriele Reuther, de Sarah
Grande, do mundano Marcei Prévost (39 ).
São muitas e não é possível citar todas nesse breve esboço. Mas
precisamente o fato de existirem tantas destas novas mulheres, de
chegarem todos os dias outras mais, de aparecerem figuras assim,
sob forma banalizada, mesmo numa literatura de folhetim, é sinaj
que a vida cria e forma infatigavelmente um novo tipo de mulher
A mulher nova traz consigo algo de estranho, de desagradável às
vezes em sua originalidade. Olhamos para elas procurando os traços
conhecidos, amados, de nossas mães e avós. Mas ergue-se diante de
nós, velando o passado, uma nuvem de emoções, de sentimentos, de
n ecessidades novas. N ão com preendem o s, quase nos
decepcionamos. Onde está a encantadora submissão feminina, sua
doçura passada? Onde está seu talento habitual para se adaptar no
casamento, para apagar-se, mesmo diante de um homem
insignificante, cedendo-lhe o primeiro lugar na vida?
Temos diante de nós uma individualidade, uma personalidade,
com seu mundo interior particular, uma personalidade que sê
afirma. É uma mulher que rompe as cadeias enferrujadas de sua
escravidão.

2.

No entanto, quais são estes traços de caráter, estes sentimentos


novos, estas propriedades psicológicas da mulher que permitem
classificá-la entre as mulheres celibatárias?

(38) Por exemplo, Rosa, de Vila Somnium Breve.


(39) A maioria dos autores citados são mulheres. Muitas de suas obras não têm
um verdadeiro valor artístico, mas, para o nosso objetivo, valem incomparavelmente
mais que as obras, superiores artisticamente, dos escritores homens. A maioria dos
romances e novelas escritos por mulheres contém partes autobiográficas, o que tem
para nós o maior interesse. Quanto mais a verdade da vida é refletida sem artifícios
mais a psicologia da mulher contemporânea é retratada com fidelidade e em seu
conjunto — sua dor, suas buscas, seus desejos, contradições, complicações e
tendências — quanto mais rico é o material que pode servir ao estudo da nova mulher
em formação. Desde que as mulheres escritoras deixaram de imitar cegamente os
modelos dos homens, e que ousam descobrir os mistérios da alma feminina, até então
escondidos mesmo para os maiores artistas, desde que as mulheres escritoras
começaram a falar sua própria lingua sobre as questões da mulher, suas obras, mesmo
sem possuir às vezes a beleza exterior da criação artística, têm seu valor e seu
significado particulares. Ajudam-nos, afinal, a reconhecer a mulher, a mulher do novo
tipo em formação.

69
O predomínio do sentimento era uma das características típicas
da mulher antiga, era o mesmo tempo o ornamento e o defeito da
mulher. A realidade contemporânea, atraindo-a para a luta ativa e a
vida, exige a ciência de vencer seus sentimentos, e os numerosos
obstáculos de ordem social, a capacidade de reforçar pela vontade
seu espírito demasiado frágil. Para conservar os mesmos direitos que
adquiriu, a mulher é obrigada a realizar em si mesma um trabalho de
educação muito maior que o do homem. Pensamentos sombrios,
preocupações pesavam sobre Josefa no romance de Ilse
Frapan. Seus ombros frágeis se curvam sob b fardo pesado da vida.
Gostaria de soluçar, chorar por si mesma, como faziam as mulheres
antigas, entregar-se à sua dor. Mas trabalho — trabalho de clínica
medida hora a hora — não espera. Não é possível deixar para
amanhã, como o trabalho doméstico, ou o conserto das roupas de
criança. Josefa deve fazer sobre si o esforço, habitual para o homem,
e desconhecido da mülher do passado: esconder sua vida privada
como se fosse atrás de um biombo, e estar em seu trabalho na hora
marcada.
Mathilde vê morrer o filho que é sua alegria, tudo que lhe restou
de um amor ardente. Mas a profissão obriga-a a ficar na fábrica e
seus dedos hábeis trabalham sem romper os fios.
A realidade contemporânea exige implacavelmente de cada
mulher que tem um ofício, uma profissão, um trabalho fora,
disciplina e força de vontade capazes de vencer seus sentimentos
assim como só excepcionalmente se encontravam na mulher antiga.
O ciúme, a desconfiança, a absurda vingança dé mulher, não são
características típicas da mulher antiga? O ciume, este sentimento
que esteve na origem de quase todas as tragédias da alma feminina!
Sem dúvida, o ciúme também é uma tragédia para o homem. Mas,
para seu Otelo, Shakespeare não escolheu um inglês disciplinado,
civilizado, nem um veneziano de inteligência refinada, mas um
mouro entregue a suas paixões.
Esta dependência da mulher em relação à seus sentimentos
levou-a a exprimir seu ódio contra a rival sob as formas mais
monstruosas, trouxe à superfície suas características mais
humilhantes de escrava. Se a heroína nem sempre usava vitríolo
contra a rival, nem por isso deixava de lançar contra ela o veneno da
calúnia.
As novas mulheres não reivindicam apropriedade de seu amor.
Exigindo respeito a sua própria liberdade de sentimentos, aprendem
a admitir esta liberdade também para os outros. É particularmente
interessante observar a atitude da heroína para com sua rival numa

70
série de romances contemporâneos. Em vez do vitríolo e da calúnia,
uma atitude cheia de delicadeza compreensiva em relação à “outra”*,
a rival. Assim, em A voz , Maia e a primeira mulher do homem que
ama não apenas não se odeiam, mas ainda encontram uma
linguagem comum e se mostram em muitos pontos mais próximas
uma da outra que do homem que amam. Maia chora pelas ofensas
infringidas por ele a sua rival. É para ela uma humilhação pessoal
saber dos sofrimentos de sua rival quando o homem amado a tomava
como uma coisa que lhe pertencesse legalmente, sem ternura. Maia
fica ofendida pela Mulher. Sabe sentir além dos limites estreitamente
individuais; aparece um sentimento desconhecido da mulher do
passado, o sentimento da coletividade, da camaradagem.
E não é característica a atitude da mesma Maia diante da traição
absurda, inútil, de seu segundo marido? Não desmaia, não faz
escândalo. Foge, corre para os berços dos filhos da primeira mulher
daquele homem. Os rostinhos adormecidos apagam sua tristeza.
Volta para seu lar solitário, Com frio, acende o fogo, enrola-se num
chale e obriga-se a ler um livro interessante. Assim, pode escapar
mais rapidamente de si mesma; reencontrando o equilíbrio
necessário.
Irina, no romance de Kredo, No nevoeiro da vida, nãQ apenas
aceita a antiga ligação de Vítor, mas exige da parte dele uma atitude
delicada para com sua rival. Ao contrário, conhecendo o passado de
Irina, Vítor pergunta, com o tom do macho ofèndido: “Qual é o meu
número pa fila? Quero saber. Houve muitos?...” Vítor é um homem
de vanguarda, um escritor, mas também nele a fera é mais forte do
que na insignificante Irina, que só é interessante porque também ela
estende as mãos para a nova verdade da vida.
Na nova mulher, a fêmea ciumenta é sempre mais
freqiientemente vencida pela mulher-individualidade.
Outro traço típico da mulher contemporânea consiste nas
maiores exigências que faz ao homem, o que Ellen Key destaca
frequentemente em seus escritos. No decorrer dos séculos, a mulher
do passado foi habituada, por seu “amo e senhor”, a negligenciar-se e
a seu pequeno mundo espiritual. Aceitava os sorrisos indulgentes dos
homens diante de suas fraquezas e mágoas de mulher e se resignava
com a falta de atenção para com seus pensamentos e sentimentos.
Não estranhamos, ainda hoje, quando só raras exceções entre os
homens sabem compreender a mulher, mesmo nos momentos mais
íntimos. Esta atitude tão superficial e negligente diante do “eu”
feminino sempre foi a causa das tragédias familiares.

71
Os dom Juan experimentados sabiam conquistar não apenas o
corpo da mulher, mas também sua alma, representando
hipocritamente a comédia da compreensão, fingindo uma atenção
amorosa para com o “eu” insignificante da mulher, que o marido,
mais sincero, negligenciava. Mas os dom Juan vinham e passavam,
o senhor legal permanecia e a mulher, adaptando-se à vida, durante
séculos, reduzia suas próprias necessidades e exigências.
O homem dava anéis e brincos, trazia flores e bombons. Logo,
amava. E se era despótico e grosseiro, se impunha uma série de
defesas e de exigências, não fazia mais que usar de seu direito, o
direito do senhor!
A mulher contemporânea torna-se exigente; deseja e solicita o
respeito à sua personalidade, à sua alma, consideração a seu “eu”.
Não suporta o despotismo. Quando o amante de Maia a proíbe de
cantar nos concertos e, ao saber de sua “desobediência”, resolve
puni-la, escrevendo-lhe durante duas semanas inteiras, mata nela
seus sentimentos por ele. Puni-la, quando ela livremente deu-lhe seu
coração?
Esta luta para salvaguardar a liberdade interior, lembra algo das
mulheres das lendas antigas. “Tua vontade está feita, mas perdeste
tua mulher em mim”, diz Rosámunda a seu real esposo quando este a
obriga a beber no crâneo de seu pai que ele assassinou. Na boca de
Rosamunda, não se trata de uma simples ameaça: mata seu marido
que até então amara apaixonadamente.
A mulher contemporânea pode perdoar muito do que era mais
duro para a mulher antiga: a incapacidade do homem para
conseguir-lhe bem-estar material, negligência externa para com ela,
mesmo uma infidelidade; mas nunca esquecerá nem aceitará uma
atitude negligente para com seu “eu” espiritual, sua “alma”. Se seu
amigo não a compreende, suas relações perdem, aos olhos da nova
mulher, a metade de seu valor.
Quando o amante de Christa Rouland responde-lhe primeiro
com gracejos quando lhe pergunta o que pensa da mulher, e quando
ele expressa só opiniões banais e correntes, Christa se afasta
involuntariamente dele. Como é possível, depois de conquistar seu
coração por seu interesse por seu “eu” espiritual, mostrar-se surdo, a
ponto de não compreender quanto é importante para ela ouvir outra
coisa? Christa não perdoa Frank, assim como nenhuma nova mulher
perdoaria esta mudança que se produz no homem depois da posse.
Tentando garanti-la para si, o homem quer abafar, nesta mesma
mulher que amou por seu ousado vôo, pela independência de seu
espírito, o fogo sagrado da busca; desejando-a, esforça-se por fazer

72
dela um simples objeto de prazer. Com surpresa, Christa Rouland
observa como o mesmo Frank qüe tentava atraí-la para a esfera de
seus interesses espirituais, que sonhava com uma atividade comum,
começa a se separar dela, a viver em seu mundo intelectual próprio.
Já não se trata de uma atividade comum. Mas mesmo nos
momentos em que Christa participa avidamente de seu trabalho, ele,
Frank, vê nela apenas a mulher, tanto mais sedutora quanto mais
arguta e inteligente. Como se, por seu espírito, por seu poder de
atingir com ele as elevadas regiões do pensamento, Christa
aumentasse sua atração sensual. Infeliz, como se lhe tivessem
roubado um tesouro, Christa se afasta. A nova mulher perdoa a
ofensa feita à fêmea, mas não esquece uma simples desatenção para
com ela enquanto personalidade. É a mesma exigência de » m a
formação espiritual do eleito de que fala Vera Nikodimovna: “Na
mulher, a inteligência, ainda que de boa qualidade, fica apenas em
segundo plano. O essencial é a base moral. Esta se desenvolve, afia-
-se, aguça-se cada vez mais. Tornamo-nos extremamente sensíveis e
inteligentes. Nos homens, ao contrário, esta base moral se cristaliza e
se desenvolve muito pouco. E isto é o que nos faz infelizes.
Frequentemente, os homens não compreendem o que nos rechaça
neles”.
A necessidade da mulher de se sentir amada, não tanto pelo
feminino e impessoal, mas pelo conteúdo espiritual de seu “eu”,
aumentou naturalmente ao mesmo tempo em que sua tomada de
consciência de si própria enquanto individualidade. “Maldigo meu
corpo de mulher; por sua causa você não vê que há em mim outra
coisa, muito mais preciosa”, exclama Nadejda Sanjar durante todo
seu livro, N o t a s d e A n a , Este protesto, sob uma ou outra forma, é
repetido pelas heroínas de todas as nacionalidades. Mesmo a alma
simples da Tatiana de Gorki protesta contra uma atitude que
pretende fazer dela um simples instrumento de prazer. “Queria me
possuir... e eu não quero, não consigo assim, sem coração, como um
gato... como vocês são todos seres tão grosseiros...”
Quanto mais é fina a personalidade de uma mulher, quanto mais
sente-se um ser humano, quanto maior é para ela a ofensa do homem
que, por sua mentalidade, no decorrer dos séculos, não sabe
perceber, sob a mulher desejada, a individualidáde que desperta.
Esse aumento das exigências em relação ao homem obrigam
numerosas heroínas dos romances contemporâneos a ir de uma
paixão a outra, de um amor a outro, na dolorosa busca do ideal
inacessível: a harmonia da paixão e do parentesco espiritual, a
conciliação do amor e da liberdade, a união da camaradagem e da
independência mútua.

73
“Não há nada que deseje com mais ardor do que encontrar um
homem que eu já não quisesse deixar”, exclama Maia, a incansável
andarilha. E rompe com seu amigo, só porque vive nela o ideal
inextinguível de uma integração amorosa mais completa e mais
perfeita. A realidade atual engana todas as ingênuas que buscam um
amor harmonioso, íntegro. Rompem implacavelmente os laços,
partindo em busca de seu sonho. Mas esquecem que o que buscam
atualmente só poderá se realizar num futuro longínquo, com homens
de alma renovada, que tenham absorvido organicamente a idéia que,
na união amorosa, o primeiro lugar deve pertencer à camaradagem e
à liberdade.
A mulher antiga não sabia apreciar a independência pessoal.
Aliás, o que faria com esta independência? Que há de mais
lamentável, de mais impotente, que uma esposa ou amante
abandonada, se se trata de uma mulher do tipo antigo? Com a
partida ou a morte do homem, a mulher perdia não apenas sua
existência material, mas ainda seu único apoio moral. Incapaz de
enfrentar a vida, a mulher antiga temia a solidão e estava pronta, na
primeira ocasião, a renunciar a inútil e desagradável independência.
A nova mulher, não apenas não teme a independência, como
aprende a apreciá-la cada vez mais, na medida que seus interesses
ultrapassam amplamente os limites da família, do lar, do amor. Para
Vera Nikodimovna, nada é mais apavorante que a dependência
material em relação ao homem: “Oh! se eu dependesse do homem, se
tivesse que escolher um que fosse meu marido e me mantivesse, seria
muito infeliz”, diz ela a uma amiga. Ter um marido proprietário e
senhor de sua alma, é um pensamento que aterroriza Vera, como a
prisão pode apavorar um prisioneiro que, enfim, conseguiu fugir
para a liberdade. “Nunca aceitaria uma tal escravidão... Vivi um dia
algo semelhante... — É casada? — Não, não sou casada, mas tive
meu romance e minha paixão”.
A nova mulher sente-se acorrentada no casamento, mesmo
quando este não é legal. A mentalidade do homem antigo, viva
ainda, cria laços morais que não cedem em solidez às cadeias
externas.
Mas com tanta maior obstinação, as novas heroínas fogem de
tudo o que podería ligá-las externamente ao homem amado. A
dependência material, a impotência total diante do mundo sem o
apoio seguro do braço masculino obrigavam a mulher de tipo antigo
a preocupar-se antes de mais nada com a consolidação dos laços
amorosos. Só então, sentia-se segura. Ao contrário, a nova mulher,
obrigada a carregar sozinha o fardo material da vida, tem uma

74
atitude negativa ou indiferente diante das formalidades. Não se
apressa em dar uma forma determinada a suas relações amorosas.
Respondendo ao amigo que a interroga sobre a forma de suas
relações amorosas com o homem que ama: “É uma união legal ou
uma ligação amorosa momentânea?’, Renée, a nômade, levanta os
ombros: “Nós? Apenas nos estudamos um ao outro”, “E o futuro?”
“Oh! Margot, não gosto do futuro!”
Até então, o conteúdo fundamental da vida das heroinas
reduzia-se ao sentimento de amor. Este iluminava mesmo uma vida
cheia de privações materiais e, ao contrário, a ausência de amor
tornava a vida de uma mulher insossa, vazia, pobre; nem as riquezas
exteriores, nem a glória, nem mesmo as alegrias da maternidade,
podiam substituir, para a mulher, a perda de um amor feliz (40).

Se o coração estava vazio, a vida também parecia vazia. Neste


ponto, as mulheres antigas distinguiam-se nitidamente do homem.
Pois o homem, ao lado da vida do coração, tinha sempre uma
atividade particular e, enquanto a mulher se desvanecia na espera,
ele, o homem, lutava contra o destino, em algum mundo
desconhecido, incompreensível. Quantos dramas psicológicos não
aconteceram porque o homem ardentemente esperado, de volta
depois do trabalho, em vez de devotar-se inteiramente a ela, tirava
papéis da pasta, apressava-se em engolir o jantar correndo para
alguma assembléia, ou lançando-se avidamente a um livro. A mulher
olhava sem compreender, com uma queixa no coração: bem que
deixava por ele uma costura inacabada, a cozinha meio arrumada,
deitava as crianças, com o único objetivo de estar com ele, de
esquecer os negócios, o trabalho, a política. As mulheres de todas as
camadas sociais sofriam com a incompreensão diante do homem e
seus interesses, situados num mundo que lhes era estranho, bem
distante do ninho familiar. Encontramos esta imcompreensão do
homem tanto na mulher do professor quanto na do funcionário, na
mulher do operário como na do empregado.

(40) É interessante observar que a maternidade foi quase sempre considerada


como o último refúgio da felicidade da mulher; se o casamento não foi feliz, se foi
obrigada a renunciar a uma relação amorosa, se enviuvou, restava sempre um último
“refúgio”: os cuidados e as alegrias da maternidade. Raramente esta era considerada
como um objetivo em si e só perto da velhice despertavam na mulher os sentimentos
atávicos de raça, de família, ídolo que ela adorava e para o qual exigia despoticamente
a adoração dos outros membros da família.

75
A exclamação ofendida da esposa: “Já vai para a sua horrorosa
assembléia!”, acompanha frequentemente, ainda hoje, o marido, seja
ele operário ou banqueiro.
Mas à medida que a mulher participa mais amplamente do
movimento da vida social, que se torna uma peça ativa no
mecanismo da vida econômica, seu horizonte se amplia. As paredes
de sua casa que, para ela, substituíam o mundo, desabam, e se deixa
penetrar inconscientemente por interesses que, antes, eram-lhe
totalmente estranhos e incompreensíveis.
O amor deixa de ser para ela o conteúdo de sua vida. Começa a
ter apenas o lugar acessório que ocupa na vida da maioria dos
homens. Sem dúvida, existem, para a nova mulher também,
períodos da vida em que o amor, a paixão, preenchem sua alma, sua
inteligência, seu coração e sua vontade, em que todos os outros
interesses da vida empalidecem e são deixados para trás. Em tais
momentos, a nova mulherpode ter seus dramas agudos, suas alegrias
e suas dores, não menores que as da mulher antiga. Mas a paixão, o
amor, é ajpenas uma parte da vida. Seu verdadeiro conteúdo consiste
nesta alguma coisa de sagrado que a nova mulher reverencia: uma
idéia social, a ciência, uma vocação, o trabalho criador. Esta obra,
este objetivo, é para ela, mais importante em geral, mais precioso,
mais sagrado que todas as alegrias do coração, todos os prazeres da
paixão.
Daí decorre esta nova atitude diante do trabalho, nunca
encontrada nas heroínas de antigamente. A heroína de Benett acaba
de ter sua primeira conversa amorosa com o homem amado. Mas
quando este propõe, voltar na manhã seguinte, interrompe-o quase
com medo, apesar de seu amor e sua felicidade: “Mas não antes da
hora do almoço!” “Não antes do almoço? Por quê?”
“Estava espantado. Mas durante cinco anos, tinha me
acostumado a ser senhora de mim mesma. Meus- gostos, meus
hábitos, minha organização de vida estavam estabelecidos. Jamais
recebo alguém antes do almoço. E amanhã, justo amanhã, tenho
tanto trabalho. Este homem viria, como um conquistador, estragar
minha manhã? Uma inquietação abafada despertava em mim, por
minha liberdade, por minha independência.”
Não será este um traço novo na psicologia da mulher amorosa?
Uma mulher que atrasa voluntariamente um encontro desejado, que
promete alegria, só porque está habituada a escrever de manhã, só
porque lamentaria estas horas perdidas, roubadas ao trabalho! Para
a mulher antiga, seria possível perder horas de amor, dedicadas ao
amado? Tânia, do romance de Nagrodskaia, passando sua lua-de-

76
-mel com Stark, atormenta-se com a consciência de sua ociosidade.
A tela inacabada olha-a com uma queixa.
“Decidi guardar este dia e vou pedir a Stark para não vir hoje”,
decide ela. Mas Stark (nos romances antigos este papel caberia à
heroína) fica indignado e protesta: “Um dia inteiro sem você, diz ele
com o tom de uma criança caprichosa. Não a incomodarei, ficarei
quieto”. “Começo a odiar sua arte — diz ele mais adiante — é um
rival demasiado poderoso”.
Tânia cede ainda esta vez, mas o remorso pelo trabalho
negligenciado não a deixa. Não pode haver plenitude nem paz em
suas alegrias amorosas, se o trabalho sofre com isso.
“Hoje estou trabalhando — escreve, feliz. Trabalhando
avidamente, com prazer, quase sem interrupção, desde as primeiras
horas da manhã”. O balanço deste dia é claro, alegre. Sentimos que
o ser afastou por algum tempo a embriaguez da paixão e se
reencontrou. Trabalhando, com a palheta na mão, Tânia despertou
do sono e se deu conta, de repente, que além dela e de Stark, além
de sua atmosfera de paixão próxima ao êxtase, ainda existe um
mundo inteiro, cheio de cores, de alegrias, de belezas e de sofrimento.
Subitamente lembra-se de seu amigo Weber, sente sua falta, assim
como um peregrino voltando ao lar depois de longa ausência. Tente
encontrar uma mulher de tipo antigo que suspira assim de alívio ao
escapar da embriaguez da paixão, voltando ao trabalho
abandonado, valorizando de novo sua existência independente, sua
própria individualidade!
Para a mulher antiga, a maior dor era a traição ou a perda do
homem amado; para a nova mulher, é a perda dela mesma, a
renúncia a seu próprio “eu” sacrificado ao amado, a felicidade do
amor. A nova mulher já se revolta, não apenas contra as cadeias
exteriores, mas também contra o próprio cativeiro amoroso; teme os
ferros que o amor, em nossa época de psicologia deformada, impõe
aos amantes. Habituada a dissolver-se inteira nas vagas do amor, a
mulher, mesmo a nova, encontra este sentimento sempre com
ansiedade, temendo que seu ímpeto desperte nela a tendência atávica
a ser apenas o eco do homem, obrigue-a a renunciar a si mesma, a
afastar-se do trabalho, de sua vocação, do objetivo de sua vida.
Jé não é a luta pelo direito ao amor, mas o protesto contra o
cativeiro moral de um sentimento ainda que externamente livre. É a

77
revolta (41) das mulheres de nosso período de transição, que ainda
não aprenderam a conciliar a liberdade interior e a independência
com o poderio devorador do amor.
A mulher antiga, ao afastar-se do amor, mergulhava no mundo
vazio de sua vida cinzenta, pobre de conteúdo; a nova mulher, livre
do cativeiro amoroso, ergue-se outra vez com alegria e surpresa. Já
não existe a servidão do pensamento — exclama triunfalmente a
heroína de Kredo, depois de estar certa de que passou-a embriaguez
da paixão; já não há sofrimentos, agitação, temor: está livre e seu
coração não está machucado, pois o homem que amava desapareceu
subitamente de sua alma”. E Irina se alegra de “sentir em si as forças
e as energias que diminuíam sempre quando ela tentava buscá-las em
uma alma estranha; tal opressão de suas próprias forças dava-lhe
sempre uma sensação de rebaixamento, de humilhação; é por isso
que seu despertar causa-lhe alegria.
Libertar-se do cativeiro de um pensamento estranho, libertar-se
da dor, do sofrimento, estes “agudos e ferventes frutos dos beijos”,
ser Outra vez ela mesma, reencontrar-se! Que felicidade para a mu­
lher nova e que emoção de alegria incompreensível, desconhecida
das mulheres antigas!
Foi preciso uma transformação considerável na alma da
mulher, um poderoso enriquecimento de sua vida intelectual, o
acúmulo de um grande capital de valores próprios, para permitir-lhe
não ceder num momento em que o homem retirava a parte que
depositara em sua vida. Mas é precisamente porque a vida da nova
mulher não se reduz ao amor, havendo em sua alma uma reserva de
necessidades e interesses tornando-a uma individualidade, que
aprendemos a aplicar um critério novo para apreciar a personalidade
moral da mulher. Durante numerosos séculos, mediu-se seu valor,
não por qualidades humanas, não por sua inteligência, não pelas
qualidades de sua alma, mas exclusivamente pelo fundo de virtudes
femininas que a moral burguesa da propriedade exigia; dela. A
pureza sexual, a virtude sexual determinavam o aspecto moral da
mulher. Não havia perdão para a mulher que pecasse contra o código
da moralidade sexual. Os romancistas preservavam com cuidado
suas heroínas prediletas da “queda”, ao mesmo tempo que permitiam
às outras pecar, como os homens, que, no entanto, nem por isso
perdiam seu valor moral.

(41) A revolta é uma das características das heroínas da nova literatura: a revolta
contra as condições sócio-econômicas, pela afirmação de seu próprio eu , contra as
leis da moral sexual, contra o cativeiro amoroso. A revolta tem um papel enorme na
psicologia da nova mulher.

78
As heroínas dos romances contemporâneos, as novas mulheres
celibatárias, infringem frequentemente as proibições do código de
virtude sexual em vigor e, contudo, hem o autor nem o leitor
consideram estas heroínas personagens viciadas.
Admiramos a audaciosa Magda de Sudermann, embora esta
jovem tenha “pecado” várias vezes. A Mathilde de Hauptmann nos
emociona, apesar de suas ligações ilegais e dos filhos que tem com
diferentes amantes (42).
Não é o que acontece com a maioria dos homens que, no
entanto, continuamos a respeitar? Sem que nos tenhamos dado
conta, deu-se uma mudança em nossa psicologia. Admitimos agora a
nova moral em formação e o que era, há cinqüenta anos, uma
mancha indelével para uma jovem ou uma mulher é considerado hoje
um fato que não necessita de justificativa ou perdão. Em sua época,
George Sand foi obrigada a defender o direito da mulher a
abandonar seu marido legal por um amante livremente eleito. Na
farisaica Inglaterra, Grant Allan teve que, ainda recentemerite,
assumir a proteção da mãe solteira. Mas, à medida que a mulher se
torna independente, que deixa de depender de seu pai ou de seu
marido, que participa lado a lado com o homem da luta social, o
velho critério torna-se inútil.
O gradual acúmulo na mulher de características e sentimentos
morais humanos nos ensina a apreciar nela, não a representante do
sexo, mas uma individualidade, e a antiga avaliação que via na
mulher uma fêmea garantindo a seu marido um descendente legal,
desaparace.
No começo, a vida nos ensinou a aplicar esta medida apenas às
“grandes almas”; com efeito, perdoávamos aos artistas, aos talentos,
suas infrações ao código de moral sexual em vigor.
“Mas porque estes direitos existiríam apenas para as “almas de
escola”, pergunta com razão Çebel, “e não para as outras?”
Se Goethe e George Sand — considerando apenas estas duas,
embora sejam bem numerosas as que agem da mesma maneira —
ousaram viver de acordo com os desejos de seu coração, se as
aventuras amorosas de Goethe preenchem volumes inteiros,

(42) As aventuras amorosas de Mathilde não nos impedem absolutamente de


respeitar esta personalidade íntegra e pura. Mas, assim como Mathilde, ficamos
cheios de piedade e desprezo por sua irmã Marta, operária como ela, que traz
dinheiro, depois de uma aventura amorosa. Um abismo separa a liberdade de
Mathilde e a venalidade de Marta.

79
devorados com respeitoso entusiasmo. por seus admiradores e
admiradoras, porque condenar nas outras o que nos encanta em
Goethe ou George Sand (43)?”
Hoje, estamos prontos a rir dos hipócritas que se recusem aaper-
tar a mão de uma Sarah Bernhardt ou a'assistir a um espetáculo
por causa de sua liberdade de vida. Mas quando se trata de simples
mortais, hesitamos freqüentemente ao julgar uma personalidade e ao
tomar uma atitude diante das mulheres livres e celibatárias^
Entretanto, se pensássemos realmente em aplicar a estas mulheres a
medida moral dos tempos passados, seríamos obrigados a desviar-
-nos das mais belas e mais humanas figuras de mulher da literatura
contemporânea.
Enquanto as mulheres antigas, educadas no respeito à pureza
imaculada da Virgem, esforçavam-se por conservar a “virtude” e
dissimulavam os sentimentos reveladores das necessidades naturais
de seus corpos, o traço característico da nova mulher é a auto-
-afirmação, não apenas como individualidade, mas como
representante do sexo. A revolta da mulher contra a estreiteza da
moral sexual é um dos traços mais nítidos da nova mulher.
Isto é compreensível. A mulher, a mãe, carrega o futuro. A vida
psicológica, ao contrário dos conceitos hipócritas, tem um papel in­
comparavelmente maior na mulher do que no homem. A liberdade
do sentimento, a liberdade de escolha do homem amado, que pode
vir a ser o pai de “seu” filho, a luta contra o fetichismo da dupla mo­
ral, tal o programa que, silenciosamente, as novas mulheres realizam.
O traço típico da mulher antiga era a renúncia ao poder da carne, a
máscara de pureza, mesmo no casamento. A nova mulher não abdica
de sua natureza feminina, não foge da vida e das alegrias terrestres
que a realidade, tão avara em sorrisos, lhe concede. As novas
heroínas tornam-se mães sem serem casadas, deixam seu marido ou
seu amante, sua vida pode ser rica em peripécias amorosas e, no
entanto, nem elas, nem o autor, nem o leitor contemporâneos,
consideram-nas criaturas “perdidas”. Os casos de amor livre e fran­
co de Mathilde, Olga, Maia têm sua ética própria, mais perfeita
talvez que a virtude passiva da Tatiana de Pouchkine (44), ou a moral
amedrontada da Lisa de Tourguenev (45).

(43) Bebel, A. A Mulher e o socialismo.


(44) P ouchkine, Eugênio Oneguine.
(45) Tourguenev, Um ninho de genlis-homens.

80
Tal é a nova mulher. A disciplina em lugar da afetividade
exagerada; o apreço à liberdade e à independência, em lugar da
submissão e da falta de personalidade; a afirmação de sua
individualidade em lugar de seus ingênuos esforços por assumir as
características do homem amado e refleti-las; a afirmação de seus
direitos às alegrias terrestres em vez da máscara hipócrita da pureza;
ou seja, relega os episódios amorosos a um lugar secundário na vida.
Temos diante de nós, não a fêmea e a sombra do homem, mas a nova
mulher, ela mesma uma individualidade.

81
III. PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS
O primeiro destes textos foi tirado de um panfleto escrito em
1918, “A Família e o Estado comunista”, destinado a uma grande
difusão. Alexandra Kollontai desenvolve nele as mesmas idéias que
em sua obra teórica “As Bases sociais da questão feminina”, mas o
tom é mais didático e a linguagem mais simples, tendo em vista o
público a que se destina a brochura. Reproduzimos as últimas
páginas para dar uma idéia da linguagem da propaganda da época.
Os dois textos seguintes fazem parte de uma série de
conferências pronunciadas pela autora em 1921 na Universidade
Sverdlovsk de Moscou. Estas conferências destinavam-se às futuras
militantes das organizações femininas. Foram publicadas em 1923
sob o título: “O Trabalho da mulher na evolução da economia”.
Reproduzimos duas destas conferências, a décima-segunda e a
décima-terceira, chamadas respectivamente “Revolução na vida
cotidiana” e “Revolução nos costumes”. (*)

(*) Nota da edição francesa.

83
A Sociedade de amanhã
(...) Trabalhadoras e mães, tranqüilizem-se: a sociedade
comunista não pretende tirar o filho dos pais, nem arrancar o bebê
do seio da mãe; tampouco tem a intenção de recorrer a meios
violentos para destruir a família. Absolutamente! Tais não são as
perspectivas da sociedade comunista. O que vemos hoje? A família
antiga se decompõe; liberta-se pouco a pouco de todos os trabalhos
domésticos, pilares de sustentação da família enquanto tal. O
cuidado da casa? Também deixou de ser uma necessidade. Os filhos?
Os pais proletários não têm condições para cuidar deles; não podem
garantir sua subsistência hem sua educação. Com esta situação
sofrem igualmente pais e filhos. A sociedade comunista vem à
operária e ao operário para dizer-lhes: vocês são jovens, vocês se
amám. Cada um tem direito à felicidade. Assim, vivam a sua vida.
Não fujam da felicidade, não tenham medo do casamento que, para o
operário e a operária da sociedade capitalista, era realmente uma
prisão. Sobretudo, não temam, vocês que são jovens e sadios, dar à
pátria operária novos trabalhadores, novos filhos-cidadãos. A
sociedade dos trabalhadores precisa de novas forças de trabalho e
alegra-se com a chegada ao mundo de cada recém-nascido. Não se
inquietem com o futuro de seu filho: não terá fome nem frio, não será
infeliz nem abandonado à sua própria sorte, como seria o caso no
regime capitalista. Uma ração de subsistência, cuidados especiais
são garantidos à criança e à mãe na sociedade comunista, pelo
Estado dos trabalhadores, a partir do momento em que uma criança
vem ao mundo. Será alimentada, educada, instruída graças aos
cuidados da pátria comunista. Esta pátria evitará cuidadosamente
afastá-la dos pais que queiram participar de sua educação. Assumirá
os encargos que a educação dos filhos comporta, mas as alegrias
paternas, as satisfações maternas, serão dos que se mostrem aptos a
compreendê-los e a saboreá-los. Pode se chamar a isto destruição da
família por meios violentos? Ou separação forçada da criança e da
mãe?
Impossível não reconhecer: a família antiga se destrói, mas o
Estado comunista não fez nada para isso. Responsáveis são as novas
condições de vida. A família deixa de ser necessária ao Estado, como
era antes; ao contrário, desvia inutilmente as trabalhadoras de uma
tarefa mais produtiva e muito mais séria. Tampouco é necessária aos
próprios membros da família, já que a tarefa de educar os filhos, que
incumbia à família, é assumida cada vez mais pela coletividade. Mas
sobre as ruínas da família antiga, veremos surgir em breve uma
forma nova que comportará relações totalmente diversas entre o

85
homem e a mulher e que será a união do afeto e da camaradagem, a
união de dois membros iguais da sociedade comunista, ambos livres,
ambos independentes, ambos trabalhadores. Fim à servidão
doméstica das mulheres! Fim à desigualdade no seio da família! Fim
ao temor da mulher de ficar sem apoio nem ajuda, com os filhos nos
braços se o marido a abandona. A mulher da cidade comunista já
não depende de seu marido, mas de seu trabalho. Não é seu homem,
mas seus braços de operária que a alimentam. Tampouco haverá
lugar para angústia pelo destino dos filhos. O Estado dos
trabalhadores se encarrega deles. Veremos o casamento despojado
de todo aspecto material, de todo cálculo de dinheiro, esta chaga
medonha da vida familiar de nossos dias. Q casamento se transforma
a partir de então, nesta sublime associação de duas almas que se
amam, que têm fé uma na outra, esta associação que promete a cada
trabalhador e a cada trabalhadora, ao mesmo tempo que a alegria
mais completa, o máximo de satisfação que pode caber a seres
conscientes de si mesmos e da vida que os cerca. A uhião livre, mas
forte pelo espírito de camaradagem que a inspira, em vez da
escravidão conjugal do passado, eis o que a sociedade comunista de
amanhã significará para o homem e para a mulher. Uma vez as
condições de trabalho transformadas e aumentada a segurança
material das trabalhadoras, depois que o casamento celebrado na
igreja — este casamento dito indissolúvel — , depois que este
casarhento tiver cedido lugar à união livre e sincera do homem e da
mulher amantes e camaradas, veremos desaparecer ao mesmo
tempo esta outra calamidade, este outro mal vergonhoso que
desonra a humanidade e que atinge a operária faminta: a
prostituição.
Devemos este mal ao regime econômico em vigor, à instituição
de propriedade privada. Abolida esta, o comércio de mulheres
também desaparecerá.
Mulheres da classe operária, não se aflijam, pois, ao ver a
família atual condenada ao desaparecimento. E melhor saudar com
alegria a aurora da nova sociedade que libertará a mulher de sua
servidão doméstica, que tornará mais leve o fardo da maternidade, e
onde veremos, enfim, terminar a mais terrível das maldições que pesa
sobre a mulher e que se chama prostituição.
A mulher chamada a lutar pela grande obra de libertação dos
operários deve saber compreender que na cidade nova já não há
lugar para as divisões de outrora: “ Esses são meus filhos, para eles
toda minha solicitude materna, todo meu afeto. Aqueles são seus fi­
lhos, são os da vizinha, não me dizem respeito. Já faço bastante cui­
dando dos meus!” Doravante, a trabalhadora e mãe, consciente de

86
seu papel social, deve aspirar a não fazer diferença entre os teus e os
meus, deve lembrar-se que existem apenas n ossos filhos, os da cidade
comunista, comuns a todos os trabalhadores.
O Estado dos trabalhadores precisa de uma nova forma dè
relações entre os sexos. O afeto estreito e exclusivo da mãe por seu
filho tem que crescer para abraçar todos os filhos da grande família
proletária. Em lugar do casamento indissolúvel, baseado na servidão
da mulher, veremos nascer a união livre, forte pelo amor e o respeito
mútuos de dois membros da cidade do trabalho, iguais em seus
direitos e deveres. Em lugar da família individual e egoísta surgirá a
grande família universal operária em que todos os trabalhadores,
homens e mulheres, serão, antes de mais nada, irmãos,
companheiros. Tais serão as relações entre o homem e a mulher ha
sociedade comunista de amanhã. Estas relações novas garantirão
para a humanidade todas as alegrias do amor livre, enobrecido pela
verdadeira igualdade social entre os cônjuges, alegrias que a
sociedade mercantil do regime capitalista ignorava.
Üm caminho para as crianças saudáveis, florescentes, um
caminho para a juventude vigorosa, apaixonada pela vida e suas
alegrias, livre em seus sentimentos e em seus afetos. Tal é o lema da
sociedade comunista. Em nome da igúaldade, da liberdade e do amor
livre, chamamos operárias e operários, camponesas e camponeses, a
empreender corajosamente e com fé a obra de reconstrução da
sociedade humana a fim de torná-la mais perfeita, mais justa, e mais
apta a assegurar ao indivíduo a felicidade que merece. As bandeiras
vermelhas da revolução social que, depois da Rússia, hasteiam
outros países do mundo já anunciam a próxima chegada do paraíso
terrestre, ao qual, há séculos, aspira a humanidade.

Revolução na vida cotidiana *


Também o conjunto do novo sistema econômico desempenhou
um papel, durante os anos do comunismo de guerra, na modificação
da vida cotidiana, dos hábitos, das idéias e das opiniões das pessoas.

(1) Título original.

87
Quem souber ver e observar reconhecerá que a vida cotidiana se
modifica sob nossos olhos. Em alguns anos, desde que os operários
são os senhores, as próprias raízes da secular servidão da mulher
foram estirpadas. De um lado, a república dos trabalhadores faz a
mulher participar do trabalho produtivo e, de outro lado, esforça-se
por organizar a vida cotidiana em bases novas que assentarão os
fundamentos do comunismo. Infunde nas pessoas hábitos, pontos de
vista e concepção coletivistas.
A modificação da vida cotidiana se manifestou de forma muito
nítida nos primeiros anos da revolução, durante o período do
comunismo de guerra. Os fundamentos dos antigos hábitos, do
antigo modo de vida voaram em estilhaços, e sob o rumor da
fuzilaria nas frentes da guerra civil, sob o peso da desorganização
sempre crescente de toda a economia do pais, vimos constituir-se
com extraordinária nitidez um modo de vida adaptado às sementes
da futura sociedade comunista.
Uma das bases do novo sistema de produção comunista é a
organização e o controle, não apenas da produção, mas também do
consumo. Regulamentar o consumo significa levar em conta
consumidores, não tanto por uma repartição uniforme de todos os
produtos e riquezas do país, quanto por uma organização do
consumo em bases novas, comunistas.
O primeiro cuidado do Estado operário e camponês foi
organizar o consumo de maneira tão sensata e racional, tão estrita e
econômica quanto possível. Foi para este fim, em primeiro lugar, que
se instalou a alimentação coletiva.
Só assim, ou seja, enquadrando o consumo em formas sociais,
coletivas, foi possível, ao menos em certa medida, levando em conta
nossa miséria atual e nossa falta de reservas, lutar contra o
empobrecimento geral e a fome.
Foi a partir da primavera de 1918 que, sob a pressão da
necessidade, a república dos trabalhadores adotou em todas as
cidades o princípio da alimentação coletiva. As cantinas municipais e
as refeições gratuitas para as crianças suplantaram a economia
familiar. Evidentemente, nossa pobreza, nossa carência em
produtos alimentares entravaram o desenvolvimento da alimentação
coletiva e impediram que fosse amplamente implantada. Criaram-se
os aparelhos, organizaram-se canais pelos quais o centro podia
prover ao abastecimento popular, mas faltavam os produtos a
escoar...
O país estava reduzido à miséria, a fome reinava. Além disso, o
bloqueio teimoso e odiento das potências imperialistas impedia que

88
mercadorias de outros países chegassem aos grandes armazéns
populares centrais. E, no entanto, apesar de todos esses defeitos,
apesar da lamentável qualidade de nossas cantinas, apesar da falta de
certos alimentos e do mal-uso dos disponíveis, a alimentação coletiva
passou a ser, para a população das cidades, fator indispensável da
vida cotidiana. Em Petrogrado, em 1919-1920, perto de 90% dos
habitantes estavam inscritos na alimentação coletiva. Em Moscou,
mais de 60% da população freqüentava regularmente as cantinas; em
1920, os organismos de alimentação coletiva serviram de uma forma
ou outra 12 milhões de citadinos, inclusive crianças. É evidente que
este simples fato levou a uma mudança notável na vida cotidiana, nas
condições de existência da mulher. A cozinha, ainda mais
escravizante para a mulher que a maternidade, deixava de ser uma
condição necessária de existência da família. Sem dúvida, ainda
desempenhou um papel importante durante o período de transição,
enquanto apenas traçávamos a via do comunismo, as formas
burguesas de vida em comum ainda não estavam completamente
eliminadas e as bases da economia não estavam ainda radicalmente
modificadas. Mas mesmo neste período de transição, o lar foi
relegado a segundo plano, tornou-se apenas um apoio, um
complemento da alimentação coletiva, na medida que a pobreza,
a desorganização e a fome não nos permitiam fazer cantinas
municipais atingirem o nível desejado. Cada operária começou a
perceber o número de horas que economizava com a refeição pronta
da cantina, e se reclamava, era contra a insuficiência e o fraco valor
nutritivo destas refeições, que, quer quisesse ou não, obrigavam-na a
completá-las, preparando suplementos. Se a alimentação coletiva
fosse melhor, é duvidoso que houvessem muitas donas de casa para
voltar ao fogão. Além disso, se, na sociedade burguesa, a mulhér se
preocupava a tal ponto em regalar seu marido é precisamente porque
era ele quem garantia sua alimentação. Ao contrário, no Estado
operário, onde a mulher é reconhecida como pessoa independente e
cidadã, é pouco provável que se possam encontrar muitas mulheres
dispostas e se ocupar durante horas da cozinha para merecer a
benevolência de seu marido. Que os homens aprendam, pois, a amar
e a apreciar sua mulher não por sua capacidade em preparar bem a
massa, mas pelo que tem de precioso, por suas qualidades pessoais,
por seu “eu” humano... A “separação da cozinha e do casamento” —
eis uma grande reforma, não menos importante que a separação da
Igreja e do Estado, pelo menos no destino histórico da mulher.
Evidentemente, durante os anos do comunismo de guerra, esta
separação apenas se esboçava, mas já é importante que a república
dos trabalhadores, ao pôr à prova a linha geral de desenvolvimento
das novas formas econômicas, tenha sido obrigada a recorrer à

89
alimentação coletiva enquanto forma de consumo mais econômica e
mais racional, exigindo um mínimo de gastos em trabalho,
combustível e produtos alimentares. Mais difícil era a situação
econômica da república, mais urgente se mostrava a necessidade de
organizar-se a alimentação coletiva. A modificação da vida cotidia­
na e, consequentemente, das condições de existência da mulher,
também foi influenciada pelas novas condições de habitação que a
república dos trabalhadores instaurou. A habitação comunitária, a
casa comum para famílias e mais especialmente para pessoas
sozinhas, estão amplamente difundidas entre nós. Em nenhum país
existe tantos lares comunitários como na república dos tra­
balhadores. Cada um deseja se instalar em um edifício comum.
Não por princípio, evidentemente, não por convicção, como faziam
os utópicos da primeira metade do século XIX que, seguindo os
preceitos de Fourier, organizavam falanstérios artificiais e inviáveis,
mas simplesmente porque é muito mais fácil e mais cômodo viver
num edifício comum. Estes edifícios são sempre melhor equipados
que as habitações particulares; neles estão garantidos a luz e o
combustível. Não é raro que tenham reserva de água quente e
cozinha central. A limpeza é feita por profissionais. Em alguns há
uma lavanderia central, em outros creche ou jardim-de-infância.
Quanto mais a vida cara, a penúria de combustível e a
desorganização se faziam sentir, mais insistente se fazia o desejo de
instalar-se em um edifício comum, em um lar comunitário. Os que
viviam em habitações particulares invejavam os habitantes dos
edifícios comuns. A lista dos candidatos aos lares comunitários
aumentava constantemente.
Certamente, estes edifícios comuns estão ainda longe de
suplantar as habitações particulares; a imensa maioria da população
das cidades contenta-se ainda em viver nas condições de instalação
individual e de economia doméstica. Mas já constitui um grande
passo à frente o fato da economia doméstica ter deixado de ser a
única norma de vida. Mesmo se é sob a pressão de penosas condições
econômicas que as famílias e pessoas sozinhas desejam instalar-se
nos lares comunitários, o que importa aqui, é a consciência de que, já
nas condições mais desfavoráveis, o edifício comum apresenta uma
série de vantagens. Então, naturalmente, quando a produção houver
tomado impulso, quando os lares comunitários puderem atingir um
alto nível, poderão manter, tranquilamente, a concorrência com, a
economia familiar privada, pouco econômica e que exige muito
trabalho feminino. São sobretudo as mulheres, todas as que são
obrigadas a conciliar o trabalho e a família, que têm plena
consciência das vantagens do lar comunitário. Para estas mulheres

90
trabalhadoras, o edifício comum é a maior benfeitoria, é a salvação.
A mulher economiza suas forças graças às limpadeiras, à cozinha
comum, à lavanderia central e graças ao fato de que a casa é provida
de luz, combustível e água quente. Toda mulher que trabalha
desejaria hoje apenas uma coisa: que tais edifícios sejam o mais
numerosos possível e que disponham de uma vez por todas de todos
os serviços que representam os vários aspectos da exaustiva e infrutí­
fera economia doméstica. Evidentemente, ainda hoje existem
mulheres que se prendem obstinadamente ao passado: é este tipo
habitual de dona-de-casa para quem toda a vida está concentrada no
fogão. Mesmo nos edifícios comuns, estas mulheres legitiinamente
mantidas por seu marido arranjam um jeito de devotar sua vida ao
culto das panelasle frigideiras... Mas o futuro está contra elas. Inúteis
para a coletividade trabalhadora, estes seres estão condenados pela
história a um desaparecimento inevitável, à medida que no
conjunto da frente econômica se consolide a edificação do modo de
vida comunista. A experiência de nossa revolução confirma que os
edifícios comuns são, não apenas a solução mais racional, do ponto
de vista da economia urbana, para o problema da habitação, mas
também facilitam incontestavelmente a vida das mulheres que
trabalham, criando condições tais que a mulher pode, no atual
período de transição, conciliar a família e o trabalho profissional. À
medida que aumente o número dos lares comunitários de variados
tipos e que estes respondam às necessidades e gostos diversos, é
natural e inevitável que a economia familiar se atrofie e desapareça; e
o desaparecimento dessa economia individual, encerráda entre as
quatro paredes das habitações particulares, levará ao
enfraquecimento dos laçoS fundamentais da família burguesa atual.
Deixando de ser uma unidade consumidora, a família já não poderá
existir em sua forma atual... Vai se desagregar, desvanecer-se. Que
esta afirmação, entretanto, não amedronte os partidários da família
burguesa com sua economia individual, seu mundinho fechado e
egoísta: ainda está longe, infelizmente, a vitória do consumo
comunista. No período de passagem do capitalismo ao comunismo,
na época da ditadura da classe operária, uma áspera luta trava-se
ainda entre as formas de consumo social e as economias familiares
privadas. Quanto a acelerar a vitória do primeiro, só pode fazê-lo,
abordando conscientemente a questão, o setor da população a quem
isto diz respeito mais diretamente: as mulheres trabalhadoras.
As estatísticas da URSS ainda são muito pobres em dados sobre
o problema da habitação e suas condições. No entanto, já durante o
período do comunismo de guerra, os números testemunhavam o
notável papel desempenhado pelas habitações comuns em nossa
economia urbana, pelo menos nas grandes cidades. Assim, em 1920

91
em Moscou, em 23 mil casas, havia mais de oito mil habitações
comuns ou seja, perto de 40%. Desde os primeiros anos de sua
existência, a república dos trabalhadores, ao transformar
radicalmente o sistema de produção e a economia, criou pois as
condições necessárias para que, gradual mas inelutavelmente, a
mulher se liberte das tarefas domésticas improdutivas.
Mas a redução do trabalho improdutivo da mulher na
economia doméstica é apenas um aspecto do problema de sua
libertação. Também fica presa à casa e à família por um fardo não
menor: o cuidado e a educação dos filhos. O poder dos soviets, por
sua política comunista no domínio da proteção à maternidade e à
educação social, alivia muito a mulher desse fardo, na medida que é
assumido pela Coletividade, pelo Estado operário.
Em sua pesquisa de novas formas de vida e de economia capazes
de responder às necessidades do proletariado, a república soviética
cometeu inevitavelmente uma série de erros. Mais de uma vez teve
que modificar e corrigir sua linha. Mas no domínio da educação
social e da proteção à maternidade, a república dos trabalhadores
escolheu o caminho certo. E é precisamente neste domínio que se
realiza hoje a maior e mais profunda revolução dos costumes e das
opiniões. Problemas insolúveis no regime burguês resolvem-se
natural e simplesmente num país onde toda a política é ditada pela
vontade de melhorar o nível econômico e reforçar as estruturas
socialistas.
A Rússia soviética abordou o problema da proteção da
maternidade partindo do ponto de vista da tarefa fundamental da
república dos trabalhadores: o desenvolvimento das forças
produtivas do país, o reerguimento e o impulso da produção. Para
realizar esta tarefa, é preciso em primeiro lugar libertar o maior
número possível de forças trabalhadoras de um labor improdutivo,
utilizar racionalmente todos os braços disponíveis para garantir a
reprodução econômica e, em segundo lugar, garantir à república dos
trabalhadores um fluxo constante de forças operárias novas para o
futuro, ou seja, o crescimento da população.
A partir do momento em que adotamos este ponto de vista, o
problema da proteção racional à maternidade se resolve sozinho. O
Estado operário propõe um princípio inteiramente novo: a
preocupação pelos filhos, pela nova geração, não é um problema
particular, familiar, mas um problema social, uma questão de
Estado. A maternidade deve ser garantida e protegida não apenas no
interesse da própria mulher, mas, mais ainda, considerando-se as
tarefas da economia nacional na passagem para a sociedade do

92
trabalho: já não interessa que a mulher use suas forças, de maneira
improdutiva, para a família, para que as use mais eficazmente para a
coletividáde; é preciso proteger sua saúde a fim de garantir, para o
futuro, um afluxo de operários saudáveis para a república dos
trabalhadores. No Estado burguês, esta maneira de propor o
problema é inviável; se lhe opõem as contradições de classes, a
ausência de unidade entre os interesses econômicos particulares e os
interesses econômicos de todo o povo. Ao contrário, na república
dos trabalhadores onde, à medida que progride a construção do
socialismo, os interesses econômicos individuais devem fundir-se
pouco a pouco aos-interesses econômicos gerais, esta solução do
problema da maternidade é ditada pela necessidade, pela própria
vida. A república dos trabalhadores considera a mulher, antes de
mais nada, como uma força de trabalho, como uma unidade de
trabalho viva; considera a função maternal como uma tarefa muito
importante,mas complementar, e, além disso, como uma tarefa não
apenas particular, familiar, mas também social.
“O que dirige nossa política de proteção à maternidade e à
infância, diz com justiça Vera Pavlovna Lebedeva, é que temos
sempre em vista a mulher no âmbito do processo do trabalho.”
Mas, para dar à mulher a possibilidade de participar do
trabalho produtivo sem violentar sua própria natureza, sem obrigá-
-la a romper com a maternidade, seria preciso dar um segundo passo:
tirar de seus ombros todas as preocupações ligadas à maternidade
transferindo-as à coletividade, estabelecendo que a educação dos
filhos deixa o âmbito da estrutura familiar para tornar-se uma
instituição social, preocupação do Estado.
A maternidade começa a ser encarada de um novo ponto de
vista: o poder dos soviets reconhece que constitui um problema
social. Partindo desse princípio, o poder dos soviets está tomando
uma série de medidas para aliviar a mulher deste fardo, transmitin­
do-o ao Estado. A preocupação com a infância, a proteção material
das crianças, uma justa organização da educação social, tudo isso o
poder soviético assume, através da subseção de Proteção à
maternidade e à infância e do setor de Educação social do
comissariado do povo para a Educação.
Libertar a mãe da cruz da maternidade deixando-lhe apenas um
sorriso de alegria ao contato pessoal com o filho, tal é o princípio
adotado pelo poder dos soviets para resolver o problema da
maternidade.
Evidentemente, este princípio está longe de estar totalmente
realizado na prática. Estamos mais atrasados do que nossas

93
intenções. Na construção de novas formas de vida, suscetíveis de
libertar a mulher trabalhadora das obrigações familiares,
esbarramos com o mesmo e eterno obstáculo: nosso atraso
econômico, nossa subprodução. Mas os alicerces estão postos, os
marcos que indicam o caminho que leva à solução do problema da
maternidade também, só resta engajar-se firme e resolutamente no
caminho traçado.
A república dos trabalhadores não se limita à proteção
financeira à maternidade, ao pagamento de “salário-maternidade”
ou “salário-família” às mães. Esforça-se antes de tudo, por mudar a
vida, de tal sorte que a mulher esteja em condições de assumir
plenamente sua maternidade, protegendo ao mesmo tempo a criança
pequena pelo bem da república; cerca-a de todos os cuidados
necessários.
Desde os primeiros meses de existência da ditadura do
proletariado na Rússia, o poder operário e camponês começou a
estabelecer em toda a república uma rede de organismos de proteção
à maternidade e de educação social. Mãe e filho tornaram-se objeto
de uma especial preocupação da política soviética. Durante os
primeiros meses de revolução, a principal tarefa do comissariado do
povo para a Segurança social — na época comissariado do povo para
a Assistência pública — foi traçar o caminho por onde devia se
desenvolver a política da república dos trabalhadores no campo da
proteção aos interesses da mulher, enquanto trabalhadora e mãe ao
mesmo tempo.
A partir do mês de janeiro de 1918, um colegiado encarregado
da proteção à maternidade formou-se junto ao comissariado do
povo para a Segurança social e um palácio da Maternidade
exemplar começou a ser construído. Desde então, sob a enérgica
direção da camarada Vera Pavlovna Lebedeva, a proteção à
maternidade se enraizou solidamente e floresceu.
O poder dos soviets vem em auxílio às mulheres trabalhadoras a
partir do momento em que estão grávidas. As consultas para
gestantes e lactantes estão difundidas por toda a república. Na
Rússia czarista existiam apenas seis, enquanto agora são milhares,
assim como centros de amamentação.
Mas é óbvio que a tarefa principal consiste em liberar a mulher
que trabalha do labor improdutivo representado pelà atenção física
que a criança exige. A maternidade não consiste absolutamente em
lavar a criança, trocá-la, ou estar junto aò bèrço. 0 dever social de
maternidade consiste antes de tudo em pôr no mundo crianças
viáveis e sadias. Para isso a sociedade dos trabalhadores deve dar à

94
gestante as condições mais favoráveis, e, por seu lado, a mulher deve
observar todas as regras de higiene prescritas durante a gravidez,
lembrando-se que durante nove meses deixa de pertencer-se, ficando
a serviço da coletividade, “produzindo”, com sua carne e seu sangue,
um novo trabalhador, um novo membro da república do trabalho. O
segundo dever da mulher, do ponto de vista da tarefa social da
maternidade, é amamentar seu filho. Só a mulher, membro da
coletividade trabalhadora, que amamentou, tem o direito de dizer
que cumpriu seu dever social. Quanto aos outros cuidados que a
nova geração exige, a coletividade pode assumi-los. Evidentemente,
o instinto materno é forte, e não devemos deixar que se extinga. Mas
por que este instinto deveria limitar-se ao amor e aos cuidados trans­
mitidos apenas ao próprio filho? Por que não dar a este instinto,
precioso para a humanidade trabalhadora, a possibilidade de
germinar amplamente e de florescer até seu estágio superior: a
preocupação com as crianças que não são próprias, mas que também
são frágeis: amor e ternas carícias para os filhos dos outros?
A palavra-de-ordem: “seja mãe nãò apenas para seu filho, mas
para todos os filhos dos operários e camponeses”, deve ensinar às
mulheres trabalhadoras uma nova maneira de ver a maternidade.
Será admissível, por exemplo, que uma mãe, muitas vezes até
comunista, recuse seu seio a uma criança enfraquecida por falta de
leite, porque não é o seu filho? A humanidade futura, comunista por
suas concepções e sentimentos, ficará tão espantada com tal ato de
egoísmo anti-social quanto ficamos nós ao ler que um selvagem,
amando ternaménte seu filho, córnia com apetite os filhos das
mulheres de outra tribo.
Outra anomalia: será admissível que uma mãe prive seu filho do
leite de seu seio para não ter este trabalho? É patente que na URSS o
número das crianças achadas ainda é muito grande. Certamente, este
fenômeno é devido ao fato de que entre nós o problema ainda não
está resolvido, está apenas em vias de solução. Em nosso difícil
período de transição, centenas de milhares de mulheres estão
acabrunhadas por este duplo fardo: o trabalho assalariado e a
maternidade. Ainda não existem creches suficientes, jardins-da-
-infância, maternidades, as quantias mensais recebidas não
acompanham o aumento dos preços no mercado livre, e tudo isso
obriga a operária e a empregada a temer o fardo da maternidade,
obrigando muitas mães a abandonar seu filhos ao Estado. Mas
esse aumento das crianças abandonadas também demonstra que as
mulheres da república dos trabalhadores ainda não se
conscientizaram que a maternidade não é um assunto particular, mas
um dever social.

95
As camaradas que militam entre as mulheres devem prestar
atenção a este problema: terão que explicar às operárias, às
camponesas, às empregadas, quais os deveres que traz a maternidade
na nova situação de nossa republica. Mas, aO mesmo tempo, será
preciso reforçar o trabalho de desenvolvimento da rede para a
proteção da maternidade e a educação social. Quanto mais as mães
possam conciliar facilmente o trabalho e a maternidade, menos
crianças abandonadas existirão.
A maternidade não significa absolutamente que a criança deva
permanecer sempre perto da mãe, que esta se consagre a sua
educação física e moral. Dar às crianças condições mais normais e
sadias para seu crescimento e desenvolvimento, tal é a concepção
justa dos deveres da mãe para com a infância.
Em que classe da sociedade burguesa encontramos as crianças
mais sadias e florescentes? Na classe dos aquinhoados, mas nunca
entre os pobres. A que se deve isso? À dedicação integral das mães
burguesas à educação de seus filhos? Absolutamente. De boa
vontade as mamães burguesas de desencumbem dos cuidados com as
crianças usando força de trabalho assalariada: amas, babás,
governantas. É apenas nas famílias sem dinheiro que as mães
carregam todo o peso da maternidade. Mas, neste caso, as crianças
ficam geralmente entregues a elas mesmas. Seus educadores são o
acaso e a rua. Na classe operária, e em geral nas camadas pobres da
população dos países burgueses, as crianças permanecem com as
mães, mas morrem como moscas; quanto a uma educação normal,
nem falar.. Mesmo na sociedade burguesa, a mãe consciente e
progressista se apressa em transmitir à sociedade pelo menos uma
parte dos cuidados com a criança: manda-a para o jardim-da-
-infância, a escola, a colônia-de-férias. A mãe consciente
compreende que a educação social dá à criança precisamente o que
não lhe pode dar o amor mais exclusivo, o amor materno.
Nas camadas abastadas da sociedade burguesa, onde se dá um
grande valor à educação “normal” das crianças — no espírito
burguês, bem entendido — os pais confiam seus filhos aos cuidados
de enfermeiras especializadas, pedagogas, nutricionistas. Pessoas
assalariadas substituíram a mãe nos cuidados físicos e na educação
moral dados às crianças; de fato, as mães conservaram apenas uma
obrigação, natural e inevitável — pôr os filhos no mundo.
A república dos trabalhadores não arranca os filhos de suas
mães, como faziam crer os países burgueses ao descrever os
“horrores” do regime bolchevique, mas esforça-se por criar
instituições que dêem, não apenas às mulheres ricas, mas a todas as

96
mães, a possibilidade de educar seus filhos em condições sadias,
normais, felizes para eles. Em lugar da mãe se desembaraçar do
cuidado das crianças usando uma ama assalariada, a república dos
soviets quer que cada mãe operária ou camponesa possa trabalhar de
coração leve, sabendo que seu bebê está na creche, na escola
maternal ou no jardim-da-infância.
No ambiente sadio dos estabelecimentos de educação social —
educação que na URSS vai da infância à idade dos 16 anos — sob a
direção de pedagogos e de médicos e sob o controle das próprias
mães (há obrigatoriedade nas creches um plantão materno) as
crianças crescem nas condições necessárias à formação do homem
novo. Os costumes e o ambiente que reinam nas creches, escolas
maternais e jardins-da-infãncia incutem na criança os traços de
caráter e hábitos necessários aos construtores do comunismo. O
homem educado nestes estabelecimentos estará mais apto a viver
numa comunidade de trabalhadores do que aquele cuja infância se
desenrolou na esfera fechada dos hábitos egoístas da família.
Os garotos que, nos primeiros anos da revolução, foram postos
em creches e escolas maternais não se parecem aos que foram
educados por mamães individualistas e “transbordantes desamor”.
Nos primeiros, os hábitos coletivistas estão solidamente
implantados, trata-se antes de tudo de seres cujas estruturas mentais
são estruturas de grupo. Pequena cena costumeira numa escola
maternal: o “novo” recusa-se a fazer o que faz seu grupo. Este se agi­
ta, cerca o “novo”, dá-lhe explicações. Como deixar de ir passear,
quando todo nosso grupo vai? Como recusar limpar e arrumar,
quando nosso grupo está de serviço? Como fazer barulho, quando
nosso grupo trabalha? Entre eles não se desenvolve o sentido da
propriedade. “Entre nós, não existe o teu e o meu, tudo é de todos”,
explica com ar sério um garotinho de 4 anos. Em troca, uma atitude
econômica diante do que pertence ao grupo é uma das regras
fundamentais da vida das crianças. E elas mesmas punem os que
desperdiçam n o s s o s bens, os bens da escola maternal.
Com o objetivo de proteger a mulher enquanto geradora de uma
descendência, a república dos trabalhadores criou, desde os
primeiros anos da revolução, casas da maternidade, em toda parte
em que a necessidade se fazia sentir de maneira aguda. Estas casas da
maternidade permitem não apenas à mulher só encontrar um refúgio
no período mais difícil de sua vida, mas também às mulheres que têm
família, durante os últimos meses de sua gestação e os primeiros da
vida do bebê, escapar da casa, da família, e de suas inevitáveis e
mesquinhas preocupações, para consagrar-se totalmente ao
restabelecimento de suas forças e à observação do bebê nas primeiras

97
semanas — as mais importantes — de sua vida. Mais tarde, os olhos
da mãe importam muito menos, mas nas primeiras semanas parece
que existe ainda entre a mãe e o filho uma espécie de laço fisiológico
e, neste período, não é racional separá-los.
Para as mães operárias e empregadas, existem creches de
empresa e de administração, ou simplesmente creches municipais, de
bairro. Inútil destacar que estas creches trazem para as mulheres que
trabalham um alívio considerável. Nosso mal, é que não são
suficientes, e não podemos satisfazer nem uma décima parte das
necessidades das mães em instituições de ajuda deste tipo.
Além das creches, as Casas onde são educados os órfãos e as
crianças abandonadas até a idade de 3 anos, a rede de educação
social, destinada a aliviar as mães de sufocantes preocupações,
compreende ainda: os jardins-da-infância para crianças de 3 a 7 anos
e os lares infantis, para crianças em idade pré-escolar, cuja alma foi a
camarada Vera Velitchkina(Bontch Brouievitch), morta em 1919 em
seu posto de revolucionária. Estas instituições nos ajudaram muito
durante os anos difíceis da guerra civil e salvaram muitos filhos de
proletários da inanição e da morte. A solicitude do Estado para com
a infância completa-se com as distribuições gratuitas de leite, a
atribuição de rações suplementares às crianças, o fornecimento de
roupas e sapatos aos mais necessitados.
Todos estes empreendimentos estão evidentemente longe da
perfeição; na prática, só atingimos até agora um âmbito demasiado
estreito da população. No que fazemos para aliviar o casal da pesada
tarefa de educar os filhos, nossa principal insuficiência não está em
termos escolhido um caminho errado, mas no fató~de não estarmos
em condições, dada a falta de organização ainda considerável de
nossa economia, de preencher completamente o plano de educação
social traçado pelo poder dos soviets. A linha definida pela república
dos trabalhadores para resolver o problema da maternidade é justa.
Mas o estado de nossos recursos é um obstáculo à sua realização.
No momento, tudo isso constitui experiências de modesta
envergadura. No entanto, já deram resultado. Estas medidas
revolucionaram o modo de vida familiar e introduziram uma
mudança radical nas relações entre os sexos.
Assim, uma das tarefas do poder soviético consiste em dar à
mulher condições tais que sua atividade não seja absorvida por um
trabalho improdutivo de manutenção da casa e das crianças, mas
seja consagrada à criação de novas riquezas, ao Estado, à
coletividade trabalhadora. Ao mesmo tempo, era preciso preservar
os interesses da mulher e a vida dos filhos, dando à mãe a

98
possibilidade de conciliar o trabalho e a maternidade. Desde os
primeiros dias da revolução, o poder dos soviets se esforçou por criar
condições de vida tais, que em nenhum caso a mulher fique presa a
um marido que se tornou odioso, simplesmente porque, com seus
fílhos nos braços, não tem para onde ir, e tais que a mãe celibatária já
não deva temer perder seu filho e morrer, simplesmente por não
saber a que porta bater. Em nossa república, não compete aos
filantropos nem à caridade humilhante ajudar a mulher que
trabalha; são seus companheiros de luta pela criação de uma
sociedade nova, os operários e os camponeses, que devem se esforçar
por tornar-lhe mais leve o fardo da maternidade. E a mulher,
que carrega em pé de igualdade com o homem o peso do
restabelecimento da economia, que participou da guerra civil, tem
direito de exigir da república dos trabalhadores que, em uma hora
grave de sua vida — no momento em que ela vai dar à sociedade um
novo membro — a coletividade se encarregue de sua saúde e do
futuro de seu cidadãozinho. Tal é nossa política no campo da
proteção às mães. Mas evidentemente, na prática, ainda estamos
muito atrasados com relação ao ideal.
No entanto, a atividade e as realizações do serviço de proteção à
maternidade e do setor de educação social aumentam e se ampliam.
Mas ainda não bastáih. O período de transição da ditadura do
proletariado situa a mulher em condições especialmente difíceis: o
antigo está destruído, mas o novo está apenas em vias de ser criado,
O partido e o poder dos soviets devem dedicar atenção redobrada ao
problema da maternidade e aos meios para resolvê-lo. Se for
resolvido de maneira correta, não apenas a mulher sairá ganhando,
mas toda a produção da república, toda a economia nacional.
Falta dizer algumas palavras sobre uma questão estreitamente
ligada ao problema da maternidade, ou seja, a atitude da república
soviética diante do aborto. Pela lei de 20 de novembro de 1920, a
república dos trabalhadores reconheceu que o aborto não era um
delito. Esta lei foi promulgada por iniciativa e com a fervorosa
participação da seção das Mulheres. O que motiva uma tal atitude
nesta questão? Reconhecemos que a URSS sofre, não de um excesso
de força de trabalho, mas, ao contrário, carece dela. Não é um país
superpovoado, ao contrário. Entre nós, a força de trabalho é
contada. Como se pode então decretar que o aborto não é
condenável? Em sua política, o proletariado não aprecia a hipocrisia
nem o engano. O aborto é um fenômeno ligado ao problema da
maternidade, resulta da situação precária das mulheres (não falamos
da classe burguesa, onde o aborto tem outras causas: repugnância em
dividir a herança, repugnância de mulheres ávidas de uma existência

99
sem a preocupação de suportar os sofrimentos da maternidade,
repugnância de estragar seu corpo, de ficar alguns meses afastada da
“vida social”, etc.).
O aborto existe e floresce em todos os países, e nem leis nem
medidas de repressão puderam estirpá-lo. Sempre existem meios de
burlar a lei. Mas a ajuda clandestina às mulheres grávidas só serve
para mutilá-las, transformando-as por muito tempo num encargo
para o Estado dos trabalhadores, e diminuindo, em última análise, a
quantidade de força de trabalho. Um aborto feito nas condições de
uma intervenção cirúrgica normal é muito menos prejudicial, muito
menos perigoso. A mulher pode então voltar rapidamente a seu
trabalho. E o poder dos soviets, consciente de que o aborto só
desaparecerá, por um lado, quando a república dispuser de uma
ampla rede de estabelecimentos de proteção à maternidade e de
educação social e, de outro lado, quando as mulheres estiverem bem
conscientes de que pôr uma criança sadia no mundo é para elas um
dever social, admitiu pois a prática do aborto abertamente, em
condições clínicas sadias. A necessidade do aborto também será
minorada por medidas higiênicas e de planejamento familiar.
A tarefa da república dos trabalhadores é aprofundar nas
mulheres, através de um amplo desenvolvimento de proteção à
maternidade, um instinto maternal sadio, tornar a maternidade
compatível com o trabalho para a coletividade e, assim, eliminar a
necessidade do aborto. Esta foi a forma pela qual a república dos
trabalhadores abordou a solução desse problema que ainda se colo­
ca, em toda sua amplitude, para as mulheres dos países burgueses.
As mulheres dos Estados burgueses se debatem na penosa
situação engendrada pela guerra mundial (2), sucumbem a um duplo
fardo: o trabalho assalariado para o capital, e a maternidade... Na
Rússia dos trabalhadores, ao contrário, a operária e a camponesa,
ajudando o partido comunista a construir as bases de uma nova
economia, destróem o velho modo de vida que fazia da mulher uma
escrava.
A partir do momento em que a mulher se tornar, do ponto de
vista da economia nacional, uma individualidade trabalhadora,
indispensável, teremos encontrado a chave que permitirá resolver as
questões complexas e fundamentais de sua vida. Na sociedade
burguesa, onde a economia doméstica completa o sistema
econômico capitalista, onde a propriedade privada engendra a

(2) Trata-se da la. Grande Guerra (N.T.)

100
estabilidade do círculo familiar fechado, as mulheres que trabalham
não têm saída.
A libertação da mulher só pode se realizar por uma
transformação radical da vida cotidiana. E a vida cotidiana, por sua
vez, só será transformada por uma reconstrução radical de toda a
produção, nas novas bases da economia comunista.
Uma revolução na vida cotidiana está acontecendo sob nossos
olhos, se ampliando e se aprofundando, e com ela vemos entrar na
vida, na prática, a libertação da mulher.

Revolução nos costumes (i>

A revolução na vida cotidiana na época da ditadura do


proletariado não se restringe evidentemente aos campos da
alimentação social, da criação de edifícios comunitários, da
educação social e da proteção da maternidade. Semelhante
revolução é muito mais profunda, mais complexa, mais diversa.
Atinge quase todos os aspectos de nossa vida e sua influência é
particularmente intensa nos hábitos e mentalidades. Um dia, os
historiadores estudarão com interesse este período c o l o r i d o , cheio de
movimento, de questionamentos do passado, de buscas de novas
formas de vida, de economia, de novas bases de relações entre as
pessoas. Não nos damos conta do quanto nossa vida é rica em
sementes do futuro. Ainda não sabemos discernir que, já nos campos
de batalha da guerra civil, c h e i o s de lá g r im a s , d e sangue e d e
destroços do passado, brotaram com obstinação, frescas, sólidas e
ricas de seiva, as plantas tenras do futuro comunista... Apesar da
poeira dos séculos, levaiitada como por um furacão pelo encontro
violento dos dois mundos hostis, sujá-las ainda, apesar do sangue re­
cém-derramado, empalidecer ainda seu brilho jovem, estes brotos
existem, emergem como riachos de primavera sobre a neve espessa,
alegrando os sulcos gelados, purificando a terra e preparando-a para
as calorosas e vivificantes carícias do sol de primavera comunista.

(1) Título original.

101
Olhemos em tomo: será a mesma Rússia que conhecemos antes
de 1917? Serão os mesmos operários, os mesmos camponeses, os
mesmos simples habitantes que ai viviam sob o czarismo?
Pensamentos, sentimentos, aspirações, problemas tudo se
transformou e é inabitual, como é inabitual e diferente toda a
situação da república dos soviets. Quando encontramos pessoas que
vivem em regime capitalista-burguês temos a impressão, de que
demos um salto à frente sobre séculos inteiros e que, de lá, destes
séculos futuros, julgamos o desenrolar dos acontecimentos nos
países atrasados do ponto de vista revolucionário. Sabemos por
experiência o que nossos irmãos de além fronteiras dos países
burgueses compreendem pelo pensamento, mas que ainda não se
tornou para eles um pedaço de sua alma. Esta experiência afastou de
nós o passado próximo e ainda vivo, e aproximou, tornou vivo o
futuro. É-nos mais fácil olhar para a frente do que para trás. Vemos
mais coisas do que víamos antes da grande transformação, sabemos
mais do que nossos camaradas que não viveram esses anos de luta
revolucionária e de construção apressada, febril, feita d®
experiências do caminho mais curto para o comunismo.
Por maior que seja o número de erros cometidos, nossa
experiência revolucionária é a mais audaciosa experiência de
construção da vida, de tentativa para organizar a vontade que sente
uma coletividade de milhões de homens de dominar as leis cegas da
economia. A revolução operária na Rússia inaugurou um novo
capítulo da história da humanidade e, por mais longa e difícil que
deva ser a realização do comunismo em toda sua amplitude, nós
começamos. E é já com uma sólida confiança em si, em seu papel
histórico e sua importância para a edificação da sociedade, que o
proletariado vai caminhar sem desfalecimento para seu objetivo
final. Este objetivo deixou de ser um sonho, o proletariado logrou,
ao lhe estender as mãos, sentir com as pontas dos dedos sua
existência e realidade...
A mutação provocada pela Revolução de Outubro refletiu-se
antes de mais nada na mentalidade, na maneira de encarar a vida do
proletariado. Vejamos o operário: seria assim antes da revolução?
Era então um escravo sem vontade, seja porque fosse esmagado pela
miséria, mas submisso, ou porque fosse amargo e impotente. Não
acreditava em si mesmo. Considerava imutáveis a ordem e a lei que o
oprimiam e humilhavam. Se alguém lhe dizia: “basta que milhões de
proletários o queiram para serem senhores de sua vida”, balançava a
cabeça, incrédulo.
Agora? Sem dúvida, a vida ainda é dura para o proletário, sem
dúvida está mal-vestido e mal-calçado, sem dúvida sofre interminá-

102
veis privações e suporta incalculáveis sacrifícios. Mas em troca, tem
confiança em si mesmo, em suas próprias forças. Aprendeu esta gran­
de e nova verdade: a existência, as leis, a vida, tudo isso muda se a so­
ciedade é dirigida por uma nova classe, uma classe ascendente. O
que eram as coisas sob o czar, os industriais e os proprietários de
terras transformou-se totalmente sob o domínio dos trabalhadores.
O operário sente-se agora senhor de sua vida, seu criador. Mesmo se
sua criação nem sempre é hábil, ele cria, e é nesta dura aprendizagem
de consciente submissão à vontade coletiva, das leis da evolução
econômica, nesta vitória da vantagem de todos sobre as forças cegas
da economia, que reside a maior vitória da humanidade
trabalhadora.
Tomemos a operária. Neste caso, a mutação é ainda mais
tangível. O fato mais característico é o desenvolvimento, nas amplas
massas femininas, de um sentimento de responsabilidade social, da
consciência que têm as mulheres de seus laços com a coletividade, de
suas obrigações para com a sociedade, para com a república dos
trabalhadores. Isto é particularmente novo na mulher, a quem foi
ensinado durante séculos ignorar tudo além de seus deveres para com
a família. A operária ou a mulher de operário, hoje, não apenas têm a
firme convicção de que são cidadãs integrais, mas tentarão, se não
têm nenhuma obrigação social, justificar-se a seus próprios olhos: as
crianças impedem-nas, ou a casa. E, indubitavelmente, vão mostrar
que não temos suficientes estabelecimentos para crianças, nem
suficientes edifícios comunitários. Se tudo fosse bem, poderíam
trabalhar para o partido, seja em um emprego, ou em um sindicato.
A revolução não apenas libertou a mulher da átmosfera fechada
e abafante da família, transportando-a para o vasto espaço da vida
social, mas incutiu-lhe, com espantosa rapidez, o sentimento de sua
ligação com a coletividade. O êxito dos sábados comunistas durante
os anos da guerra civil é um exemplo notável. Os participantes mak
freqüentes dos sábados foram operárias, mulheres trabalhadoras,
sem partido, mulheres de operários, camponesas. Em 1920, em 16
províncias, perto de 150 mil mulheres trabalhadoras participaram
dos sábados. Isto mostra um grande progresso do sentido social, da
consciência de que é apenas com esforços coletivos que se podem
vencer a desorganização, as epidemias, o frio e a fome. Os sábados,
isto é, o trabalho voluntário para a coletividade, completaram ò
trabalho obrigatório. O trabalho deixou de ser apenas uma
necessidade (trabalho do escravo, trabalho do operário perseguido
pela necessidade), para tornar-se um dever para com a coletividade,
um dever social, como era outrora, quando cada membro da tribo
participava do trabalho de sua tribo. Filas de trabalhadoras sem

103
partido, nossas delegadas, deixaram pelo meio suas ocupações!,,
domésticas para chegar a tempo aos sábados, onde descarregavam!
combustível, limpavam a neve dos caminhos, remendavam roupa l
para os soldados vermelhos, confeccionavam vestimentas para as Á
crianças, faziam limpeza e arrumação nos hospitais, nos quartéis, 1
etc. Muitas delas tinham sua própria família e, conseqüentemente, J
sua própria casa e ocupações familiares que uma operária só pode ■'
fazer no único dia da semana em que está livre, mas já tinha nascido e ]
vivia nela a consciência de que era mais útil abandonar sua '
limpezinha particular e trazer em tempo hábil sua ajuda aos assuntos ]
do povo, consagrando suas forças às tarefas mais urgentes do j
trabalho social.
Assim a mulher deixou inacabadas suas tarefas domésticas para ,
dirigir-se, apressada, aos sábados.
Vão nos dizer: sim, mas estas operárias e camponesas sem
partido são ainda uma minoria! É verdade. Há poucas ainda. Mas í
também é significativo que seu número esteja aumentando e não ;
diminuindo. Depois, é importante notar que não são apenas
comunistas que agem assim, mas também as sem partido. Enfim, a
atitude desta minoria contribui para educar as grandes massas no ,
mesmo espírito. Vejam com que paixão, às vezes mesmo com que )

ânimo, a operária que não participa do trabalho social, que não quer 1
ser escolhida, defende o seu direito de não participar dele. ;
Apresentará dez razões para provar que tem, justamente ela, o :
direito moral de não ser delegada. É raro encontrar hoje na cidade
(no campo, no momento, ainda é outro caso) uma operária que j
simplesmente eluda esta questão, de tal maneira reforçou-se, no
decorrer destes anos, a consciência da relação que existe entre, por i
um lado, o grau de bom funcionamento da economia social e o dever j
social e, por outro lado, a possibilidade de satisfazer, graças a isso,
suas necessidades pessoais. O que aconteceu durante os anqs do
bloqueio? Faltava combustível, enquanto vagões de madeira
permaneciam sem descarregar. Logo surgia um apelo geral: por que
não convocar o povo para os “sábados”? Grassava uma epidemia e,
de novo, o mesmo pedido: façamos um “sábado” para sanear a
cidade. Em outros termos, vamos ao trabalho voluntário para
eliminar, por nossos esforços comuns, o que entrava nossa
economia, para vencer esta catástrofe geral: a doença. Com que
severidade, nesta época, os operários criticavam os que não queriam
trazer o óbulo de seu trabalho ao bem comum! Vemos assim
elaborar-se o código de uma nova época, as bases de uma nova
moral. Apareceram novas noções, como a de desertor do trabalho. A
sociedade burguesa condenava o preguiçoso, o trabalhador

104
negligente. Mas na concepção burguesa, o trabalho era um assunto
particular. Trabalhe se quiser, morra de fome se preferir, ou então
procure obrigar os outros a trabalhar para você. Este último caso, o
“talento de empresário”, era particularmente apreciado, considerado
especialmente digno de respeito. Se o mundo burguês condenava o
preguiçoso, era apenas na medida que o homem trabalhava não
apenas para si mesmo, mas para outrem. E se, em seu trabalho, não
despendia toda a energia de que era capaz, “enganava o patrão”, se­
gundo a concepção burguesa elhèfaziaperderumapartedeseulucro;
é por isto que a burguesia condenava como vício a preguiça e a negli­
gência. Mas o filho do empresário ou do nobre que devia seu emprego
à sua herança e á seus títulos podia ser o inútil ou preguiçoso mais
inveterado e nem por isso corria o risco de ser condenado por
deserção ao trabalho. Querer trabalhar ou não era um assunto
pessoal, que apenas dizia respeito ao homem: tal era o ponto de vista
do mundo burguês. Mesmo se, por preguiça ou negligência, um
camponês pequeno proprietário deixava sua terra abandonada, a
sociedade burguesa não o criticava pelo prejuízo causado ao
conjunto da economia, mas simplesmente o desprezava por sua
incúria: este, dizia ela, não sabe nem mesmo tomar conta de seus
próprios interesses.
A atitude diante do trabalho era completamente diferente na
sociedade burguesa e na república dos trabalhadores, e foi isso que
engendrou novos hábitos que incutem no povo trabalhador um
outro espírito, obrigando-o a pensar e a sentir de outra forma.
De nossa atitude diante do trabalho decorre uma nova atitude
em face de uma série de fenômenos, formam-se novos critérios
morais, isto é, novas regras que definem as relações do homem e da
coletividade. Na sociedade burguesa, a moral regia principalmente
as relaçães entre as pessoas; quanto às relações com a sociedade,
apenas completava o código geral (o conjunto de todas as regras) da
moral individual. Havia muito menos regras definindo as obrigações
do homem para com a sociedade do que regras destinadas a reger as
relações das pessoas entre si. A defesa da pátria, o dever de servir o
país e o czar, e o muito convencional “não matarás” pertenciam às
primeiras; entre as segundas, encontrava-se uma longa lista de regras
geradas pela necessidade de defender a propriedade privada e os
interesses particulares: Não roubarás, não serás preguiçoso, não
tomarás a mulher de seu marido legítimo, não furtarás nas
transações comerciais, serás econômico, etc.

Sob a ditadura do proletariado, as regras da moral decorrem


diretamente dos interesses da coletividade. Se sua conduta não

105
prejudica a coletividade, não interessa a ninguém. Pelo contrário, na
república dos trabalhadores, condena-se o que era elogiado no
regime burguês. Qual era, por exemplo, a atitude do Estado burguês
para com um grande comerciante? Se tudo estava em ordem em seus
livros-caixa, se não criava uma falência fraudulenta, não apenas não
ia para a prisão, mas, ao contrário, era gratificado com titulos
honoríficos: negociante-padrão, cidadão honorário, etc.
Mas vejamos qual era nossa atitude diante dos especuladores
durante os primeiros anos da revolução, na época do comunismo de
guerra. Chamávamos de especulador qualquer pessoa que não
trabalhasse para o bem da república, qualquer pessoa que tentasse,
não para o Estado mas para si mesma, tirar Vantagem das trocas,
todo negocista hábil. Não apenas esses elementos ociosos não rece­
biam títulos honoríficos, mas frequentemente eram entregues às
Tcheka. Por quê? Ora, porque naquela época não podíamos salvar
nossa economia devastada e poupar o conjunto da população
laboriosa, por menos que fosse, das privações e da fome, se todos os
cidadãos adultos não fossem chamados para o trabalho produtivo.
Quem procurasse obter rendas de outra forma sem ser pelo trabalho,
sem criar valores ou produtos novos, sem contribuir para a
organização da vida e da produção, mas enriquecendo com
especulações bem feitas ou vivendo às custas dos outros, este
prejudicava os interesses de toda a república soviética e agravava a
ruína e a miséria do país. Em outras palavras, era nocivo para a
coletividade. E, portanto, era evidente que o especulador devia ser
condenado enquanto indivíduo cuja existência não tinha utilidade e
era mesmo nociva para toda a sociedade. Hoje, persistimos
considerando nocivo e indesejável o elemento ocioso, por exemplo,
na URSS, os latifundiários, os padres, os traficantes de divisas, etc.
Enquanto que, nos países burgueses, é precisamente o elemento
ocioso que recebe as maiores honras!
A mudança das condições de vida fez surgirem novos hábitos,
novas regras de vida em comum (uma nova moral). Evidentemente,
não é em 10 anos, nem mesmo em algumas décadas, que poderemos
remodelar a humanidade em nova fôrma, fazer de cada um, um
autêntico comunista. Mas é importante notar que este fenômeno já
se manifesta de maneira visível, e já podemos nos espantar com a
rapidez com que nossa psicologia, isto é, nossa mentalidade, adapta-
-se as novas condições e começa a elaborar novas regras para as
relações entre as pessoas.
Mas é nas relações entre os sexos que a revolução é mais
sensível. Não apenas na Rússia, mas em todos os países beligerantes,

106
a guerra mundial (3) abalou a estabilidade da família burguesa. Em
primeiro lugar, o aumento do trabalho feminino suscitou a
independência econômica das mulheres e, em segundo lugar, o
número de nascimentos extra-matrimoniais aumentou muito.
Diante do rosto da morte, todos os preceitos da moral burguesa
estilhaçaram-se. Um casal que se amava, unia-se sem levar em conta
as injunções da igreja nem os preconceitos burgueses. O aumento do
número dos filhos ilegítimos tornou-se um fenômeno social tão
difundido que os governos burgueses tiveram que dar às mulheres
ilegítimas dos soldados os mesmos direitos a pensões do que às
mulheres legítimas.
Na república dos soviets, onde, desde os primeiros meses, o
casamento religioso foi abolido e a diferença entre filhos legítimos e
ilegítimos suprimida (decreto de 18 e 19 de dezembro de 1929), e onde
o trabalhado obrigatório fez reconhecer a mulher como unidade de
força de trabalho aos olhos da economia nacional, o casamento
religioso, ou mesmo simplesmente civil, perdeü evidentemente muito
do seu significado. Na sociedade burguesa, o casamento é, ao
contrário, uma transação mútua entre o homem e a mulher, assinado
por testemunhas, tornado sólido e indestrutível pelo selo divino. O ho­
mem toma a mulher sob sua guarda, encarrega-se de nutri-la e
mantê-la, mas em troca ela se compromete a conservar e economizar
seus bens, servir a ele e a seus descendentes, seus futuros herdeiros
(seja pessoalmente, seja organizando a economia doméstica com o
auxílio de empregados assalariados), manter uma fidelidade
impecável para não obrigar seu marido a manter o filho de outro
homem. Pelo fato do adultério dá mulher destruir o equilíbrio da
economia familiar privada, compreende-se que a burguesia persiga
sem piedade a mulher que trai seu esposo e sustentáculo legítimo.
Quanto à traição do marido, a burguesia finge não vê-lo: a conduta
do homem, no caso, não prejudica em. nada os interesses da
economia familiar. Por que, então, a sociedade burguesa perseguia
tanto a mãe solteira? Se uma ligação amorosa não é registrada, isto é,
se não há formalmente casamento, quem vai alimentar e manter a
criança? Com toda a certeza, ou será. um fardo para os pais da jovem
que “errou”, o que absolutamente não faz parte da economia familiar
privada do pai, ou então a manutenção da criança caberá à
administração local ou ao Estado, o que é totalmente indesejável
para a sociedade burguesa, que não gosta de se encarregar de tarefas
de assistência social.

(2) A la. Grande Guerra (N.T.)

107
Na segunda metade do século passado, quando a mulher
começou a se manter com seu trabalho, a atitude para com a mãe
solteira se modificou pouco a pouco, mesmo no mundo burguês.
Uma série de romances e numerosas obras de pensadores do fim do
século XIX e começo do XX são dedicadas ao direito da mulher à
maternidade e à defesa das mães solteiras.
Na república dos trabalhadores, durante o período do
comunismo de guerra, em que a economia doméstica tinha tendência
a ceder o lugar ao consumo social coletivo (edifícios comunitários,
cantinas públicas, etc.), em que cada mulher participava do trabalho
pela coletividade (trabalho obrigatório) em pé de igualdade com o
homem e recebia sua própria ração independentemente de seu
marido, a questão do casamento e da família começou a assumir uma
nova forma. Não apenas a mulher recebia sua ração
independentemente de seu marido, mas os filhos estavam inscritos na
carteira profissional de sua mãe, de maneira que era ela, e não o
marido, quem recebia as rações dos filhos. É evidente que, então, na
família, a dependência da mulher diante do homem não apenas se
atenuou, mas praticamente desapareceu.
Naqueles anos era difícil, sobretudo na cidade, contratar um
casamento por razões econômicas: para ter sua própria casa e seu
bem-estar, para que o homem tivesse à sua disposição uma força de
trabalho gratuita ou que a mulher pudesse garantir definitivamente
um sustentáculo legal. Certamente, mesmo então, haVia casos de
casamentos fundados em razões econômicas. Mas, regra geral, o fato
de se casar já não garantia às duas partes estas vantagens
proporcionadas pelo casamento e a família em regime capitalista.
Um homem já não podia manter uma mulher com seu salário, pelo
fato de que tudo aquilo de que ele tinha necessidade — habitação,
roupa, alimentação, combustível, etc. — estava limitado a
quantidades suficientes para um só indivíduo. E a mulher não podia
ser uma operária não paga de seu marido porque, primeiramente,
não lhe consagrava todo o tempo, estando também encarregada do
trabalho produtivo fora de casa (trabalho obrigatório), e que, em
segundo lugar, se ele tivesse que dividir sua ração com a esposa, o
casamento deixava de ser uma vantagem; de fato, cada homem ou
mulher recebia pessoalmente sua ração, com seus próprios bônus,
diretamente na empresa que o empregava, e não por intermédio do
marido ou da mulher de maneira que naturalmente, os que se
casavam, faziam-no por inclinação mútua, por amor, e não por
interesse.
Evidentemente, à medida que, naquela época, a desor­
ganização e a falta de reservas impediam a república dos

108
trabalhadores de preencher suas obrigações para com estes e de
realizar na prática o que ela incluira em seu programa, a população
ficava obrigada, bem ou mal, a recorrer a meios transversos para se
abastecer, organizando uma produção doméstica, procurando
petróleo e combustível no mercado livre, etc. Conseqüentemente, o
casamento assumia então algumas vezes o caráter de uma mera
transação econômica. Por exemplo, uma mulher se casa com um
homem, não porque este lhe é querido, agrada-lhe, mas porque
“existe um quarto livre na casa dos soviets” ou então um homem
casa-se com uma mulher porque, com dois bônus de lenha para o
aquecimento é mais fácil atravessar o inverno!... Mas, tais fatos eram
exceções, anomalias. A linha geral desta época mostra que os
casamentos registrados, com contrato, tornavam-se cada vez mais
raros. O registro no cartório civil não trazia nenhuma vantagem. É
verdade que o decreto de 1917-1918 sobre o casamento estipula que,
em caso de incapacidade de trabalho, os cônjuges áevem prover
mutuamente a sua manutenção. Mas esta medida era considerada na
época como de transição, válida enquanto a rede de estabelecimentos
de ajuda social ainda estava pouco desenvolvida e os que estavam
incapacitados para o trabalho deviam contar, não com a ajuda da
coletividade, do Estado, mas de pessoas particulares (mulher ou
marido), enquanto a vida econômica da república dos trabalhadores
ainda não estava reorganizada e portanto ainda não era possível
desenvolver amplamente o auxílio social. Na prática, durante o
período do comunismo de guerra, este decreto trouxe poucas
vantagens para os casais legalizados. Que quer dizer “manter o
cônjuge incapacitado de trabalhar” quando a ração é distribuída
individualmente? Significa dividir esta ração. Poucos estarão de
acordo com isso. Habitualmente o problema era resolvido assim: se
um dos cônjuges estava incapacitado, o outro batia à porta de todos
os estabelecimentos sociais que pudessem se ocupar do assunto:
sanatórios, hospitais, asilos de velhos ou de inválidos. E ninguém
criticava o cônjuge com saúde por ter posto sua “cara metade” a
cargo da sociedade, apesar de que o decreto solicitava aos cônjuges
ajudarem-se mutuamente, em caso de incapacidade; na época,
parecia natural que a sociedade se encarregasse em seu conjunto de
seus membros que não podiam trabalhar, em lugar das pessoas
particulares, mesmo ligadas por amor mútuo; é a coletividade, a
sociedade que deve carregar o fardo das preocupações materiais. E a
verdade é que, quando um homem está em condições de trabalhar,
contribui para criar as riquezas, as reservas, os recursos com que a
sociedade poderá ajudá-lo quando estiver doente, idoso ou inválido.
O casamento aparece então sob um novo aspecto. Grandes
mudanças se realizaram sob nossos olhos nas relações do casal, e o

109
mais curioso é que o novo modo de viaa, os novos hábitos se refletem
mesmo nas famílias da antiga burguesia. Desde que estas senhoras da
burguesia, parasitas ainda há pouco, invadiram as administrações
soviéticas e se puseram a ganhar sua vida, assumiram rapidamente
um ar de independência diante de seu marido; acontece
freqüentemente que a mulher ganha mais que o marido e vemos
então a esposa atenciosa e submissa tornar-se o chefe da família. A
mulher corre para seu escritório, enquanto o marido racha lenha,
acende o fogo, vai ao mercado. Houve um tempo em que estas
senhoras teriam crises de nervos se o marido não lhes desse dinheiro
para comprar o chapéu da moda na primavera ou um novo par de
sapatos. Mas agora a mulher sabe qúe não tem nada para pedir a seu
marido. Suas exigências, quando obtém bônus ou uma ração
suplementar, não são apresentadas ao marido, mas a seu chefe de
escritório ou ao diretor do abastecimento.
É preciso dizer, entretanto, para sermos justos, que as mulheres
da antiga burguesia suportaram às vezes com coragem — com mais
coragem que maridos ditos intelectuais — todas as durezas do
período do comunismo de guerra, aprendendo a conciliar o trabalho
e a casa, lutando contra as privações e a perpétua desorganização da
vidá. Outra coisa característica: mesmo nestas famílias burguesas
manifestou-se a tendência a simplificar as tarefas domésticas, a
adotar a alimentação social, a pôr os filhos em escolas maternais, em
suma, a aliviar a família de todas as formas possíveis. É verdade que
isso só se deu sob influência da necessidade, mas à medida que a
economia privada for absorvida pela economia popular, essa
necessidade só vai aumentar, de maneira que a tendência já existente
hoje será reforçada nos hábitos e nos costumes e que a família, no
sentido burguês da palavra, vai desaparecer. Em seu lugar var nascer
e crescer uma família nova — a família da coletividade dos
trabalhadores, onde não existe parentesco de sangue, mas onde a
comunidade do trabalho, a unidade de interesses, aspirações e
problemas aproximará solidamente as pessoas tornando-as
verdadeiras “irmãs de alma”.
As novas condições da produção e o novo sistema engendram
um novo modo de vida; transformado, este modo de vida vai por sua
vez criar homens novos, comunistas autênticos pelo espírito e pela
vontade.
À medida que o casamento deixa de significar para os
cônjuges vantagens materiais, perde seu caráter de instituição
estável. Hoje, os esposos se separam com muito mais facilidade que
antigamente. A partir do momento em que já não existe nem amor
nem apego mútuos, as pessoas já não se esforçam por conservar a

110
família a qualquer preço; já não estão ligadas como outrora, pelos
interesses domésticos comuns, pelos deveres dos pais para com
os filhos. O rito religioso do casamento já não é inviolável.
Evidentemente este fenômeno não é geral, está longe de ter consti­
tuído a regra, mas é indiscutível que existe, que se expande e con­
tinuará a se expandir à medida que tenhamos formas de vida
comunista. Nossa república dos trabalhadores já tentou “separar a
cozinha do casamento”; a sociedade comunista vai contribuir para
purificar a união matrimonial de qualquer travo de cálculo material.
Já observamos muitas vezes formas originais de casamento; as
relações do casal já não estão absolutamente ligadas à construção do
“ninho”. Antes, se um homem queria se casar, devia pensar e calcular
se podia se dar ao luxo de manter uma mulher, em que medida isto
seria vantajoso para ele. A jovem, ao se casar, avaliava o que seu
marido podia garantir-lhe, mas antes de mais nada, os dois se
preocupavam, de acordo com sua.forças e seus meios financeiros, em
arrumar seu pequeno lar. Ao casar-se o mais rico tentava obter uma
casa, o mais pobre comprava ao menos um fogão. Era um primeiro
passo para o lar... E os cônjuges estavam obrigados a viver juntos. Às
vezes o desentendimento cotidiano separava o marido da mulher.
Mas era um acontecimento anormal, não admitido amplamente.
Hoje convivemos com casais que se amam, mas que vivem
separados. Às vezes mesmo, para maior solidez (quando as pessoas
se amam, querem consolidar seu amor para sempre), o homem e a
mulher vão ao cartório registrar seu casamento segundo a lei
soviética, mas vivem separados: a mulher numa ponta da cidade e o
marido na outra; a mulher em Moscou, o marido em Tachkent.
Vèem-se apenas de tempos em tempos, pois ambos trabalham. Ós
deveres sociais estão em primeiro lugar... Este tipo de casamento é
cada vez mais freqíiente entre os comunistas, onde o sentido de dever
social está mais desenvolvido. Outrora a mulher se preocupava
especialmente em ter sua casa; como viver, se não temos nossas
próprias panelas e frigideiras? Sem falar da família... Hoje, pelo
contrário, se o homem repete que seria bom ter sua casa, jantar em
casa, ter sempre uma mulher à mão, a mulher — sobretudo essa
fração sempre maior de mulheres trabalhadoras que á república
chamou a uma atividade criadora — já não quer ouvir falar em
“nossa casa”... “A vida em família não me tenta, com o trabalho
doméstico e as preocupações mesquinhas da casa, prefiro separar-me
dele. Agora quero trabalhar pela república. Em casa estaria presa, é
melhor separar-me dele”. E os maridos são obrigados a se habituar
com a idéia de não ter um “ninho”.
Sem dúvida, nem todos conseguem. Houve até casos de homens

111
que, indignados ao ver sua mulher mais ocupada com a Seção
Feminina do que com sua casa e seu marido, puseram fogo nos
papéis da Seção! Mas não são algumas exceções que fazem a regra.
É preciso encarar os fatos no processo de sua evolução. É
preciso determinar em que direção dar-se-á este desenvolvimento, sé
vai se reforçar ou enfraquecer, na situação da república dos
trabalhadores, da família. E se determinamos a linha de
desenvolvimento de nossa economia, as coisas ficam claras: a
coletividade dos trabalhadores absorve pouco a pouco e vai acabar
por dissolver a família burguesa.
Outro fenômeno característico: a nova atitude da sociedade do
trabalho e de suas leis diante da mãe celibatária. Onde está hoje o
homem que recusa casar-se com a mulher que ama só porque ela teve
uma relação amorosa com outro antes dele? A “inocência” da jovem,
sua “castidade”, sua “virgindade” só eram necessárias em um sistema
de vida fundado na propriedade privada. Para uma sociedade de bur­
gueses, de proprietários, era importante poder determinar a “legiti­
midade” do nascimento de uma criança, primeiro para saber quem,
legalmente, era obrigado a mantê-la (como se sabe, a sociedade
burguesa não se sente obrigada a cuidar da nova geração); e, em
segundo lugar, os que tinham bens queriam estar certos de transmiti-
-los a herdeiros de seu sangue. Reconhecer o direito de ter filhos
ilegítimos seria aceitar a possibilidade de uma dispersão das riquezas
acumuladas; e é por isso que a sociedade burguesa opôs-se durante
tanto tempo a dar direitos iguais aos filhos legítimos e ilegítimos, e só
se resignou com essa concessão em certos lugares e na época da
guerra mundial (4).
Quando, durante o comunismo de guerra, a propriedade
privada foi totalmente abolida, os pais deixaram de ter herança para
transmitir aos filhos. Quanto ao Estado, apenas se interessava pelo
próprio nascimento da criança, quer fosse o resultado de uma união
livre ou de um casamento registrado em cartório. A república dos
soviets protegia a mãe e o filho (senão sempre na prática, de
qualquer forma era o que deveria fazer segundo a lei) sem se
preocupar com as circunstâncias em que a criança tinha vindo ao
mundo, nem se as formalidades do casamento tinham sido
preenchidas ou se a criança tinha sido reconhecida pelo pai. Os
próprios termos “filho ilegítimo” e “mãe solteira” soavam de maneira
estranha naquela época. Para a república dos trabalhadores, havia
apenas uma mãe e uma criança.

(3) Trata-se da I Grande Guerra (N.T.)

112
Aliás, mesmo naquela época, encontravam-se restos do
passado. Assim, .questionários a preencher continham ainda estas
perguntas absurdas: casada? solteira? A milícia exigia um certificado
de casamento, etc. Todos estes fatos mostram como permanece forte
o peso dos velhos preconceitos, e como é difícil para os trabalhadores
livrarem-se das sobrevivências da. ideologia burguesa. Mas também
via-se naqueles anos que um importante passo à frente tinha sido
dado. Quem ainda ouvia falar, desde os primeiros anos da revolução,
de jovens infelizes que punham fim a seus dias porque haviam sido
“desonradas” e temiam tomar-se mães solteiras? Os assassinatos
de criança — é muito importante notar e lembrar-se — por sua mãe
não casada tinham desaparecido completamente. Hoje, observa-se
um outro fenômeno; o assassinato de um recém-nascido por seu pai
quando este não quer pagar pensão de alimentos. Mas são
evidentemente casos isolados e não de uma característica da época.
Quanto ao casamento, considerava-se naqueles anos que a vida em
comum só devia ser regularizada quando se tratava de pessoas
doentes. Na época do comunismo de guerra, o problema da
legalização de uma união não dizia respeito ao comissariado do povo
junto à Justiça, mas sim era objeto de vivos debates no comissariado
do povo junto à Saúde.
Na época do comunismo de guerra, a idéia que, em quaisquer
circunstâncias, a maternidade podia ser uma vergonha, tinha caído
completamente em desuso. E, ao mesmo tempo em que a família se
desagregava e que as uniões se formavam cada vez mais
informalmente, ~ via-se cada vez mais na maternidade uma
obrigação social da mulher essencial para o Estado.
Paralelamente às mudanças sobrevindas depois da revolução
nas relações conjugais e familiares, modificou-se também nossa
atitude diante da prostituição. Se, durante o Comunismo de guerra, e
sob as formas e o aspecto que assume nos países capitalistas
burgueses, a prostituição não desapareceu completamente, foi,
entretanto, muito e visivelmente reduzida. A prostituição tem por
causa a dependência econômica da mulher com relação ao homem,
sua impossibilidade de manter-se com o próprio trabalho. Enquanto
a existência da mulher depender de seu marido legítimo ou de seu
companheiro, enquanto o trabalho feminino não estiver nas mesmas
condições que regem o trabalho masculino, a prostituição
continuará a existir — quer sob a forma aberta de prostituição
profissional, quer sob a forma camuflada que consiste para a mulher
em se vender no “casamento legal” a um homem que não ama,
simplesmente para ter definitivamente alguém que possa mantê-la.
Com a instituição, durante o comunismo de guerra, do trabalho

113
obrigatório e a necessidade, para as mulheres, de ter um trabalho
produtivo fora de casa, a prostituição profissional diminuiu
rapidamente e depois desapareceu.
Naquela época, só uma participação ativa no trabalho real —
manual ou intelectual — podia garantir às mulheres o necessário, ou
seja, rações. As mulheres já não podiam defender-se apropriando-se
do supérfluo dos homens, já que estes não dispunham de nenhum
supérfluo. Em troca, cada mulher tinha a possibilidade de trabalhar e
ganhar sua própria ração.
A partir do momento em que o trabalho obrigatório foi
estabelecido, o poder soviético manifestou uma atitude inteiramente
nova, desconhecida até então, diante da prostituição: as prostitutas
passaram a ser perseguidas, não porque se prostituíam, mas porque
não trabalhavam, porque não participavam do trabalho produtivo
para o bem da coletividade. A prostituta era perseguida e condenada
como elemento ocioso, mas não rejeitada como parte de uma
categoria especialmente vergonhosa, como é o caso nos Estados
burgueses.
Para a república dos trabalhadores, absolutamente não
interessava saber se uma mulher vendia-se a um só homem ou a
vários ao mesmo tempo, se se tratava de uma prostituta profissional
ou de uma esposa legal, vivendo, não de um trabalho útil, mas dos
meios de existência de um marido a quem se vendera legalmente.
Todas as desertoras do trabalho, todas as mulheres que não
participavam do serviço obrigatório e que, em casa, não precisavam
se ocupar de crianças pequenas, estavam obrigadas, do mesmo modo
que as prostitutas, ao trabalho obrigatório. O poder dos soviets não
estabelecia diferença entre uma prostituta e a mais legítima das
esposas vivendo dos recursos de seu marido, qualquer que fosse este,
mesmo que tivesse o nível de comissário...
Assim estabelecia-se uma espécie de nivelamento entre todos os
desertores do trabalho. Do ponto de vista da coletividade
trabalhadora, uma mulher merecia ser condenada, não porque
vendia seu corpo, mas porque, assim como as mulheres ociosas, não
realizava nenhum trabalho útil à coletividade. Era uma atitude nova,
inteiramente nova, para com a prostituição — atitude ditada pelos
interesses da coletividade dos trabalhadores.
Durante os anos do comunismo de guerra, a prostituição
profissional atingiu um nível muito baixo; nos grandes centros,
como Moscou e Petrogrado, as prostitutas profissionais já não se
contavam por dezenas de milhares, como antes, mas por centenas. Já.
era um passo à frente. Mas não devemos nos iludir com a esperança

114
falaciosa de que na república soviética a prostituição não terá mais
lugar. Enquanto a mulher depender de seu marido, enquanto o
trabalho assalariado não bastar para cobrir as necessidades da
mulher, enquanto houver desorganização da vida econômica, a
prostituição continuará a existir, ainda que dissimuladamente.
Quando uma jovem soviética se entrega a um homem que não ama
para obter aumento ou um melhor “coeficiente”, em que isso se
distingue da prostituição? Viver com um homem para ter botas até o~
joelho, açúcar ou farinha, não é prostituir-se? Não é prostituição,
casar-se só porque existe um cômodo na casa dos soviets? Não é
prostituição, quando uma carregadora ou camponesa à procura de
farinha, é obrigada a entregar-se ao condutor para obter um lugar no
teto do vagão ou ao chefe do destacamento dé barreiras para
conseguir um pouco de farinha para seus filhos?
Sob outra forma, tudo isso não deixa de ser prostituição, uma
penosa prostituição, amarga e humilhante para a mulher e nociva
para a república dos trabalhadores, porque prejudica a saúde da
população (expansão das doenças venéreas) e sabota o sentido de
camaradagem. Apesar de tudo, não se pode negar que essa forma de
prostituição constitui um passo à frente com relação à prostituição
profissional. A mulher que vivia do comércio de seus encantos era
outrora, enquanto membro da sociedade, marcada com o estigma da
infância, e objeto do desprezo geral. O homem que pagava as carícias
da prostituta profissional achava-se com o direito de desprezar e
humilhar a mulher tanto quanto quisesse: a prostituta não tinha a
liberdade de se queixar nem de protestar. O “talão amarelo” permitia
tudo, mas mesmo sem ele, a mulher não ousava protestar contra a
grosseria do homem que a comprava, de medo que este a entregasse à
polícia, obrigando-a a registrar-se como prostituta. Hoje, as relações
são algo diferentes. Quando a mulher tem no bolso uma carteira
profissional, ou quando está no escritório ou na fábrica, deixa de ser
um objeto de compra e venda. Se se casa por interesse, pelo menos
tem a liberdade de escolher, de unir-se a alguém que é mais de seu
agrado. O interesse tem um papel apenas na medida que o
elemento econômico, monetário, tem seu lugar nos nove décimos dos
casos em casamentos burgueses. E o homem tem uma atitude
totalmente diferente para com a prostituta profissional, com a
“puta”, e com a mulher com quem se uniu livremente, por inclinação.
Com esta, não se faz de esperto. Ela não lhe permite ironizá-la, pois
isso a afastaria ainda mais depressa que a uma esposa legítima —
“você me desagradou” — e o deixa, sem hesitações.
Com o aumento do desemprego feminino, assistimos a uma vol­
ta da prostituição, sob a forma mais penosa para a mulher — a

115
prostituição do tipo profissional. Enquanto o trabalho da mulher
ainda for insuficiente, enquanto entre nós, as mulheres continuarem
a trabalhar nas categorias mais mal pagas, a prostituição vai existir,
seja abertamente — profissional —, seja dissimulada, como
atividade auxiliar, seja na pessoa de esposas “legitimamente
mantidas”. Este tipo de mulheres legítimamente mantidas,
enfeitadas e pintadas, com meias de seda, que evitam qualquer
trabalho e entregam mesmo os cuidados da casa e os filhos a
empregadas e babás, representa apenas outra forma de prostituição.
Esta categoria de mulheres — bonecas legais — é particularmente
inútil e inadmissível numa sociedade de trabalhadores. Mas nosso
objetivo no momento não consiste em empreender a análise da
questão especial, embora muito importante, da prostituição sob
todas as suas formas. Assim, voltemos à questão das mudanças na
vida cotidiana.
O que nos ensinou a experiência, no campo da transformação
dos hábitos no decorrer dos primeiros anos da Revolução de
Outubro? Esta experiência confirmou, em primeiro lugar, que a
situação da mulher na sociedade, suas relações com a família e seus
direitos no casamento eram absolutamente determinados por seu
papel na produção e pelo grau de sua participação no trabalho
produtivo com vistas a enriquecer a economia nacional e melhorara
organização da vida social. O trabalho é a medida da situação da
mulher: o trabalho assalariado, sob a égide do capitalismo e da
economia familiar individualista, submetia-a, enquanto que o
trabalho para a coletividade, para a sociedade, enquanto se
desenvolve a organização de todas as formas de produção e de
consumo socialista, liberta-a. Em segundo lugar, a edificação de
novas formas de produção e de vida cotidiana mostrou que a família
estava sofrendo uma evolução profunda, que os laços familiares
enfraqueciam-se, que o casamento tornava-se um fenômeno
provisório (já não era um sacramento indissolúvel) e que a
maternidade transformava-se em uma função social.
Os grandes êxitos obtidos nos primeiros anos da revolução,
enquanto firmávamos apressadamente os primeiros marcos da
construção do socialismo, deram um poderoso impulso à solução do
problema da relação entre os sexos. Todos estes acontecimentos
deixaram rastos profundos entre nós, mas também exerceram
influência indiscutível sobre a maneira de ver a questão da libertação
da mulher e de resolver o problema do casamento e da família no
proletariado dos países ainda submetidos ao regime capitalista.
Quando, no futuro, o proletariado mundial empreender a
construção do comunismo, será importante para ele estudar nossas

116
realizações, levando em conta as transformações realizadas no
decorrer desse período de apressada colocação dos alicerces do
socialismo. A experiência de elaboração de novas formas de vida por
uma classe operária, senhora de todo o poder, deve ser consignada
estudada e utilizada. ’

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