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Capítulo Três
Muito se fala sobre a ausência de debate acadêmico nos vários ramos das ciências
humanas em nosso país. Pouco se debate. Na área educacional, esta situação e um
fermento para a proliferação dos modismos e frases feitas. Por vezes, impressões
genéricas ou caracterizações formuladas no âmbito de condições específicas - de uma área
de conhecimento ou de conjunturas particulares - tornam-se conceitos e categorias de
analise generalizadas, repetidas e reproduzidas de forma distorcida, como numa
brincadeira de "telefone sem fio". Com isso, perdem-se os elementos que seriam capazes
de contribuir para o avanço do conhecimento e o aprimoramento da pratica,
permanecendo apenas os ruídos de uma comunicação que se presta a imobilizar e a
reproduzir aquilo que e necessário transformar.
A intenção deste artigo e debater. Sua base e a pesquisa histórica: seu foco, a
caracterização das instituições. Trata-se de uma reelaboração de parecer preparado para a
versão preliminar dos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil,
encaminhada pelo Ministério da Educação a vários especialistas, para avaliação.
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A proposta de referenciais foi modificada a partir dos pareceres, mas sem um processo
mais amplo de discussão. No momenta desta reelaboração. ainda se desconhece a versão
definitiva, o que não impede de trazer alguns elementos substantivos que envolvem a
discussão da organização curricular para as instituições de educação da criança pequena.
Sabe-se que, agora; o documento estará denominado no singular - referencial -
apresentando-se como uma das perspectivas possíveis de se pensar a educação infantil.
Mas O Referencial Curricular Nacional terá um grande impacto. A ampia distribuição de
centenas ,de milhares de exemplares as pessoas que trabalham com esse nível
educacional, mostra O poder econômico do Ministério da Educação e seus interesses
políticos, muito mais voltados para futuros resultados eleitorais do que preocupados com
a triste realidade das nossas crianças e instituições. Com isso, a expressão no singular -
referencial- significa. de fato,a concretização de uma proposta que se torna hegemônica,
como se fosse a única.
Colocam-se em questão, aqui, os princípios orientadores da organização curricular para a
educação infantil.. com a preocupação de romper hegemonias que só poderiam ser im-
postas por meio de silêncios, interdições e pela difusão generalizada de um enfoque
parcial, que não reflete o conjunto das pesquisas e estudos da área.
Afinal, qual o lugar da educação infantil? Como caracteriza-la? Qual a sua relação com o
ensino fundamental? Essas questões tem recebido manifestações cautelosas por parte das
produções mais recentes.
Do ponto de vista da interpretação histórica, a fragilidade da corriqueira e já tradicional
polarização entre assistência e educação tem sido superada. Registram-se inúmeras
evidencias de que a distinção entre diferentes instituições não ocorre entre a creche e a
pré-escola, mas que o recorte institucional situa-se na sua destinação social. As pesquisas
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que vimos realizando ha vários anos mostram que, inequivocamente, creche e pré-escola
se constituíram historicamente como instituições educacionais [nota 2]. Algumas foram
criadas como exclusivas para os pobres. outras não. Mas, incorporar essa interpretação
não e algo simples e imediato. Alem disso. as questões sobre a caracterização das
instituições não se resolvem somente com o estudo da sua história.
A polaridade entre assistência e educação, representando o mal e o bem, como em um
conto de fadas, permite as propostas inaugurar o novo e implantar o pedagógico ou o
educacional, nos textos ... , enquanto a realidade institucional permanece intocada nas
questões que efetivamente discriminam a população pobre.
Desde o século passado tornou-se recorrente atribuir as instituições de educação infantil
a iminência de atingir a condição de educacionais - como se não houvessem sido ate
então. Muitas vezes, como forma de justificar novas propostas que, por sua vez. não
chegavam a alterar significativamente as características próprias da concepção
educacional assistencialista.
Essa dicotomia esta impregnada em várias dimensões do pensamento pedagógico.
Reproduzi-la e cômodo e simples. E o que fez a versão preliminar dos Referenciais
Curriculares para a Educação Infantil, ao considerar que parte das instituições teriam
nascido com o objetivo de "assistir as crianças de baixa renda". sendo "usadas para outros
fins" que não o de sua vocação educacional, enquanto de outra parte, as pré-escolas
seriam "declaradamente" ou "assumidamente" educacionais (v. I. pp. 7 -8).
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apropriação e fruição e muito mais complexa do que uma simples relação de aquisição e
consumo?
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da criança pequena. A tradução da palavra inglesa precisaria manter a unidade dos termos,
utilizando-se elos de ligação entre eles: educar-e-cuidar.
A caracterização da instituição de educação infantil como lugar de cuidado-e-educação,
adquire sentido quando segue a perspectiva de tomar a criança como ponto de partida para
a formulação das propostas pedagógicas. Adotar essa caracterização como se fosse um dos
jargões do modismo pedagógico, esvazia seu sentido e repõe justamente o oposto do que
se pretende. A expressão tem o objetivo de trazer a tona o núcleo do trabalho pedagógico
conseqüente com a criança pequena. Educá-la e algo,integrado ao cuidá-la.
A polarização entre assistencial e educacional opõe a função de guarda e proteção a
função educativa, como se ambas fossem incompatíveis, Lima excluindo a outra.
Entretanto, a observação das instituições escolares evidencia que elas tem como elemento
intrínseco ao seu funcionamento o desempenho da função de guardar as crianças que as
freqüentam.
Preocupar-se em assistir, preocupar-se com o cuidado, com a guarda da criança não seria
"desviar-se" da oportunidade de “proporcionar uma educação de qualidade", como faz
supor o documento (v. I , p.7): não precisamos nos envergonhar dessas dimensões do
trabalho pedagógico. As instituições educacionais, especialmente aquelas para a pequena
infância. se apresentam a sociedade e as famílias de qualquer classe social, como
responsáveis pelas crianças no período em que as atendem. Qualquer mãe que procure
uma creche ou pré-escola para educar o seu filho, tambem ira buscar se assegurar de que
la ele estará guardado e protegido.
Houve momentos na história da escolarização - quando se mandavam os filhos para os
internatos - em que esse cuidado era exclusivo da instituição. Philippe Ariès analisa que o
processo de escolarização ocorreu justamente quando a educação deixou de acontecer por
meio da aprendizagem, no convívio direto com a vida dos adultos; quando se atribuiu a
uma instituição o atendimento educacional das crianças, correspondendo a preocupação de
isolar a juventude do
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mundo sujo dos adultos para mantê-la na inocência primitiva, a um desejo de treiná-la
para melhor resistir as tentações dos adultos"[nota 6].
Outra formulação que se tem adotado em alguns trabalhos sobre as instituições de
educação infantil e a que as denomina de instituições educacionais não-escolares, ou extra-
escolares, o seu grande valor e demarcar esta área em relação a chamada tendência de
escolarização das creches e pré-escolas. A proposta de Referencial menciona isso, alertando
para a imagem negativa da escola, associada ao chamado ensino tradicional e a praticas
negativas para a criança.
Certamente, creche e pré-escola sac instituições não-escolares ou extra-escolares, se
entendermos por escola o ensino fundamental. Mas essa caracterização tambem precisaria
ser adotada com muita cautela. Primeiramente, porque admite; tacitamente, que a
educação escolar no ensino fundamental possa ser prejudicial a criança. demonstrando
interesse e preocupação apenas com relação aos menores de sete anos.
Em segundo lugar porque confunde a educação infantil com instituições educacionais de
outra natureza. Ha quem tenha afirmado, para se contrapor a formulação genérica de
instituição educacional para a creche e a pré-escola, que a família tambem o é. Ora, estamos
querendo delimitar uma instituição educacional coletiva, distinta da familiar.
Mas uma expressão como instituição de educação-e-cuidado coletiva não-escolar demonstra que
e necessário retomarmos o caminho, sob o risco de chegarmos a frases intermináveis que
não resolveriam problemas como o da compartimentação das propostas pedagógicas para
essa criança que necessita de uma educação integral. Par que não considerar que elas sac
um tipo de instituição escolar?
Ou seja, uma instituição escolar seria justamente aquela que tem por característica reunir
um coletivo de determinada faixa etária, ou com um interesse especifico, para prestar um
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determinado tipo de educação. Quando se toma uma definição mais estreita da instituição
escolar, deixa-se de lado importantes aspectos do fenômeno educacional. E o que ocorre
tambem em certos estudos sobre a educação popular, que a identificam exclusivamente
com os objetivos do ensino primario, deixando de lado um amplo espectro ligado ao ensino
profissional, aos institutos disciplinares, a um conjunto de instituições educacionais que, na
história, muitas vezes vincularam-se as entidades assistenciais, como no caso da educação
infantil.
O adjetivo escolar não definiria de antemão um modelo de organização pedagógica para a
instituição. Definiria a natureza da mesma - educacional -, no interior da qual se
encontrariam estruturas e objetivos de ordens diversas: a creche, a pré-escola, a escola de
ensino fundamental, a escola técnica (de processamento de dados, de analises
laboratoriais, de construção civil e outras), etc.
Aqui seria o caso de acrescentar um pouco de pimenta ao tempero, de modo a aquecer a
discussão na área. Por um lado, todos os aspectos analisados ate aqui mostram, a
necessidade de se compreender uma especificidade da educação infantil, como,de outra
ordem que a do ensino fundamental. as objetivos da educação infantil, desse modo,
necessitariam envolver as suas duas modalidades, creche e pré-escola entendidas aqui no
sentido estrito da letra da lei, como divididas por faixa etária -, ou seja, com objetivos sem
distinção para essas faixas etárias. Mas, por outro lado, não se poderia deixar de
contemplar objetivos mais específicos, tanto aos bebes e as crianças menores, quanta aos
que se encontram na fase final da educação infantil.
É claro que não se trata de estabelecer limites etários definidos, como se a educação
infantil pudesse adquirir um carater seriado: isto seria um contra-senso em relação a
vários aspectos psicológicos, pedagógicos e políticos, e é um problema que a legislação
não conseguiu resolver. Se a especificidade da educação infantil mostra o quanta não faz
sentido tratar o pedag6gico como algo purificado da contaminação da família, da guarda e
do cuidado da criança pequena, não poderíamos,
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dessa área, profissionais que somos vinculados ao nível anterior, essa solidariedade
expressaria a coerência de nossos princípios educacionais.
Se o bebê está distante dos conceitos científicos, como dissemos acima, tambem a criança
de cinco ou seis anos esta distante do que foi quando bebê. Ela sabe que ira para a escola.
A sua adaptação a escola tambem e um processo que precisaria ser tratado com atenção. A
sua aproximação com os conteúdos que ira estudar na escola de ensino fundamental
tambem e algo que será demandado por ela, o dado histórico e sociológico de uma
tendência a universalização do atendimento educacional as crianças de seis anos, por
demanda da própria sociedade, precisa ser considerado.
É claro que a educação infantil não pode deixar de lado a preocupação com uma articulação
com o ensino fundamental, especialmente para as crianças mais velhas que logo mais
estarão na escola e que se interessam por aprender a ler, escrever e contar. Isso poderia
ser resolvido muito mais facilmente se houvesse clareza quanta ao caráter da educação
infantil, se a criança fosse tomada como ponto de partida e não um ensino fundamental pré-
existente.
Desse modo, embora discordando da forma como se fez a divisão por faixa etária nas
sugestões da proposta de Referencial, entendemos que de algum modo essa diferença
precisaria ser contemplada, tanto para garantir as crianças menores a atenção merecida, o
seu não esquecimento em virtude da sua condição de minoritários entre os matriculados,
quanto para garantir as crianças maiores um trabalho educacional que respeite o seu
iminente ingresso no ensino fundamental.
Essas reflexões mostram como e insuficiente atribuir um nome ou expressão para
caracterizar a instituição e dai extrair todas as conseqüências pedagógicas a se desenvolver
em seu interior. Essa ilusão e o alimento dos modismos que se sucedem na área
educacional, lucrativos para o mercado, mas nocivos para as crianças e profissionais
envolvidos com a sua educação.
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Vimos que a instituição pode ser educacional e adotar praticas e cuidados que ocorrem no
interior da família, sem precisar escorar-se em uma divisão disciplinar que compartimenta a
criança. A instituição pode ser escolar e compreender que para uma criança pequena. a
vida é algo que se experimenta por inteiro, sem divisões em âmbitos hierarquizados. Que
para ela a ampliação do seu universo cultural, o conhecimento do mundo, ocorre na
constituição de sua identidade e autonomia, no interior do seu desenvolvimento pessoal e
social, diferentemente da segmentação proposta (v. I, pp.52-3).
Quando se indica a necessidade de tomar a criança como ponto de partida, quer-se
enfatizar a importância da formatação profissional de quem ira educar essa criança nas
instituições de educação infantil. Não e a criança que precisaria dominar conteúdos
disciplinares, mas as pessoas que a educam.
Certamente, no interior de uma proposta que parta da criança pequena e das suas
necessidades para pensar as praticas da instituição, varias das idéias contidas no
documento poderiam ser reaproveitadas. Mas, tomar a criança como ponto de partida exigi
ria compreender que para ela, conhecer o mundo envolve o afeto, o prazer e o desprazer, a
fantasia, o brincar e o movimento, a poesia, as ciências, as artes plásticas e dramáticas, a
linguagem, a musica e a matemática, Que para ela, a brincadeira e uma forma de
linguagem (v.2, p.7), assim como a linguagem e uma forma de brincadeira.
Notas