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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA

Estudo sobre A iconografia de ápis


Durante o período faraônico

Cássio de Araújo Duarte

Tese apresentada ao programa de


Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de Doutor
em Arqueologia.

Orientador: Profª Drª Maria Isabel D´Agostino Fleming


Linha de Pesquisa: Representações Simbólicas em Arqueologia

São Paulo
2010
“The Golden Calf”. Touro conservado em formol, com um disco
de ouro 18K entre os chifres e suas patas chifres revestidos com o
mesmo metal. Obra do artista plástico britânico Damien Hirst e
vendido em um leilão milionário em setembro de 2009.
Para minha mãe, que sempre me apoiou.
Sumário

Resumo p. ii

Agradecimentos p. iii

Índice p. 1

Índice das Figuras no Texto p. 5

Cronologia p. 8

Mapa p. 16

Introdução p. 18

Capítulo 1: A Descoberta do Serapeum de Saqqara p. 26

Capítulo 2: Perspectiva Diacrônica da Documentação sobre Ápis p. 59

Capítulo 3: Estudo Analítico das Representações de Ápis p. 90

Capítulo 4: Estudo Comparativo da Cultura Material


Reinado Novo - Período Tardio p. 177

Conclusão p. 217

Bibliografia p. 222
Resumo

A partir de uma ampla documentação que abrange diversas categorias


de suportes materiais e imagens datadas do período faraônico, este trabalho
tem como objetivo compreender as mudanças na representação, concepção e
simbolismo do touro Ápis e sua significância em rituais da realeza e
enquanto divindade para a sociedade egípcia como um todo.

Palavras-chave: Egito faraônico, egiptologia, religião egípcia, Ápis,


Serapeum,

Abstract

Based on a large documentation that compreend many kinds of


material supports and images dated from the Pharaonic Period, this work
aims to understand the changes on the representation, conception and
symbolism of the Apis bull and its significance in kingship rituals and as a
deity to the Egyptian society as a whole.

Key words: pharaonic Egypt, Egyptology, Egyptian religion, Apis,


Serapeum.
Agradecimentos

Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos à minha orientadora, profª Drª


Maria Isabel D´Agostino Fleming, que mais uma vez me acolheu e proporcionou o
desenvolvimento deste trabalho, ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo e ao CNPq por viabilizar uma bolsa sem a qual eu não teria tido o mesmo êxito
ao completar a tarefa a que me propus.
Nutro o mesmo sentimento de gratidão ao prof. Dr. Didier Devauchelle da
Université Charles-de-Gaulle Lille 3, que agiu como meu co-orientador, tornou viável meu
acesso à documentação e tanto fez para vencer trâmites burocráticos para possibilitar minha
estadia da melhor forma possível. Quero também aqui agradecer à Drª Guillemette Andreu-
Lanoé, diretora do departamento de antiguidades egípcias do Museu do Louvre por me
permitir o acesso às informações sobre os bronzes da coleção e à Drª Florence Gombert-
Meurice, conservadora da mesma instituição que generosamente me auxiliou e viabilizou
cópias das fichas dos artefatos. Não menos importantes foram os préstimos do Dr. Stephen
Quirke, conservador do Museu Petrie da University College de Londres, e da Drª Renée
Friedman, conservadora do Museu Britânico, ao me esclarecer particularidades de objetos
dessas instituições.
Não poderia deixar de mencionar as valiosas informações e material fornecidos pela
Dra. Rita De Maria, do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, pelas Dras. Adela
Oppenheim e Emilia Cortes, do Museu Metropolitano de Nova York e pelo Dr. Jean-Luc
Bovot, conservador do Louvre.
Agradeço também ao sr. W. Arnold Meijer, que me forneceu detalhes sobre sua
coleção, ao sr. Rob Koopman, que foi solícito ao enviar fotos pessoais da coleção egípcia
do Rijksmuseum, ao sr. Jon Maloney que me forneceu imagens de gado em fazendas norte-

iii
americanas com triângulo frontal e aos srs. Gene Earl Bearup e Evelyn Bearup pelos
auxílios na tradução de textos essenciais.
Quero também expressar meu reconhecimento aos numerosos auxílios do Dr.
Terence DuQuesne e de alguns amigos que tive o prazer de fazer quando de minha estadia
em Lille, Fabien Jonquois, Mélanie Cressent e Simone Petacchi.
Por fim, gostaria de expressar minha gratidão a meu pai (in memoriam) que
viabilizou as melhores experiências que vivi e aprendizados que adquiri; ao apoio de meus
irmãos e cunhado; e à minha mãe, incansável incentivadora, que mesmo diante de tantos
afazeres diários e prioridades se prontificou à árdua tarefa de ler e comentar estes escritos.

iv
Índice

Índice das Figuras no Texto p. 5

Cronologia p. 8

Mapa p. 16

Introdução p. 18

Capítulo 1: A Descoberta do Serapeum de Saqqara p. 26

Mariette no Egito p. 27

O Serapeum p. 30

O hemicírculo e o templo de Nectanebo I p. 33

Dromos p. 37

Os Grandes Subterrâneos p. 46

Os Pequenos Subterrâneos p. 51

Os Túmulos Isolados p. 53

Capítulo 2: Perspectiva Diacrônica da Documentação sobre Ápis p. 59

Período Arcaico e Reinado Antigo p. 59

Primeiro Período Intermediário e Reinado Médio p. 66

Do Reinado Novo ao Período Tardio p. 72


Capítulo 3: Estudo Analítico das Representações
de Ápis p. 90

Do Período Arcaico ao Reinado Médio p. 90

O Reinado Novo p. 101

Terceiro Período Intermediário e Período Tardio p. 115

As Estelas Votivas p. 117

Ápis Teriomórfico em Atitude de Marcha p. 117

Ápis Antropomórfico e Taurocéfalo em


Atitude de Marcha p. 122

Ápis Deitado p. 123

Atitude de Galope p. 126

Ápis Mumificado e Teriomórfico p. 128

Os Bronzes de Ápis p. 131

Ápis Teriomórfico em Atitude de Marcha p. 134

Ápis Teriomórfico em Atitude de Galope p. 143

Ápis Teriomórfico Deitado p. 148

Ápis Antropomórfico e Taurocéfalo p. 149

Casos Especiais e Outros Artefatos


de Bronze p. 157

Ápis nos Pés de Ataúdes p. 160

Capítulo 4: Estudo Comparativo da Cultura Material


Reinado Novo - Período Tardio p. 177
Elementos “Constantes” p. 179

1. Triângulo na fronte p. 179

2. Disco entre os chifres p. 182

3. Disco com uraeus entre os chifres p. 183

4. Uraeus entre os chifres p. 183

5. Crescente p. 183

6. Manto p. 184

7. Colar p. 187

8. Imagem solar alada sobre os ombros


ou pescoço p. 188

9. Imagem solar alada sobre as ancas p. 189

10. Imagem solar alada no centro das costas p. 189

11. Manchas pelo corpo p. 190

Elementos Restritos p. 194

1. Peruca ou toucado em representações


teriomórficas p. 194

2. Máscara funerária p. 195

3. Disco com par de plumas p. 196

Freqüência dos Modos de Figuração referentes à


Atitude e o Contexto de sua Localização p. 196

Manchas Corporais e Símbolos Solares p. 199

Estelas e Bronzes: Contrastes p. 204


Mnévis e Ápis p. 210

Conclusão p. 217

Bibliografia p. 222
Índice de Imagens do Texto

Fig. 1 Reconstituição do sítio de Saqqara norte. p. 32

Fig. 2 Esfinges que ladeavam o Serapeum. p. 32

Figs. 3a e 3b Hemicírculo de filósofos. p. 35

Fig. 4 Gravura que ilustra o dromos na época de sua descoberta. p. 39

Fig. 5 Estátua de Ápis de calcário. p. 39

Fig. 6 Esconderijo de bronzes da Necrópole de Animais de Saqqara-norte. p. 39

Fig. 7 Plano do Serapeum por Mariette. p. 45

Fig. 8. Gravura dos Pequenos Subterrâneos. p. 49

Fig. 9. Gravura dos Grandes Subterrâneos. p. 49

Fig. 10 Corredor e câmaras dos Grandes Subterrâneos. p. 49

Fig. 11 Esquema da edícula e de uma Sepultura Individual. p. 50

Fig. 12 Leão que adornava uma das entradas do Serapeum. p. 50

Fig. 13 Entrada dos Subterrâneos. p. 50

Fig. 14 Aquarela da trincheira que conduzia aos subterrâneos. p. 50

Fig. 15 Planta dos Subterrâneos feita por Mariette. p. 56

Fig. 16. Inscrição de uma vasilha do período de Aha. p. 94

Figs. 17 e 18 Ostracon e selo-cilindro encontrados na sepultura de Hemaka. p. 94

Fig. 19 Registro da corrida de Ápis nos anais do Fragmento do Cairo. p. 94

Fig. 20 Cena de Ápis do templo solar de Abu Gurab. p. 94

Fig. 21 Três divindades em um relevo proveniente de Lahun. p. 98


Fig. 22 Cena de combate de touros do túmulo de Senbi. p. 98

Figs. 23 e 24 Cenas da capela vermelha de Hatshepsut. p. 102

Fig. 25 Cena da corrida de Ápis no templo de Dendera. p. 102

Fig. 26 Cena da corrida de Ápis do templo de Kom Ombo. p. 102

Fig. 27 Pyramidion de Heidelberg. p. 111

Fig. 28 Estela do Museu Pushkin com Mnévis. p. 111

Fig. 29 Relevo que ilustra adoração de Mnévis. p. 111

Figs. 30-35 Detalhes de estelas do Serapeum com Ápis deitado. p. 124

Figs. 36-38 Imagens de estelas que ilustram a esfinge de Giza. p. 124

Fig. 39 Esquema da combinação de imagens aladas nos bronzes. p. 136

Figs. 40-49 Ilustrações de pés de ataúdes. p. 162

Figs. 50-51 Vinhetas do papiro Jumilhac. p. 162

Fig. 52 Inscrição do Reinado Antigo. p. 174

Fig. 53 Cena dos pés de uma urna funerária do Período Ptolemaico. p. 174

Fig. 54 Parte da cena da festa Sed de Osíris do sarcófago de Berlim. p. 174

Fig. 55 Pintura de pavimento de Amarna. p. 174

Fig. 56-57 Maquetes de gado do Reinado Antigo. p. 181

Fig. 58 Gado ankole com manchas triangulares na fronte. p. 181

Fig. 59 Manto funerário de contas de faiança. p. 186

Fig. 60 Bronze de Ápis do Louvre. p. 186

Fig. 61-62 Ilustrações de estelas do Serapeum com Ápis mumificado. p. 186

Figs. 63-64 Gravuras rupestres de Karkūr et-Talh. p. 191

Fig. 65 Detalhe de uma estela do Serapeum no Louvre. p. 191

Figs. 66-67 Bronzes de musaranhos. p. 206


Fig. 68 Imagem do teto do santuário dos sarcófagos de Tutankhamon. p. 207

Fig. 69 Ilustração da fachada do templo de Karnak. p. 207

Fig. 70 Imagens solares no dorso de um bronze. p. 207


Cronologia 1

Pré-dinástico

Badariense 5500-4000
Amratense (Naqada I) 4000-3500
Gerzense 2 (Naqada II ) 3500-3200

(Gerzense tardio, Naqada III) c. 3200-3100

Período Dinástico Arcaico

1ª Dinastia

Narmer c.3100
Aha c.3100
Djer c.3000
Djet c.2980
Den c.2950
(Rainha Merneith) c.2950
Anedjib c.2925
Semerkhet c.2900
Qa‘a c.2890

2ª Dinastia

Hetepsekhemwy c.2890
Reneb c.2865
Nynetjer
Weneg
Sened
Peribsen c.2700
Khasekhemwy c.2686

1
A título de simples consulta e para não nos perdermos em debates sobre a exatidão das datas em cada
dinastia, resolvemos aqui expor a cronologia que Shaw e Nicholson (1995) apresentam em seu
“Dictionary of Ancient Egypt”. Desta maneira haverá algumas discrepâncias em relação às datas
apresentadas na “introdução à documentação utilizada”, baseadas na datação mais específica de Rafaelle
(2000) para o Pré-Dinástico e para o Período Arcaico. Contudo, como já foi acima exposto, não é
primordial para esta pesquisa uma datação exata no que se refere aos anos de reinado e duração de
dinastias, mas somente a menção da sequência de reinados em cada época da história egípcia.
2
Como os autores omitiram o período de Naqada III, equivalente ao Pré-dinástico tardio, resolvemos
então modificar a cronologia de modo a inserir essa fase logo após o período Gerzense, chamado também
de Naqada II. Vercoutter (L´Egypte et la Vallée du Nil. Paris, PUF, 1992: p. 173) expõe as diferentes
classificações para esse período: protodynastique, Gerzéen récent, Late Gerzean e, por fim, Naqada III.

8
Reinado Antigo

3ª Dinastia

Sanakht (=Nebka?) 2686-2667


Djoser (Netjerikhet) 2667-2648
Sekhemkhet 2648-2640
Khaba 2640-2637
Huni (Qahedjet ?) 3 2637-2613

4ª Dinastia

Sneferu 2613-2589
Khufu (Queops) 2589-2566
Djedefre (Redjedef) 2566-2558
Khafre (Quefren) 2558-2532
Menkaure (Miquerinos) 2532-2503
Shepseskaf 2503-2498

5ª Dinastia

Userkaf 2494-2487
Sahure 2487-2475
Neferirkare 2475-2455
Shepseskare 2455-2448
Reneferef (Neferefre) 2448-2445
Niuserre 2445-2421
Menkauhor 2421-2414
Djedkare 2414-2375
Unas 2375-2345

6ª Dinastia

Teti 2345-2323
Userkare 2323-2321
Pepi I (Meryre) 2321-2287
Merenre 2287-2278
Pepi II (Neferkare) 2278-2184
Nitiqret 2184-2181

1° Período Intermediário

7ª e 8ª Dinastias 2181-2125

Numerosos reis efêmeros

3
Acréscimo nosso.

9
9ª e 10ª Dinastias 2160-2025

Herakleopolitanas

Khety (Merybre)
Khety (Wahkare)
Merykare
Ity

11ª Dinastia (Tebas) 2125-2055

[Mentuhotep I (‘Tepy-aa’)]
Intef I (Sehertawy) 2125-2112
Intef II (Wahankh) 2112-2063
Intef III (Nakhtnebtepnefer) 2063-2055

Reinado Médio

11ª Dinastia (todo o Egito)

Mentuhotep II (Nebhepetre) 2055-2004


Mentuhotep III (Sankhare) 2004-1992
Mentuhotep IV (Nebtawyre) 1992-1985

12ª Dinastia *

Amenemhat I (Sehetepibre) 1985-1955


Senusret I (Kheperhare) 1965-1920
Amenemhat II (Nubkaure) 1922-1878
Senusret II (Khakheperre) 1880-1874
Senusret (Khakaure) 1874-1855
Amenemhat III (Nimaatre) 1855-1808
Amenemhat IV (Maakherura) 1808-1799
Rainha Sobeknefru (Sobekkare) 1799-1795

13ª Dinastia

Ao todo, cerca de setenta reis, dos quais os cinco


mais frequentemente listados estão citados abaixo:

Hor (Awibre)
Khendjer (Userkare)

*
Há algumas superposições entre os reinados da 12.ª Dinastia quando parece ter havido co-regências em
que pai e filho reinavam simultaneamente.

10
Sobekhotep III (Sekhemresewadjtawy)
Neferhotep I (Khasekhemre)
Sobekhotep IV (Khaneferra) c.1725

14ª Dinastia

Reis menores, possivelmente contemporâneos


daqueles da 13ª Dinastia

2° Período Intermediário

15ª Dinastia (Hicsos)

Salitis
Khyan (Seuserenre) c.1600
Apepi (Aauserre) c.1555
Khamudi

16ª Dinastia 1650-1550

Reis Hicsos menores, contemporâneos àqueles da


15ª Dinastia.

17ª Dinastia 1650-1550

Vários reis estabelecidos em Tebas, dos quais os


quatro mais importantes são listados abaixo:

Intef (Nubkheperre)
Taa I (Senakhtenre)
Taa II (Seqenenre) c.1560
Kamose (Wadjkheperre) 1555-1550

Reinado Novo

18ª Dinastia

Ahmose (Nebpehtyre) 1550-1525


Amenhotep I (Djeserkare) 1525-1504
Thutmose I (Aakheperkare) 1504-1492
Thutmose II (Aakheperenre) 1492-1479
Thutmose III (Menkheperre) 1479-1425
Hatshepsut (Maatkare) 1473-1458
Amenhotep II (Aakheperure) 1427-1400
Thutmose IV (Menkheperure) 1400-1390
Amenhotep III (Nebmaatre) 1390-1352
Amenhotep IV (Akhenaten)

11
(Neferkheperurewaenre) 1352-1336
Nefernefruaten (Smenkhare) 1338-1336
Tutankhamun (Nebkheperure) 1336-1327
Ay (Kheperkheperure) 1327-1323
Horemheb (Djeserkheperure) 1323-1295

19ª Dinastia

Ramsés I (Menpehtyre) 1295-1294


Sety I (Menmaatre) 1294-1279
Ramsés II
(Usermaatre Setepenre) 1279-1213
Merenptah (Baenre) 1213-1203
Amenmessu (Menmire) 1203-1200
Sety II
(Userkheperure Setepenre) 1200-1194
Siptah (Akhenre Setepenre) 1194-1188
Tausret (Sitremeritamun) 1188-1186

20ª Dinastia

Sethnakhte
(Userkhaure Meryamun) 1186-1184
Ramsés III
(Usermaatre Meryamun) 1184-1153
Ramsés IV
(Hekamaatre Setepenamun) 1153-1147
Ramsés V
(Usermaatre Sekheperenre) 1147-1143
Ramsés VI
(Nebmaatre Meryamun) 1143-1136
Ramsés VII (Usermaatre
Setepenre Meryamun) 1136-1129
Ramsés VIII
(Usermaatre Akhenamun) 1129-1126
Ramsés IX
(Neferkare Setepenre) 1126-1108
Ramsés X
(Khepermaatre Setepenre) 1108-1099
Ramsés XI
(Menmaatre Setepenptah) 1099-1069

3° Período Intermediário

21ª Dinastia

Smendes
(Hedjkheperre Setepenre) 1069-1043
Amenemnisu (Neferkare) 1043-1039
Psusenes I [Pasebakhaenniut]

12
(Aakhepere Setepenamun) 1039-991
Amenemope
(Usermaatre Setepenamun) 993-984
Osorkon, o mais velho
(Aakheperre Setepenre) 984-978
Sinamun
(Netjerikhepere Setepenamun) 978-959
Psusennes II [Pasebakhaenniut]
(Tikheperure Setepenre) 959-945

22ª Dinastia (Bubástida/Líbia)

Sheshonq I
(Hedjkhepere Setepenre) 945-924
Osorkon I (Sekhemkheperre) 924-889
Sheshonq II
(Hekakheperre Setepenre) c. 890 **
Takelot I 889-874
Osorkon II
(Usermaatre Setepnamun) 874-850
Takelot II (Hedjkheperre
Setepenre/amun) 850-825
Sheshonq III (Usermaatre) 825-773
Pimay (Usermaatre) 773-767
Sheshonq V (Aakheperre) 767-730
Osorkon IV
(Aakheperre Setepenamun) 730-715

23ª Dinastia (Tanita/Líbia)

Várias linhas de governantes contemporâneos em


Herakleopolis Magna, Hermopolis Magna,
Leontopolis e Tanis. Somente três dos quais são
listados abaixo:

Pedubastis I (Usermaatre) 818-793


Sheshonq IV c.780
Osorkon III
(Usermaatre Setepenamun) 777-749

24ª Dinastia

Bakenrenef (Bocchoris) 727-715

Período Tardio

25ª Dinastia (Kushita)

**
Morto depois de ter reinado por um ano no regime de uma co-regência com seu pai, Osorkon I.

13
Piy (Piankhy) 747-716
Shabaqo (Neferkare) 716-702
Shabitqo (Djedkaure) 702-690
Taharqo (Khunefertemre) 690-664
Tanutamani (Bakare) 664-656

26ª Dinastia (Saíta)

[Nekau I 672-664]
Psamtek I (Wahibre) 664-610
Nekau II (Wehemibre) 610-595
Psamtek II (Neferibre) 595-589
Apries (Haaibre) 589-570
Ahmose II (Khnemibre) 570-526
Psamtek III (Ankhkaenre) 526-525

27ª Dinastia (Primeiro Período Persa)

Cambises 525-522
Dario I 522-486
Xerxes I 486-465
Artaxerxes I 465-424
Dario II 424-405
Artaxerxes II 405-359

28ª Dinastia

Amyrtaios 404-399

29ª Dinastia

Nepherites I 399-393
Hakor (Khnemmaatre) 393-380
Nepherites II c.380

30ª Dinastia

Nectanebo I (Kheperkare) 380-362


Teos (Irmaatenre) 362-360
Nectanebo II
(Senedjemibre Setepenanhur) 360-343

Segundo Período Persa

Artaxerxes III Ochus 343-338


Arses 338-336
Dario III Codoman 336-332

14
Período Ptolemaico 4 332-32

Período Romano 30 a.C.-395 d.C.

4
Também conhecido como Período Helenístico.

15
Frederick Bridgeman Procissão do Touro Ápis, óleo sobre tela, 1879.
Introdução

Um bosque de tamareiras se estende pela região de Mit Rahineh como colunas


de uma imensa sala hipóstila, uma sutil lembrança de um templo que lá se situara e que
outrora fora um dos mais importantes e antigos de um país lendário. O ar que antes se
impregnava com o fumo do incenso cujos fluxos eram denunciados pelos fios de luz
vindos de janelas próximo ao teto agora fica nebuloso pela umidade que se eleva dos
campos e dos canais onde pasta o gado. Esse era o recinto sagrado de Ptah, deus
criador, patrono dos artesãos e da cidade de Mênfis, a capital mais antiga do país. Sua
morada abrigava um touro chamado Ápis com atributos especiais e que na condição de
arauto e Ba 1 de Ptah prestava serviços oraculares a devotos que vinham de terras
distantes em busca de respostas para suas inquietações. Quando um Ápis falecia recebia
exéquias faustosas no cemitério que abrigava diversas gerações de seus antepassados, o
Serapeum. Nesse local também havia um templo em homenagem à sua versão sincrética
com Osíris, Osíris-Ápis (Wsir-¡p), deus funerário e senhor de toda a necrópole que
hoje recebe o nome de uma localidade vizinha, Saqqara. Para lá se dirigiram inúmeros
peregrinos que depositaram o testemunho de sua fé por meio de diversos artefatos, tanto
nas tumbas e suas proximidades quanto no santuário, vinculando assim seus nomes aos
préstimos que esse touro e o panteão divino lhes trariam no momento de suas mortes.
Durante essa época e em virtude de sua associação à religião funerária, Ápis também
compartilhava qualidades com o deus sol Rê, cuja simbologia se imprimiu em diversos
objetos que o ilustram, assim como um padrão especial de manchas corporais que lhe
davam distinção que Heródoto, Estrabão e Cláudio Eliano comentaram em suas obras.
Entretanto, este panorama descreve somente parte do papel que esse animal
desempenhou para a sociedade egípcia e sua associação com as divindades citadas é

1
Por não compartilhar de nenhum termo específico contemporâneo e ocidental, o Ba corresponde a uma série
de conceitos abstratos que se remetem tanto à individualidade de um ser, sua alma e seu poder, como também
podia ser aplicado a seres inanimados. Sua representação usual é a de um pássaro com cabeça humana,
contudo, nos textos, pode-se referir ao Ba por meio de uma representação de um carneiro ou de um jabiru
(Posener, Sauneron, Yoyotte 1992: 9-10; Shaw, Nicholson 1995: 47).

18
fruto de um processo histórico-cultural que se desenhou em um momento tardio da
história egípcia.
Os primeiros documentos que nos chegaram o inserem em um contexto
particular das celebrações da realeza em que, juntamente com o rei, o animal deveria
percorrer uma órbita entre os marcos que simbolizavam o Alto e o Baixo Egito. Ao
realizar esse rito, a potência fecundadora de Ápis era assimilada pelo rei e ao mesmo
tempo simbolicamente transferida a todo o país. Apesar de sua importância, não foram
muitos os relatos dessa cerimônia que sobreviveram ao tempo mas sua prática perdurou
até o Período Ptolemaico atestando a permanência de uma tradição que durou cerca de
três mil anos. A despeito de sua escassez, as fontes anteriores ao Reinado Novo
sugerem valores que foram paulatinamente alterados nessa época e que salientavam
outras qualidades físicas de Ápis que, por exemplo, o padrão de cores e manchas da
pelagem.
De animal simbólico para a realeza, pela atuação de diversas influências
religiosas que o vincularam a Osíris, Rê e Ptah, Ápís adquiriu importância no contexto
funerário para além das fronteiras do Serapeum para integrar o repertório iconográfico
de urnas funerárias e sepulturas privadas e de um templo no distante oásis de Kharga.
Representado na mesma atitude de galope dos monumentos reais, Ápis passa a aqui
carregar a múmia do falecido às costas em sua nova função de guia para o além. Nessas
imagens, o touro exibe uma pelagem com padrões decorativos diversos que nem sempre
estão de acordo com as normas das imagens das estelas votivas contemporâneas do
Serapeum. Por outro lado, os bronzes encontrados no mesmo sítio retratam Ápis com
um outro motivo simbólico que as marcas e que é constituído de imagens solares aladas
sobre o dorso. De sua passagem pelo Egito, Heródoto nos fornece algumas informações
sobre essa peculiaridade estética que atribuía a um touro a identidade de um Ápis,
observações que foram confirmadas por Estrabão e Cláudio Eliano nos séculos
seguintes, embora de maneiras distintas e nem sempre complementares.
Diante das informações conflituosas desse multifacetado espectro de
documentos e com a intenção de melhor compreender o processo de transformação que
se operou sobre as representações de Ápis no decorrer da história egípcia, propusemo-
nos dirigir um olhar mais atento sobre essas imagens com a finalidade de contextualizá-

19
las às especificidades histórico-culturais que as produziram e analisar os vínculos que
elas mantêm entre si.
Para tanto, procuramos estabelecer um corpus consistente que acreditamos
atender às necessidades metodológicas requeridas pela arqueologia, ainda que este não
tenha exaurido em quantidade ou variedade a cultura material existente sobre o tema 2 .
Em virtude de numerosos obstáculos que se opuseram a nosso trabalho, tais como
limitação de tempo e acesso às fontes, ou informações e registros fotográficos
inconclusivos, não pudemos estender nossa análise às particularidades decorativo-
simbólicas dos artefatos para deles extrair outros elementos que os situassem com
maior precisão no contexto cultural que os criou e estabelecer seriações quanto ao
estilo. Ainda assim, nosso corpus foi rico o suficiente para que tivéssemos a
possibilidade de aí observar a expressão da individualidade em diversos objetos, como
no caso das pinturas nos pés de urnas funerárias, as quais revelam uma certa liberdade
criativa do artista que as produziu, sem desrespeitar as normas do decoro (Baines 1990;
2007).
A evolução e readaptação do tema da corrida de Ápis no decorrer da história
egípcia e sua transposição a novos contextos materiais mostrou quão viva estava a
realidade do mito e era reinventada e reapropriada à medida que se entranhava no
tecido social. Para entender esse e outros processos culturais tivemos em alguns
momentos que extrapolar a periodização da documentação aqui selecionada para
encontrar indícios que pudessem elucidar as questões levantadas por essas fontes. Com
o mesmo objetivo, recorremos sempre que necessário aos documentos escritos, fossem
eles egípcios ou não; da mesma forma, não hesitamos em procurar elementos-chave
para nosso entendimento fora do campo das ciências humanas (Le Goff 1984: pp. 95-
106). Tendo em mente que tanto a constituição de Ápis como um personagem
representativo para a realeza, quanto a ampliação e transformação de seu papel para
uma dimensão social mais extensa estavam atadas a uma teia de inter-relações
simbólicas das quais outros elementos culturais e materiais participavam, procuramos
assim manter um diálogo entre fontes de natureza diversa com a constante preocupação

2
Entre os artefatos não incluídos estão os amuletos, que por apresentarem uma identificação ambígua a Ápis,
preferimos deixá-los de lado para nos concentrar naqueles cuja atribuição lhe é mais plausível.

20
de não recairmos em anacronismos ou de estabelecermos associações não endossadas
pelas fontes, uma armadilha muito recorrente em estudos de religião e simbologia.
Também evitamos privilegiar uma abordagem exclusivamente diacrônica ao adotar uma
metodologia que enfocou, sempre que possível, as relações horizontais entre artefatos
contemporâneos. Para tanto, afora a documentação reunida em nosso corpus,
procuramos nos munir de uma bibliografia abrangente que pudesse satisfazer às
necessidades teórico-metodológicas levantadas.
No que concerne diretamente ao nosso estudo, a única publicação que trata da
diversidade de artefatos que ilustram Ápis (Kater-Sibbes, Vermaseren 1975-1977) limita-
se a um catálogo acompanhado de fotografias, nem sempre nítidas e que não
privilegiaram os ângulos mais importantes dos objetos. A obra não se propôs entendê-los
dentro de seus respectivos contextos históricos e a metodologia utilizada para apresentá-
los é muito questionável 3 . Quanto às estelas do Serapeum, só existe um catálogo
elaborado por M. Malinine, G. Posener e J. Vercoutter (1968) que trata de parte dos
monumentos encontrados nesse sítio, havendo ainda um número considerável delas à
espera de publicação 4 . A obra é elaborada, mas por conter fotos em preto-e-branco,
muitos detalhes fogem a nossa percepção, especialmente as das estelas mais desgastadas.
Algumas foram publicadas por Ali (1996), Devauchelle (1994, 2000) e Barbotin (2001,
2005) enquanto que outras, encontradas nas cercanias do Serapeum nas sepulturas de
animais sagrados, podem ser vistas em Davies (2006).
Naturalmente não poderíamos deixar de citar as duas obras que Mariette
publicou em vida (1856,1857) e aquela que Maspero publicou por ele baseado em seus
escritos em 1882. Infelizmente, Mariette desviou sua atenção do Serapeum para outras
missões arqueológicas e uma publicação mais consistente acabou por não ser produzida

3
O primeiro volume, dedicado aos monumentos do Período Helenístico Romano, na verdade traz vários
artefatos cuja datação mais provável é o Período Tardio, e nas explicações dos diversos objetos não especifica
nem a época em que foram produzidos ou a razão pela qual foram incluídos nessa cronologia. O segundo
volume, dedicado aos monumentos de proveniência exterior ao Egito, traz inúmeros bronzes cuja origem é
claramente egípcia por seu estilo. Além disso, o critério utilizado baseado em topônimos latinos se
fundamenta no local onde as imagens estão expostas e não na proveniência plausível destes, e assim, objetos
produzidos na Europa são postos lado-a-lado com aqueles que lhes são estranhos tanto cronologica quanto
geograficamente. O terceiro volume, no que concerne aos acréscimos, os mesmos problemas das duas
primeiras obras foram repetidos, indicando que os autores não são especialistas no período faraônico.
4
Por serem grande em parte escritos em demótico, esses monumentos estão sendo estudados para uma futura
publicação do prof. Devauchelle, da Universidade Charles-de-Gaulle Lille 3.

21
em virtude de uma enchente do Nilo que destruiu boa parte de suas anotações. As
informações que essas obras transmitem estão longe de esclarecer as dúvidas levantadas
pelos achados e devido à perda de muitas referências, não temos como ter certeza sobre a
origem de vários artefatos que podem ter vindo de Saqqara e sido encontrados por
ocasião das escavações de Mariette. Sua exploração na necrópole elucidou três fases
pelas quais os sucessivos Ápis foram sepultados: a primeira correspondendo
exclusivamente ao Reinado Novo; a segunda, do final do reinado de Ramsés II até o ano
21 de Psamético I, englobando assim parte do Reinado Novo, o Terceiro Período
Intermediário e o início do Período Tardio; e por fim, a terceira fase que se estende até o
final do período Ptolemaico. Essas sepulturas guardavam não somente artefatos de
naturezas distintas, mas seu contexto de deposição também era variável de tumba para
tumba. As sondagens de Mariette na superfície do sítio trouxeram à luz centenas de
estatuetas de bronze de Ápis e de outras divindades além de monumentos arquitetônicos e
estátuas de natureza e datação diversas. As fontes extraídas do Serapeum e de suas
cercanias compreendem a maior porcentagem de objetos de nosso corpus, as quais
remetem ao culto a Ápis e estão datadas a partir do Reinado Novo.
Outros artefatos mais antigos e igualmente provenientes da região de Saqqara,
como o ostracon e o selo-cilindro do túmulo de Hemaka, correspondem a uma outra
realidade e não fornecem indícios de que o touro fosse cultuado nesse período. Esses e as
demais cenas que a este exemplo se relacionam estão datados de períodos anteriores à
inauguração do Serapeum e constituem a maior parte do restante de nossa documentação,
que conta ainda com imagens de sarcófagos e outros artefatos mais recentes. Se o acesso
às fontes iconográficas referentes ao Terceiro Período Intermediário e ao Período Tardio
não foi completo por sua vastidão e pela limitação de recursos e de tempo que se impôs
ao nosso estudo, contratempo que acreditamos não comprometer a análise das
características dos artefatos que ilustramos no corpus, por outro lado, nele conseguimos
destacar todas as imagens conhecidas de Ápis que utilizamos para tecer o histórico de
sua representação desde o Período Arcaico até o início do Reinado Novo, além de
outras que podem lhe fazer referência. Desta maneira, acreditamos que a documentação
amealhada satisfaz as exigências para os objetivos aqui propostos de desenvolver um

22
estudo sobre a evolução das representações de Ápis durante período faraônico e suas
particularidades simbólicas.
Ainda que as fontes aqui utilizadas sejam variadas tanto em sua apresentação
material, quanto por sua origem e datação, para não criarmos inúmeras subcategorias
que acreditamos desnecessárias ao corpus e que trariam aborrecimentos ao leitor,
resolvemos classificá-lo em dois blocos principais: um para os monumentos de origem
e cronologia diversas, e outro exclusivo para a cultura material proveniente do
Serapeum, dos arredores deste ou cuja proveniência plausível seja essa região. Para a
primeira categoria, utilizaremos no texto a sigla MONdiv acompanhada do número
respectivo da prancha. No caso dos monumentos do Serapeum, todas as subcategorias
terão como início a sigla SE acompanhada das iniciais da respectiva sessão: SEdiv =
monumentos diversos do Serapeum; SEsh = shabtis; SEesc = esculturas de pedra e
marfim; SEbr = bronzes; SEest estelas. Para facilitar a consulta, optou-se pela
utilização de números indo-arábicos aos romanos: MONdiv 5, SEbr 76, SEdiv 2, etc.
Quanto aos capítulos, procuramos igualmente organizá-los da forma a mais
didática possível, de maneira que o leitor possa melhor acompanhar os diversos
problemas suscitados pelas fontes, sejam eles motivados por sua escassez ou pela
ausência de informações precisas sobre elas. Desta maneira, resolvemos dedicar o
primeiro capítulo à descoberta do Serapeum por Mariette em meados do século XIX,
em virtude de ser o local de origem da maior parte dos artefatos aqui estudados e onde
o culto a Ápis foi atestado.
O segundo capítulo se dedica a uma visão geral sobre as fontes textuais e
iconográficas referentes a Ápis e que abarcam toda a época faraônica. Com a precaução
de não cometermos anacronismos, utilizamos documentos do Período Ptolemaico
somente quando estas vieram elucidar tradições de épocas anteriores que careciam de
explicações. O capítulo seguinte segue a mesma perspectiva diacrônica, mas dá um
enfoque às fontes iconográficas e aos questionamentos que estas levantam quanto à
forma como Ápis era concebido e representado. Por fim, a última parte se foca nas
especificidades simbólicas das representações do Reinado Novo ao Período Tardio
levando em consideração as diferenças dos suportes materiais e sua relação de
complementaridade ou antagonismo.

23
No texto utilizamos a transliteração fonética de passagens ou nomes em
egípcio antigo como, por exemplo, Wsir-¡p (Osíris-Ápis), e a menção a signos
hieroglíficos segundo a classificação universalmente usada de Alan Gardiner 5 , por
exemplo, ! (E 1), l (N 27).

5
Gardiner 1969: pp. 442-548.

24
Capítulo 1

A Descoberta do Serapeum de Saqqara

Desde a mais alta antiguidade o Egito vem sendo visitado por povos de
diversas origens que, seguindo boatos a respeito dos encantos dessa terra misteriosa
esperam aí passar por algum tipo de experiência transformadora. Seja pela
grandiosidade de seus monumentos, pelos conhecimentos avançados de seus médicos,
pela fartura propiciada por um rio que tinha um regime de cheias relativamente
previsível, ou mesmo pela busca de uma sabedoria que esse povo já antigo cultivava
desde primeiros tempos, essa região do norte da África sempre teve um lugar de
destaque no imaginário dos povos da bacia do Mediterrâneo e mais além. Essas
impressões de maravilhamento e mistério se perpetuaram no tempo, alcançaram a
Europa renascentista, quando a busca pela idade dourada do ocidente marcou presença.
Nessa época, obeliscos que haviam sido trazidos a Roma durante o período romano
foram reerguidos e a decodificação dos segredos que estavam encobertos pelos
hieróglifos instigou vários intelectuais. De pouco em pouco a terra dos faraós foi sendo
redescoberta após o silêncio do período medieval e uma série de “novos” viajantes se
dirige a essa região então inóspita e perigosa. Os antiquários enriquecem suas coleções
com o exotismo dessa terra bíblica e o comércio de antiguidades saqueadas ganha
proporções. Às portas do século XIX, o general Bonaparte comanda uma expedição ao
Egito que marcará a história não com um sucesso militar, mas com o resultado da
publicação da obra produzida por um seleto grupo de intelectuais e artistas que o
acompanharam, intitulada “La Description de l´Égypte”. As imensas gravuras dos
volumes in folio revelaram pela primeira vez à Europa a aparência autêntica daqueles
monumentos submersos no mito e repletos de inscrições e magia. Ao invés de desenhos
esquemáticos ou fantasiosos como aqueles vistos em obras de viajantes de épocas

26
anteriores, aqui a esfinge e as pirâmides de Giza apareciam tão verossímeis quanto as
descrições dos monumentos e ruas do Cairo. Luzes e sombras traziam às imagens a
minúcia dos relevos e mostravam pela primeira vez uma série de monumentos ainda
soterrados nas areias vorazes do deserto.
A publicação trouxe uma onda de egiptomania renovada que não
encontrou limites na arquitetura, nas artes decorativas ou sequer nas fronteiras
geográficas. Reafirmando o espaço que a civilização egípcia não abandonou jamais no
interesse ocidental, Jean-François Champollion decodifica a escrita hieroglífica e reabre
pela primeira vez em séculos, as portas para o seio dessa civilização adormecida. A
partir daí, os egípcios não precisavam mais falar pela boca dos autores clássicos ou
pelas passagens bíblicas, mas passaram a se expressar em sua própria língua sem
intermediários. A descoberta valeu a Champollion a criação da primeira cátedra de
egiptologia e solidificou o espírito científico na exploração do Egito. Por outro lado,
teve início uma corrida por antiguidades que eram adquiridas com o propósito de
enriquecer as diversas coleções européias (privadas ou não) e que motivou muitos
aventureiros a se dedicaram a essa atividade de caça ao tesouro. Assim, a parte
setentrional do vale do Nilo tornou-se uma terra onde saqueadores locais e mercenários
de museus disputavam território em busca pelos melhores artefatos. O Egito
configurava-se como um cenário onde a exploração dos sítios da antiguidade faraônica
trazia à tona as rivalidades nacionais contemporâneas da Europa em sua procura por
influência geopolítica.

Mariette no Egito

É nesse contexto que em 2 de outubro de 1850 desembarca em Alexandria


Auguste Mariette, que estava encarregado da missão de obter papiros coptas 1 para a

1
O copta corresponde à última fase da língua egípcia e era escrito por intermédio das vinte e quatro letras do
alfabeto grego somadas a sete outras que derivavam do hierático, uma versão cursiva do hieroglífico. Era e
ainda se mantém como língua oficial da igreja cristã egípcia, mas não se encontra mais difundida entre a
população. A importância dos manuscritos se deve, não somente por revelarem aspectos do cristianismo

27
coleção da Bibliothèque Nationale 2 . Contando com 29 anos e um crédito de seis mil
Francos 3 Mariette encontrou grandes barreiras na realização de sua missão já desde o
início. Devido às aquisições pouco escrupulosas 4 dos ingleses Henry Tattam e Lord Curzon
para a coleção do Museu Britânico persistia o sentimento de um grande ressentimento entre
as autoridades do governo egípcio e da igreja copta, que malograram todas as tentativas do
jovem francês em obter aquilo que estava incumbido de fazer. Entre uma negação e outra,
Mariette aproveitava para visitar os antiquários do Cairo onde pôde reconhecer esfinges
semelhantes àquelas que já havia visto em Alexandria, e cuja origem lhe foi revelada por
ser Saqqara 5 . Esse sítio, que é mais conhecido pelo primeiro monumento de grandes
dimensões em pedra, a pirâmide de degraus de Netjerikhet (Djoser), e datado da 3ª dinastia,
ainda não revelava a profusão de sepulturas de diversas épocas que os anos seguintes iriam
trazer à luz e as areias do deserto soterravam quase que todos os monumentos que delas
procuravam escapar. Mariette, com profundo desejo de explorar esse campo fértil, segurava
seu impulso juvenil enquanto ainda lhe restavam chances de obter os manuscritos.
Após uma nova e infrutífera visita ao patriarcado no dia 17 de outubro e toda
uma noite de reflexões resultantes do insucesso da missão, o jovem pesquisador subiu à
cidadela do Cairo no entardecer do dia seguinte 6 e lá deitou seus olhos por sobre os
minaretes medievais e para mais além, sobre as pirâmides de Giza e os sítios nos arredores.
Enquanto contemplava, imaginava o potencial dessas localidades em abrigar um sem
número de monumentos e inscrições para enviar à França:

primitivo, mas também porque o copta é como um fóssil da língua do período faraônico. Muitas palavras,
ainda que modificadas pela introdução de vogais – não presentes na escrita hieroglífica – revelam as mesmas
raízes do egípcio antigo. Se a Pedra de Roseta deu a Champollion e a outros estudiosos a intuição da natureza
parte fonética parte ideográfica dos hieróglifos, foi o copta que sugeriu ao decifrador francês o significado dos
grupos de sons que traduzia como palavras.
2
Reeves 2000: p. 40.
3
Lauer 1961: p. 4.
4
Ibidem, p. 4; Mariette 1882: p. 3; Reeves 2000: p. 40.
5
“J´avais vu à Alexandrie, dans les jardins de M. Zizinia, consul-général de Belgique, deux sphinx sans
inscriptions. Ils étaient taillés dans le beau calcaire du Mokattam et appartenaient à cet art de l´époque des
Saïtes que sa grace un peu sèche fait si facilement reconnaître. En visitant l´école polytechnique, sous la
conduite de son savant directeur, Aly-Pacha-Moubarak, j´en trouvai deux autres. Même rencontre chez
Linant-Bey, chez Clot-Bey, chez Varin-Bey. Evidemment ces sphynx avaient une même origine, c´est-à-dire
qu´ils provenaient de la même allée. Tous d´ailleurs étaient achetés chez un négociant du Caire, M.
Fernandez, lequel m´apprit qu´effectivement on les trouvait dans la nécropole de Saqqarah, où ils formaient
une avenue qui paraissait s´enfoncer et se perdre vers l´occident dans les sables du désert” (Mariette 1882: p.
5; Reeves 2000: p. 40).
6
Mariette 1882: p.4.

28
“Diante de mim se estendia a cidade; uma névoa espessa e pesada
parecia ter tombado sobre ela, afogando todas as casas até em cima dos tetos. Deste
mar profundo emergiam trezentos minaretes, como os mastros de uma frota imensa
submersa. Bem longe, ao sul, notavam-se os bosques de tamareiras que mergulhavam
suas raízes nos muros desmoronados de Mênfis. A oeste, perdidas na poeira dourada e
do fogo do sol poente, se erguiam as Pirâmides. O espetáculo era grandioso. Ele se
apoderava de mim, me absorvia com uma violência quase dolorosa. Estes detalhes
assaz pessoais seriam desculpados: se eu aqui insisto, é porque o momento foi decisivo.
Eu tinha sob meus olhos Giza, Abusir, Saqqara, Dashur, Mit-Rahineh. Este sonho de
toda minha vida tomava um corpo. Lá havia, quase ao alcance de minha mão, todo um
mundo de tumbas, de estelas, de inscrições, de estátuas. 7 ”

E no dia seguinte, Mariette alugou algumas mulas para si e para suas


bagagens que incluíam, além de provisões, uma tenda que armou bem ao pé da Grande
Pirâmide 8 . Dali explorou os monumentos da antiga região menfita e se deleitou com a
experiência de os mapear, classificar, datar, descrever e desenhar. Em uma ocasião
auxiliou na abertura de uma tumba inviolada a alguns beduínos que tinham como
prática extrair antiguidades para vendê-las.

“Amarrado à extremidade de uma corda, eu tinha descido em um poço e


eu tinha assistido, eu tinha ajudado com minhas mãos, à abertura de um sarcófago
inviolado. Emoção deliciosa que eu jamais esqueci. 9 ”

7
“Devant moi s´étendait la ville; un brouillard épais et lourd semblait être tombé sur elle, noyant toutes les
maisons jusque par dessus les toits. De cette mer profonde émergeaient trois cents minarets, comme les mâts
de quelque flotte immense submergée. Bien loin, vers le sud, on apercevait les bois de dattiers qui plongent
leurs racines dans les murs écroulés de Memphis. A l´ouest, perdues dans la poussière d´or et de feu du soleil
couchant, se dressaient les Pyramides. Le spectacle était grandiose. Il me saisissait, il m´absorbait avec une
violence presque douloureuse. On excusera ces détails peut-être trop personnels: si j´y insiste, c´est que le
moment fut décisif. J´avais sous les yeux Gizéh, Abousyr, Saqqarah, Daschour, Myt-Rahynéh. Ce rêve de
toute ma vie prenait un corps. Il y avait là, presqu´à la portée de ma main, tout um monde de tombeaux, de
stèles, d´inscriptions, de statues”. Ibidem, p. 4.
8
Ibidem, p.4.
9
“Attaché au bout d´une corde, j´étais un jour descendu dans un puits et j´avais assisté, j´avais aidé de mes
mains, à l´ouverture d´un sarcophage inviolé. Émotion délicieuse que je n´ai jamais oublié!” Ibidem, p 5.

29
Em 27 de outubro, Mariette se dirigiu para Saqqara para lá mudar o rumo de
sua vida.

O Serapeum

Em Saqqara, Auguste Mariette vasculhava o terreno com o mesmo propósito


de reconhecer edificações funerárias quando seus olhos depararam com uma esfinge 10 (Fig.
2) quase que totalmente enterrada nas areias e semelhante àquelas que havia visto no Cairo
e em Alexandria. Associando essas esculturas a um mesmo conjunto que devia constituir
uma alameda 11 , o jovem francês foi tomado pela lembrança de uma passagem de Estrabão
onde este dizia:

“Encontra-se também em Mênfis, um templo de Serápis em um local de


tal modo arenoso que os ventos aí acumulam montes de areia, sob as quais nós vimos
as esfinges enterradas, umas à metade, outras até a cabeça, de onde se podia
conjeturar que a rota até o templo não seria local isento de perigo, se fossemos
surpreendidos por uma lufada de vento. 12 ”

Vindo ao encontro dessa passagem, Mariette descobre uma inscrição


próxima à esfinge que confirma a localidade: “Osíris-Apis, grande deus, que reside no
Ocidente 13 ” Após uma série de considerações sobre o potencial do sítio, Mariette se vê
encarregado dessa nova missão e conclui:

10
Algumas esfinges provenientes do Serapeum podem ser encontradas na coleção do Louvre com o número
de inventário N 391. Outras duas da coleção desse Museu com os números de inventário N 392 A e B são
apresentadas por L. Berlandier-Boutros, Paire de Sphinx, in Desti 2004: pp. 126-127.
11
Esta estrutura arquitetônica também pode receber o nome de dromos, que corresponde a uma via sagrada e
pavimentada bordeada de esfinges (Aufrère, Golvin 1997: p. 103). No entanto, como Mariette utiliza o termo
para se referir ao caminho que liga o templo de Ápis ao Serapeum preferimos seguir a mesma terminologia
usada por ele para evitar confusões no decorrer do texto.
12
Mariette 1882: p. 6.
13
Mariette conclui da seguinte forma: “Ora, Osíris Apis, não era o l´OsÒrapij dos papiros gregos? Não é
este o SÒrapij dos Gregos e o Serápis dos Latinos, segundo a observação já feita por Champollion?”
(Mariette 1882: p. 6).

30
“A todos os pontos de vista, as ruínas do Serapeum 14 eram então plenas
de promessas e bem feitas para tentar o explorador. Não me parecia possível deixar a
outros o mérito e o proveito de escavar esse templo, que uma feliz casualidade me fez
descobrir os restos e cuja localização seria doravante conhecida. Sem qualquer dúvida,
fragmentos preciosos, estátuas, assim como textos ignorados se escondiam sob as
areias pelas quais eu passo. Não era já direito do Louvre de os possuir? 15 ”

E no dia 1° de novembro já estava acompanhado de trinta homens que


começaram a escavar 16 ao redor da esfinge que emergia do deserto. Segundo as suposições
de Mariette, essa deveria integrar uma longa alameda 17 em linha reta no sentido leste-oeste
que indicaria o caminho que a escavação deveria tomar rumo ao templo. Contudo, ao
chegar à quarta esfinge 18 notou com surpresa que esta desviava o rumo da alameda para o
sudoeste e, assim, não prosseguia em linha reta. Diante da constatação, não lhe sobraram
alternativas que ir de esfinge em esfinge - uma distância de 6 metros – e tatear seu
direcionamento. A tarefa se mostrou um grande desafio na medida em que a alameda
adquiria uma orientação descendente e as areias se acumulavam sobre ela até uma grande
altura. E a situação tornou-se ainda mais complicada quando uma montanha ladeou o
caminho. Nesse ponto a camada de areia acumulava de dez a doze metros e esta se tornara

14
Serapeum era a tradução grega para a expressão egípcia Per-Ousir-Hâpy, que significava “Domínio de
Osíris-Ápis” (Aufrère, Golvin 1997: 103).
15
A tous les points de vue, les ruines du Sérapéum étaient donc pleines de promesses et bien faites pour
tenter l´explorateur. Il ne me semblait pas possible de laisser à d´autres le mérite et le profit de fouiller ce
temple, dont un hasard heureux venait de me faire découvrir les restes et dont l´emplacement allait désormais
être connu. Sans aucun doute, bien des débris précieux, bien des statues, biens des textes ignorés se cachaient
sous ces sables que je foule. N´était-ce pas déjà le droit du Louvre de les posséder? Ibidem, p. 7.
16
A atitude tomada por Mariette motivada pela ansiedade da descoberta veio lhe trazer problemas futuros por
não ter obtido a tão necessária “firma”, a permissão oficial, para realizar suas escavações (Mariette 1882;
Reeves 2000: p. 41).
17
Mariette estimava que o comprimento total da alameda era de 1.120 metros sem contar o trecho de Es-Sign-
Yusef e que esta não contava menos de 370 a 380 esfinges (Mariette 1882: p. 75, nt. 2). Arnold (2003: p. 218)
estipula que sua extensão era de aproximadamente 3 km desde Mênfis até o recinto do templo. Es-Sign Yusef
é uma área que fica no limite entre o vale e o deserto, dentro do recinto do Anubieion e que, segundo a
tradição, era o local onde se localizava a prisão de José (Mariette 1882: p. 72). A alameda passou por vários
processos de embelezamento desde a 26ª dinastia até a primeira metade do período ptolemaico (Devauchelle
Le Serapéum à la Basse Époque. In Desti 2004: p. 103).
18
Mariette não é claro se é a quarta esfinge de uma lateral da alameda ou se é a quarta escultura (ibidem,
p.10).

31
Fig. 1 Reconstituição do sítio de Saqqara norte com a necrópole sagrada de animais no canto inferior esquerdo e o complexo do
Serapeum que se estende do canto inferior direito até às proximidades da pirâmide de Teti por meio de uma longa fileira de esfinges.
O caminho é ladeado por várias mastabas e sepulturas mais recentes. Mais acima, podem ser vistos o complexo funerário da pirâmide
de degraus de Netjerikhet (Djoser) e a pirâmide de Userkaf (Aufrère, Golvin 1997: p. 96).

Fig. 2 Algumas das


esfinges que guardavam
o caminho para o
Serapeum, calcário
séculos IV ou III a.C.
(início do Período
Ptolemaico). Museu do
Louvre, N 391.
Fotografia da base Atlas
do museu.
mais fluida, ocasionando desmoronamentos que puseram em risco a vida dos
trabalhadores 1 .
Enquanto fazia sua exploração da alameda, Mariette encontrou em suas
imediações várias mastabas 2 do Reinado Antigo 3 e túmulos bem mais recentes 4 (Fig. 7).
Ele observou que os primeiros tinham sua entrada voltada para o leste ao passo que os
últimos orientavam-se em função da alameda de esfinges, indício de estes terem sido
construídos após esta. Entre essas descobertas está uma mastaba, já saqueada, onde
encontrou cinco estátuas pintadas cujas partes estavam jogadas em meio aos escombros.
Mas foi em um de dois nichos escavados em uma muralha que descobriu uma das mais
célebres esculturas legadas pelo Antigo Reinado: o escriba sentado 5 .

O hemicírculo e o templo de Nectanebo I

De uma altura de 15 metros de areia acumulada resultante da ação dos


ventos desérticos, as escavações seguiram o caminho traçado pela alameda até que
chegaram a um ponto onde não se encontravam quaisquer traços de pavimento, de esfinges
ou outros indícios. Foi somente no anoitecer de 24 de dezembro que outra esfinge foi
encontrada, mas em ângulo reto em relação ao eixo das demais e dando ao caminho uma
orientação meridional (Figs. 1 e 7). Seis metros à frente e outro “mistério, mais

1
ibidem p. 10.
2
Mastaba é a estrutura arquitetônica que se sobrepõe ao túmulo, ao qual se chega por intermédio de um poço
que se inicia na parte superior da construção e penetra no subterrâneo verticalmente.
3
Seu conhecimento prévio da estética dos monumentos do Antigo Reinado, que se reporta ao menos à suas
observações na área das pirâmides de Giza, deu-lhe um bom parâmetro para o reconhecimento de sepulturas
análogas entre aquelas que descobriu em Saqqara.
4
Devauchelle (2001: p. 15) fala a respeito dessas tumbas: “Após a primeira Dominação Persa, a via que
levava ao Serapeum foi um local privilegiado para as tumbas de particulares.” Seus proprietários queriam,
desta forma, usufruir no pós-vida os favores dos deuses Osíris e Ápis ao associar seu local de repouso com o
espaço dedicado a essas divindades.
5
Entre outras tantas antiguidades foi enviada ao Louvre onde se encontra exposta. Além de sua modelagem
particular e o excelente estado de conservação dos pigmentos, a escultura se destaca pelo tratamento dado aos
seus olhos, compostos de cristal de rocha e cobre, e que transmitem um extraordinário efeito de vida. Louvre
E 3023. Cf. Andreu 2009: pp.162-163; Ziegler 1997: pp. 204-208.

33
impenetrável ainda 6 ”: Mariette depara com uma estátua em estilo grego e a remove
parcialmente das areias em plena meia-noite:

“O personagem está sentado sobre um assento com encosto recoberto de


uma pele de pantera. Seu braço esquerdo sustenta um instrumento que creio ser uma lira.
Sobre a parte anterior da base se cruzam e se misturam graffiti gregos sem número, no
meio dos quais distinguimos uma inscrição principal, da qual as quatro primeiras letras
ainda visíveis parecem formar o nome de Píndaro. A palavra DIONUSI está gravada em
letras maiúsculas sobre o encosto da cadeira. O monumento é aliás de um mau estilo e
talhado em um bloco de calcário que se desfaz. O material é egípcio e sem dúvida provém
do Mokattam. A estátua de Píndaro não foi então trazida da Grécia para contribuir para a
decoração do templo de Serápis. 7 ”

A estátua viria a ser parte de um grupo de dez outras de mesmo estilo, que
repousavam sobre uma base comum em hemicírculo e ilustravam poetas e filósofos
gregos 8 , como Homero, Protágoras e Platão (Fig. 3a). O grupo teria sido adicionado
posteriormente ao complexo do Serapeum e o templo antigo, segundo as especulações de
Mariette, deveria estar entre o fim da alameda de esfinges e o hemicírculo, com sua entrada
voltada para o oeste. Desta forma, o acesso ao santuário 9 partindo do fim da alameda se
fazia virando à esquerda, isto é, a leste. Logo à entrada deste, o francês descobriu duas
esfinges de maiores proporções e estilo diferente das demais. Elas guardavam a entrada,
uma de frente para a outra, e continham inscrições que as relacionavam com Nectanebo I e
ao culto de Ápis. Atrás delas e fechando o recinto interior havia uma alta muralha cujos
vestígios sobreviviam aqui e ali.

6
Mariette 1882: p.13.
7
“Le personnage est assis sur un siège à dossier recouvert d´une peau de panthère. Son bras gauche soutient
un instrument que je crois une lyre. Sur la partie antérieure du socle se croisent et se mêlent des graffiti grecs
sans nombre, au milieu desquels on distingue une inscription principale, dont les quatre premières lettres
encore visibles semblent former le nom de Pindare. Le mot DIONUSI est gravé en grandes lettres sur le
dossier du siège. Le monument est d´ailleurs de mauvais style et taillé dans un bloc de calcaire qui s´effritte.
La matière est égyptienne et indubitablement provient du Mokattam. La statue de Pindare n´a donc pas été
apportée de Grèce pour concurir à la décoration du temple de Sérapis.” Ibidem, pp. 13-14.
8
Um estudo detalhado e mais recente sobre esse grupo de esculturas foi escrito por J.-Ph. Lauer e C. Picard
em 1955 com o título “Les statues ptolémaïques du Sarapieion de Memphis”.
9
No momento em que escavava, Mariette acreditava ser o local do Serapeum propriamente dito, os túmulos
dos touros Ápis, e não seu templo.

34
Figs 3a e 3b.
Fotografias do
hemicírculo de
filósofos e do
dromos por
ocasião das
escavações
realizadas no séc.
XX (Lauer,
Picard 1955).
Atravessando a porta guardada pelas esfinges, havia um pátio com cerca de
30 metros de comprimento seguido de uma escada que subia em uma inclinação suave. Foi
nesse pátio que Mariette descobriu uma estátua do deus Bes 1 em grandes proporções e que
evocou aos trabalhadores da escavação e às suas mulheres um comportamento supersticioso
particular:

“É hora do almoço, e o sol tomba pesadamente sobre a estátua de onde se


fazem sobressair poderosamente todos os relevos. Mulheres de Abusir vieram se juntar a
nossos trabalhadores. Um tipo de procissão se forma. Evidentemente tomaram Bes como o
diabo. O desfile começa. Cada um age de acordo com seu temperamento. As mulheres se
colocam diante da estátua e a injuriam, com gestos de furiosos, Em geral, os homens
cospem em cima. Eu tenho entre meus trabalhadores dois ou três negros, Eles olham de
frente a impassível divindade, e subitamente, se deitam a rir às gargalhadas. 2 ”

No decorrer das escavações, Mariette encontrou baixos-relevos do rei


adorando o touro - que era nomeado de Ápis, Osíris-Ápis ou mesmo Ápis-Osíris -, quatro
leões gregos em mármore e túmulos escondidos sob o piso do templo 3 . O estado de
conservação do santuário era, grosso modo, ruim e somente sua porção meridional estava
mais bem conservada, apresentando em uma de suas câmaras um teto formado por troncos
e folhas de tamareiras cobertos por uma camada de terra, palha e cascalho e muros de
tijolos não cozidos recobertos de estuque branco.

1
A estátua possui as seguintes dimensões: 92 cm de altura, 62 cm de comprimento e 28,50 cm de
profundidade. Encontra-se em exposição no museu do Louvre com o número de inventário E 437.
2
“C´est l´heure du repas de midi, et le soleil tombe d´aplomb sur la statue dont il fait saillir puissamment
tous les reliefs. Il est venu des femmes d´Abousyr et de Saqqarah se joindre à nos ouvriers. Une sorte de
procession se forme. Evidemment on prend Bès pour le diable. Le difilé commence. Chacun agit alors selon
son tempérament. Les femmes se posent devant la statue et l´injurient, avec des gestes de forcenées. En
général, les hommes crachent dessus. J´ai parmi mes ouvriers deux ou trois nègres. Ils regardent en face
l´impassible divinité, et subitement se sauvent en riant aux éclats.” Mariette 1882: p. 18.
3
O autor descreve a abertura da tumba intacta de um sacerdote de Ápis (Ra-ouah-het) e da qual certamente
havia obtido tal permissão por alguma razão que nos escapa (Mariette 1882: p. 21). O hábito de se
construirem tumbas sob o piso dos templos ou em suas cercanias é característico da fase tardia da história
egípcia e não se limitou à esfera privada, como indicam os túmulos dos reis da 21ª e 22ª dinastias localizados
no recinto do templo de Amun em Tânis. Y. Koenig Tanis in Dictionnaire de l´Égypte Ancienne,
Encyclopaedia Universalis. Paris, Albin Michel: p.383.). Esses santuários não eram construídos com o
propósito de celebrar o culto do proprietário da sepultura, mas a antecediam e podiam ser devotados ao culto
de uma divindade (como no caso do templo de Amun em Tânis) ou serviam ao culto funerário de um faraó de
épocas mais remotas (templo funerário de Ramesses II, o Ramesseum).

36
Dromos

Após algumas sondagens na montanha que emergia na porção anterior do


templo, Mariette prosseguiu com as escavações seguindo um eixo perpendicular a este e a
uma elevação dezenas de metros à frente, que provou serem as fundações de uma muralha:
“la grande enceinte de l´ouest”. Em sua parte central, foram encontrados vestígios de
pilones que serviam de pórtico para a via pavimentada que provinha do templo de
Nectanebo I até lá. A esse caminho, e baseado em Estrabão, Mariette atribuiu o nome de
dromos 4 .
O início das escavações se deu no outro extremo do dromos, na região dos
pilones. Destes só restaram os alicerces e alguns vestígios da cornija, a qual exibia o nome
de Nectanebo I. À frente 5 dos pilones foram encontrados dois leões 6 de calcário
repousando à esquerda e à direita da entrada (Fig. 12). Na base de um deles estava fixada
uma estela que figurava Nectanebo I seguido de um sacerdote e em adoração a nove
divindades. Esta etapa concluída, em 16 de março de 1851 as atenções se voltaram para as
extremidades leste e oeste do dromos, o qual revelou estar bordeado nos dois lados de um
muro de pedra – que Mariette chamou de mastaba 7 - de 1,55 m de espessura por cerca de 1
m de altura, e pavimentado em toda a sua extensão de 85,95 m (Figs. 3a e3b).
Após algumas descobertas nas extremidades do dromos, as atenções se
voltam para sua parte central. Nessa região e sobre a mastaba meridional, estavam
depositadas estátuas de calcário em estilo grego, entre as quais uma leoa e pavões de
proporções colossais montados por crianças, uma esfinge fêmea sentada entre outros 8 . No
lado oposto, e cortando a mastaba em duas partes, Mariette descobriu duas capelas nos

4
A escavação da área se deu entre 15 de março a 5 de junho de 1851 (Mariette 1882: p. 25).
5
Mariette não é claro, mas os leões deveriam estar situados na parte exterior do complexo, guardando a
entrada que ligava o caminho para os túmulos dos Ápis.
6
Um deles, Louvre N 432 C = AF 2964, é apresentado por D. Devauchelle, Statue de lion couché, in Desti
2004: pp. 122-123.
7
Termo árabe usado pelo autor em analogia a uma espécie de “divã por vezes construído em madeira, mais
freqüentemente em pedra, que encontramos à entrada das casas egípcias e sobre o qual nos sentamos”
(Mariette 1882: p. 28). Neste caso, a palavra não se refere ao tipo de sepultura característica do Reinado
Antigo.
8
Mais além, o autor cita também a descoberta de uma sereia e uma medalha de chumbo contendo em uma
face a imagem de um deus barbado sentado e portando uma imagem de Ápis e na outra a palavra OBOLOI B
(Mariette 1882: pp. 29, 34).

37
estilos grego e egípcio muito bem conservadas. A primeira exibe à sua frente uma escadaria
e é constituída de uma câmara precedida de quatro colunas. A outra continha a estátua de
Ápis em calcário (Fig. 5) que hoje faz parte da coleção do Louvre9 (Fig. 4) e que quando de
sua descoberta provocou entre os locais um comportamento semelhante a aquele que a
estátua de Bes causou:

“Hoje, próximo de meio-dia, durante o almoço dos operários, eu saí de minha


tenda de imprevisto. Uma quinzena de mulheres de todas as idades, vindas dos vilarejos
vizinhos, estavam arrumadas em torno da estátua de Ápis. Eu vi uma montar sobre o dorso
do touro, e aí ficar por alguns instantes, como a cavalo: após a qual, ela desceu para dar
lugar a outra. Toda a assembléia aí passou sucessivamente. Eu perguntei a Mohammed, e
ele me informou que esse exercício, renovado de um tempo a outro, é visto como um meio de
fazer cessar a esterilidade das mulheres. Eu também soube, e que eu ignorava, que, desde o
início das escavações, as mulheres vinham frequentemente com a mesma finalidade, se
sentar, conversar, comer e mesmo dormir à sombra das esfinges da alameda” 10 .

Ao lado da edícula de Ápis, mas sobre a via do dromos, havia uma imensa
representação de um Cérbero montado por uma criança e somente com a cabeça do meio
preservada. Em adição a esta, foi descoberto um outro leão deitado com a cabeça voltada para
o lado esquerdo e patas dianteiras recolhidas, aos moldes daqueles encontrados diante do
pilone. Em frente à capela de Ápis jaziam vestígios de duas pequenas esfinges 11 que

9
Seu número de inventário é N 390. Mais adiante, Mariette (p. 31) menciona que a estátua exibia uma
coloração “brilhante de suas cores sagradas” e um triângulo invertido na fronte, tal como vemos nos bronzes e
estelas (idem, pp. 29,30). Contudo, a escultura que hoje se encontra em exposição não revela quaisquer traços
visíveis de pigmentação.
10
“Aujourd´hui, vers midi, pendant le déjeuner des ouvriers, je suis sorti de ma tente à l´imrpoviste. Une
quinzaine de femmes de tout âge, venues des villages voisins, étaient rangées autour de la statue d´Apis. J´en
vis une monter sur le dos du taureau, et s´y tenir quelques instants, comme à cheval; après quoi, elle
descendit pour faire place à une autre. Toute l´assemblée y passa successivement. J´interrogeai Mohammed,
et j´appris que cet exercice, renouvelé de temps à l´autre, est regardé comme un moyen de faire cesser la
stérilité des femmes. J´appris en outre, ce que j´ignorais encore, que, depuis le commencement des fouilles,
des femmes venaient souvent dans le même but, s´asseoir, causer, manger et même dormir à l´ombre des
sphinx de l´allée.” Mariette 1882: p. 30.
11
Uma delas, em quartzito e com 26 cm de altura, 20,50 cm de largura e 76 cm comprimento encontra-se no
Louvre com o número N 393 (ibidem, pp. 29, 49.).

38
Fig. 4 Imagem das escavações de Mariette no dromos do Serapeum. No primeiro plano está a edícula
grega e no segundo a egípcia, de onde provém a estátua de calcário de Ápis que hoje se encontra no
Louvre. Observar que na cena ela apresenta o corpo pintado de manchas tal como nas estelas (Andreu
2009: p. 161).

Fig.6 Esconderijo de bronzes semelhante aos vários que foram


encontradas sob o piso do dromos do Serapeum. Escavações da
Egypt Exploration Society no templo principal da necrópole de
animais em Saqqara-norte (Davies, Frazer, Smith 2006: pr. XIb).

Fig. 5 Estátua de Ápis. Calcário, 1,26 de altura


e 1,76 de comprimento. Atribuída ao reinado de
Nectanebo I. Museu do Louvre, N 390.
portavam os cartuchos de Merneptah 1 . Sobre esses monumentos e outras superfícies se
disseminavam diversos graffiti gregos gravados com ponta seca e que representavam a letra
D que, segundo Mariette, se devia a uma associação de DionÚsoj com Osíris e também ao
triângulo invertido na fronte de Ápis 2 .
Diante das circunstâncias que se apresentavam, o jovem francês supôs que as
tumbas de Ápis deveriam estar escondidas nos subterrâneos das imediações e, tal como fez
com o piso do templo, decidiu remover paulatinamente o pavimento do dromos e a camada
de areia que se encontrava logo abaixo com a finalidade de atingir a rocha, onde acreditava
estarem escondidas as entradas das sepulturas do touro sagrado. E então, uma nova surpresa
o aguardava:

“Ao levantar o lajeado do dromos, nós nos demos conta de que o terreno
sobre o qual ele foi pousado, é semeado de estatuetas de bronze 3 representando
divindades. Logo que as estatuetas foram isolada, mais delas encontrávamos em
amontoados enormes e confusamente arranjados uns sobre os outros. Um desses
amontoados nos deu duzentos e sessenta, um outro mais de trezentas. Os Osíris, os Ápis, os
Ptah, as Ísis, os Hórus aí abundam. Sua grandeza varia de dez a quarenta centímetros.
Todas igualmente não escaparam da umidade do solo no qual elas ficaram por tão longo
tempo enterradas; mas salvaremos ao menos a metade. Durante todos os dias que se
seguiram, numerosos bronzes foram encontrados. A repercussão da descoberta se
espalhou ao Cairo, e, como sempre, tudo foi singularmente amplificado. Já não são mais
estatuetas de bronze que o piso do Serapeum nos forneceu, mas estátuas de ouro: os
indígenas super excitados não sonham que com tesouros, e nos causarão mil
aborrecimentos. 4 ”

1
Quarto governante da 19ª dinastia (c.1213-1203 a.C.).
2
Mariette 1882: pp. 30-31.
3
Cf. Ziegler (1981) sobre algumas dessas estatuetas pertencentes ao Louvre. Para um esconderijo semelhante
descoberto na necrópole de animais sagrados de Saqqara ver fig. 6 (Davies, Frazer, Smith 2006: pr. XIb).
4
“En soulevant le dallage du dromos, nous nous sommes aperçus que le terrain sur lequel on l´a posé, est
parsemé de statuettes de bronze représentant des divinités. Tantôt les statuettes sont isolées; plus souvent on
les trouve par tas énormes et confusément entassés les unes sur les autres. Un de ces tas nous en donne deux-
cent soixante, une autre plus de trois cents. Les Osiris, les Apis, les Ptah, les Isis, les Horus y abondent. Leur
grandeur varie de dix à quarante centimètres. Toutes n´ont pas également échappé à l´humidité du sol dans
lequel elles ont été si longtemps enfouies; mais on en sauvera certainement la moitié. Pendant tous les jours
qui suivent, de nombreux bronzes sont trouvés. Le bruit de découverte s´est répandu au Caire, et, comme
toujours, tout a été singulièrement amplifié. Ce ne sont pas des statuettes de bronze que le dallage du

40
Os boatos das atividades de Mariette se espalharam com as novas
descobertas e chamaram a atenção das autoridades, que não tardaram a se dar conta de
que as prospecções rumavam a pleno vapor sem a permissão oficial. Com isto, as
escavações tiveram que ser interrompidas até a obtenção da autorização e as antiguidades
descobertas entregues ao governo egípcio 5 . Contudo, logo as atividades recomeçaram 6 e
foram feitas sondagens que se revelaram infrutíferas no piso das capelas grega e egípcia 7 .
Para Mariette, o fato de aí não ter descoberto mais bronzes era um indício de que a
construção dessas duas estruturas não foi contemporânea à do dromos. Após ter
vasculhado toda essa área que ligava o templo aos pilones, as atenções se voltaram para a
muralha, que partia desse pórtico nas direções norte e sul e fechavam um recinto
quadrangular a oeste. Continuando com sua sistemática, Mariette inicialmente verificou a
continuação do dromos, onde encontrou mesas de oferendas e mais bronzes 8 , e em
seguida a extensão da muralha. Na média parte da face norte, encontrou tambores de
colunas, restos de um pilone e duas bases de esculturas que possivelmente sustentavam
esfinges ou leões como no pórtico de acesso ao dromos. Diante dessa entrada, rumava na
direção norte uma estrada pavimentada cujas pedras haviam sido remexidas em uma
época desconhecida. Na parte correspondente da muralha meridional não havia qualquer
indício de passagem. Entretanto, Mariette lá descobriu cinco câmaras 9 completamente
vazias sobre as quais a muralha passava e, mais adiante, nas fundações desta, diversos
vasos de cerâmica mal queimada, com tampas chatas e cujo interior continha depósito de
lama misturado com ossos de pequenos animais.

Sérapéum nous a livrées, mais des statues d´or: les indigènes surexcités ne rêvent plus que trésors, et vont
nous causer mille ennuis.” Ibidem, p. 32.
5
Mariette não esconde sua inconformidade: “Or, le Moudyr n´a pas plus de firman que moi, ou que M.
Fernandez, ou que le cheikh lui-même. Je crus donc que la loi était abrogée, sinon de droit, au moins de fait,
et que je n´avais pas besoin de me munir d´une permission, dont je voyais que tout le monde autour de moi,
les autorités du pays comprises, savait se passer” (Mariette 1882: p. 33). Travou-se daí um longo jogo
político pelas antiguidades que terminou por não frustrar os investimentos franceses angariados por Mariette.
6
O período em que as atividades foram suspensas foi de 5 a 29 de junho de 1851 (ibidem, p. 33.).
7
A descoberta de fragmentos de cerâmica vermelha envernizada (conhecida hoje pelo nome de African Red
Slip ware) com o monograma de Cristo entre as ruínas da edícula grega vieram ampliar a cronologia de
ocupação do sítio até nossa era (ibidem, p. 34).
8
O autor diz que os bronzes foram encontrados sob as fundações, mas não especifica quais e onde. É possível
que tenha sido embaixo da muralha nas proximidades dos pilones (Mariette 1882: p. 36).
9
A menção no texto é feita a tumbas, mas como o próprio autor admite lá não ter encontrado quaisquer traços
que indicassem seu uso, preferiu-se aqui utilizar somente o termo câmaras para não atribuir ao espaço uma
função não certificada (Mariette 1882: p. 37).

41
A grande dúvida de Auguste Mariette repousava sobre o que havia no
interior do recinto que as muralhas guardavam. Ele acreditava que com todos os indícios
que encontrara, não havia outra hipótese que aquela de ele estar no sítio do célebre
Serapeum. Suas buscas pelos túmulos dos touros propriamente ditos se revelou, no
entanto, frustrada até essa altura da exploração do terreno. Prosseguindo com seu método,
traçou no mapa das escavações duas linhas que se encontravam em um ponto “c” no
centro do recinto inexplorado e que eram perpendiculares aos pilones da entrada do
dromos e da parte setentrional da muralha, onde havia um caminho pavimentado rumo ao
sítio de Abusir. Na área da intersecção dessas linhas o estudioso supunha encontrar um
outro templo:

“Que tenha aí existido outrora um templo, isto não podemos fazer objeto de
dúvidas. A julgar pelas numerosas pedras sobre as quais se lê o nome de Osíris-Ápis, esse
templo é certamente o Serapeum. 10 ”

Como não havia indícios claros sobre a existência da construção e, por


isso, era impossível traçar seu plano arquitetural, Mariette resolveu procurar pela entrada
do túmulo dos Ápis com base na suposição de que esta estaria nesse ponto. Sem nada aí
encontrar, decide vasculhar nos arredores. Foi então que, ao retirar a camada de areia e
chegar na rocha, deparou com um corte vertical nesta que não tardou a se mostrar
acompanhado de outro logo à frente. E o que parecia ser um poço revelou-se uma grande
trincheira 11 (Fig. 14) escavada no solo rochoso, onde várias estelas dedicadas a Ápis e de
aparência relativamente uniforme foram encontradas em meio a areia grossa de Saqqara.
O trabalho de remoção de enormes volumes de areia e blocos tombados foi árduo e se
estendeu até a noite quando finalmente uma fresta se abriu na parede. Movido pela
10
Mariette 1882: p. 38.
11
Mariette nos deixa, contudo, uma dúvida quanto ao progresso de seus trabalhos. A princípio, nos passa a
impressão de ter encontrado a trincheira secundária (Mariette 1882: pp. 43-44) do Serapeum que só se torna
aproximadamente paralela à principal depois de um caminho tortuoso saindo desta à esquerda. Contudo, mais
adiante (pp. 43, 57) ele diz deparar com a “parte superior de uma magnífica porta de calcário branco” que se
mostrava no fundo da trincheira. Mas esta porta estava localizada na trincheira principal e não na secundária.
Como o relato fora publicado postumamente por Gaston Maspero baseado nos escritos de Mariette, é de se
perguntar se uma grande parte do processo de limpeza da área não foi omitido uma vez que a quantidade de
areia acumulada em trincheiras dessas dimensões representava um contratempo considerável.

42
ansiedade do grande momento, Mariette deslizou pela abertura e logo se vê no interior do
local que tanto esperou encontrar. A areia fluia para o interior como em uma ampulheta
enquanto observava novas estelas encontradas próximas à entrada. Diante da grande
novidade e das imposições do governo egípcio quanto à devolução do que foi achado, em
suas anotações, Mariette pensa alto:

“Os dois oficiais vigilantes habitam, um o vilarejo de Abusir, o outro a


vila de Saqqara. Ambos estão ausentes. Consequentemente eu não tenho porque informá-
los da importante descoberta que acabamos de fazer.” 12

O embate surgido primeiramente pela atuação de Mariette sem a permissão


somado ao sucesso na descoberta de antiguidades de períodos diversos desde o início das
escavações trouxe um clima de desagradável disputa de interesses – tanto dos franceses
quanto dos locais 13 . Uma desgastante operação de negociações transcorreu até que Abbas
Pacha 14 ofereceu à França cerca de quinhentos dos monumentos descobertos sem a
permissão 15 . Contudo, a continuidade dos trabalhos estaria suspensa até segunda ordem e
tudo que a partir de então fosse descoberto, teria que ser cedido ao governo egípcio. Até
lá, Mariette se dedicou a reunir todos os objetos a que tinha direito para enviá-los à
França. Mas para tanto, havia uma lista a ser seguida no que concerne às antiguidades que
tinham a permissão de sair do país, e tanto essa imposição quanto a ambiguidade dos
termos usados para classificar os objetos provocavam o íntimo do jovem francês e este
cogitou em tomar proveito disso:

“A lista dos 513 objetos junta ao despacho de Stéphan-Bey não pode


assim que dificilmente nos servir de ponto de partida. Evidentemente o governo egípcio
cometeu um erro não se informando melhor, e se baseando no depoimento de três
camponeses ignorantes. Tomaremos proveito desse equívoco? No lugar de“três pedras

12
“Les deux officiers surveillants habitent, l´un le village d´Abousyr, l´autre le village de Saqqarah. Ils sont
tous les deux absents. Je n´ai par conséquent pas à les informer de l´importante découverte que nous venons
de faire.” Mariette 1882: p. 45.
13
Aqui entende-se tanto o governo, que fazia vistas grossas à exploração dos antiquários, quanto estes, cujos
interesses se viam prejudicados pela concorrência de Mariette.
14
Governante do Egito de novembro de 1848 a julho de 1854.
15
Uma lista havia sido feita contendo as obras que poderiam ser levadas (ibidem, p. 48).

43
de pavimentação” colocaremos três de nossas mesas de libações? Olharemos como
quarenta estelas as quarenta pedras portando inscrições e estatuetas quebradas”, e
escolheremos essas quarenta estelas ao nosso grado? Faremos passar as colossais
figuras do dromos, as onze estátuas do hemicírculo, com as “vinte e cinco estatuetas de
homem”? Não conviria de preferência escrever ao Sr. Le Moyne, expor o estado das
coisas, fazer e entregar nós mesmos uma lista que nos serviria de base? Isto seria
muito mais cavalheiresco; mas se nós adotamos esse partido não chegaremos a um
resultado inútil? É impossível que o estado das coisas que nos rege se prolongue ainda
mais, e à pena teremos confeccionado três ou quatro caixas que tudo será arranjado.
Nós embalaremos então o que queremos, os monumentos já descobertos e aqueles que
ainda descobriremos. Nós não temos então nenhum interesse em escrever ao Sr. le
Moyne e levantar com o governo egípcio uma questão da qual certamente ele não verá
a oportunidade. Aliás, seguros de que estamos de ver nossa situação melhorar em um
futuro próximo, nós podemos desde o presente escolher, entre os objetos que
possuímos, aqueles que tocam mais à ciência e que nós queremos mais salvar. No
momento da verificação das caixas que nós confeccionaremos, caso não sejam jamais
verificadas, nós não teremos nada a temer a curiosidade dos inspetores.” 16

E no que se refere à tumba dos Ápis recém descoberta, diz:

16
“La liste des 513 objets jointe à la dépeche de Stéphan-Bey ne peut donc que difficilement nous servir de
point de départ. Évidemment le gouvernement égyptien a commis une faute en s´informant pas mieux, et en
s´en rapportant au dire de trois fellahs ignorants. Profiterons-nous de cette faute? A la place de ‘trois pavés’
mettrons-nous trois de nos tables à libations? Regarderons-nous comme quarante stèles les ‘quarente pierres
portant des inscriptions et statuettes brisées’, et choisirons-nous ces quarante stèles à notre gré? Ferons-nous
passer les colossales figures du dromos, les onze statues de l´hémicyvle, avec les ‘vingt-cinq statuettes
d´homme’? Ne faut-il pas plutôt en écrire à M. le Moyne, exposer l´état des choses, faire et livrer nous-mêmes
une liste qui nous servirait de base? Ce serait plus chevaleresque; mais si nous adoptons ce parti
n´arriverons-nous pas à un résultat tout au moins inutile? Il est impossible que l´état des choses qui nous
régit se prolonge encore longtemps, et à peine aurons-nous confectionné trois ou quatre caisses que tout sera
arrangé. Nous emballerons alors ce que nous voudrons, les monuments déjà découverts et ceux que nous
découvrirons encore. Nous n´avons donc aucun intérêt à écrire à M. le Moyne et à soulever avec le
gouvernement égyptien une question dont certainement il ne verrait pas l´opportunité. D´ailleurs, sûrs que
nous sommes de voir notre situation s´améliorer dans un avenir prochain, nous pouvons dès à présent
choisir, parmi les objets que nous possédons, ceux qui touchent de plus près à la science et que nous tenons le
plus à sauver. Au moment où on vérifiera les caisses que nous allons confectionner, si on les vérifie jamais,
nous n´aurons plus rien à redouter de la curiosité des vérificateurs.”( Mariette 1882: p. 49).

44
Fig. 7 Plano do
Serapeum elaborado
por A. Mariette e
publicado por A.
Rhoné (Lauer, Picard
1955).
“Não trabalharemos na tumba de Ápis. Eu estudarei os monumentos que ela
contém, eu os copiarei, eu os mensurarei, eu os catalogarei. Mas, sempre que possível, a
descoberta continuará um segredo.” 1

Mariette não escondeu o clima de tensão e ressentimento que vivia em seus


escritos: menciona a preferência em contratar um carpinteiro espanhol a um árabe para
ajudá-lo no encaixotamento das antiguidades e os intrusos que apareciam do Cairo para
inspecionar o trabalho deste. O que parece ter sido a gota d´água foi um grupo de
indivíduos que se pôs a escavar próximo da alameda de esfinges quando seu direito estava
suspenso 2 . A injustiça de tal circunstância o fez partir como uma fera enraivecida sobre o
grupo de “delinqüentes 3 ” que logo se dispersou. De lá, se dirigiu enfurecido até a habitação
do cheikh ao qual se declarou ser o “guardião do deserto” e ameaçou que ninguém lá
entraria sem sua permissão.

Os Grandes Subterrâneos

Enquanto não podia retomar as escavações, Mariette aproveitou para fazer


um estudo do local recém-descoberto de maneira silenciosa. Para despistar os olhares de
intrusos, encomendou ao seu ajudante a confecção de uma estrutura alongada que ligava
uma das entradas descobertas à superfície tal como uma chaminé e à parede da qual
estavam fixadas pequenas estacas que constituíam uma espécie de escada 4 . Durante a noite,
quando estava livre de espiões, deixava o caminho aberto e de dia tapava-o com uma
prancha que era recoberta com uma camada de areia. Com certa dificuldade em meio às
trevas que dominavam os subterrâneos, teve que fazer uso de fogueiras para perceber as

1
“On ne travaillera pas dans la tombe d´Apis. J´étudierai les monuments qu´elle contient, je les copierai, je
les mesurerai, je les cataloguerai. Mais, autant que possible, la découverte restera un secret.” Ibidem, p.50.
2
Ibidem, pp. 48, 51, 52.
3
Ibidem., p. 52.
4
Mariette 1882: pp.50-51.

46
singularidades da sepultura. Grosso modo, o túmulo se estrutura em uma longa galeria 5
com teto abobadado ao encontro da qual convergem outras galerias de origens diversas
escavadas em um calcário friável (Fig. 15). Quando as laterais da galeria maior não exibem
a rocha viva, apresentam câmaras 6 (Fig. 10) com chão rebaixado e teto igualmente em
abóbada. Ao centro da maior parte das câmaras repousa um enorme sarcófago de pedra
(Fig. 9). Originalmente, cada uma dessas salas era fechada com um muro de pedra no
centro do qual era fixada uma estela oficial que celebrava o funeral do touro que repousava
nesse espaço 7 . Uma vez lacradas, as câmaras só eram sugeridas aos visitantes que podiam
entrar nos subterrâneos em ocasiões especiais por esses muros. As estelas privadas,
deixadas como ex-votos eram depositadas somente nas entradas dos Grandes Subterrâneos
(Fig. 14), fixadas em suas paredes ou simplesmente pousadas nelas. Após uma observação
analítica da cultura material que se apresentava aos seus olhos e que sobrevivera a
pilhagens no passado, concluiu que havia dois tipos de monumentos: os sarcófagos e as
estelas.
O número dos primeiros, vinte e quatro, estranhamente não correspondia ao
número de câmaras existentes, vinte e oito, e somente vinte e dois estavam depositados
nelas, sendo que um deles havia sido deixado no meio do caminho de uma nova galeria.
Somente dois sarcófagos são de calcário. O restante, inclusive o mais antigo e maior 8 dos
Grandes Subterrâneos, é talhado em granito. As dimensões médias desses monumentos são
de 3,30 m de altura com a tampa, 2,30 m de largura e cerca de 4 m de comprimento 9 .
As estelas são os objetos mais numerosos que os subterrâneos legaram. São
normalmente placas chatas, arqueadas na parte superior – que contém uma imagem - e
retangulares na parte inferior, onde há maior concentração de texto. Como já foi acima
mencionado, havia duas categorias de estelas: as oficiais e as privadas. Das primeiras,

5
O mais longo subterrâneo do Egito segundo Mariette, contando 250 m de comprimento excluindo-se as
ramificações laterais (Mariette 1882: p. 48).
6
Vinte e oito no total (ibidem, p. 53).
7
Ibidem, p. 53.
8
É datado do reinado de Amasis, faraó que reinou no final da 26ª dinastia (ibidem, p. 54) e cuja menção como
sendo o primeiro sarcófago em granito (e em pedra) para Ápis é feita na estela que esse rei depositara na
parede exterior da câmara funerária.
9
Ibidem, p. 53.

47
Mariette só encontrou oito 10 , e aquelas que foram encontradas in loco, localizavam-se na
parte central da parede que fechava até o teto a entrada das câmaras funerárias. Esses
artefatos eram epitáfios que faziam menção às datas de nascimento, de entronização no
templo de Ptah em Mênfis, da morte e por fim a ocasião dos funerais, totalizando a duração
de sua vida em anos, meses e dias 11 .
A segunda categoria de estelas pode, segundo certos autores, ser subdividida
em três grupos: aquelas contendo textos biográficos, as genealógicas e estelas de operários
que trabalharam na escavação do subterrâneo ou na preparação dos funerais 12 . Elas estavam
restritas à entrada e aos corredores próximos a esta 13 , onde jaziam incrustadas nas paredes.
Graças à diversa gama de informações que fornecem, esses objetos auxiliam a preencher as
lacunas deixadas pelo número restrito de estelas oficiais encontradas e servem como
documentação de fundamental importância para o estabelecimento da cronologia 14 do fim
do período faraônico e o começo do helenístico.
Em 12 de fevereiro de 1852 com a permissão de continuar com as
escavações, Mariette dirige suas atenções a desbloquear o acesso às entradas e a retirar a
“chaminé” usada nos tempos “fora da lei”. Se ao liberar espaço na trincheira maior revela
uma porta 15 de calcário coberta de várias inscrições demóticas deixadas por visitantes, é na
extremidade leste da menor que depara com uma nova surpresa: a entrada para uma outra
rede subterrânea.

10
Ano 20-21 de Psamético I; ano 16 de Necau II; ano 12 de Ápries; ano 6 de Cambises; ano 4 de Dario I; ano
6 de Ptolomeu VI Filométor e Ptolomeu VIII Evérgeta II; ano 52 de Ptolomeu VIII Evérgeta II (Devauchelle
2001: p. 23).
11
ibidem, p. 55.
12
Devauchelle 2001: p. 24.
13
Devauchelle (2001: p. 26) faz um paralelo com as circunstâncias de oferta de estelas de devotos de Osíris
em Ábidos durante o Reinado Médio.
14
Kitchen 2004: p. 86, § 66.
15
Datada do fim do séc. IV a.C. e com 3,28 m de altura, encontra-se atualmente em exposição no museu do
Louvre com o número N 420.

48
Fig. 8 Método de
deposição das estelas
nos Pequenos
Subterrâneos.
Mariette 1882: p. 119.

Fig. 9 Sarcófago de
Ápis em uma das
câmaras laterais dos
Grandes Subterrâneos.
A. Mariette in G.
Perrot –C. Chipiez,
Histoire de l´Art dans
l´Antiquité 1., Égypte.
Paris 1882, p. 313, fig.
198 (Charron 2002:
p.206).

Fig. 10 Corredor com


câmaras funerárias laterais
dos Grandes
Subterrâneos. A partir de
A. Mariette in G. Perrot –
C. Chipiez, Histoire de
l´Art dans l´Antiquité 1.,
Égypte. Paris 1882, p. 312,
fig. 197 (Andreu 2009: p.
169, fig. 5c; Charron
2002: p.205).
Fig. 11 Esquema de um túmulo individual segundo
desenho de Mariette (Mariette 1882: p. 117).
Fig. 12 Um dos leões que guardavam a entrada de uma capela
do Serapeum. Calcário com olhos originalmente incrustados.
Reinado de Nectanebo I (30ª dinastia), 56cm altura, 1,24 m de
comprimento e 45cm de largura. Museu do Louvre N 432A.

Fig. 13 Entrada dos


Subterrâneos. Andreu (ed)
2009: p. 169.
Fig. 14 Trincheira
que conduzia às
sepulturas dos Ápis
depois de limpa em
1850-51. O pórtico
de calcário que
contém diversas
inscrições em
demótico encontra-se
no Louvre. Aquarela
de Barbotisse,
Biblioteca Nacional
da França
(Corteggiani in
Leclant et al. 1990:
pp. 232-233).
Os Pequenos Subterrâneos

A descoberta se faz entre o período de 15 de fevereiro a 15 de março de


1852. Embora não exibisse o nível de conservação e a grandiosidade de projeto dos
Grandes Subterrâneos (Fig. 15), a estrutura revelava particularidades interessantes. Ao
contrário da primeira sepultura, esta não restringia à entrada as estelas privadas e as paredes
do complexo eram cravejadas delas 1 (Fig. 8). A galeria principal foi escavada no sentido
sul-norte e as câmaras, como nos Grandes Subterrâneos, alternavam-se de um lado e de
outro do eixo principal. Os Ápis eram aí enterrados em sarcófagos de madeira e tão logo o
cerimonial terminava, a entrada da câmara era murada, assim como na primeira sepultura
descoberta. Foram aí encontrados os restos de vinte e oito touros abrangendo parte da 19ª
dinastia à parte da 26ª. Quanto à variedade da cultura material, guardava um espectro bem
mais amplo de artefatos que os Grandes Subterrâneos, e incluía estatuetas, vasos e
fragmentos de urnas funerárias de madeira em “tremenda desordem” 2 . Esta impressão de
caos era multiplicada não somente pelos tetos frágeis escorados por pilares de alvenaria e
pelas câmaras mal escavadas 3 , mas também pelo fato de uma abóbada, localizada no centro
do subterrâneo, ter desabado ainda na antiguidade criando um buraco no teto e uma pilha de
escombros no meio do corredor. Diante do obstáculo que se lhe apresentava para chegar à
outra extremidade, e como suas origens do norte da França não lhe incentivavam a escalar
montanhas, não viu mal em aí reduzir os esforços fazendo uso de um pó negro explosivo. O
resultado da operação revelou a Mariette uma descoberta de tal valor que este declarou ter
dificuldade em se expressar sobre ela 4 :

“Precisamente no lugar em que a abóbada desabou, encontramos um


sarcófago de madeira e uma múmia humana. O sarcófago, embutido bastante
profundamente no solo, teve sua parte superior esmagada; mas a múmia, com todos os
objetos que compunham seus adereços funerários, não tinha sido jamais tocada. A única

1
Mariette 1882: pp. 59-60; Baines, Málek 1996: p. 151.
2
ibidem: p. 57.
3
Ibidem: p. 80.
4
Ibidem, pp. 58, 146. Para a localização do achado no plano dos Pequenos Subterrâneos ver em Kitchen
1985: p. 149.

51
deterioração que ela tinha sofrido provinha da umidade do lugar. Uma máscara de ouro 5
cobria a face. Uma pequena coluna de feldspato verde 6 , um brinco de jaspe vermelho,
estavam suspensos a uma corrente de ouro em torno do pescoço. Uma outra corrente de
ouro sustentava dois outros amuletos em jaspe7 ,todos com o nome do príncipe Kha-emUas,
filho de Ramsés II. Uma jóia admirável, um gavião de ouro 8 com mosaicos incrustados, as
asas estendidas, estava pousado sobre o peito. Dezoito estatuetas de faiança, com cabeça
humana, e com a legenda ‘Osíris-Ápis, deus grande, senhor da eternidade’ estavam
espalhadas ao entorno 9 .”

Mas essa descoberta guardava um mistério. A “múmia” que estava diante de


seus olhos não era de um touro e exibia formas humanas, trazendo a Mariette a
desconfiança de que pudesse se tratar dos restos mortais do príncipe. E quão grande não foi
a sua surpresa ao perceber que ali não havia qualquer corpo humano, mas uma massa
betuminosa com fragmentos ósseos triturados.
Outros artefatos, além das estelas, estavam distribuídos pelo complexo de
túneis e câmaras. Destes se destacam shabtis 10 com cabeça humana e bovina 11 contendo

5
Louvre N 2291. S. Labbé-Touté, Masque de Khâemouaset. In M. Desti (ed.) Des Dieux, des Tombeaux, un
Savant: En Égypte sur les pas de Mariette Pacha, pp. 76-77.
6
Louvre N 759 = E 2990 A= AF 2318. S. Labbé-Touté Amulette ouadj et chaîne d´or de Khâemouaset. In
M. Desti (ed.) Des Dieux, des Tombeaux, un Savant: En Égypte sur les pas de Mariette Pacha, p. 70.
7
N 759 = E 2990 B, N 753 = E 73. S. Labbé-Touté Deux amulettes tit au nom de Khâemouaset. In M. Desti
(ed.) Des Dieux, des Tombeaux, un Savant: En Égypte sur les pas de Mariette Pacha, p. 69.
8
Louvre N 765 = E 2988. S. Labbé-Touté Pectoral en forme de faucon. In M. Desti (ed.) Des Dieux, des
Tombeaux, un Savant: En Égypte sur les pas de Mariette Pacha, p. 67.
9
“Précisément à l´endroit où la voûte s´est effondrée, on a trouvé un sarcophage de bois et une momie
humaine. Le sarcophage, encastré assez profondément dans le sol, avait eu toute la partie supérieure broyée;
mais la momie, avec tous les objets qui composaient sa parure funéraire, n´avait pas été touchée. La seule
détérioration qu´elle avait subie provenait de l´humidité du lieu. Une masque d´or9 couvrait le visage. Une
colonnette de feldspath vert9, une boucle de jaspe rouge, étaient suspendues à une chaîne d´or passée au cou.
Une autre chaîne d´or soutenait deux autres amulettes en jaspe, le tout au nom du prince Kha-em-Uas, fils de
Ramsès II. Un admirable bijou, épervier d´ or à mosaïques cloisonnées, les ailes étendues, était posé sur la
poitrine. Dix-huit statuettes de faïence, à tête humaine, et avec la légende “Osiris-Apis, dieu grand, seigneur
de l´éternité”, étaient répandues à l´entour.” Mariette 1882: p. 58.
10
Gênero de estatueta funerária cujas origens remontam ao Reinado Médio e que se destinam, por meio da
magia, a realizar a corvéia do outro mundo para o falecido.
11
Bovot 2003: pp. 25, nos. 98 e 99, p.85, nos. 98, 99, p. 86, n° 122; M. Desti Chaouabti d´Apis. Idem, p. 98.;
M. Desti Chaouabti d´Apis. In M. Desti (ed) Des Dieux, des Tombeaux, un Savant: En Égypte sur les pas de
Mariette Pacha, p. 99; Stewart 1995: 40.

52
textos referentes ao deus, outros, mais comuns 12 , com os nomes e títulos de proprietários,
além de vasos de formas diversas portando frequentemente legendas reais e escaravelhos.
Os Pequenos Subterrâneos foram utilizados desde a metade do reinado de
Ramses II, da 19ª dinastia, à metade do de Psamético I, da 26ª dinastia. A partir desta
época, foram inaugurados os Grandes Subterrâneos cuja utilização se estendeu até o início
da nossa era, abrangendo um período de cerca de treze séculos 13 .
Enquanto examinava a riqueza material que brotava dos Pequenos
Subterrâneos, Mariette explorava também suas características estruturais e conservação.
Em uma verificação que fazia na segunda câmara da extremidade sul do complexo,
observou que sua parede oriental produzia um som oco quando golpeada com uma barra de
ferro 14 . Pouco depois e acompanhado de um grupo de escavadores, dirigiu-se ao exterior no
ponto em que acreditava estar situada a entrada. No dia seguinte, uma porta banhada pela
luz do amanhecer e brotando das areias se revela para confirmar suas suspeitas.

Os Túmulos Isolados

Tratava-se da primeira tumba individual que descobriu de oito, e que cobrem


uma periodização desde o reinado de Amenhotep III até o ano 30 de Ramsés II 15 (Fig. 15).
Estas tumbas eram constituídas de uma ou duas câmaras subterrâneas, sem um plano
regular na área contida pelas muralhas e cujo acesso se fazia por meio de um corredor em
declive. Na superfície e sobre a sepultura havia uma edícula, com estelas fixadas na base,
ornada de baixos-relevos, com uma câmara quadrada e uma entrada voltada para o
nascente, à qual se chegava através de um caminho inclinado 16 (Fig. 11).

12
M. Desti, Chaouabti de Khâemouaset. In. M. Desti (ed) Des Dieux, des Tombeaux, un Savant: En Égypte
sur les pas de Mariette Pacha, p 80; M. Desti, Chaouabti de Khâemouaset. Idem, p. 81; J. Berlandini,
Chaouabti de Khâemouaset. Idem, p. 82; J. Berlandini, Chaouabti de Râ. Idem, p. 86; M. Desti, Chaouabti de
Souy. Idem, p. 87.
13
Mariette 1882: p. 60.
14
Ibidem, p. 61.
15
Devauchelle 2001: p. 18; Kitchen 1985: 149; Mariette 1882: p. 137.
16
Mariette menciona um caminho inclinado, mas a ilustração mostra uma escadaria (Mariette 1882: p. 117).

53
O achado de Mariette de 15 de março de 1852 consistia em um corredor que
penetrava na rocha e ao qual estavam ligadas duas câmaras. A primeira 17 , cujo acesso se
fazia por um nicho na parede sul 18 , havia sido pilhada, restando somente um vaso canopo
de alabastro com o nome de Khaemwaset. No final do corredor, uma porta encoberta por
um muro escondia uma segunda tumba, ainda intacta e com dois grandes sarcófagos de
madeira 19 . No interior de ambos havia mais uma seqüência de dois sarcófagos que protegia
o tampo de uma urna antropomórfica 20 . Nos dois casos, a cavidade da tampa guardava um
amontoado betuminoso 21 com ossos triturados e depositado no chão semelhante ao que fora
descoberto nos Pequenos Subterrâneos, mas sem qualquer crânio que lhe desse a identidade
de um bovino. Em meio à massa negra de um dos sarcófagos 22 , havia numerosos shabtis
taurocéfalos 23 , estatuetas de xisto de Khaemwaset 24 e outros príncipes 25 , amuletos de
cornalina 26 e serpentina, e muitas palhetas de ouro. No outro caso 27 , ao invés de
ornamentos e estatuetas de príncipes, a mistura negra escondia um peitoral naos 28 de ouro
com incrustações 29 e mais alguns shabtis taurocéfalos. A câmara também continha quatro
vasos canopos antropocéfalos referentes a um dos Ápis, no interior dos quais, tal como no
chão e no meio dos presumíveis restos mortais dos touros 30 , havia uma grande quantidade

17
De acordo com as informações das estelas votivas encontradas um pouco mais tarde por Mariette no
corredor de acesso às tumbas, esta seria a câmara mais recente correspondente a esse subterrâneo e outrora
abrigava o Ápís de número IV da 19ª dinastia, morto durante o reinado de Ramsés II (Mariette 1882: pp. 65,
137, 142).
18
Isto é, na parede esquerda do corredor, uma vez que este estava alinhado com o eixo leste-oeste.
19
Correspondentes aos Ápis II e III da 19ª dinastia. Desti, Le Sérapéum au Nouvel Empire. In Desti 2004:
p.55; Mariette 1882: pp. 64-65.
20
Estranhamente não havia sido depositado o fundo da urna e o tampo encostava diretamente no chão
(Mariette 1882: p. 63).
21
No caso do segundo sarcófago, o amontoado betuminoso estava protegido por uma mortalha (Mariette
1882: p. 64).
22
Apis III, morto no ano 26 do reinado de Ramsés II (Mariette 1882: pp. 65, 137-142).
23
Mariette 1857: pr. XI; M. Desti, Cinq chaouabtis d´Apis. In Desti 2004: pp. 96-97.
24
Berlandini, Chaouabti de Khâemouaset. In Desti 2004: p. 82.
25
Berlandini, Chaouabti du prince Ramsès. In Desti 2004: p. 84; Berlandini, Chaouabti du gouverneur-maire
Ptahmès. Ibidem : pp. 88-89.
26
Mariette: 1857: pr. XI; Desti, Amulette au nom de Paser. In Desti 2004: p. 92; Desti, Amulette d´un
taureau Apis. Ibidem: p. 92; Desti, Amulette du noeud d´Isis. Ibidem : p. 94; Desti, Deux amulettes d´un
taureau Apis. Ibidem : p.93.
27
Ápis II, morto no ano 16 do reinado de Ramsés II (Mariette 1882: pp. 65, 137-142).
28
É o nome dado para o santuário onde era guardada a imagem de culto (Arnold 2003: 158).
29
Louvre N 767 = E 79. Desti, Pectoral royal. In Desti 2004: pp. 90-91.
30
Mariette faz uma observação sobre essas “múmias” peculiares: (...) “selon toute vraisemblance, Apis n´était
pas embaumé selon le mode ordinaire, que ses ossements étaient brisés pour être divisés, et que sa tombe est
plutôt un monument commémoratif du dieu ou une sorte de cénotaphe, qu´un lieu destiné à preserver son
cadavre des atteintes du temps, ou de celles de la main des hommes” (Mariette 1882: p. 142).

54
de lâminas de ouro. As paredes continham nichos com estatuetas e o muro meridional
exibia um mesmo afresco 31 “espelhado” de Ramsés II e seu filho Khaemwaset prestando
oferendas a Apis mumificado, taurocéfalo com a uraeus entre os chifres e portando os
cetros nekhekh e heqa.
As escavações de Mariette continuaram no perímetro adjacente e não tardou
para que ele encontrasse sepulturas individuais mais antigas, datadas dos reinados de
Amenhotep III, Tutankhamun 32 e Horemheb 33 da 18ª dinastia, e Seti I, da 19ª dinastia.
Porém, é somente sobre duas da época de Horemheb que faz descrições 34 . Tratava-se de
duas câmaras com uma porta que as comunicava. O primeiro recinto, quadrado e espaçoso,
já havia sido pilhado e restavam somente traços do Ápis 35 que lá tinha sido inumado. As
paredes, cobertas por uma espessa camada de estuque branco, exibiam pinturas 36 e
escondiam no muro setentrional a comunicação com a outra câmara, que havia passado
despercebida pelos antigos ladrões. A outra sala, pequena e irregularmente escavada, tinha
em seu centro um sarcófago formado por pedras 37 , que estava acompanhado de quatro
vasos canopos de grandes proporções distribuídos pelos seus quatro ângulos, e no interior
do qual havia um caixão de madeira retangular com tampo abobadado e decorado nas
laterais com um serekh 38 A. A múmia 39 em seu interior era constituída da mesma massa
betuminosa com fragmentos ósseos e folhas de ouro, recoberta com uma mortalha sobre a
qual repousava um crânio bovino 40 . O chão da câmara estava recoberto de uma camada de
areia de dois metros que escondia cerca de uma dúzia de vasos cerâmicos 41 selados, no
interior dos quais havia cinzas ou um pó amarelo não identificado 42 .

31
Mariette 1857: pr. VII.
32
No texto chamado de Amentouankh (Mariette 1882: p. 65, 124-128).
33
Chamado simplesmente de Hórus (ibidem : pp. 66, 129 132-137).
34
Mariette 1882: p. 66-67, 126-131.
35
Corresponde ao terceiro Ápis da 18ª dinastia (Mariette 1882: pp.126-128).
36
Desti, Le Sérapeum au Nouvel Empire. In Desti 2004: p. 53; Mariette 1857: pr. III; Mariette 1882: p. 126.
37
Segundo o autor, composto por pedras grandes dispostas negligentemente sem cimento (Mariette 1882: p.
66-67, 129).
38
Um motivo decorativo que faz referência às fachadas dos primeiros palácios reais e que é também utilizado
no título de Hórus do rei.
39
Corresponde ao quarto Ápis da 18ª dinastia (Mariette 1882: pp. 129-131).
40
Mariette 1882: pp. 67, 130.
41
Mariette diz serem semelhantes aos encontrados nas câmaras dos Ápis correspondentes aos reinados de
Amenhotep III, Tutankhamun e Seti I. Para os vasos provenientes do período de Amenhotep III ver Desti,
“Ensemble de six petits vases” e “Deux petits vases au nom du fils royal Djéhoutymès”. In Desti 2004: pp.
58-59.
42
Mariette 1882: p. 67.

55
Fig. 15 Planta dos subterrâneos do Serapeum desenhado por Mariette. (Malinine, Posener, Vercoutter 1968: planta I).
Prosseguindo com a exploração da área das tumbas individuais, e próximo
do pórtico do dromos, a leste, Mariette descobre mais um grupo de bronzes sem especificar
seu número e características 1 .
Desde que iniciou sua caçada pelo Serapeum, Auguste Mariette concentrou
seu olhar clínico sobre a região que compreendia o templo de Nectanebo I e os túmulos de
Ápis, incluindo aqui a muralha que continha a necrópole e seus pórticos de acesso. Na
busca pelas entradas dos túmulos dos touros sob a pavimentação do dromos, que ligava o
templo aos subterrâneos que veio a descobrir mais tarde, acabou por encontrar uma série
esconderijos de bronzes que também estavam presentes nas proximidades dos pilones da
muralha do Serapeum. Após ter encontrado uma diversa gama de artefatos de épocas
distintas nesse perímetro, decidiu examinar com mais atenção a área da alameda de esfinges
e a zona que lhe dava acesso, na fronteira entre o vale fértil e o início do deserto 2 , a qual
chamou de “Serapeum grego 3 ” e que pesquisas posteriores revelaram uma ocupação que se
inicia desde final o Reinado Antigo 4 . Mas contemporâneo ao Serapeum, lá se localizava o
Anubeion 5 que contava com uma série de estruturas para o culto de Anúbis e outros
deuses 6 e, tal como o Bubasteion, seu vizinho mais ao sul, era circunscrito por uma
muralha. O Anubeion se localizava em um nível mais alto do terreno e era cortado por uma
via processional que se comunicava mais adiante com a alameda de esfinges do Serapeum,
sugerindo uma participação dos sacerdotes do deus canino nas exéquias dos touros 7 (Figs. 1
e 7). Quando realizou suas escavações nessa área e, com mais atenção, na alameda de
esfinges, Mariette não pode extrair nada de conclusivo e não encontrou qualquer bronze sob
o pavimento da via 8 que o guiou à descoberta do Serapeum.
Com o início da guerra da Criméia, Mariette se vê na condição de retornar ao
seu país, terminando assim sua primeira epopéia arqueológica no Egito sem ter descoberto

1
Mariette 1882: pp. 67-68.
2
Mariette 1882: 72.
3
Aufrère, Golvin 1997: p. 104; Mariette 1882: pp. 75, 83.
4
E que se estende até a era cristã, quando um vilarejo dessa comunidade é abandonado (Aufrère, Golvin
1997: pp.104-105).
A complexa estratigrafia do terreno de ocupação se estende desde o Reinado Antigo até a era cristã,
5
Arnold 2003: pp. 19-20; Aufrère, Golvin 1997: pp. 104-105; Baines, Málek 1996: p. 151.
6
Aufrère, Golvin 1997: p. 105.
7
Aufrère, Golvin 1997: p. 104.
8
Mariette 1882: p.76

57
os túmulos de Ápis datados do Período Romano 9 . Uma nova visita atenciosa à área foi feita
na segunda metade do século XX por Lauer e Picard (1955), mas esta se concentrou na
conservação das estruturas já tomadas pela areia e nenhuma estrutura que ateste a
continuidade do Serapeum durante a ocupação romana foi encontrada.

9
Devauchelle, Le Sérapeum à la Basse Époque. In Desti 2004: 106; Mariette 1882: p. 84.

58
Capítulo 2

Perspectiva diacrônica da documentação sobre Ápis

Período Arcaico e Reinado Antigo

A primeira fonte que chegou até nós desse touro sagrado e que atesta sua antiguidade
data do reinado de Aha, rei da 1ª dinastia que sucedeu Narmer, o unificador do Egito. O
registro (Simpson 1957: 140, fig. 2; Vercoutter 1992: p. 225) nada mais é do que uma breve
inscrição sobre uma vasilha de pedra que nada pode auxiliar quanto às particularidades da
coloração do animal ou seu simbolismo. Contudo, é a primeira vez em que esse personagem é
mencionado e em um contexto especial: a corrida 1 de Ápis ou pHrr ¡p 2 . A própria inscrição,
que contém o título real em um serekh, sugere o caráter inaugural da cerimônia entre o rol de
festividades da realeza: sp tpy pHrr ¡p, “primeira ocasião da corrida de Ápis” (Fig. 16).

1
Pela associação posterior desse touro a Mênfis, é comum observar na literatura especializada uma atribuição
mais recuada desse vínculo que integra o animal ao surgimento dessa capital. Contudo, nenhuma fonte anterior ao
Reinado Novo é afirmativa quanto a esse vínculo, e é possível que Ápis tenha sido originariamente um animal
simbolicamente importante para o Alto Egito que, por meio de um processo histórico-religioso que
desconhecemos, tenha sido então associado à região menfita.
2
Segundo a análise de Devauchelle (2001: pp. 52-53), o nome ¡p, que traduzimos como “Ápis”, seria originário
da raiz Hp “correr”, “se apressar”. O significado em torno de sua denominação estaria assim em conformidade
com o tipo de celebração à qual esse touro estava relacionado, “a corrida”. Este vínculo, ao qual foi conferida uma
simbologia especial, possivelmente deriva do próprio modo de vida e predisposição anatômica do gado africano
(Bos Africanus) do qual Ápis era originário, e que segundo exames osteológicos em ossadas de diversos sítios,
esses animais apresentavam condições físicas de ótimos corredores (Gaillard, Daressy 1905: pp. 16-21), predicado
que deve ter se desenvolvido por meio de um longo processo de seleção natural em regiões de savana. É
importante ressaltar, no entanto, que exceto pela massa betuminosa com fragmentos ósseos descoberta por
Mariette nas tumbas individuais e nos Pequenos Subterrâneos, nenhuma ossada ou múmia de Ápis foi encontrada
para que fosse confirmada sua afiliação genética com o gado africano. Todavia, vale lembrar que muitas gerações
de Ápis se alternaram desde os primórdios da história egípcia até a época de inumação no Serapeum, e que a
diluição do genoma nativo pode ter se produzido no decorrer desse processo, como veremos mais adiante no que
concerne à alteração na representação física de Ápis.

59
Entretanto, o sentido da frase também pode ser outro, referindo-se não necessariamente à
primeira celebração da corrida de Ápis na história da cultura egípcia, mas a primeira no
reinado de Aha. Ambiguidades à parte, não temos quaisquer indícios que apontem para uma
maior antiguidade da existência de Ápis ou da cerimônia a ele ligada, datados do período pré-
dinástico, mas seu surgimento no plano simbólico-religioso não é acidental: coincide com um
momento em que o touro selvagem adquire uma grande importância na iconografia da realeza
(de Araújo Duarte 2003). Já nas paletas dos touros e de Narmer podemos ver com toda clareza
a indissociabilidade do rei à figura desse mamífero. Esse vínculo transparece na cauda que
pende na parte posterior do cinturão3 do saiote – um elemento do vestuário que foi incorporado
à figuração divina a partir da 4ª dinastia4 -, em coroas e no mobiliário. Assim, podemos admitir
que Ápis surgiu juntamente com os elementos simbólicos que consolidaram a unificação do
país 5 . Em virtude do abismo de cerca de cinco mil anos que nos separa dessa época,
preenchidos de re-ocupações, saques ou destruição dos sítios arqueológicos por elementos
naturais, raros se tornaram os artefatos que sobreviveram a essa imensidão do tempo para nos
dar um testemunho mais preciso do panorama político-cultural do período dinástico inicial.
Complementando as informações da vasilha de pedra, podemos avaliar a importância do touro
pelo nome da mãe do terceiro faraó da 1ª dinastia, Djer, chamada de ¢n.t Hp(w) Khenthep 6 ou
Khenethepu 7 “aquela que está à frente de Ápis”.
Da mesma dinastia possuímos a referência de mais três cerimônias da corrida de Ápis:
dos reinados de Den, de Semerkhet e Qaa. Do primeiro, resistiram três documentos
importantes; uma menção na Pedra de Palermo 8 e um selo-cilindro acompanhado de um
ostracon encontrados na tumba de Hemaka, em Saqqara (Figs. 17 e 18). A Pedra de Palermo
menciona uma “corrida” no ano 10 (Wilkinson 1999: p. 281) e seu registro pode se referir ao
mesmo evento exibido no selo-cilindro. Mas se o registro da Pedra de Palermo é puramente

3
A princípio, nas paletas de Narmer e na maça do rei Escorpião, a cauda apresenta um perfil que se avoluma à
medida que se aproxima da extremidade e é decorada com linhas onduladas. Ainda na 1ª dinastia ela passa por
uma estilização que a deixa mais delgada, tendo somente sua extremidade entumecida.
4
De Araújo Duarte 2003: pp. 79-92.
5
No entanto, Maneto atribui ao reinado de Kaiecos (em egípcio Nebra), da 2ª dinastia, a divinização de Ápis em
Mênfis e Mnévis em Heliópolis.(Vidal Manzanares 1998: p. 55.).
6
Devauchelle 2003: pp. 67.
7
Dessoudeix 2008: p. 32.
8
A Pedra de Palermo é um monumento datado da 5ª dinastia que contém eventos contemporâneos e outros
datados das dinastias anteriores.

60
textual, complementado pelo ícone de um boi, o selo ilustra claramente a cena de um touro
correndo à frente do rei, o qual está com a coroa do Baixo Egito e portando o cetro nekhekh
com a mão esquerda junto ao peito. Da inscrição com o nome do animal só restou o hieróglifo
para um banco de junco, correspondente ao som “p” 9 de ¡p. No registro seguinte, portando o
mesmo cetro, o rei corre desta vez com a coroa do Alto Egito diante de um babuíno que talvez
seja aquele conhecido pelo nome de “Grande Branco” (¡D Wr) 10 . Vindo ao encontro da
imagem do cilindro, o ostracon ilustra um esboço de ambos os animais, mas em atitudes
diferentes: o touro, possivelmente Ápis, em atitude de marcha, com chifres em “V” aberto e
manchas dispersas pelo corpo – especialmente na região dos ombros e pescoço-, e o babuíno
com os quatro membros apoiados no chão. Embora o selo não ilustre as manchas visíveis no
corpo do touro do ostracon nem o figure da mesma forma (marcha ou galope), em ambos o boi
tem chifres desenhados de maneira semelhante. E pelo motivo de ambos os artefatos provirem
de uma sepultura quanto exibirem os mesmos personagens, é plausível considerarmos que
representem os mesmos personagens de formas distintas.
Da época de Semerkhet, a menção à corrida de Ápis se reporta ao ano 2 do reinado do
mesmo rei, e consta no Fragmento do Cairo, um bloco “irmão” da inscrição da Pedra de
Palermo. As fontes do reinado de Qaa são menos precisas quanto à data, mas constituem duas
plaquetas de marfim com registros anuais provenientes de Ábidos (Wilkinson 1999: p. 281).
As próximas referências datam da 2ª dinastia e se reportam aos reinados de Nebra,
Nynetjer e Khasekhemuy. Do período dos dois últimos, a fonte é novamente a Pedra de
Palermo: corrida de Ápis realizada nos anos 4 e 10 para o primeiro e sem identificação de data
para o segundo. Quanto a Nebra, a referência é a mesma citada mais acima, A História do
Egito do sacerdote Maneto 11 . Lá ele atribui a esse rei – chamado de Kaiecos – a divinização de
Ápis em Mênfis e Mnévis em Heliópolis 12 . Por ter vivido em uma época muito distante dos
acontecimentos que relatou 13 , é possível que muitos registros antigos que ele consultou já

9
Gardiner 1969: p. 500, símbolo Q 3.
10
Wilkinson 1999: p. 249.
11
Vidal Manzanares 1998: p. 55.
12
Mas como não possuímos outras fontes mais antigas para contrastar com esse relato tardio, não há como saber
se esses touros passaram pelo processo de divinização em um período tão remoto e nessa localidade.
13
Maneto foi um sacerdote egípcio originário de Sebennytos que viveu no terceiro século a.C. e foi o autor da
Aegyptiaca, a História do Egito, uma obra que serve até hoje como referência para a elaboração da cronologia
egípcia.

61
trouxessem informações equivocadas ou que os papiros com informações corretas tenham se
perdido, conduzindo-o a uma afirmação que não encontra sustentação direta pelos achados
arqueológicos. Lembramos que a fonte mais antiga, datada do reinado de Aha, não afirma
que o Ápis da corrida era considerado um deus, mas não é improvável que durante Nebra
(Kaiecos) ele tenha ganhado maior importância e se tornado uma divindade.
A 3ª dinastia só nos oferece uma informação quanto ao bovino, e desta vez não está
relacionada à corrida, mas ao nome da mãe do faraó Netjerikhet (Djoser), Nymaathep 14 ou
Nymaathepu N(y) mAa.t Hp(w) 15 .
Da dinastia seguinte há quatro menções de categorias distintas datadas dos reinados
de Snefru, Khufu e Menkaure. No caso de Snefru, há duas referências possivelmente
complementares e distintas: uma pertencente às inscrições dos anais registrados na 5ª dinastia
e outra originária do templo do vale do rei, em Dashur. A primeira informação provém da
segunda linha do Fragmento do Cairo (Fig. 19), que atribui uma corrida de Ápis ao ano 4
desse rei (Friedman 1995: p. 31, fig. 18A; Roccati 1982: p. 40). A cerimônia aí registrada
pode ter uma conexão com a representação do templo real, do qual somente poucos
fragmentos restaram 16 – nenhum ilustrando Ápis (Fakhry 1961: pp. 98-99, fig. 96;
Oppenheim 2007: p. 215).
Da época de Khufu, filho de Snefru, a informação de que dispomos não provém de
anais ou outros monumentos da realeza, mas da inscrição da estátua de Hemiunu 17 , o
provável diretor de construção da Grande Pirâmide:

Membro da Elite, Alto Oficial, Vizir, Carregador do Selo do Rei,


Atendente em Nekhem e Porta-voz de Todos os Residentes de Pe, Sacerdote de
Bastet, Sacerdote de Shesmetet, Sacerdote do Carneiro de Mendes, Guardião
do Touro Ápis, Guardião do Touro Branco, o qual o seu senhor ama,
Cortesão, Inspetor dos Escribas reais, Sacerdote da Deusa Pantera, Diretor

14
Devauchelle 2001: p.68; Vandier 1949: pp. 233-237.
15
Dessoudeix 2008: p. 49. Pode ser traduzido como “(a) Maat pertence a Ápis” (Devauchelle ibid) ou “(aquela
que) pertence à Maat de Ápis”.
16
Ainda que escassos, entre os fragmentos há um com uma coluna de texto que lhe dá tal atribuição, e do qual
resta a frase (p)Hrr ¡(p) “corrida de Ápis”, onde as partes em parênteses são aquelas que foram perdidas.
17
Arnold, Grzymski, Ziegler 1999: pp. 229-231.

62
Musical do Sul e do Norte, Inspetor de Todos os Projetos de Construções do
Rei, Filho do Rei de seu próprio corpo, Hemiunu.”

O reinado de Menkaure também nos legou uma citação indireta às festividades do


touro sagrado por meio de uma inscrição que seu funcionário Debeheni fez gravar na
primeira câmara de seu hipogeu em Giza (Devauchelle 2001: p. 66; Roccati 1982: pp. 91-
93). Em meio a um texto relativamente longo, faz uma breve menção “a festa de Ápis em
seu pavilhão divino”, cujo contexto foi perdido em virtude de lacunas na narrativa.
Até então, com exceção do selo-cilindro e do ostracon da época de Den, todas as
informações que chegaram até nós tiveram caráter exclusivamente textual e não oferecem
ajuda quanto à real aparência do animal, sua representação simbólica ou das festividades às
quais estava associado. A próxima fonte, no entanto, datada da 5ª dinastia e proveniente da
base do obelisco do templo solar de Niuserre em Abu Gurab nos dá um novo panorama e
apresenta o touro por ocasião das festividades do jubileu real (Bissing 1928: pp. 28-29, pr.
15; Vandier 1949: pp. 233-237). Ainda que fragmentário é possível distinguir no relevo a
cabeça de Ápis com chifres longos, ondulados e projetados para frente (Fig. 20), como nas
cenas minoico-micênicas que floresceram séculos mais tarde na Grécia. Seus olhos são
arredondados, a narina direita figurada com um ponto, e duas linhas curvas abaixo e acima
do focinho representam os bigodes. A linha frontal é reta e o focinho é destacado por uma
curva que termina no início da papada. A lateral da face é definida por uma demarcação
que procura estilizar a anatomia do crânio. O touro se encontra dentro de um santuário com
teto abobadado e, no exterior, a única legenda visível que se refere a ele diz “sair pela
porta oriental” (Bissing 1928: p. 29). Da mesma dinastia e proveniente da mastaba de seu
proprietário, a estátua Userkafankh, um funcionário contemporâneo de Niuserre, contém
uma inscrição que cita, além de vários outros títulos que ele possuía, aquele de “Bastão 18
do Touro Branco e sacerdote de Ápis” (Roccati 1982: p. 114). Devauchelle (2003: p.36)
18
Devauchelle (2001: p. 66) menciona a existência do título de “Bastão de Ápis” (mdw ¡p) que perdurou até o
Reinado Médio, mas acredita se tratar mais de um cargo ocasional relacionado às celebrações da realeza do que a
um culto permanente. De fato, é plausível que não estivesse constituído um culto a Ápis da forma que observamos
em épocas mais tardias, mas a escassez de testemunhos materiais não pode, por si só, negar o que as poucas fontes
contam. E diante de títulos como “Guardião do Touro Ápis” e “Sacerdote de Ápis”, o caráter ocasional do título
‘Bastão de Ápis”, passa a ganhar uma maior pertinência. O mesmo vale para a referência ao touro Mnévis de
Heliópolis.

63
adiciona ao panorama do Reinado Antigo um outro título, mas que era utilizado por
mulheres, o de “serva de Ápis” Hmt ¡p.
As últimas referências a Ápis do Reinado Antigo provêm dos Textos das Pirâmides
do final da 5ª e da 6ª dinastia. Neles, Ápis não é mencionado nos contextos festivos
discutidos acima, mas em fórmulas religiosas por vezes complexas e abstratas.
Na pirâmide de Unas 19 , por exemplo, há a seguinte citação na terceira e quarta
colunas da parede oeste:

“A corda foi guiada, o Caminho Batido cruzado, e a bola batida 20 à


boca do canal de Ápis.” 21 (...) “Vocês macacos que cortam cabeças, Unas
passará por vocês em paz, porque Unas amarrou sua cabeça ao seu pescoço
– e o pescoço de Unas está em seu torso – em sua identidade de atador de
cabeças, na qual ele amarrou a cabeça de Ápis em si no dia de laçar o touro
de chifres longos. 22 ”

Do monumento funerário de Pepi I, também em Saqqara, mas datado da 6ª dinastia,


provêm outras duas elocuções, a primeira do muro ocidental da antecâmara e a outra da
parede meridional do vestíbulo:

19
Allen 2005: p. 43; Faulkner s.d.: p. 63, § 279.
20
Devauchelle (op. cit., p. 58, n. 306) sugere a interpretação dessa passagem como “amassar a massa (de pão)”,
ainda que seu sentido continue obscuro.
21
Allen 2005: p. 43, §165. Faulkner (op. cit.: p 63, § 279) dá uma outra tradução para a passagem: “Disponha a
corda endireitada, cruze a Via Láctea (?), golpeie a bola na campina de Ápis!”
22
Allen ibidem, p. 44. A tradução de Faulkner (op. cit., p. 64, § 286) é a seguinte: “O vocês macacas as quais
cortam cabeças, Eu irei escapar em segurança de vocês; Eu fixei minha cabeça ao meu pescoço, e meu pescoço
está em meu tronco neste meu nome de Fixador-de-cabeças, por meio do qual Eu fixei a cabeça de Ápis nesse dia
em que o boi foi laçado.”

64
“Você deve estar à frente dos santuários de duplo mastro embandeirado
como Min, você deve estar à frente desses da Terra Negra como Ápis, você deve
estar à frente do Lago Estendido como Sokar.” 23

“O pênis deste Pepi é aquele de Ápis, tal como ele emerge e ascende ao
céu.” 24

Os excertos acima, por falta de outros textos de apoio com conteúdo mais esclarecedor,
inserem Ápis em uma teia simbólica de difícil compreensão, e as diferentes traduções geram
ainda mais dúvidas quanto ao real significado dessas passagens. A única dessas elocuções que
parece mais clara relaciona o órgão sexual do rei com o de Ápis, sugerindo uma plausível
conexão com um dos significados do touro, a fertilidade. Tal alusão pode ser estendida com
certa prudência ao meio agrícola em que esse animal possivelmente estava inserido: canal
(Allen) ou campina (Faulkner) de Ápis. A frase “você deve estar à frente desses da Terra
Negra 25 como Ápis” sugere a ligação desse touro sagrado com a estreita região fértil do vale do
Nilo e à agricultura ou, se tomarmos a expressão “Terra Negra” como o nome do país 26 e Ápis
à frente da população desse espaço, o animal ganha um aspecto de liderança que o associa ao
papel do rei 27 . Talvez, e por essa razão, as cenas da corrida de Ápis também devam ser vistas
sob esse prisma além daquele da garantia da fertilidade aos campos, uma vez que o surgimento
histórico de Ápis se apóia sobre o mesmo pilar que o simbolismo do touro selvagem para a
realeza 28 , ao qual, com grande probabilidade, estava fundido. Desta forma, os significados
atribuídos a Ápis em períodos posteriores, que o retratam como um ser dócil e domesticado,
23
Allen ibid., p. 122, § 312. Faulkner (op. cit. p. 288, §§ 1998-1999) traduz de uma maneira diferente: “você fica
diante dos santuários-snwt como Min, você fica à frente do povo de Athribis (?) como Ápis, você fica em Pdw-S
como Sokar (...).”
24
Ibidem, p. 170, § 486. A tradução de Faulkner (op. cit. p. 207, § 1313) difere ligeiramente: “Meu falo é Ápis;
Eu irei ascender e me erguer em direção ao céu.”
25
Topônimo traduzido por Faulkner como Athribis, uma cidade do Baixo Egito localizada no décimo nomo, no
vértice inferior do delta do Nilo.
26
Uma das denominações do Egito para os egípcios era “Kemet” (a) “Negra” ou “Ta Kem” (a) “Terra Negra”,
fazendo uma alusão à cor do solo ribeirinho em contraposição àquele do deserto, Desheret (a) “Vermelha”.
27
O sentido de se manter à dianteira sugere também o conceito de abrir (wp) um caminho ou espaço, verbo este
transcrito pelo hieróglifo que representa um par de chifres bovinos P. Esta idéia já havia sido expressa nas paletas
pré-dinasticas “dos touros” e de “Narmer”, e em ambos os casos, o touro que derruba as muralhas de uma
fortificação D" está associado ao rei.
28
De Araújo Duarte 2003.

65
talvez soassem como altamente anacrônicos para os primeiros períodos históricos do Egito,
quando seu aspecto físico não evocava somente a fertilidade, mas também a força e liderança.

Primeiro Período Intermediário e Reinado Médio

Seja do Primeiro Período Intermediário ou do Reinado Médio, não foram encontrados


quaisquer elementos que possam provar a continuidade da cerimônia da corrida de Ápis.
Contudo, não é possível afirmar que ela não estivesse sendo realizada, mesmo que a nova
dinastia reinante durante o Reinado Médio fosse de origem tebana e com ela tivessem sido
adicionados novos valores e tradições. Na verdade, o que se observa pela arte e arquitetura
dessa época clássica da história egípcia é que estas se espelhavam nos modelos de excelência
do Reinado Antigo, e ainda que novos elementos estéticos e concepções religiosas tenham sido
incorporados aos relevos e edifícios desta nova era, é plausível cogitar que a força da tradição
legada pelas primeiras dinastias tenha se estendido a essa nova realidade tal como as cheias do
Nilo retornam para enriquecer o solo antigo por meio de seu regime cíclico. De fato, a cultura
egípcia antiga se espelhou no rio que lhe deu sustento, ao fortalecer-se e renovar-se por meio
de seu fluxo histórico e ao engendrar, em cada ciclo de seu processo de criação simbólica, uma
forma mais complexa de sua integração com o cosmo. Este movimento constante da criação
mítica também alcançou nosso protagonista, e seus atributos então pouco claros durante o
Período Arcaico e o Reinado Antigo começam a aflorar ou revelam aquilo que dessas eras
ficou perdido.
Em uma inscrição na sepultura do nomarca Ankhtifi, datada do final da 10ª dinastia, em
meio a uma relação de suas posses o proprietário se equipara às qualidades de certas
divindades: “Eu sou um rico, proprietário de riquezas, eu sou um Ápis, proprietário de vacas,
uma Sekhar-Hor(?), proprietário de cabras, um Népri, proprietário de trigo do Alto Egito,

66
uma Tait, proprietário de vestimentas.” 29 O registro, embora não encontre paralelos entre seus
congêneres contemporâneos, chama a atenção pela distância em que se encontra a tumba de
Ankhtifi, em Mo‘alla, no Alto Egito, do presumível centro de culto a Ápis, em Mênfis. O
sentido da frase sugere que já nessa época esse touro sagrado menfita usufruísse um harém
próprio e distinto.
Outro registro que revela um aspecto interessante, datado do reinado de Amenemhat I
(12ª dinastia), e ilustrado no túmulo de Senbi, filho de Ukhhotep, em Meir 30 , é a associação
inédita que se faz de Ápis a um touro que está prestes a enfrentar um rival em um evento
tauromáquico (Fig. 22). O oponente, localizado à esquerda e com o corpo coberto de manchas
irregulares 31 galopa furiosamente em direção ao outro, cuja pelagem é uniforme e
possivelmente branca. Ambos estão sendo arbitrados por dois homens com bastões e acima do
bovino à direita lê-se “touro vitorioso semelhante a um Ápis, amamentado por Hesat” kA nxt
mit(y) ¡pwy Xnm.n ¡sAt 32 . Algumas considerações se fazem importantes quanto a este registro.
Primeiramente temos um animal de porte vigoroso, com cornos grandes e sem quaisquer
manchas associado a Ápis. Ele não se encontra em um meio bucólico, mas travando uma
disputa pelo poder: a legenda acima dele é clara ao adjetivá-lo com uma característica própria a
Ápis, a de ser “um touro vitorioso”. Podemos nos perguntar a princípio se esta não seria uma
representação de dois touros reais que disputavam essa modalidade para a distração de seus
proprietários. Contudo, se este fosse o caso, não deveriam os animais ser denominados de
forma mais precisa para que não fossem confundidos com tantos outros de gerações diversas?
Por certo, o proprietário da sepultura teve a oportunidade de presenciar vários combates de
touros durante sua vida, e se tivesse a intenção de mencionar dois touros em especial entre
todos aqueles que possuíra, sua denominação deveria ser mais específica do que “touro
vitorioso” e o “manchado rival”. Seguindo este raciocínio, é de se acreditar que as
particularidades da representação dos animais tenham sido escolhidas meramente por seu
aspecto estético na cena e não para mimetizar animais que tenham existido de fato com essas
características. Mas esta dedução leva a outro questionamento: por quê o touro desprovido de
29
Ink Sps nb Spsw ink ¡p nb iHw s[x]At-¡r ? nb gHsw Npr nb Smat &Ayt nb Hbsw (Devauchelle 2001: p. 64).
30
Devauchelle ibidem, p. 63; Galán 1993: 44; Vandier 1969: p. 204; Yoyotte in Yoyotte et alii. 1997: p. 136, n.
322.
31
Identificado como “o manchado rival” (Galán1993: p. 43).
32
Devauchelle ibid., p. 63.

67
manchas foi aquele associado a Ápis, uma vez que a tradição tardia salienta a importância de
marcas negras em áreas especiais do corpo que o diferiam dos demais? Seria por algum tipo de
tabu, para não confundir com o animal que tinha características divinas?
Seja como for, não há como saber se para os egípcios dessa época Ápis teria que
apresentar marcas particulares pelo corpo que o identificassem como divino, mas é de se
acreditar que a preocupação com as características de sua pelagem seja produto da evolução da
teologia de períodos mais tardios. Assim, o que há de concreto quanto à cena do túmulo de
Senbi, não são as particularidades da representação dos touros - que encontram paralelos em
outras pinturas contemporâneas que evocam a tauromaquia - mas a destacada qualidade de
Ápis como um touro poderoso que derrota seus oponentes, associando-se ao próprio Senbi.
O mesmo registro traz uma outra concepção, do aleitamento de Ápis pela vaca Hesat 33 ,
e da qual pode ter derivado o conceito do “leite de Ápis”, encontrado nos Textos dos
Sarcófagos 34 :

“Tu és puro, tu és puro, (tão verdadeiro quanto Rê) vive; tu és puro, tua
parte da frente é pura, tua parte de trás é pura; os locais foram purificados
para ti com natrão, com incenso, com o leite de Ápis, e com a cerveja de
Tjenem 35 .”

Embora Devauchelle (2001: p. 62) acredite que a passagem acima se trate de uma
referência a Ápis como produtor de leite, tanto pelo motivo de sua mãe não ter sido
mencionada quanto por sua condição de personagem ligado à abundância agrícola, o texto
igualmente não fornece elementos que levem a esse tipo de interpretação. Primeiramente, a
ausência da citação da mãe de Ápis ou da vaca produtora do leite não implica necessariamente
na sua inexistência subliminar enquanto fonte produtora do leite. Pelo teor da passagem, que
enumera produtos utilizados para a purificação (natrão, incenso e cerveja), é mais provável que

33
Devauchelle 2001: pp.105-106.
34
Barguet 1986: p. 168.
35
O Livro dos Mortos traz uma passagem semelhante que diz: “Tu és puro, tu és puro, teus membros anteriores
são puros, teus membros posteriores são puros; (teu lugar foi purificado) com natrão, incenso, água fresca, com
resina; tu foste purificado com leite do touro Ápis, com cerveja da deusa Tjenemyt, com incenso.” (Barguet 2003:
p. 249; Devauchelle 2001: p. 62).

68
a intenção estivesse dirigida para a importância que esse líquido tinha em relação a quem o
consumia, Ápis, e não por quem o produzia. Não que vaca que o produzisse não tivesse
qualquer importância, mas por ser uma substância destinada a Ápis, ela agregava uma condição
ainda mais especial e restrita, além de naturalmente pura por sua coloração alva. O leite para
Ápis também remete à idéia a um néctar concentrador de vida que tem a função de transformar
o jovem bezerro em um touro viril, sendo desta forma, uma substância importante para a
revitalização ou ressurreição de quem o utilizava. Este sentido é evocado pela inscrição no
túmulo de Senbi, que faz do aleitamento na vaca Hesat um período necessário para a
transformação de um vulnerável bezerro em um “touro vitorioso” ou “poderoso”.
As passagens seguintes dos Textos dos Sarcófagos contêm mensagens que, por sua
brevidade e caráter abstrato, são muito obscuras e dificultam no intento de se compreender a
função e outras particularidades do papel de Ápís no panorama religioso. A fim de ressaltar o
texto, as menções ao touro foram sublinhadas:

“Faça-me o caminho, que eu passe! Se não me fizer o caminho para que eu


passe, eu rejeitarei os Ocidentais em Geb, pai dos deuses; a fênix profetizará, e
a Brilhante sairá, o Grande se levantará, a enéade falará, a terra não se abrirá
mais, Geb não falará mais, Rê não se levantará mais, as (peles dos) Agu serão
postas a nu, o dique será submerso, as falésias (?) serão reunidas, elas serão
reunidas, as margens, as cordas serão cortadas, a mesket (sic.) será inundada,
os excrementos serão postos na pradaria (?) de Ápis, RAmdw é aquele que
guardará os caminhos contra os transeuntes para interditar as portas àqueles
que sairão diante de mim, que sou o pilar de Kenset. 36 ”

“Aquele que é completo jubila daquilo que foi feito para ele e aquilo que
eles disseram sobre ele:” Eu farei que o Osíris N. que aqui está veja os falcões
em seus ninhos; eu farei que o Osíris N. que aqui está veja a descendência de

36
Barguet 1986: pp. 160-161.

69
Ápis nos estábulos de vacas manchadas; eu farei que o Osíris N. que aqui está
veja Osíris em Busíris em sua dignidade de Touro do Ocidente. 37 ”
“É por estas jovens que estes ventos me foram dados; eis aqui a brisa do
leste que abre a lucarna (do céu), que libera os sopros do oriente, que faz um
bom caminho a Rê quando ele sai com ela. Que Rê pegue minha mão, que ele
ponha neste seu campo que está sobre os Juncos, afim de que eu me nutra dele,
como é o comportamento de Ápis, e afim de que eu me regale dela, como é o
comportamento de Seth. É o vento da vida que a brisa do Leste (sic); é afim que
eu viva dela que ela me foi dada. 38 ”

“-E com o que será ceifado para ti?


- Será ceifado para mim com Ápis (?), que preside em Nesau, e que trará
para mim o grão por meio de Seth mestre do céu setentrional. 39 ”

“Ó Aniquilador da vida, traga-o a mim! Eu sou (a vaca Ahet de) Ápis,


aquele que habita o céu, com chifres longos, com nomes perfeitos (?), com
olhos grandes (?), com passadas largas. Eu sou encarregado dos (deuses)
alimentadores, eu sou encarregado dos (deuses) criadores.40 ”

“Vejam-me: eu vim, eu tomei posse do Provedor; eu apareci, eu sou


exaltado em Ápis. 41 ”

“Eu vim hoje neste país sagrado de Ápis; eu aqui encontrei a erva-sem
(sic.) que verdejava; ela era pequena e ela crescia; eu a propaguei, eu respirei.
Eu sou aquele a quem (ela) foi dada na totalidade. Eu sou a faca que está na
mão Daquele-que-abre-a-boca-nas trevas. 42 ”

37
Ibidem, p. 172.
38
ibid: p. 268.
39
Ibid. p. 395.
40
Refere-se à criação de animais. Ibid., p. 396.
41
Ibid. p. 408.
42
Ibid., p. 670.

70
Como se percebe pelas elocuções destacadas, não há informações muito claras que
identifiquem o papel fundamental desse touro sagrado e que dialoguem com outras fontes, tais
como aquelas que se referem à corrida de Ápis. Ainda assim, o teor de algumas passagens
parece estabelecer um vínculo entre Ápis e o campo e à sua função de procriador. Este último
predicado vem se somar à inscrição de Ankhtifi já citada, em que o falecido se equipara a Ápis
em sua qualidade de “proprietário de vacas”, embora aí não se especifique se estas são ou não
manchadas. Talvez, já nessa época, outras qualidades físicas do animal dessem a ele a
qualidade de um Ápis, tais como chifres longos, olhos grandes (?), e passadas largas, como
salienta um dos trechos acima, mas nenhuma delas se equipara às características mencionadas
pelos autores clássicos 43 . No entanto, é plausível que o comprimento dos chifres fosse uma
distinção importante, uma vez que esse é um adjetivo recorrente nos textos religiosos e que
encontra paralelo nos poucos registros iconográficos de Ápis que nos chegaram dessa época 44 .
Outros excertos, cada um à sua maneira, aparentemente vêm se somar no sentido de
associar Ápis a campos verdejantes e férteis, reforçando o apelo natural de sua potência viril
fecundadora.
Por fim, podemos citar um relevo originário do templo funerário de Senwsret II (Hayes
1953: p. 200; Oppenheim 2007: pp. 207-218), em Lahun, no qual estão ilustradas três
divindades do Baixo Egito, uma entre as quais taurocéfala (Fig. 21) e que pode ser a mais
antiga representação de Ápis com corpo humano. Mas a despeito da identificação que Hayes
faz dessa figura como Ápís, devido à ausência de uma legenda que possa confirmar essa
informação e pelo motivo de haver outras divindades com aparência similar, não há como
sabermos com certeza se essa afirmação procede até que seja encontrada a parte que falta do
registro com um texto que indique o nome desse personagem divino.

43
Heródoto, Livro III, 28 (Legrand 1958-64: p. 28), Eliano, Livro XI, 10 (Díaz-Regañón Lopez 1984: p. 90),
Estrabão, Viagem ao Egito, 31 (Yoyotte, Charvet, Gompertz 1997: p. 135).
44
Por exemplo, o ostracon e o selo-cilindro de Hemaka e o relevo de Abu Gurab. O touro que comparado a Ápis
na tumba de Senbi também possui, como seu rival, chifres grandes.

71
Do Reinado Novo ao Período Tardio

Ainda que não proporcione a abundância de documentação que encontramos durante o


Terceiro Período Intermediário e o Período Tardio, o Reinado Novo é uma época importante
pela afirmação do perfil simbólico-religioso de Ápis, pelo surgimento de novos significados
ligados a ele e por sua associação à antiga capital do país, Mênfis. Se ainda encontramos
documentos que mantêm o seu papel no campo simbólico e ritualístico da realeza, novos
elementos irão derivar desses valores como, por exemplo, a identificação de Ápis com Hórus,
com o deus funerário Osíris e com o deus solar Rê. Da mesma forma, por compartilhar da
mesma origem que Ptah, irá partilhar com este parte das atenções dos fiéis que se dirigem ao
perímetro sagrado de Mênfis e de sua necrópole. No entanto, este processo de aquisição de
novos significados não é muito claro, e as fontes de que dispomos não elucidam o processo
gradual do enriquecimento simbólico pelo qual Ápis passa. Vamos a partir de então expor
alguns documentos alusivos às permanências e às variantes promovidas por esse fenômeno
cultural.
Os únicos registros que se remetem à já antiga celebração da corrida de Ápis
encontram-se na capela vermelha da rainha Hatshepsut (Burgos, Larché 2006: pp. 63, 110). Em
ambos, o touro sagrado está ilustrado em segundo plano e dimensões reduzidas, na sua
corriqueira atitude de galope, com um corpo esbelto e desprovido de quaisquer adereços ou
símbolos (Figs. 23 e 24). Pela primeira vez, seus chifres não são mais tão alongados e recurvos,
mas estão configurados como um “V” aberto. Hatshepsut, trajada como um rei, está vestida
unicamente de um shendyt plissado, um tipo de saiote curto com uma peça de tecido à frente e
uma cauda de touro atada à parte anterior do cinturão, seu pescoço adornado com um colar
usekh e a extremidade de seu queixo com uma barba volumosa. O posicionamento do bloco na
capela determinava o sentido e certos elementos ilustrativos da decoração. No caso do bloco n°
102 da parede sul, tanto ela quanto Ápis correm em direção à esquerda e por sua respectiva
localização no projeto arquitetônico do santuário, ela leva à cabeça a coroa branca do Alto
Egito com a uraeus, em sua mão direita o flagelo nekhekh e um mks na esquerda. No bloco n°
128 da parede norte, o sentido é o oposto, assim como os atributos que são carregados em mãos

72
diferentes, e à cabeça Hatshepsut exibe a coroa vermelha do Baixo Egito com a uraeus. Em
ambos os casos, a corrida se dirige para a capela de calcita de Amenhotep I que guarda a barca
sagrada de Amon-Rê. Acima do touro e em ambos os lados do monumento estão as legendas
que descrevem a atitude dele: pHrr ¡p “(a) corrida de Ápis”. Logo acima, na vertical, o título
da cena 45 , “dar os campos quatro vezes” d(i) sxt sp 4. Os marcos que simbolizam o Alto e o
Baixo Egito encontram-se representados atrás do saiote da governante, e o número de voltas
deve equivaler aos quatro pontos cardeais 46 . Ainda que seja uma concepção encontrada em
diversas sociedades, o sentido dos pontos cardeais era especialmente importante na concepção
egípcia de mundo, uma vez que o país ordenava-se naturalmente pelo eixo sul-norte imposto
pelo Nilo, e pelo de leste-oeste, que dava sua orientação astral. Embora não descrito por essas
cenas, mas deduzindo pelos indícios citados, é possível que a associação de Ápis com o
percurso solar encontre aqui suas raízes 47 e daí tenha evoluído uma nova concepção da corrida
que veremos mais adiante.
Além de evocar e trazer simbolicamente fertilidade ao campo, as cenas com Ápis
devem ter tido o propósito de vincular e legitimar Hatshepsut ao cargo masculino que ela
ocupava.
As cenas da corrida de Ápis ilustradas na capela de granito de Hatshepsut são as
últimas conhecidas dessa categoria que a civilização faraônica nos legou 48 . Do mesmo reinado
encontramos ainda uma breve menção a Ápis registrada na capela de Háthor do templo
funerário de Deir el Bahari e que estaria associada à sua representação antropomórfica logo
atrás da deusa Háthor como uma vaca 49 . No entanto, por ter sido completamente apagada por
razões desconhecidas, não há como sabermos maiores particularidades sobre sua
caracterização.

45
Devauchelle op.cit, p. 57.
46
Isto se considerarmos que o registro foi repetido nos dois blocos e que não devemos somar o número presente
em ambos.
47
Se bem que essa conotação pode ser mais antiga, tal como sugere a inscrição no relevo do templo solar de
Niuserre, que indica uma saída oriental por onde Ápis sairia de seu pavilhão.
48
As outras duas conhecidas, datadas do período Ptolemaico, estão situadas no templo de Kôm Ombo e Dendera
(Cauville 1998: p. 165, pr. XLV; Devauchelle 2001: p. 104; Gutbub 1995: p. 240).
49
Baines 2001: p. 132; Desroches Noblecourt 2002: p.321; Devauchelle 2001: pp. 64-65; Naville 1904: pr. 94R.
A cena mostra a vaca Háthor diante de uma figura apagada que revela os contornos de Hatshepsut ilustrada como
um rei, tendo sua mão esquerda estendida e lambida pela deusa. Atrás desta, localiza-se a imagem igualmente
apagada de uma divindade antropomórfica que se pressupõe ser Ápis.

73
Se até aqui temos dois tipos de informação sobre Ápis, aquela que se remete à
celebração da corrida ao lado do rei e outra, de caráter religioso, que insere o touro na plêiade
divina sem especificar claramente sua função, a partir de meados do Reinado Novo este ganha
um culto próprio que é, em parte, produto da convergência de várias vertentes religiosas
resultantes de um longo processo histórico-cultural no qual passa a se identificar a quatro
divindades: o deus solar Rê 50 , de Heliópolis, Ptah 51 , de Mênfis, Osíris, cujos centros de culto
mais importantes eram Ábidos e Busíris, e Sokar, deus menfita com atributos funerários que se
associava a Ptah e a Osíris. A essa fusão de pensamentos religiosos se uniu a devoção popular,
a qual encontrou em Ápis um sustentáculo vivo e concreto para suas aspirações de
transcendência. Desse momento em diante se torna clara a existência de um local de culto a
esse touro dentro do recinto do templo de Ptah 52 , em Mênfis, ao qual vem se somar um outro
em Saqqara 53 , que ao contrário do primeiro, tinha por objetivo cultuar o aspecto funerário das
várias gerações desse touro e cujas sepulturas localizavam-se em suas imediações. Este
conjunto de monumentos da necrópole menfita, conhecido pelo nome de Serapeum e que,
como vimos, foi escavado por Mariette, sofreu várias alterações e ganhou dimensões que lhe
deram destaque entre o final do período faraônico e o início do período helenístico, quando o
Egito passou a ser governado pelos Ptolomeus, e é de lá que provém a maior porcentagem dos
artefatos que fazem menção Ápis. O crescimento do complexo sagrado desse touro veio
acompanhado da expansão das necrópoles de animais sagrados nas imediações, também
impulsionada por sua popularidade entre diversas camadas da sociedade.
As primeiras evidências de sepulturas de Ápis e, consequentemente, de seu culto, datam
do reinado de Amenhotep III 54 , mas infelizmente poucas são as informações precisas que se
tem a respeito delas. Segundo as informações deixadas por Mariette (Malinine et alii. 1968

50
A associação com Rê também lhe trouxe uma aproximação simbólica com Mnévis, um touro que era visto
como uma manifestação do deus sol na cidade vizinha de Heliópolis.
51
Devauchelle op. cit., pp. 67, 72.
52
Muito embora não tenham sido encontrados vestígios arqueológicos esclarecedores sobre sua real localização.
Nesse espaço haveria o culto ao deus vivo, ao passo que em Saqqara, à sua forma sincrética com Osíris. Para
informações sobre as escavações no perímetro do templo de Ptah e a parte aí destinada a Ápis cf. El Amir 1948:
pp. 51-56.
53
Mariette 1857: p. 3.
54
O nome do rei só foi encontrado nas inscrições da capela funerária sobre a tumba (1882: pp. 124-125).

74
texto: planta A) o primeiro Ápis foi enterrado na tumba isolada A 55 . Mariette dá uma descrição
de seu achado:

“sob Amenófis III, cujo reinado viu morrer o primeiro Ápis que eu
conhecço, esta tumba não é ainda o subterrâneo comum que dá asilo a um
certo número de touros mortos. Ela se compõe simplesmente de uma edícula à
superfície do solo, ornada de baixos relevos (...) e, sob essa edícula, de uma
câmara quadrada, com teto chato, à qual chegamos por um caminho inclinado
escavado na rocha; a porta está voltada para o sol nascente. Quando o touro
de Mênfis morria, era levado ao Serapeum, introduzido em uma urna de
madeira talhada no modelo daquele que devia conter o corpo de Osíris segundo
o mito reproduzido por Plutarco, depois os principais personagens da cidade
depositavam próximo ao ataúde algumas estatuetas ornadas de seus títulos e
nome, e a tumba, assim organizada, era lacrada para sempre aos olhos dos
homens. Tal modo foi utilizado sob Amenófis III para a sepultura de Ápis, e
esse modo foi utilizado pelos sucessores desse faraó até o ano 30 de Ramsés II,
época na qual um outro sistema entrou em vigor.” 56 .

Infelizmente todas as informações que poderiam esclarecer sobre essa sepultura da


época de Amenhotep III e que foram registradas por Mariette em seus cadernos de escavação
estão perdidas 57 e não há como se tecer maiores detalhes sobre esse monumento. A ilustração
fornecida pelo autor (fig. 11) levanta várias dúvidas quanto à real aparência do edifício que se
55
Devauchelle 2001: p. 18; Mariette 1857: p. 3; Mariette 1882: pp. 65, 79, 117, 124-125; Porter, Moss III², pp.
780-781.
56
“Sous Aménophis III, dont le règne vit mourir le premier Apis que je connaisse, cette tombe n´est pas encore un
souterrain commun qui donne asile à un certain nombre de taureaux morts. Elle se compose tout simplement, à la
surface du sol, d´une édicule orné de bas-reliefs (...)et, sous cette édicule, d´une chambre carrée, à plafond plat, à
laquelle on arrive par un chemin en pente pris dans le rocher; la porte regarde le soleil levant. Le taureau de
Memphis venait-il à mourir, on l´apportait au Sérapeum, on l´introduisait dans un cercueil de bois taillé sur le
modèle de celui qui avait dû contenir l´Osiris dont Plutarque raporte le mythe, puis les principaux personnages
de la ville déposaient près du cercueil quelques statuettes ornées de leurs titres et de leur nom, et la tombe, ainsi
organisée, était pour toujours fermée aux regards des hommes. Tel a été le mode employé sous Aménophis III
pour la sépulture d´Apis, et ce mode a été mis en usage par les successeurs de ce pharaon jusqu´à l´an 30 de
Ramsès II, époque à laquelle un autre système prévalut.” O mesmo texto pode ser visto nas duas publicações de
Mariette, a contemporânea (1857: p. 3) e a póstuma, (1882: p. 117).
57
Em virtude de uma enchente (Lauer 1961: p.51).

75
localizava sobre a câmara funerária, cuja arquitetura pouco se assemelha aos padrões egípcios.
A única cena mencionada por ele (Mariette 1882: p. 124) e que ilustrava Amenhotep III
acompanhado de seu filho Djehutmés (ou Tutmés) fazendo oferendas de incenso ao touro
estava situada na capela superior. Os artefatos encontrados na câmara funerária e que são de
nosso conhecimento são alguns vasos de terracota bege 58 , um pequeno recipiente de vidro 59 e
quatro vasos canopos gigantes 60 inscritos com o nome do príncipe já citado, e que associam
Osíris a Ápis: Wsir-¡p. Uma prancha não comentada na edição de Mariette (1957: pr. I) ilustra
a parte inferior direita do que parece ser um umbral, também contendo a menção a Osíris-Ápis.
A próxima tumba isolada (B), correspondente ao segundo Ápis, teria sido construída
entre os reinados de Amenhotep III e Tutankhamon 61 e dela provém três estelas (prs. SEest 1-
3) (Malinine et alii. 1968: nos. 1, 2 e 3.) e quatro vasos canopos com tampas no modelo de
cabeças humanas que pertencem ao Museu do Louvre 62 .
Acompanhando a sequência cronológica das antiguidades que Mariette descobriu, o
terceiro Ápis foi inumado na sepultura individual C. Nela descobriu outros quatro canopos
semelhantes àqueles da época de Amenhotep III 63 , alguns fragmentos de um sarcófago 64
decorado lateralmente com um serekh 65 , e três pingentes 66 alongados de faiança que faziam

58
Dois deles contendo o nome do príncipe Djehutymés (Desti in Desti 2004: pp. 58-59).
59
Desti ibidem, p. 57.
60
A altura destes varia entre 83cm a 96cm e todos reproduzem em suas tampas cabeças humanas emperucadas
(Desti ibid., p. 60; Mariette 1857: pr. I). Segundo as informações do papiro Vindob 3873, que descreve o ritual de
embalsamamento dos Ápis, Vos (1993: p. 35) observa que, na verdade, os vasos utilizados para os órgãos
torácico-abdominais não eram os canopos, mas um outro tipo chamado de hbn.t e que eram depositados no túmulo
aos pares. Na falta de maiores informações a respeito das particularidades desse ritual durante o Reinado Novo, e
como a denominação desses objetos de nada afetará nosso trabalho, resolvemos manter o termo canopo para
designar esses recipientes que acolhiam as entranhas taurinas embalsamadas.
61
Devauchelle op. cit, p. 18. Em sua publicação (1882: pp. 131-137), Mariette tece uma série de especulações
sobre a identidade do rei que enterrou esse Ápis, que inicialmente julgou ser o quinto da sucessão. Primeiramente
menciona um faraó Teti, não existente entre os registros que conhecemos, e depois um Rathotis, baseando-se em
Flávio Josefo. Por fim, em um mapa elaborado por ele, permanece com esta última atribuição, mas altera a
ordenação do sepultamento desse Ápis de quinto para segundo (Malinine, Posener, Vercoutter 1968 texto: prancha
A), mudando assim a ordem subsequente dos sepultamentos desse touro.
62
Mariette 1857: pr. 5.
63
Mariette 1857: pr. 2. Desti (op. cit., p. 61) ilustra as tampas de somente dois deles. Como aqueles encontrados
na tumba anterior e os vasos de cerâmica citados, fazem parte da coleção do Louvre.
64
Mariette 1882: p. 126.
65
Motivo arquitetônico tradicional que se reportava à decoração das muralhas do palácio real dos períodos pré-
dinástico tardio e arcaico.
66
Desti ibid., p. 55; Mariette 1857: pr. 2; Mariette 1882: pp. 125-126.)

76
parte de um flagellum com o nome de rei do Alto e Baixo Egito de Tutankhamon,
Nebkheperure (Nbxprwra), que forneceram a datação ao sepultamento.
Mais adiante, o arqueólogo francês deparou com um túmulo do final da 18ª dinastia, e
cuja identificação cronológica foi feita por meio de uma inscrição entre os escombros da
capela, que ele traduziu por “Hórus”67 e que hoje sabemos se tratar de Horemheb. Segundo ele,
pinturas sobre estuque - das quais só temos as reproduções - ornavam as paredes da câmara
funerária 68 , e somente uma tampa de canopo 69 foi encontrada em meio ao caos da sala
desarrumada pela pilhagem. Em uma das cenas70 , o touro aparece em atitude de marcha em
direção à direita sobre uma base retangular alta e branca acompanhado, à esquerda e à direita,
dos quatro filhos de Hórus em duplas. Seu corpo alvo exibe manchas negras espalhadas por
zonas determinadas, a saber: na cabeça, pescoço e parte frontal do peito, na coxa, as ancas e
porção superior da cauda e uma marca semicircular sobre o dorso. Elas estão unidas entre si
nas extremidades, dando a impressão de continuidade. Um manto retangular vermelho pousado
sobre as costas deixa transparecer a marca aí situada, e na parte inferior do pescoço há um
crescente branco. Os chifres em “V” não são tão longos quanto aqueles em ilustrações mais
antigas, e o animal exibe boas proporções e uma postura elegante.
De acordo com Mariette (1882: pp. 66, 128-131), a câmara era contígua a outra, listada
como “E”, que escondia o sepultamento de um segundo Ápis enterrado por Horemheb,
correspondendo assim ao quinto animal que conhecemos desde Amenhotep III. O recinto era
menor que o anterior, mas ao contrário deste, revelava-se intacto. De acordo com a descrição
do arqueólogo, um sarcófago retangular desprovido de pinturas, ornado de painéis laterais
alongados nas laterais e com inscrições se elevava no interior de uma construção de pedras
brancas. À direita e à esquerda estavam posicionados quatro vasos canopos 71 , dois de cada

67
Mariette 1882: pp. 66, 126-128.
68
Desti op. cit. P. 53; Mariette 1857: pr. 3.
69
Mariette 1857: pr. 4, no. 1
70
Mariette 1857: pr. 3 (primeira imagem).
71
Segundo o autor (1882: p. 131), os vasos pertencem à coleção do Museu do Louvre e somente três deles
possuíam tampas. Sobre o recipiente desprovido de cobertura, Mariette depositou a tampa solitária encontrada na
câmara gêmea e, segundo ele, todas exibem cabeças humanas que compartilham de grande similaridade entre si e
possivelmente “saíram do mesmo cinzel”. A fotografia publicada na edição de 1857 (pr. 4, nos. 2-6), no entanto,
exibe quatro canopos – um deles com uma tampa danificada – e mais outra cobertura modelada na forma de uma
cabeça emperucada. É possível que esta (no. 2) seja uma das outras que estão na mesma prancha e retratada de
lado, mas a fotografia não permite discernir isso.

77
lado, e todo o conjunto repousava sobre uma camada de areia 72 . Ao erguer a tampa do cofre,
contudo, Mariette não descobriu a múmia de Ápis que esperava, mas um crânio bovino que
repousava sobre uma massa betuminosa negra com fragmentos de ossos bovinos (?) 73 e
ovalada de cerca de 1m de comprimento por 30cm de largura e o equivalente a esta em altura.
O sexto Ápis 74 encontrou sua morada final no túmulo individual “F”, e sua datação
atribuída ao reinado do segundo governante da 19ª dinastia, Seti I, se deve a um fragmento de
baixo-relevo descoberto em meio às ruínas da capela superior que continha uma inscrição com
o nome desse rei 75 . A câmara funerária, que como aquela de Horemheb estava completamente
arrasada, também possuía um anexo intocado com dimensões semelhantes. Contudo, ao invés
de aí encontrar outro Ápis, deparou com catorze vasos de grandes proporções espalhados
desordenadamente e que originalmente devem ter contido água 76 .
As últimas sepulturas individuais do Reinado Novo foram, ironicamente, as primeiras
desta categoria que Mariette descobriu ao inspecionar as paredes da câmara “J” dos Pequenos
Subterrâneos, dos quais falaremos mais adiante. Ao golpear o muro oriental com um objeto
metálico 77 , ouviu um som que lhe pareceu ser de uma câmara escondida por detrás da rocha e
que corresponderia a outra dependência ainda não revelada. A descoberta o convenceu a
procurar por outra câmara na parte exterior, onde realizou uma escavação que acabou por
revelar a entrada da primeira da série de sepulturas individuais e mais antigas que viria a
descobrir nas redondezas. Esta era composta de um corredor descendente com uma
dependência 78 na parede sul, à esquerda, e outra câmara no final, classificadas como H e G
respectivamente. A primeira havia sido violada e dela só escapara um canopo com o nome do
filho de Ramsés II, Khaemwaset 79 . Nas proximidades de sua entrada encontrou treze estelas 80 ,

72
A areia era uma substância associada à pureza, possivelmente em virtude de seu aspecto homogêneo, e sua
utilização se estendia ao processo de mumificação dos Ápis (Vos 1993: p. 34.).
73
Mariette (1882: p. 130) afirma serem ossos bovinos, mas não menciona qualquer análise apurada destes.
74
O primeiro da 19ª dinastia.
75
Mariette 1882: p. 137.
76
Mas na publicação de 1857 (pr. 7, nos. 3 e 4) ilustra uma tampa de canopo (ou duas) vista de frente e de lado
que atribui exatamente a esse Ápis, o primeiro da 19ª dinastia.
77
Mariette 1882: p. 61.
78
O arqueólogo a trata como “um grande nicho praticado na parede sul do caminho que havia servido de câmara
funerária a um Ápis” (1882: p. 61).
79
Que Mariette traduziu como Scha-em-Djom (op. cit., p. 61).
80
Mariette 1882: p. 142.

78
entre as quais uma que figura o touro Mnévis (pr. SEest. 4) juntamente com Ápis81 . A segunda,
no entanto, estava intocada e apresentava dimensões consideráveis. Os muros apresentavam
nichos onde estavam depositadas estátuas 82 e amuletos e eram cobertas de pinturas já muito
afetadas pelo tempo. Somente a parede meridional ostentava uma decoração ligeiramente
discernível que ilustrava, à esquerda, Ramsés II acompanhado de Khaemwaset oferecendo
libações a Ápis (pr. SEdiv 2). Este, sobre uma base em forma do hieróglifo L estava, como o
deus Ptah ao qual era identificado, em pé dentro de uma capela, com o corpo mumificado e
com um colar usekh S ornando seu pescoço. Suas mãos estendidas à frente portavam um

flagelo nekhekh u e um cajado de pastor o, e a cabeça estava recoberta de uma peruca. Os


olhos e sobrancelhas definidos com maquiagem completavam a impressão humanizada do
deus, seus chifres configuravam-se em um “V” aberto e uma uraeus k enroscava-se no corno
posicionado mais à frente, pendendo diante da fronte. Atrás de Ápis e sobre outra base estão os
quatro filhos de Hórus mumificados e antropomórficos seguidos de um fetiche imiut, que serve
de separador para a cena espelhada à direita. O conjunto, que repousa sobre uma base
retangular longa decorada com molduras internas retangulares, está limitado nos cantos por
dois cetros was p que sustentam o símbolo para o céu R. O nicho que continha dois shabtis
de Khaemwaset 83 ficava sobre o imiut e a representação duplicada dos filhos de Hórus. A parte
inferior das paredes continha uma faixa inteiramente recoberta de folhas de ouro – detalhe que
Mariette fez questão de ilustrar na edição especial de 1857 (pr. 8) – e a riqueza da sepultura
também se fazia visível no chão, por onde estavam espalhadas inúmeras folhas de ouro 84 .
Mariette voltou então sua atenção aos dois sarcófagos negros e decidiu verificar
primeiramente aquele que se encontrava à direita da entrada, parcialmente danificado pela
queda de material do teto que ocasionou o tombamento de uma de suas faces 85 . O esquife

81
Veremos mais adiante que a menção ao sepultamento do touro sagrado de Heliópolis não identificada por
Mariette desta forma lhe trouxe problemas na cronologia dos Ápís durante o reinado de Ramsés II.
82
Entre as imagens, Mariette descobriu mais de 240 estatuetas funerárias (shabtis) com nomes de personagens da
aristocracia menfita (op. cit., 1882: pp. 62, 139-140).
83
A afirmação de Mariette quanto à localização dessas estatuetas funerárias de arenito é outra que aquela que sua
ilustração indica. Segundo ele (1882: pp. 62, 138), o nicho que as continha ficava na parede oriental.
84
Mariette 1882: p. 139.
85
Este, inicialmente foi considerado por ele como o terceiro Ápis da 19ª dinastia, sepultado no ano 26 de Ramsés
II. Veremos mais adiante que tanto a data quanto a atribuição do funeral de um Ápis a ela foram equivocados e
que Mariette se deu conta disso posteriormente.

79
apresentava inscrições pintadas em branco mencionando o nome de Khaemwaset e revelou em
seu interior outros dois de forma semelhante, mas desprovidos de textos. Sua surpresa foi ainda
maior ao encontrar, no interior do conjunto, somente a tampa de um cofre antropomórfico
pousado sobre o chão rochoso 86 guardando um amontoado betuminoso de ossos fragmentados
sem qualquer crânio que certificasse o enterro de um touro. E para completar, essa matéria
negra e frágil ao toque escondia de maneira irregular quinze shabtis de Ápis 87 , uma dezena de
objetos de ouro gravados com o nome de Khaemwaset e de outros notáveis, várias estátuas em
esteatita verde representando o mesmo príncipe e a elite menfita, amuletos em cornalina e
serpentinita finamente gravados e uma grande quantidade de lâminas de ouro 88 .
Uma vez analisada a imagem de Osíris que se encontrava ao lado do conjunto de
esquifes e próximo à parede, Mariette se dirigiu ao outro sarcófago89 que estava diante da porta
de acesso à câmara funerária. Nele deparou com a mesma sequência de achados do primeiro,
mas em meio à massa negra com fragmentos ósseos encontra seis shabtis taurocéfalos e um
elaborado pingente 90 de ouro com detalhes esmaltados na forma de um naos 91 . Os canopos que
acompanhavam esse Ápis nada revelaram em seu interior além de fragmentos de ouro imersos
em betume.
A cronologia dos Ápis das câmaras G e H, como foi brevemente comentado em
algumas notas acima, encontra alguns problemas que mais tarde Mariette parcialmente
resolveu. É de se acreditar que as legendas mal compreendidas de uma estela92 (pr. SEest 4)
que encontrou nas proximidades da câmara H tenham inicialmente sugerido a existência de três
Ápis enterrados nesses subterrâneos nos anos 16, 26 93 e 30 de Ramsés II. Em um mapa
publicado um século mais tarde por M. Malinine, G. Posener, e J. Vercoutter (1968 texto:
prancha A), o arqueólogo se corrige, sem mencionar a razão que o levou a isso, e enumera um

86
O autor dá a entender que os sarcófagos não possuíam fundo, de maneira que a tampa do mais interno se
assentava diretamente sobre a rocha (1882: pp. 63, 140).
87
Ver por exemplo pranchas SEsh 1-7.
88
Desti in Desti 2004: pp. 88-89, 92-94, 96-97; Mariette 1857: prs. 11-13; Mariette 1882: pp. 63, 141.
89
Ao qual atribuiu em suas obras (1857, 1882) a identidade de segundo Ápis da 19ª dinastia, morto no ano 16 de
Ramsés II.
90
Desti op cit., p. 90-91; Mariette 1857: pr. 9; Mariette 1882: pp. 64, 141-142.
91
Santuário fechado com portas e que guarda uma imagem divina.
92
Louvre S 1457. Malinine, Posener, Vercoutter 1968: pr. II, nº 4, pp. 3-5, nº 4; Mariette 1857: pr. 15; Mariette
1882: p. 142.
93
Na transcrição de Malinine et alii. (1968 texto: pp. 3-5), no entanto, a data referida é o ano 25.

80
Ápis para a tumba G e outro para a H, correspondentes ao segundo e terceiro Ápís da 19ª
dinastia. É de se acreditar que ele tenha por fim observado melhor as informações do
monumento e se dado conta de que a data intermediária se referia à morte de um touro Mnévis
ilustrado e mencionado na estela. Mas ainda paira uma dúvida. Se na câmara G foram
encontrados dois sarcófagos com restos mortais e nenhum na câmara H, por que Mariette
atribuiu um Ápis para cada uma ao invés dos dois unicamente na G? É verdade que nesta só
havia quatro vasos canopos ao invés de oito, e na sepultura H foi encontrado um canopo de
alabastro com o nome do príncipe Khaemwaset, mas teria sido este o critério para definir a
localização desses Ápis? Seja como for, Devauchelle (2001: p. 19) segue este princípio,
vinculando o Ápis morto no ano 16 ao sepulcro G e o no ano 30 ao H.
A partir do final do reinado de Ramsés II, uma mudança é feita na maneira de inumar
os Ápis: de sepulturas isoladas os touros passarão a compartilhar seu sono eterno em câmaras
funerárias ligadas a uma estrutura subterrânea axial orientada para o norte à qual Mariette deu
o nome de Pequenos Subterrâneos 94 , que diferenciou daquela maior que descobrira antes 95 .
Cada uma dessas câmaras, após o sepultamento do touro que lhe era destinado, era fechada e
sobre as paredes do grande corredor que assim se formava iam sendo depositadas centenas de
estelas votivas 96 . O estado caótico 97 em que esses subterrâneos foram encontrados desafia até
hoje quaisquer tentativas de datação dos locais de sepultamento correspondentes a cada
animal 98 , e as hipóteses se fundamentam, grosso modo, sobre as inscrições das estelas aí
achadas. As informações por elas passadas indicam que o local fora utilizado até o ano 21 de
Psamético I, englobando assim um período de cerca de 600 anos que abrangia o final do
Reinado Novo, o Terceiro Período Intermediário e parte do Período Tardio 99 .
Antes de deparar com os segredos que as sepulturas individuais guardavam, Mariette
teve um prenúncio do que estava por vir de uma forma pouco adequada aos métodos atuais da
arqueologia. Eis que na parte central dos Pequenos Subterrâneos houve um tal

94
Mariette 1882: p. 56-60.
95
Op. cit, pp., 42, 46-56.
96
Mariette 1882: p. 119.
97
O arqueólogo francês menciona ter caminhado por estatuetas de todas as cores, vasos e fragmentos de
sarcófagos de madeira, tudo em “effroyable désordre” (1882: p. 57). Para piorar, o teto abobadado fora escavado
em um veio de calcário friável que em muitas partes havia desmoronado.
98
Devauchelle 2001: p. 19.
99
A partir do ano 21 de Psamético I, as múmias de Ápis passaram a ser sepultadas nos Grandes Subterrâneos.

81
desmoronamento da abóbada que aí surgiu um vasto poço que se abria ao exterior e abaixo do
qual, por consequência, havia se amontoado uma grande elevação de entulho. Pela dificuldade
de trânsito gerada por tal estorvo e pela frustração de não conseguir removê-lo a contento da
maneira convencional, Mariette resolveu por bem apelar ao auxílio da pólvora 100 . A limpeza
do caminho veio revelar um sarcófago de madeira inserido profundamente no solo e que
aparentemente protegia uma múmia humana. A parte superior do cofre havia sido esmagada
pelo desabamento antigo, mas o corpo, a despeito da ação da umidade, apresentava-se intacto.
O rosto estava coberto por uma máscara de ouro 101 e dois cordões desse metal davam a volta
ao pescoço suspendendo diversos amuletos de jaspe com o nome de Khaemwaset e uma coluna
papiriforme de feldspato verde 102 . Um elaborado peitoral em forma de falcão com as asas
estendidas, incrustado de lápis-lazúli, vidro e turquesa repousava sobre o peito 103 , e à volta do
corpo estavam depositados dezoito shabtis. Ao inspecionar o cadáver teve, pela primeira vez, a
surpresa de encontrar não os restos mortais de um indivíduo – que já parecia algo
extraordinário para uma sepultura de touros – mas uma massa odorífera de betume com
fragmentos ósseos 104 no meio da qual se misturavam jóias incrustadas de vidro, um grande
escaravelho de esteatita, outra pequena coluna de feldspato verde(?) 105 e cerca de vinte shabtis
de personagens da elite menfita.
Esses subterrâneos, como já foi comentado, estavam repletos de artefatos espalhados
pelo chão e sobre os quais Mariette caminhava quando se locomovia de um lado para o outro.
No entanto, ainda que diante de tamanha desordem, o francês percebeu que as estelas
localizavam-se somente na galeria, onde outrora preenchiam os muros, ao passo que outros
objetos tais como shabtis, vasos e escaravelhos encontravam-se dentro das câmaras funerárias
(Mariette 1882: p. 59). Dentre os objetos que nos interessam especialmente pela representação
de Ápis e que foram até aqui citados, estão as estelas, os shabtis taurocéfalos e as pinturas
parietais das sepulturas individuais da época de Horemheb e de Ramsés II (G).

100
Mariette 1882: p. 58.
101
Mariette 1882: pp.58, 146.
102
Desti op. cit, pp. 68-71; Mariette 1857: pr. 20; Mariette 1882: p. 58.
103
Desti ibid. p. 67; Mariette 1857: pr. 20; Mariette 1882: p. 58.
104
Lembrando que os achados similares das tumbas individuais citados mais acima ainda não haviam sido feitos
por Mariette.
105
Na verdade pode ser o pequeno amuleto de amazonita apresentado em Desti op. cit., p 95.

82
As estelas do Reinado Novo ilustram Ápis à maneira teriomórfica ou antropomórfico e
taurocéfalo em atitude de marcha. A única exceção o apresenta deitado, em face ao touro
Mnévis - o qual se encontra na mesma postura - em um monumento datado do ano 30 de
Ramsés II 106 . A partir do Terceiro Período Intermediário, além das maneiras já ensaiadas
durante o Reinado Novo, irão se juntar as representações do touro em galope e mumificado,
que como a imagem em atitude de marcha, pode exibir uma figura alada sobre o pescoço. Os
shabtis 107 , quando ilustram um Ápis, conservam um corpo humano mumiforme com as mãos
sobre o peito portando instrumentos agrícolas. A cabeça, que não nega sua identidade taurina,
aparece recoberta de uma peruca tripartite espessa. Por vezes, exibe à fronte o triângulo
invertido visto com maior frequência em bronzes e estelas tardias. As pinturas parietais, ainda
que delas tenhamos somente os registros deixados por Mariette, são um importante registro
para medir a inserção de Ápis na iconografia funerária. A primeira delas, datada do reinado de
Horemheb, compartilha algumas similaridades com os registros que veremos a partir do
Terceiro período Intermediário, quando as manchas da pelagem descrevem um padrão
característico nas cores branca e preta. A atitude do bovino é de marcha e os chifres são
configurados em “V”. No afresco do período de Ramsés II, sua apresentação é semelhante à de
Ptah, com um corpo humano mumificado sobre uma plataforma dentro de um santuário, mãos
à frente dele portando um cajado de pastor e um açoite nekhekh. A cabeça bovina com chifres
curtos em “V” é coberta por uma peruca e à fronte exibe uma uraeus. Os punhos estão ornados
de braceletes e o pescoço de um colar usekh.
Se até o momento a importância crescente de Ápis para o Reinado Novo é incontestável
pelos traços deixados nos subterrâneos da necrópole de Saqqara, o mesmo não pode ser dito
quanto aos vestígios deixados na superfície. Desse período, tudo que sobrou foram alguns
elementos arquitetônicos 108 de contextos incertos, e mesmo de construções posteriores
localizadas para além do recinto dos túmulos de Ápis, tais como o templo de Nectanebo II (30ª
dinastia) e o dromos que o ligava ao Serapeum, restaram pouco mais que suas fundações.
106
Na mesma, e logo abaixo dentro de um santuário, Ápis aparece em atitude de marcha (Malinine et alii. 1968:
pp. 3-5, pr. II, 4.)
107
Bovot 2003: pp. 25, 26; Desti 2004: pp. 96-97; Perdu, Rickal 1994: pp. 78-79; Stewart 1995: p. 40.
108
É possível que o tímpano de uma coluna da época de Ramsés II (Louvre N 431) tenha feito parte de um templo
que se situava sobre os subterrâneos ou de uma edícula como aquela citada por Mariette datada da época de
Amenhotep III. Fotos desse elemento arquitetônico podem ser vistos em Delange 2001: pp. 42-43; Desti op. cit, p.
64.

83
Todavia, é provável que tais monumentos tenham constituído um templo 109 outrora edificado
sobre o complexo funerário que complementava aquele que abrigava o touro vivo no recinto de
Ptah 110 , em Mênfis. Esse templo funerário deve ter sido o local de deposição de inúmeras
imagens votivas de bronze que, por seu número em constante crescimento, foram depositadas
em esconderijos ou “cachettes” sob o piso do dromos do qual falaremos mais adiante.
Ainda do período Raméssida e provenientes, grosso modo, da região menfita, há uma
série de monumentos que ilustram o deus e que reforçam a importância local que ele
despertava. De Mit Rahineh 111 provém uma estela em que Ápis, dentro de uma capela, aparece
no registro central, à esquerda e se dirigindo para os dois personagens ajoelhados, com um
disco entre os chifres em “V”, um manto sobre o dorso e uma uraeus k diante da fronte. A
estela do vizir (Pa)rahetep 112 datada do final do reinado de Ramsés II, por exemplo, apresenta
o deus com corpo humano mas taurocéfalo, vestindo um saiote plissado, com uma peruca à
cabeça, disco entre os chifres em crescente e uma uraeus diante da fronte com a cauda
pendendo na parte de trás. Na testa distinguem-se traços que constituem o vértice de um
triângulo de ponta cabeça, sua mão direita leva à frente do corpo um cajado misto, com parte
superior como o de um pastor e a inferior como um cetro was, e a esquerda, rente ao corpo,
porta um ankh. Dois pyramidions, um em Copenhagen 113 e outro em Heidelberg 114 , retratam
um touro em sua forma animal, mas com algumas diferenças no cenário em que estão
inseridos. No registro central da face meridional do primeiro, Ápis, identificado pela legenda
diante dele, aparece em atitude de marcha rumo à direita, com um manto com extremidades
arredondadas e chifres em “V”. Ele marcha em direção a Anúbis, que está deitado sobre um
santuário e voltado para o touro. No monumento da coleção alemã (Fig. 27), cuja origem é
incerta e não apresenta referências quanto ao ser ilustrado, vemos o bovino em atitude de
marcha nas faces I e IV, logo abaixo do registro com o disco solar atrás do horizonte l,
voltado, respectivamente, para a esquerda e para a direita. Nelas o animal ilustrado porta um
disco entre os chifres em crescente, mas somente na face IV está conservada uma flor de lótus
109
Algumas autobiografias raméssidas sugerem um templo de Ápis em Saqqara que foi objeto de grande atenção
de Khaemwaset (Devauchelle 2001: 79).
110
Tal como relata Estrabão em sua viagem ao Egito, 31-32 (Charvet, Yoyotte 1997: pp. 134- 137).
111
Berend, 1882: p. 52; Devauchelle 2001: p. 84.
112
Museu do Cairo JE 48845 (Devauchelle 2001: p. 81; Moursi 1981:321-329).
113
Devauchelle 2001: p. 83; Rammant-Peeters 1983: pp. 9-10, prs. IV-V.
114
Devauchelle ibidem; Rammant-Peeters 1983: pp. 16-17, pr. IX.

84
emergindo do chão, logo abaixo de seu focinho. Em segundo plano e ao lado dele há um
grande abanador 115 que servia igualmente como sombra k cujo significado na cena pode
aludir ao “sopro da vida” 116 que o touro respira 117 , sentido reforçado pela imagem da lótus
emergindo do solo, e à luz solar.
A parte superior direita do apoio dorsal de uma estátua de Khaemwaset 118 retrata Ápis
taurocéfalo e antropomórfico, que possivelmente estava repetida do lado oposto, de forma
espelhada. A cabeça apresenta chifres em “V” e sua mão direita, posicionada à frente do corpo,
ostenta um cetro was de onde parte um símbolo ankh, repetido na mão esquerda. Atrás dele
estão a barca de Sokar e a imagem de Osíris mumificado em pé, com a coroa branca do Alto
Egito e portando um cetro was. Uma representação semelhante pode ser observada em uma
coluna 119 proveniente de Saqqara, pertencente à coleção do Louvre (N 431) e que talvez
fizesse parte de um templo ao deus ou de alguma edícula das tumbas individuais.
Apesar da inegável conexão com a região menfita, indicada pelos faustosos funerais
que se desenrolavam no Serapeum como fruto do progressivo deslocamento do significado de
Ápis para o universo funerário, poucas são as menções feitas ao touro fora desse contexto, um
sinal de que, segundo Devauchelle (2001: pp. 50-51), Ápis desempenhava na teologia menfita
um papel marginal e pouco acentuado 120 . Quando presente, Ápis é submetido a uma função de
subordinação a Ptah, como indica uma passagem do papiro Sallier IV, datado de meados do
reinado de Ramsés II : “Ápis no domínio de Ptah” 121 . Uma passagem do Papiro Harris I,
datado do reinado de Ramsés III menciona Ápis como o “Ba augusto” de Ptah 122 . No mesmo
documento e mais à frente, o rei faz um discurso mencionando suas realizações em prol de
Ptah e seus domínios 123 , no qual dá um rápido destaque a Ápis como um touro à frente de um

115
Um relevo e uma estela provenientes de Heliópolis ilustram o touro Mnévis na mesma atitude e igualmente
com esse objeto em segundo plano (Berlev, Hodjash 1982: pp. 143, 145; Desroches-Noblecourt, Vercoutter 1981:
pp. 268-269).
116
Wilkinson 1996: pp. 178-179
117
ibidem: pp. 120-121.
118
Barbotin 2007: vol. 1, pp. 96-97; vol. 2, pp. 132-133
119
Delange 2001: pp. 42-43; Desti 2004: p. 64.
120
O autor menciona, por exemplo, que o nome de Ápis não aparece em nenhuma passagem da teologia Menfita
compilada no período de Shabaka (op. cit. p. 46).
121
Devauchelle 2001: pp. 44-45; Ragazzoli 2008: pp. 70-81.
122
Devauchelle op. cit., p. 46; Grandet 2005 v.1: p. 285, (44,9).
123
“Eu protegi o rebanho de Ápis, machos e fêmeas, que estava disperso entre os rebanhos de outros domínios.
Eu fiz que eles (=seus membros) ultrapassem em divindade, até o último, (os membros de) seus (= domínios)

85
rebanho que lhe pertence. Mas mesmo aqui, tanto Ápis, quanto seu rebanho e as terras nas
quais eles se encontram estão subordinadas ao supremo deus menfita.
Voltando à esfera funerária, a terceira e última fase conhecida do Serapeum
corresponde à deposição dos touros mumificados nos Grandes Subterrâneos, como foi assim
chamado por Mariette. Este foi o primeiro local de enterramento dos Ápis que o arqueólogo
francês descobriu 124 depois de uma ansiosa busca desde a alameda de esfinges que unia o
limite do vale ao templo de Nectanebo II e deste, por meio do dromos, ao recinto do Serapeum
propriamente dito. Sua construção se assemelha àquela dos Pequenos Subterrâneos, mas
apresenta algumas diferenças importantes. A primeira é o tamanho. Além de câmaras mais
amplas, sua extensão 125 é três vezes maior em virtude dos diversos sepultamentos que se
estenderam do reinado de Psamético I (26ª dinastia) ao final do período Ptolemaico 126 . Outra
diferença, é que a partir do reinado de Amasis 127 , os Ápis passaram a ser inumados em
gigantescos sarcófagos de pedra, depositados em seu local definitivo por meio de uma
sofisticada técnica desenvolvida no período saíta, que utilizava a areia para fazer descer esses
monumentos ricamente talhados e polidos sobre um nicho escavado no solo. O acesso a essa
estrutura se fazia, tal como no caso dos Pequenos Subterrâneos, por meio de uma trincheira a
céu aberto cujo acesso, ao contrário das tumbas individuais, era livre 128 . Uma outra
característica que difere os Pequenos dos Grandes Subterrâneos é o local de deposição das
estelas votivas. Se no primeiro esses artefatos cobriam as paredes dos corredores internos e as
entradas muradas das sepulturas propriamente ditas (Fig. 8), aqui somente as estelas reais
tinham esse privilégio na ocasião do enterro, quando o túmulo era lacrado. As demais, deixadas
por devotos, estavam dispostas sobre as paredes e chão da trincheira a céu aberto (Fig. 14) e
nas imediações das entradas dos subterrâneos, indicando uma mudança significativa nos
hábitos quanto ao acesso às tumbas do touro divinizado.

rebanhos. Eu alarguei os (lit.: seus) limites (de seus campos), (fixando) cada um (novamente) em seu local de
origem, enquanto outras pessoas se lhes tinham apropriado por seus campos. Seus marcos gravados com teu
nome foram restabelecidos e os decretos destinados a organizá-los sobre a terra foram promulgados em seu
favor.” Devauchelle op. cit., p. 46; Grandet ibidem, p. 289, (49,4).
124
Mariette 1882: pp. 44-56.
125
Aproximadamente de 250m (Mariette 1882: p. 48).
126
Devauchelle 2001: p. 20.
127
Mais especificamente do ano 23 de seu reinado (Charron, Farout 2007:. pp. 39-50).
128
Mariette 1882: p. 80.

86
Do momento de transição entre o Terceiro Período Intermediário e o Período Tardio,
que abrange o abandono dos Pequenos Subterrâneos para a utilização dos Grandes
Subterrâneos, encontramos fora do perímetro de Mênfis alguns elementos que indicam certa
popularidade de Ápis em seu papel de guia dos mortos. A cena 129 ilustra Ápis em atitude de
galope, por vezes com um manto sobre o dorso, carregando, com grande frequência, uma
múmia às costas (Figs. 40-46, 48 e 49). Essa imagem localizava-se na parte inferior e plana dos
esquifes, grosso modo, de cartonagem, a qual era fixada a estes com o objetivo de fechar o vão
que permitia a introdução da múmia. A atitude do touro, reminiscente das antigas corridas de
Ápis, associa-se ao trajeto do sol na abóbada celeste 130 , e sua representação nos pés do esquife
é complementada pela imagem solar usualmente ilustrada no topo da cabeça deste131 ,
conferindo ao invólucro da múmia não somente proteção, mas um vínculo com o movimento
do astro rei no além. Por vezes apresenta tanto o disco solar quanto a uraeus, mas exemplares
que ilustram somente um desses elementos ou nenhum também são conhecidos. Em alguns
casos, o animal tem no pescoço um colar menat Z 132 e na maioria das situações as manchas
que exibe no corpo nada têm em comum com aquelas vistas nas estelas do Serapeum 133 , apesar
disso, sua identidade é confirmada pelas legendas em hieróglifos. Embora esse motivo não
encontre precedentes que o situem no âmago das concepções religiosas, sabemos por
intermédio de fontes do período Ptolemaico 134 que Ápis, neste caso, representa Hórus portando
os restos mortais de seu pai Osíris 135 . Esta tradição é possivelmente resultante da soma de dois
conceitos, um mais antigo, referente à corrida de Ápis e que associava o touro ao rei em seu
papel de Hórus, e outra, mais recente, de Ápis em seu aspecto funerário integrado a Osíris.
Ainda que não trate do mesmo tema visto nos pés de sarcófagos, vale observar que um registro
129
Bickel 2004: pp. 116-118; Devauchelle 2001: pp. 47, nt. 238, 91-93; Kueny, Yoyotte 1979: pp. 100-104.
130
Sugerido não somente pela associação do disco aos chifres do touro, mas também pelo vínculo do animal com
obeliscos nesses mesmos artefatos (Bickel 2004: p. 118; Gabra 1928: p. 77, figs. 2, 3, 5, 8).
131
No próximo capítulo, onde apreciaremos essas particularidades mais a fundo, veremos que um hipocéfalo da
30ª dinastia registra uma cena paralela.
132
Tipo de colar também usado como instrumento musical associado à deusa Háthor e a seu filho Ihy e cuja
representação alude ao renascimento e fertilidade (Wilkinson 1996: pp. 172-173).
133
A variedade da distribuição das manchas é grande e em certos casos descrevem formas geométricas
improváveis de serem observadas na pelagem desses animais e têm uma função puramente estética. Ver por
exemplo o artefato n° 6681 do Museu Britânico in Bickel 2004: p. 117.
134
Por exemplo, nos registros do templo de Dendera e do papiro Jumilhac, fig. 51 (Cauville 1998: pp. 162-165,
Devauchelle 2001: pp. 103, 108-110; Vandier 1961a : p. 138; Vandier 1961b: pp. 105-123).
135
Uma representação semelhante datada da primeira dominação persa integra a decoração do templo de Hibis no
Oásis de Kharga.

87
de um sarcófago de Berlim 136 da 21ª dinastia apresenta uma cena em que o deus dos mortos
desempenha o ritual da festa Sed acompanhado de Ápis 137 diante de dois obeliscos e que
parece ilustrar um momento de transição do motivo da corrida.
Voltando à necrópole menfita, citamos a ampla coleção de bronzes 138 que foi
encontrada por Mariette sob o piso do dromos que ligava o templo de Nectanebo II ao recinto
do Serapeum e sob a via que partia deste em direção a Abusir. Essas cachettes de bronzes
devem sua existência ao grande número de imagens votivas depositadas no templo de Ápis e
que, por sua disputa por um espaço restrito, devem ter forçado os sacerdotes que cuidavam do
santuário a encontrar um outro lugar para depositá-las sem destruí-las, uma vez que
partilhavam, como a imagem sagrada do recinto, da mesma essência divina 139 . Os artefatos
encontrados exibem variedade em sua qualidade técnica, estilo e tamanho, mas o touro é, nos
casos de origem comprovada, representado de quatro formas: teriomórfico e antropomórfico e
taurocéfalo em atitude de marcha, em galope e deitado. Alguns objetos, que não
necessariamente ilustram o touro em sua integridade, parecem ter desempenhado uma função
ritualística por sua conformação em um cajado, ou em artigos como um contrapeso menat 140 . E
ainda que a decoração das estatuetas seja muito variável, nelas podemos ver um conjunto de
símbolos que difere das imagens das estelas, como a representação de duas imagens aladas
sobre o dorso ou símbolos solares no manto. Os bronzes de Ápis, em alguns casos, podem vir
associados a outras divindades e ofertantes, mas não foi encontrado nenhum em atitude de
galope nessa categoria. Ainda sobre esse tema, ao contrário das cenas encontradas em ataúdes,
nenhum deles exibe uma múmia às costas e o único elemento simbólico em relevo é a serpente
uraeus, usualmente descrita à frente do disco solar ou, em casos mais raros, sozinha entre os
chifres. É provável que um número desses artefatos estivesse associado a bases-trenós de

136
n° 119780.
137
Möller 1901: pp. 71-74; Niwiński 2000: p. 41
138
Ainda que o número de bronzes de Osíris, Ísis e da versão infantil de Hórus (Harpócrates) superem o número
de artefatos de Ápis, a quantidade estimada por Ziegler (1981: p. 41) de 94 para o touro, 474 para Osíris, 168 para
Ísis e 104 de Harpócrates é baseada nas poucas informações sobreviventes deixadas por Mariette e é certamente
muito inferior ao número original. Infelizmente poucos são os artefatos com origem comprovada ou com textos
gravados, e sua atribuição ao Serapeum baseia-se unicamente pelo estilo.
139
Entre os gregos havia a mesma prática de enterrar imagens sagradas ou oferendas em poços similares
chamados de favissae. Esta era a solução encontrada para “limpar” o templo do excesso de objetos sem se
desfazer completamente deles, uma vez que por terem compartilhado da atmosfera sacra do templo estavam
carregados dessa essência (Pomian 1984: p. 63).
140
Quaegebeur 1983: pp. 17-39.

88
madeira às quais se encaixavam, e que hoje estão ausentes por diversos motivos, tais como
deterioração ocasionada pelas condições de umidade do sítio, perda, ou pela dissociação de
uma da outra no momento de uma venda ou aquisição.
Vale dizer que a descoberta de bronzes de Ápis não ficou restrita ao perímetro do
Serapeum, mas estendeu-se à necrópole de animais na área norte de Saqqara 141 e
possivelmente para além dela 142 . Uma recente escavação no templo de ‘Ayn-Manâwir, no
Oásis de Kharga 143 , trouxe à luz dezenas de estatuetas divinas, entre as quais do touro Ápis 144 .
Como a maior parte dos bronzes de Ápis tem origem incerta, é possível que sua
proveniência se estendesse a outros sítios para além do perímetro da antiga Mênfis, vindo
reforçar sua popularidade nas cenas de ataúdes. Entretanto, no que concerne a essas estatuetas,
as informações de que dispomos atualmente não permitem uma tal especulação e preferimos
entender o caso dos achados do Oásis de Kharga como um caso isolado.
Tendo exposto os principais documentos sobre Ápis por um viés cronológico, iremos
no próximo capítulo nos aprofundar nas particularidades da fontes iconográficas dessa longa
periodização para, em seguida, estudarmos mais atenciosamente as especificidades simbólicas
que integraram as representações a partir do Reinado Novo nas diversas categorias da cultura
material.

141
Davis, Smith 2005: p.80, FCO 83, pr. XXXc FCO 83; p.80 FCO 84, pr. XXXc FCO 84; p. 80 FCO 85, pr.
XXXc FCO 85; p.81 FCO 86, pr. XXXb FCO 86; pp. 119-120 FCO 443, pr. LX FCO 443; p.122 FCO 458, pr.
LXIc FCO 458.
142
Alguns artefatos podem ter sido tirados de seu local original por saqueadores e guardados em esconderijos que
não estavam relacionados às necrópoles de animais diretamente, como é o caso dos bronzes encontrados na
entrada da pirâmide de Userkaf (El-Khouly 1978: pp. 36-37).
143
O mais meridional dos oásis, situado a mais de 175km a oeste da região de Luxor.
144
Wuttmann, Coulon, Gombert 2000: p. 168.

89
Capítulo 3

Estudo Analítico das Representações de Ápis

Do Período Arcaico ao Reinado Médio

Como tivemos a oportunidade de ver no capítulo anterior, esta ampla periodização


não nos legou muitas fontes que possam ser utilizadas com o intento de se reconstituir a
contento quais concepções e representações os egípcios faziam de Ápis nessa época. Como
veremos mais adiante no que concerne às imagens da capela vermelha de Hatshepsut, esse
touro no início da 18ª dinastia ainda não apresentava a série de símbolos característicos
mencionados por autores clássicos 1 em suas obras e o contexto de sua ilustração também é
diferente daquele que iremos encontrar em larga escala durante épocas tardias.
Até agora, as únicas fontes iconográficas correspondentes à periodização que se
estende do Período Arcaico até o Reinado Médio são cinco, e por representarem casos
isolados em uma ampla cronologia iremos apresentá-las em uma sequência, e não
classificadas pelo suporte material 2 . Entre elas há monumentos que levantam dúvidas
quanto à real identidade do que está representado, mas pelo motivo de poderem ilustrar
Ápis, resolvemos enumerá-los na seguinte sequência:

• O selo-cilindro e o ostracon encontrados na sepultura do Portador do Selo Real


Hemaka, em Saqqara, datados do reinado de Den (1ª dinastia);

1
Heródoto, Livro III, 28 (Legrand 1958-64: p. 28), Eliano, Livro XI, 10 (Díaz-Regañón Lopez 1984: p. 90),
Estrabão, Viagem ao Egito, 31 (Yoyotte, Charvet, Gompertz 1997: p. 135).
2
Aqui não consideraremos os ideogramas de touros nas inscrições hieroglíficas da Pedra de Palermo por não
apresentarem indícios específicos a Ápis, mas somente atributos genéricos de um touro conforme as
convenções da escrita hieroglífica.

90
• O relevo do templo do vale de Snefru, proveniente de Dashur;
• O relevo originário do templo solar de Abu Gurab, datado do reinado de
Niuserre (5ª dinastia);
• O relevo proveniente do templo funerário de Senwsret II, em el Lahun (12ª
dinastia);

Em nenhum desses casos a imagem de Ápis está livre de questionamentos seja por
sua singularidade ou por seu estado fragmentário. Primeiramente há a dificuldade de se
trabalhar com fontes diferentes em suportes materiais distintos: por exemplo, relevo (selo-
cilindro) x pintura (ostracon) 3 ; por outro lado, podemos ter fontes diferentes registradas
com técnicas semelhantes: relevo de um monumento arquitetônico x relevo de um selo-
cilindro. Outro fator que ameaça uma análise metodológica apropriada é sua datação: essas
fontes datam de períodos diversos e cada uma, à sua maneira, exibe um aspecto
selecionado de uma dada realidade. Para completar, o contexto arqueológico dos artefatos
compartilha da mesma importância quanto à sua análise, e o fato de os monumentos aqui
apresentados serem únicos e provirem de sítios de categorias distintas dificulta ainda mais
no juízo que procuramos fazer deles no panorama simbólico. Por utilizar fontes de outros
períodos para compensar a carência de épocas tão remotas, muitas obras recaem
frequentemente na falácia do anacronismo e, por não explicitarem a metodologia utilizada,
acabam por tolher o leitor desavisado da oportunidade de questionar a interpretação dos
dados utilizados. É o caso, por exemplo, da associação indiscriminada de Ápis ao deus
Ptah, que como já comentamos no capítulo anterior, só estará claramente relacionado a esse
boi a partir do Reinado Novo.
Faremos então uma consideração cautelosa sobre a iconografia de Ápis neste
período em que esse touro carece de mais documentos que lhe digam respeito.
Por terem a proveniência em comum, os dois primeiros itens da lista 4 (figs. 17 e 18;
prs. MONdiv 1-2), ainda que díspares em sua categoria de artefatos estabelecem entre si
uma relação naturalmente complementar por apresentarem dois personagens em comum,
ainda que em posturas diferentes: no selo, o touro desempenha uma corrida (para a

3
Mais adiante veremos, somente no caso das estelas votivas, o quanto essa particularidade levantou
problemas interpretativos.
4
Vandier 1988b: pp. 862-863.

91
esquerda) sem uma linha de base, enquanto no ostracon ele caminha para a direita sobre
uma linha bem definida. O primata, por sua vez, se encontra sentado erguendo uma tigela
para o rei, enquanto no fragmento lítico está com ambas as patas no chão 5 . No caso da
imagem esquerda do selo, o rei 6 está descrito em atitude de corrida atrás do touro,
ostentando a coroa do Baixo Egito, um cetro nekhekh u na mão esquerda junto ao peito,
e a outra, à frente dele e erguida 7 . Na outra cena, Den está na mesma atitude, mas com a
coroa do Alto Egito, e corre em direção à imagem do primata tendo à sua frente um objeto
difícil de se distinguir 8 . Atrás dele, em ambos os registros, está representado seu nome
dentro de um serekh sobreposto pelo falcão Hórus 9 . A razão pela qual o rei está sobre uma
linha de base e os outros dois personagens não, talvez se deva ao caráter selvagem destes,
que segundo os cânones egípcios, não poderiam compartilhar de um mesmo plano
ordenado. Mas esta explicação entraria em conflito com a imagem do ostracon, onde ao
menos o bovino aparece sobre uma linha reta.
O próximo ponto importante se refere à identidade do touro do selo, o qual
identificamos como Ápis. Ainda que da legenda que o denomina só reste o hieróglifo
correspondente à letra “p” # (Q3) de ¡p F#, podemos supor que tanto o contexto da
imagem, em que o animal e o rei correm juntos, quanto a menção de uma “corrida de Ápis”
no ano 10 do reinado de Den na Pedra de Palermo 10 , são indícios fortes de que o touro
representado no cilindro se refira ao mesmo personagem. A imagem do ostracon não exibe
qualquer identificação, mas pelos motivos explicitados acima, vamos supor que o bovino
representado seja o mesmo.
Por tratar-se de uma imagem em relevo escavado em pequenas dimensões e que,
por essa razão, não apresenta grandes detalhamentos além daqueles sugeridos pelos

5
Em virtude de uma fratura, a região que deveria conter uma linha de base foi perdida.
6
Friedman (1995: pp. 32-33) defende a idéia de que as imagens representadas são de duas estátuas do rei
desempenhando a festa Sed. Contudo, a argumentação da autora não explicita nada sobre a natureza dos
outros personagens ilustrados e é difícil de se conceber por qual razão um selo portaria imagens de estátuas e
não de seres animados. Por outro lado, por mais espertos que esses animais sejam, a imagem de um símio
sentado portando tranquilamente uma tigela carece de plausibilidade, e é provável que seja mais uma
recriação sobre uma atitude isolada do animal durante a festividade ou uma escultura sua do que uma
representação fiel de um gesto humano.
7
Como no registro diante do macaco, a parte do selo que ilustra a mão do rei está danificada e não permite
ver o que ele poderia estar segurando.
8
Que se assemelha a um cajado cruzado por uma maça.
9
Constituindo assim o título de Hórus do rei.
10
Wilkinson 1999: p. 281.

92
contornos, não há como saber por esse artefato, ou pela imagem resultante de sua
impressão, quaisquer particularidades no que concerne à pelagem ou à simbologia que
pudesse ser atribuída ao touro. Neste caso, temos que nos pautar exclusivamente pela
ilustração do ostracon, onde três pequenas manchas negras pontilham o dorso e a parte
anterior da coxa, e uma maior que cobre o pescoço e parte do peito. O olho parece ser
contornado por uma marca, mas a não intencionalidade do efeito não está de todo
descartada. Tal como na impressão do selo, os chifres são longos, mas exibem formas
menos regulares que este, cuja configuração lembra um “V” aberto. Na pintura, certos
detalhes como os cascos e a modelagem das pernas e do torso receberam uma atenção
privilegiada em relação à pequena imagem do selo e inclusive o focinho desenvolve sua
sinuosidade característica que não encontra paralelo no outro artefato. Em ambos os
registros o touro exibe boas proporções, mas no ostracon seu corpo é mais imponente pelo
tratamento da curvatura cervical.
O reinado de Snefru, primeiro rei da 4ª dinastia, não nos legou muito mais do que
escassos fragmentos de uma cena (pr. MONdiv 3) que representaria a cerimônia da corrida
de Ápis (Fakhry 1961: pp. 98-99, fig. 96; Oppenheim 2007: p. 215), e que pode estar
relacionada com a inscrição nos anais do Fragmento do Cairo. Embora nada tenha
sobrevivido da ilustração do touro, e muito pouco da do rei 11 , distingue-se uma coluna de
texto à direita que contém quase que a totalidade da descrição da cena, que diz (p)Hrr ¡(p),
“a corrida de Ápis.”
Após um prolongado silêncio da documentação iconográfica, voltamos a encontrar
uma imagem de Ápis datada da 5ª dinastia e originária da base do gigantesco obelisco do
templo solar de Niuserre 12 , em Abu Gurab (fig. 20; pr. MONdiv 4). Trata-se de um
fragmento de baixo-relevo executado sobre pedra calcária e que situa o touro em meio à
festividade que comemora o jubileu real, a festa Sed (Vandier 1949: pp. 233-237). De Ápis
só restou parte da cabeça, que exibe chifres ondulados e longos projetados para frente e
acima dela, dois fios de bigode (?) que acompanham o perfil do focinho, indicado com uma
das narinas e com a forma que lhe é peculiar, um olho arredondado uma linha que define a
modelagem da face. Ele se encontra no interior de uma capela ou pavilhão construído

11
Dele visualiza-se somente parte da mão direita portando o estojo mks e uma pequena porção da decoração
frontal do saiote (Fakhry 1961: p. 99, fig. 96).
12
Bissing 1928: pp. 28-29, pr. 15, n° 251.

93
Fig. 17 Ostracon
encontrado na sepultura de Fig. 18 Impressão do selo-cilindro
Hemaka, Saqqara, 1ª proveniente da tumba de Hemaka, Saqqara,
dinastia (Vandier 1988b: p. 1ª dinastia (Vandier 1988b: p. 862, fig. 574).
Fig. 16 Menção à primeira 862, fig. 574).
corrida de Ápis no reinado
de Aha (Simpson 1957: p.
140).

Fig. 19 Registro do
Fragmento do Cairo com a
menção da corrida de Ápis
no ano 4 de Snefru
(Friedman 1995: p. 31).
Fig. 20 Desenho do relevo encontrado na base do obelisco do templo
solar de Niuserre, em Abu Gurab (Von Bissing 1928: pp. 28-29, pr. 15,
n° 251.)
com feixes de junco, do qual só restou a parte da frente. Diante do edifício, na vertical, há a
legenda “sair pela porta oriental” (Devauchelle 2001: pp. 65-66; Bissing 1928: p. 29)
seguida da representação do mestre de cerimônias Mf, portando um cajado de pastor o na
mão direita e um cetro sekhem r na esquerda e de outro personagem com peruca longa,
uma faixa cruzando o peito e um saiote diferenciado com cintura elevada. A identificação
do touro como Ápis se faz por outro fragmento do relevo que contém seu nome 1 . A cena
nos chama atenção por dois motivos: o primeiro é o contexto em que Ápis foi descrito. Até
aqui, tudo o que era mostrado era o touro em sua plena atividade ao lado do monarca,
sintetizando assim sua função principal na cerimônia. Nesta imagem, o momento
representado é aquele que possivelmente antecede ou sucede a cerimônia da “corrida”,
quando seu ato de “sair pela porta do oeste” tem uma significância solar 2 que será
complementado pelo circuito em torno dos marcos do Alto e do Baixo Egito que
caracterizam a festa Sed e simbolizam o eixo meridiano-setentrional do país. A outra
peculiaridade é a forma como esse touro foi caracterizado, que escapa à descrição
convencional do touro para o Reinado Antigo e até mesmo antes. Ainda que dele só reste
parte da cabeça, é particularmente interessante a forma como seus chifres foram descritos,
3
quando o usual nas cenas é fazê-los em forma de lira P , crescente " ou em “V” D .
Notam-se com a mesma clareza as grandes dimensões dos cornos que, talvez, fossem na
época um diferencial importante em relação aos outros bovinos do rebanho. Algumas
passagens dos Textos das Pirâmides salientam as qualidades desse apêndice craniano
bovino:

(...) “Unas está fora de seu trono, o mais distante dos tronos, (como) aquele
que está diante do deus, com a cabeça endireitada enfeitada com um pontiagudo
e poderoso chifre como aquele que carrega uma faca afiada e cortadora de

1
Bissing 1928: pr. 15, n° 255.
2
E por esta razão a cena estaria disposta na base do grande obelisco do templo. Somada a este sentido está a
identificação do deus solar com o simbolismo do touro, um ícone da potência masculina fecundadora nos
Textos das Pirâmides (Allen 2005: p. 427)
3
Em alguns casos, os bovinos podem apresentar chifres distorcidos, tal como ocorre na natureza, mas as
cenas nas quais eles estão inseridos normalmente os retrata em meio a um rebanho com a nítida intenção de
quebrar a uniformidade do registro e torná-lo mais verossímil à diversidade animal. Já no caso de Ápis, ele
está propositadamente isolado e seus chifres não apresentam qualquer deformidade. Comparar, por exemplo,
com algumas cenas dos Reinados Antigo, Médio e Novo (Davies 1900: pr. 21; Davies et al. 1984: pr. 6;
Parkinson, 2008: pp. 102-103;Vandier 1969: pp. 48, 50, 55, 83, 110,204, 211,217, 227, 267, 272, 277).

95
gargantas, (um chifre) de uma cabeça de touro que desfaz contendas e faz
aqueles na escuridão tremer, um poderoso chifre que está à frente do grande
deus.” 4 (...)

“Unas é um touro com luz solar no meio de seus olhos: a boca de Unas é
sonora com seu veemente estrondo, a cabeça de Unas tem os chifres de Hórus, o
senhor do Vale do Nilo.” 5 (...)

Diante de passagens dos Textos das Pirâmides como as acima citadas, entre outros,
podemos perceber o valor atribuído a esses elementos do corpo bovino como símbolos de
uma potência superior e amedrontadora. Se por um lado o touro estava associado à
fertilidade, por outro também encarnava forças sobrenaturais que o faraó deveria absorver
para manter a ordem (maat) sobre o caos (isfet). É por essa razão que desde o período pré-
dinástico tardio a imagem do monarca pode ser substituída pela do touro, tal como
testemunham as paletas dos touros e de Narmer. Nesta última, em especial, o animal (rei)
avança com a cabeça reclinada sobre as muralhas de uma cidade fortificada D" de
maneira a rompê-las e legitimar sua posse. Os chifres, como no verbo wp “abrir” P,
representariam, desta forma, uma expressão metonímica da simbologia do touro como um
animal associado à liderança. No caso da cena de Abu Gurab, um relevo elaboradamente
concebido e esculpido, tal detalhe sobre a cabeça de Ápis não seria mero acidente ou fruto
de convenção, caso contrário também estaria modelado de acordo com as formas já
canonizadas de uma lira, de um crescente ou de um “V”. Por alguma razão que não é
explicitada nos textos, Ápis é aqui caracterizado pela modelagem e tamanho de seus
cornos, e esta pode ter sido uma qualidade apreciada em sua identidade durante o Reinado
Antigo e, talvez, em períodos mais distantes 6 . Não podemos emitir, no entanto, qualquer
opinião no que se refere ao padrão de manchas corporais, uma vez que esse relevo da 5ª

4
Pirâmide de Unas, antecâmara, Recitação 162 (Allen 2005: p. 42).
5
Pirâmide de Unas, corredor, Recitação 224 (ibidem, p. 61).
6
Ainda que não conformados da mesma maneira, os cornos de Ápis no selo e ostracon de Hemaka estão
igualmente bem destacados.

96
dinastia não sobreviveu íntegro e não tivemos acesso à fotografia dele para avaliar se a
parte remanescente apresenta traços de pigmentação.

* * *

O Primeiro Período Intermediário, talvez por caracterizar um período de


desintegração nacional e pela consequente diminuição de vestígios arqueológicos não
fornece muitas informações acerca de Ápis. É possível que em virtude do período político
caótico - ainda que os governos locais tenham almejado ostentar o poder real dos tempos
do Antigo Reinado dentro dos limites de suas possibilidades – não tenha havido touros
Ápis que desempenhassem a corrida ao lado de um governante. Entretanto, justamente
porque ele parecia ser um elemento importante no cerimonial que conferia legitimação ao
monarca não é improvável que cada localidade tivesse “seu Ápis” e que a casualidade não
nos tenha premiado com quaisquer elementos comprovadores desta hipótese. Fica então um
hiato em nossa cronologia no que tange à ligação desse bovino com o rei. Contudo, uma
única menção, datada do fim da 10ª dinastia e registrada na tumba de Ankhtifi em Mo‘alla
o identifica a Ápis em sua condição de “proprietário de vacas”, uma alusão ao papel desse
touro como encarnação da potência masculina fecundadora de um harém exclusivo.

* * *

Com o Reinado Médio voltam as menções a Ápis, mas essa época não deixou
quaisquer registros iconográficos que o ilustrem com certeza. A única imagem que poderia
representá-lo, pertencente à coleção do Metropolitan Museum of Art e proveniente do
complexo funerário da pirâmide de Senwsret II (Oppenheim 2007: 207-218; Hayes 1953:
p.200), em Lahun, mostra uma procissão de deuses do Baixo Egito (fig. 21; pr. MONdiv 6)
na qual um personagem antropomórfico e taurocéfalo é seguido pelo deus Sopdu, do Delta

97
Fig. 21 Três divindades em um relevo originário do templo da pirâmide de Senusret I em Lahun, 12ª dinastia. Foto de Anna
Kellen, The Photo Studio, Metropolitan Museum of Art (Opemheim 2007: pp. 210).

Fig. 22 Cena de combate de touros da tumba de Senbi, filho de Ukhhotep, em Meir, 12ª dinastia. Galán 1993: pp. 44.
oriental e com tez amarela, e por uma divindade criocéfala, talvez identificada com o
carneiro de Mendes (Hayes 1953: p. 200). Embora Hayes afirme a identidade do deus
como Ápis, tanto a ausência de legendas que o confirmem como tal quanto pela possível
identificação com outras deidades 1 impedem que o consideremos em nossa seriação com o
mesmo peso da documentação anteriormente citada. Se a sua identidade fosse de fato
confirmada, esta seria a primeira imagem conhecida em que Ápis estaria configurado de
maneira antropomórfica.
Ainda que, como dissemos, não sejam conhecidas representações de Ápis do
Reinado Médio, uma cena de tauromaquia na tumba de Senbi 2 (fig. 22; pr. MONdiv 5),
filho de Ukhhotep, em Meir, datada do reinado de Amenemhat I requer uma análise
atenciosa. O tema do combate de touros ganhou popularidade no repertório iconográfico
dos hipogeus do Alto Egito durante essa época 3 , mas não foi propriamente ele que chamou
nossa atenção, mas a identificação de um dos touros a Ápis. Este, à direita, encara seu
oponente identificado por sua aparência com a legenda “o manchado rival”. Entre eles,
dois homens com bastões têm sua ação descrita acima de suas cabeças: “separando
touros”. Sobre o animal de pelagem uniforme, figura o texto que lhe é referente: “touro
vitorioso semelhante a um Ápis, amamentado por Hesat”.
Uma primeira característica interessante é o contexto da associação a Ápis. Não se
trata de uma cena agrícola ou de algum desfile, mas de uma disputa entre touros. Outra
peculiaridade é o local em que ela foi realizada, que não é um monumento da realeza, mas
um registro em uma tumba privada. Já vimos que Ankhtifi em sua sepultura se equipara a
esse touro em sua condição de “proprietário de vacas”, mas nada relacionado ao contexto
da tauromaquia. No entanto, apesar de distintos, esses dois registros já apresentam uma
condição nova: são os primeiros túmulos privados que fazem menção a Ápis de uma
maneira distinta daquela do Reinado Antigo, quando o bovino estava vinculado a um título

1
Por exemplo Mnévis, o touro de Montu ou mesmo divindades obscuras como Tjaisepef (Oppenheim 2007:
p. 215).
2
Devauchelle ibidem, p. 63; Galán 1993: 44; Vandier 1969: p. 204; Yoyotte in Yoyotte et alii. 1997: p. 136,
n. 322.
3
Alguns exemplos de cenas de tauromaquia do Reinado Médio podem ser encontrados nas tumbas de
Khnumhotep II e III, Khety, Amenemhat e Bakti em Beni Hassan, de Djehutihotep, em el Bersheh, de
Ukhhotep, filho de Senbi em Meir, de Khunes, em Assuã e de Sarenput I, em Elefantina (Galán 1993: pp. 42-
47; Kamrin 1999: p. 101; Vandier 1969).

99
honorífico como “bastão de Ápis” 4 ou “Guardião do touro Ápis” 5 , ou a um evento da
realeza 6 .
No caso especial da cena de Senbi, Ápis é associado a um touro com comprimento
ligeiramente maior que o de seu oponente, uma característica que pode não ter sido
intencional. Os chifres também apresentam uma pequena diferença de tamanho, mas seu
porte vigoroso não se sobrepõe ao do outro, uma vez que ambos exibem corpos com
membros definidos e imponentes. No entanto, o sexo do animal identificado a Ápis é bem
mais destacado e sua pelagem homogênea causa a impressão de um porte mais avantajado
e viril em relação àquele com manchas espalhadas pelo corpo. Ainda assim, na cena é este
que tem a atitude de ataque mais bem definida, uma vez que o touro da direita é ambíguo
quanto a sua caracterização de galope ou de espera pela vinda do rival. Seja como for, o
registro o define como “touro vitorioso” e “semelhante a Ápis”, conferindo-lhe uma
qualificação a mais em relação ao outro, conhecido simplesmente como “o manchado
rival”. No que concerne à caracterização de Ápis propriamente dito, não podemos concluir
detalhes sobre sua apresentação física, primeiro porque o animal não é Ápis, segundo
porque o texto que explica a cena não especifica essa particularidade. O único elemento ao
qual podemos nos ater é sua supremacia no combate. Por esse contexto, parece pouco
plausível que Ápis fosse concebido até essa época como um animal dócil que era guardado
no recinto de Ptah, ao qual, como já tivemos a oportunidade de comentar, não há quaisquer
indícios de que estivesse vinculado antes do Reinado Novo 7 . A cena o distingue como um
animal no mínimo semi-selvagem que suscitava não somente a fertilidade, mas também o
aspecto da liderança que Hórus encarnava e que era festejado na cerimônia da “corrida”. É
possível que esta qualidade que passa silenciosa nos textos religiosos venha por fim se
manifestar durante o Período Tardio, quando Ápis encarna Hórus como portador do corpo
de seu pai Osíris em imagens de ataúdes. A cena de tauromaquia poderia ser uma
adaptação metafórica do tema da corrida como símbolo de posse sobre o território pelo
touro vencedor, no caso, Ápis, e ao qual se vinculava o proprietário do túmulo, Senbi 8 .

4
Devauchelle (2001: p. 66).
5
Arnold, Grzymski, Ziegler 1999: pp. 229-231.
6
Devauchelle 2001: pp. 66; Roccati 1982: pp. 91-93.
7
Devauchelle 2001: pp. 134-136.
8
Lembremos da associação que Ankhtifi faz de si próprio com Ápis como “proprietário de vacas”.

100
O Reinado Novo

Os primeiros reinados desta nova era, tal como a época que a precedeu, o Segundo
Período Intermediário, não nos deixaram quaisquer informações quanto a Ápis, seja textual
ou iconográfica, e precisamos aguardar até a época de Hatshepsut para encontrar novas
imagens que lhe revivam a memória.
As cenas mais importantes desse reinado e que dialogam entre si por estarem inseridas em
um mesmo monumento são aquelas que se encontram na capela de granito também
chamada de “capela vermelha”, no recinto do templo de Karnak 9 (figs. 23, 24; prs.
MONdiv 7-8). A localização das cenas, nas faces norte e sul do monumento, estão
intimamente relacionadas com a orientação dos pontos cardeais simbolizados pelas coroas
que Hatshepsut usa em cada registro: a do Alto Egito para o sul e a do Baixo Egito para o
norte. Ela, à maneira de seus antepassados ao celebrar a festa Sed e como Den no selo-
cilindro encontrado na tumba de Hemaka, está caracterizada de forma masculina com um
saiote shendyt b , correndo portando um mks 10 junto ao peito e um flagelo nekhekh õ na
mão posicionada à frente do corpo. Em segundo plano, atrás de sua perna frontal distingue-
se Ápis galopando no mesmo sentido que ela e em direção à capela de calcita de
Amenhotep I, onde repousa a barca sagrada com a imagem de Amon. A legenda descreve a
atitude do touro: pHrr ¡p, “a corrida de Ápis”. Acima dela, uma coluna vertical especifica
o local da ação “dar os campos quatro vezes” “d(i) sxt sp 4” ( Devauchelle 2001, p. 57), e
atrás de Hatshepsut estão ilustrados os três marcos que identificam o pátio da festa Sed. O
número de voltas nesse campo deve estar relacionado aos pontos cardeais, dando a
dimensão do território sacralizado sob o domínio faraônico: o Alto e o Baixo Egito,
naturalmente conectados pelo eixo sul-norte do Nilo, e o eixo do trânsito solar. Lembremos
que a cena de Niuserre no Reinado Antigo já sugeria a saída de Ápis de um recinto pela
porta oriental e aqui, talvez por falta de espaço em meio a tantos registros a serem descritos,

9
Burgos, Larché 2006: pp. 63, 110.
10
Um tipo de estojo para documentos (Faulkner: 1996: p. 120) que continha o jmjt-pr, um atestado com fins
legais que dava autoridade para a transferência de coisas e propriedades (Friedman 1995: p. 24).

101
Figs. 23 e 24 Hatshepsut desempenhando a corrida ao lado de Ápis portando as coroas do Baixo e Alto Egito,
respectivamente à esquerda e direita (Burgos, Larché 2006: pp. 63, 110).

Fig. 25 Cena do rei correndo ao lado de Ápis no templo de


Fig. 26 Corrida de Ápis com o rei, templo de Kom Dendera (Cauville 1998: pr. XLV).
Ombo (Gutbub 1995: p. 240).
tenha-se optado pela caracterização mais explícita do cerimonial com Ápis, e esse sentido
da abrangência dos quatro cantos geográficos estivesse expressa dessa forma.
O touro, em ambos os registros, não apresenta quaisquer particularidades simbólicas
que possam ser identificadas pelo relevo, e se existiam, estavam expressas por meio de
pintura. Justamente porque os pigmentos estão completamente apagados, não é possível
constatar essa característica ou sequer a cor da pelagem do animal. Tudo o que temos é a
descrição de um touro identificado como Ápis, em atitude de galope, com um corpo esbelto
bem modelado e chifres em “V” não tão longos quanto as imagens precedentes. As pernas
são esguias, os cascos pequenos e a cauda definida por uma linha recurva que se avoluma
pouco na extremidade. O sexo está indicado, mas sem excessos. Em síntese, um touro com
um porte bem diferenciado daquele da capela de Senbi em Meir, ainda que este não
representasse propriamente um Ápis. Mas dada a modelagem do corpo, que lhe conferiu
mais graça do que os aspectos de ferocidade e força, é possível que o registro da capela de
Hatshepsut testemunhe uma evolução na representação e na forma como Ápis passou a ser
visto, diferenciando-o de animais mais selvagens. Esta característica pode ser um indicativo
do longo processo de domesticação a que os antepassados dos Ápis formam submetidos,
resultando em certas alterações em sua constituição física. Em alguns rebanhos que
passaram pela domesticação observou-se, por exemplo, o processo de diminuição dos
chifres e é possível que o mesmo tenha ocorrido com os do Egito e, consequentemente, com
Ápis (Brewer, Redford, Redford s.d..: p. 84). Seja como for, é certo que a maneira como
esse touro será representado daqui por diante, grosso modo, não irá salientar mais os chifres
de maneira tão categórica quanto vimos no relevo de Abu Gurab da época de Niuserre ou
mesmo no ostracon de Hemaka. Pelo que as fontes sugerem, estamos diante de um processo
de docilização e transformação na identidade de Ápis.
Ainda da época de Hatshepsut, temos indícios de outra representação de Ápis à
maneira antropomórfica e taurocéfala na capela de Háthor no templo funerário de Deir el
Bahari 1 (pr. MONdiv 9). A cena figurava Hatshepsut como faraó sentada em um trono
cúbico, com a mão direita cerrada sobre o colo portando um ankh j, e a outra estendida à
sua frente e sendo lambida pela deusa Háthor, figurada como uma vaca (Desroches

1
Baines 2001: p. 132; Barguet 2008: p. 174, nt. 2; Desroches Noblecourt 2002: p.321; Devauchelle 2001: pp.
64-65; Naville 1904, pr. 94R.

103
Noblecourt 2002: p.321; Naville 1904: pr. 94R). Atrás desta, uma figura divina masculina
que porta um cetro was (?) foi completamente cinzelada, dela restando somente os contornos
e vestígios pouco definidos de uma peruca sobre a cabeça. Todavia, pelo espaço utilizado,
nota-se que também aqui, caso seja mesmo uma divindade taurocéfala, não se deu um
grande destaque para as dimensões dos chifres. A coluna de texto logo acima diz: “Palavras
a serem ditas por Tjen(?)-Ápis (ou por Tjen de Ápis), o touro que inseminou 2 belas vacas” 3
Dd-mdw in §n ¡pw 4 kA sTi Hr nfrwt. A passagem, de difícil interpretação e sem paralelos
conhecidos 5 , sugere uma associação entre o deus do leite Tjen a Ápis e, segundo alguns
autores, não seria outra coisa que outro nome para este 6 . Ainda que pouco clara quanto essa
particularidade, a cena parece evocar uma ligação de Ápis com o leite, já mencionada no
capítulo anterior, presente nos Textos dos Sarcófagos 7 , e indiretamente, na tumba de Senbi,
e no Livro dos Mortos 8 .
As próximas referências a Ápis datadas da 18ª dinastia trazem uma nova
contextualização para sua menção e representação, fenômeno que irá se desenvolver nas
dinastias seguintes e adquirir um apelo popular. Trata-se do vínculo adquirido com o deus
dos mortos Osíris, ao qual também estavam associados os conceitos de fertilidade e
renascimento. Além disso, fica clara a sua associação ao espaço sagrado de Mênfis, cidade
na qual ficaria confinado dentro do recinto do Templo de Ptah, divindade patrona do
povoamento e que estendia a esse touro sagrado sua influência. O deus solar, por
compartilhar predicados de natureza similar, também assume um papel de grande
importância na nova caracterização de Ápis, que a partir de então passa 9 a ser inumado na
necrópole de Saqqara.

2
Devauchelle (op. cit., p. 65) traduz como saillit (esguichou, jorrou); Faulkner (1996: p. 255) traduz a
palavra sti como “impregnar”, ao passo que Erman e Grapow (1971 v.4: p. 347) dão ao termo kA sti Hr o
sentido de semear/copular com uma fêmea.
3
“Vacas belas de aparência” (Devauchelle 2001: p. 65)
4
Erman e Grapow (1971 v.5: p. 372) dão a §n a atribuição do nome de uma divindade taurina. Entretanto, a
passagem destacada pelos autores inclui o nome de Ápis, tal como em nosso excerto, mas sem dela discerní-
lo.
5
Devauchelle ibidem, p. 65.
6
J.-L. Simonet 1994: pp. 169-171 apud Devauchelle 2001: p. 65. Barguet (2008: p.174, nt. 2) parece
concordar com essa idéia ao traduzir essa passagem como “Tjeni, o Ápis touro fecundador”, sugerindo assim
que Tjen/Tjeni seria um aspecto de Ápis.
7
Barguet 1986: p. 168
8
Barguet 2003: p. 249; Devauchelle 2001: p. 62
9
Esse é o limite de nossos atuais conhecimentos sobre os enterramentos de Ápis e que se fundamenta ainda
nas informações passadas por Mariette. O perímetro do Serapeum necessita ser explorado com maior atenção

104
A primeira sepultura de Ápis data do reinado de Amenhotep III e era constituída,
como outras que a sucederam até parte do reinado de Ramsés II 10 (19ª dinastia), de uma
câmara funerária subterrânea, cujo acesso se fazia por meio de um corredor descendente e
sobre a qual estava erguida uma edícula ornada de baixos-relevos e incrustada de estelas em
sua base (fig. 11). Infelizmente o esquema fornecido por Mariette traz muitas dúvidas
quanto à real aparência do monumento 11 , e a única cena que representaria Amenhotep III e
seu filho Djehutmés ofertando incenso a Ápis não foi incluída em sua publicação 12 . Deste
reinado, ficamos então com uma lacuna documental no que concerne à forma como Ápis era
representado, mas sabemos ao menos que este já adquirira um status diferenciado que lhe
propiciava funerais faustosos no sítio destinado a ele e onde se desenvolveria o Serapeum.
Sabemos também, graças às inscrições descobertas, a respeito de sua sincretização com
Osíris, deus da necrópole, e sua subordinação à Ptah, o patrono de Mênfis: Wsir ¡p wHm anx
PtH “Osíris-Ápis, arauto vivo de Ptah” 13 .
As próximas fontes - provenientes da sepultura individual B - não fornecem uma
datação precisa e sua elaboração é atribuída ao período que abrange os reinados de
Amenhotep III e Tutankhamon. Estas consistem em três estelas 14 de calcário (prs. SEest 1-
3) em que o touro aparece claramente retratado e associado a Osíris 15 (Malinine et alii.
1968: pr. I, nos. 1, 2 e 3). Algumas características em comum estão ilustradas: nas três, Ápis
está em atitude de marcha sobre uma base elevada, e duas delas 16 (prs. SEest 2, 3) o
mostram voltado para a direita. Seu físico suscita virilidade, os chifres são modelados em

de modo a esclarecer tanto a existência de sepulturas mais antigas quanto daquelas que tenham vindo após o
Período Ptolemaico.
10
Mariette 1882: p. 117.
11
As linhas arquitetônicas fogem aos padrões estilísticos da época, que não incluíam colunas expostas e
posicionadas nas esquinas.
12
Mariette 1882: p. 124.
13
Mariette 1857: pr. I.
14
Estela é uma prancha feita de pedra ou madeira contendo textos e enfeitada com imagens que podia estar
inserida em um muro ou fixada ao solo. Grosso modo, esses monumentos são formados por ângulos retos na
base e seu topo é recurvo, mas existem aquelas, como no Reinado Antigo, que eram retangulares, ou com
elementos sincréticos, como no Período Ptolemaico. Estão classificadas em diversas categorias, podendo
servir para fins funerários, como meio de expressão para um decreto real e mesmo como marcos limítrofes
(Posener, Sauneron, Yoyotte 1992: pp. 275-276; Shaw, Nicholson 1995: pp. 278-279). Aqui estudaremos
estelas votivas funerárias ofertadas pela realeza ou por devotos de várias classes sociais.
15
Em duas estelas (prs. SEest 2-3), Ápis marcha em direção a Osíris, enquanto em outra (pr. SEest 1) ele está
situado no registro inferior, sendo adorado por um personagem de cabeça raspada e vestido de um saiote
longo.
16
Este é o direcionamento que se tornará convencional na maior parte das estelas, onde o touro, quando em
atitude de marcha, exibe as pernas esquerdas avançadas em relação às da direita.

105
crescente e o único elemento adicionado ao corpo é um manto retangular. A modelagem
sintética da musculatura é feita com traços elegantes e o sexo indicado sem exageros. A
cabeça, como é de praxe na iconografia egípcia, exibe dimensões modestas para o volume
do corpo, mas sem pecar pela desarmonia, e o focinho é indicado por um breve
prolongamento modelado com esmero. Esses artefatos são decorados por meio de linhas
incisas nítidas e as imagens eram outrora policromadas.
Ainda que em um número bastante restrito, esses objetos apontam para o início de
uma importância crescente na devoção popular que Ápis irá conquistar entre os habitantes
de Mênfis e, talvez, de mais além, notabilidade esta que, associada ao culto a outros animais
sagrados, irá promover um expressivo povoamento 17 nas proximidades do Serapeum e o seu
meio fundamental de sustento por meio da produção e venda de artefatos votivos
incentivados por essa próspera “indústria da morte”.
Apesar de haver descoberto a sepultura individual de um Ápis do reinado de
Tutankhamon (identificada com a letra “C”), esta não forneceu quaisquer elementos
materiais que contivessem uma única ilustração do touro sagrado, que só será encontrada em
um afresco da Sepultura Individual “D” datada do reinado de Horemheb e da qual Mariette
nos transmitiu uma ilustração copiada por ele (Desti 2004: p. 53; Mariette 1857: pr. 3,
primeira imagem; Mariette 1882: pp. 126-128). A cena (pr. SEdiv 1) é enquadrada por dois
cetros wAs p nas laterais, um símbolo para o céu R (pt) acima e por uma base retangular
longa decorada internamente por um quadrilátero com uma linha no centro. De costas para
os cetros que sustentam os céus, voltados para o touro sagrado e em duplas, encontram-se os
quatro filhos de Hórus em pé, vestidos de saiotes curtos, coletes com alças sobre os ombros
e perucas tripartites espessas. Da esquerda para a direita: Qebehsenuf, Duamutef, Imseti e
Hapy. Ao centro, sobre uma base retangular branca de altura média e voltado para a direita
destaca-se Ápis em sua apresentação teriomórfica, com a parte inferior do corpo branca e a
superior coberta de manchas negras em áreas específicas e interligadas: uma que cobre parte
da coxa, ancas e cauda, uma semicircular sobre o dorso e outra que domina toda a região do
pescoço e cabeça. Na parte mediana inferior do pescoço se destaca um crescente branco e
uma estreita linha branca pode ser vista na base do corno esquerdo, mas cuja associação ao

17
Ray (1972: pp. 699-704) nos fornece um panorama das atividades exercidas por aqueles que viviam das
oportunidades geradas por esse importante centro religioso que atraiu pessoas de várias origens até durante o
Período Helenístico.

106
triângulo encontrado em fontes posteriores é desmentida pelo autor (Mariette 1882: p. 128).
Um manto retangular vermelho cobre o dorso, mas é deixado propositalmente
“transparente” próximo à linha dorsal, de forma a exibir uma das manchas que caracterizam
a pelagem do animal. Os chifres são relativamente grandes, pontiagudos e em “V”. Diante
dele há uma mesa de oferendas abundantemente guarnecida.
A caracterização do touro é semelhante àquela que iremos ver em estelas a partir do
Terceiro Período Intermediário e é possível que a descrição dada por Mariette tenha
fundamento. Vale lembrar, no entanto, que essa sepultura foi descoberta por ele após a
exploração dos Pequenos e os Grandes Subterrâneos, que estavam repletos de estelas em que
Ápis exibia manchas dispostas dessa forma e que, de alguma forma, podem ter condicionado
seu olhar ao interpretar a cena da época de Horemheb de cujas condições de conservação
não temos referência. Como não temos nenhuma fotografia dela, não há como contrastar a
opinião do arqueólogo francês com um testemunho mais fidedigno, e por isso temos que
permanecer cautelosos quanto a estas informações que ele nos transmite. Este cuidado se
baseia também no fato de que em estelas posteriores da 19ª dinastia não percebemos tais
características, talvez porque essas marcas fossem expressas unicamente por pigmento –
hoje completamente apagado - e não por linhas gravadas. Por esta delicada situação é difícil
conceber com clareza qual era a concepção simbólica que se fazia da distribuição das cores
da pelagem de Ápis durante a 18ª e a 19ª dinastia e, com o cuidado de não se cometermos
anacronismos, preferimos considerar o registro de Mariette com certa cautela por sua
singularidade.
Após dois jazigos carentes de fontes iconográficas sobre Ápis, um contemporâneo ao
anteriormente citado e outro do reinado de Seti I, da 19ª dinastia, voltamos a encontrar
documentos importantes para nosso estudo a partir do ano 30 de Ramsés II. Deste reinado
provêm as já conhecidas estelas votivas e alguns elementos arquitetônicos ou da estatuária
encontrados no Serapeum e que ilustram, com mais ou menos detalhes, as versões
teriomórfica e antropomórfica-taurocéfala de Ápis (prs. SEdiv 3-4). Tanto nas estelas 18
quanto em outros monumentos 19 , Ápis é ilustrado em marcha, havendo, porém uma única

18
Estes monumentos pertencem tanto à fase em que ainda se inumavam os Ápis em túmulos individuais,
quanto à época em que os touros foram encerrados nos Pequenos Subterrâneos.
19
Por exemplo, no fragmento de relevo outrora pertencente a um altar que se localizava no templo de Ápis,
em Saqqara e hoje pertencente à coleção do Museu do Louvre E 25497 (Desti 2004: pp. 78-79).

107
exceção visível na estela (pr. SEest 4) 20 , onde ele também aparece deitado sobre o ventre
diante de Mnévis, na mesma postura e no topo do artefato. Seu corpo portentoso é descrito
por linhas precisas e os contornos trabalhados com rebaixamento da superfície escavada,
modelando com perícia a anatomia do animal. Em um dos casos, Ápis é descrito com linhas
onduladas que sugerem a pelagem do pescoço 21 e outras recurvas e paralelas que compõem
as costelas 22 (pr. SEest 8). Em somente uma estela desse período o touro exibe um pesado
colar com um enfeite pendente 23 (pr. SEest 10). Um manto retangular sobre o dorso, por
vezes decorado em seu interior com uma moldura, pode ser acrescido à sua caracterização,
mas não é uma regra aplicável a todas as estelas. Seus chifres, tanto em sua caracterização
animal como na semi-humana, são frequentemente retratados na forma de um “V”, mas o
modelo em forma de crescente e outro ligeiramente mais anguloso à imagem de uma lira
P também estão presentes. Entre eles, ou localizada logo à frente pendendo de um dos
chifres, passa a ser incorporada a imagem de uma uraeus k que pode vir ou não
acompanhada de um disco solar W, salientando assim o vínculo que Ápis adquirira com o
circuito desse astro e seu simbolismo de renascimento. Esse sentido é, por vezes, enfatizado
por um cálice ou vaso em forma de lótus ou pela própria flor abaixo do focinho do touro e
acima de sua base 24 (prs. SEest 2-3, 7, 9, 14). Uma estela 25 (pr. SEest 4) ilustra o rei nesse
exato local e voltado para a mesma direção de Ápis, como que protegido por ele à
lembrança de algumas imagens de Háthor com o monarca, enquanto que um baixo-relevo de
Mit-Rahineh atualmente em Florença ilustra uma personagem feminina – possivelmente
uma representação do ocidente - na mesma posição26 (pr. MONdiv 15).
Um motivo que irá se tornar usual em estelas posteriores é o de uma imagem solar
alada posicionada acima do touro menfita com suas asas estendidas em atitude de proteção.
Somente duas das estelas 27 (prs. SEest 8, 14) desta época ilustram essa simbologia,

20
Malinine et alii. op. cit. pr. II, n° 4.
21
Uma característica também presente nas representações de Mnévis. Ver por exemplo prs. MONdiv 16,
SEest 4.
22
Malinine et alii. op. cit., pr. IV, n° 8.
23
Malinine et alii. op. cit., pr. IV, n° 10.
24
Ver, por exemplo Malinine et alii. op. cit., pr. I, nos. 2-3, pr. III, nos. 7, 9, pr. V, n° 14. Para o simbolismo
da flor de lótus cf. Wilkinson 1996: pp. 120-121
25
Malinine et alii. op. cit., pp. 3-5, pr. II, n° 4.
26
Museu egípcio de Florença, n° 2541 (Berend 1882: pp. 52-53, pr. VII; Devauchelle 2001: p. 84).
27
Malinine et alii. op. cit., pp. 8-9, 14, prs. IV, n° 8, V, n° 14. Entretanto, por estar danificada nessa região,
não há como saber se uma outra também ilustrava o mesmo tema (ibidem., p. 13, pr. IV, n° 13).

108
representada por um wedjat  alado portando, como uma ave em sua garra, um símbolo
shen ) (Snw).
Alguns monumentos que o retratam na usual atitude de marcha inserem-no numa
28
capela que pode se espelhar no protótipo arquitetônico do santuário do Alto Egito 5 (prs.
SEest 4, 6) ou no do Baixo Egito 4 (prs. SEest 5, 7). A parte superior encontra-se decorada
com certos elementos simbólicos, tais como o falcão mumificado Sokar « (prs. SEest 5,
7)- posicionado no topo do teto abobadado da capela do norte -, pelo deus Anúbis em sua
forma de chacal ¯ (prs. SEest 6), Wepwawet, outra divindade canina ² (pr. SEest 5), ou
pela presença de serpentes uraeus ë (prs. SEest 4-6), frequentemente emparelhadas
constituindo um friso. No relevo em alabastro do museu de florentino, a decoração superior
do santuário é feita por uma sequência de símbolos _ Xkr 29 (prs. MONdiv 15). Em três
estelas 30 um par de uedjats ÂB emoldura os títulos de Ramsés II, logo acima da imagem
do touro (prs. SEest 4-6).
Quando ilustrado sobre uma base, esta é alta, pode conter decorações em suas
laterais (prs. SEest. 1-2), uma moldura em forma de cornija em cavetto na sua parte superior
(prs. SEest 1, 3, 4,7-10,13) ou mesmo espelhar o projeto arquitetônico de um santuário 5
(prs. SEest 7, 8, 10). Em alguns casos, a base é integrada à capela na qual Ápis está
inserido 31 .
Dois artefatos de categoria diferente dos já citados ilustram um touro, um deles
comprovadamente Ápis, à maneira teriomórfica. Trata-se de dois pyramidions que
originalmente localizavam-se na parte frontal superior da capela dos túmulos de seus
proprietários e evocavam a forma consagrada das pirâmides, mas com lados talhados à
semelhança de triângulos isósceles 8. Um deles, de calcário, de proveniência provavelmente
menfita e cuja datação é fixada para o período pós-Amarna 32 (pr. MONdiv 12), ilustra na
parte central da face sul Ápis caminhando em direção a Anúbis, que se encontra deitado
sobre um santuário e olhando para o deus taurino. Nosso personagem está, como nas estelas,
cuidadosamente retratado com um porte viril, os chifres são em “V” e um manto retangular

28
Berend 1882: p. 53, pr. VII; Desti 2004: pp. 78-79; Malinine et alii. op. cit., prs. I, n°6, II, nos. 4-5, III, n° 7
29
Berend op. cit., pr. VII.
30
Malinine et alii. op. cit., prs. I, n°6, II, nos. 4-5.
31
Malinine et alii. op. cit., prs. II, nos. 4 e 5.
32
Copenhagen A.A.d. 20 (Devauchelle 2001: p. 83; Rammant-Peeters 1983: p. 9, pr. IV).

109
repousa sobre o dorso. Sua identidade é comprovada pela inscrição vertical à sua frente:
Ápis, arauto vivo de Ptah”.
Já o outro pyramidion 33 (pr. MONdiv 13), talhado em arenito, tem sua origem
desconhecida e é atribuído ao Reinado Novo sem maiores especificações. Neste, duas faces
opostas ilustram um touro em atitude de marcha, com um disco solar entre chifres em
crescente e ao lado do qual há um abanador de grandes proporções que era utilizado
igualmente para produzir sombra k Swt. Abaixo de seu focinho, brotando do chão há uma
flor de lótus 34 , e a atitude do animal ao aproximar suas narinas dela, um símbolo solar e de
renascimento por excelência, dialoga com a ilustração do abanador, cujo simbolismo alude
tanto ao “sopro da vida” quanto com a luz do sol propriamente dita.
No caso deste motivo iconográfico, por não haver qualquer legenda, não há como se
afirmar que a identidade do touro seja Ápis 35 . Na verdade, a associação do
abanador/sombra a um touro com um disco solar entre os cornos é a representação exata
que outras fontes fazem de Mnévis 36 (pr. MONdiv 16-17), e tanto a caracterização de seu
corpo sinuoso 37 que por vezes apresenta pelagem no pescoço, quanto a conformação de
seus chifres em crescente, muito parecidas nesses registros 38 , contrastam com a forma
como Ápis é largamente representado durante a 19ª dinastia, com um físico menos
encorpado que pouco lembra o de um touro selvagem. Se isto for verdade, a diferença entre estes dois
ícones taurinos do Baixo Egito não se dava somente pela respectiva coloração de sua pelagem39 ,

33
Heidelberg 33 (Devauchelle idem; Rammant-Peeters op. cit.: p. 16; pr. IX).
34
Devido a uma fratura na superfície, somente um dos lados apresenta a flor, mas como a imagem é
semelhante à do lado oposto, é plausível que o lótus também aí estivesse ilustrado.
35
Embora Rammant-Peeters (op. cit., p. 16) o afirme. Devauchelle (2001: p. 83), por outro lado, lança uma
dúvida quanto a esta atribuição pela ausência de uma legenda, mas não apresenta uma argumentação
fundamentada na linguagem iconográfica.
36
Museu Pushkin I.l.a.5611 (3568) (Berlev, Hodjash 1982: pp. 143, fig. 87, 145), Museu do Louvre C 292 =
AF 749 (Desroches-Noblecourt; Vercoutter 1981: pp. 268-269). Cf. tb. Corteggiani 2007: pp. 338-339.
Curiosamente, uma forma derivada desse objeto l quando escrito duas vezes acompanhado do fonema
complementar “p” l#l designa o nome de uma divindade pouco conhecida, chamada Hepui @p(wy) e que
possivelmente se referia a uma personificação dos dois para-sois que acompanhavam o rei (Gardiner 1969: p.
508). Apesar da semelhança fonética com o nome de Ápis, @p, é de se acreditar que isto não passe de uma
coincidência que nada tenha em comum com as representações do touro com um único k acima citadas.
37
Segundo Cortegianni (op. cit., p. 339) a elevação dos ombros é mais pronunciada em Mnévis do que em
outros touros sagrados.
38
Esta particularidade pode ser contrastada com uma estela contemporânea encontrada no Serapeum que já
comentamos, onde figuram na parte superior, tanto Ápis quanto Mnévis (Malinine et. alii. 1968: pp. 3-5, pr.
II, n° 4). Outras estelas do Louvre que podem ser consultadas na base de dados do museu na internet revelam
a mesma aparência de Mnévis, por exemplo: E 11898, E 20901, E 20902.
39
Mnévis devia ser inteiramente negro, embora algumas imagens o ilustrem com a pelagem vermelha
(Corteggiani op. cit., p. 338).

110
Fig 27 Pyramidion de Heidelberg n° Fig. 28 Estela do Museu Pushkin, Moscou, n°
33, face IV. Arenito, proveniência I.l.a.5611 (3568). Calcário, proveniente de
desconhecida (Rammant-Peeters 1983: Heliópolis (Berlev, Hodjash 1982: pp. 143,145).
pr.IX).

Fig. 29 Relevo com adoração ao touro Mnévis, Museu do Louvre C 292=AF 749. Calcário,
originária de Heliópolis (Desroches-Noblecourt, Vercoutter 1981: pp. 268-269).
mas também por sua diferença anatômica. Se Ápis fora selvagem em suas remotas origens,
agora sua conformação física se aproximava mais da do gado domesticado, característica
que parece ter sido explorada em sua qualidade oracular, ao passo que em sua iconografia,
Mnévis exalta formas com curvas acentuadas semelhantes às pinturas de touros selvagens 1 .
Quando ilustrado à maneira antropomórfica, Ápis está sempre em atitude de marcha,
a mão que acompanha o corpo, como é usual entre as imagens divinas, porta um ankh j anx
(prs. SEdiv 3-4, SEest 12, 15, 17) e a que se projeta à sua frente pode ostentar um cajado de
pastor o awt (pr. SEest. 12) ou um cetro was p wAs (prs. SEest 15-17). Uma exceção é feita
em uma estela do Cairo, onde um misto desses dois cetros combina a parte superior do
primeiro com a inferior do segundo 2 (pr. MONdiv 14). Nesse mesmo objeto, Ápis apresenta
pela primeira vez em sua caracterização antropomórfica um triângulo na fronte. No que
concerne ao vestuário, um saiote curto que pode apresentar estrias é a única peça utilizada
por ele, e uma espessa peruca com cachos por vezes indicados recai sobre o peito e as
costas, encobrindo parcialmente o colar usekh S (wsx) quando este é representado. No caso
de inscrições em outros monumentos nos quais está inserido, tais como colunas 3 e estátuas 4 ,
a imagem do deus pode ser resumida aos contornos de sua silhueta e, nessas circunstâncias,
de seu cetro was ligeiramente reclinado para frente, pode brotar um ankh da extremidade
superior 5 (prs. SEdiv 3-4).
Uma representação antropomórfica diversa de Ápis foi encontrada no túmulo
individual “G”. Na cena com registros espelhados (pr. SEdiv 2), a única alteração que se
nota são os textos, embora, como no caso da câmara da época de Horemheb, Mariette só nos
tenha legado uma ilustração feita por ele (Mariette 1857: pr. 8). O registro 6 é, tal como o
justo mencionado, emoldurado por dois cetros was que sustentam o símbolo do céu, pet, e a
base é constituída de um retângulo alongado preto decorado internamente por outro da cor
azul e, no meio, por uma faixa vermelha. Dividindo a cena repetida há um fetiche imiut, à

1
Para vários ostraca que apresentam imagens de touros selvagens cf. Vandier D´Abbadie 1959: prs. XCVI, nº
2768, XCIX, nos. 2753, 2759, C, nos. 2754, 2763, CI, nº 2760, CII, nos. 2765-2767, 2769, 2770, 2773, CIII,
nº 2764, CIV, nº 2759. Touros com a mesma aparência podem ser vistos também no tema das “sete vacas
celestes” (Barguet 2003: p. 206; Leblanc, Siliotti 1997: pp. 140-141) e na constelação da ursa maior no
célebre teto da câmara funerária de Seti I, 19ª dinastia (Hawass, Vanini 2006: p. 277).
2
Museu do Cairo JE 48845 (Devauchelle 2001: p. 81; Moursi 1981: p. 324).
3
Delange 2001: pp.42-43; Desti 2004: p. 64.
4
Barbotin 2007 pranchas: p. 132-133; texto: pp. 96-97, n° 45.
5
Delange op. cit., p. 43.
6
Mariette 1882: pp. 62, 139.

112
frente do qual estão os quatro filhos de Hórus e um pequeno vaso, todos acima de uma base
retangular. Logo em seguida destaca-se Ápis envolto em uma mortalha branca com parte
dos antebraços e punhos à mostra e à sua frente portando um flagelo nekhekh e um cajado de
pastor awt. Braceletes e um colar usekh enriquecem a imagem divina e uma peruca negra
desce-lhe por sobre o peito e costas, emoldurando assim sua inconfundível efígie taurina por
seus chifres em “V” de onde tomba uma uraeus e pela modelagem cuidadosa do focinho.
Ápis, à maneira de Ptah ao qual está claramente identificado na legenda do lado direito 7 ,
repousa sobre uma base em forma do hieróglifo L e no interior de uma capela no modelo
do Alto Egito 2. À frente do deus está disposta uma mesa repleta de oferendas, seguida de
um altar onde Ramsés II, acompanhado de seu filho Khamewaset, verte libações enquanto
queima incenso.
Outra forma de representação mumiforme desse touro sagrado e que igualmente lhe
conferia uma silhueta antropomórfica é fornecida pelos shabtis 8 (prs. SEsh 1-12). Essas
estatuetas funerárias que tinham a difícil tarefa de realizar a corvéia do outro mundo pelo
defunto, e que evoluíram em sua forma e número no repertório do equipamento funerário,
adquiriram neste período um aspecto raro em sua aparência: o da figuração teriocéfala.
Esses artefatos cuja altura variava de mais de 9cm a cerca de 17cm foram encontrados às
dezenas e eram produzidos com faiança de uma coloração que ia do azul turquesa ao verde
claro, dependendo da composição do esmalte à base de minérios de cobre. Do corpo, só se
destacam os membros superiores e a cabeça, estando as pernas completamente indistintas do
volume do tronco, à semelhança de um corpo envolto em bandagens. Os braços, sempre
elevados à altura do peito, podem estar cruzados na região mediana dos antebraços (prs.
SEsh 6-8) ou podem repousar simetricamente com um punho à frente do outro (prs. SEsh 1-
5, 9-13). Uma coluna vertical de texto 9 pintada com pigmento negro desce acompanhando
as pernas e a mesma cor é utilizada para definir os detalhes das sobrancelhas e olhos
maquiados, do focinho e boca, dos cachos da peruca, do colar usekh, dos instrumentos

7
“Ápis, arauto vivo de Ptah” ¡p anx wHm n PtH. No lado esquerdo a identificação se faz com o deus solar:
“Osíris-Ápis-Atum, Hórus de Nekhen, o Grande Deus” Wsir ¡p ¦m ¡r n Nxn aA nTr
8
Bovot 2003: pp. 25-26, 85-86; Desti 2004: pp. 96-99; Perdu, Rickal 1994: pp. 78-79; Stewart 1995: p. 40;
Mariette 1857: prs. 11, 19, 22, nos. 1-2, 8-11.
9
Constituído das frases “Osíris-Ápis o arauto vivo de Ptah” Wsir ¡p(y) wHm n PtH ou “ (o) iluminado Osíris-
Ápis, arauto vivo de Ptah” Ssp Wsir ¡p wHm n PtH.

113
agrícolas, dos chifres e, em alguns casos, do triângulo invertido 10 sobre a fronte. Apesar de
compactas, dependendo de seu nível de acabamento, essas imagens podem exibir com
clareza os traços bovinos por meio dos volumes além das formas dos braços e da peruca. Os
cornos são frequentemente indicados por ligeiras protuberâncias pontiagudas e em alguns
exemplares as orelhas são igualmente destacadas. Raros são os artefatos que exibem entre
seus chifres em crescente um disco solar 11 como o da (pr. SEsh 7) 12 .
Uma particularidade intrigante é que algumas dessas estatuetas, como acabamos de
comentar, exibem um triângulo na fronte, ao contrário das imagens das estelas
contemporâneas que, tirando o monumento do Museu do Cairo 13 , de simbólico só ilustram a
uraeus e/ou o disco solar. Tampouco a pintura da sepultura individual “G” 14 , tal como
Mariette a registrou, ilustra esse símbolo. É possível que essa característica fosse
originalmente reproduzida nas estelas através da pintura e não por meio de gravações e
relevos, que com o passar dos séculos se desvaneceu até perder-se por completo.
A caracterização das estatuetas funerárias de Ápis com cabeça taurina dá lugar, a
partir do Terceiro Período Intermediário, a representações completamente antropomorfas
com a característica peruca composta da costumeira dupla de cachos tombando sobre o
peito, e com a parte traseira limitada à altura dos ombros e decorada com uma fita seshed ,
(sSd) que dá a volta em torno da cabeça com o laço posicionado atrás dela 15 (pr. SEsh 14).
Com o Período Tardio, a aparência humana se mantém e essas figurinhas são retratadas
sobre uma base quadrangular, com uma peruca alongada na parte das costas e uma barba
longa 16 .
Esta figuração dos shabtis, que associa o corpo humano mumificado de Osíris ao de
Ápis, pode dar a explicação do porquê durante o Reinado Novo esse touro sagrado recebia
urnas funerárias semelhantes às humanas 17 , um fenômeno cultural que pode ter sofrido a
influência da íntima associação do deus funerário com o animal, promovendo um
sincretismo não somente conceitual e simbólico, mas também físico.

10
Por exemplo Perdu, Rickal 1994: pp. 78-79, nos. 113, 114, 117.
11
Informação gentilmente fornecida por J.-L. Bovot em mensagem pessoal.
12
Louvre N 523451 (Bovot 2003: pp. 25, 85 n° 99; Mariette 1857: pr. 22, n° 11).
13
Trata-se da imagem antropomórfica de Ápis acima citada (Moursi 1981: p. 324).
14
Mariette 1857: pr. 8.
15
Perdu, Rickal 1994: pp. 78-79, n° 118; Stewart 1995: pp. 35, 40; Mariette 1857: pr. 19, n°. 5.
16
Stewart op. cit., p. 40; Mariette op. cit., pr. 19, n° 4.
17
Mariette 1882: pp. 63-64, 140-141.

114
Terceiro Período Intermediário e Período Tardio

Mesmo se tratando de um período politicamente conturbado 18 , o Terceiro Período


Intermediário se destaca pelo incentivo às tradições e pela busca de padrões estéticos dos
períodos consagrados, especialmente os Reinados Antigo e o Médio. Sob o governo dos
ocupantes estrangeiros o que se nota, no entanto, não é um desleixo quanto à manutenção do
culto a Ápís. Pelo contrário, graças à abundância de monumentos lá depositados seja por
governantes ou por simples indivíduos que procuraram o Serapeum para lá deixar o
testemunho de sua fé que temos não somente a maior fonte para o conhecimento da
cronologia da época como também imagens diversas que privilegiam Ápis. Ainda que para
muitos a ampla periodização que abrange o último período intermediário e o Período Tardio
apresente os sintomas da decadência de uma civilização agonizante 19 , podemos aí
acompanhar uma interessante e complexa transformação social resultante da abertura do
Egito para o mundo 20 , uma gradativa influência estrangeira e, por outro lado, a adoção de
costumes egípcios por esses forasteiros que vinham de vários portos do Mediterrâneo 21 .
Com as novas ondas de povoamento, alterações foram promovidas tanto no campo das
ideias 22 , quanto no das técnicas, como testemunha, por exemplo, o sofisticado grau que a
metalurgia dos bronzes atingiu durante a dinastia líbia 23 .

18
O Terceiro Período Intermediário foi marcado primeiramente pela divisão do país em duas esferas políticas
por influência do clero de Amon em Tebas, cujo poder rivalizou com o do governante então situado em Tânis
durante a 21ª dinastia. A partir da 22ª dinastia, e sob as dinastias líbias, o Egito passou por uma progressiva
feudalização até a conquista do país pelos núbios, cuja ocupação se destacou pelo grande fervor religioso a
Amon-Rê e pela busca de valores tradicionais do Egito de tempos passados.
19
Uma agonia assaz longa, uma vez que o Terceiro Período Intermediário soma mais de quatrocentos anos e o
Período Tardio que o sucedeu mais de trezentos, totalizando mais de setecentos anos.
20
As alterações no horizonte político não estavam restritas ao Egito, mas este sentia as repercussões das
mudanças que se faziam sentir em todas as partes do Oriente Próximo e do cinturão do Mediterrâneo. Por sua
posição privilegiada e pelo regime constante de cheias que propiciavam uma abundância ímpar, as terras
egípcias passaram a ser um chamariz atrativo além de um mercado que se abria para novas oportunidades
comerciais.
21
O culto a Ápis não ficou isolado desse processo, e um número de artefatos, sejam estelas ou bronzes, indica
a devoção de estrangeiros de origem helênica e cariana. Para a importância deste último povo no Egito do
Período Tardio cf. Ray 2006: pp. 1185-1194.
22
Assmann 2002: pp. 286-420.
23
Aldred 1980: 123-127; Delange 2008: pp. 38-49; Hill 2008a: pp. 2-5; 2008b: pp. 50-63; Manniche 1994: p.
266, 271-272; Taylor 2008: pp. 64-81;

115
Este período viu várias gerações de Ápis serem inumadas nos Pequenos
Subterrâneos, inaugurados por Ramsés II e utilizados até o ano 21 de Psamético I 24 , os quais
foram substituídos por uma estrutura ainda maior, os Grandes Subterrâneos, que abrigaram
os corpos dos Ápis sucessivos até o Período Ptolemaico. Nessas estruturas monumentais,
centenas de estelas reais e privadas foram descobertas, mas o contexto de sua deposição
nessas galerias não foi a mesma. No primeiro caso, não somente as estelas oficiais eram
fixadas nas paredes internas dessa estrutura, mas também as daqueles que lá iam para deixar
a expressão de sua devoção (fig. 8). Quando já não encontraram mais espaço para incrustar
nesses disputados muros o testemunho de sua fé, os peregrinos conformavam-se em deixá-
las pousadas no chão apoiadas nos muros, criando um ambiente cada vez mais caótico para
os novos visitantes do local.
Os Grandes Subterrâneos, por outro lado, desde sua inauguração reservavam o muro
que selava a entrada da câmara sepulcral exclusivamente para a estela oficial, enquanto as
privadas, sempre numerosas, foram permitidas somente próximo à entrada e nas paredes
exteriores (fig. 14). Muitas delas, por falta de espaço, tiveram que ser deixadas encostadas
nas paredes e apoiadas no chão dessas passagens, tal como outrora ocorria no interior dos
corredores dos Pequenos Subterrâneos.
As alterações não ficaram limitadas à deposição das estelas, mas se estendiam à
forma de enterramento dos touros sagrados. Se nos Pequenos Subterrâneos e nos Grandes
até o reinado de Apries os touros eram inumados em sarcófagos de madeira, a partir de
Amasis, também da 26ª dinastia, os Ápis ganham imensos sarcófagos de pedra que eram lá
depositados, através de uma técnica complexa desenvolvida na época, em grandes nichos
escavados no chão das câmaras funerárias.

24
Devauchelle 2001: pp. 19-20.

116
As Estelas Votivas

As estelas foram, na sua maior parte, produzidas em rocha calcária, mas também são
encontrados alguns artefatos em arenito25 . Apesar de suas dimensões e decoração serem
variáveis, é possível reconhecer motivos decorativos similares, senão elaborados por uma
mesma mão 26 . O acabamento também é diverso de acordo com os dotes dos artistas
disponíveis nos ateliês, mas nota-se que entre os monumentos particulares a qualidade pode
deixar muito a desejar em diversos casos. Ápis é representado de cinco maneiras principais.
As três primeiras, já vistas durante o reinado de Ramsés II, ilustram-no tauriforme em
atitude de marcha ou deitado, ou antropomórfico e taurocéfalo em pé e caminhando. A estas
caracterizações vêm se somar sua apresentação teriomórfica e mumiforme e em atitude de
galope. Normalmente há ao menos um ofertante em atitude de adoração e uma mesa de
oferendas, mas esta não é uma regra. Há também exemplares que ilustram divindades, tal
como algumas estelas da 19ª dinastia 27 , assim como outros que não ilustram ninguém além
do touro 28 . Da mesma forma, a representação deste não é fixa, estando sujeita a variações
tanto técnicas, como no método utilizado para ilustrá-lo, quanto estéticas, exemplificadas
pelas características que compõem sua imagem. Iremos, a seguir, esboçar as particularidades
que nos pareceram importantes entre as categorias de representação desse touro sagrado.

Ápis Teriomórfico em Atitude de Marcha

Aqui temos o animal ilustrado de forma pouco natural, contudo, esteticamente


agradável pela equilibrada simetria com a qual seus membros foram retratados. Quando

25
Prs. SEest 195, 205.
26
Levando-se em consideração a pintura ou gravura, sem considerar o talhe da estela propriamente dita.
27
Prs. SEest 20, 21, 46, 124-125, 127, 129, 174, 178, 180-184, 213.
28
Prs. SEest 29, 30-31, 52-55, 62, 68, 80, 81, 86-87, 89, 96, 111, 118, 127, 130-131, 133, 136-137, 153, 164,
166-167, 172, 177, 185-187, 190, 217, 233.

117
voltado para a direita 29 ¡, as pernas do lado esquerdo estão à dianteira em relação às do
outro lado. Caso contrário, são as pernas direitas que ficam avançadas em relação às da
esquerda !. Dependendo do acabamento do artefato e da forma como o torso foi
trabalhado, os membros podem parecer mais volumosos ou mais delgados, por vezes com
particularidades da anatomia como os músculos junto aos ombros ressaltados de maneira
especial, transmitindo vigor às passadas que podem contrastar com a forma delicada com a
qual os cascos foram reproduzidos. No entanto, as imagens bidimensionais encerram uma
ambiguidade que as esculturas não nos proporcionam: não podemos dizer com certeza se,
em alguns casos, a imagem retratada é de um boi vivo idealizado ou se a intenção era
retratar uma estátua de culto. Quando representada sobre uma base, torna-se plausível esta
última interpretação, mas quando o touro é ilustrado no mesmo nível que um ofertante, por
exemplo, não há como diferenciá-lo de uma escultura, uma vez que ambas as versões
transmitem a sensação do movimento. Com efeito, em nenhum desses casos foram
encontrados indícios que pudessem dar mais peso a uma argumentação do que a outra.
Talvez a intenção não fosse nem de ilustrar uma estátua de culto nem uma versão idealizada
do touro vivo, mas um conceito baseado em especulações teológicas 30 . Seja como for,
aquilo que nos foi transmitido foram ícones adequados às convenções canônicas que, de
acordo com os predicados do artista, foram eternizados com maior ou menor sensibilidade e
destreza.
O torso normalmente é bem caracterizado e confere ao touro um aspecto imponente
através de linhas sinuosas que destacam o peito e ombros 31 . A linha que compõe a papada
desenvolve um “S” cuja curvatura inferior, convexa e ampla, desce pouco abaixo do tórax
para encontrá-lo entre as pernas dianteiras, lembrando por esse movimento a ação da
gravidade sobre as carnes que constituem essa região do pescoço. O perfil do ventre é
descrito tanto com um segmento paralelo à base quanto por um ascendente em direção à

29
Que é a maioria absoluta dos casos.
30
A esfinge de Giza, por exemplo, que foi associada à Harmakhis durante o Reinado Novo e ganhou um culto
próprio, não era ilustrada tal como ela era vista, mas com elementos adicionados à sua representação real,
como uma coroa com plumas ou a coroa psechent M e sobre uma base (Zivie-Coche 2006: pp. 59, 61). Sua
imagem em estelas dessa época é produto de uma recriação mental de um monumento real e expressa dentro
dos cânones representativos estabelecidos (figs. 36-38).
31
No entanto, há casos em que o pincel do artesão conferiu um perfil exageradamente alongado ao animal
(prs. SEest 163-167)

118
virilha, sendo frequentemente perturbado pela descrição do sexo, regularmente bastante
evidente 32 .
O pescoço é uma região que em certos casos é decorada com um colar cuja largura é
variável. Mas somente as gargantilhas mais largas apresentam um elemento decorativo
pendente à frente do peito 33 (prs. SEest 173-175, 202, 234), um contrapeso menat
Z 34 mnit, ou a imagem de um falcão com suas asas estendidas sobre eles 35 . Algumas
vezes, os contornos do corpo dessa ave de rapina não são muito claros e suas asas podem
estar deslocadas de sua boa posição 36 . O contrapeso menat também é visto em alguns
artefatos de bronze, mas sua presença é mais marcada nas pinturas em pés de urnas
funerárias as quais abordaremos mais adiante. Em uma estela a parte superior do pescoço
exibe uma crina definida por linhas onduladas (pr. SEest 34).
O dorso em alguns casos exibe um manto retangular 37 que pode conter molduras
internas 38 ou uma decoração de linhas cruzadas 39 aludindo a uma tela de contas tubulares de
faiança. Mas como uma proporção considerável dessas caracterizações de Ápis o ilustram
com manchas em áreas específicas do corpo, uma em especial nessa região, é de se acreditar
que, para não cobri-la, optava-se por não ilustrá-la (pr. SEest 233). Essas marcas especiais,
que, com exceção de uma estela 40 (pr. SEest 240), são com grande frequência indicadas pela
distribuição do pigmento negro pelo torso taurino, criando, desta maneira, um padrão
inconfundível que identifica Ápis em meio à cultura material. A demarcação das áreas
dessas manchas é, em raros casos, descrita por gravações (pr. SEest 72) e estas estão
localizadas nas seguintes partes: na região posterior das coxas e ancas, por vezes abrangendo

32
Prs. SEest 48, 63, 219, 222, 224. Há casos, no entanto, em que o órgão não foi ilustrado (prs. SEest 211,
225, 227) ou que é descrito somente pelo saco escrotal (prs. SEest 73, 205).
33
Prs. SEest 10 (período raméssida), 173-175, 179. Elementos decorativos semelhantes e de grandes
proporções podem ser encontrados em cenas desde o Reinado Antigo e, aparentemente, não estão
relacionadas a animais com conotação religiosa significativa para a época como Ápis está para os períodos
tardios (Badawy 1976: fig. 20; Vandier 1969: pp. 22, fig. 1838, fig. 25a, 4).
34
Prs. SEest 32, 77, 82, 87, 179, 194, 126.
35
Prs. SEest 173-175. Em um caso, a ave foi aplicada diretamente sobre o pescoço, sem a adição de um colar
(pr. SEest 145).
36
Prs. SEest 174-175.
37
Prs. SEest 62, 104.
38
Prs. SEest 104.
39
Prs. SEest 190.
40
Nesta, encontrada em uma das catacumbas de babuínos de Saqqara, duas imagens semelhantes a asas
estendidas sobre as ancas e ombros do touro foram gravadas em relevo, e possivelmente maiores
detalhamentos eram fornecidos por meio da pintura, hoje completamente apagada (Davies 2006: p. 95, BCO
28, pr. XLVIa).

119
a totalidade delas e cobrindo a parte superior da cauda; uma que percorre os ombros e desce
até o peito, estendendo-se para além do pescoço e cobrindo a cabeça; e uma semicircular
sobre o dorso que, como foi mencionado, pode estar coberta por um manto. A área branca
resultante da combinação dessas manchas cria o motivo de um crescente gigante na lateral
do boi. Por vezes, as manchas podem estar unidas na linha dorsal, reforçando ainda mais
esse motivo (prs. SEest 76, 145). Mas há algumas estelas que trazem decorações bem
diversas dessa e, se não fosse pela legenda e certeza de origem, seria muito difícil dar-lhes a
identidade de um Ápis 41 . Nos casos em que as manchas não são visíveis 42 nem sempre há
como saber se esta era uma condição original do artefato ou se a sua ausência se deve à
degradação dos pigmentos, um fenômeno que se abateu sobre muitos monumentos 43 .
Em algumas representações onde as cores continuam vivas, nota-se, na região
inferior do pescoço, um espaço alongado – às vezes recurvo – deixado em branco e que
corresponderia à extremidade de outro crescente 44 . Mesmo a cabeça sendo usualmente
pintada de preto, há casos em que ela é deixada incolor (prs. SEest 230-231). Entre aquelas
em que o pigmento não se esvaeceu, há exemplares que ilustram o triângulo invertido
branco na fronte 45 , um dos símbolos que segundo Heródoto distinguiriam um Ápis.
Esse touro podia apresentar chifres modelados em crescente 46 ou em “V” 47 , mas esta
última conformação é a mais frequente. Embora grandes, suas dimensões estão longe
daquelas apreciadas durante os Reinados Antigo e Médio, como deduzimos no capítulo
anterior, tais características talvez sejam fruto tanto de alterações físicas do gado derivadas
da domesticação quanto de uma preferência estética que já se prefigurava nas cenas do
início do Reinado Novo. Esses apêndices ósseos também serviam como moldura para o
disco solar (prs. SEest 24-27, 45, 47-48.), o qual podia vir acompanhado da serpente uraeus
W (prs. SEest 59, 117, 140) posicionada também no meio do disco (prs. SEest 151-152,

41
Prs. SEest 42, 62, 94, 96, 149, 168, 228.
42
Pr. SEest193. Neste caso, as imagens são descritas somente por linhas que encontram-se muito preservadas.
43
Inclusive sobre a imensa escultura do touro encontrada em uma edícula erguida na lateral do dromos e hoje
pertencente à coleção do Louvre, n° N 390. Conferir descrição de Mariette (1882: pp. 29-31): “outra
(construção) é uma edícula em estilo egípcio, no interior da qual nós encontramos uma magnífica estátua de
Ápis, ainda toda brilhante com suas cores sagradas.” (...) “ O delta grego, na verdade, (exibe) a ponta do
triângulo no alto, ao passo que a marca branca, tal como é mostrada sobre a famosa estátua da edícula, a
forma do triângulo é com a ponta para baixo”. No caso das estelas, ver por exemplo, prs. SEest 44, 45, 59.
44
Prs. SEest 26-27, 104, 151, 174, 197.
45
Prs. SEest 25-27, 61, 104, 116, 151, 153, 174, 211, 214, 216-217, 222-224.
46
Prs. SEest 25-27, 45, 48, 61-63.
47
Prs. SEest 24, 34-35, 42, 44.

120
173, 175, 179), logo acima da cabeça. Poucos casos ilustram somente essa serpente entre os
cornos (prs. SEest 44, 213) e uma única estela representa Ápis com um pequeno disco solar
48
sobreposto por um par de plumas do tipo Ý] (pr. SEest 164) .
A cauda desce retilínea ou acompanhando a curvatura da parte posterior das pernas
traseiras, podendo estar pintada de preto em toda a sua extensão, com exceção de sua
extremidade branca (prs. SEest 151-153, 174). Esta parte em alguns artefatos é quase que
imperceptível por seu volume (prs. SEest 25-26, 45, 60, 63) semelhante ao da própria cauda,
mas frequentemente é bem destacada (prs. SEest 35, 44, 61, 84, 140, 190) e pode exibir
detalhes da pelagem (prs. SEest 166-167, 190, 210-212).
A maioria das representações de Ápis em atitude de marcha o ilustram caminhando
diretamente sobre uma linha de base, sobre a qual podem estar situados outros elementos da
cena, tais como divindades, reis, ofertantes ou adoradores e mesas de oferendas. Algumas
estelas ilustram uma flor de lótus emergindo do solo bem abaixo do focinho do animal (prs.
SEest 164, 166-167), enquanto outras deixam-no acima da linha de base (prs. SEest 225-
228) ou mesmo sem ela (pr. SEest 94). Mas há registros que representam o touro acima de
bases que podem ser baixas (prs. SEest 24-26, 223), altas (prs. SEest 95, 158, 174), sem
cornija (prs. SEest 47, 95, 151) ou na forma de um trenó (prs. SEest 27, 198). Entretanto, no
que concerne à categorização em atitude de marcha, somente naquelas datadas do período
raméssida que encontramos um recipiente 49 ou uma flor de lótus 50 emergindo da base.
Por fim, tal como nas estelas do reinado de Ramsés II, Ápis pode estar confinado a
uma capela que pode reproduzir as linhas arquitetônicas características dos santuários do
Alto Egito 51 ou do Baixo Egito 52 .

48
É possível que neste caso tenha havido uma confusão com a iconografia de Mnévis (Corteggiani 2007: pp.
338-339).
49
Período Raméssida (prs. SEest 2-3, 7, 9).
50
Período Raméssida (pr. SEest 14).
51
Pr. SEest 72.
52
Pr. SEest 94.

121
Ápis Antropomórfico e Taurocéfalo em Atitude de Marcha

Esta categoria é a segunda menos representada no conjunto de estelas estudado,


possivelmente porque o apelo teriomórfico do animal, que era um personagem de carne e
osso, era mais importante do que sua transfiguração em um corpo humano. O deus, tal como
em outras versões de sua representação, aparece com maior frequência orientado para a
direita 53 mas ocorrem também versões que privilegiam sua orientação para o lado oposto54
ou ambos (pr. SEest 33). Com exceção de um caso em que aparece sobre uma base baixa
(pr. SEest 102), nas demais circunstâncias o deus taurocéfalo está assentado diretamente
sobre uma linha de base. Da mesma forma, somente uma estela o ilustrou no interior de uma
capela com teto abobadado característica do Baixo Egito (pr. SEest 107).
Como é usual, uma peruca espessa cobre-lhe a cabeça com cachos descendo-lhe
sobre o peito e costas, deixando a orelha e os chifres à mostra. Estes são, no maior número
dos casos, configurados em “V” mas também estão presentes aqueles à semelhança de um
crescente. Um disco solar solitário ou acompanhado de uma uraeus é emoldurado por eles,
mas em um artefato optou-se por deixar esse espaço livre (pr. SEest 107). Em nenhuma
estela o triângulo característico foi incluído sobre a fronte por meio de gravação e em
virtude do desgaste da pintura, não é possível saber se esse detalhe estava ilustrado neles.
No que concerne ao vestuário, a única peça que o deus veste é um saiote curto
dividido em duas partes por um uma aba recurva e seu pescoço em algumas situações pode
vir adornado de um colar usekh S 55 .
Quando retratado dessa forma, tal como outras figuras divinas, porta um ankh na
mão que está próxima à perna traseira, podendo ser a direita ou a esquerda, dependendo da
direção para a qual o personagem está voltado, enquanto a outra pode ostentar à frente do
corpo um cetro was p. O cajado awt o foi encontrado somente em uma vez e aqui o deus o
leva com o braço flexionado junto ao peito (pr. SEest 107). Um exemplo similar em que o
punho cerrado é levado ao peito, mas sem portar qualquer objeto, também é conhecido (pr.
SEest 88).

53
Pr. SEest 20-22, 40.
54
Pr. SEest 19, 46.
55
Prs. SEest. 19, 21, 33, 46.

122
Ápis Deitado

Esta, depois da apresentação teriomórfica em atitude de marcha e daquela que o ilustra


mumificado, é a terceira mais frequente nas estelas de Ápis às quais tivemos acesso, e em
todas está orientado para a direita. Sua postura é a de um touro deitado sobre o ventre com as
pernas dispostas de maneira simétrica e pouco natural, uma vez que esses mamíferos têm o
hábito de deitar de lado com as pernas dispostas confortavelmente. A ilustração mais
corriqueira o exibe com as patas frontais recolhidas 56 , mas há exemplos em que estas estão
totalmente estendidas como se o animal em questão fosse um felino 57 . De fato, certas estelas
caracterizam Ápis de tal forma, pelas linhas que constituem seu perfil, pela cauda enrolada em
torno da coxa e por uma peruca ou toucado que por vezes cobre sua cabeça58 , que não é
improvável que a iconografia do leão ou da esfinge tenha de alguma forma influenciado essas
representações, ainda mais porque o centro de culto à celebre escultura, em Giza, não ficava
muito longe de Saqqara.
Um número não muito grande de artefatos ilustra um manto pousado sobre as
59
costas do animal em repouso, dois deles são decorados com um padrão de linhas
horizontais e verticais paralelas cruzadas formando uma tela 60 e um que, em tese, cobre a
mancha semicircular do dorso, é arrematado com uma franja na extremidade inferior (Pr.
SEest 124). Igualmente rara é a representação de um colar, que na maioria desses casos é
constituído de uma só banda decorativa61 . Como foi acima comentado, entre estas caracterizações
são encontradas algumas imagens em que a cabeça taurina é coberta por uma volumosa
peruca 62 , que, em casos particulares, pode ser parte de uma máscara funerária 63 (prs. SEest

56
Prs. SEest 113,115, 119, 121-123, 126-127, 177.
57
Prs. SEest 52-55, 95, 110, 117-118.
58
Prs. SEest 52-55, 95, 113-119, 121-123, 177. Não é impossível que esta aproximação tenha se dado pelo
processo de “solarização” pelo qual Ápis passou, mas não há documentos que possam provar essa conexão.
59
Prs. SEest 114-115, 124, 177.
60
À semelhança daquelas que são constituídas de contas tubulares de faiança (prs. SEest 87, 149).
61
Prs. SEest 108-110. Somente uma estela dessa categoria de representação de Ápis que ostenta um colar com
múltiplas faixas (pr. SEest 143).
62
Prs. SEest 52-53, 113-114, 117-118 .
63
Nestes casos, tal suspeita se fundamenta principalmente na diferença da cor da face em relação àquela do resto
do corpo. É possível que outras estelas tenham-no dado a mesma diferenciação, mas como os pigmentos se
apagaram delas, não há como se ter certeza.

123
Fig. 31 Estela
Fig. 30 Datada datada entre 22ª e
do reinado de 25ª dinastia
Ramses II, 19ª (Malinine et alii.,
dinastia. Malinine 1968: pr.
et alii., 1968: pr. XXXVII, n° 135.
II, n° 4.

Fig. 32 Estela
datada 22ª e 25ª
Fig. 33 Estela
dinastia (Malinine
datada da 22ª
et alii., 1968: pr.
dinastia
XXXVII, n° (Malinine et
132). alii., 1968: pr
XVIII, n° 60).

Fig. 34 Estela
datada entre Fig. 35
22ª e 25ª Estela datada
dinastia entre 22ª e
(Malinine et 25ª dinastia
alii., 1968: pr. Malinine et
XXXVI, n° alii., 1968: pr.
131). XXXVIII, n°
136.

Fig. 36 Estela de Hatiay,


Reinado Novo. Cairo, JE 72269
Fig. 38 Estela de Yuyu,
(Warmenbol ed. 2006: p. 58).
Reinado Novo. Cairo JE
72270 (Warmenbol ed.
2006: pp. 58-59).
Fig. 37 Estela de Inhermes,
Reinado Novo. Cairo JE 72260
(Warmenbol ed. 2006: pp. 60-61).
113-114), a qual é mais comum nas representações mumiformes das quais trataremos mais
adiante. Essas perucas avolumam-se na parte posterior da cabeça, cobrindo completamente o
pescoço e caindo sobre os ombros e peito. As orelhas, nem sempre muito visíveis,
sobrepõem-se a esse adereço, assim como os chifres, que figuram tanto em crescente quanto
em “V”. Entre eles pode haver um disco com uraeus 1 , mas a versão simbólica do astro
solitário é mais frequente.
O triângulo frontal invertido só foi encontrado em duas estelas, e em ambas seu
destaque se deve à pintura negra da face do animal 2 . As manchas negras espalhadas pelo
corpo e que qualificam as estelas de Ápis também não são abundantes, talvez pelo
decaimento progressivo das cores outrora aplicadas sobre elas. Aqui, como nas
representações em atitude de marcha, as marcas localizam-se na parte de trás do corpo sobre
a coxa, na região dorsal e uma que cobre os ombros 3 que, em alguns casos, pode
compreender a cabeça. Entretanto, várias delas a deixam totalmente branca 4 e uma exibe
uma faixa alva entre ela e a marca negra dos ombros (pr. SEest 124). Por fim, há também
algumas imagens em que as manchas descrevem padrões irregulares pelo corpo 5 .
As imagens de Ápis deitado são exibidas sobre uma grande variedade de suportes.
Vemo-lo diretamente sobre uma linha de base 6 , sobre suportes baixos 7 , altos 8 , em forma de
trenó (pr. SEest 117), e combinados de uma base alta sobre um trenó (pr. SEest 98) ou o
inverso (pr. SEest 87). Entre as bases altas e baixas há aquelas com cornija em cavetto,
delineada ou não, e um tipo de base elevada com um nível inferior à frente da qual surge
uma flor de lótus (pr. SEest 105).
Somente um caso mostra Ápis no interior de uma capela com friso estilizado de
uraeus que, por seu lado, está no interior de outro santuário com arquitetura aproximada ao
pr-wr 2 do Alto Egito, do qual brota uma uraeus de sua parte frontal superior (pr. SEest
124).

1
Sobreposto ao disco solar: prs. SEest 54, 92, 114, 143; diante da fronte: pr. SEest 117.
2
Mais uma vez não podemos admitir que em outros casos o triângulo não tivesse sido incluído, já que boa
parte da pigmentação dessas estelas se deteriorou (prs. SEest 93, 124).
3
Aqui também, a área branca na lateral do boi descreve um crescente, claramente indicado na pr. SEest 106.
4
Prs. SEest 106, 110, 142.
5
Prs. SEest 94, 144, 149.
6
Prs. SEest 106, 123. Por vezes flutuando sobre a linha (prs. SEest 127, 146, 149).
7
Prs. SEest 52-53, 121-122, 125-126, 142.
8
Prs. SEest 54-55, 93, 124.

125
No que concerne à anatomia do torso, este pode exibir linhas elegantes e sinuosas
que demarcam tanto a altura e forma das ancas quanto a linha ascendente do pescoço 9 , que
vem logo após um ligeiro arqueamento no centro das costas. Há, no entanto, representações
que conferem a essa parte um perfil tubular10 , ou um declive contínuo da cabeça ao início da
cauda 11 , onde há uma acentuação desse movimento (pr. SEest 95). Em alguns casos, a linha
dorsal é paralela à base 12 . Outra particularidade dessas representações é que, em algumas
delas, a região abdominal e por vezes o tórax estão longe da base onde deveriam estar
pousados 13 , conferindo um perfil mais próximo ao de um felino ao que deveria ser o de um
bovino. E mesmo com essa área à mostra, o sexo, que está regularmente oculto nessas
imagens pela postura do animal, não foi ilustrado.
A cabeça, pela natureza rústica de muitas estelas, apresenta com regularidade
ângulos vivos 14 ou dimensões muito pequenas 15 para a massa corporal, mas há também
aquelas que, ao contrário, indicam um cuidado com a modelagem do focinho e da fronte 16 e
dão-lhes boas proporções.

Atitude de Galope

Esta categoria representativa é a menos recorrente, contando apenas com três 17


estelas no corpus estabelecido. Em todas elas, Ápis está voltado para a direita e suas pernas
frontais e traseiras estão dispostas paralelamente, estendidas respectivamente para frente e
para trás, e sobre uma linha de base. Nota-se que uma atenção especial foi dada à anatomia

9
Prs. SEest 81-82, 87, 93, 98, 117, 121-122, 124, 126, 143-144, 177.
10
Prs. SEest 106, 109, 113-115, 118, 123, 127, 142, 149.
11
Prs. SEest 80, 92, 119, 124, 146.
12
Prs. SEest 95, 105, 109, 114-115.
13
Prs. SEest 52-55, 95, 105, 108-110, 118, 124, 142-143, 146, 149.
14
Prs. SEest 53-55, 110, 118, 127.
15
Prs. SEest 52, 55, 80-81, 87, 95, 105-106, 114, 125-126, 177.
16
Prs. SEest 92-93, 98, 113-114, 117, 119-124, 142-143, 146, 177.
17
Para reduzir ainda mais o espectro de análise desse número restrito, um dos artefatos encontra-se bastante
apagado (pr. SEest 157).

126
dos membros, que apesar de suas proporções, variáveis de uma estela para outra18 , foram
bem definidos e conferem a sensação de movimento à figura do touro. Nenhuma delas
apresenta Ápis com um manto sobre o dorso e duas exibem suas manchas negras usuais,
espalhadas sobre sua parte posterior, no meio das costas e uma que cobre o pescoço e a
cabeça 19 . O triângulo branco, se existiu em alguma dessas pinturas, encontra-se
completamente apagado nas três.
Ainda que se observe a sinuosidade característica do dorso nessas imagens, somente
uma consegue exprimir com maior perícia o efeito do galope sobre a anatomia lombar (pr.
SEest 69). Uma característica comum às três é que a linha que define o peito e o abdômen é
ascendente até a área da virilha. A cabeça é bem modelada nas duas representações que
estão em melhor estado, e tanto o focinho quanto a fronte são bem definidos. As orelhas
também estão presentes e bem caracterizadas, mas na estela em relevo esta localiza-se
abaixo do chifre e na lateral da cabeça (pr. SEest 69), enquanto no artefato pintado ela está
sobre a nuca (pr. SEest 156). É também no artefato escavado que podemos observar detalhes
mais minuciosos da narina e do olho arredondado, ilegíveis nas versões pintadas. Este
mesmo monumento confere uma papada dividida em duas secções – uma curta abaixo do
maxilar e outra prolongada do pescoço ao peito – ao passo que nos outros dois essa região é
definida por uma única curva fechada. Um outro aspecto em comum entre essas imagens, é
que em nenhuma delas 20 o disco solar e/ou a uraeus constam entre os chifres, que tomam a
forma de um crescente no Ápis em relevo pintado e de um “V” na estela pintada em melhor
estado.
Apesar do movimento compulsivo do touro, sua cauda não é afetada por ele em
nenhuma das cenas, e sua extremidade avoluma-se a partir de sua parte mediana. O sexo,
apesar de não visível na fotografia da estela em relevo, é de se acreditar que lá esteja
presente, assim como está na estela pintada mais bem conservada.

18
Em uma estela (pr. SEest 69) as pernas frontais são visivelmente mais curtas do que em outra representação
(pr. SEest 156), mas há de se notar que a constituição física desses membros em um caso e outro são
diferentes. Na primeira, as pernas são robustas ao passo que na segunda são delgadas e leves.
19
Prs. SEest 69, 156. Destas, a primeira indica os limites das manchas também por incisões. A estela que
ficou à parte, confere ao corpo a cor negra e somente as ancas e nuca parecem ter sido deixadas em branco
(prs. SEest 116-117, 157).
20
Ao menos não há traços dele no monumento mais apagado (pr. SEest 157).

127
Ápis Mumificado e Teriomórfico

A primeira característica desta categoria representativa é que, como nas imagens do


touro deitado, Ápis repousa sobre o ventre, com as pernas frontais estendidas ou, mais
frequentemente, encolhidas. Os detalhes dos membros são escondidos por uma mortalha que
envolve a totalidade do corpo, com exceção do pescoço e da cabeça, os quais parecem, na
maioria dos casos, cobertos por uma máscara funerária 21 .
Por vezes, a máscara compreende uma peruca ou toucado 22 que enquadra a face
taurina e desce sobre os ombros e peito. As orelhas e os chifres, que são retratados tanto em
“V” como em crescente, destacam-se sobre o aparato cefálico. Somente em um caso não foi
incluído entre os chifres um elemento simbólico (pr. SEest 39). Nos demais, e seguindo esta
ordem de frequência, vemos o disco solar solitário, acompanhado de uma uraeus, ou provido
desta serpente pendente diante da fronte. Detalhes da face, como olhos, focinho e boca não
estão sempre reunidos em uma mesma ilustração, uma vez que em muitas delas a coloração
negra da cabeça mascara outras particularidades que os olhos, normalmente amendoados e,
quando visíveis, podem exibir, como linhas de maquiagem que inclui as sobrancelhas. Em
outros casos pode ser arredondado 23 e com pálpebras. O triângulo frontal também foi
encontrado em um número pequeno de artefatos.
A mortalha que envolve o corpo pode ser lisa, apresentar motivos geométricos na
linha dorsal ou ser composta de uma tela à semelhança daquelas produzidas com tubos de
faiança 24 , normalmente vistas em múmias do período. Algumas estelas ilustram um manto
sobre a mortalha, que pode ser uniforme e apresentar uma franja ou ser igualmente formado
por uma tela, mas não foi encontrada qualquer estela em que tanto a mortalha quanto o manto

21
Para detalhes sobre o processo de mumificação do Ápis, cf. Vos 1993.
22
Em algumas estelas, esse adereço é constituído de faixas verticais de cores alternadas, por exemplo, prs.
SEest 29-31.
23
Para olho com conformação semelhante e que possivelmente pertencera a uma múmia taurina cf.
Brancaglion Jr. 2001: pp. 123, 148, n° 35.
24
Uma rede de contas funerária composta de elementos tubulares e esféricos similares aos aqui representados
está presente na coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, inv. 83/11.
Brancaglion Jr. 1993: p. 28, nº 27.

128
fossem constituídos desse padrão xadrez – um conflito estético que talvez não agradasse ao
gosto egípcio, mesmo nos artefatos mais simples.
Outro ornamento presente nessas imagens é o colar, que é largo, e em um número de
monumentos possui o contrapeso menat. Sobre a região superior do pescoço também pode
haver um falcão com asas estendidas, mas isto em um número limitado de artefatos.
O perfil do tronco é modelado à semelhança do corpo volumoso do touro quando
mumificado. Por vezes, a linha dorsal assume uma sinuosidade que pode ser acentuada, como
se o volume das bandagens de nada contasse (pr. SEest 29). Em outros, esta região é definida
por um segmento ascendente constante das ancas à cabeça (pr. SEest 89), ou que adquire a
partir da região dos ombros. Mas há também representações em que a linha dorsal ruma
paralelamente em relação à base, ou em declive das ancas em direção ao início do pescoço
(pr. SEest 90). Via de regra, o volume do corpo mumificado procura ser mais ou menos fiel
ao efeito real que as bandagens devem ter produzido sobre as múmias desses touros, mas há
imagens em que sua silhueta parece pouco verossímil e extremamente arredondada (pr. SEest
136). Por estar contida no envoltório, a cauda não é aparente e a região posterior do corpo é
descrita com uma curva que a modela.
O maior número das cenas localiza Ápis sobre uma base alta que pode ser decorada
na parte superior com uma cornija em cavetto. Este modelo pode ser mais elaborado para
assemelhar-se à forma de um santuário. Há também bases baixas que exibem formas
retangulares 25 , outras que são descritas na forma de uma cornija ou aquelas que são
constituídas de um trenó. Uma única estela apresenta um modelo em que uma base retangular
está assentada sobre um trenó (pr. SEest 170). Embora na maior parte das imagens a
representação da múmia do touro esteja associada a algum tipo de base, há aquelas em que o
animal sagrado repousa diretamente sobre a mesma linha de base que outros componentes da
cena. Em outros casos, Ápis parece flutuar no espaço dela, da mesma forma que os outros
elementos pertencentes a ela (pr. SEest 90).
Como em outras categorias representativas, a múmia de Ápis pode estar inserida em
uma capela a qual foi, grosso modo, retratada segundo o estilo de santuários do Baixo Egito,
pr-nw. Durante os períodos Tardio e Ptolemaico, surge um tipo de representação em que o
santuário repousa cobre um carro funerário naviforme e que guarda em seu interior a múmia

25
Em duas estelas foram inseridas inscrições sobre a base ilustrada (prs. SEest 29-30).

129
taurina semi-aparente. O veículo é usualmente equipado, à frente e atrás, com mastros para
seu eventual transporte em áreas em que as rodas fossem ineficientes ou em circunstâncias
cerimoniais. Nas laterais do santuário, que exibem linhas de uma capela 5, é recorrente vê-
las recobertas por fileiras constituídas de colunas djed 6 e do nó tyet Ç em sequência, mas
outros motivos também se fazem presentes. Na sua porção superior, o móvel é
frequentemente coroado por um friso de uraeus que se encontra em uma posição mais
elevada na fachada. Esta pode conter vários pórticos, um inserido dentro do outro, e sobre a
cornija que arremata a parte superior destes, tal como nos templos, estão ilustrados discos
solares alados ladeados de duas uraeus. Também pode ocorrer que, na parte exterior traseira,
haja uma representação de Osíris em pé, e nas extremidades da embarcação que contém o
sacrário, ajoelham-se à maneira de carpideiras, as deusas Ísis e Néftis. De Ápis propriamente
dito só se vé o seu prótomo que o ilustra deitado e mumificado e com um disco solar entre os
chifres usualmente acompanhado da uraeus, posicionada em sua área central.
Esta representação é particularmente interessante porque ilustra parte da cerimônia
fúnebre que se desenrolava na região menfita quando da morte de um Ápis, e o transporte de
seus restos mortais até o local de seu descanso final, o Serapeum.

* * *

Vários elementos podem interagir com essas diferentes categorias representativas de


Ápis. Por serem estelas votivas, não é de se estranhar que nas cenas sejam representados com
frequência indivíduos expressando sua fé de maneiras mais ou menos pré-fixadas: ou
encontram-se ajoelhados, em pé ou estendidos sobre o chão, por vezes portando vasos de
oferendas, com as mãos erguidas em adoração ou com elas abaixadas. Entre a imagem de
culto e os ofertantes se vêem mesas de oferendas com artigos diversos e altares sobre os
quais, por vezes, um personagem verte uma libação. Outras figuras de destaque na cena são
as divindades, que estão sempre próximas ao touro senão atrás dele. Pela associação de Ápis
a Osíris, as deusas que são ilustradas junto dele são justamente aquelas que estão ligadas à

130
mitologia do deus funerário, Ísis e Néftis, que como vimos acima estão presentes na proa e na
popa da embarcação-santuário do carro cerimonial de transporte da múmia.

* * *

Sobre as imagens de Ápis é frequente ver, pintado ou em relevo, um símbolo solar


bem destacado e que tinha por objetivo, tanto a proteção do touro, quanto frisar sua
associação ao astro, já presente na maioria das estelas entre os chifres do bovino. A forma
simbólica predominante é a do disco alado ladeado por duas uraeus, usual no topo das estelas
e em pórticos de templos. Em segundo lugar e com uma margem bastante grande de
diferença em seu número, encontramos um abutre com suas asas estendidas. Por fim, outras
variações incluem a imagem de um falcão ou de um escaravelho com asas vulturiformes
estendidas.
Esses símbolos solares, pela diferença espacial proporcionada pelo suporte material,
foram transpostos para o dorso das estatuetas de bronze desse touro sagrado a partir do
Período Tardio, e ao contrário das marcas da pelagem exibidas nas estelas, estas irão
apresentar essa simbologia como uma de suas principais características. Iremos, a seguir,
expor algumas particularidades sobre esses artefatos.

Os Bronzes de Ápis

Primeiramente, fazem-se necessárias algumas considerações sobre o aspecto técnico


desses artefatos. Embora utilizemos por comodidade o termo “bronze”, na verdade as
estatuetas produzidas durante o Terceiro Período Intermediário e Período Tardio são
constituídas de ligas de cobre com porcentagens diversificadas de estanho e chumbo –

131
segundo as necessidades específicas dos artesãos-, podendo conter metais nobres como prata
e ouro e armações de ferro 26 . O uso de metais de valor não se limitava à sua aplicação como
incrustações em motivos incisos de imagens sagradas ou ornamentos, mas constituíam
elementos necessários para a produção de determinados efeitos estéticos, como por
exemplo, o “bronze negro”. Dependendo da proporção dos metais nobres utilizados, a pátina
podia apresentar o brilho da hematita e o metal assumiria tons que variavam do azul
profundo ao negro e do marrom ao vermelho sangue ou cinza escuro 27 . A evolução
metalúrgica que as dinastias líbias 28 introduziram se estendeu ao Período Tardio e,
certamente, à produção das imagens de Ápis, muitas das quais testemunham um elevado
grau de acabamento. A fundição das imagens se fazia na maior parte dos casos,
especialmente em artefatos elaborados, pela técnica da cera perdida. Em outros, em especial
aqueles de dimensões reduzidas, a imagem era produzida pela deposição do metal derretido
em um molde vazado. Segundo Roeder (1937: §546; 1956: §§ 410d, 412a, 413), os modelos
de cera que serviam para a técnica mais complexa eram compostos de várias partes
separadas, por vezes feitos em formas, que depois eram finalmente unidos para compor a
imagem bovina. Outro processo incorporava ao tronco um núcleo arenoso de argila, que era
então recoberto com uma camada de cera 29 . Ao modelo eram acrescidos bastões da mesma
substância que depois dariam origem a canais por onde o material liquefeito escoaria. O
artefato de cera era então coberto por uma massa argilosa misturada com areia e materiais
orgânicos combustíveis e depois aquecido, um procedimento que fazia o molde endurecer ao
passo que promovia a liquefação da cera e sua saída de dentro dele. Uma vez resistente a
altas temperaturas, o molde recebia o metal líquido pelos canais deixados pela cera e este
assumia a forma produzida pelo modelo ceráceo do touro no interior da forma 30 . As
inscrições na base e imagens solares eram gravadas anteriormente sobre o modelo de cera 31 ,
o qual transmitiria para o molde as impressões que seriam por fim imortalizadas em metal.
Como há estatuetas que apresentam nomes pessoais (prs. SEbr 1, 8, 11, 14, 18, 36), e textos

26
Delange 2008: pp. 38-49.
27
Delange op. cit., p. 39.
28
Hill 2008: pp. 50-63.
29
Algumas estatuetas cuja fundição não foi bem sucedida ou em que a oxidação foi severa expõem esse
núcleo argiloso (prs. SEbr 31, 51, 62, 94).
30
Hill 2008: pp. 262-265.
31
Roeder 1956: § 413, p. 327.

132
em idiomas estrangeiros 32 , fica claro que um número desses artefatos era preparado por
encomenda, enquanto outros, mais genéricos, deviam ser colocados à disposição de um
público menos exigente e, talvez, menos rico. Logo após que as estatuetas saíam de seus
moldes, eram limpas e tinham as rebarbas resultantes da fundição aparadas, poderiam ter seu
valor ainda mais elevado por meio das incrustações de ouro e prata que eram feitas sobre os
símbolos gravados ou vazados no dorso e na fronte (prs. SEbr 11, 70, 113, 120, 121).
Ao contrário das representações bidimensionais das estelas e outros monumentos, os
bronzes não exibem um grande leque de figurações do animal, o que não significa
limitações em sua decoração. Na verdade, esses artefatos são veículo para uma simbologia
particular que serve, nos casos em que inscrições não estão presentes ou quando sua origem
é desconhecida, para identifícá-los como representações de Ápis. Contudo, como veremos, a
frequência dessa decoração ou parte dela não é constante e não podemos fazer dela uma
regra, uma vez que há objetos que não a ilustram e sua identificação ao touro sagrado de
Mênfis é comprovada. Também não podemos descartar a existência de falsificações
modernas que podem vir a comprometer nossa metodologia e que, em muitas ocasiões, só
pode ser detectada pela análise laboratorial da liga que as compõe. Como não dispomos de
meios tão sofisticados para seu estudo, basear-nos-emos somente nas informações
recolhidas sobre esses objetos em catálogos e informações fornecidas por museus 33 , fazendo
juízo desses dados quando necessário.
Os bronzes de Ápis são, na sua maioria, originários do centro de culto a esse touro, o
Serapeum em Saqqara. Embora um lote desses artefatos tenha sua origem certificada por
etiquetas neles coladas por Mariette 34 ou por outras equipes que fizeram escavações nas
redondezas 35 , grande parte deles tem sua procedência incerta e podem, ainda que
remotamente, vir de outros sítios. Um exemplo recentemente descoberto que dá legitimidade
a essa hipótese é a cachette de bronzes do templo de ‘Ayn-Manâwir, no Oásis de Kharga 36 .

32
Na língua cariana, ver, por exemplo, o artefato n° 49061 do Cairo, pr. SEbr 37 (Masson, Yoyotte 1956: pp.
40-49, prs. Va, VIa, VIIa). Para inscrições em grego, Kater-Sibbes, Vermaseren 1975a: p. 34, nº 132, pr.
LXXVIII, nº 132; Kater-Sibbes, Vermaseren 1975b: p. 8, nº 271, pr. XVII, nº 271.
33
Em especial a coleção do Museu do Louvre, cujas informações foram obtidas por meio das fichas de
identificação dos objetos.
34
Prs. SEbr 7, 31, 34, 37, 41-42, 45, 52, 54, 65, 74, 85, 92, 114, 117.
35
Como aqueles encontrados na necrópole de animais sagrados de Saqqara prs. SEbr 11, 15, 69, 93, 95-96,
118.
36
Wuttmann, Coulon, Gombert 2008: pp. 167-173.

133
Outras estatuetas podem ter sido removidas de seu local de origem e escondidas fora de seu
contexto original por saqueadores ainda na antiguidade 37 .
A datação dos artefatos e a aparente impossibilidade de se criar uma tipologia
baseada na cronologia é assunto para outros questionamentos, uma vez que a ampla
periodização abarcada por sua produção, que engloba os Períodos Tardio ao Ptolemaico, não
auxilia em nosso intento de acompanhar a evolução simbólica de Ápis de forma mais
acurada. Para dificultar ainda mais a análise, raras são as vezes em que os artefatos são
exibidos de todos os ângulos, e apesar de serem nitidamente tridimensionais e exigirem essa
abordagem quando de seu registro fotográfico – como testemunha a simbologia registrada
sobre o dorso desses touros – muitos autores sequer fornecem uma descrição adequada
quando os recursos são limitados para a publicação de imagens 38 . Esta mesma dificuldade
foi sentida por Roeder (1956: § 411a) quando de seus estudos, mas sua queixa infelizmente
não sensibilizou os autores de catálogos editados posteriormente. Via de regra, as estatuetas
de touros são mostradas de lado, mas também é comum encontrá-las na diagonal, exibindo
parcialmente uma das laterais e a frente e, em raras vezes, amplamente a parte frontal.
Como nas estelas, fundamentamos nossa classificação na atitude exibida pela
imagem (marcha, galope, deitado etc). e na forma de sua representação (teriomórfica ou
antropomórfica). Dentro de cada uma das categorias vermos suas particularidades
simbólicas e morfológicas. Ao todo, pudemos constatar quatro maneiras em que Ápis foi
representado: teriomórfico e antropomórfico e taurocéfalo em atitude de marcha, e
teriomórfico em galope e deitado.

Ápis Teriomórfico em Atitude de Marcha

Este é o modelo mais frequente entre os bronzes de Ápis e, segundo Roeder, pode
ser classificado em seis grupos de acordo com sua decoração dorsal relativa à simbólica
solar:

37
El-Khouly (1978: pp. 35-43) menciona dez figurinhas de touros, sete dos quais apresentam características
similares a bronzes de Ápis encontrados próximos à entrada da pirâmide de Usekaf.
38
Por exemplo, Berlev, Hodjash 1998; Goyon 2007: p.44.

134
Grupo A: exibe um escaravelho alado 39 na cernelha e um abutre sobre as ancas;
Grupo B: apresenta dois escaravelhos alados, um na cernelha e outro sobre as
ancas;
Grupo C: nesta categoria, ilustra um abutre sobre os ombros e um escaravelho
alado sobre a garupa;
Grupo D: nestes bronzes, os elementos exibidos são dois discos alados sobre os
ombros e ancas;
Grupo E: dois abutres protegem a cernelha e a garupa;
Grupo F: sobre os ombros, consta um disco alado enquanto, sobre as ancas, um
abutre;

A análise dos bronzes pertencentes ao nosso corpus, entretanto, apontou para a


existência de outras duas categorias, que resolvemos classificar dando prosseguimento à
classificação de Roeder:

Grupo G: um disco solar alado sobre os ombros e um escaravelho com asas


estendidas sobre as ancas 40 ;
Grupo H: um escaravelho alado sobre a cernelha e um disco com asas sobre a
garupa 41 ;

Representações similares de Ápis nessa atitude também foram produzidas em


pedra 42 (pr. SEesc 3-5) e marfim (pr. SEesc 2) e nessas figurinhas também são vistos os

39
Em virtude do termo “ornitóptero” se referir a um engenho mecânico que reproduz as batidas de asas de
pássaros ou a uma família de borboletas, preferimos usar a expressão “escaravelhos alados” para fazer alusão
a uma imagem composta em que, ao corpo do inseto com as asas retraídas x, foi adicionado um par de asas
de abutre ou falcão Üx\.
40
Observado no artefato N 5166a da coleção do Louvre (prs. SEbr 106).
41
Na coleção do museu arqueológico de Estrasburgo, nos. 11.987.0.88 e 11.987.0.96 (prs. SEbr 20 e 21).
42
Para uma outra estatueta de esteatita com três imagens solares e pertencente ao Museo Egizio de Turim, nº
818, cf. Kater-Sibbes, Vermaseren 1975a: p. 17, nº 56, pr. XLII, nº 56.

135
Fig. 39 Imagens aladas nos bronzes

Ombros

Ancas

Grupo A Grupo B Grupo C

Roeder

Ombros

Ancas

Grupo D Grupo E Grupo F

_________________________________________________________________

Ombros

Ancas

Grupo H
Grupo G
mesmos símbolos alados 1 frequentes nos bronzes, e alinhados de forma idêntica. Na
estatueta de serpentinita (pr. SEesc 5), ao invés dos dois signos posicionados sobre os
ombros e garupa, há um terceiro no meio das costas e que ilustra um escaravelho com asas
de abutre estendidas. A execução dessas figuras aladas é, como as estelas, muito variável, e
nem sempre as linhas que as compõem estão de acordo com a modelagem da estatueta. As
asas, que normalmente apresentam três camadas de plumagem, podem exibir somente duas
(prs. SEbr 3, 11, 13-14, 16, 26), uma (prs. SEbr 25, 49) ou quatro (pr. SEbr 8). A execução
das plumas também varia muito, de simples traços dispostos longitudinalmente ou de vários
que partem da região superior das asas para encontrar a inferior após uma suave curvatura
em sua extremidade. O corpo das aves é descrito com linhas curvas rápidas à semelhança da
letra “U” – como aqueles encontrados na primeira camada superior das asas - e dispostas em
fila e paralelamente, compondo, desta forma, a plumagem deste. As garras, que são
ilustradas sensivelmente inclinadas para as laterais carregam o símbolo shen ). No caso dos
escaravelhos, estes têm seu corpo regularmente seccionado por uma linha vertical que
separa as elitras e por uma horizontal que delimita o protórax, constituindo assim um
traçado em “T”. Em certos casos as nervuras perpendiculares das asas são bem indicadas 2
(pr. SEbr 8). O outro símbolo, o disco alado, na maior parte dos casos não vem flanqueado
de duas uraeus 3 .
Esta simbologia está sempre alinhada sobre o dorso e sua parte superior direcionada
para a cabeça do touro, desenhando um percurso que parte das ancas, onde aparece o
primeiro símbolo, para seguir até os ombros, onde está o segundo e encontrar, em seguida,
outro que é representado pelo volume tridimensional que o caracteriza, o disco que repousa
entre os chifres. Essas imagens de simbologia solar eram impressas na estatueta como
gravações que podiam ser recobertas por incrustações de ouro ou prata, mas há exemplares
cujas figuras foram feitas vazadas para conter afixadas peças desses metais preciosos.
No meio das costas, contudo, há a ilustração de um manto retangular posicionado
perpendicularmente em relação a estas. Os detalhes de sua decoração apresentam várias

1
Na verdade, o artefato de serpentinita cinza do Museu do Cairo apresenta sobre os ombros do touro um
falcão, ave que segundo Roeder e nosso estudo não está presente nos bronzes.
2
Schoske, Wildung 1992: pp. 95-97.
3
Mas uma exceção consta na coleção do Museu do Louvre (E 3806).

137
combinações de detalhes 4 , que incluem uma faixa lateral interna que pode emoldurar todo o
perímetro quanto seccionar o manto em áreas 5 , uma banda central no alto das costas do
animal com ornamentos 6 que podiam incluir uma sequência de escaravelhos7 , tramas
largas 8 ou estreitas que reproduziam telas de contas tubulares e esféricas e franjas nas
extremidades inferiores 9 .
O colar, quando ilustrado, pode ser definido por uma única faixa que contorna o
pescoço ou por múltiplas secções decoradas de maneira diversa com faixas intermediárias
mais estreitas. Na parte inferior, no início do pescoço, não é incomum encontrar uma franja
semelhante à do manto, mas nem sempre presente em ambos. Um objeto, contudo, apresenta
um arremate ainda mais sofisticado com uma sequência de várias flores de lótus abertas
vistas de perfil. Já um bronze da Walters Art Gallery (pr. SEbr 1) apresenta o pescoço de
Ápis ornado com um colar afeiçoado a uma tiara, cujo corpo é composto de duas hastes
principais e uma menor e central com suas pontas respectivamente elaboradas como buquês
de lótus abertos e fechados. Da mesma coleção, (pr. SEbr 3) há uma estatueta cujo colar é
constituído de várias eflorescências de papiros unidas por uma linha ondulante.
Um dos principais símbolos de Ápis e que é usualmente encontrado em seus bronzes
é o triângulo invertido na fronte. Da mesma maneira que as imagens pelo corpo, essa figura
geométrica é geralmente gravada, mas pode também ser escavada para conter uma
incrustação de metal precioso 10 ou ser em baixo relevo (Kater-Sibbes, Vermaseren 1975a: p.
5, nº 3, pr. VI, nº 3).

4
Em virtude da falta de informações específicas fornecidas pela bibliografia, que nos impede de estabelecer
uma tipologia apropriada da decoração desse detalhe inciso, faremos o possível para, ao menos, traçar
algumas características que estavam visíveis nas imagens disponíveis.
5
Por exemplo, duas regiões quadrangulares nas laterais e uma retangular longa na parte central.
6
A área retangular alongada que servia como separadora das metades laterais podia estar completamente
ausente de imagens (Louvre E 4204), quanto podia estar subdividida em segmentos verticais e horizontais
consecutivos estriados (Louvre 3806), com faixas centrais tracejadas acompanhadas lateralmente de pontos
dispostos em linhas (Louvre E 5073), etc.
7
Por exemplo, no artefato do Louvre E 3654, onde quatro desses coleópteros aparecem alinhados com as já
referidas imagens solares e o bronze de uma coleção alemã (pr. SEbr 8), que exibe dois deles (Schoske,
Wildung 1992: pp. 95-97).
8
Configuradas de maneira a apresentar um padrão em “X”, por vezes com uma conta arredondada no centro.
Há casos, como o do artefato E 3806 do Louvre, em que sobre um fundo de linhas horizontais pode haver dois
fios cruzados e revestidos de contas partindo das extremidades internas dos espaços quadrangulares nas
laterais do manto.
9
Estas podiam ser descritas tanto por pequenos traços paralelos quanto pela representação de gotas ou pontos
que fariam alusão ao uso de contas esféricas.
10
Por exemplo nos bronzes de Munique (pr. SEbr 19) e do Cairo (pr. SEbr 70).

138
Apesar de esse repertório iconográfico ser característico dos bronzes de Ápis, dois
artefatos em nosso corpus, um de uma coleção georgiana 11 (pr. SEbr 102) e outro em
Budapeste 12 (pr. SEbr 100), apresentam-no com a sugestão das manchas corporais vistas nas
estelas e delimitadas unicamente por linhas gravadas. Apesar de não exibir a esperada
simbologia solar, o segundo objeto possui um triângulo na testa em baixo relevo que
confirma a identidade que a demarcação das manchas sugere e é sobreposto de um anel
corroído onde deveria figurar um disco solar entre os chifres. A outro exemplar interessante
pertencente ao Louvre 13 (pr. SEbr 101) foi conferida unicamente uma incisão na forma de
um crescente na parte superior das costelas no lado direito.
O disco solar, geralmente acompanhado da uraeus 14 , figura entre os chifres na
maioria dos artefatos, mas há aqueles que foram concebidos sem eles 15 (pr. SEbr 31), ou
somente com o disco (pr. SEbr 51, 95). Encontramos a serpente ereta sozinha nesse local
somente nas estatuetas em atitude de galope 16 (prs. SEbr 122-123). Apesar de sua
frequência, o disco não é um atributo que por si só confere à imagem a identidade de um
Ápis, uma vez que, como representante da divindade heliopolitana, Mnévis também pode
ostentá-lo 17 . Quando o grau de sua concepção é elevado, esse símbolo apresenta um perfil
lenticular e a uraeus pode ser apresentada parcialmente destacada, logo abaixo de sua
cabeça. Roeder (1956: §§ 410, 412, 413) observou em várias estatuetas que esse atributo não
era elaborado diretamente no modelo de cera, mas feito à parte em um molde e, depois,
incorporado a este. Dependendo do molde, se ele era fechado ou aberto, obtinha-se uma ou
duas faces do disco com a aparência de uma calota formando, desta maneira, um o perfil
lenticular (prs. SEbr 1, 3, 5, 8, 39, 46). No que concerne às suas dimensões, é usual retratá-
lo com um diâmetro que supera o comprimento da cabeça (pr. SEset 9-10, 16, 18-19, 38),

11
Berlev, Hodjash 1998: p. 64, pr. 90, VI. 20. As poucas informações fornecidas pelo catálogo não
mencionam o triângulo na fronte ou sequer a particularidade da decoração corporal.
12
Castiglione 1961: pp. 21-29; Kater-Sibbes, Vermaseren 1975: p. 48, n° 396; pr. CXV 396.
13
Na ficha do museu, N 3763 (?) c (sic); em Kater-Sibbes (et al., op. cit., p. 68), consta unicamente N 3763.
14
Em alguns artefatos elaborados, a parte central do dorso dessa serpente está destacada do disco (prs. SEbr 5,
8).
15
No entanto, muitos podem tê-lo perdido em virtude da ação da oxidação, como é o caso do bronzes das
pranchas SEbr 22, 24, 26 28.
16
Tal como nas cenas pintadas nos pés de ataúdes (prs. MONdiv 22, 24; fig. 41). É possível que a ilustração
da uraeus solitária entre os chifres esteja associada à atitude de galope, mas sem um estudo mais abrangente
dos bronzes é arriscado emitir esta afirmação com certeza.
17
Por exemplo, Louvre E 6857 (pr. SEbr 110) e Petrie Museum UC 16461 (pr. SEbr 111). Não somente nos
bronzes, mas também em representações bidimensionais (pr. MONdiv 16-17).

139
conferindo-lhe grande destaque na estatueta, prática que não nega a existência de modelos
com discos solares mais sutis. Em poucos casos foi adicionado na parte posterior do disco
um reforço que se apóia sobre o pescoço com o objetivo de evitar a fratura desse símbolo
(prs. SEbr 60, 66), uma eventualidade que se abateu sobre alguns artefatos presentes em
nosso corpus.
Quanto à anatomia taurina, esses bronzes estão longe de ser uma representação fiel
do animal. São, antes de tudo, idealizações que compreendiam não somente detalhes
corporais e proporções, mas também a atitude em que o touro foi representado. Ao contrário
do gosto helenístico-romano pelos detalhes anatômicos e do movimento, preferência que se
vê inclusive nos bronzes de Ápis realizados durante essa época, as representações
tradicionais do período faraônico tendem a sintetizar as linhas principais do bovino em um
objeto icônico que transmite, nada mais, nada menos, do que o perfil tradicional visto no
hieróglifo ! (E1). Este símbolo não reflete com fidelidade a andadura de um bovino,
como foi bem apontado por Roeder (1956: § 410), mas uma re-interpretação adequada à
estética egípcia, que não permitiria as pernas traseira e dianteira de um mesmo lado
convergirem para uma mesma região. Os músculos, quando sugeridos, estão expressos de
forma sutil na região dos ombros (prs. SEbr 1, 3-5) e as costelas nunca são ilustradas. Nos
bronzes de alta qualidade, as pernas são bem torneadas e retratam bem a junção dos
membros e os detalhes dos cascos delineados (prs. SEbr 1-5, 7-11). À cauda também foi
dada uma atenção especial naqueles exemplares que a destacavam da perna posterior
direita 18 na sua parte mediana (prs. SEbr 8, 11,14, 19). Dependendo da posição desta, a
cauda desce perpendicular à base ou ligeiramente inclinada para trás, e avoluma-se
progressivamente até próximo da extremidade, ganhando uma ponta arredondada. Em certos
casos, esta parte é decorada com estrias que procuram lembrar o tufo do limite do rabo.
Como cada artefato é único em sua produção pelo método da cera perdida, a
modelagem do torso mostra-se variável de objeto para objeto em suas particularidades,
impedindo assim a constituição de uma classificação inquestionável para todos eles. Entre as
características aqui levadas em consideração citamos a forma da papada, o volume do tórax

18
Membro mais próximo e, logicamente, o ponto de fixação mais adequado para evitar sua fratura ao menor
toque.

140
em relação ao restante do corpo, a definição das linhas torácico-abdominal e dorsal e as
proporções da cabeça em relação ao corpo e deste em relação aos membros.
Quando representada da maneira mais simplificada, a papada pode ser descrita por
um segmento retilíneo, ou levemente ondulado, e inclinado da extremidade inferior do
maxilar até o peito (prs. SEbr 4, 42), sem interrupções em seu percurso ou por uma linha
sinuosa em “S” com sua curvatura superior mais aberta e menos acentuada que a inferior
(prs. SEbr 1, 2, 5, 10, 12). Há, no entanto, aquelas com toque mais “barroco”, e que
deslizam abaixo do peito por meio de várias ondulações, a mais ampla delas a que está
abaixo (prs. SEbr 3, 6, 13, 45). A múltipla ondulação na parte superior procura salientar o
acomodamento das carnes à modelagem de um colar, mas nem sempre a descrição deste
coincide com esses volumes. Curiosamente, a imagem das estelas prefere uma figuração
mais sintética da papada, embora não menos elegante.
O volume torácico é um elemento chave que, juntamente com a elevação na área dos
ombros, salienta o aspecto da potência física e a consequente fertilidade do touro 19 que, em
muitos artefatos, não condiz com a maneira como a cabeça e os membros foram
modelados 20 (prs. SEbr 3, 4, 22). Em alguns casos, é a curvatura da papada que vem ao
encontro do peito que confere esse perfil ao conjunto que, como dissemos, é destacado pela
curvatura dos ombros 21 . Mas há objetos em que tais atributos parecem ter sido indiferentes,
e o corpo é pouco mais do que um tubo com laterais levemente achatadas 22 .
A linha torácico-abdominal pode apresentar um perfil retilíneo e paralelo à base,
como no exemplo que acabamos de comentar, ou pode descrever um percurso ascendente do
peito até a virilha, de onde se projeta a representação do órgão genital a qual, em algumas
circunstâncias, está confundida.
O perfil dorsal, de sua parte, pode acentuar suas extremidades nas ancas e ombros,
criando assim uma concavidade na região central das costas onde o manto costuma estar
ilustrado, mas há exemplares que apresentam um percurso resoluto desde a garupa até antes
dos ombros, onde adquire uma sinuosidade ascendente até o pescoço para daí rumar até a
cabeça. Mas como o leque de representações é muito variado, não deixam de existir

19
Ver, por exemplo, as coleções de Amiens M.P. 94.3.120, M.P. 87.3.1 (prs. SEbr 28, 99).
20
Os membros não raramente são modelados esguios e a cabeça pequena para o porte do animal.
21
Ver por exemplo o bronze do museu Granet (pr. SEbr 2), de Aix-en-Provence (Barbotin 1995: pp. 124-125,
n° 59).
22
Londres, University College UC 30808 (pr. SEbr 69).

141
artefatos que exibem um perfil dorsal contínuo das ancas até o alto da cabeça 23 , mas nunca
foi conferida à região central das costas qualquer elevação. Ainda que vários artefatos
exibam uma destacada perícia em suas formas, um número deles foge às boas proporções ao
salientar o alongamento ou afinamento do tronco (prs. SEbr 67, 69, 87) e das pernas (prs.
SEbr 82, 84).
A cabeça repetidamente revela um cuidado especial que é visível na maneira como
seus detalhes são descritos por meio de combinações diversas. A linha que compõe a fronte
desce do alto da cabeça em um segmento inclinado até a altura dos olhos, onde muda sua
orientação para descrever o focinho, que normalmente é mais longo em sua região frontal do
que em sua parte inferior junto ao pescoço. Em alguns casos, no entanto, o perfil é descrito
por uma linha contínua do alto da fronte até a extremidade do focinho. Quando vistos de
frente, podem sofrer um estreitamento progressivo que confere à cabeça uma forma mais
triangular ou manter sua largura até próximo da ponta. Por razões de má conservação, não é
sempre que as narinas e a boca são distinguíveis pelas suaves linhas que as descrevem, mas
alguns bronzes em melhor estado as expõem com destaque. Os olhos, por vezes grandes,
podem traduzir formas amendoadas ou arredondadas de acordo com o artefato, e em alguns
exemplares podem ser constituídos de incrustações de metais precisos. Localizadas
aproximadamente na altura dos órgãos da visão e na região da nuca situam-se as orelhas,
sempre bem expressivas em suas dimensões, apontadas para as laterais e voltadas para frente
ou pouco inclinadas para baixo. Sua forma pode lembrar a de um fuso ou de um trapézio
retângulo invertido, como algumas caudas de peixe, e o pavilhão auditivo indicado por uma
concavidade horizontalmente estriada à semelhança da pelagem aí localizada. Sobre a
fronte, como já foi acima comentado, é habitual encontrar um triângulo invertido gravado ou
incrustado, que além de ser um atributo exclusivo de Ápis, sintetiza a própria geometria da
cabeça taurina.
No que concerne aos chifres, embora reconheçamos em alguns artefatos a
configuração de um crescente, é mais comum encontrá-los à maneira de um “V” mais ou
menos aberto dependendo do artefato e com comprimento não maior do que aquele da
cabeça e cuja secção descreve um triângulo isósceles. Entre esta moldura córnea se insere na
maior parte das vezes o disco solar com a uraeus.

23
Descrevendo, desta forma, um percurso paralelo à base.

142
A base, quando unida à imagem taurina, pode contar com alguns centímetros de
altura ou ser medida em milímetros, dependendo do tamanho do artefato e de sua
elaboração, mas os textos que algumas delas exibem só são registrados nas laterais das bases
mais elevadas. Esses pedestais podem estar configurados em retângulos, no modelo de
trenós ou podem ser mistos 24 , e o material da base inferior pode ser tanto o bronze quanto
madeira 25 . Para sua fixação nos suportes não metálicos, essas bases continham na porção
inferior uma ou mais cavilhas fundidas na mesma peça. Muitos artefatos com base baixa
sofreram severos danos com a oxidação e perderam sua característica forma retangular. Em
casos raros, sua concepção assemelha-se à de um zigue-zague (pr. SEbr 85) ou estão
completamente ausentes 26 (pr. SEbr 99). Esses suportes podem ser ocos ou maciços e as
inscrições não necessariamente cobriam a totalidade de suas laterais. No caso de uma base
inferior modelada como um trenó, as inscrições estão descritas sobre a parte frontal e
recurva das pás de deslizamento 27 .

Ápis Teriomórfico em Atitude de Galope

Esta categoria de figuração dos bronzes não é tão usual quanto a anterior, e nem
sempre sua caracterização na atitude do galope é clara por intermédio desses poucos
artefatos, uma vez que alguns agrupam as pernas frontais e traseiras paralelamente e quase
que perpendicularmente em relação á base 28 . No entanto, como a escultura egípcia seguia
certas normas para a ilustração do universo material, e a imagem de um bovino em pé e
aparentemente imóvel não fazia parte desse repertório, a única aproximação nesses casos
extremos é o da atitude de galope. Não é improvável que em certos casos como no da
prancha SEbr 124 tenha havido certo grau de influência do estilo grego 29 que

24
No caso, de uma base retangular sobre a qual o touro está assentado encaixar-se em uma outra, com aspecto
de um trenó.
25
Neste caso, observa-se que elas tendem a copiar as linhas de um trenó.
26
Neste caso, as estatuetas certamente se assentavam sobre bases de madeira por meio das cavilhas
localizadas abaixo de seus cascos.
27
Louvre E 4204.
28
Roeder 1956: § 420a.
29
Sobre a influência grega na postura de touros em pé, cf. Roeder 1956: § 420.

143
consequentemente atribuiu uma outra postura a alguns objetos, mas como a atitude de
galope dos artefatos que aqui ressaltamos encontra similaridade com aquela das tradicionais
cenas da corrida de Ápis, e por apresentarem elementos simbólicos característicos desse
deus segundo a estética e linguagem egípcias, não há porque acreditar que este tema tenha
recebido maior preponderância estrangeira que local.
A atitude de galope se caracteriza pela disposição das pernas frontais e traseiras
estendidas, respectivamente, para frente e para trás, e podem estar apoiadas ou não sobre
uma base. Em alguns casos 30 , são as pernas frontais que transmitem à imagem a impressão
do galope, enquanto que as traseiras parecem estar simplesmente pousadas sobre o chão.
Assim como as figurações em atitude de marcha, as imagens de Ápis desta classe
apresentam acabamento diversificado que pode incluir a totalidade ou parte da simbologia
particular a esse animal. Não se constatou, no entanto, qualquer artefato que exibisse os
contornos das manchas que são corriqueiras nas estelas e que encontramos em duas
estatuetas em atitude de marcha. Entre os artefatos reunidos, observou-se a combinação de
símbolos equivalente aos grupos A, D e F 31 de Roeder (1956: § 411). Como nosso corpus
não abrange a totalidade das estatuetas existentes, não podemos admitir com certeza se os
outros grupos da classificação do erudito alemão não estão presentes nesta categoria das
representações de Ápis. No entanto, o grupo novo aqui classificado como “G”, que
compreende um disco alado sobre os ombros e um escaravelho com asas igualmente
estendidas sobre as ancas é representado por dois bronzes, um da coleção do Louvre 32 (pr.
SEbr 117) e outro do museu Petrie 33 (pr. SEbr 118). Mas como nem sempre a simbologia é
retratada completa, por vezes temos que observar atentamente pela indicação de um único
atributo característico. Em uma estatueta do Louvre 34 (pr. SEbr 121) desprovida de
inscrições e simbologia sobre o dorso, é o triângulo frontal associado ao disco com uraeus

30
Por exemplo, nos artefatos das coleções dos museus Vleeshuis, n° 79.1.76 (pr. SEbr 112), Britânico, EA (?)
58963 e EA (?) 64507 (prs. SEbr 113, 115), Petrie, UC 30493 (pr. SEbr 118), Kunsthistorisches, n° 4151 (pr.
SEbr 120), Louvre, n° E 3810 (pr. SEbr 121).
31
Na ordem citada e mencionando primeiro o símbolo sobre os ombros e depois aquele sobre as ancas:
escaravelho alado e um abutre (prs. SEbr 112-113, 116), dois discos alados (pr. SEbr 114) e um escaravelho
alado e um abutre (pr. SEbr 116). Estranhamente, o autor não atribui sua classificação de A-F a outro tema
que o da atitude de marcha e sequer a menciona na seção que trata dos touros em atitude de galope (ibidem, §
420).
32
AF 2894, N 5073.
33
Descoberto por Emery quando das escavações em Saqqara norte, na área da necrópole de animais sagrados.
34
N° de inventário E 3810.

144
entre os chifres que são os principais indicadores da identidade do touro. Mas nem sempre
os signos mais corriqueiros nos bronzes de Ápis são os que podem ajudar em sua
identificação. Um elemento não encontrado nas estatuetas em marcha e presente unicamente
em um exemplar do museu de Viena ilustra um crescente incrustado de prata logo abaixo do
colar 35 (pr. SEbr 120). Curiosamente, este é o único 36 símbolo presente na estatueta cujos
chifres, e possivelmente disco com uraeus, estão perdidos, e a imagem lunar nessa posição
só encontra paralelos com representações de Ápis em cenas de algumas estelas votivas do
Serapeum 37 . Há, no entanto, artefatos cuja identificação não pode ser feita nem pela
simbologia gravada nem pela inscrição na base por estarem ambas ausentes 38 , e ainda que
um disco com uraeus apareça perfeitamente emoldurado pelos chifres, este símbolo por si só
não é suficiente para relacionar a escultura ao touro menfita, uma vez que Mnévis,
manifestação do próprio deus solar, é retratado com o mesmo atributo (prs. SEbr 110-111).
Ainda assim, no caso desta categoria de bronzes, a somatória do disco entre os chifres com a
forma galopante do touro, característica de Ápis, não levanta dúvidas sobre sua identidade.
Por apresentarem as pernas estendidas, as estatuetas desta classe passam uma
impressão de maior liberdade nas linhas que definem seu corpo, principalmente aquela que
compõe o tórax e o ventre. Em algumas delas, o torso é esguio e exibe um perfil
particularmente elegante (por ex. prs. SEbr 114-117, 120-123). Como nas esculturas em
marcha, a musculatura é somente sugerida por volumes discretos nos ombros e coxas, e o
animal parece não deixar transparecer qualquer esforço em sua atividade física. As pernas na
maior parte dos artefatos estudados expõem seus volumes torneados 39 de maneira bastante
realista e os cascos foram minuciosamente esculpidos 40 .

35
Kunsthistorisches Museum, n° 4151 (pr. SEbr 120). Estranhamente, Roeder (1956: § 420c) não faz menção
a este atributo quando descreve o artefato e nem sua pertinência para seu método de classificação.
36
Não contamos o colar como sendo um símbolo, mas um adorno. No caso do artefato da coleção vienense,
este é constituído de quatro linhas paralelas finamente incrustadas de ouro.
37
Prs. SEest 25, 27, 30-31, 104, 151, 174, 197, 219. A identidade do touro é confirmada pela inscrição na
base retangular que foi moldada sobre uma outra em forma de trenó em uma única peça (Roeder 1956: §
420c). Mas ainda que o texto não estivesse presente para trazer tal confirmação, a característica forma de
representar o animal galopando associado ao crescente no pescoço são elementos suficientes para não se
duvidar de que o bovino em questão seja um Ápis, mesmo na ausência da simbologia usual.
38
Por exemplo, em alguns amuletos que por suas dimensões reduzidas, dificilmente exibem símbolos (prs.
SEbr 125-126).
39
Especialmente no caso dos artefatos dos museus Britânico (prs. SEbr 113, 115) e do Louvre (prs. SEbr
117, 121)
40
Cf. prs. SEbr 112-115, 117-120.

145
A papada, como na categoria de bronzes anterior, pode apresentar várias ondulações
em seu percurso descendente até a parte inferior do peito. A mais simples descreve um arco
aberto que liga essas duas regiões (pr. SEbr 119). Outras configurações incluem o modelo
em “S” estendido (pr. SEbr 118), de dois segmentos 41 que se encontram formando um
ângulo aberto (prs. SEbr 114-116) ou de uma linha que em seu percurso inclinado
desenvolve pequenas ondulações (pr. SEbr 113). Na maior parte destes artefatos, a papada
desce abaixo do nível do tórax trazendo à imagem uma impressão mais realista. Mesmo com
essa preocupação, esta e outras partes flexíveis como a cauda, são reproduzidas de maneira a
ignorar a ação do movimento sobre elas imposta com a atividade que o animal transmite
para privilegiar a estética das linhas puras e claras, livres de uma perturbação caótica
indesejável aos padrões simbólicos e estéticos.
Esta noção de serenidade, acompanhada em outras representações de Ápis, é bem
expressa por sua aparência tranquila e pacífica, e aqui, a agitação acelerada e impetuosa de
seu movimento é completamente dissolvida em sua fisionomia dócil. O focinho, modelado
de maneira diversificada, denota nos artefatos mais elaborados um tratamento especial em
suas formas com ângulos afeiçoados. Algumas peças traçam a fronte e o focinho por meio
de um segmento praticamente retilíneo (prs. SEbr 112, 115, 118), enquanto outras procuram
realçar ainda que suavemente o desnível entre estas duas partes (prs. SEbr 113-114, 116,
117, 119-121). As narinas são assinaladas por orifícios discretos e sensivelmente alongados,
enquanto a boca é praticamente imperceptível por ficar escondida sob o volume muscular
que a sobrepõe.
Os olhos, na maioria dos casos arredondados, exibem o duto lacrimal ligeiramente
inclinado e apontado para o focinho 42 , mas outros exemplares os ilustram amendoados 43 e
até com pálpebras ou sobrancelhas 44 . Sempre bem visíveis e apontadas para os lados, as
orelhas localizam-se na área da nuca, atrás da linha dos chifres 45 , podem estar viradas para
frente ou suavemente inclinadas para baixo, na direção do focinho, e frequentemente exibem
o pavilhão auditivo bem indicado. Nos casos em que estão íntegros, os chifres parecem ter

41
Retilíneos ou suavemente curvilíneos.
42
Ver, por exemplo, as pranchas SEbr 113-116, 119-121.
43
Prs. SEbr 112,117-118, 122.
44
É o caso de um artefato da coleção do museu de Antuérpia (pr. SEbr 112) e de outro do Hermitage (pr.
SEbr 122).
45
Em um artefato de elaboração menos requintada, estas aparecem no final do pescoço, ao centro (prs. SEbr
112).

146
sido todos modelados no padrão em “V” 46 , e apesar de bem distintos, não têm dimensões
comparáveis às do gado comumente ilustrado durante o Reinado Antigo. Entre eles repousa
o já conhecido disco solar com uma uraeus 47 , modelado em alguns casos em uma fôrma
dupla que conferiu um perfil lenticular (prs. SEbr 113, 116, 117, 119) e, em outros, em um
molde que privilegiava a parte frontal (prs. SEbr. 114, 121). Um dos artefatos tem esse
atributo reforçado na parte de trás por um prolongamento que desce sobre o pescoço (pr.
SEbr 119), e constantemente o disco tem um diâmetro semelhante 48 ou maior 49 do que o
comprimento da cabeça taurina. Duas imagens apresentam unicamente uma uraeus entre os
chifres (pr. SEbr 122-123), representação que como já tivemos a oportunidade de comentar
mais acima encontra paralelos com as cenas nos pés de ataúdes (prs. MONdiv 22, 24; fig.
41).
A linha torácico-abdominal pode descrever um percurso paralelo à base ou pode
adquirir um suave declive do peito até a virilha, sendo surpreendida pela rápida descrição do
órgão genital, mas duas estatuetas exibem sobre essa extensa área a convergência das peles
peitorais e abdominais que se confundem com o peso das carnes que compõem a papada
(prs. SEbr 113-116, 122-123). O perfil dorsal, de sua parte, sofre um arqueamento na região
central do dorso que se manifesta de maneira muito sutil e quase que imperceptível em
alguns artefatos, e seu curso em direção ao cimo da cabeça se faz por meio de um
movimento ascendente contínuo e com uma inclinação pouco pronunciada 50 .
A cauda, como já mencionamos brevemente, não reflete a agitação do movimento
que o touro reproduz, e está em muitos casos completamente unida às pernas traseiras para
não correr o risco de se partir (prs. SEbr 112-114, 117-119, 121-122) ou destacada delas
somente em sua parte central (prs. SEbr 115-116 ,123). Quanto à forma, a cauda pode descer
perpendicularmente para estreitar-se em sua extremidade ou pode aí ganhar um
intumescimento característico (prs. SEbr 116, 119, 122).

46
As figurinhas representadas pelas pranchas SEbr 124-125 não estabelecem uma diferenciação entre os
chifres e o disco.
47
A serpente, no entanto, não é sempre exibida em artefatos de dimensões menores, como aqueles das
pranchas SEbr 124 e 125.
48
Por exemplo, prs. SEbr 115, 117, 119, 121.
49
prs. SEbr 112-114, 116.
50
As únicas exceções em nosso corpus são um artefato do museu Vleeshuis (pr. SEbr 112), e outro do Louvre
(pr. SEbr 124). Este último, no entanto, pode ter sido espelhado na estética grega.

147
Ainda que possa repousar sobre uma base retangular, seja ela baixa (prs. SEbr 112,
119, 123) ou alta (prs. SEbr 117-118), não é incomum encontrar neste tipo de representação
de Ápis estatuetas que foram elaboradas sem ela (prs. SEbr 114-115, 121,124). Neste caso,
para se fixarem sobre um suporte de madeira (pr. SEbr 118), elas contêm abaixo dos cascos
pinos de sustentação fundidos na mesma peça (pr. SEbr. 124). Mesmo artefatos moldados
com base podem apresentar essas cavilhas, como ilustra a prancha SEbr 118, que servem
para fixá-las a uma outra base de madeira que podem, como ilustra o artefato do Museu
Petrie que foi encontrado exatamente dessa maneira, assumir a forma de um trenó. Por outro
lado, o bronze da coleção vienense exibe com grande maestria e em uma única peça, o touro
em galope sobre uma base retangular que, por seu lado, repousa sobre outra na forma de um
longo trenó (pr. SEbr 120). As bases, como no caso de outras categorias de bronzes de Ápis,
podiam ser maciças (prs. SEbr 113, 118, 122) ou vazadas (prs. SEbr 117, 120), dependendo
da disponibilidade de metal ou da preferência do escultor.

Ápis Teriomórfico Deitado

Embora esta postura seja recorrente nas imagens das estelas do Serapeum,
pouquíssimos são os bronzes que acreditamos retratar Ápis desta forma. Isto se dá por uma
série de motivos. Primeiramente, como a origem da maioria dos artefatos é tão incerta
quanto a sua datação, há certo risco de que possamos tomar por uma estatueta votiva uma
unidade de peso, uma vez que durante o Reinado Novo era habitual usar como padrão de
medida uma estatueta de um boi deitado ou simplesmente uma cabeça bovina 51 . Em
segundo lugar, a posição assumida pelo bovino nesses bronzes pode levantar dúvidas quanto
ao seu sexo, uma vez que nem sempre os chifres que denunciariam um touro ou uma vaca
encontram-se preservados e o órgão genital fica completamente escondido sob o corpo em
descanso. Para completar, não há registros de que tais objetos exibam os símbolos solares
frequentes nas outras categorias.

51
Pendlebury : 1933: pr. XVI, 4; Roeder 1956: § 424; Skinner 1956: p. 783.

148
Das poucas imagens recolhidas – algumas referidas como retratando vacas –
encontramos somente uma à qual podemos atribuir a identidade de um Ápis. Esta retrata o
animal deitado sobre o ventre, com suas pernas frontais recolhidas e as traseiras retraídas
(pr. SEbr 135) 52 . O pescoço está ornado de um colar constituído de três linhas e o dorso não
apresenta quaisquer incisões. Entre os chifres consta um disco solar que é sustentado na
parte de trás por um prolongamento que repousa sobre o início do pescoço. Entretanto, não é
este símbolo que confere a identidade do touro sagrado de Mênfis, mas o triângulo que ele
exibe na fronte, que é exclusivo dessa divindade. Outros artefatos guardam características
semelhantes quanto à posição dos membros, embora as linhas que compõem o dorso e
pescoço variem entre eles 53 .
Um outro objeto (pr. SEbr 137), cuja utilização como peso de balança é
improvável, retrata um bovino deitado sobre uma calota, com a perna esquerda estendida e a
direita recolhida, enquanto que os membros traseiros estão como nos artefatos já citados. A
cauda, volumosa como a de um chacal, repousa sobre a base e está apontada para frente.
Contudo, pelas características que apresenta, não foi possível identificá-lo como o touro
sagrado menfita.

Ápis Antropomórfico e Taurocéfalo

Como afirma Roeder (1956: § 95, p. 61), a representação de divindades com cabeça
de touro é relativamente rara e, especialmente no caso dos bronzes, tal fenômeno se daria
pela preferência pela figuração teriomórfica. Todavia, ao tratar do assunto das divindades
taurocéfalas, o autor não estabelece qualquer método classificatório que possa nos ajudar no
reconhecimento das imagens de Ápis perante as demais e só menciona um único objeto,
pertencente à coleção do Museu do Cairo (pr. SEbr 127) com a identificação de “Osíris-

52
O artefato N 5134 do Louvre (pr. SEbr 136) exibe um manto sobre o dorso que pode lhe conferir uma
distinção em relação a uma simples medida de peso e aparentemente entre seus chifres, que estão hoje
incompletos, ele exibia algum elemento simbólico que pode ter sido o disco solar.
53
Por exemplo, nas pranchas SEbr 135, 136 e 137 - os dois últimos tratados como sendo vacas nas fichas do
Louvre. Destes, somente o primeiro apresenta uma decoração sobre o dorso que ilustra um manto retangular e
todos têm os chifres quebrados.

149
Ápis”. Nossa observação sobre as diversas coleções acessíveis indicou, contudo, três
subcategorias que podem auxiliar na identificação de artefatos que não possuam inscrições
ou símbolos distintivos, todos em atitude de marcha e diferenciados pela postura dos braços.
São eles:

1. Ápis caminhante com cetro, com o braço esquerdo flexionado e direcionado


para frente e punho cerrado para portar um cajado e o direito estendido
paralelamente ao corpo com a mão igualmente fechada para segurar um
símbolo ankh (?);

2. Ápis em atitude de lancetar, com o braço direito erguido lateralmente à altura


do ombro e o punho na altura dos olhos e o esquerdo flexionado à frente do
corpo com a mão fechada diante da cintura;

3. Ápis caminhante com ambos os braços estendidos paralelamente ao corpo e


com os punhos cerrados;

A título de nos aprofundarmos nas particularidades de cada uma dessas


subcategorias, iremos a seguir nos basear naquelas cuja identificação a Ápis é certa.
A escultura de 19 cm de altura da coleção do Museu Egípcio 54 deixa transparecer a
excelência do escultor que a concebeu. A despeito de estar ligeiramente desviado do eixo, o
corpo da divindade exibe boas proporções e as massas musculares estão bem distribuídas,
transmitindo a ela um ar decidido e soberano. O braço direito desce acompanhando a
silhueta sem tocar o tronco e a mão, caprichosamente moldada como seu respectivo
membro, está cerrada na atitude de portar um emblema, possivelmente o ankh j. Já o braço
esquerdo está direcionado para frente, dobrado aproximadamente em um ângulo reto e o
punho outrora ostentava um cetro que, como o símbolo da mão direita, está perdido. O único
traje que o deus veste é um saiote shendyt b plissado com um cinturão que delimita a parte
inferior da barriga, logo abaixo do umbigo. As pernas, como usual em atitude de marcha
com a esquerda à frente, exibem firmeza no passo e volumes que buscam as linhas da

54
Número de inventário 38589 bis.

150
anatomia humana. Os pés têm os dedos minuciosamente definidos e com unhas. A cabeça é
recoberta por uma peruca tripartite volumosa, com cachos indicados por estrias e faixas
decorando as extremidades destes, cujos limites estão, na parte frontal, acima da modelagem
do peito. As orelhas sobrepõem-se à cabeleira e apontam para os lados de forma resoluta,
exibindo os pavilhões auditivos ornados com traços que indicam a pelagem dos ouvidos. Os
olhos arredondados somados à modelagem da testa e do focinho conferem um ar de
seriedade ao representado. Tanto as narinas quanto a boca estão indicadas com rigor. Os
chifres espessos, mas não demasiadamente longos, emolduram um disco solar com uraeus
que extravasa em dimensões os limites dos primeiros, e sobre a fronte alta foi gravado um
triângulo invertido, símbolo inconteste do deus taurino de Mênfis.
Essa estatueta que manifesta uma execução superior encontra uma concorrente na
coleção do Louvre (pr. SEbr 128), cuja atribuição a Ápis é igualmente garantida pela
presença de um discreto triângulo descrito em baixo relevo no alto da fronte. Como o
anterior, o torso exibe uma modelagem ímpar que confere ao tórax um aspecto trapezoidal
suavemente destacado do abdômen, o qual apresenta um sutil rebaixamento no perímetro do
umbigo. As pernas e braços são torneados primorosamente, com exceção do antebraço
esquerdo, cujo comprimento está exagerado e transmite uma aparência antinatural por sua
modelagem, e tanto a anatomia dos pés quanto a descrição dos dedos ilustram a atenção
especial que o artefato recebeu. A cabeça, moldada sem exagerar nas feições, apresenta os
seios da face com naturalidade, os olhos ligeiramente amendoados inseridos nas órbitas e o
focinho afinado em sua parte superior contendo dois pequenos orifícios para as narinas. As
orelhas projetam-se lateralmente sobre a volumosa peruca tripartite estriada, que exibe duas
faixas decorativas nas extremidades dos cachos acima do peito. Abaixo dela, um colar usekh
adorna o pescoço da imagem divina e, acima, os chifres grandes em crescente abrigam um
enorme disco com uraeus.
Ainda que menos elaboradas em sua execução 55 , outras duas estatuetas pertencentes
a coleções particulares apresentam um deus taurino da mesma maneira (prs. SEbr 129, 130),

55
O que não significa que por essa razão tivessem menos prestígio e seu valor fosse necessariamente inferior,
uma vez que um desses artefatos, pertencente à coleção Arnold Meijer (pr. SEbr 129), ainda exibe
incrustações de ouro nos olhos que devem ter aumentado o valor de custo dessa imagem quando esta foi
adquirida para ser depositada em oferta no templo.

151
sem, contudo, apresentar o triângulo na testa. Como não temos a garantia de origem desses
artefatos, limitar-nos-emos a estabelecer sua identificação a Ápis como plausível.
A postura exibida pelo deus nesta subcategoria é a mesma reproduzida na maioria 56
das estelas e monumentos em que Ápis é ilustrado com corpo humano. As únicas exceções a
essa postura, onde o deus exibe o braço esquerdo flexionado e a mão cerrada junto ao
peito 57 , por vezes portando um cajado 58 , não encontraram paralelos na estatuária de bronze.
A segunda subcategoria das imagens antropomórficas e taurocéfalas de Ápis está
representada, seguramente, por um artefato apoiado sobre uma base simples (pr. SEbr 131)
e, talvez por outro, figurado na parte superior de um bastão (pr. SEbr 132). Embora o gênero
dos artefatos seja diferente e seu papel fosse igualmente diverso, ambos descrevem uma
divindade taurocéfala na atitude de lancetar uma presa.
O primeiro 59 (pr. SEbr 131), configurado como uma estatueta sobre uma base
retangular com superfícies irregulares, exibe um porte atlético e um corpo bem moldado,
ainda que não definido por linhas nítidas. As pernas ressaltam os volumes da musculatura
com elegância, mas os braços poderiam ter recebido maior atenção em sua modelagem. O
deus veste um saiote shendyt liso com cinturão e sua cabeça está recoberta na parte posterior
por uma peruca tripartite cujos cachos descem até acima do peito e sobre parte das costas.
As orelhas, como é usual, destacam-se sobre a cabeleira com sua orientação horizontal e os
chifres em “V” sobressaem no alto da cabeça enquadrando a parte inferior de um grande
disco com uraeus. Os olhos são amendoados, o focinho arredondado, e a fronte exalta um
triângulo invertido escavado. Na parte frontal superior da base há uma elevação cuja forma,
que não nos é muito clara, segundo Von Bissing 60 representaria um hipopótamo.
O segundo artefato 61 (pr. SEbr 132), que por sua forma originalmente constituía a
parte superior de um bastão ou cetro, é composto de uma coluna papiriforme sobre a qual
repousa uma base retangular alta apoiada por intermédio de um bloco quadrangular no
centro e dois prolongamentos à forma de eflorescências de papiros nas extremidades frontal
56
A única variação é a ordenação dos braços, que dependendo da orientação da imagem divina, era alterada.
Ainda assim, a forma predileta de ilustrá-lo é aquela que encontra paralelo nestes bronzes, com os membros
do lado esquerdo avançados em relação aos do direito.
57
Pr. SEest 88.
58
Pr. SEest 107.
59
Kater-Sibbes, Vermaseren 1975: p. 36, n° 138, pr. LXXX, n° 138; Quaegebeur 1983: p. 31; Roeder 1956:
p. 62, § 95 c, pr. 72h.
60
apud Roeder 1956: § 95 c.
61
Kater-Sibbes, Vermaseren 1975: p. 9, n° 24, pr. XIX, n° 24; Roeder 1956: §§ 95 c, 613 h, ilust. 668.

152
e traseira, os quais partem da região superior do capitel principal. A imagem taurocéfala é
semelhante a anterior, mas com aparência mais robusta expressa tanto pelos volumes dos
membros e da cintura quanto da cabeça. Entretanto, a riqueza dos detalhes deste exemplar
supera os da estatueta da coleção alemã acima citada. Tanto o saiote quanto a peruca
apresentam estrias bem demarcadas, e seus cachos, que encobrem um colar usekh com
múltiplas carreiras, têm suas extremidades decoradas por duas faixas paralelas estreitas. Na
parte de trás da cabeleira figura um elemento inédito em representações antropomórficas
taurinas: um escaravelho alado portando um disco solar entre as patas dianteiras 62 . Da
mesma maneira que o outro objeto, este exibe um disco com uraeus entre os chifres, mas
com uma aparência mais elíptica, um triângulo invertido na fronte, e realiza a ação de
golpear algo com uma lança hoje perdida. Porém, a inscrição que consta na base ao invés de
nomear o personagem como Ápis diz: “Thot, touro em Djedu” (Daressy apud Roeder 1956:
pp. 62, § 95 c, 449, § 613 h). Segundo Roeder, a associação de Thot a um touro é
desconhecida em outras fontes e o autor conjectura uma possível ligação com Seth ou
mesmo com Montu, divindade guerreira cuja teofania era expressa tanto pelo falcão quanto
pelo touro.
Mesmo diante das suposições de um erudito como Roeder, tais associações parecem
pouco convincentes diante de um artefato que partilha características simbólicas claramente
relacionadas com Ápis. Por outro lado, tudo que temos é uma estatueta sem quaisquer
inscrições e um objeto de uso possivelmente cultual com uma imagem similar nomeada
extraordinariamente como Thot. Como não temos como provar que tal atribuição foi um
equívoco – uma hipótese bastante difícil de aceitar diante de um artefato tão cuidadosamente
trabalhado – só nos resta entender a plausibilidade desta representação como uma
manifestação sincrética de Thot como Ápis.
Na falta de outras fontes que ilustrem Ápis desta maneira, podemos presumir que sua
caracterização com uma lança nas mãos prestes a atacar pode ter derivado do deus Hórus,
com o qual compartilhava afinidades por sua ligação com a realeza. Um bronze pertencente
a uma coleção de Baltimore 63 (pr. SEbr 1) contém uma inscrição que prova a ligação entre

62
Kater-Sibbes, Vermaseren op. cit., p. 9, n° 24.
63
Walters Art Gallery, n° 54.538 (Devauchelle 2001: p. 139, nt. 748; Kater-Sibbes, Vermaseren 1975: p. 44
n° 376; Pr. CVII 376; Steindorff 1946: p. 146, n° 637, pr. XCVI).

153
essas duas divindades 64 . Outros documentos que veremos mais adiante, tais como cenas de
Ápis carregando uma múmia às costas reforçam esse vínculo, integrando nele o ciclo de
vida e morte representado respectivamente por Hórus e seu pai, Osíris. Talvez seja por esta
teia de significados que encontramos nesse artefato peculiar o texto que menciona Thot
como nb ©dw “senhor de Djedu” (Busíris), que nada mais é do que um dos principais
centros de culto ao deus funerário Osíris. A partir dessas analogias podemos finalmente
comparar a atitude da imagem taurina com uma cena do templo de Edfu (Baum 2007: p.72,
pr. 62), datado do período Ptolemaico, que representa Hórus arpoando um hipopótamo que
se localiza logo abaixo dele e sob uma linha de base sobre a qual o deus hieracocéfalo está
apoiado. Um bronze da 26ª dinastia pertencente à coleção do Museu Arqueológico Nacional
de Atenas ilustra Hórus nesse mesmo ato de golpear com uma lança, embora não haja sobre
a base qualquer presa 65 .
Como vimos acima, há uma suspeita de que a primeira estatueta do um deus
taurocéfalo desta subcategoria esteja justamente golpeando um pequeno hipopótamo com
um arpão, e por ele apresentar o triângulo na fronte, acreditamos que seja Ápis assumindo o
papel de Hórus. Por ter adquirido o desígnio de guia dos mortos, função esta que se tornará
clara por intermédio das cenas de sarcófagos que iremos apreciar mais à frente, é plausível
imaginar que de acordo com a linguagem do imaginário religioso Ápis também estaria
combatendo o caos 66 , simbolizado pelo hipopótamo 67 , à medida que completava o circuito
solar carregando às costas o falecido, que nada mais era do que o próprio Osíris.
No que concerne ao objeto que se encaixava a um cetro, não há indícios claros do
porquê Thot estaria relacionado a ele 68 , mas a figuração em seu cume, que alude a uma
abertura de caminho com a eliminação das forças do caos, pode ter estabelecido um diálogo

64
“Ápis-Horus dá vida (à) Psamético, filho de Pede-wsire (Petosiris) nascido da senhora Tef”.
65
Tzachou-Alexandri 1995: pp.146, 148, fig. 258.
66
Wilkinson 1994: pp. 176-179.
67
Com efeito, a cena de caça ao hipopótamo é um tema recorrente no repertório iconográfico das capelas
funerárias privadas durante os Reinados Antigo e Novo e o Primeiro Período Intermediário. Cf. Vandier 1964:
pp. 773-786.
68
É possível que este intercâmbio de identidades encontre uma justificativa nas cenas em que Hórus e Thot
aparecem juntos, cada qual portando um vaso hes, realizando a purificação do rei, tal como vemos no templo
de Edfu (Baum 2007: pr. 74) e em bronzes do Período Tardio.

154
com o próprio suporte do artefato, que por sua natureza sempre antecedia os passos de quem
o empunhava 69 .
A última subcategoria desta classificação é aquela que ilustra Ápis em atitude de
marcha com os braços estendidos junto ao corpo. Roeder (1956) não esboça qualquer
comentário sobre esta forma de representação de divindades taurocéfalas, da qual
encontramos dois artefatos que o apresentam desta maneira. O mais elaborado (pr. SEbr
133), pertencente a uma coleção privada 70 , exibe membros e tronco bem esculpidos e a
cabeça modelada com bastante rigor. O focinho pequeno indica as narinas por meio de dois
pontos e a boca por um traço visível em sua extremidade inferior. Os olhos amendoados
estão posicionados à frente da cabeça como se se tratasse de uma imagem humana e um
triângulo escavado está presente no alto da fronte. A parte posterior da cabeça está recoberta
de uma peruca tripartite estriada com bandas decorativas nas pontas dos cachos que descem
até acima da linha do peito. As orelhas apontam para os lados sobre os cabelos e os chifres
grandes em crescente servem como repouso para um disco solar de grandes proporções. O
saiote shendyt plissado é sua única peça de vestuário e sobre ele, nas laterais, estão unidos os
braços. Os punhos estão cerrados e os pés, com os dedos indicados, caminham sobre uma
base à frente da qual se lê “Osíris-Ápis”.
Outro artefato pertencente ao Museu Britânico (pr. SEbr 134) guarda similaridades
com o primeiro, mas sua elaboração é mais rústica e não possui base. Ao invés dela, sob
seus pés sem detalhamento há pinos para fixação em uma base de madeira. O saiote shendyt
liso está ilustrado mais acima do que o habitual, reduzindo a área do abdômen e destacando
o aspecto triangular do peito e ombros. A peruca tripartite klaft assume proporções menos
volumosas que o habitual e as orelhas destacam-se horizontalmente sobre ela. Os olhos
amendoados estão localizados nas laterais da cabeça e o focinho arrebitado não parece
apresentar detalhes das narinas ou da boca. Na região central superior da fronte observa-se
um triângulo invertido escavado e do alto do crânio apontam chifres de comprimento médio
em “V” sem a imagem do disco entre eles.

69
Como testemunham as próprias representações da cultura material e alguns hieróglifos: 3 (A 19) para um
idoso, 4 (A 20) para um idoso com cajado bifurcado, 5 (A 21) dignitário, 6 (A 22) estátua em uma base,
7 (A 23) rei (Gardiner 1969: p. 444)
70
Doetsch-Amberger 1998: pp. 39-45.

155
* * *

Os bronzes de Ápis nem sempre eram objetos isolados depositados em oferta no


templo. Por vezes, e como era usual durante o Período Tardio, vinham acompanhados de
outros personagens e elementos que compunham verdadeiras cenas como aquelas que
notamos nas estelas. Estas composições normalmente eram formadas por elementos
individuais que eram agrupados em uma base comum, de madeira ou bronze, à qual eram
fixos por meio de cavilhas (prs. SEbr 105-107) ou encaixados em áreas vazadas. É
conhecido, no entanto, um objeto que foi elaborado em uma única peça fundida (pr. SEbr
108), do qual trataremos mais abaixo.
Em todos os casos que chegaram ao nosso conhecimento que representam o touro
sagrado dessa forma, ele está figurado em atitude de marcha e da maneira teriomórfica. Na
maior parte das ocorrências, constam somente dois elementos: Ápis de um lado e, do outro,
um ofertante ou devoto ajoelhado e voltado para o touro (prs. SEbr 103-107). Esse
personagem podia ser o rei (pr. SEbr 103), mas na maior parte dos casos trata-se de um
indivíduo que resolveu imortalizar sua devoção a esse deus. Há, todavia, composições mais
complexas em que além desses dois elementos, pode haver uma personagem divina. Um
artefato do Louvre (pr. SEbr 107) ilustra a deusa Ísis sobre uma base pequena e alta, coroada
com o atributo de Háthor - um par de chifres de vaca que contornam um disco solar - e com
as asas estendidas juntamente com os braços em proteção a Ápis. Nesta peça, o ofertante
traz uma flor de lótus pouco mais baixa que ele, e cada um dos três elementos individuais,
os dois deuses e o devoto, estão fixos a uma base retangular alta com inscrições e
encadeados sobre ela.
Outro conjunto pertencente à coleção do Museu do Cairo (pr. SEbr 108) exibe com
maior requinte técnico a ilustração de três personagens divinos em um só objeto que,
aparentemente, é o único desse tipo a incluir o bovino 71 . Sobre uma base baixa modelada à
frente com pás curvadas de um trenó caminha Ápis, acompanhado à direita da deusa Ísis,
que estende seus braços sobre os ombros e a lateral, e atrás por Néftis, que como sua irmã

71
Cf. Roeder 1956: p. 324, §410 c.

156
estende seus membros sobre a parte superior das coxas dele. Este artefato exibe com clareza
um diálogo com a iconografia em torno da religião funerária, em que as duas deusas
assumem um papel fundamental no drama da morte de Osíris, patrono da necrópole de
Saqqara ao qual Ápis estava relacionado.

Casos Especiais e Outros Artefatos de Bronze

Um interessante estudo de Jan Quaegebeur (1983: pp. 17-39) dirige a atenção para a
um grupo particular de artefatos que provariam a conexão de Ápis com a menat (pr. SEbr
140). Esses objetos, compostos por uma égide bovina fixa a um tubo perpendicular 72 pode
ter servido em funções rituais, mas há opiniões de que decoravam extremidades de
mobiliário sacro ou fúnebre 73 . O que é incomum, todavia, não é a função e forma do objeto
em si, mas a discrepância entre o que eles trazem inscrito com o que foi representado. Dois
deles, pertencentes às coleções do Brooklyn 74 e do Louvre 75 , portam inscrições que fazem
alusão a Osíris-Ápís, mas ao invés de uma cabeça bovina caracterizada com chifres taurinos,
essas imagens trazem cornos longos e verticais característicos de vacas que emolduram um
pequeno disco solar com uraeus sobrepostos por um par de plumas de avestruz. Um
triângulo invertido gravado sobre a fronte, em tese, confirmaria a identidade do touro como
Ápis, e um contrapeso menat arqueado liga a parte superior das plumas ao pescoço.

72
Por sua aparência inicial, esse artefato lembra a forma da menat no que concerne à disposição da égide em
relação ao plano horizontal do contrapeso (cf. Delange 2008: 41). Contudo, em virtude de não estar presente a
parte anterior desses objetos – que ao que parece teria um aspecto cilíndrico em parte de seu comprimento
(Roeder 1956: p. 450, § 615b figs. 670-671) - , não há como saber exatamente se estes tinham formas de
contrapesos menat unicamente pela apresentação de uma égide frontal, uma vez que esse motivo também
decorava a extremidade da proa de embarcações sagradas e podia aqui representar um artefato cultual que não
necessariamente teria a função de uma menat.
73
De acordo com as informações da ficha do Museum of Fine Arts de Boston consultada por Quaegebeur (op.
cit., p. 33) e da base de dados da instituição na internet. Um objeto semelhante encontrado na necrópole de
animais em Saqqara foi interpretado como a extremidade de uma vara de sustentação de um ataúde ou de uma
capela (Smith 1976: p. 17, pr. VI, n° 2.
74
Número de inventário 73.25. A inscrição diz: “Osíris-Ápis, possa (ele) dar vida à Hapimen...”
(Quaegebeur op. cit., p. 33).
75
Número de inventário E 5449. O texto na parte superior do tubo possui um voto para que Ápis possa dar
vida à Petubastis (Quaegebeur op. cit., p. 33 .

157
Um peitoral encontrado em meio às escavações na necrópole de animais de
Saqqara 76 ilustra uma égide semelhante – que possivelmente carrega um pequeno
contrapeso menat na parte traseira -, com um triângulo escavado na testa 77 e emoldurada por
um friso decorativo na parte inferior e por uma cornija com disco alado e duas uraeus na
superior. Em um dos lados, e de frente, está representada uma naja com um par de chifres
com um disco sobre a qual se apóia outra, em menores dimensões, coroada com o diadema
do Baixo Egito. Nenhuma informação específica é dada a respeito do artefato além de sua
denominação por Emery como “peitoral com égide de Ápis e uraeus”
A partir desses artefatos, Quaegebeur estendeu a um grupo de bronzes anepigráficos
e de aparência desconcertante tidos como sendo representações teriomórficas das deusas
Háthor ou Ísis, a identidade de Ápis 78 . Estes ilustram um bovino, grosso modo, em atitude
de marcha, com um corpo que lembra o de um touro 79 sem o falo, e apresentando chifres de
vaca somados a um par de plumas e o pequeno disco solar. Em alguns casos, essas estatuetas
têm um triângulo invertido na fronte, trazem uma menat fixada entre o adorno cefálico e o
pescoço e chegam a exibir imagens solares sobre o dorso.
De fato, outros artefatos tais como estelas 80 e cenas de pés de ataúdes 81 (fig. 42) nos
apresentam a imagem de Ápis com o colar menat Z bem ilustrado, mas tanto no caso das
estelas quanto das cenas em pés de sarcófagos, não foi encontrado um único exemplo em
que ele portasse a menat ao mesmo tempo em que ostentava, sobre a cabeça e entre os
chifres, o par de plumas acima do disco solar 82 , tal como vemos na iconografia de Háthor e
outras vacas sagradas como Hesat e de Ísis mãe de Ápis $. Contudo, isso não quer dizer
que esses dois atributos juntos estavam vinculados exclusivamente a elas, como Quaegebeur
76
Emery 1970: p. 6, pr. IX, n° 4; Quaegebeur op. cit., p. 34.
77
Nenhuma particularidade é especificada, mas é possível ver pela fotografia uma depressão triangular
disposta de maneira incomum como um D.
78
Para o artefato de Viena, Kunsthistorisches Museum n° 6628 (Kater-Sibbes, Vermaseren 1975, v. II: p. 75,
n° 544, pr. CXC; Roeder 1956: § 422 b), do Louvre n° E 3655 (Quaegebeur op. cit., p. 29, nt. 74). Um bronze
da coleção do University College (pr. SEbr 109) que apresenta os chifres quebrados e que possivelmente
ostentava o par de plumas, por outro lado, é classificado como sendo um Ápis possivelmente devido ao
triângulo frontal. Mas neste artefato, a menat não está ilustrada.
79
Esta é a referência que Roeder dá para o artefato de Viena: “O corpo é como o de um touro, porém com
úbere”.
80
Prs. SEest 32, 77, 82, 87, 126, 179, 194. Curiosamente estes exemplos não foram citados por Quaegebeur
em sua argumentação.
81
Bickel 2004: p. 117; Gabra 1928: p. 77, figs. 4,6.
82
O exemplo mais próximo ilustra Ápis com esse atributo sobre a cabeça diante de uma flor de lótus (pr.
SEest 164). Esse atributo é um elemento integrante da representação do touro Buchis (Mond, Myers, Fairman
1934: vol.I, p. 45, vol. III, prs. XXXVI-XLVII, LXXIV, CIX, n°5.

158
demonstra por meio de uma imagem de Ápis extraída de um sarcófago 83 , outra do touro
Mnévis em um amuleto 84 e uma de Buchis em uma estela da 20ª dinastia85 . Mas nestas
fontes, de caráter bidimensional, os chifres não apontam características anormais para o sexo
ilustrado e o colar é apresentado na íntegra, com o contrapeso pendendo atrás dos ombros.
Já nos artefatos de bronze, o que é ilustrado é o contrapeso e ele não aparece representado
sobre o dorso, mas fixando o adorno dos chifres ao pescoço, servindo assim como reforço
para que ele não se quebre, ou diretamente na parte posterior desse ornamento 86 .
Quanto ao triângulo na fronte, embora não seja um atributo de outros touros
sagrados, nada impede que seja um elemento presente no simbolismo das “mães de Ápis”, o
qual, em alguns casos pode ter sido transmitido à progênie. Veremos no próximo capítulo
alguns artefatos em que touros não-sagrados datados do Reinado Médio foram ilustrados
dessa forma. Por outro prisma, é natural que mãe e filho compartilhem certas características
que os identifiquem como “família” em meio a tantas divindades com aparência semelhante.
Assim, é de se acreditar que os elementos que mais pesam para a identificação do
animal, seja como Ápis seja como sua mãe, não sejam as possibilidades de ele apresentar ou
não uma menat ou um triângulo na fronte, ambos perfeitamente plausíveis nos dois casos,
mas o fato de exibir chifres longos com um pequeno disco solar sobreposto de um par de
plumas e, no caso de estatuetas, algo que identifique o sexo. Como não sabemos exatamente
a natureza dos artefatos tubulares com égides, não podemos interpretá-los literalmente como
sendo representações do touro, uma vez que as inscrições podem se reportar a um detalhe
que outrora se encaixava nesses objetos e que hoje não podemos dizer com certeza o que
realmente era. De qualquer maneira, este é um tema que merece maior aprofundamento para
se estabelecer as fronteiras – se é que elas existiram realmente - entre as representações de
Ápis e de sua mãe.
Entre todas as categorias de bronzes de Ápis, sejam elas plausíveis ou não, não
encontramos nenhuma que representasse o touro sob o aspecto mumiforme. Como vimos, a
ênfase na representação nos bronzes recai com frequência para o aspecto do movimento,
seja em sua versão teriomórfica ou antropomórfica e taurocéfala.

83
Lanzone apud Quaegebeur 1983: 27. O autor não especifica qual sarcófago seria, em que coleção está ou
sequer sua datação.
84
Op. cit. pp. 28-29, figs. 8a, d.
85
Hodjash, Berlev 1982: pp. 149, 152-153, n° 92.
86
Como no caso da estatueta de Viena.

159
Ápis nos pés de Ataúdes

Este é um tema muito interessante por diversos motivos. Primeiramente, pelo


contexto funerário no qual é encontrado. Não que isto represente uma total surpresa para um
animal que desde o Reinado Novo partilhou com Osíris a simbologia funerária, mas pelo
fato de ter sido incorporado à decoração de sarcófagos e aí desempenhasse um papel de
destaque, uma vez que nesses ataúdes recobertos milimetricamente de inscrições e vinhetas,
receber uma área tão grande e exclusiva na área exterior dos pés é por si só uma boa razão
para despertar a atenção de qualquer estudioso. Como esses esquifes eram projetados para
ficarem deitados e não em pé, ao contrário de como os museus normalmente os exibem por
falta de espaço e a mídia tem o hábito de incutir no imaginário coletivo, podemos aí
entender a ênfase dada à localização da cena de Ápis, a qual era descrita, grosso modo,
sobre pranchas de madeira estucada que fechavam os casulos de cartonagem que protegiam
as múmias a partir do Terceiro Período Intermediário 87 . Entretanto, a ilustração do touro
nessa área não estava relacionada ao seu prestígio momentâneo como motivo decorativo,
mas fazia parte de uma intrincada linguagem simbólica que constituía a narrativa expressa
pela própria urna funerária 88 . Nela, o movimento de Ápis se identificava, ao mesmo tempo,
com a ação dos pés do falecido e com a viagem que este realizava rumo ao ocidente e ao
mundo dos mortos, do qual ressuscitava entre as montanhas do oriente sob o aspecto de
khepri, ou o sol em transformação geralmente ilustrado pelo escaravelho alado que figura no
alto da cabeça de vários esquifes 89 . Esta mensagem codificada dialoga com o próprio
alinhamento dos símbolos solares encontrados no dorso dos bronzes de Ápis, os quais
indicam o caminho da ressurreição vinculada ao percurso solar e ao nascimento e morte do
astro da manhã por meio do disco que repousa entre seus chifres, aludindo assim ao conceito

87
Dodson, Ikram 1998: p. 175. Há, no entanto, cenas pintadas sob os pés de urnas de madeira, como podemos
conferir, por exemplo, no ataúde de Gaut-seshen em Copenhagen (Jørgensen 2001: p. 240) (Pranchas).
88
Cf. Rundle Clark s.d.
89
Alguns, ao invés do escaravelho alado, podem ilustrar a deusa Néftis (Gabra 1928: p. 76), também
associada ao leste (Corteggiani 2007: p.371).

160
por detrás do hieróglifo l, que simboliza os horizontes oriental e ocidental 90 . A trajetória
ilustrada pela corrida de Ápis nesses sarcófagos pode tanto indicar o momento da passagem
para o ocidente, isto é, ao mundo dos mortos, ou ao seu ressurgimento com o os raios da
aurora, como indica a cena do touro dirigindo-se do símbolo do oeste 8 (R 13) para o do
leste : (R15) à medida que ascende uma montanha em um esquife do Museu do Cairo 91
(fig. 46).
Outra particularidade é o fato de essas imagens serem produzidas na região tebana,
consideravelmente distante de Mênfis e sua necrópole, Saqqara, onde os Ápis eram
sepultados e os ex-votos de peregrinos ofertados. Diante da relativa popularidade dessa cena
naquele que podemos considerar o mais importante e pessoal dos artigos funerários,
sentimo-nos instigados a refletir quão significativo era ou papel de Ápis no panteão egípcio.
Esta ponderação deve ainda levar em conta que o registro desse motivo iconográfico não é
característico do Período Saíta (26ª dinastia) como muitas obras sugerem 92 , mas começou
bem antes, durante 22ª dinastia 93 , ou talvez na transição da 21ª para a 22ª de acordo com a
datação de algumas coleções 94 , e se estendeu até o Período Ptolemaico 95 (fig. 49).
A corrida de Ápis, que outrora ocupava um contexto ritualístico exclusivo aos
festivais da realeza adquire, durante o Terceiro Período Intermediário, uma estreita ligação
com o indivíduo comum por meio da transfiguração desse touro sagrado em um veículo
popular de salvação e renascimento. A aproximação entre a divindade e o personagem
comum, expressa pela cena de Ápis portando o falecido às costas e fortalecida pela
existência física do animal, o qual prestava consultas oraculares para seus devotos ávidos
por alguma fonte de certeza e conforto em um período politicamente conturbado, ganhou
expressão também na decoração de sepulturas privadas no oásis de Baharia 96 e inclusive do

90
Cf. Gardiner 1969: p. 489; Wilkinson 1992: pp. 134-135.Para apoiar tal argumentação, lembramos que o
hieróglifo que exprimia o conceito do ano novo, wepet renepet, era escrito por um par de chifres que
emoldurava um disco solar sobreposto do símbolo para o ano R (Gardiner op. cit. p. 462). O par de chifres
correspondia ao verbo wp, “abrir” e quando associado ao disco solar transmitia a idéia do sol emergindo no
horizonte e abrindo espaço para o seu percurso.
91
Cairo, J 26030 (fig. 46).
92
Por exemplo, Devauchelle 2001: p. 91; Vandier 1961: p. 120.
93
Bickel 2004: pp. 116-118.
94
Por exemplo, do Museu Britânico EA 30720 (pr. MONdiv 20).
95
Se levarmos em consideração outros suportes materiais, o tema persistiu até o Período Romano, tal como
ilustra uma mortalha dessa época (pr. MONdiv 32).
96
A. Fakhry, Bahria, p. 140, fig. 111 apud Vandier 1961: p. 120, nt. 3.

161
Fig. 40 Fig. 41 Fig. 42

Fig. 43
Fig. 44
Fig. 45

Fig. 48
Fig. 46

Fig. 49

Figs. 40-46 Cenas extraídas de


Gabra 1928: p.77, figs. 2-8. O
autor só fornece o número de
inventário das figs. d (J 25807) e
Fig. 50 g (J. 26030), que como as demais,
pertencem à coleção do Museu
do Cairo; fig. 47 Pés do
Fig. 47 sarcófago de Tuna el Gebel
(Gabra op. cit., pp. 66-79); fig. 48,
Imagem de um esquife da 25ª
dinastia, Museu Britânico 22812
(Bickel 2004: p. 118); fig. 49
Cena extraída do ataúde de
Padikhonsiin, proveniente de
Akhmin, Período Ptolemaico,
Museu Britânico 29777 (Bickel
op. cit.: p. 118); figs. 50 e 51
Fig. 51 Vinhetas extraídas do papiro
Jumilhac (Vandier 1961a: prs.
XX, VII).
templo de Hibis, no oásis de Kharga 1 , iniciado durante a 25ª dinastia e decorado, na sua
maior parte por Dario 2 . Conhecemos também um hypocephalus (pr. MONdiv 31) datado da
30ª dinastia que ilustra um bovino deitado sobre o ventre, que Petrie (1914: p. 30, nº 134, pr.
XXa) acreditou ser uma vaca, mas que por carregar uma múmia às costas, Vandier (1961: p.
120, nt. 3) interpretou como sendo uma variação da cena de Ápis 3 . Neste artefato, que era
concebido para ser posto sobre a cabeça da múmia como um quipá, o animal aparentemente
foi pintado completamente de negro e sobre ele e o falecido sobre suas costas se distingue
um disco solar com uma das asas estendidas e uma uraeus pendente.
Pela distância do centro de culto a Ápis na região menfita e consequentemente do
rigor com que sua representação canônica era lá difundida, é natural que encontremos nessas
terras do Alto Egito variações na forma como esse touro era concebido e ilustrado. Ainda
assim, entre as imagens que conseguimos reunir, diversas foram as variações na decoração
da pelagem do animal e na configuração da cena. Diferentemente das cenas de estelas, por
exemplo, não há representação do devoto em uma atitude de adoração ao touro. Quando
presente, está sempre representado como múmia e sobre o dorso taurino, em uma explícita
significação funerária. O corpo pode estar com a cabeça sobre os ombros, pescoço ou ancas
do touro, e o manto que usualmente recobre o dorso do animal, em alguns casos, pode cobrir
parcialmente o corpo que ele carrega às costas. Foi observada também uma preferência na
coloração dessa cobertura com o pigmento vermelho (prs. MONdiv 21-23, 25-30) e, em
alguns casos, sobre ele há uma tela azul formada de linhas cruzadas transversais (prs.
MONdiv 21, 28) à imagem daquelas constituídas de pequenos tubos cilíndricos de faiança
bastante em voga nessa época.
Da mesma forma que a múmia que carrega, a direção para a qual Ápis está voltado é
variável, podendo ser para a direita ou para a esquerda, mas a primeira é a mais recorrente.
Em um caso especial encontrado em uma urna de cartonagem do Museu Britânico 4 , a cena
foi orientada para cima.

1
Segundo observação de Devauchelle (2001: p. 92), a representação de Ápis na Cella do templo de Hibis o
ilustra sem o atributo solar entre os chifres, incluindo aqui a uraeus, e sobre seu dorso repousa uma múmia.
Cf. N. de Garis Davies The Temple of Hibis in El-Khargeh Oasis, part III, pr. 3, IV apud Vandier 1961: p.
120, nt. 3.
2
Aufrère, Golvin, Goyon 1994: p. 88; Wilkinson 2000: pp. 235-236.
3
Opinião aceita por Devauchelle (2001: p. 91, nt. 492).
4
Nº inventário EA 30720 (Dodson, Ikram 1998: p. 176, fig. 211).

163
É visível nessas pinturas a precisão dos traços do artesão ao ilustrar a cena. Ao corpo
do touro é sempre conferida uma atenção especial na descrição de sua anatomia, ainda que
de forma sutil, e suas pernas em plena atividade exibem o impulso muscular que traz
dinâmica à composição. Nos artefatos das coleções de Freiburg 5 (pr. MONdiv 21) e de
Liverpool (pr. MONdiv 28), o movimento das pernas é retratado de maneira mais vigorosa e
realista. Por vezes os cascos estão completamente pousados sobre a linha de base (prs.
MONdiv 23, 25-27, 29, 30; figs. 40-41, 43, 45, 48), em outras, pela ausência desta, o touro
parece flutuar no espaço (prs. MONdiv 21-22, 24, 28; fig. 42) à espera de alcançar terra
firme novamente. Apesar de toda a agitação corporal resultante do galope, a cauda parece
estar indiferente às perturbações das leis da física para eternizar a preferência da arte egípcia
a uma estética ordenada 6 . Este mesmo princípio rege a figuração dos membros, que estão
sempre dispostos paralelamente mas não sobrepostos de modo que seja possível vê-los em
sua integridade. Ainda sobre esse apêndice bovino, ele pode ter sua extremidade delineada
de maneira simétrica e ligeiramente intumescida, como no hieróglifo ã (F 33), ou é
ilustrado por intermédio de pinceladas com intensidade e comprimento variáveis,
procurando assim dar autenticidade à representação.
A papada é, via de regra, ilustrada com certa discrição nessas cenas, mas o artefato
de Viena (pr. MONdiv 27) a exibe com uma sinuosidade bem marcada e ressaltada pela cor
rosa. A linha torácico-ventral não exibe grandes alterações em seu percurso constante até a
virilha e o perfil dorsal, como é de se esperar, ilustra a concavidade da parte mediana das
costas, vista mesmo quando o manto deveria cobri-la 7 .
A qualidade mais diversa dessas representações de Ápis é a da aparência de sua
pelagem. Ainda que em alguns artefatos 8 sejam visíveis certas características que
encontramos nas estelas do Serapeum, tais como as manchas negras que dominam áreas
determinadas do corpo 9 , em outros estão ilustradas manchas brancas triangulares sobre os

5
Bickel 2004: pp. 116-118.
6
O objeto de Freiburg, contudo, procura transmitir certa plausibilidade na descrição do movimento da cauda
de Ápis fazendo com que esta recline um pouco para trás pela atuação da inércia, mas sem distorcê-la.
7
Por exemplo, nos artefatos do Louvre E 3863 (Perdu 2004: pp. 242-243), E 5534 bis (Letellier, Ziegler
1977: p. 20), de Copenhagen AEIN 1522 (Jørgensen 2001: p. 240), Viena 912 (cf. Global Egyptian Museum)
e Londres EA 34261 (prs. MONdiv 23-25, 27, 30 ).
8
Do presente corpus somente dois esquifes possuem tais características: um do British Museum nº EA 34261
(pr. MONdiv 30) e outro no Roemer e Pelizaeus-Museum nº 1902c/1 (pr. MONdiv 22).
9
Uma que cobre parte da coxa e ancas, outra que envolve o pescoço, peito e cabeça e aquela de forma
semicircular que preenche o meio do dorso e que freqüentemente é encoberta por um manto.

164
ombros e ancas que encontram paralelo na localização das imagens aladas correntemente
ilustradas nos bronzes (prs. MONdiv 21, 24-27, 29; figs. 42, 43). Em alguns casos, se vêem
ainda outras manchas brancas com a aparência de metades de crescentes (prs. MONdiv 21,
22), além da possibilidade de também encontrarmos o triângulo frontal invertido (prs.
MONdiv 24-27, 29). Outros exemplos adicionam manchas circulares negras formando
alinhamentos, círculos concêntricos (pr. MONdiv 23), uma pelagem branca salpicada de
manchas negras pequenas ou médias (prs. MONdiv 20, 28; fig. 44) ou o corpo
completamente negro 10 (fig. 46). Dada a aparente falta de critério na disposição e forma das
manchas, que fogem muito às normas que regem a iconografia de Ápis na região menfita 11 ,
somos levados a acreditar que se em alguns casos o artista tinha conhecimento das marcas
identificatórias de Ápís, na maioria dos casos havia uma incerteza quanto a elas que era
muitas vezes compensada com a criatividade do ilustrador em fazer uma imagem com um
apelo estético marcante. No caso da ilustração da urna de Gaut-seshen, da coleção de
Copenhagen (Jørgensen 2001: p. 240), parece que a incerteza fez o artista mesclar
parcialmente o padrão de manchas das estelas com as figuras aladas dos bronzes 12 (pr.
MONdiv 25). Caso não fizessem parte de um conjunto de artefatos que se reportam ao
mesmo tema, seria muito difícil saber, no caso daqueles que são anepígrafos, do que trata a
cena e quem está ilustrado.
Outro elemento que caracteriza a cultura material menfita no que concerne a Ápis é
sua representação com um disco solar entre os chifres, o qual vem frequentemente
acompanhado da uraeus. Notamos, no entanto, que este símbolo não é incluído com a
mesma constância que em estelas e bronzes, mas sua ilustração está associada à presença de
manchas negras em áreas específicas do corpo 13 , como nas estelas, que podem estar
vinculadas a outras, de cor branca, e que procuram reproduzir as imagens aladas dorsais 14
(fig. 43). Também encontramos pinturas em que Ápis é ilustrado unicamente com a uraeus
entre os chifres, como por exemplo, nos artefatos do Cairo 15 (fig. 41), Hildesheim 16 (pr.

10
Gabra 1928: p. 77, fig. 7.
11
O exemplo do Museu Britânico (EA 29777) ilustrado por Bickel (2004: p. 118) e datado de uma
periodização que abrange os períodos Pós-Saíta (27ª-30ª dinastia) ao Ptolemaico é, no entanto, uma exceção.
12
Outro exemplo peculiar é ilustrado por uma urna funerária do Museu do Cairo J 25807 (fig. 43).
13
Museu Britânico EA 6671 (Bickel 2004: p. 118), Cairo – o autor não forneceu o número de inventário
(Gabra 1928: p. 77, fig. 2). Neste último caso, o disco aparece desprovido da serpente uraeus.
14
Cairo J 25807 (Gabra 1928: p. 77, fig. 5).
15
Cairo J 41044 (Gabra 1928: p. 77, fig.3).

165
MONdiv 22), e do Louvre 17 (pr. MONdiv 24). Nestes dois últimos, o corpo da serpente
enrosca-se no chifre figurado mais atrás da cabeça do boi e a extremidade de sua cauda
tremula acima da orelha dele. A configuração dos chifres nessas cenas exibe grande variação
em seu tamanho e forma, podendo assumir o modelo em “V” ou em crescente,
independentemente se emolduram ou não um disco solar. Mas no caso dos cornos em
crescente, observamos que em todos os casos estes assumem proporções consideravelmente
grandes.
Para completar a representação taurina, alguns artefatos o ilustram com um largo e
pesado colar menat ornando seu pescoço 18 (prs. MONdiv 26, 29). Mas não são todos os
casos que descrevem esse artefato em sua integridade, omitindo por vezes, o contrapeso 19 .
Compondo o restante da cena podemos encontrar uma série de elementos que não
são constantes e que podem ser ilustrados em combinações diversas. O símbolo j (N 25),
por exemplo, aparece em dois casos. No artefato do Museu Britânico 20 Ápis não galopa
diretamente sobre essas colinas desérticas, mas há, sobre elas, uma linha de base que confere
ordenação ao registro. Já na pintura da urna funerária de Nehsi-Montu (pr. MONdiv 29), em
Grenoble, a linha de base sobre a qual o touro se movimenta nada mais é do que a parte
superior do hieróglifo M (W3), o qual repousa sobre aquele que designa as montanhas.
Essas formações rochosas são descritas de forma diferente em outros dois cofres, um deles
também em Londres 21 e outro no Cairo 22 . No primeiro, constituem ondulações baixas sobre
a linha de base e posicionadas em segundo plano em relação a Ápis. Já naquele da coleção
egípcia, o terreno assume uma inclinação em direção à direita.
Outro elemento que se faz muito presente nessas cenas é o obelisco 9 (O 25), o qual
está sempre posicionado à frente do touro e pode conter decorações 23 . Mais à frente iremos

16
Roemer und Pelizaeus- Museum, nº 1902c/ (Global Egyptian Museum).
17
Louvre E 5534bis (Letellier, Ziegler 1977: p. 20).
18
Leiden AMM 19-a, Grenoble 1995.-123C (Bickel 2004: p. 117; Kueny, Yoyotte 1979: p. 103). Para dois
objetos da coleção do Cairo cujo número de inventário não nos foi informado, cf. Baud 1978: pr. XIII; Gabra
1928: p. 77, figs. 4, 6; Quaegebeur 1983: p. 28, fig. 8b.
19
Como nos artefatos de Grenoble e Leiden.
20
Nº 6681 (Bickel 2007: 117).
21
Museu Britânico EA 34261.
22
Museu do Cairo J 26030 (Gabra 1928: p. 77, fig. 7).
23
O pyramidion é sempre destacado, podendo apresentar uma outra coloração (Perdu 2004: 242-243),
enquanto que o corpo do monumento pode conter uma faixa central (Perdu ibidem; Gabra 1928: p. 77, figs. 3,
5, 8) ou ser atravessado por segmentos paralelos (Gabra ibidem, fig. 2).

166
apreciar com mais detalhes o registro presente em um ataúde do museu de Berlim 24 que
prenuncia a associação do touro em galope com esse monumento.
Sobre a múmia que Ápis carrega às costas – e somente quando esta está presente –
podemos encontrar a representação do Ba 25 do defunto U (G 53) pairando sobre o corpo
com suas asas estendidas em sua transfiguração falconiforme e antropocéfala 26 (figs. 41,
48). Na coleção do Museu Britânico (pr. MONdiv 30), por outro lado, esse corpo espiritual é
ilustrado como um pássaro indefinido que talvez seja um falcão 27 . Somente uma imagem
revela, acima da múmia (fig. 43), um disco solar que sobre ela projeta seus raios
revivescentes Y (N 8) 28 .
Também podem fazer parte do cenário representações de uma vasilha com incenso
sendo queimado 29 2 (R 7), mas sua presença é rara. Da mesma forma, só encontramos uma
cena em que Ápis galopa sobre as águas tendo um pântano de papiros como fundo 30 .
Em alguns esquifes (fig. 45), o símbolo dmD _ (S 23), correspondente à palavra
“unir”, acompanha essas cenas de Ápis transportando a múmia, evocando o papel desse
touro como Hórus ou Anúbis ao juntar e mumificar o corpo de Osíris 31 .
A transposição do tradicional tema da corrida de Ápis para os ataúdes privados
datados a partir das dinastias líbias 32 , enredo este que esteve aparentemente ausente no
repertório iconográfico dos monumentos da realeza datados do Terceiro Período
Intermediário e Período Tardio e só foi aí retomado durante a época Ptolemaica, é um
fenômeno que não é conhecido em suas particularidades pela inexistência de fontes que
tratem diretamente desse assunto, mas é um processo que pode ser deduzido pela
informação de outros documentos que estabelecem uma conexão direta ou indireta com esse
tema.

24
Möller 1901: pr. IV; Niwiński 2000: p. 41.
25
Termo de difícil tradução que se aproxima de nosso conceito de “alma”.
26
Cairo, J 41044 (Gabra 1928: p. 77. fig. 3), Museu Britânico, EA 22812 (Bickel 2004: p. 118).
27
EA 34261.
28
Cairo J 25807 (Gabra 1928: p. 77. fig. 5).
29
Museu Britânico EA 34261, EA 22812 (pr. MONdiv 30; fig. 48).
30
Museu Britânico EA 29777 (fig. 49). Bickel (2004: p. 118) classifica este ataúde como datado do período
Pós-Saíta ao Ptolemaico, enquanto o museu o data como sendo desta última fase.
31
Cf. Gabra 1928: p. 77, fig. 8; Meeks 2008: pp. 54-55, nt. 48. Mais adiante trataremos desse tema
mitológico.
32
Período correspondente às dinastias 22ª à 24ª. A cronologia desta época é marcada por uma crescente
feudalização motivada pela fragmentação do território entre os chefes líbios, criando assim dinastias sediadas
em Tânis, Leontópolis e Sais.

167
Alguns registros de um ataúde de Berlim, datado da 21ª dinastia 33 (pr. MONdiv 19)
e estudado por Möller (1901: pp. 71-74), ilustram momentos da Festa Sed que, segundo
Niwiński (2000: pp. 40-41), é um dos temas que foram adaptados da esfera da realeza para o
repertório iconográfico das urnas funerárias 34 , relacionando-os ao simbolismo do rei dos
mortos, Osíris. Duas cenas em particular, contidas em uma mesma faixa decorativa chamam
a nossa atenção 35 .
Aquela que se localiza ao centro ilustra um personagem associado a Osiris, correndo
em direção a um par de obeliscos 36 , portando um açoite nekhekh u (S 45) em sua mão
direita e um remo c na esquerda, com ambos os braços flexionados. Ele veste um saiote curto
com uma faixa frontal vertical, uma peça de vestimenta como um colete sem faixas sobre os
ombros, um colar usekh e uma peruca redonda. Em segundo plano e em menores dimensões,
vemos um bovino saltitante desprovido de chifres e com aparência de um bezerro cheio de
vitalidade. Seu corpo alvo está recoberto de múltiplas manchas escuras pequenas e seu dorso
está recoberto por um longo manto estendido longitudinalmente e cuja parte inferior é
irregular, lembrando uma pele cuja cauda se confunde com aquela do jovem touro. Somente
suas patas traseiras estão apoiadas sobre a linha de base, que é a mesma que organiza a
presente cena e as demais do registro. Acima da cabeça do animal lemos a expressão xrp ¡p
que significa “conduzindo Ápis”, e logo à frente, m st in Ra “em direção ao lugar de Rê”,
uma referência ao sítio de Heliópolis 37 .
Esta imagem é interessante porque antecede as cenas funerárias da corrida nas quais
o touro é ilustrado como portador da múmia, e segue a tradição das cenas da realeza,
substituindo, neste caso a imagem de um rei vivo por uma de um rei morto, Osíris, ao qual o
proprietário do ataúde seria associado. Outra particularidade, é que essa imagem não está
expressa nos pés do esquife como aquelas que irão sucedê-la, mas compõe a decoração do
corpo do ataúde, correspondendo assim a uma contextualização diferente que a insere em

33
Nº 119780
34
Outros temas relacionados mencionados pelo autor seriam esfinges, falcões protetores e abanadores.
35
Möller 1901: pr. IV; Niwiński 2000: p. 41.
36
Aparentemente, estes não devem ser tomados como pertencentes a duas cenas, à da esquerda e a central,
uma vez que uma outra vinheta do sarcófago exposta por Möller (op. cit. p. 72, ilust. 1) mostra claramente o
indivíduo voltado para um par de obeliscos semelhantes, seguidos de um pilar < (O 28) sobreposto de um
bucrânio E F 2) virado para ele, indicando assim que o par de símbolos solares faz parte de uma mesma
cena.
37
Na versão de Niwiński, o símbolo < iwn de Möller foi transcrito como um ! st, que confere uma tradução
mais plausível como “lugar”.

168
uma narrativa da festa Sed. Contudo, a presença do obelisco à frente do touro é um tema que
perdurará nas cenas posteriores, estabelecendo um vínculo estreito com a simbologia solar, e
a inclusão de Ápis na decoração de ataúdes é, até então, inédita. Como no caso do artefato
do Museu de Liverpool citado anteriormente, o corpo de Ápis não apresenta a distribuição
de manchas negras e brancas que lhe é característica pelas fontes menfitas, e esta
circunstância não parece ter comprometido esse registro tão elaborado nos detalhes,
sugerindo uma independência de estilos em artefatos privados do Alto Egito em relação aos
do Baixo Egito. Por fim, uma característica que igualmente chama a atenção é o fato de o
animal não apresentar chifres e sua aparência ser similar a de um bezerro, e não de um touro
maduro. Cenas provenientes de Tell el-Amarna 38 que decoravam o piso e paredes do palácio
real de Akhenaten, 18ª dinastia, ilustram vários novilhos saltitantes em meio a touceiras de
papiros e moitas de plantas floridas (fig. 55) de onde alçam vôo gansos, libélulas e
borboletas. A expressão de felicidade incontida dos filhotes ressalta tanto as benesses que o
deus solar Aten dá ao mundo quando projeta seus raios de vida quanto o próprio conceito da
juventude e renascimento que eles inspiram. Por este ângulo, é provável que o Ápis do
ataúde de Berlim tenha buscado inspiração nesse gênero de ilustração de bovinos para
melhor transmitir o sentido almejado.
A partir das particularidades ilustradas, acreditamos que essa imagem, que talvez não
seja a única do gênero, seja significativa por ilustrar o momento histórico em que a cena da
corrida de Ápis foi, como outros símbolos relativos à realeza 39 , associada ao repertório da
iconografia funerária dos ataúdes privados para daí evoluir para um novo contexto e
representação, no qual o touro passou a ser ilustrado carregando a múmia às costas e ser
associado aos pés da urna funerária, fazendo parte, desta maneira, do discurso mitológico da
travessia do sol expresso pela “cosmologia simbólica” desta.
O registro esquerdo do ataúde de Berlim ilustra o mesmo homem, só que com uma
peruca mais alongada, vertendo libações sobre um altar diante de um touro com um par de
plumas e um disco solar entre os chifres40 . Sobre o dorso do animal há um manto retangular
disposto longitudinalmente, decorado com uma tela cujo centro de cada losango formado pela trama

38
Freed, Markovitz, D´Auria 1999: pp. 130-131, 228, n° 78; Petrie 1974: prs. III, IV.
39
Niwiński op. cit. pp. 40-41.
40
Um prolongamento acima do chifre esquerdo pode sugerir uma uraeus, mas sua forma lembra mais a ponta
de outro corno, que talvez seja vestígio de um esboço anterior.

169
ilustra um enfeite circular, e o pescoço está adornado com um colar em forma do hieróglifo
' (V 7). Seu porte é o de um touro no auge de sua força e fecundidade, apresenta boas
proporções e sua anatomia é descrita com linhas precisas. Acima de sua parte traseira
estendem-se as asas de uma uraeus que se apóia em um suporte em forma de lírio (?) cuja
flor está recurvada para baixo. Embora o touro não esteja propriamente nomeado, há na
parte superior da cena um texto que o descreve como “touro, Ba do Grande Deus de
Heliópolis (?)” aludindo assim à representação de Mnévis.
Uma imagem semelhante 41 igualmente extraída de um sarcófago 42 retrata um touro
da mesma forma, mas com um colar menat, o manto internamente emoldurado disposto
perpendicularmente em relação ao dorso e com um flagelum ilustrado sobre o dorso.
Arrastando-se sob ele e erguida logo à sua frente há uma uraeus com uma coroa do Alto
Egito, e a legenda no alto de suas costas o nomeia como Ápis. Esta representação é similar
àquela do grupo de bronzes que mencionamos acima, as quais levantam dúvidas quanto a
sua real identificação com Ápis. Já um amuleto publicado por Reisner (1907: pp. 143-144,
nº12209, pr. 13) ao qual ele atribui a mesma identificação e cujo animal apresenta
predicados semelhantes em sua figuração 43 é contestado por Feucht 44 , que acredita que a
representação seja de Mnévis. Seja como for, a representação do par de plumas com o disco
solar é rara na iconografia de Mnévis ou Ápis, mas recorrente nas representações de
Buchis 45 e de certas vacas sagradas. No caso do registro do ataúde que nomeia o animal
categoricamente como Ápis, é provável que este seja contemporâneo à cena do esquife de
Berlim acima comentada, e com ela ilustra o processo em que o touro sagrado menfita
paulatinamente assume um papel importante na cosmologia do repertório iconográfico
funerário.
O tema de Ápis carregando os despojos do defunto às costas encontra um paralelo
mitológico no texto e vinhetas do papiro de Jumilhac, redigido durante o período Ptolemaico

41
Lanzone Dizionario di mitologia egizia, v. II, reed. Amsterdam 1974:, p. 529, pr. 200 apud Quaegebeur
1983: pp. 27-28.
42
Nenhuma especificação foi fornecida.
43
Todavia, neste amuleto o touro é ilustrado sobre uma base em forma de santuário 5 (O 21), não apresenta o
flagelum e o adorno que ostenta entre os chifres representa outro tipo de par de plumas Q (S 9).
44
Pektorale nichtköniglicher Personen, 1971: p. 117, nº 186 apud Quaegebeur 1983: pp. 29, 38, nt. 78.
45
Cf., por exemplo, em uma estela de Armant datada da 22ª dinastia que ilustra Buchis com seu tradicional
atributo cefálico e portando uma menat no pescoço. Museu Pushkin I.1.a.7861 (4134), Hodjash, Berlev 1982:
pp. 149, 152-153. Artefatos do período romano, encontrados no Bucheum podem ser apreciados em Mond,
Myers, Fairman 1934.

170
e relacionado ao 17º nomo do Alto Egito 46 (Fig. 51; pr. MONdiv 33). A cena duplicada por
uma coluna central de texto é descrita na parte inferior do documento, e ilustra Ápis
caracterizado pelas linhas demarcatórias das manchas negras de seu corpo47 , o qual é
imponente e descrito por uma mão precisa. O tratamento das pernas procura sintetizar as
tensões da musculatura e tanto sobre a cabeça quando sobre os ombros destacam-se linhas que
compõem a pelagem. A cabeça, especialmente diminuída no touro à direita, apresenta chifres
em crescente e um focinho gentilmente moldado. Os olhos são ilustrados com esmero e as
narinas e boca são discretas. Embora as manchas corporais estejam presentes, não notamos em
nenhuma das representações o triângulo frontal, e somente o animal do lado direito é ilustrado
com um crescente no pescoço 48 . A cauda, que é consideravelmente maior neste touro,
apresenta em ambos uma intumescência progressiva até próximo à sua extremidade, e em
nenhum dos casos se deixa afetar pela movimentação do galope. Em ambas as versões, o sexo
do bovino está bem caracterizado tanto pelo falo quanto pelo scrotum. Sobre o dorso, Ápis
carrega um fardo que supostamente contém os membros de Osíris, para que estes fossem
enfim reunidos e mumificados em Mênfis e o deus encontrasse seu descanso final em
Heliópolis 49 . Diante das duas representações de Ápis estão Ísis e Néftis com seus braços
erguidos em direção ao animal. Abaixo dos braços das deusas, nos dois lados, aparece escrito
duplamente “vem aquele que carrega”, enquanto diante do bovino somente “correr”. Sobre
ele, do lado direito, a legenda esclarece: “é Ápis-Hórus; foi ele que carregou os membros do
deus das capelas do (ou, através do) País do Sul”. No lado esquerdo, o texto é similar, exceto
pela substituição do trecho “País do Sul” por “País do Norte” 50 . A coluna que divide os
registros especifica um pouco mais o conteúdo dessas legendas: “é o touro que corre e que
carrega, por cidades e nomos, os membros desse deus em Hp 51 ” Como a palavra “hep”,
“correr”, é homófona do nome do deus taurino e aqui resultaria em um pleonasmo, Vandier
conclui, baseado na prática egípcia de utilizar jogos de palavras em seus textos, que a intenção

46
Louvre E 17110 (Vandier 1961a: p. 138, pr. VII; 1961b: pp. 117-118).
47
As manchas propriamente ditas não são preenchidas, mas isto se deve à estética adotada pelo escriba, o qual
preferiu ilustrar todas as cenas por meio de linhas. Elas são unidas pouco abaixo da linha dorsal e a mancha
que usualmente assume a forma de um semicírculo nas estelas aqui ganha uma sinuosidade acentuada.
48
Acreditamos que a ausência dessa marca alusiva à lua no Ápis da esquerda se deva mais a um descuido
ocasional do que uma característica conscientemente imposta, uma vez que as imagens são espelhadas e os
textos nada falam a respeito.
49
Vandier 1961b: p. 118.
50
Vandier 1961a: p. 138.
51
Vandier 1961b: p. 118.

171
do escritor era que ela significasse “na qualidade de Ápis”. Assim, Hórus, na qualidade de
Ápis e assumindo a forma deste, estaria recolhendo as partes desmembradas de seu pai Osíris
por todo o país para então 52 reuni-las em Mênfis, onde seriam devidamente embalsamadas
para o sepultamento no centro de culto solar, Heliópolis 53 .
Mesmo se tratando de um texto redigido em um período mais recente, é de se acreditar
que seu conteúdo tenha origens mais antigas e que tenham influenciado a adaptação das cenas
da corrida do contexto da realeza para o funerário54 . Nesta ótica, é possível que o registro do
ataúde berlinense seja um “elo” desse processo cultural em que a representação de Ápis passa a
ser significativa para a iconografia funerária durante a 21ª dinastia e, nos períodos seguintes, esta
seja reinterpretada para o motivo da corrida e associada aos pés das urnas, onde Ápis, como
Hórus, se encarrega de transportar o corpo de Osíris (o defunto) para o além. Com a evolução
dessas crenças, há uma transposição do ciclo em torno do eixo sul-norte da corrida de Ápis
celebrada pela realeza, para um circuito em torno do eixo leste-oeste da trajetória solar, um
vinculado à orientação do Nilo terrestre e o outro ao celeste.
É possível ainda que a associação de um touro, no caso Ápis, ao transporte de Osíris
tenha raízes que vão além do tema da corrida. Uma inscrição intrigante de um monumento do
Reinado Antigo55 ilustra em baixo relevo uma composição incomum de símbolos entre os quais
se destaca um indivíduo nu agarrado sobre um touro em galope que sobe um plano inclinado
preenchido com água56 (fig. 52). A frase em que se encontra a imagem enigmática, aqui
expressa por colchetes, diz: “que ele seja sepultado na necrópole; que ele atravesse o lago,
satisfeito [...] o belo Campo de Oferendas, diante do Grande Deus”. Sem entrarmos nas
particularidades da dedução de Drioton sobre o significado desse criptograma no texto, e
levando em consideração o abismo de tempo que separa essa inscrição singular das cenas de
Ápis, nos intriga a concepção por detrás da associação do indivíduo a um touro em galope como
veículo para uma viagem 57 , cena esta que não encontra paralelos entre as práticas

52
E aqui desempenhando uma função de Anúbis (Vandier 1961b: pp. 118-119, nt. 6).
53
O papiro do Brooklyn 47.218.84 contém uma passagem que atribui o transporte das relíquias a Heliópolis
pelo touro Mnévis, que era considerado uma manifestação do deus solar Rê. Cf. Meeks 2008: pp. 7, 51-55.
54
Se no primeiro caso o foco é o aspecto do rei enquanto Hórus, no segundo é de Osíris enquanto rei morto,
sendo enterrado por seu sucessor e filho.
55
Cairo, nº 1696 (Drioton 1935-36: pp. 697-704).
56
Logo depois dessa imagem, há o hieróglifo de um talo de papiro - (M 13) e de um junco 1 (M 17).
57
No “Conto dos dois irmãos”, Bata, do qual trataremos mais adiante, assume a forma de um touro de várias
cores que serve de montaria para seu irmão, Anúbis (Araújo 2000: p. 91; James 1978: p. 70; Lichtheim 2006:
p. 209; Vos 1998: p. 716).

172
tauromáquicas egípcias 58 expressas pela iconografia. O real conceito evocado por essa
representação está infelizmente perdido, mas é possível que a escolha do touro para esse papel
esteja vinculada não somente à sua fertilidade e força, mas também ao sentido de liderança.
Uma imagem nos pés de uma urna funerária do Período Ptolemaico da coleção do Museu
Britânico (figs. 49, 53) parece reunir o motivo do touro galopando sobre uma superfície
aquática dessa inscrição peculiar com o tema dos novilhos saltando entre as touceiras de
papiros provenientes de Amarna. Aqui, no entanto o caminho não é inclinado e a vegetação é
retratada verticalmente à maneira do Reinado Antigo, tal como na célebre cena de caça no
pântano da mastaba de Ti.
Seja como for, tanto no ideograma misterioso que acabamos de comentar quanto nas
representações que irão figurar em sarcófagos a partir do Terceiro Período Intermediário
com Ápis como protagonista do transporte da múmia, o touro adquire o sentido de veículo
de passagem.
Entre as cenas encontradas nos pés de urnas funerárias há uma cujo tema se
diferencia daquele visto nos demais. Em um sarcófago de calcário datado do fim da época
Saíta 59 (fig. 47), encontrado em Tuna el Gebel e publicado por Gabra (1928), vemos, da
esquerda para a direita, a imagem de Anúbis com uma longa túnica, com sua mão esquerda
pousada sobre o corpo da múmia e a direita segurando a cauda do touro que a carrega sobre
o dorso. O animal é apresentado em atitude de galope e a linha de base é a mesma que
configura toda a cena. Mais adiante, o falecido em pé é conduzido por uma divindade
taurocéfala e Anúbis, ambos com corpos humanos. O primeiro levanta sua mão direita sobre
a cabeça do morto e a esquerda segura a mão deste, enquanto Anúbis oferece sua mão
direita ao falecido e a outra está abaixada.
O tema de Anúbis puxando a cauda do touro em galope é igualmente ilustrado pelo

papiro Jumilhac (Vandier 1961a: p. 114, n° IV, pr. XX), mas aqui o animal é, na verdade, uma

58
J. Capart (apud Drioton, op. cit., p. 699) também não deixou de observar uma similaridade entre a presente
cena e aquela de Ápis: “l´homme est donc figuré dans le moment où il va prendre place sur la croupe du
grand taureau qui le transportera vers les champs divins, comme le fera Apis sur les peintures de cercueils de
basse époque pour la momie”.
59
Cairo nº 51945. O sarcófago pertence a Iahmes, filho de Psamético. Cf. também Devauchelle 2001: pp. 92-
93.

173
Fig. 52

Fig. 53

Fig. 54

Fig 52 Parte de uma


inscrição datada do Reinado
Antigo extraída de um friso
de calcário, Museu do Cairo
n° 1696 (Drioton 1935-38: p.
698); Fig. 53 Ilustração de
um ataúde pós-saíta ou
ptolemaico, Museu Britânico
EA 29777 (Bickel 2004: p.
118); Fig. 54 Cena do
ataúde nº 119970 do Museu
Egípcio de Berlim, 21ª
dinastia (Niwiński 2000: p.
41); Fig. 55 Pintura de
pavimento descoberta em Tell
el Amarna, 18ª dinastia (Petrie
1974: p. III, 2).

Fig. 55
forma de Seth transfigurado em Bata 1 (fig. 50). Seth havia roubado certas partes
importantes do corpo de Osíris e para fugir de Anúbis, que guardava os restos mortais do
deus, adotou a forma taurina. Contudo, seu esforço foi em vão e após ter sido perseguido, o
deus chacal o amarrou, cortou-lhe a genitália e depositou sobre seu dorso o cadáver de
Osíris. Na época em que Gabra publicou seu artigo, o papiro Jumilhac não havia sido
traduzido, e o significado alusivo a Seth não pode ser considerado. Por outro lado, o texto
presente no sarcófago não associa o touro a Ápis, mas menciona o ato de correr, escrito de
maneira parecida, mas não idêntica 2 . Diante da versão do papiro e da falta de uma legenda
na urna funerária que contradiga a interpretação suscitada por ele, acreditamos que neste
caso em particular a tradicional cena que consta nos pés de sarcófagos foi substituída por um
tema paralelo, o de Seth/Bata carregando a múmia de Osíris. A imagem da divindade
antropomórfica e taurocéfala que guia o morto com Anúbis, possivelmente é outra versão
para o mesmo tema.

* * *

Durante os períodos Ptolemaico e Romano, as imagens de Ápis continuaram tão


populares quanto seu culto, mas, gradativamente, sua imagem tradicional segundo os
cânones egípcios sofreu transformações que absorveram não somente o gosto estético, mas
também uma mudança na forma como a simbologia de Ápis era contemplada. As imagens
solares presentes no dorso dos bronzes, ou as manchas corporais e o triângulo frontal darão
vez para a ilustração de um crescente posicionado na lateral do mamífero, na região das
costelas. O disco solar entre os chifres permaneceu, mas muito reduzido, e a maneira como o
corpo passou a ser ilustrado, com maior ênfase no movimento e nos detalhes da anatomia se
disseminou por toda extensão do império romano. No Egito, a permanência do tema de Ápis
como veículo para o outro mundo persistiu e uma mortalha descoberta em Antínoe (pr.

1
Cf. Corteggiani 2007: pp. 81-82. Bata, senhor de Saka, era uma divindade do 17° nomo do Alto Egito e sua
associação a um personagem chamado “Anúbis”, neste caso, seu irmão, é feita no “Conto dos dois irmãos”,
em que adquire a forma de um touro. (Araújo 2000: pp.80-94; James 1978: pp. 58-73; Lichtheim 2006: pp.
203-211).
2
Gabra op. cit., pp. 74,78. Sobre o significado da raiz Hp “correr”, “se apressar” cf. Devauchelle 2001: p. 52.

175
MONdiv 32), hoje pertencente à coleção do Louvre 3 , retrata um Ápis romanizado
desempenhando a mesma e consagrada função de guia para o outro mundo.

3
N° AF 13042.

176
Capítulo 4

Estudo Comparativo da Cultura Material


Reinado Novo - Período Tardio

Após termos apreciado nos capítulos anteriores as características e problemas


suscitados pelas fontes com o âmbito de uma reconstituição das representações de Ápis
durante o período faraônico, iremos agora fazer uma comparação entre as imagens dos
diferentes artefatos do Reinado Novo ao final do Período Tardio para melhor
compreendermos as especificidades da representação do touro sagrado para cada tipo de
artefato. A periodização foi assim estipulada em virtude da concentração de documentos
sobre Ápis, a qual está diretamente vinculada à crescente importância que esse personagem
assumiu na religião egípcia.
Antes de passarmos para a comparação entre as fontes de Ápis propriamente ditas,
iremos, a seguir, indicar o cruzamento da simbologia de Ápis ou dos adornos utilizados por
ele com a natureza diversa da cultura material. Nossa classificação, fundamentada nas
fontes a partir do Reinado Novo, leva em consideração as categorias de artefatos, a forma
adotada por Ápis (teriomórfica ou antropomórfica e taurocéfala) e as características
relativas à postura. Como há artefatos de origens diversas ou não comprovadas, decidimos
não ordená-los por esse critério nos esquemas a seguir:

SHABTIS PYRAMIDIONS

Antropomórfico e taurocéfalo Teriomórfico

Marcha
Em Repouso e Mumificado

177
CENAS DE TEMPLOS

Antropomórfico e taurocéfalo Teriomórfico

Marcha Marcha Galope

Corrida
Contexto da realeza

Corrida
Contexto funerário

ESTATUÁRIA
Pedra Bronzes

Teriomórfico Teriomórfico Antropomórfico e Taurocéfalo Efígies “menat”

Marcha Marcha

Galope

Deitado

ESTELAS

Teriomórfico Antropomórfico e Taurocéfalo

Marcha Galope Deitado Mumificado

URNAS
FUNERÁRIAS

Teriomórfico

* In Quaegebeur 1983: p. 28,


Galope Marcha: cena Dicionário fig. 8a, nt. 68.
Lanzone*

178
CENAS FUNERÁRIAS
(Sepulturas Individuais)

Teriomórfico Antropomórfico e Taurocéfalo


(Horemheb, tumba “D”) (Ramsés II, tumba G)

Marcha Em Repouso e Mumificado

Elementos “Constantes”

Como elementos “constantes” entendemos aqueles que estão presentes em diversas


categorias da cultura material mas que não necessariamente estão presentes em todos os
artefatos de cada uma delas, uma vez que sempre encontramos pequenas flutuações na
amostragem. Estes símbolos também não estão restritos às representações teriomórficas,
mas também são ilustrados nas antropomórficas e taurocéfalas.

1. Triângulo na fronte.

Ainda que não tenhamos evidências de que este símbolo fosse representado em
estelas do período de Amenhotep III até o final do Reinado Novo 1 e na decoração das
Sepulturas Individuais 2 abarcadas por essa periodização, de todas as marcas de Ápis esta é a
única representada em um leque mais amplo de artefatos, embora sua ilustração não seja

1
Vale lembrar que essas estelas estão completamente apagadas, e não há como saber se esse símbolo era
originalmente ilustrado com o uso de pigmentos.
2
Neste caso, as tumbas “D”, do reinado de Horemheb, 18ª dinastia, e “G”, da época de Ramsés II, 19ª
dinastia (Mariette 1857: prs. 3, 8).

179
constante 3 . Podemos encontrá-la em estelas, estatuetas de bronze e outros materiais, em
shabtis e mesmo em algumas imagens de Ápis em pés de ataúdes. Não há quaisquer
documentos egípcios que tratem desse sinal ou de sua simbologia específica, e mesmo entre
os hieróglifos conhecidos, não há nenhum símbolo conhecido semelhante a um triângulo
invertido que possa ter servido como ponto de partida 4 .
Acreditamos que a atribuição de um valor simbólico a essa forma particular tenha se
dado após séculos de intenso convívio com o gado que motivou uma observação criteriosa da
distribuição de manchas em áreas específicas do corpo desses animais 5 . Algumas maquetes
do Reinado Médio (figs. 56-57) ilustram bois com triângulos bem visíveis na fronte, sejam
eles brancos ou negros, dependendo da cor predominante da pelagem à sua volta. Esses
modelos não exibem tais características em virtude de idealizações ou de algum simbolismo
subjacente, porque entre os artefatos dessa categoria, esta não é uma característica sempre
presente. Desta maneira, podemos supor que o triângulo frontal nessas estatuetas deve ter
sido fruto de uma opção estética fundamentada na observação de padrões que ocorrem na
natureza, que por sua simetria com a forma da cabeça bovina, deve ter instigado o espírito de
alguns artistas que buscavam transmitir a suas criações linhas claras e sugestivas. E, de fato, a
ocorrência de uma imagem triangular invertida na fronte de touros ou vacas é um fenômeno que
está longe de ser raro no caso das variedades malhadas (fig. 58).
Ainda que levemos em consideração o princípio de que a ausência de uma
evidência não significa evidência de sua ausência, diante da escassa documentação
sobre Ápis anterior ao Reinado Novo, seja ela iconográfica ou textual, e em
especial a falta de qualquer referência que o associe a um triângulo frontal, torna-
se difícil acreditar que nessas altas épocas esse símbolo servisse tanto como
critério para a seleção desse animal quanto como um signo verdadeiramente
importante. Este argumento é reforçado quando comparamos com as maquetes de bovinos

3
No caso dos shabtis, em mensagem pessoal, Dr. Jean-Luc Bovot gentilmente me informou que somente
vinte e sete estatuetas das cento e quarenta e cinco com cabeça taurina exibem o triângulo frontal.
4
Vos (1998: p. 714, nt. 41) argumenta que em algumas cenas como no templo de Dendera, os raios solares
são expressos por triângulos alinhados, e que talvez essa forma invertida se refira à lua. No que concerne à
imagem solar, podemos presumir que a representação dos raios dessa maneira seja mais uma opção estética,
talvez fundamentada no simbolismo solar da pirâmide, mas deduzir daí que a forma invertida do triângulo -
que não encontra outros paralelos na cultura material ou textos - seja correspondente ao simbolismo lunar,
seria ir além das informações fornecidas pelas fontes.
5
Um paralelo contemporâneo de quão o gado pode influenciar uma sociedade pode ser feito com o caso dos
Nuer. Cf. Evans-Pritchard 2002: pp. 23-59.

180
Fig. 56 Esculturas de bois provenientes de um
túmulo do Reinado Médio do cemitério de Deir-el-
Bercheh. Museu do Louvre, AF 9169.

Fig. 57 Maquete do Reinado Médio


ilustrando uma cena de abate de um bovino
com um triângulo negro na fronte (Martin-
Pardey 1991: n° 1694).

Fig. 58 Gado da variedade ankole em um


rancho próximo de Mooresville no estado
norte-americano da Carolina do Norte.
Fotografia gentilmente cedida por Jon
Maloney (www.jdmpics.com).
datados do Reinado Médio acima citadas, cuja finalidade não era cultual e que apresentam
essa forma geométrica, aparentemente, não como uma característica distintiva de
divindade 1 , mas vinculada a fins puramente estéticos.
A partir de algum momento durante o Reinado Novo, o triângulo invertido deve ter
adquirido uma importância singular ao passo em que era associado, somado a outras
características, a um Ápis. Também é possível que essa tenha sido uma singularidade
observada em várias gerações de um mesmo rebanho do qual saíam alguns Ápis, e que
quando acontecia de coincidir esta mancha com o restante ou parte da simbologia
necessária para tal, a divindade de um touro que as apresentava era reconhecida e este
passava a receber um tratamento diferenciado como um Ápis.
Nas estelas esse polígono era descrito pela pigmentação, que em muitos casos pode
ter se perdido completamente e assim ter influenciado nossa estimativa, mas no caso dos
bronzes esse sinal era sempre gravado (prs. SEbr 7, 9, 10, 12) ou escavado (prs. SEbr 117,
134), onde ocasionalmente se encontra uma incrustação de um metal precioso (prs. SEbr 1,
4, 19, 113)

2. Disco entre os chifres.

Como no caso anterior, este símbolo não necessariamente estava presente em todos
os artefatos, mas encontra-se ilustrado em todas as categorias deles. Foi observada uma
ênfase nas dimensões do disco nos bronzes, onde este pode adquirir proporções superiores
ao do comprimento da cabeça do touro (prs. SEbr 9, 16, 18). No caso dos shabtis, a
presença do disco é extremamente rara: somente quatro exemplares dos cento e quarenta e
cinco conhecidos ilustram esse símbolo 2 . Ironicamente, são esses escassos artefatos da 19ª
dinastia que exibem pela primeira vez e única nesse período, até onde vai o nosso
conhecimento o disco entre os chifres desprovido da uraeus.

1
Ainda que no caso de Ápís esta devesse, segundo Heródoto, vir acompanhada de outras características
distintivas das quais trataremos mais adiante.
2
Segundo informação do Dr. J.-L. Bovot, do Museu do Louvre. Desses shabtis com disco entre os chifres,
apresentamos um em nosso corpus (pr. SEsh 7).

182
3. Disco com uraeus entre os chifres.

Embora seja recorrente em diversas categorias da cultura material, tais como


estelas, bronzes e ataúdes, a associação entre o disco com a uraeus não está presente no
shabti do presente corpus. O disco com uraeus surge nas imagens de Ápis na 19ª dinastia
(prs. MONdiv 14, 15; SEest 11-12, 14-17), quando a uraeus era representada à parte
pendendo do chifre posicionado na região da frente da cabeça e tombando diante da fronte
do deus taurino. De acordo com a documentação de nosso corpus, a serpente só será
representada no meio do disco e partindo do alto da cabeça do touro a partir da 22ª dinastia
(pr. SEest 56).

4. Uraeus entre os chifres

Ainda que rara, podemos encontrar essa serpente solitária figurando em bronzes
(prs. SEbr 122-123), estelas (prs. SEest 4, 10, 28, 32, 44, 213) e urnas funerárias (prs.
MONdiv 22, 24; fig. 41), mas nenhum shabti foi encontrado exclusivamente com ela entre
os cornos. As primeiras imagens da uraeus desvinculada do disco datam do reinado de
Ramsés II, 19ª dinastia (prs. SEdiv 2; SEest 4, 10), e esta, tal como quando acompanhada
dele, pende diante da fronte do touro.

5. Crescente

Este é outro símbolo pouco frequente, mas que pode ser encontrado em estelas (prs.
SEest 25, 27, 30, 31, 104, 151, 174, 197, 219), ilustrações nos pés de ataúdes (prs. MONdiv
21-22) e, eventualmente, em bronzes (pr. SEbr 120). Como esta marca está diretamente
relacionada à representação teriomórfica, todas as imagens antropomórficas e taurocéfalas
estão naturalmente excluídas, incluindo os shabtis. Nas estelas e bronzes, a localização

183
desse símbolo é na região inferior do pescoço, mas uma estatueta de datação desconhecida e
moldada segundo os padrões egípcios revela esse signo lunar na lateral direita do corpo, na
área das costelas (pr. SEbr 101). Entre as imagens de ataúdes, encontramos uma cena em que
Ápis é ilustrado com o crescente na parte inferior do pescoço (pr. MONdiv 22), como nas
estelas, e outra que além de tê-lo figurado nessa região, o registrou na parte posterior da coxa
(pr.MONdiv 21). Não são de nosso conhecimento ilustrações de Ápis com o crescente no
pescoço anteriores ao Terceiro Período Intermediário, mas se levarmos em consideração a
forma branca sugerida em negativo pelas manchas negras na lateral do boi, é possível que a
primeira representação desse sinal tenha sido ilustrada na sepultura individual “C”, datada do
reinado de Horemheb, mesmo que só tenhamos dela a pintura feita por Mariette.
A mancha em forma de crescente foi mencionada por Eliano3 , Plutarco, Plínio e
Ammianus Marcellinus, mas a única referência que Heródoto faz e que pode explicitar a razão
de o animal apresentar essa marca diz respeito ao seu nascimento. Segundo ele, “Ápis ou
Épaphos é um jovem touro nascido de uma vaca que não mais voltará a conceber; os egípcios
dizem que uma luz desce do céu sobre ela, e que é fecundada por essa luz que ela se torna mãe
de Ápis.”4 É possível que essa luz seja originária da lua e que por esse motivo o animal
apresentava um signo referente a esse astro que o concebeu. Todavia, como Ápis também
exibia uma simbologia solar, essa mesma luminosidade que supostamente o concebeu pode ter
sido entendida como vinda do sol.

6. Manto

Estando associado exclusivamente ao dorso taurino, nenhuma representação


humanizada de Ápis exibe este adereço. Quando ilustrado, ele apresenta forma retangular e
é disposto perpendicularmente diretamente sobre o dorso ou, no caso das imagens de urnas
funerárias, pode repousar sobre a múmia que o touro leva às costas. Essas cobertas por
vezes lisas, simples e monocromáticas (prs. MONdiv 22-23, 25-27, 30), podem vir

3
História dos animais, IX 10. Mais à frente comentaremos esta e as demais passagens de autores clássicos
com maior atenção.
4
Livro III, 28 (Legrand 1949: p. 58).

184
emolduradas internamente por uma faixa (pr. SEbr 1, 3, 8, 10, 12), ou apresentar sobre elas
um padrão de linhas cruzadas (prs. MONdiv 21,24, 28; SEesc 3; SEbr 1, 4, 9, 11-12, 14, 20)
que em bronzes ou outros artefatos elaborados se distinguem como pequenas contas tubulares
de faiança formando telas (prs. SEesc 2; SEbr 3, 7-8, 10, 23). As estatuetas em metal podem
ainda combinar esses diversos elementos e criar mantos bastante sofisticados (prs. SEdiv 2;
SEbr 3, 7, 12-13, 20), aos quais foram adicionadas faixas centrais alinhadas com o dorso
decoradas com pequenos traços ou mesmo com escaravelhos orientados para a cabeça do
animal (pr. SEbr 8). Alguns mantos podem conter franjas na parte inferior das laterais,
constituídas de pontos (prs. SEbr 1, 12, 29), traços (prs. SEbr 20, 26-27), gotas (prs. SEbr 3,
5, 8) ou outros motivos (pr. SEbr 21).
Ainda que a utilização de contas tubulares ou de outras formas não fosse uma
novidade, como atestam os diversos colares e vestimentas femininas desde o Reinado Antigo,
telas constituídas dessas miçangas ganharam popularidade durante o Terceiro Período
Intermediário e Período Tardio 5 para finalidades funerárias, quando se aperfeiçoa tanto a
técnica de elaboração da faiança quanto dos arranjos que se faziam dela (fig. 59). E como
ilustram algumas dessas mortalhas que incorporavam imagens de amuletos diversos, entre
eles o do escaravelho, é bem provável que os bronzes que exibem na parte central do manto
uma fileira desses coleópteros tenham se inspirado em cobertas que exibiam o mesmo padrão
decorativo e que eram compostas de minúsculas contas coloridas de faiança. No caso dos
adornos utilizados pelos Ápis em ocasiões festivas, é provável que fossem também incluídos
detalhes em metais preciosos.
No que concerne às múmias de Ápis, os únicos registros de que dispomos são as
estelas, as quais ilustram ou um manto de contas na área dorsal sobre uma ampla mortalha
uniforme ou esse tecido coberto de uma tela que envolve toda a múmia, mas nunca a
mortalha e o manto feitos de tela juntos. Mariette não menciona em sua descrição dos
subterrâneos a descoberta de contas de faiança, mas devido ao caráter sintético da obra, é
possível que ele tenha dado prioridade a descrever outros achados, tais como shabtis, vasos,
escaravelhos, estelas e, naturalmente, os sarcófagos (Mariette 1882: pp. 47-48, 59).
Na ausência de registros mais antigos que o ilustrem dessa forma, Ápis só começa a
ser ilustrado com um manto a partir do Reinado Novo.

5
Caubet, Pierrat-Bonnefois (eds.) 2005: pp. 136, 151; Feiedman (ed) 1998: p. 160.

185
Fig. 60 Detalhe da
estatueta de Ápis
dedicada por Isetir.
Museu do Louvre, E
4204.

Figs. 61 e 62
Ilustrações de duas
estelas do
Serapeum
publicadas por
Mariette (1857: pr.
32 ) e que ilustram
a múmia de Ápis
com um manto de
rede de contas
(Louvre IM 3595)
ou com uma
mortalha (Louvre
IM 3133) que
contorna o corpo
do touro e com o
mesmo
acabamento
(Malinine et alii.
1968: vol. I, pp.
33-34, pr. XI, n°
34; pp. 118-119, pr.
XLII, n° 152;
Mariette 1857: pr.
32; Perdu in Desti
2004: pp.107, 110).

Fig. 59 Manto funerário composto de contas


multicoloridas de faiança cilíndricas e globulares.
Emoldurado por faixas divididas em segmentos
quadrangulares e em zigue -zague, observa-se um
escaravelho entre dois pilares djed, símbolo de
Osíris, e imagens de Anúbis deitado.1,05m de altura
por 29cm de largura. Museu do Louvre N 3078
(Friedman 1998: pp. 160-161, 249, n° 163; Caubet,
Pierrat-Bonnefois 2005: p.150, fig. 405).
7. Colar

Este adereço, no caso das versões teriomórficas de Ápis, tem uma forma
aproximadamente cilíndrica, pode incluir uma (prs. SEbr 1, 4, 14; SEest 111, 220) ou mais
carreiras 1 estriadas (prs. SEbr 7-13; SEest 130, 141, 143, 173) que são normalmente
emolduradas por outras mais finas, e em alguns casos pode conter na extremidade inferior
junto ao início do pescoço uma cadeia de contas arredondadas (pr. SEbr 12), retas (prs. SEbr
22, 27, 30), em forma de pétalas de lótus (pr. SEbr 10) ou de pequenas flores (pr. SEbr 70).
Em casos singulares, esse adorno adquire a imagem de um arco cujas extremidades em forma
de botões de lótus estão voltadas para baixo (pr. SEbr 1), é constituído diversos buquês dessa
mesma flor unidos entre si por uma linha ondulante (pr. SEbr 3) ou pode ser constituído de
uma imagem alada (pr. SEbr 5). Alguns desses ornamentos representados em estelas são
especialmente volumosos e pesados, tombando até a altura do peito (prs. SEest 173-175, 222,
234). Não há como saber se na cena do templo solar de Niuserre Ápis era figurado com um
colar (pr. MONdiv 4), mas nas tradicionais cenas de corrida ele está desprovido desse
adorno. Não é impossível que alguns registros tenham perecido, mas as cenas em que Ápis
aparece com um colar datam do final do Reinado Novo e parecem ter uma relação com o
tratamento especial que o animal ganhava por seu aspecto divino no Serapeum.
No caso da menat, esta também é observada nas imagens teriomórficas, mas não foi
encontrada nas versões antropomórficas de Ápis. Por vezes, este colar aparece completo em
imagens de ataúdes (fig. 42) e estelas (pr. SEest 87), apresentando a gargantilha de contas de
faiança e o contrapeso Z, em outras é ilustrado somente pelo colar (fig. 44; prs. MONdiv 26,
29; SEest) ou pelo contrapeso associado a uma gargantilha convencional (prs. SEest 32, 77,
82, 126, 179, 194 ; SEbr 18). É interessante observar que entre as poucas imagens de
esquifes, nenhuma ilustrou Ápis com outro colar que não fosse a menat.
As primeiras representações de Ápis com o contrapeso menat datam, de acordo com
as estelas, do Terceiro Período Intermediário, enquanto nas imagens de urnas funerárias de
nosso corpus o colar sem o contrapeso está presente a partir do final dessa época.

1
Nas estelas, esse adorno nem sempre é estriado, como podemos observar nas pranchas SEest 10, 67, 75, 177,
181-182.

187
O colar usekh S é exclusivo da variante antropomórfica do deus, seja ela
apresentada mumiforme, como no caso dos shabtis (prs. SEsh 4, 6, 8-9, 13) e da cena da
Sepultura Individual G (pr. SEdiv 2) registrada por Mariette, ou da convencional em atitude
de marcha (prs. SEest 12, 17, 33, 54 ; SEbr 128, 132). Como nos casos anteriores, a
ilustração desse colar não é unânime, e em muitos casos só é visível logo abaixo do pescoço
por suas extremidades estarem cobertas pela peruca tripartite. Caso a divindade taurocéfala
de Lahun (pr. MONdiv 6) seja Ápís, esta seria não somente a primeira imagem
antropomórfica desse deus que sobreviveu aos nossos dias, quanto também a primeira em
que ele aparece com um adorno desse tipo. A imagem apagada que se situava no templo de
Hatshepsut em Deir el Bahari (pr. MONdiv 9) também estaria entre as mais antigas
conhecidas.

8. Imagem solar alada sobre os ombros ou pescoço

A presença deste símbolo é recorrente nos bronzes que retratam Ápis em atitude de
marcha ou em galope e, em menor proporção, nas imagens de estelas que ilustram o touro em
marcha, mumificado e, possivelmente em um caso, deitado. No entanto, no que concerne a
estes monumentos, essa representação solar parece sempre figurar um falcão (prs. SEest 78,
111, 125, 130-132, 168, 173-175, 178, 183) e este é, exceto por uma estela que ilustra
somente o contorno das imagens solares 2 (pr. SEest 240), o primeiro e único símbolo dessa
natureza que esses registros incorporaram à iconografia de Ápis. Essa imagem podia vir
associada ao colar (prs. SEest 111, 130-131, 173-175, 183) ou ser representada sozinha (prs.
SEest 78, 125, 132, 168). Em uma estela, que não ilustra o restante do corpo da ave, a asa
constitui o próprio colar (pr. SEest 178). No caso dos bronzes, por outro lado, é uma regra
ilustrá-los fazendo pares com o símbolo sobre as ancas, formando diversas combinações
possíveis entre as imagens aladas de um disco, de um escaravelho e de um abutre em cada
uma dessas posições. Já nas urnas funerárias, podemos encontrar sugestões de uma imagem
alada por meio de formas alusivas e brancas contrastando com a pelagem negra (prs.

2
Proveniente da necrópole de animais sagrados de Saqqara.

188
MONdiv 21, 24-27, 29; figs. 42-43), e estas datam desde o Terceiro Período Intermediário.
As representações mais explícitas desses símbolos, presentes nos bronzes e estatuetas de
outros materiais, têm início a partir do Período Tardio.

9. Imagem solar alada sobre as ancas

No caso dos bronzes e estatuetas de outros materiais (prs. SEdiv 2-5), como foi acima
citado, esse símbolo vem acompanhado daquele que figura sobre os ombros e com ele
estabelece várias combinações entre as imagens aladas de um escaravelho, de um disco ou de
um abutre. Somente em uma estela proveniente da necrópole dos animais sagrados (pr. SEest
240), onde Ápis está em atitude de marcha, que este signo foi sugerido por meio de sua silhueta
acompanhado de um semelhante que figura sobre os ombros. Em nenhuma outra estela de
nosso conhecimento há uma imagem alada ocupando essa posição e, como foi dito acima,
somente algumas poucas ilustram uma figura alada próximo ao colar. Nos ataúdes esse
símbolo é sugerido pela forma e cor da pelagem, tal como na circunstância mencionada acima
(prs. MONdiv 21, 24, 25, 29; figs. 42-43) e a figuração de um símbolo alado nessa posição só
aparece a partir do Período Tardio acompanhado de seu homólogo sobre os ombros.

10. Imagem solar alada no centro das costas

Esta só foi encontrada em uma única estatueta de serpentinita (pr. SEesc 5), e que
substitui o tradicional manto por uma imagem alada, alinhada com aquelas que se localizam
sobre o ombro e ancas. A presença de três imagens solares sobre o dorso é usual em bronzes de
musaranhos (figs. 66-67), possivelmente em virtude do aspecto alongado do corpo desses
mamíferos e pelo fato de esses pequenos animais não comportarem um manto às costas. Por
outro lado, o encadeamento desses símbolos associado à forma como esse mamífero é figurado

189
pode aludir ao próprio movimento do sol rumo ao poente3 . Como no caso das duas imagens
aladas na garupa e nos ombros, esta variação também deve datar do Período Tardio.

11. Manchas pelo corpo

Tal como as imagens solares não são populares em estelas, a representação das manchas
corporais de Ápis não é comum nos bronzes, categoria da qual só encontramos dois artefatos.
Entretanto, estas poucas evidências dialogam diretamente com o padrão de manchas encontrados
nas estelas, e cujo registro relativamente abundante nos dá motivos para acreditar que muitos
outros monumentos da mesma categoria e que se encontram apagados devem ter contido
decoração semelhante. Essas manchas negras estão dispostas de maneira muito particular, de
modo que a pelagem branca na lateral sugira a imagem de um crescente: uma nódoa negra ocupa
a parte posterior da coxa, desenhando sobre ela um caminho arqueado ascendente até as ancas –
por vezes a mesma cor se prolonga até a cauda; a cabeça, pescoço, peito e ombros são tomados
por outra marca que adquire sobre o alto das pernas uma aparência côncava; por fim, e sobre o
dorso, há uma mancha que, quando vista de lado, tem um aspecto semicircular que quando
observada em relação às demais, imprime sobre a pelagem branca a imagem lunar. Em alguns
casos, as tachas negras são unidas na região dorsal, mas na maioria dos casos há espaços entre
elas que nos transmitem certa dúvida sobre a interpretação que se faz dessas imagens, uma vez
que nenhum texto egípcio trata delas. Curiosamente, pinturas rupestres neolíticas de Kharkūr et-
Talh no Gebel el-‘Uweynāt4 (figs. 63-64), uma região inóspita no deserto ocidental, ilustram
uma manada com manchas localizadas nas mesmas regiões do corpo, só que pintadas de
vermelho. Não pretendemos tomar esta imagem particularmente interessante como uma regra
para as representações do gado contemporâneas a ela, ou sequer tecer hipóteses carentes em
fundamentação sobre suas possíveis influências na concepção e representação de Ápis
que se desenvolveram milhares de anos à frente, mesmo porque durante as primeiras fases

3
Por serem mamíferos noturnos e terem o habito de construírem seus lares em tocas ou debaixo de pedras
(Osborn, Osbornová 1998: p. 24), os musaranhos foram associados ao aspecto noturno do deus solar, Atum,
cujo movimento celeste pode estar impresso nos bronzes por meio desses símbolos dorsais que Ápis também
traz.
4
Cf. Le Quellec, Flers, Flers 2005: p. 86, figs. 186-187.

190
Fig. 63

Fig. 64 Fig. 65

Figs. 63 e 64: Pinturas rupestres de Karkūr et-Talh no Gebel ‘Uweynāt, deserto ocidental. In Le Quellec,
Flers, Flers 2005: p. 86, figs. 186 e 187. Fig. 65, detalhe da estela de Nesptah, Louvre SN 78, N 421/?; 39; R
413. Malinine, Posener, Vercoutter 1968: pp. 130-131, n° 169, pr. XLVI, n° 169.
do período faraônico, como já vimos, não encontramos paralelos com esse padrão
de manchas que pudessem servir de ponte para fundamentar esta hipótese.
Entretanto, o que desperta nossa atenção, é o fato de essa combinação de marcas
ter sido importante para uma população de pastores nômades, que muito devem ter
tido em comum com os Nuer e outros povos africanos que vêem nos animais que
criam muito mais do que fonte de alimentação 1 . Esse olhar intrigado e imaginativo
sobre o mundo vegetal e animal deve ter sido transmitido por esses ancestrais
andarilhos aos antepassados dos Egípcios, e o produto dessa cultura se concentrou
na religião, na qual as cores da pelagem dos animais desempenharam uma função
importante que influenciava não somente em sua escolha como seres divinos como
também para sacrifícios 2 .
Voltando às representações das estelas, por outro lado, se mudarmos nossa
perspectiva de uma visão lateral para uma superior, notaremos uma mudança no
enfoque dado a essas manchas, e ao invés da forma do crescente iremos distinguir
um grande círculo 3 negro na parte central do dorso que pode ter sugerido a forma
do disco solar. Por mais paradoxal que possa ser, a simbologia solar pode ser
expressa pela cor negra 4 e a posição da mancha dialoga com as imagens solares
dos bronzes e estatuetas de pedra, todas respeitando o eixo dorsal. No imaginário
religioso, o movimento do touro se confundiria com o do astro-rei ao qual estava
associado em sua missão funerária, tornando-se assim um aspecto ctônico do sol.
Seja como for, ambas as interpretações podem ser plausíveis e, com o decurso do

1
Cf. Evans-Pritichard 2002.
2
Para mais referências sobre a influência das cores e motivos na pelagem dos animais cf. Vos 1998. A cena
das sete vacas sagradas acompanhadas de um touro negro situada no anexo lateral leste da tumba de Nefertari
ilustra padrões diversificados da pelagem dos animais que, mesmo estilizados, podem estar associados a um
simbolismo particular. Tanto a segunda vaca do primeiro registro quanto o touro, do segundo, ambos com a
pelagem majoritariamente negra, apresentam manchas dorsais claras em forma de uma secção circular à
semelhança daquela que encontramos nas pinturas de Ápis, embora sejam de outra cor (Leblanc, Siliotti 1997:
pp. 140-141). Por outro lado, uma das vacas que puxa uma charrua no túmulo de Sennedjem, com o corpo
branco salpicado de manchas irregulares negras, exibe uma tacha similar no centro das costas que talvez não
tenha outra função que a estética (Ziegler, Bovot 2001b: fig. 83).
3
Devauchelle (2001: p. 34) também sugeriu essa perspectiva, sem associá-la a outras representações da
cultura material.
4
Maniche ilustrou o ciclo solar e as respectivas cores associadas a ele por meio de uma caixa em forma de
cartucho pertencente a Tutankhamun. Nela, as fases da vida do rei estariam confundidas com a jornada do
astro: amarelo para criança, vermelho para o rei, negro para o rei morto e novamente amarelo para o jovem rei
em vias de renascer (Maniche apud Vos 1998: p.717). Vale lembrar que o Ba do deus solar se manifestava
por um touro negro, Mnévis.

192
tempo, foram sofrendo alterações à medida que a própria cultura egípcia se
transformava com as influências estrangeiras. No caso do Período Romano, por
exemplo, não somente a forma como o touro passou a ser representado sofreu uma
profunda alteração estética, como também sua simbologia foi em grande parte
suprimida, restando dela um pequeno disco entre os chifres e a imagem de um
crescente pequeno no lado direito ou esquerdo do animal, que pode ser fruto da re-
interpretação latina (pr. MONdiv 32).
Já nas representações de ataúdes, as marcas são ilustradas das formas mais
diversas, por vezes procurando formas circulares concêntricas improváveis (pr.
MONdiv 23), tachas alinhadas (MONdiv 30; figs. 41, 43) ou que reúnem sinais em
forma de crescente (prs. MONdiv 21, 22,). Há, no entanto artefatos que ilustram
uma distribuição de manchas negras semelhante à das estelas (prs. MONdiv 22, 30;
figs. 43, 48, 49), outros que somam estas com a sugestão das formas de imagens
solares (fig. 43) e aqueles que simplesmente figuram manchas espalhadas sem
padrões particulares (prs. MONdiv 20, 28; fig. 44). Nos artefatos de Grenoble (pr.
MONdiv 29), de Leiden (pr. MONdiv 26) e do Louvre, Ápis apresenta a pelagem
inteira ou quase que completamente negra, com exceção de uma ou duas manchas
triangulares brancas e invertidas sobre os ombros e ancas que sugerem imagens
solares.
A primeira imagem de nosso conhecimento em que Ápis aparece com o
padrão de manchas negras visto com regularidade nas estelas tardias foi copiada
por Mariette de uma pintura mural da Sepultura Individual “C” (pr. SEdiv 1) , mas
como já comentamos, a ilustração fornecida pelo arqueólogo francês pode ter sido
influenciada pela sua descoberta anterior de estelas do Terceiro Período
Intermediário e Período Tardio que o ilustram dessa forma. Como as estelas do
final do Reinado Novo perderam sua policromia, preferimos, a priori, considerar
que a ilustração dessas marcas – e talvez até a escolha do animal por esse critério –
tenha se iniciado no final do Reinado Novo ou no início do Terceiro Período
Intermediário.

193
Elementos Restritos

Trata-se daqueles que são pouco comuns ou de alguns artefatos cuja associação
a Ápis é duvidosa ou que podem ser fruto de equívocos.

1. Peruca ou toucado em representações teriomórficas

A representação de Ápis com uma peruca é uma regra para sua versão
antropomórfica, independentemente de sua categoria como artefato, seja em
representações bidimensionais ou tridimensionais, seja através de sua configuração
como uma divindade convencional ou mumiforme, tal como nos shabtis e na cena
do túmulo individual G da qual Mariette nos deixou um registro. Nessas instâncias,
a peruca é um adereço fundamental tanto para emoldurar a cabeça quanto para dar
equilíbrio estético à imagem, uma vez que as cabeças animais têm proporções
diversas em relação à humana, e a peruca ajuda a neutralizar o estranhamento
causado pela associação de corpos de naturezas distintas. A versão antropomórfica
e taurocéfala de Ápis com peruca mais antiga que conhecemos pode estar
representada na cena do templo funerário de Senusret II (pr. MONdiv 6), datada da
12ª dinastia, senão, constava no templo de Háthor em Deir el Bahari (pr. MONdiv
9), da 18ª dinastia.
Por outro lado, não é comum ver na representação teriomórfica de Ápis a
ilustração de uma peruca, que muitas vezes pode ser interpretada como um tipo de
toucado. Essa espécie de adereço que é associado às máscaras funerárias e que
contém listras longitudinais multicoloridas pode, de sua parte, refletir uma
estilização da própria peruca tripartite, e que quando ilustrado nas estelas votivas
estaria indicando uma inter-relação iconográfica entre diferentes categorias de
representações. Esta transposição é notada nas imagens em que Ápis aparece

194
completamente mumificado e dotado de uma máscara (prs. SEest 29-31, 130, 132,
134, 135, 136). Talvez como extensão desse tema, também vemos representações do
touro com a cabeça coberta em cenas em que ele aparece deitado e com os membros
bem expostos (prs. SEest 113-114, 117-118). Não foram encontrados bronzes ou
outros artefatos afora as estelas em que Ápis seja ilustrado deitado e que exibam
uma peruca, cabeleira estilizada ou toucado e essa forma de ilustrá-lo se inicia no
Terceiro Período Intermediário.

2. Máscara funerária

Além de ornar a face da múmia de Ápis, a representação da máscara


funerária só foi encontrada em estelas que apresentam o boi mumificado ou
deitado. No último caso, é plausível que o adorno tenha sido associado por
analogia à pose do animal, que é similar à da sua múmia. Em algumas
circunstâncias, contudo, em virtude do desbotamento das cores, não há como se
ter total certeza quanto à ilustração de uma máscara e podemos estar diante de
uma representação taurina com peruca (prs. SEest 52-53, 113, 117-118). A
utilização de pigmento é, nestas situações, um elemento chave porque o
tratamento que se dá à cabeça é diferente daquele dado ao restante do corpo, como
bem ilustram as estelas que retratam o Ápís mumificado (prs. SEest 29-31, 56).
Também pode ocorrer de a máscara funerária não ilustrar a peruca e, com isso, o
limite entre o corpo e a cabeça fica evidente, especialmente quando se faz uso de
alturas diferentes do relevo para indicar essas partes (pr. SEest 28). A ilustração
de Ápis mumificado com a cabeça coberta de uma máscara funerária se inicia com
o Terceiro Período Intermediário.

195
3. Disco com par de plumas

Este elemento foi encontrado em uma única estela de aparência rústica (pr. SEest
164), em uma imagem de um sarcófago não identificado (Lanzone apud Quaegebeur
1983: p. 28, fig. 8a) e em bronzes que ilustram um bovino em marcha ou em égides
chamadas por Quaegebeur de “menats” (pr. SEbr 140). No caso das imagens em metal,
esse elemento simbólico vem associado a um bovino cujo sexo nem sempre é visível e
que apresenta chifres característicos de uma vaca. Por sua raridade e identificação com
Ápis não completamente comprovada ou compreendida, preferimos manter esta
caracterização à parte em virtude de sua representatividade no corpus.

Frequência dos Modos de Figuração Referentes à Atitude


e seu Contexto de Localização

Entre as representações de Ápis mais recorrentes estão aquelas que o ilustram


como um touro em atitude de marcha, conformando-se assim ao modo como bovinos
eram usualmente retratados na cultura material. Como vimos, esta maneira de ilustrá-lo
foi encontrada no túmulo individual “D”, em ao menos um dos pyramidions (pr.
MONdiv 12) e em uma cena de sarcófago (Lanzone apud Quaegebeur 1983: p. 28, fig.
8a), como também em estelas, relevos murais, bronzes e estátuas de grande ou pequeno
porte 5 . Esta descrição de Ápis em particular, talvez por ser usual entre a caracterização
de bovinos, não fornece evidências esclarecedoras sobre seu contexto de figuração, uma
vez que é quase que onipresente.
Na categoria teriomórfica, a segunda colocada não em frequência, mas por sua
presença em um leque amplo da cultura material, é a de Ápis em atitude de galope. Já

5
Por sua natureza antropomórfica, os shabtis ficam fora desta seriação.

196
vimos que esta maneira de ilustrá-lo é a mais antiga e que elucida seu estreito vínculo
com a realeza, permanecendo assim inclusive durante o período Ptolemaico. Deste tema,
surgiu uma vertente funerária representada pela festa Sed de Osíris em um ataúde do
museu de Berlim datado da 21ª dinastia (pr. MONdiv 19), que possivelmente evoluiu
para as cenas de corrida encontradas nos pés de urnas funerárias 21ª-22ª dinastias, que
associam Ápis a Hórus ao carregar às costas a múmia de seu pai Osíris, como ilustra e
comenta o papiro Jumilhac (pr. MONdiv 33), referente ao 17º nomo do Alto Egito e
redigido durante o Período Ptolemaico. A posição que a cena adquiriu nesses esquifes
estaria ligada não somente ao ciclo solar representado pelas ilustrações e concepção
deste, mas também aos pés do defunto, uma vez que Ápis é retratado em pleno
movimento. O mesmo tema foi incorporado à decoração do templo de Híbis no oásis de
Kharga, durante o período Persa (27ª dinastia) e a algumas sepulturas privadas.
A transposição da iconografia de Ápis em galope, mas sem o morto sobre o
dorso, é vista em quatro estelas do Serapeum (prs. SEest 69, 155-157), datadas da 22ª e
26ª dinastias, e em bronzes do Período Tardio (prs. SEbr 112-126) que são
possivelmente originários do mesmo sítio. As estelas eram depositadas por devotos ou
pelo rei seja nos Pequenos quanto nos Grandes Subterrâneos, mas nestes últimos,
somente as estelas reais tinham o privilégio de serem inseridas nos muros das câmaras
funerárias, enquanto a manifestação da devoção popular ficava restrita aos muros das
trincheiras de acesso e à entrada dos corredores. Os bronzes, por seu lado, foram
encontrados em esconderijos (fig. 6) sob o piso do dromos e da estrada que partia da
face norte da muralha que cercava o Serapeum. Seu local original não eram essas
cachettes, mas acredita-se que foram aí armazenadas como as favissae para dar espaço a
outras estatuetas – de Ápis ou outras divindades, especialmente Osíris, que eram
depositadas no templo dedicado ao touro menfita nas proximidades de seu túmulo.
Diante do processo de adaptação do tema da corrida de Ápis para o contexto
funerário no ataúde de Berlim, proveniente do Alto Egito, de sua releitura para o motivo
do transporte das relíquias de Osíris citado pelo papiro Jumilhac e igualmente presente
nos pés de urnas funerárias da mesma origem que são mais antigas do que as escassas
cenas de estelas, acreditamos que este argumento tenha se desenvolvido nessa região e
que depois tenha sido adaptado às representações menfitas, excluindo-se delas a imagem

197
da múmia sobre o dorso taurino. Para dar sustentação a esta hipótese, lembramos que a
única cena que ilustra o tema funerário da corrida em um templo foi registrada no oásis
de Kharga, no sul do deserto líbio e que o texto do papiro Jumilhac foi compilado no 17º
nomo do Alto Egito. Desta forma, é possível que esta cultura tenha suas origens nas
milenares práticas tauromáquicas ilustradas nas cenas de hipogeus datados do final do
Reinado Antigo e que se estenderam até o Reinado Médio. Também é provável que a
variação dos padrões das manchas corporais de Ápis nesses ataúdes se deva, além da
distância da influência dos cânones menfitas, a uma apreciação estética singular dos
ilustradores meridionais baseados em outros modelos iconográficos.
A representações de Ápis deitado são mais comuns em estelas do que em bronzes
e sua presença está, aparentemente, restrita ao perímetro da região menfita. A imagem
do boi retratado nessa postura deve estar relacionada ao modo como ele
costumeiramente ficava em sua morada no recinto do templo de Ptah, em Mênfis, ou
como uma analogia ao seu corpo mumificado, uma vez que não existem bronzes
conhecidos que ilustrem a múmia de Ápis. Esta só encontra expressão na cultura
material por intermédio dela mesma ou de cenas em estelas, cuja representação é
frequente dentro dos variados temas que esses monumentos ilustram.
A outra maneira de representar Ápis é por meio de sua aparência humanizada
com cabeça teriomórfica, no modelo tradicional e consagrado da iconografia das
divindades animais. Nesta condição, Ápis é visto em elementos arquitetônicos de
templos, tais como relevos murais e colunas (pr. SEdiv 4), em inscrições de estátuas
como a de Khaemwaset (pr. SEdiv 3), e em estelas e bronzes. Sua mão rente ao corpo
habitualmente segura um ankh, o símbolo da vida, enquanto a outra, posicionada à frente
do corpo, seja junto ao peito ou com o braço ligeiramente flexionado adiante, porta um
cetro. Pela diversidade de locais em que esta forma é ilustrada, não há como se
estabelecer uma contextualização específica para esta representação, que como a
primeira categoria teriomórfica aqui comentada, também ilustra uma atitude de marcha e
constitui uma forma representativa recorrente na iconografia.
Por fim, a caracterização antropomórfica também pode ser expressa de maneira
mumiforme, mas em casos muito particulares. A única representação bidimensional
desta categoria que nos é conhecida é ilustrada pela imagem transmitida por Mariette, a

198
qual não está livre de questionamentos sobre sua fidelidade. A forma mais comum é
aquela ilustrada pelos shabtis do Serapeum do reinado de Ramsés II até a passagem da
21ª para a 22ª dinastia, nas quais a efígie taurina emperucada é vinculada a um corpo
humano mumiforme do qual somente as mãos estão libertas portando instrumentos
agrícolas. Nas dinastias seguintes do Terceiro Período Intermediário essa representação
foi, por fim, substituída pela maneira convencional como os shabtis são ilustrados de
maneira antropomórfica.

Manchas Corporais e Símbolos Solares

Quando se trata de Ápis e sua simbologia, todas as fontes que o descrevem foram
escritas por autores clássicos. O texto mais conhecido, de Heródoto (livro III, 28) 6 ,
menciona as seguintes características:

“ele é negro, ele porta sobre a fronte uma marca branca


triangular, ele tem sobre o dorso a imagem de uma águia, os pelos da
cauda são bifurcados, sob sua língua uma imagem de um escaravelho.”

Diodoro Sículo (livro I) não entra nos pormenores de Heródoto, mas confirma a
existência de sinais no corpo do animal:

“Após os funerais do touro sagrado, os sacerdotes vão a busca de


um novilho que tenha sobre o corpo os mesmos signos de seu
predecessor.” 7

Estrabão dá um testemunho mais consistente e que casa com o relato de Heródoto:

6
Legrand 1949: p. 27.
7
Hoefer apud Gaillard, Daressy 1905: p. 17.

199
“Sua fronte, da mesma forma que outros pontos de seu corpo porta
manchas brancas, mas o resto é negro. É por esses signos que se escolhe
o touro que convém para suceder aquele que é objeto de um culto quando
ele morre.” 8

Plutarco, em seu texto De Iside et Osiride (§ 43) também dedica uma rápida
passagem às características de Ápis:

“... Ápis porta, à semelhança da lua em suas diversas fases, várias


marcas claras sobre o fundo negro de sua pelagem.” 9

Plínio (VIII, 46) nos fornece um comentário que une a observação de Heródoto sobre
o escaravelho ao simbolismo lunar mencionado por Plutarco:

“Sua marca distintiva é uma mancha branca, em forma de


crescente, sobre o lado direito; sob sua língua há um nó que eles
chamam ‘escaravelho’.” 10

Cláudio Eliano, por sua vez, nos apresenta em sua “História dos animais” (XI, 10)
um número de símbolos ainda mais elevado do que aqueles mencionados por Heródoto:

“(...) dizem que neste boi sagrado se distinguem claramente vinte e


nove sinais. Quais são estes sinais e como estão repartidos pelo corpo do
animal e de que maneira o touro está adornado com eles, o saberás em
outro lugar. Os egípcios são capazes de demonstrar que cada sinal
representa, por meio de símbolos, cada um dos astros. E dizem também
que os sinais representam a cheia do Nilo e a figura do Universo. Mas
poderás ver também um sinal, como dizem os egípcios, que indica que a

8
Viagem ao Egito, 31(Yoyotte, Chavet 1997: p. 135).
9
Froidefond apud Devauchelle 2001: p. 34, nt. 176.
10
Mariette 1882: p. 126.

200
obscuridade é mais antiga do que a luz. E outro representa a figura da
lua crescente para todo aquele que sabe entendê-la. Há, ademais, outros
signos misteriosos, de diferentes entidades, que são de difícil
interpretação para entendimentos profanos e para os que desconhecem a
história divina.” 11

Outros autores tardios, tais como Ammianus Marcellinus, Julis Solinus e


Porfírio também fazem menção a essas manchas, e o último as relaciona ao sol e à
lua (Mariette 1882: p. 126).
Mesmo que todas as versões aqui apresentadas careçam de mais detalhes, em
um primeiro relance, as versões desses autores são aparentemente complementares
por citarem alguns pontos em comum, como a pelagem negra de fundo (Heródoto,
Estrabão, Plutarco), a existência de manchas brancas (Heródoto, Estrabão, Plutarco,
Plínio) as quais adquirem a forma de símbolos de aparência lunar (Plutarco, Plínio,
Eliano, Porfírio) e mesmo uma particularidade na língua que se aparenta a um
escaravelho (Heródoto, Plínio). Dois autores, Diodoro Sículo e Estrabão, confirmam
a importância dos signos que o animal exibe para a escolha de um sucessor quando
da morte de um Ápis. Heródoto é o único que traça um comentário sobre uma distinta
mancha triangular na fronte e de uma imagem de águia sobre o dorso, ao passo que
Plínio especifica que a área em que se imprimia a imagem do crescente branco era o
lado direito. Estes dois autores são os únicos que fornecem uma precisão sobre a
aparência e localização das marcas. Eliano, por sua vez, nos fornece um testemunho
que parece altamente influenciado pelos valores do hermetismo 12 por passar uma
versão que procura explicar as associações simbólico-cósmicas dos símbolos e não
especificar propriamente quais são eles. Ainda assim, Eliano é o único escritor que
menciona a existência de vinte e nove símbolos, um número que excede em muito as
poucas linhas utilizadas por todos os autores para enumerá-los.

11
Díaz-Regañón Lopez 1984: p. 90.
12
Esta impressão é especialmente reforçada quando o autor cita a existência de “símbolos misteriosos, de
diferentes entidades, que são de difícil interpretação para entendimentos profanos e para os que
desconhecem a história divina”.

201
No entanto, devemos ter prudência ao somar todos esses relatos de forma
indistinta de seus respectivos contextos como algumas obras o fazem 13 de modo que
não venhamos a incorrer em anacronismos. Se as fontes nos sugerem uma alteração
no significado e simbolismo de Ápis no decorrer do período faraônico, o que não
dizer quanto à época em que valores do mundo greco-romano foram somados à
tradição nativa? Não podemos nos esquecer que só entre Heródoto e Eliano, mais de
sete séculos separam um do outro, e realidades sócio-político-culturais distintas
estão em jogo nesta ampla cronologia. A título de termos um exemplo concreto,
podemos tomar como um medidor explícito dessa transformação as próprias
diferenças na representação de Ápis na época em que Heródoto esteve no Egito com
aquelas do período de Eliano, cuja difusão se fez por todo do Império Romano. Na
época do primeiro, a imagem de Ápis respeitava os padrões canônicos da arte
egípcia que expomos no presente trabalho, incluindo ou não um número particular
de símbolos ou manchas que correspondia aos valores religiosos desse tempo. Já no
período de Eliano, não somente a aparência teriomórfica de Ápis se sujeitou à
estética romana, como inclusive a antropomórfica e taurocéfala, que recebeu uma
caracterização tipicamente romana de um legionário com cabeça taurina 14 . Quanto à
simbologia, notamos que as imagens de Ápis dessa época ilustravam somente um
crescente na lateral do touro, que nas pinturas é branco contrastando com a pelagem
negra (pr. MONdiv 32), e um pequeno disco entre os chifres, caracterização
bastante similar àquela feita por Plínio 15 . Desta forma, se não há como negar uma
mudança na iconografia de Ápis no decurso de mais de quinhentos anos, o que não
dizer dos conceitos que o cercam? Por outro lado, não podemos ignorar que nem
sempre os relatos desses autores eram de primeira mão, e que muitas dessas
informações podem ter sido escolhidas e reinterpretadas de acordo com os valores
de quem as descrevia.

13
Por exemplo Ions (1975: p. 123).
14
Esta transformação é visível em representações de outras divindades que eram representadas com cabeças
de animais, como Hórus e Anúbis. Cf. Willeitner in Schulz, Seidel 1998: p. 314, fig. 49, Luft in Schulz, Seidel
1998: p.431, fig. 22.
15
Embora Plínio não tenha comentado sobre o disco, este era um elemento que não era natural ao boi, mas
certamente acrescentado a ele ao menos em ocasiões festivas.

202
Da descrição de Heródoto, somente duas características encontram paralelos
diretos com a cultura material egípcia, uma delas parcialmente plausível. O
triângulo frontal, ainda que não esteja presente em todos os artefatos, é recorrente na
cultura material confirmando a versão do viajante helênico. O outro símbolo, citado por
ele como uma marca em forma de águia (aietÒn) sobre o dorso, necessita, entretanto, de
uma revisão. Para os egípcios, até onde vai o nosso conhecimento, a águia não suscitava
qualquer importância que a fizesse ser incorporada no repertório simbólico 16 e Heródoto
certamente deve ter confundido uma das imagens aladas dos bronzes ou estelas com essa
ave de rapina que era importante para sua cultura. No que concerne aos bronzes, a única
ave que realmente consta, é o abutre 17 . Nas estelas, por outro lado, tudo indica que a
imagem alada é um falcão. Ambos têm conotação solar e são perfeitamente plausíveis.
Ainda que as informações de Eliano estejam muito carregadas de misticismo, as
fontes materiais revelam que certas concepções celestes foram de fato associadas a Ápis.
O percurso solar, por exemplo, é ilustrado pelo disco que ele carrega entre os chifres,
pelos símbolos solares dorsais ou pelo significado da corrida nos pés de ataúdes; o
crescente, que também foi mencionado por Plínio e sugerido por Plutarco e Porfírio,
igualmente encontra paralelos com as cenas de estelas e alguns bronzes, onde a imagem
de um amplo crescente é sugerida pela disposição das manchas negras pelo corpo do
touro ou é figurada abaixo do pescoço do animal. Entretanto, Plutarco menciona a
existência de várias marcas claras à semelhança da lua, ao passo que Plínio e Eliano
relatam somente uma. Baseando-nos em sua descrição, não há como saber a que parte do
corpo de Ápis Eliano atribuía a marca em crescente, mas Plínio a localiza no lado
direito. Essa é a exata posição que o crescente assume nos bronzes do Período Romano,
que por vezes pode ser gravado no outro lado. Somente um bronze do Louvre (pr. SEbr
101), que é moldado à estética faraônica, exibe uma gravação semelhante, mas sua
datação é desconhecida e pode tratar-se de um artefato do Período Ptolemaico, quando se
processava uma transformação na representação de Ápis.
O restante da simbologia infelizmente não pode ser contrastado com a cultura
material, seja porque símbolos não eram incluídos na forma de apresentação da imagem

16
Cf. Vernus, Yoyotte 2005: p. 354.
17
As outras imagens são de um disco ou escaravelho alado.

203
bovina, como o escaravelho sob a língua (Heródoto, Plínio), seja porque eram
particularidades difíceis ou impossíveis de se retratar segundo as normas vigentes,
como os pelos duplos na cauda. Embora não ilustrado pelos objetos, o símbolo do
escaravelho não deixa de ser plausível por ser igualmente associado ao sol, mas sua
localização sob a língua é algo impossível de ser comprovado.
Em síntese, dos relatos desses autores temos referência a três símbolos que
estão de acordo com as fontes datadas do Reinado Novo ao final do Período Tardio e
cuja ilustração total ou parcial era sugerida por manchas brancas sobre a pelagem
negra 18 : o triângulo frontal, uma imagem alada sobre os ombros e o crescente.
Falta agora um contraste entre as representações egípcias que diferem entre si,
ilustradas especialmente pelas estelas e pelos bronzes 19 .

Estelas e Bronzes: Contrastes

Se Mariette foi fiel em sua reprodução do afresco da Tumba Individual “D”,


datada do reinado de Horemheb (18ª dinastia), esta é a primeira imagem de nosso
conhecimento na qual Ápis foi apresentado com um padrão específico de manchas
negras espalhadas pelo corpo. Em virtude do precário estado de conservação de um
grande número de estelas e relevos, só voltamos a encontrar exemplares com um mínimo
de vestígios de pigmentação que mantém a decoração com as mesmas tachas a partir da
22ª dinastia. Naturalmente, caso o arqueólogo francês não tenha cometido um
anacronismo na sua interpretação da cena da Sepultura Individual, é admissível que
outros monumentos das dinastias seguintes fizessem o mesmo, e que por um azar do
destino, suas cores não perduraram. A partir daí, muitas outras estelas que figuram Ápis

18
Sabemos que as representações tradicionais de Ápis persistem durante a época ptolemaica, mas preferimos
nos concentrar no período faraônico por limitação de tempo para um estudo tão exaustivo.
19
A escolha dessas duas categorias da cultura material se deve à maior coerência na forma em que cada uma
delas ilustrou o animal.

204
em marcha, galope ou deitado mantiveram a norma de apresentar o touro dessa maneira,
acrescentando adornos com finalidade a priori estética, como colares e mantos, e outros
com significado simbólico, como o disco com ou sem uraeus, um falcão com asas
estendidas sobre o pescoço e o colar menat. Somado às manchas negras, por vezes
acusamos a presença do triângulo frontal e do crescente no pescoço deixados em branco.
Outro monumento que segundo Auguste Mariette exibia o corpo pintado com essas
manchas negras e que incluía o triângulo alvo na testa é a estátua de calcário de Ápis que
pertence atualmente à coleção do Louvre. Somente dois bronzes atribuídos ao período
tardio ilustram por meio de linhas os contornos dessas manchas (pr. SEbr 100, 102).
Os bronzes, como artefatos de prestígio que eram por seu valor de custo elevado,
não podiam pecar em seu acabamento e expressão dos detalhes, mas contrariamente às
imagens das estelas, ilustram um conjunto de símbolos particular: duas imagens aladas
alinhadas à coluna e dispostas sobre os ombros e ancas. Nesses objetos, como em estatuetas
de pedra e marfim (prs. SEesc 1-5), há várias combinações possíveis que ilustram abutres,
discos e escaravelhos alados. A parte superior dessas figuras sempre respeita a orientação
do corpo do bovino, e mesmo em alguns casos um manto entre elas contém uma fileira de
escaravelhos (pr. SEbr 8), estes obedecem à mesma regra. Uma estatueta de serpentinita
presente no corpus ilustra ao todo três imagens aladas dessa forma (pr. SEesc 5). A
disposição desses símbolos é similar àquela que vemos sobre o dorso das estatuetas de
musaranhos 20 (figs. 66-67), um pequeno mamífero que era associado ao sol poente, Atum.
O arranjo dos símbolos solares enfileirados sobre as costas 21 tanto dos Ápis quanto dos
musaranhos lembra a sequência de abutres que ornam os tetos de santuários e de tumbas do
Reinado Novo (figs. 68-69). Na maioria dos casos, a localização dessas pinturas e seu
alinhamento respeitam a orientação do percurso solar rumo ao ocidente, aludindo assim
ao processo cíclico de renascimento. Como no caso dos bronzes de Ápis consta um disco
solar emoldurado pelos chifres no final do percurso dessas figuras aladas, é razoável

20
Osborn, Osbornová 1998:24-27; Vernus, Yoyotte 2005: p. 614.
21
Uma estatueta de bronze de Osorkon I (Fazzini in Hill 2008: pp. 82-83) em atitude de marcha ofertando um
vaso nw b - o outro braço está quebrado- tem em suas costas a representação de um abutre portando dois
símbolos shen ) e com asas estendidas que, como os detalhes do saiote, dos cartuchos e de imagens divinas
sobre o seu torso, foi realizado em marchetaria com fios de ouro. Essa ave que normalmente figura em
peitorais, pode aqui estar desempenhando além de uma função protetora a incorporação do deus solar ao rei.

205
Fig. 66 Ex-voto de musaranho sobre base aberta que originalmente devia acolher
uma múmia desse animal. Bronze, Período Tardio, altura: 4,6 cm, comprimento:
11,9cm, largura: 2,5cm (Schoske, Wildung 1992: p. 79-80, n° 52).

Fig. 67 Ex-voto de musaranho pertencente à coleção Abraham Guterman. Bronze,


Período Tardio, altura: 2,5cm, comprimento: 10,4cm (Ben-Tor 1997: pp. 86-87, nº 81).
Fig. 69 Fachada do segundo pilono do templo de Karnak,
com imagens solares aladas alinhadas acima do pórtico.
Imagem representada em uma das paredes do templo de
Khonsu de Ramses III e Ramses IV (Aldred et alii.
2008:351, n° 254; Blyth 2006: p. 135, fig. 10.1).

Fig. 68 Teto do terceiro santuário que abrigava os


sarcófagos de Tutankhamon (Piankoff 1962: fig.28).

Fig. 70 Disposição de símbolos solares sobre os


ombros, ancas e na parte central do manto de uma
estatueta de uma coleção alemã (Schoske, Wildung
1992: p. 96).
que esses símbolos não fossem considerados separadamente, mas como parte de um conjunto que
descrevia o próprio deslocamento do sol em direção ao poente, movimento este que se associa àquele
sugerido pelas pernas das estatuetas de Ápis, uma vez que nenhuma imagem em atitude de repouso
apresenta esta simbologia1 . Os chifres seriam, neste caso, o esquema de duas montanhas nas quais o
sol se põe, aludindo ao hieróglifo para a palavra akhet l “horizonte”. Esta interpretação relativa à
associação do movimento solar com o de Ápis é sustentada pela linguagem simbólica das urnas
funerárias, que ilustram o touro sagrado carregando a múmia nos pés do esquife se dirigindo ao outro
extremo destas, representado pelo escaravelho no topo da cabeça, onde se completa o processo da
ressurreição. Se esta leitura tiver fundamento, duas perspectivas sobre esses objetos se complementam:
o movimento solar em direção ao poente ilustrado pelo dorso e, possivelmente, o nascimento do astro a
partir da visão frontal dessas estatuetas. Talvez esta concepção forneça uma sugestão da importância
do triângulo frontal, que se abre para o disco que repousa entre os chifres como uma flor de lótus2 .
Com efeito, o tipo do suporte material pode ser o elemento-chave para compreendermos
por qual motivo Ápis é, grosso modo, ilustrado de um jeito nos bronzes e de outro nas estelas:
porque a tridimensionalidade dos primeiros requer uma linguagem iconográfica própria que não
se adequa perfeitamente à bidimensionalidade das cenas pintadas. Além disso, o uso das cores,
que não é utilizado nas estatuetas de Ápis que através do uso de metais preciosos por meio de
marchetaria, não causaria o mesmo efeito que os pigmentos produzem nas estelas3 . Um artefato
pede uma visão global e o outro, frontal4 . Por outro lado, esses símbolos solares não foram de
todo banidos das cenas de estelas, e aqui não nos referimos a signos agregados ao corpo do touro
como, por exemplo, o disco entre os chifres, mas a aqueles que são exteriores a ele. Entre esses

1
No caso das estelas, há somente uma imagem alada posicionada sobre o pescoço em representações do touro
em marcha ou repouso, e pela condição de estarem sós, pela posição em que se encontram e pela ave
representada, o falcão, é de se supor que o paralelo mais apropriado a estas cenas não seja o do percurso solar,
mas o simbolismo que se estabelecia ao posicionar essa ave de rapina acima da cabeça e pescoço de
esculturas, como vemos na célebre imagem de Quéfren do Museu do Cairo (JE 10062 =CG 14) ou na de
Raneferef (JE 90220). É possível que em virtude do posicionamento dos chifres e do disco, que tomam todo o
espaço acima da cabeça, não tenha havido outra alternativa que situar o pássaro sobre o pescoço, mas há a
possibilidade de que essa localização seja intencional. No caso dos musaranhos, sempre que apresentam
simbologia solar também são representados em movimento.
2
Não é de nosso conhecimento qualquer artefato ou imagem que apresente o disco solar emergindo
diretamente de um lótus, mas representações aparentadas ilustram a criança solar com o disco sobre a cabeça
surgindo dessa flor como, por exemplo, em um pingente no museu de Boston (Freed, Berman, Doxey 2003: p.
174).
3
Levando em consideração os artefatos de nosso corpus que ilustram as manchas somente por linhas, e não
por espaços onde se encaixavam peças metálicas.
4
Lembramos que a ilustração de figuras aladas, ou contornos que as sugerem, são raríssimos em estelas e
mesmo em cenas de ataúdes.

208
símbolos encontramos um wedjat B alado (pr. SEest 8), um escaravelho apresentado da mesma
forma (SEest 69), além de abutres (prs. SEest 25, 26, 106, 108-109, 111, 119, 143, 184), falcões
(prs. SEest 45, 71) e do disco solar alífero (prs. SEest 19-22, 25-30, 32, 33, etc) com um par de
uraeus ou sem as asas (pr. SEest 164). A presença desses símbolos fora do torso taurino sugere
que se fazia necessária outra forma de expressar o vínculo entre Ápis e essas diversas
representações alusivas ao deus solar além de elementos pousados diretamente sobre seu dorso e
que teriam o mesmo propósito. 1
Não há como saber como eram exatamente as manchas características que serviam como
critério para a escolha dos Ápis. Heródoto menciona uma ave sobre o dorso, mas seria formada
por uma mancha? As estelas não a exibem a não ser como um falcão pousado sobre o pescoço
taurino. Os bronzes, por sua vez, ilustram duas figuras aladas, que, como vimos, não eram
necessariamente aves no sentido literal do termo e parecem detalhadas como se se tratasse de
adornos acrescidos às costas do animal. Com efeito, por algumas delas ainda apresentarem
incrustações de metais valiosos nessas figuras, entre outros adornos como o manto e colar, é
possível que fosse, além do efeito estético, para fazer uma alusão às joias que o animal ostentava
em ocasiões especiais.
Acreditamos que a melhor maneira de lidar com esse paradoxo é aceitar que o padrão de
manchas exibido nas estelas procura reproduzir aquelas que se viam na pelagem corporal dos
Ápis. Embora ilustrado em vermelho, característica que pode se atribuir aos pigmentos
disponíveis, o rebanho que decora as paredes rochosas de Kharkūr et-Talh (Figs. 63-64) é
significativo por exibir uma composição de marcas semelhantes que pode refletir uma
amostragem genética particular do gado africano, uma vez que outras pinturas da região ilustram
características diversas quanto à pelagem dos animais.
Os únicos elementos em comum entre os bronzes e as pinturas são o triângulo frontal e,
com menos frequência, o crescente na parte médio-inferior do pescoço, duas regiões que não por

1
Talvez os bronzes apresentem essas imagens diretamente gravadas sobre o dorso porque não fazia parte do projeto
de elaboração dessas esculturas figuras exteriores a elas que não estivessem apropriadamente assentadas sobre uma
base. A adaptação moderna de uma cena de uma estela pode nos sugerir a construção de um móbile de um símbolo
alado sobre a estatueta de Ápis, mas uma concepção semelhante não ocorreu aos egípcios e talvez sequer fosse
apropriada para seus cânones de representação divina. Esta pode ser a principal razão para a gravação da
simbologia solar diretamente sobre o dorso das estatuetas, que segue um princípio semelhante à associação de
falcões à parte traseira de esculturas da realeza. Mas tanto no caso de Ápis quanto do musaranho, não foi
concebida qualquer estatueta que tivesse seu amplo e longo dorso ocultado por uma imagem alada que fosse
tridimensional, como ocorre, por exemplo, com a imagem de um faraó thutmósida pertencente ao Louvre (Barbotin
2007: pp. 42-44, pr. 9, pp. 38-39).

209
acaso não apresentam outros elementos. Talvez para os egípcios as figuras das estelas se
tornassem muito “poluídas” ao acrescentar duas imagens aladas sobre as manchas já
parcialmente comprometidas em sua apresentação por causa do manto sobre o dorso, como
ilustra uma única cena de nosso conhecimento em um ataúde do Museu do Cairo 2 (fig. 43).
Desta forma, se aceitarmos que as figuras aladas eram joias ou ornamentos de outro tipo 3
pousados sobre o dorso de Ápis, podemos deduzir que as estelas representam Ápis tal como ele
era quando vivo, com sua pelagem peculiarmente manchada, enquanto os bronzes o representam
caracterizado para ocasiões festivas. A diferença dos locais em que esses artefatos foram
encontrados, as estelas nos subterrâneos e os bronzes sob a pavimentação do dromos e outros
esconderijos, pode ter uma relação com cada uma dessas formas de representá-lo, mas ir muito
além com tal hipótese sem uma análise mais acurada seria demasiadamente arriscado na
condição atual de nossos conhecimentos.

Mnévis e Ápis

Tivemos a oportunidade de observar alguns pontos em comum entre as representações


simbólicas de Ápis e Mnévis (Kessler in Redford 2002: p. 31), embora no que concerne ao
físico, esses touros possuíam colorações da pelagem distintas e assim como seu porte era
igualmente singular 4 , dados que apontam para duas variedades taurinas diferentes.
Maneto (fr. 9) 5 conta que foi durante a 2ª dinastia, no reinado de Kaiecos, que os bois
Ápis, em Mênfis, e Mnévis, em Heliópolis, e o carneiro de Mendes foram considerados deuses.
No segundo capítulo, mostramos que a própria documentação egípcia desmente essa informação

2
J 25807 (Gabra 1928: p. 77, fig. 5). Mas como já tivemos a oportunidade de mostrar, a disposição das manchas
nessas cenas é muito variável e inclui marcas não existentes no Ápis menfita. Esta mesma imagem insere duas
marcas circulares na parte inferior do corpo, próximo às pernas.
3
Mas que ao contrário do colar e do manto eram símbolos.
4
Lembramos que não somente os chifres de Mnévis são frequentemente configurados em crescente, quanto seus
ombros apresentam uma saliência mais destacada (Corteggiani 2007: p. 339).
5
Versões de Sincelo segundo Júlio Africano (fr. 8) e Eusébio (frs. 9 e 10). Vidal Manzanares 1998: pp. 55-57.

210
no que concerne a Ápis, reportando-o à 1ª dinastia 6 . Quanto a Mnévis, chamado pelos egípcios
de Mr-wr (Mer-ur), nada podemos afirmar quanto a sua remota antiguidade, mas seu nome não é
mencionado nos Textos das Pirâmides. É somente nos Textos dos Sarcófagos do Reinado Médio
que encontramos duas menções a ele:

“Mnévis, ele está de acordo em subir ao céu e abrir o Duat (para) uma
duração de vida na eternidade (para) a saída do dia.” 7

“Esses que fizeram da pele do touro Mnévis e dos tendões (?) do


Ombita.” 8

Esta última passagem é a única que permanece, com algumas pequenas alterações, no
Livro dos Mortos:

“Esses que fizeram da pele do touro Mnévis e dos tendões (?) de Seth é o
vosso nome.” 9

Nesse livro, Mnévis é citado uma única vez, ao passo que Ápis aparece em três ocasiões.
Nos Textos dos Sarcófagos há uma desproporção ainda maior, onde Ápis é citado nove vezes e
nos escritos mais antigos, os Textos das Pirâmides, só mencionam o touro “menfita” três vezes.
Desta forma, é possível que por ser um autor tardio 10 , Maneto tenha incluído os dois touros
sagrados em uma mesma passagem não porque estes ícones da religião egípcia tenham surgido e
sido divinizados ao mesmo tempo, mas porque foram associados em algum momento posterior
da história egípcia cuja tradição se perpetuou até seus dias.

6
No entanto, não temos como provar se Ápis era considerado uma divindade nessa época.
7
Barguet 1986: p. 42.
8
Esta frase é uma resposta a quais seriam os nomes das correias, adriças e de um termo sem tradução chamado iwt
(Barguet op. cit. p. 360). Ombita é um apelativo do deus Seth, como vemos na passagem que citamos a seguir.
9
Barguet 1998: p. 136. Neste caso, esta é uma resposta à pergunta: “Diga-me meu nome!” perguntam as correias.
Esta é uma passagem que faz referência às várias partes de uma embarcação, onde a “Perna de Ápis” é o nome de
um bastão.
10
Maneto viveu durante o período Ptolemaico, por volta do terceiro século a.C.

211
As proporções que o culto de Ápis toma a partir do Reinado Novo são superiores às de
Mnévis 11 , mas durante esse período algumas fontes apontam para uma aproximação entre esses
dois ícones taurinos que têm três pontos em comum: o simbolismo solar, o fato de ambos serem
animais de uma mesma espécie e o fato de seus centros de culto serem próximos. Uma estela do
Serapeum (pr. SEest 4) expressa bem essa complementaridade, onde, no topo, Ápis é figurado do
lado esquerdo e Mnévis do direito, talvez com a intenção de expressar, além do funeral desses
dois touros em localidades distintas, o movimento solar rumo ao poente, isto é, para sua “morte”.
Os dois pyramidions contemporâneos de nosso corpus (prs. MONdiv 12-13), caso nossa hipótese
quanto à identidade do touro do monumento de Heidelberg esteja correta, igualmente apresentam
esses dois touros em objetos com finalidade semelhante. Ambos são frequentemente ilustrados
com o disco entre os chifres, mas um tipo de adorno com um par de plumas também aparece
sobre a cabeça de ambos os touros.
Com a documentação que nos foi disponível, não foi possível estabelecer uma datação
para o momento em que houve uma inter-relação simbólica entre esses animais sagrados, mas é
possível que tal fenômeno tenha ocorrido durante o período Raméssida, quando o conceito de um
“deus estatal” foi substituído por uma tríade nacional, composta pelos deuses Rê, de Heliópolis,
Ptah-Tatanen, de Mênfis e Amun de Tebas (Assmann 2001: p. 238; Van Dijk in Redford 2002:
p. 324), e tenha sido reforçado pela crescente prática da devoção pessoal (Assmann 2003: pp
229-246; Baines 1987; Dunand, Zivie-Coche 2006: pp. 156-162; Ockinga in Redford 2002: pp.
311-315).
Apesar de seu estreito vínculo com o deus solar, as imagens de Mnévis não apresentam
os símbolos solares que são usuais nas estatuetas dos Ápis e dos musaranhos, estes últimos
animais que partilham com Mnévis tanto o local de culto, Heliópolis, quanto a associação com o
astro da manhã. É particularmente intrigante que esses símbolos dorsais tenham exercido
influência na elaboração das estatuetas do deus menfita e não nas de Mnévis, mas é possível que
Ápis apresente esses signos sobre o dorso para reforçar sua ligação com o deus sol, uma
condição já natural a Mnévis como Ba dessa divindade. Por outro lado, não há como saber se
esse motivo decorativo começou nas imagens de Ápis, se foi derivado dos bronzes de
musaranhos, ou se apareceu nesses dois animais sagrados simultaneamente.

11
Observação que é corroborada tanto pelas evidências arqueológicas quanto pelo testemunho de Plutarco (Shaw,
Nicholson 1995: p. 189).

212
A imagem do disco solar, como tivemos a oportunidade de comentar mais acima, é um
elemento simbólico que é associado à iconografia de Ápis a partir do reinado de Ramsés II, mas
sua ilustração não é predominante em todos os monumentos. Infelizmente, as razões que
influenciavam na ilustração do disco nas representações de Ápís, se é que as havia, nos são
completamente desconhecidas, mas é de se acreditar que este seja um elemento emprestado das
representações de Mnévis 12 , como ilustra uma estela datada do reinado de Akhenaton 13 . Durante
o Período Tardio, encontramos diversos amuletos, seja de bronze (prs. SEbr 43-44) ou de
faiança, em que um touro é apresentado exclusivamente com um disco entre os chifres. Como a
proveniência destes é grosso modo desconhecida e dificilmente trazem inscrições, torna-se muito
difícil distinguir qual dos touros sagrados esteja representado 14 , um problema que se estende
igualmente aos bronzes desprovidos da simbologia distintiva de Ápis (prs. SEbr 79, 80-81, 87,
99).
Por fim, tanto Ápis quanto Mnévis exerciam função de oráculos (Shaw, Nicholson 1995:
p. 189) de deuses importantes do Estado, respectivamente Ptah e Rê, ganhavam enterros
suntuosos 15 e estavam associados ao universo simbólico da realeza (Kessler in Redford 2002: pp.
30-34). Uma adaptação do papel desses touros no contexto das festas da realeza foi feita no
ataúde da coleção de Berlim, onde Osíris desempenha o ritual da festa Sed acompanhado deles
(pr. MONdiv 19).
Em templos do Período Helenístico-Romano 16 como Edfu 17 , Ápis e Mnévis 18 perpetuam
sua associação (Devauchelle 2001: p. 102) e, juntamente com Ageb-ur e Sema-ur, passam a
integrar o colégio dos “Mestres do Altar”, que tem por função transmitir as oferendas do rei às

12
Por seu vínculo direto com o deus solar, é plausível que, como Háthor, esse touro apresentasse o disco entre os
chifres com certa constância.
13
Museu do Louvre E 20902, calcário, 24,90 cm de altura e 16,20 cm de largura. Graças ao vínculo que partilhava
com o deus sol, Mnévis foi poupado da reação iconoclasta de Akhenaton e, segundo uma estela limítrofe
encontrada na cidade desse rei, Akhetaton, esse touro ganhou o privilégio de ser inumado em suas cercanias: “que
um cemitério para o touro Mnévis seja feito na montanha oriental de Akhetaton e que ele possa ser enterrado
nele” (Kessler in Redford 2002; Shaw, Nicholson 1995: p. 189).
14
Dois bronzes de Mnévis foram incluídos em nosso corpus a título de comparação (prs. SEbr 110-111).
15
A tampa do sarcófago de Djeho datada da 30ª dinastia, Museu do Cairo CG 29307, menciona o interessante papel
desse anão ao dançar na ocasião das cerimônias fúnebres de Ápis e Mnévis (Baines 1992: pp. 241-257, pr. XVIII 2.
16
A partir de Ptolomeu III Evérgeta (Devauchelle 2001: p. 101).
17
Baum 2007: foto 24; Kurth 1998: p. 307, fig. 32.
18
Os dois respectivamente na qualidade de “Arauto vivo de Ptah” e “Arauto de Rê” (Devauchelle op. cit., p.101).

213
divindades patronas de diversas localidades do país para que, em troca, o soberano delas
recebesse “as duas grandes coroas” e o “orbe da terra inteira” (Corteggiani 2007: pp. 308-309). 19

* * *

Tivemos a oportunidade de observar nos capítulos anteriores os documentos


iconográficos e textuais que nos fornecem um vislumbre, ainda que careça de mais elementos
para uma constatação apropriada, do surgimento de Ápis como um personagem integrante do
cerimonial da realeza. Até adquirir um papel de relativo destaque na região menfita durante o
Reinado Novo, não pudemos comprovar que Ápis fosse considerado propriamente como uma
divindade nos períodos mais antigos da história egípcia. Lá foi vinculado ao deus Ptah, do qual
servia como oráculo, mas foi com Osíris e a religião funerária que esse touro ganhou sua função
de maior destaque fora da esfera dos rituais reservados à realeza que persistiram até o Período
Ptolemaico. Os funerais faustosos de vários Ápis foram retratados em algumas estelas tardias
(pr. SEest 241) e eram uma ocasião oportuna para que fiéis de diversas origens expressassem,
por meio de bronzes ou estelas votivas que vinculavam seus nomes e de seus familiares 20 ao
touro sincretizado com Osíris, sua devoção.
Procuramos analisar a documentação de forma desapaixonada de modo a não
superestimar a importância que Ápis exerceu na religião menfita ou egípcia como um todo.
Ainda com esta reserva, nos opomos, contudo, à opinião de especialistas como D. Kessler (in
Redford 2002: p. 33) de que esse touro sagrado era mais uma atração turística no momento de
suas procissões e que os ofertantes que por lá passavam não compartilhavam de um real vínculo
emotivo com esse ícone sagrado. É verdade que, por exemplo, em comparação com imagens de

19
Para mais detalhes sobre o estudo desse tema cf. J.L. Simonet, Le Collège des Dieux Mâitres de l´Autel. Nature et
Histoire d´une Figure Tardive de la Religion Égyptienne. Orientalia Monspeliensia VII. Montpellier, Université
Paul Valéry, Montpellier 3: 1994.
20
Outros tipos de estelas além das genealógicas, segundo o texto que elas contém, são aquelas que contêm
biografias ou que são de operários que participaram ou da construção dos subterrâneos ou dos funerais de Ápis
(Devauchelle 2001: pp. 24-26).

214
divindades mais sedimentadas do panteão, em especial Osíris, Ísis e Hórus, as representações de
Ápis nos bronzes contam com um número sensivelmente menor. Mas, por outro lado, não
podemos nos basear simplesmente em uma estatística sem ter uma visão global sobre a natureza
do significado de Ápis para os antigos egípcios. Destacamos ao menos dois motivos para isso.
Primeiramente, para existirem em um número que contamos às centenas, esses objetos
enquanto mercadorias tinham que ter uma demanda. O contexto em que muitas dessas estatuetas
foram certificadamente encontradas atesta que foram adquiridas, depositadas em templos e que,
por aí estarem em excesso, foram enterradas em diversos locais na área do Serapeum e arredores
possivelmente por membros do sacerdócio. Em meio a tantas imagens divinas que se
apresentavam aos olhos dos compradores aquelas de Ápis foram escolhidas, é porque
suscitavam alguma importância para as pessoas que as adquiriam. Dificilmente poderíamos
aceitar, tanto naquela época como nos dias de hoje, que as pessoas adquiririam um bronze
dispendioso para depois se desfazer dele como se poderia fazer com um cartão postal. Por serem
produzidas com um material de custo elevado, que implicava em várias horas de trabalho em
sua elaboração por meio do método da cera perdida, e que ainda podia contar com detalhes
incrustados de metais preciosos, essas estatuetas de bronze imbuídas de valor agregado estavam
entre os itens mais valiosos que eram ofertados nos templos. Diante deste raciocínio, as
estatísticas no que concerne à maior presença de uma divindade ou de outra nas “cachettes”
parecem não ter tanto peso quando procuramos entender a importância que Ápis despertava em
certos indivíduos, para que estes empenhassem suas economias para devotar-lhe uma estatueta
muitas vezes anepígrafa. O vínculo com a divindade não se fazia nestes casos por intermédio do
nome do depositante à figura divina, mas ao ato de oferta da imagem que deveria estar
carregado de devoção.
A outra razão implica em um olhar mais abrangente. Consideramos, a priori, que Ápis
não exercia grande influência longe da região menfita. Entretanto, isto não é o mesmo que
afirmar que ele não suscitava nenhuma. Caso contrário, como teria sido incorporado à
iconografia dos ataúdes a partir do Terceiro Período Intermediário e aí ter permanecido, ao
menos, até o Período Ptolemaico? O local da imagem fornecia-lhe grande destaque em urnas
milimetricamente decoradas com deuses mais consagrados, os quais nem sempre recebiam uma
área tão grande para sua importância. Como explicar esse paradoxo? E para completar o
cenário, esses ataúdes não provêm da região menfita, mas de diversas localidades do Alto Egito.

215
Este contexto é espacialmente diverso daquele da deposição de objetos votivos no Serapeum e
em nada está relacionado às procissões de Ápis que, segundo Kessler, seriam o motivo de maior
interesse no animal como uma atração desvinculada de qualquer sentimento religioso mais
profundo.
Diante destes argumentos e da diversidade da cultura material que se focaliza na imagem
do touro sagrado, acreditamos que Ápis correspondia a uma devoção popular real 21 que se
fundamentava em uma construção teológica elaborada, na qual esse personagem podia
desempenhar as funções de Hórus e Osíris como esclarece o papiro Jumilhac. Na condição de
um touro ágil e vigoroso, era um intermediário seguro entre o mundo dos vivos e o dos mortos,
além de ser um propiciador de fertilidade e renascimento enquanto que associado ao deus sol.

21
A mesma opinião é expressa por Sue Davies e H. S. Smith (1997: pp. 122-123) no que concerne aos ex-votos da
necrópole de animais sagrados de Saqqara.

216
Conclusão

Como tivemos a oportunidade de demonstrar nos capítulos anteriores, a


documentação que concerne a Ápis durante o período faraônico não é constante, e
extremamente escassa desde a unificação do país até antes do Reinado Novo. É somente a
partir dessa época, com o início da prática de inumar Ápís em um recinto específico em
Saqqara, o Serapeum, que gradativamente teremos a partir do reinado de Amenhotep III
mais informações sobre esse touro sagrado. Nesse momento ocorre um processo de
assimilação de Ápis pela religião funerária que tem como foco o deus Osíris e cujo nome
será vinculado ao do animal nas expressões “Osíris-Ápis” ou “Ápis-Osíris”.
Complementando o processo de associação com a religião funerária, Ápis passa a ter uma
estreita ligação com o deus solar e com a metamorfose pela qual este passa em seu trajeto
noturno rumo ao renascimento. A partir dessa mesma época temos indícios claros de seu
vínculo com Mênfis, onde subordinado à Ptah servia como oráculo no recinto do santuário
desse deus para um público de devotos fiel e de origens diversas.
Desta maneira, a maior parte das fontes provém da zona de influência que Ápis
manteve sobre a região menfita, mas vale lembrar que mesmo aí sua importância não deve
ser superestimada para além do contexto que ele desempenhou no Serapeum enquanto
divindade funerária. Desse sítio provêm diversas estelas votivas, com toda a plausibilidade
a maior parte dos bronzes além de shabtis taurocéfalos e outros monumentos dos quais só
restaram ruínas, como colunas e esculturas. Esses ex-votos foram depositados por pessoas
de proveniências e classes sociais diversas e a localização desses respectivos artefatos
variou não somente de acordo com sua categoria – por exemplo, estelas nos subterrâneos
ou suas imediações e bronzes nos templos –, como também de acordo com a época – como
nos contextos particulares de deposição das estelas nos Pequenos e nos Grandes
Subterrâneos.
Ainda que um grande e diverso número de fontes venha de Saqqara e nelas o
touro esteja associado ao universo funerário, isto não quer dizer que no campo do

217
simbolismo da realeza Ápis não tenha mantido sua importância na cerimônia da corrida,
cujo último registro que conhecemos do período faraônico data do reinado de Hatshepsut.
Mas no que concerne ao aspecto estético, pudemos observar nas imagens provenientes do
Templo de Deir el Bahari o quanto ela se distancia dos valores do Período Arcaico ao
Reinado Médio, quando Ápis supostamente estava mais atrelado a valores de força e
liderança que em épocas mais recentes. Embora algumas estelas do Serapeum ilustrem Ápis
com chifres alongados, grosso modo vemos que a tendência desde o Reinado Novo foi a de
conferir à imagem desse animal um aspecto menos amedrontador e selvagem, um processo
que pode ter sido, além de uma questão de estilo, consequência da própria domesticação do
gado e da seleção artificial.
Se a atenção foi desviada do tamanho dos chifres e da força, por outro lado foi
ressaltada a importância das manchas que o animal deveria apresentar para ser divino.
Como vimos, a mais presente delas no variado leque de fontes a partir do Reinado Novo, o
triângulo frontal, não foi exaltada em nenhum documento do Reinado Médio que
conhecemos, período em que essa marca foi indiscriminadamente pintada em maquetes de
bovinos para fins funerários e que não tinham uma função cultual. Por esta razão,
acreditamos que esta e outras marcas distintivas que foram associadas a Ápis e
mencionadas pelos autores clássicos, cada um de acordo com a sua época, são produto de
uma transformação no enfoque que a religião egípcia deu ao touro sagrado a partir do
Reinado Novo. A natureza estética dessas manchas é especialmente revelada pelas estelas
do Serapeum, mas sua ilustração não se casa completamente com nenhuma das descrições
fornecidas pelos viajantes estrangeiros. Da mesma forma, a própria cultura material egípcia
parece ser discordante, uma vez que aos bronzes foi conferida uma linguagem simbólica
que não está propriamente associada às imagens das estelas. De acordo com nossa dedução,
acreditamos que as estelas refletem o padrão esperado na pelagem dos animais enquanto os
bronzes ilustram a simbologia que lhe era acrescentada ou associada. As imagens solares
dorsais, que Roeder classificou em seis grupos distintos e aos quais adicionamos mais dois
(Grupos G e H), sugerem o caminho do astro celeste rumo ao nascente, representado pelo
disco que repousa entre os chifres como o hieróglifo do disco sobre duas montanhas e por
analogia a outro signo que se refere à abertura do ano, simbolizado pelo sol entre chifres
bovinos. O movimento do astro no firmamento se funde com o da própria imagem do

218
animal, representado em atitude de marcha ou em galope. Esta caracterização, derivada do
conceito da tradicional corrida de Ápis, teve sua primeira transposição para o universo
funerário privado durante a 21ª dinastia, como ilustra o ataúde do Museu de Berlim que
representa a festa Sed de Osíris. Logo após, esse tema sofreu uma alteração pela qual o
touro passou a carregar às costas a própria múmia de Osíris associada ao defunto, cena que
foi inserida nos pés das urnas funerárias e que, como o ataúde berlinense, provém do Alto
Egito. Segundo o papiro Jumilhac, cuja composição está associada ao 17º nomo dessa
mesma região, a cena ilustra uma transfiguração de Hórus na qualidade de um Ápis, com a
finalidade de reunir os restos mortais de seu pai e carregá-los para depois mumificá-lo. Nos
ataúdes, a representação de Ápis portando a múmia de seus proprietários associados a
Osíris se integra ao discurso iconográfico expresso por essas urnas, simbolizando o trajeto
do sol pelo mundo subterrâneo que encontra sua ressurreição no outro extremo delas, no
alto da cabeça do ataúde. A corrida de Ápis, que outrora transcorria entre o eixo meridiano-
setentrional terrestre, migra para uma orientação celeste que transcorre agora entre os
marcos do Ocidente e do Oriente.
A identificação de Ápis a Hórus se estendeu à decoração de algumas sepulturas
privadas e do templo de Hibis no oásis de Kharga, contudo, não estava restrita
exclusivamente a esse motivo iconográfico, como testemunham alguns bronzes
supostamente originários do Serapeum e nos quais, sob a aparência antropomórfica e
taurocéfala e na condição de uma divindade associada à passagem de um mundo para outro,
Ápis aparece na postura de empunhar uma lança com a qual golpeava as forças hostis que
se apresentassem em seu caminho.
Apesar de não sabermos os motivos que levaram Ápis a ganhar uma importância
tão significativa a partir do Reinado Novo nas concepções funerárias, não há nada de
incompreensível nas razões que o levaram a esse caminho. Por sua natural conexão com a
fertilidade e, consequentemente, com a geração da vida, Ápis já tinha um predicado que
fornecia embasamento para uma crença em ressurreição. Em virtude da tradicional festa da
corrida, pela qual Ápis trazia simbolicamente fertilidade ao país e potência ao soberano que
corria ao lado dele, deve ter se processado uma conexão íntima entre o touro e o papel do
rei vivo enquanto Hórus que acabou por se estender ao soberano morto, quando este se
tornava Osíris. O mesmo atributo da fertilidade também era compartilhado com o deus

219
solar Rê-Atum que veio como um amálgama à fórmula que privilegiava o mito em torno de
Osíris e à ressurreição, e que pode ter sido impulsionada pela proximidade de Mênfis a
Heliópolis, onde se cultuava o touro Mnévis como manifestação do próprio deus solar e
cuja representação pode ser confundida com a do touro menfita por um olhar menos
atento 1 . Operou-se assim uma aritmética simbólica que frutificou ao ser incentivada pela
realeza quando esta promoveu o enterro dos animais sagrados no Serapeum e que ganhou
popularidade e formas de expressão distintas na região menfita e no Alto Egito. Não há
como saber pelo estado atual das fontes como operaram as influências religiosas regionais
na constituição simbólica de Ápis e não é impossível que duas frentes, do Baixo e do Alto
Egito, tenham agido de forma paralela embora em níveis bastante distintos. Por um lado, no
Serapeum, Ápis tinha um centro de culto único no país que sistematizava as formas como
ele era representado nas estelas, nos bronzes e em outros monumentos. Por outro, o tema da
corrida não parece ter sido muito popular nas imagens do Serapeum, que ilustram o touro
livre de fardos às costas, mas melhor desenvolvido nas cenas de urnas funerárias, sepulturas
e de um templo do Alto Egito, onde cenas de tauromaquia eram populares desde o final do
Reinado Antigo. Desta forma, não é improvável que à tradição iconográfica que se criou
em Mênfis tenha surgido uma versão paralela destinada aos devotos de Ápis que habitavam
em áreas distantes dessa antiga capital e que queriam ter seu pós-vida garantido associando-
o a esse ícone da religião funerária.
Mesmo não tendo sido declaradamente mencionado como tal nas fontes que nos
chegaram, Ápis parece ter incorporado, ao mesmo tempo, o conceito do touro dócil e
carismático às massas e do guardião fiel dos mortos em sua perigosa jornada no além. Para
os nativos, Ápis era uma expressão concreta e acessível da religião que foi, mais do que
nunca, necessária na auto-afirmação da identidade egípcia diante de um crescente afluxo de
estrangeiros, das invasões e instabilidades vividas durante o Terceiro Período Intermediário
e o Período Tardio (Assmann 2001: p. 242; Davies, Friedman 1988: p. 191). Para os
visitantes de fora, Ápis era um ícone vivo de uma religião antiquíssima e célebre em todo o
mundo antigo que suscitava tanto estranhamento quanto admiração por seu misticismo e

1
Como ocorreu em uma das obras que se destinaram a fazer um inventário das representações de Ápis (Kater-
Sibbes, Vermaseren 1975a: p. 56, nº 248, pr. CXXXIV, equivocadamente numerada como 249). Mesmo se
tratando do desenho de uma estatueta, a legenda que ela exibe não deixa dúvidas quanto à identidade do touro
ser Mnévis.

220
simbolismo complexos. Seduzidos pela lenda em torno da religião egípcia e seus ritos
secretos, muitos desses forasteiros tornaram-se fiéis devotos das divindades egípcias que,
durante o período Helenístico-Romano, foram disseminadas pelos vários portos do
Mediterrâneo onde ganharam novos atributos e foram incorporados a outras lendas.
Com a expansão do Serapeum, que veio acompanhada pelo acolhimento de ex-
votos, Ápis tornou-se assim um guia para todos aqueles que independentemente de sua
origem buscavam neste mundo a segurança de uma transição para uma vida mais digna no
além.

* * *

Durante o Renascimento na Itália, com o crescente interesse pela cultura egípcia e


seu legado de mistérios veio a redescoberta de Ápis, o qual foi reinventado e de
personagem pagão passa a integrar a simbologia do pontífice Alexandre XI em seu brasão e
na decoração dos apartamentos Bórgia no Vaticano 2 .

“O Mito do Touro Ápis”. Afresco


pintado por Pinturicchio no Salão dos
Santos dos apartamentos Bórgia,
Vaticano.

2
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