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, , I dádiva e a obrigação de retribuí-Ia 83

ENSAIO SOBRE A DÁDIVA


Marcel Mauss

6. Mauss, a dádiva e a Na civilização escandinava e em muitas outras, as trocas e os contra-


obrigação de retribuí-Ia I fazem sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade
riamente dados e retribuídos.
trabalho é um fragmento de estudos mais vastos. Há anos nossa
dirige-se ao mesmo tempo para o regime do direito contratual e
1 I 1I istema das prestações econômicas entre as diversas seções ou
I•. rupos de que se compõem as sociedades ditas primitivas, e também
111 poderíamos chamar arcaicas. Existe aí um enorme conjunto de fa-

M arcel Mauss (1872-1950), sobrinho de Durkheim, seu aluno, assisten-


te e colaborador, foi um expoente das ciências sociais na França. Ape-
I' fatos que são muito complexos. Neles, tudo se mistura, tudo o que
11\ 11 ui a vida propriamente social das sociedades que precederam as
sar de ter sido também um sociólogo profissional, sua posição de autor clás- ,I até às da proto-história. Nesses fenômenos sociais "totais", como
sico da antropologia tornou-se, ao longo do tempo, mais consolidada. Mauss 1"opomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas ins-
sucedeu a Durkheim como editor da revista L'Année sociologique, onde pu- 1111,1 : religiosas, jurídicas e morais - estas sendo políticas e familiares
blicou muitos artigos e resenhas. Obteve uma cátedra no Collêqe de France 1111 "mo tempo; econômicas - estas supondo formas particulares da pro-
em 1931, mas foi dela afastado quando da ocupação nazista na França, por I I ,11 do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição; sem
ser um militante socialista e ter origem judaica. Sua obra encontra-se reunida 111.11 fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos
basicamente em duas coletâneas: Sociologia e antropologia (1950) e Ensaios I 11 1111 icos que essas instituições manifestam.
de sociologia (1971).
I) l dos esses temas muito complexos e dessa multiplicidade de coisas
O "Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcai- 1.11 m movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços,
cas", longo artigo publicado em 1923-24, é considerado por muitos antro- I ,llIlItI mas isolado: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente
pólogos o texto mais importante de Mauss (inclusivepor Lévi-Strauss,que fez I I W tuito, e no entanto obrigatório e interessado, dessas prestações. Elas
uma famosa apresentação à coletânea Sociologia e antropologia, na qual o 1I111,ramquase sempre a forma do regalo, do presente oferecido generosa-
texto foi publicado). Reproduzimos aqui parte de seu início, no qual Mauss 11\ , mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transação, há somen-
apresenta exemplos etnográficos da existência de trocas que "se fazem sob lli ".1), formalismo e mentira social, e quando há, no fundo, obrigação e
a forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente 11I, I ss econômico. E não obstante indicarmos com precisão os diversos
dados e retribuídos". 1111'Pl que deram esse aspecto a uma forma necessária da troca - isto
Estão aqui presentes passagens famosas como a definição que Mauss ,L, pl pria divisão social do trabalho -, vamos estudar a fundo somente
faz de "fenômenos sociais totais", a descrição do potlatch de tribos do no. 1"1 d! l d s esses princípios. Qual é a regra de direito e de interesse que, nas
roeste americano e do hau, o espírito maori das coisas dadas, que mantêm "·,/,, l de tipo atrasado ou arcaico, faz com que o presente recebido seja obriga-
algo dos seus doadores, e querem a eles retornar. Apresenta, ao final, sua , , 'I/'I'/lle retribuído? Que força existe na coisa dada que faz com que o donatário
tese geral: a da vida social como um constante dar e receber, fundamento d "II/I/la? i o problema ao qual nos dedicamos mais especialmente, ao
toda sociabilidade humana. Fiel à tradição durkheimiana, Mauss defende I 1110l mp que indicamos os outros. Esperamos dar, por um número bas-
universalidade da dádiva como produtora de alianças sociais. 1"\1 gl,\I1cl d Cal ,uma re posta a essa questão precisa e mostrar em que
111 ,n 1'0' fv 11 n ar um e tud da questões conexas. Também se verá a
1'1 1111(S I" bl rnz m 1 v d : un dizem re peito a uma forma perma-
IIle d,\ m iral intrnuu I, sab r, mr n ir, p 1 qu 1 dir it r ai p rm -
t t
nece ainda em nossos dias ligado ao direito pessoal; outro dizem re p il < S , dr divs p tlatch
formas e às ideias que sempre presidiram, ao menos parcialmente, à troca,
que ainda hoje suprem em parte a noção de interesse individual. tr balh faz parte da rie de pesquisas que há muito temos desenvol-
Assim, atingiremos um duplo objetivo. De um lado, chegaremos a conclu 1<10, avy" e eu, sobre as formas arcaicas do contrato. Um resumo delas é
sões de certo modo arqueológicas sobre a natureza das transações humanas lI< S no.

nas sociedades que nos cercam ou que imediatamente nos precederam. Des
creveremos os fenômenos de troca e de contrato nessas sociedades que nã 11I1Mi parece ter havido, nem até uma época bastante próxima de nós nem
são privadas de mercados econômicos como se afirmou - pois o mercado I.IS s iedades muito erradamente confundidas sob o nome de primitivas ou
um fenômeno humano que, a nosso ver, não é alheio a nenhuma sociedade 1111 'ri res, algo que se assemelhasse ao que chamam a economia natural. Por
conhecida -, mas cujo regime de troca é diferente do nosso. Nelas veremo 11111,1 estranha mas clássica aberração, escolhiam-se mesmo, para apresentar
o mercado antes da instituição dos mercadores, e antes de sua principal in 11III delo dessa economia, os textos de Cook sobre a troca e o escambo entre
venção, a moeda propriamente dita; de que maneira ele funcionava ante " I linésios.Ora, são esses mesmos polinésios que vamos aqui estudar, e
de serem descobertas as formas, pode-se dizer, modernas (semítica, helênica, I I 'mos o quanto estão distantes, em matéria de direito e de economia, do
helenística e romana) do contrato e da venda, de um lado, e a moeda oficial, t .ido de natureza.
de outro. Veremos a moral e a economia que regem essas transações. Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se
E, como constataremos que essa moral e essa economia funcionam ain unxtatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de pro-
da em nossas sociedades de forma constante e, por assim dizer, subjacent , .luto num mercado estabelecido entre os indivíduos. Em primeiro lugar,
como acreditamos ter aqui encontrado uma das rochas humanas sobre a 11.\11ão indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam
quais são construídas nossas sociedades, poderemos deduzir disso alguma ontratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tri-
conclusões morais sobre alguns problemas colocados pela crise de nosso di 1,,\ , famílias que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente
reito e de nossa economia, e nos deteremos aí. Essa página de história social, 1111111
terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas
de sociologia teórica, de conclusões de moral, de prática política e econôrni- tu.uiciras ao mesmo tempo. Ademais, o que eles trocam não são exclusiva-
ca não nos leva, no fundo, senão a colocar mais uma vez, sob formas novas, 1111nte bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamen-
antigas mas sempre novas questões. 'ão, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares,
nurlheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas
11111
dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não passa de um
Método seguido 111lermos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim,
.IS prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma sobretu-
Seguimos um método de comparação preciso. Primeiro, como sempre, s 1,\ v luntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam no fundo
estudamos nosso tema em áreas determinadas e escolhidas - Polinésia, M 11 urosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública. Pro-
lanésia, noroeste americano - e alguns grandes direitos. A seguir, natural 1'11 'mos chamar tudo isso o sistema das prestações totais. O tipo mais puro
mente, escolhemos apenas direitos nos quais, graças aos documentos e ao I xa instituições nos parece ser representado pela aliança de duas fratrias
trabalho filológico, tivéssemos acesso à consciência das próprias sociedade. , I tribos australianas ou norte-americanas em geral, onde os ritos, os casa-
pois se trata aqui de termos e de noções; isso restringiu ainda mais o campc ntos, a sucessão de bens, os vínculos de direito e de interesse, posições
1111
de nossas comparações. Por fim, cada estudo teve por objeto sistemas qu 11I1111
res e sacerdotais, tudo é complementar e supõe a colaboração das
nos limitamos a descrever, um após outro, em sua integridade; renunciamos, III.IS metades da tribo. Por exemplo, os jogos são particularmente regidos
portanto, a essa comparação constante em que tudo se mistura e em que as I I1 .las. Os Tlingit e os Haída, duas tribos do noroeste americano, expri-
instituições perdem toda cor local, e os documentos, seu sabor.

",ges Davy (1883-1976). sociólogo francês. discfpulo de Durkheim assim como Mauss. cuja obra con-
,1101
e no estudo sociológico do direito e das instituições legais. (N.O.)
Textos básicos de antropologia Mauss, a dádiva e a obrigação de retribuí-Ia 87
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mem fortemente a natureza dessas práticas dizendo que "as duas fratrias se c da Melanésia, e outras com emulação mais moderada, em que os contra-
tantes rivalizam em presentes: assim rivalizamos em nossos brindes de fim
mostram respeito".
Mas, nessas duas últimas tribos do noroeste americano e em toda essa de ano, em nossos festins, nas bodas, em nossos simples convites para jan-
região, aparece uma forma típica, por certo, mas evoluída e relativamente tar, e sentimo-nos ainda obrigados a nos revancbieren, como dizem os ale-
rara dessas prestações totais. Propusemos chamá-Ia potlatch, como o fazem, mães. Constatamos essas formas intermediárias no mundo indo-europeu
aliás, os autores americanos que se servem do nome chinook incorporado à .intigo, particularmente entre os trácios.
linguagem corrente dos brancos e dos índios de Vancouver ao Alasca. Potla Diversos temas - regras e ideias - estão contidos nesse tipo de direi-
tch quer dizer essencialmente "nutrir", "consumir". Essas tribos, muito rica, to e de economia. O mais importante entre esses mecanismos espirituais é
I vidente mente o que obriga a retribuir o presente recebido. Ora, em parte
que vivem nas ilhas ou na costa, ou entre as montanhas Rochosas e a costa,
passam o inverno numa perpétua festa: banquetes, feiras e mercados, que ,11 uma a razão moral e religiosa dessa obrigação é mais aparente do que na

são ao mesmo tempo a assembleia solene da tribo. Esta se dispõe segund l'olinésia. Estudemo-Ia em particular; veremos claramente que força leva a
suas confrarias hierárquicas, suas sociedades secretas, geralmente confundi I(tribuir uma coisa recebida e, em geral, a executar os contratos reais.
das com as primeiras e com os clãs; e tudo, clãs, casamentos, iniciações, ses
sões de xamanismo e culto dos grandes deuses, dos totens ou dos ancestrais
coletivos ou individuais do clã, tudo se mistura numa trama inextricável d dádivas trocadas e a obrigação de retribuí-Ias (Polinésia)
ritos, de prestações jurídicas e econômicas, de determinações de cargos pc
'líticos na sociedade dos homens, na tribo e nas confederações de tribos, Prestação total, bens uterinos contra bens masculinos (Samoa)
mesmo internacionalmente. Mas o que é notável nessas tribos é o princípio N.1S pesquisas sobre a extensão do sistema das dádivas contratuais, por mui-

da rivalidade e do antagonismo que domina todas essas práticas. Chega-s til tempo pareceu que não havia potlatch propriamente dito na Polinésia.
até a batalha, até a morte dos chefes e nobres que assim se enfrentam. P I ~ ociedades polinésias em que as instituições mais se aproximavam disso
outro lado, chega-se até a destruição puramente suntuária das riquezas a 1\ 11. pareciam ultrapassar o sistema das "prestações totais", dos contratos per-
mula das para eclipsar o chefe rival que é ao mesmo tempo um associado IlI'tuos entre clãs que põem em comum suas mulheres, seus homens, suas
(geralmente avô, sogro ou genro). Há prestação total no sentido de que Ilanças, seus ritos etc. Os fatos que então estudamos, particularmente em
claramente o clã inteiro que contrata por todos, por tudo o que ele possui .•moa, o significativo costume das trocas de esteiras brasonadas entre chefes
por tudo o que ele faz, mediante seu chefe. Mas essa prestação adquire, d.I pllr ocasião do casamento, não estavam acima desse nível, em nosso enten-
parte do chefe, um caráter agonístico muito marcado. Ela é essencialment dI r. Os elementos de rivalidade, destruição e combate pareciam ausentes,
111 ontrário do que ocorre na Melanésia. Por fim, havia muito poucos fatos.
usurária e suntuária, e assiste-se antes de tudo a uma luta dos nobres pal.I
assegurar entre eles uma hierarquia que ulteriormente beneficiará seu clã. ~\ira, porém, seríamos menos taxativos.
Propomos reservar o nome de potlatch a esse gênero de instituição qu Em primeiro lugar, esse sistema de oferendas contratuais em Samoa
se poderia, com menos perigo e mais precisão, mas também mais longam 11 t .nde-se muito além do casamento, acompanhando os seguintes aconteci-
111 ntos: nascimento de filho, circuncisão, doença, puberdade da moça, ritos
te, chamar de prestações totais de tipo agonístico.
1111\ rários, comércio.
Até aqui, praticamente só havíamos encontrado exemplos dessa in ti
tuição nas tribos do noroeste americano e nas de uma parte do norte 111 A seguir, dois elementos essenciais do potlatch propriamente dito são niti-
ricano, na Melanésia e na Papuásia [Nova Guiné]. Em todos os outr s I" 1.1\1) nte atestados: o da honra, do prestígio, do mana que a riqueza confere, e o
gares, na África, na Polinésia e na Malásia, na América do Sul e no re t.\Ilt L. obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder esse mana, essa
da América do Norte, o fundamento das trocas entre os clãs e as fam 1,,1 IIt ridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade.
nos parecia permanecer do tipo mais elementar da prestação total. No 1\ I r um lado, Turner nos diz:
tanto, pesquisas mais aprofundadas mostram agora um número b L\lIt
considerável de formas intermediárias entre e as trocas com riv 11 1.\11 p im nto, dep i de ler recebido e retribuído os oloa e os
exasperada, c m de trui ã d riqu zas, m d m ri ,11111 1m»$! LI, j., I a' ulin . b n, C minin marid a mulh r
88 Textos básicos de antropologia
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não se encontravam mais ricos do que antes. Mas tinham a satisfação de ter vis
I O espírito da coisa dada (Maori)
to o que eles consideravam uma grande honra: massas de propriedades reunidas
Ora, essa observação nos leva a uma constatação muito importante. Os taon-
por ocasião do nascimento de seu filho.
'ti são, pelo menos na teoria do direito e da religião maori, fortemente liga-

dI) à pessoa, ao clã, ao solo; são o veículo de seu mana, de sua força mágica,
Por outro lado, essas dádivas podem ser obrigatórias, permanentes, sem
I ligiosa e espiritual. Num provérbio, felizmente recolhido por sir G. Greye
outra contraprestação que o estado de direito que as provoca. Assim, a crian
t ', • Davis, lhes é rogado que destruam o indivíduo que os aceitou. É por-
ça que a irmã, e portanto o cunhado, tio uterino, recebem para criar de seu
irmão e cunhado é ela própria chamada um taonga, um bem uterino. Ela '1" contêm dentro deles essa força, caso o direito, sobretudo a obrigação de
11'\ ribuir, não seja observado.
é "o canal pelo qual os bens de natureza nativa, os taonga, continuam a cs
coar da família da criança para essa família. Por outro lado, a criança é o Nosso saudoso amigo Hertz" havia entrevisto a importância desses fatos;
urn seu tocante desprendimento pessoal, ele anotara "para Davy e Mauss"
meio de seus pais obterem bens de natureza estrangeira (oloa) dos parent 'S
11.1 ficha que contém o seguinte fato. Colenso diz: "Eles tinham uma espécie
que o adotaram, e isso o tempo todo que a criança viver". "Esse sacrifício
[dos vínculos naturais cria uma 1 facilidade sistemática de circulação entre 11I istema de troca, ou melhor, de dar presentes que devem ulteriormente
I I trocados ou retribuídos." Por exemplo, troca-se peixe seco por aves em
propriedades indígenas e estrangeiras." Em suma, a criança, bem uterino,
o meio pelo qual os bens da família uterina são trocados pelos da Iamílu un erva, esteiras. Tudo isso é trocado entre tribos ou "famílias amigas sem
111 nhurna espécie de estipulação".
masculina. E basta constatar que, vivendo na casa do tio uterino, ela pos '111
evidentemente um direito de nela viver, e portanto um direito geral sobu Mas Hertz também havia anotado - e descubro em suas fichas - um
suas propriedades, para que esse sistema de "[osterage" [criação de criança. I I. t cuja importância escapara a nós dois, pois eu o conhecia igualmente.

se revele muito próximo do direito geral reconhecido ao sobrinho uterino M' A propósito do bau, do espírito das coisas, em particular o da floresta e
bre as propriedades de seu tio em terras melanésias. Falta apenas o tema d.1 h IS animais de caça que ela contém, Tamati Ranaipiri, um dos melhores in-
rivalidade, do combate da destruição, para que haja potlatch. 1111 mantes maori de R. Elsdon Best, nos oferece inteiramente ao acaso e sem

Mas observemos os dois termos: oloa, taonga; o segundo, sobretudo. EI . 111 nhuma prevenção a chave do problema.

designam uma das parafernálias permanentes, em particular as esteiras dI


casamento que as jovens filhas herdam ao se casarem, os adornos, os tah Vou lhes falar do bau ... O bau não é o vento que sopra. De modo nenhum. Su-
mãs que entram pela mulher na família recém-fundada, com a condiçã ti ponha que você possua um artigo determinado (taonga) e que me dê esse artigo;
reciprocidade; são, em suma, espécies de bens imóveis por destinação. (l você me dá sem preço fixado.** Não fazemos negociações a esse respeito. Ora,
oloa designam objetos, instrumentos em sua maior parte, especificamente .111 dou esse artigo a uma terceira pessoa que, depois de transcorrido um certo tem-
marido; são essencialmente bens móveis. Assim aplica-se esse termo, agol I po, decide retribuir alguma coisa em pagamento (utu), ela me dá de presente al-
às coisas provenientes dos brancos. É evidentemente uma extensão re '1111 gurna coisa (taonga). Ora, esse taonga que ela me dá é o espírito (hau) do taonga
de sentido. E podemos negligenciar esta tradução de Turner: "Oloa-for I u" ue recebi de você e que dei a ela. Os taonga que recebi pelos taonga (vindos de
"taonga-native". Ela é inexata e insuficiente, ou mesmo sem interesse, ptll v cê), é preciso que eu os devolva. Não seria justo (tika) de minha parte guar-
prova que algumas propriedades chamadas taonga estão mais ligadas a MIIII dar esses taonga para mim, fossem eles desejáveis (rawe) ou desagradáveis (kino).
ao clã, à família e à pessoa do que algumas outras chamadas oloa. levo dá-los de volta, pois são um bau do taonga que você me deu. Se eu conser-
Mas, se estendemos nosso campo de observação, a noção de taonl-ll 111 va se esse segundo taonga, poderia advir-me um mal, seriamente, até mesmo a
quire de imediato outra amplitude. Ela conota, em maori, em taitiano, I11 m rte. Assim é o bau, o bau da propriedade pessoal, o bau dos taonga, o bau da
tongan e mangarevan, tudo que é propriedade propriamente dita, tudo 11" II( r ta. Kali ena. [Basta sobre esse assunto.]
pode ser trocado, objeto de compensação. São exclusivamente o t SOIIlI
os talismãs: os brasões, as esteiras e os ídolos sagrados, às veze t 11I1. 11
tradições, cultos e rituais mágicos. Aqui chegamos àquela noçã d I 1111 11
dade-talisrnã da qual temo certeza que ela é eral em t do mund III.tI 111
poliné io e m m n P (fi int ir .
90 Textos básicos de antropologia Mauss, a dádiva e a obrigação de retribuí-Ia 91

Esse texto capital merece alguns comentários. Puramente maori, impreg- mas também porque essa coisa que vem da pessoa, não apenas moralmente,
nado do espírito teológico e jurídico ainda impreciso das doutrinas da "casa mas física e espiritualmente, essa essência, esse alimento, esses bens, móveis
dos segredos", mas por momentos surpreendentemente claro, ele oferece ou imóveis, essas mulheres ou esses descendentes, esses ritos ou essas cornu-
apenas uma obscuridade: a intervenção de uma terceira pessoa. Mas, para nhões, todos têm poder mágico e religioso sobre nós. Enfim, a coisa dada
bem compreender o jurista maori, basta dizer: "Os taonga e todas as proprie- 11.1 é uma coisa inerte. Animada, geralmente individualizada, ela tende a
dades rigorosamente ditas pessoais têm um hau, um poder espiritual. Você u-tomar ao que Hertz chamava seu "lar de origem", ou a produzir para o clã
me dá um, eu o dou a um terceiro; este me retribui um outro, porque ele é solo do qual surgiu um equivalente que a substitua.
movido pelo hau de minha dádiva; e sou obrigado a dar-lhe essa coisa, por-
que devo devolver-lhe o que em realidade é o produto do hau do seu taonga." I utros temas: a obrigação de dar, a obrigação de receber
Assim interpretada, a ideia não apenas se torna clara, mas aparece com 1'.lra compreender completamente a instituição da prestação total e do po-
uma das ideias dominantes do direito maori. Se o presente recebido, trocado, rl.itch, resta buscar a explicação dos outros dois momentos que são cornple-
obriga, é que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, 111ntares deste; pois a prestação total não implica somente a obrigação de
ela ainda conserva algo dele. Por ela, ele tem poder sobre o beneficiário, as I C'\ ribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente impor-
sim como por ela, sendo proprietário, ele tem poder sobre o ladrão. Pois o í.mtes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber, de outro. A teoria
taonga é animado pelo hau de sua floresta, de seu território, de seu chão; ele ompleta dessas três obrigações, desses três temas do mesmo complexo, daria
é realmente "nativo": o hau acompanha todo detentor. , explicação fundamental satisfatória dessa forma de contrato entre clãs poli-
Ele acompanha não apenas o primeiro donatário, mesmo eventualmente 111sios. Por ora, podemos apenas indicar a maneira de tratar o assunto.
um terceiro, mas todo indivíduo ao qual o taonga é simplesmente transmiti Será fácil encontrar um grande número de fatos relativos à obrigação de
do. No fundo, é o hau que quer voltar ao lugar de seu nascimento, ao santua 1II ber. Pois um clã, os membros da família, um grupo de pessoas, um hóspede
rio da floresta e do clã, ao proprietário. É o taonga ou seu hau - que é, ali s, 11.11 ão livres para não pedir a hospitalidade, para não receber presentes, para
ele próprio uma espécie de indivíduo - que se prendem a essa série de USU.I 11.111 negociar, para não contrair aliança, pelas mulheres e pelo sangue. Os Dayak
rios, até que estes retribuam com seus próprios taonga, suas propriedades 011 1I nvolveram inclusive todo um sistema de direito e de moral sobre o dever de
então seu trabalho ou comércio, através de banquetes, festas e presentes, Ul11 c I. c 1deixar de partilhar a refeição a que se assiste ou que se viu preparar.

equivalente ou um valor superior que, por sua vez, darão aos doadores auto Não menos importante é a obrigação de dar; seu estudo poderia fazer
ridade e poder sobre o primeiro doador, transformado em último donatãrio .uupreender de que maneira os homens passaram a trocar coisas. Podemos
Eis aí a ideia dominante que parece presidir, em Samoa e na Nova Zelându, 1111 1I r apenas alguns fatos. Recusar dar, negligenciar convidar, assim como
à circulação obrigatória das riquezas, dos tributos e das dádivas. I' , usar receber, equivale a declarar guerra; é recusar a aliança e a comunhão.
Tal fato esclarece dois sistemas importantes de fenômenos sociais na Pu \ ruir, dá-se porque se é forçado a isso, porque o donatário tem uma es-
linésia e mesmo fora da Polinésia. Em primeiro lugar, compreende-se a 1"1 I' I I de direito de propriedade sobre tudo o que pertence ao doador. Essa
tureza do vínculo jurídico criado pela transmissão de uma coisa. Voltarcrno 1'"'llI'i dade se exprime e se concebe como um vínculo espiritual. Assim, na
daqui a pouco a esse ponto. Mostraremos de que maneira esses fatos po 1('111 11 t r, lia, o genro, que deve todos os produtos de sua caça ao sogro e à sogra,
contribuir para uma teoria geral da obrigação. Mas, por ora, é nítid '111 'I "l.I I de consumir diante deles, sob pena de que pela simples respiração
em direito maori, o vínculo de direito, vínculo pelas coisas, é um vínculo ti 1I envenenem o que ele come. Vimos mais acima os direitos desse tipo que
almas, pois a própria coisa tem uma alma, é alma. Donde resulta qu ,lJlI I'" "i taonga sobrinho uterino em Samoa, e que são totalmente compará-
sentar alguma coisa a alguém é apresentar algo de si. Em segundo lugar, fi I I "OS que possui o sobrinho uterino (vasu) em Fiji.
mais clara a natureza mesma da troca por dádivas, de tudo aquilo qu c h I I~m tudo isso há uma série de direitos e deveres de consumir e de re-
ma mos prestações totais, e, entre estas, o potlatch. Compreende-se logl\ I I li 111li', . rre pondendo a direitos e deveres de dar e de receber. Mas essa
mente, nesse sistema de ideias, que seja preciso retribuir a outrem qu 111 111t lira tntirna de direito e deveres simétricos e contrários deixa de parecer
realidade é parcela de sua natureza e substância; pois aceitar alguma iSd c I '1111 I,lclit ria p n arm que há, antes de tudo, mistura de vínculos espi-
alguém é aceitar algo de sua essência e piritual, de ua alma; a ns IV.I, \I 11 II.II~ nlr a d rt m d ãalma, c os indivíduos e grupos
de sa coi a cria perig a m rt I, n impl. m nt p rqu S ria ill\ II c 1" \ 1 I'" 1 nrn di) )11'1 oi. as,
92 Textos básicos de antropologi

E todas essas instituições exprimem unicamente apenas um fato, um regi


me social, uma mentalidade definida: é que tudo, alimentos, mulheres, filhos,
bens, talismãs, solo, trabalho, serviços, ofícios sacerdotais e funções, é matéria
de transmissão e de prestação de contas. Tudo vai e vem como se houvesse tr .1
constante de uma matéria espiritual que compreendesse coisas e homens, entr . 7. Malinowski e a mágica da pesquisa
os clãs e os indivíduos, repartidos entre as funções, os sexos e as gerações. de campo antropológica

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QUESTÕES E TEMAS PARA DISCUSSÃO

1. Penseem exemplos da troca de presentes na sociedade brasileira contem- esmo sem ter sido o primeiro antropólogo a fazer pesquisa de cam-
porânea à luz do texto de Mauss. Como sugestão, consulte o artigo da po (ou trabalho de campo, numa tradução literal do inglês fieldwork),
I
I antropóloga Maria Claudia Coelho, "Dádiva e emoção: obrigatoriedade Hronislaw Malinowski (1884-1942) entrou para a tradição antropológica como
I e espontaneidade nas trocas materiais." RBSE, vol.2, n.6, p.335-50, João uma espécie de "inventor" desse método de pesquisa, em particular na sua
I dimensão de "observação participante" da vida dos nativos.
I
Pessoa,GREM, dez 2003. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/rbse/
RBSE%20v2,n6,dezI2003.pdf Nascido na Polônia, Malinowski teve formação em ciências exatas an-
2. Discuta a percepção sobe a expressão obrigatória dos sentimentos, tam- II de apaixonar-se pela antropologia, a partir da leitura de O ramo de ouro,

bém afirmada por Durkheim e Radcliffe-Brown em seus capítulos. In- d( James Frazer, e emigrar para a Inglaterra, em 1910. Estudante na Lon-
clua a leitura do artigo de Mauss "A expressão obrigatória de senti rlon School of Economics, Malinowski viajou em 1914 para fazer pesquisas
mentes" (1921), disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/ 11.1 Nova Guiné, mas com o início da Primeira Guerra Mundial permaneceu

123456789/3508 11.1 região até o final do conflito. Aproveitou então para fazer pesquisa de

3. O "Ensaio sobre a dádiva" é um dos textos mais referidos na tradição da c .rrnpo entre os nativos das ilhas Trobriand, localizadas na costa oriental da

antropologia, muitas vezes com interpretações distintas ou mesmo con tJova Guiné.
traditórias. A partir dos dois artigos de antropólogos brasileiros sugerido A partir dessa experiência, Malinowski escreveu três monografias irn-
abaixo, faça um inventário do "legado" dessaobra de Mauss. 111 Itantes: Argonautas do Pacífico ocidental (1922), A vida sexual dos selva-
'1'11 (1926) e Jardins de coral (1935), além de outros trabalhos menores. Na
pl un ira, descreveu o circuito do kula, forma de troca de caráter intertribal
,-~-------- LEITURAS SUGERI DAS
h.l~t nte amplo, praticado por comunidades localizadas num extenso círculo
d, Ilhas. Essadescrição, um dos monumentos da tradição antropológica, foi
1111111 útil como fonte para Mareei Mauss em seu estudo sobre a dádiva, in-
Lanna, Marcos. "Nota sobre Mareei Mauss e o Ensaio sobre a dádiva", R' I hdei nesta coletânea.
vista de sociologia e política,14, p.173-94, Curitiba, jun 2000. Disponlv I 1 Ivez o mais importante para sua fama posterior tenha sido a defesa
em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n14/a10n14.pdf .ip.ux n da que Malinowski fez da pesquisa de campo com observação par-
Mauss, MareeI. Ensaios de sociologia. São Paulo, Perspectiva,2ã ed., 2015. lIe ip.mt . A introdução de Argonautas, primeiro dos textos incluídos neste
__ Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
o
c oIprtlll ,pode ser lida como um manifesto a favor de uma antropologia" ao

Sigaud, Lygia. "As vicissitudesdo 'Ensaio sobre o dom'", Mana 5(2), p.89-124, 11 IIVI ", n qual o pesquisador passa a conviver com os nativos em suas
1999. Disponívelem: http://www.scielo.br/pdf/mana/v5n21v5n2 04.pdf Idr 1.1 p r um lon O p ríodo d t rnpo. apr nd sua Ilngua e vive situações
II li' 1I I ri, m p Iv i m in rç o A p rtir d

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