Sie sind auf Seite 1von 258

A D A NÇA I M ENTO

IR OV
EXAUR
M
O L Í T ICA DO
AP
RMA NCE E
PERFO
COLEÇÃO ARTES PERFORMATIVAS E FILOSOFIA

Direção: Cassiano Sydow Quilici e Luiz Fernando Ramos

Conselho Editorial: Christine Greiner, Eleonora Fabião, Fernando Mattos,

Gilberto Icle, José da Costa, Sílvia Fernandes

A cena contemporânea tem desafiado a teoria e a crítica, exigindo um pensamen-


to mais sintonizado com as práticas criativas e com a inventividade conceitual que
estas convocam. A hibridização e/ou o choque entre linguagens (teatro, perfor-
mance, dança, artes visuais etc), as diferentes proposições de articulação entre
arte e vida, envolvendo dimensões políticas, existenciais e culturais mais amplas,
ocorrem paralelamente à multiplicação de abordagens do fenômeno cênico, cons-
tituindo-se assim um campo emergente de reflexão. O crescimento da área da pós-
-graduação e da pesquisa em artes cênicas no Brasil demanda novos projetos edito-
riais. Esta coleção pretende trazer ao leitor uma produção brasileira significativa e
ousada nesse setor, mesclando pesquisadores e pensadores mais experientes com
trabalhos promissores de autores mais jovens. O projeto inclui também a tradução
de obras internacionais de autores importantes e pouco traduzidos entre nós.
A D A NÇA I M ENTO
IR OV
EXAUR
M
O L Í T ICA DO
AP
RMA NCE E
PERFO

An
dré
Le
pe
cki

Tradução
Pablo Assumpção Barros Costa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880

Exaurir a Dança
Performance e a política do movimento
Projeto, Produção e Capa
Coletivo Gráfico Annablume

Annablume Editora
Conselho Editorial
Eugênio Trivinho
Gabriele Cornelli
Gustavo Bernardo Krause
Iram Jácome Rodrigues
Pedro Paulo Funari
Pedro Roberto Jacobi

1ª edição: julho de 2017

© André Lepecki

ANNABLUME editora . comunicação


Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros
05415-020 . São Paulo . SP . Brasil
Televendas (11) 3539-0225 – Tel. e Fax. (11) 3539-0226
www.annablume.com.br
AGRADECIMENTOS

Minha profunda gratidão a todos que contribuíram com


suas ideias, comentários, trabalho, amizade, orientação, inspira-
ção, inteligência e arte ao longo da escrita deste livro. Gostaria
de começar com um sincero agradecimento aos artistas a cujos
trabalhos este livro se dirige: Jérôme Bel, Trisha Brown, Juan
Dominguez, Vera Mantero, Bruce Nauman, William Pope.L,
La Ribot e Xavier Le Roy. Agradeço também às companhias e
produtores destes artistas, por disponibilizarem materiais de ar-
quivo, fotografias e vídeos, bem como por suas pacientes e aten-
ciosas respostas às minhas perguntas sempre urgentes e quase
constantes. Portanto, obrigado Sandro Grando, Maria Carme-
la, Lydia Grey e Rebecca Davis. Gostaria de agradecer a Katrin
Schoof e Luciana Fina por gentilmente permitirem a publicação
de suas belas fotos. Alice Reagan revisou uma versão inicial do
manuscrito e eu a agradeço pela ajuda em um momento delica-
do do projeto. O Capítulo 6 foi publicado anteriormente com
um título levemente diferente em Blackening Europe (Routled-
ge, 2004), editado por Heike Raphael-Hernandez, e é publicado
aqui com permissão da editora. As ideias por trás do Capítulo
5 foram primeiramente ensaiadas em um breve ensaio publi-
cado em Women and Performance (n. 27, 2004). A versão final
do manuscrito foi revisado por Jenn Joy. Este livro deve muito
à dedicada atenção de Jenn aos detalhes, ao seu insight crítico
e à sua pesquisa de algumas pistas complicadas. Sou grato aos
leitores anônimos que primeiramente avaliaram o projeto do
livro junto à editora Routledge. Seus comentários foram muito
valiosos no desenvolvimento da escrita. Meu profundo agra-
decimento também aos dois leitores do primeiro manuscrito
completo, Ramsey Burt e Mark Franko. Os trabalhos de ambos
sempre foram uma fonte de inspiração e ter tido o privilégio de
receber seus comentários, sugestões e críticas fez deste um livro
muito melhor. O apoio que recebi das minhas duas editoras na
Routledge, Talia Rodgers (Editora para Teatro e Estudos da Per-
formance) e Minh Ha Duong (Editora Assistente), ao longo de
todo o processo, foi simplesmente extraordinário. Meus agrade-
cimentos a Richard Schechner e Diana Taylor pela orientação e
ajuda na preparação do projeto inicial do livro. Obrigado tam-
bém a José Muñoz e Tavia Nyongo pelo precioso feedback nas
versões iniciais de alguns dos capítulos a seguir.
Um caloroso obrigado a três grupos de pessoas cujo traba-
lho e pensamento crítico informam muito da minha escrita: os
artistas com os quais tenho tido o privilégio de colaborar pelo
menos nas últimas duas décadas seja como dramaturgista ou
como co-criador, meus brilhantes estudantes e meus colegas
extraordinários no Departamento de Estudos da Performance
da Universidade de Nova York. Assim, meu sincero obrigado
a Francisco Camacho, Vera Mantero, João Fiadeiro, Sérgio
Pelágio, Meg Stuart, Rachael Swain, Eleonora Fabião e Bruce
Mau; a todos os meus estudantes, em especial Victoria Ander-
son, Gillian Lipton, P. J. Novelli, Shani Shakur, Rodrigo Tisi,
Jenn Joy, Sean Simon, Nikki Cesare-Bartnicki, Kim Jordan,
Dorita Hanna, Fernando Calzadilla, Michele Minnick e Sarah
Cervenack; e aos colegas Barbara Browning, Anna Deveare-
-Smith, Deborah Kapchan, Barbara Kirshenblatt-Gimblett,
José Muñoz, Tavia Nyongo, Ann Pellegrini, Richard Schech-
ner, Karen Shimakawa, Diana Taylor e Allen Weiss pelo apoio
e ensinamento constante.
Obrigado à minha mãe, Maria Lúcia, e obrigado ao meu
pai, Witold, pelo amparo e amor. Obrigado, Manuel. Obriga-
do, César. Obrigado, Kika e Fernando, Leo e Rê. Obrigado,
Elsa e Tobias, pelos seus lindos e inteligentes devires. Obri-
gado, meus amigos Pedro e Teresa, Luis Pedro, Sérgio e Sissi,
Vera, Scott, Myriam, Karmen e Matthew. Obrigado, Eleono-
ra. Este livro é para você.
SUMÁRIO

Apresentação
um marco na discussão da historiografia
dos corpos que dançam 11

Nota à edição brasileira 15

Introdução
a ontologia política do movimento 19

I – Masculinidade, solipsismo, coreografia:


Bruce Nauman, Juan Dominguez, Xavier Le Roy 51

II – Uma “ontologia mais lenta” da coreografia:


a crítica da representação em Jérôme Bel 91

III – Desabar a dança: a construção do espaço


em Trisha Brown e La Ribot 125
IV – Tropeçar a dança: as rastejadas
de William Pope.L 159

V – A melancólica dança do espectral pós-colonial:


Vera Mantero convoca Josephine Baker 191

Conclusão
exaurir a dança – para acabar com
o ponto de fuga 221

Bibliografia 237
UM MARCO NA DISCUSSÃO DA
HISTORIOGRAFIA DOS CORPOS
QUE DANÇAM

Já completa pouco mais de uma década desde a primeira


publicação de Exaurir a Dança, performance e a política do mo-
vimento, do professor, dramaturgista e curador André Lepecki.
Este livro se tornou uma referência fundamental para pensar
politicamente a dança e, não sem motivos, foi traduzido em
onze línguas. Mas apesar deste atraso, a excelente tradução
para o português, realizada pelo professor da Universidade Fe-
deral do Ceará Pablo Assumpção, chega em boa hora. E tendo
em vista a situação da dança e das artes em nosso país neste fa-
tídico ano de 2017 – marcado por forte instabilidade política
e econômica – a sua leitura será certamente bastante distinta
daquela que teria acontecido no momento de sua primeira
edição, em 2006.
O contexto no qual o livro emerge tem como ponto de
partida algumas questões importantes, mas a principal, ou
pelo menos aquela que impactou alguns leitores – entre os
quais me incluo – foi a construção conceitual e sensível de
uma demonstração muito bem fundamentada das transforma-
ções que aconteciam naquele momento com a dança. Através
de bibliografias e da análise de processos artísticos, Lepecki
detectou como, nos primeiros anos do novo milênio, alguns
artistas desestabilizaram os principais parâmetros que a torna-
vam reconhecida como dança até então.
Assim como estava ocorrendo com outras linguagens, havia
uma certa exaustão de paradigmas e metodologias para pensar
suportes e procedimentos. A crítica de arte Rosalind Krauss
havia observado, por exemplo, o surgimento de uma condição
pós-midiática, marcada pelo atravessamento de experiências e
zonas de indistinção entre linguagens e, consequentemente, o
surgimento de artistas que se negavam à compartimentação de
gêneros artísticos. Lepecki analisa como este processo se deu
em relação à dança e à performance e menciona, entre outros
aspectos, a exaustão da presença de movimentos com grandes
deslocamentos, realizados sempre em um ritmo veloz; e do
uso de técnicas, vocabulários e modelos dados a priori, que
marcavam quase todas as experiências de dança moderna.
Como o próprio autor sintetiza na sua apresentação para
esta edição brasileira e em sua obra mais recente Singularities,
dance in the age of performance (2016), a questão das singula-
ridades da dança foi se tornando cada vez mais importante,
pedindo por um exercício diferente de análise. A meu ver, este
exercício poderia ser considerado uma espécie de empirismo
radical para analisar cada experiência a partir de seu próprio
contexto, sem generalizações ou práticas discursivas autoritá-
rias constituídas fora da experiência. As pontes com a perfor-
mance tornaram-se, pouco a pouco, inevitáveis, assim como
uma certa concepção de coreografia como um modo de pensar
o sujeito como corpo, e não mais como uma escrita da dança
em tempo e espaço.
Nestes ambientes singulares de criação, as questões que
acionavam e, ao mesmo tempo, emergiam dos processos, tor-
naram-se cada vez mais importantes e explícitas, como resulta-
do da aliança indissociável entre teoria e prática e suas tramas
indisciplinares que criaram pontes com a filosofia, a ciência e
outros saberes. Se a coreografia passou a ser entendida por vá-
rios artistas como um modo de pensar o sujeito como corpo,

12
ela também se tornou a explicitação de modos de agir (politi-
camente) no mundo. Os temas se transformaram em ações e
as obras em processos.
Este pensar/agir/dançar não cessou na década que se se-
guiu. Pelo contrário. Radicalizou-se. O que mudou foram as
condições de constituição dos sujeitos/corpos, agora impreg-
nados de uma racionalidade neoliberal, como discutirá o pró-
prio Lepecki na etapa seguinte de sua pesquisa. Ao aprofun-
dar os diálogos com as inquietações de Wendy Brown, Erin
Manning, Brian Massumi, Giorgio Agamben, Judith Butler,
entre outros autores, Lepecki sugere que além das discussões
referentes às linguagens, deparamo-nos com dispositivos de
poder que fizeram da economia a grande força performativa,
impactando a todos, inclusive os artistas.
Nada poderia fazer mais sentido para nós brasileiros. No
momento em que artes e educação têm sido relegadas a um
estado de precariedade absoluta, tais discussões nos ajudam a
enxergar como todas as ações cuja aptidão é a de ativar sub-
jetividades, perderam a sua importância. A mobilização sem
fim que presenciamos agora não se refere à velocidade dos mo-
vimentos realizados pelo corpo que dança, mas sim, a uma
corrida caótica para sobreviver custe o que custar.
Como mencionei anteriormente, um dos pressupostos da
pesquisa de Lepecki sempre foi não apartar teoria de prática.
Neste sentido, a sua leitura pode ser vista como um agencia-
mento para, quem sabe, criar zonas de turbulência no niilismo
que nos assola, fortalecendo caminhos possíveis para criar e
pensar a dança, em tempos de neoliberalismo radical.

Christine Greiner

13
NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA

Como começar de outro modo que não este: É com enor-


me e verdadeira alegria que escrevo esta nota à tradução de
Exhausting Dance no Brasil. E como continuar a não ser assim:
Gostaria, antes de mais, de expressar a minha mais profunda
gratidão a todos os que tornaram esta edição possível: Luiz
Fernando Ramos e José Roberto Barreto Lins pelo convite e
confiança no projeto; Pablo Costa pelo árduo, meticuloso,
atencioso e arguto trabalho de tradução; Sonia Sobral, pelo
seu apoio ao meu trabalho desde a época em que dirigia o
departamento de artes cênicas do Itaú Cultural – sua perseve-
rança em querer ver este livro traduzido e publicado no Brasil
foi fundamental. Agradeço ao Itaú Cultural o apoio institu-
cional sem o qual esta edição não seria possível. E, finalmente,
obrigado a Christine Greiner por ter aceitado escrever a intro-
dução a esta edição.
É sempre difícil antever quais caminhos ações ou palavras
tomarão a partir do momento em que deixam a esfera de in-
fluência delineada pelas sempre misteriosas “intenções” do seu
autor. No caso de uma tradução – onde tive por decisão e
vontade própria pouca “influência”, apesar de ter tentado res-
ponder o mais claramente possível a todas as questões e suges-
tões que Pablo Costa, com argúcia, inteligência e consciência
crítica foi me endereçando ao longo do processo –, esses des-
caminhos se ampliam ainda mais numa disseminação deveras
produtiva e inesperada. Uma disseminação de fato surpreen-
dente que advém desse transportar de significados e suas zonas
semânticas, mas também afetivas, de uma língua para outra.
Porém, por entre os descaminhos que as palavras em movi-
mento sempre abrem, fica uma esperança originária: espero
que o leitor de língua portuguesa possa encontrar neste livro
não apenas um retrato de algumas performances e obras core-
ográficas que, na sua singularidade afirmativa, complicaram (e
ainda complicam, nas suas sobrevidas) certas noções pré-esta-
belecidas, certos mandamentos estéticos do que a dança deve
ser, do que a dança deve parecer, de como dançarinos devem
se mover, e de como o movimento deve se manifestar; mas que
o leitor encontre também, e ao mesmo tempo, um impulso
crítico-teórico que possa contribuir para os atuais debates que
informam as diferentes e muito pujantes cenas da dança e da
performance brasileira hoje.
Onze anos após sua publicação em inglês (o livro foi escrito
entre setembro de 2004 e maio de 2005, e posto em circulação
em janeiro de 2006), e na sua décima primeira tradução, pos-
so dizer o que moveu a escrita deste livro então, e que talvez
ainda possa ajudar o movimento de uma dança experimental
hoje. Primeiro, esclarecer que “exaurir a dança” nunca signi-
ficou para mim acabar com a dança, acabar com o dançar,
mas sim identificar de que modo vários coreógrafos e dança-
rinos, por via da dança, acharam fundamental detonar uma
certa ideia ou imagem de dança que bloqueava o seu devir en-
quanto arte pois a obrigava, aliás a condenava, a um agito sem
fim. Esse agito impedia a efetivação das promessas políticas,
estéticas, teóricas e afetivas de uma dança que se interessava
também por se tornar agente de intensificação do seu campo
interventivo. Assim, “exhausting dance”, na sua ambivalência
em inglês significa: uma dança que nos cansa, que nos suga a
energia, que nos deixa no mesmo lugar por via de uma agita-

16
ção sem pensamento e, ao mesmo tempo, indica também um
desejo expresso por coreógrafos de repensar o que seria uma
política intensiva de movimento, de esgotar essa ideia, ou ima-
gem, ou imperativo estético dominante, que alinha a dança a
um comando transcendente de movimento ininterrupto e a
todo custo. Segundo, de que modo, “teoria” não é algo que se
aplica à dança ou à performance como um curativo, remédio
ou aditivo explicativo, mas é algo que emana de cada obra, que
pode ser entendida como uma proposição, uma problemática,
uma zona de intervenção no real cujas consequências se reba-
tem sobre as próprias premissas e clichés do que seja pensar.
Terceiro, a vontade de demonstrar a relevância (na altura, há
onze anos atrás, não tão óbvia quanto já é hoje em dia) de que
a teoria da dança e da performance, e a prática de dançar e de
compor performances e coreografias, têm tudo a ganhar com
uma interlocução vital com a filosofia, os estudos críticos de
raça e com a teoria pós-colonial. Quarto, relembrar que o pro-
jeto cinético que impulsiona toda a modernidade modela e é
também modelado, pelo impulso colonizador que implemen-
ta em todo o planeta, a lógica dominante de uma “mobilização
infinita” ou sem fim (expressão que tomei de Peter Sloterdijk),
cujo resultado final é a produção de uma profunda relação en-
tre capitalismo, colonialismo, racismo e movimento. Se Karl
Marx propôs uma vez que os bens de consumo (commodities)
guardam em si o segredo do capitalismo, e que bastaria ouvir
esses objetos para entendermos a lógica profunda do capital,
a ideia aqui é que uma parte dessa lógica é o controle de sua
circulação, a co-invenção da modernidade como lógica de po-
der e da coreografia como arte de implementação dessa lógica.
Finalmente, minha escrita sobre dança sempre foi informada
pelo modo como comecei a trabalhar com a dança, como dra-
maturgista. Sempre me impressionou o modo como muito
do trabalho que me entusiasmava, e que entusiasmava toda
uma geração de coreógrafos, alguns dos quais presentes neste
livro, era descrito como chato, repetitivo, demasiado lento,

17
demasiado trêmulo, com demasiado pensamento (!). Como
muitos desses trabalhos eram literalmente citados como uma
ameaça ao futuro da dança e uma ameaça à essência da dan-
ça. Este livro tenta entender porque ficar parado, ou porque
preferir não participar de uma ideia ou imagem hegemônica
de agito, são ameaças tão profundas. Nesse sentido, o livro
coloca em diálogo figuras conceituais que contribuem, espero,
para a rearticulação das relações entre “política” e “movimen-
to”: Franz Fanon conversa com Martin Heidegger por via de
William Pope.L; um mestre de dança do século dezesseis, que
cunha a primeira versão da palavra coreografia, conversa com
Jérôme Bel, Bruce Nauman e Juan Dominguez; o fantasma
de Josephine Baker dialoga com Vera Mantero; Paul Virilio se
dirige a La Ribot e a Trisha Brown; e Gilles Deleuze (autor que
na época lia pouco e por isso seu famoso texto sobre Beckett,
“O Esgotado”, não fazia parte sequer da minha biblioteca na
altura) tem muito a dizer a Xavier Le Roy. Mas foi quando
me vi invocando Henri Bergson para repensar a noção de efe-
meridade da performance de Peggy Phelan que entendi o que
a dança faz de melhor: ela curto-circuita o tempo de modo a
reconsiderar toda a relação entre (os) movimentos (dos) vi-
vos e (os) movimentos (dos) mortos. Este curto-circuito pode
ainda não ser exatamente uma política do movimento: mas é
certamente o ato que dança.

André Lepecki, Junho 2017

18
INTRODUÇÃO
A ONTOLOGIA POLÍTICA
DO MOVIMENTO

No diagnóstico do presente se tem de introduzir


uma dimensão cinética e cinestésica, porque, sem
esta, tudo quanto se disser sobre a Modernidade
passa ao lado do que há de mais real (Sloterdijk,
2002: 27).

Na edição de 31 de dezembro de 2000, o New York Times


publicou um artigo de Anna Kisselgoff, editora-chefe de dan-
ça naquele jornal, intitulado “Partial to Balanchine, and a Lot
of Built-In Down Time” [Predileção por Balanchine, e Muito
Modo de Espera pelo Meio], uma resenha da cena de dança
em Nova York naquele ano que findava. Em dado momento,
Kisselgoff escreve: “Para e continua. Pode chamar de tendên-
cia ou de tique, mas a crescente aparição de sequências-soluço
na arte coreográfica é impossível de ignorar. Espectadores in-
teressados em fluxo ou continuidade de movimento têm en-
contrado poucas opções dentre as muitas estreias”. Após listar
alguns dos coreógrafos “soluçantes”, desde David Dorfman,
radicado em Nova York, até William Forsythe, radicado em
Frankfurt, Kisselgoff conclui: “É tudo muito ‘hoje’. Mas, e
amanhã?” (Kisselgoff, 2000: 6).
A percepção de um “soluçar” no movimento coreografado
produz ansiedade crítica: é o próprio futuro da dança que re-
sulta ameaçado pela erupção de uma tal gagueira cinestésica.
Confrontada com a interrupção proposital do “fluxo” core-
ográfico ou da “continuidade do movimento”, a crítica ofe-
rece duas leituras possíveis: ou bem estas estratégias podem
ser descartadas como uma “tendência” – logo entendida como
epifenômeno limitado, um “tique” aborrecido que não merece
grande consideração crítica; ou elas podem ser denunciadas,
mais seriamente, como um perigo, uma ameaça ao “amanhã”
da dança, à capacidade da dança de se reproduzir docilmente
no futuro a partir de seus parâmetros mais reconhecíveis. Esta
última percepção – de que a intrusão de soluços paralisantes
na coreografia contemporânea ameaça a própria futuridade
da dança – é pertinente para a discussão de algumas estraté-
gias coreográficas recentes nas quais a relação da dança com
o movimento está sendo exaurida. Meu argumento é que a
concepção da paralisia do movimento como uma ameaça ao
futuro da dança sugere que qualquer ruptura no fluxo da dan-
ça – qualquer coreografia que questione a identidade da dança
como ser-em-movimento – representa não só uma crise locali-
zada na habilidade do crítico de fruir esta dança, mas opera, o
que é bem mais relevante, um ato crítico de profundo impacto
ontológico. Não é de surpreender que uma tal convulsão on-
tológica seja tomada como uma traição da própria essência e
natureza da dança, de sua assinatura, de seu domínio privile-
giado: a traição do laço entre dança e movimento.
Toda acusação de traição contém em si necessariamente a
reificação e reafirmação de certezas com relação ao que cons-
titui as regras do jogo, qual o caminho certo, a postura correta
ou a forma de ação apropriada. Em outras palavras: qualquer
denúncia de traição implica uma certeza ontológica carregada
de características coreográficas. No caso da suposta traição efe-
tuada pela dança contemporânea, a acusação descreve, reifica e
reproduz toda uma ontologia da dança que pode ser sintetizada

20
da seguinte forma: a dança imbrica-se, ontologicamente, com o
movimento; ela é isomórfica a ele. Somente ao aceitar tal fun-
damentação da dança no movimento pode alguém acusar certas
práticas coreográficas contemporâneas de trair a dança.
É digno de nota que acusações de traição como esta (e a
implícita reificação ontológica que elas carregam) não são
confinadas ao contexto da crítica de dança norte-americana.
Juízos similares também surgiram nos tribunais europeus. Em
7 de julho de 2004, por exemplo, o Tribunal Regional de Du-
blin julgou um processo civil contra o Festival Internacional
de Dança da Irlanda (IDR). O Festival fora acusado de aten-
tado ao pudor por ter exibido nudez e supostos atos lascivos
numa peça de dança intitulada Jérôme Bel (1995) do coreó-
grafo contemporâneo francês Jérôme Bel.1 A peça havia sido
apresentada no IDR na edição de 2002. Devido a alguns deta-
lhes técnicos, o juiz que presidia o caso acabou por descartá-lo.
Aparentemente, a parte acusatória, Sr. Raymond Whitehead,
baseando seus argumentos numa mistura mal-acabada de leis
que regulamentavam a obscenidade e a propaganda engano-
sa, pedia indenização por “quebra de contrato e negligência”
(Falvey, 2004: 5). O interessante neste caso particular é que o
Sr. Whitehead sustentava sua acusação de obscenidade e pro-
paganda enganosa na alegação de que Jérôme Bel não poderia
ser propriamente classificada como uma performance de dan-
ça. Numa declaração ao Irish Times de 8 de julho de 2004, o
Sr. Whitehead articulou uma ontologia da dança muito se-
melhante àquela articulada por Kisselgoff. De acordo com o
Irish Times, “não havia nada na performance que [ele] pudesse
descrever como dança, a qual definiu como ‘pessoas movendo-
-se ritmicamente, pulando para cima e para baixo, em geral
associado à música, mas não necessariamente’ e transmitin-
do alguma emoção. Seu pedido de reembolso foi recusado”
(Holland, 2004: 4).

1.  Eu discuto o trabalho de Jérôme Bel detalhadamente no Capítulo 3.

21
Postos lado a lado, estes dois momentos discursivos pedem
consideração. Eles refletem o fato de que na última década
algumas coreografias contemporâneas norte-americanas e eu-
ropeias têm de fato se empenhado em desmantelar uma certa
noção de dança – a noção que ontologicamente a associa ao
“fluxo e à continuidade de movimento” e com “pessoas pu-
lando para cima e para baixo” (com ou sem música). Mas eles
também refletem uma certa inabilidade generalizada, e até uma
má vontade, em considerar criticamente as práticas coreográ-
ficas recentes como experimentos artísticos de valor. Assim, a
deflação de movimento na recente coreografia experimental
é meramente descrita como sintoma geral de um “modo de
espera” na dança.2 Mas talvez seja esta formulação mesma um
sintoma do “modo de espera” no qual se encontra o discurso
crítico sobre a dança, sinalizando a profunda disjunção entre
as atuais práticas coreográficas e um modo de escrita ainda
apegado a ideais da dança como agitação constante e contí-
nua mobilidade. Devemos lembrar que a operação de igualar
o ser da dança ao movimento – por mais senso comum que
isso possa parecer hoje – é na realidade um desenvolvimento
histórico razoavelmente recente. O historiador da dança Mark
Franko mostra como, no Renascimento, a coreografia se defi-
nia apenas secundariamente em relação ao movimento:

O corpo dançante como tal é raramente tematizado nos


tratados. Como o pesquisador da dança Rodocanachi
colocou, ‘... quant aux mouvements, c’est la danse en elle-
même dont la connaissance semble avoir été la moindre des
occupations du danseur’ [... quanto aos movimentos, o

2.  O autor recupera aqui a expressão “down time”, utilizada por Anna Kisselgoff no título
da resenha mencionada no primeiro parágrafo. A expressão “down time” refere-se ao tem-
po de espera ou inatividade de um sistema enquanto ele encontra-se em manutenção ou
fora do ar, implicando portanto a expectativa de um recomeço. No caso da resenha citada,
“down time” (que traduzimos como “modo de espera”) seria justo o tempo no qual os
dançarinos permanecem parados em cena, no qual (supostamente) a “dança” é suspensa,
para depois (supostamente) recomeçar (N. T.).

22
conhecimento da dança em si é o que parece ter sido a
menor das ocupações do dançarino] (Franko, 1986: 9).

O antecessor de Anna Kisselgoff, John Martin, primeiro


editor exclusivo de dança do New York Times, certamente esta-
ria de acordo com Franko. Em 1933, ele afirmou: “quando co-
meçamos a perceber a dança assumindo algo como uma forma
teatral – isto é, depois dos dias antigos – nós percebemos que
ela se preocupa pouco ou nada com o movimento do corpo”
(Martin, 1972: 13). Por que, então, esse interesse obsessivo
pela exibição de corpos em movimento, essa necessidade de
que a dança esteja em estado constante de agitação? E por que
enxergar nas práticas coreográficas que recusam tal exibição e
agitação uma ameaça ao ser da dança? Estas questões refletem
como o desenvolvimento da dança no Ocidente como for-
ma artística autônoma, desde o Renascimento, alinha-se de
modo crescente a um ideal de contínua motilidade. A pulsão
da dança rumo à exibição espetacular do movimento torna-
-se a sua própria modernidade, no sentido definido por Peter
Sloterdijk na epígrafe deste capítulo: como uma época e um
modo de ser em que o cinético corresponde ao que nela “há de
mais real” (2002: 27, grifo meu). Na medida em que o projeto
cinético da modernidade se torna a sua própria ontologia (sua
inescapável realidade, sua verdade fundamental), também o
projeto da dança ocidental alinha-se mais e mais à produção
e à exibição de um corpo e de uma subjetividade adequados a
representar esta motilidade desenfreada.
Assim, desde a consolidação do ballet d’action romântico,
percebemos claramente a dança representando a si mesma
como um espetáculo de fluida mobilidade. Como argumen-
tam as pesquisadoras da dança Susan Foster (1996), Lynn Ga-
rafola (1997) e Deborah Jowitt (1988), a premissa do balé
romântico era apresentar a dança como contínuo movimento,
preferencialmente ascendente, animando um corpo que viceja
suavemente no ar. Tal ideologia conformou estilos, prescre-

23
veu técnicas e configurou corpos, além de modelar critérios
críticos para a avaliação do valor estético da dança. Embora
a produção de Filippo Taglioni de La Sylphide em 1832 seja
considerada o primeiro balé romântico, estreado na Ópera
de Paris, é possível achar em um texto de 1810 a primeira
e mais profundamente articulada teorização da dança como
performance do fluxo ininterrupto do movimento. Trata-se
da parábola clássica de Heinrich von Kleist, “Über das Ma-
rionettentheater”, que exalta a superioridade da marionete em
relação ao dançarino humano, já que aquela não precisa parar
seu movimento para recuperar sua força:

Marionetes, como os elfos, só precisam do chão para tocá-


-lo suavemente e renovar a força de seus membros com
uma pausa momentânea. Nós [humanos] precisamos dele
para repousar e nos recuperarmos do esforço da dança,
um momento que claramente não faz parte da dança3 (In:
Copeland and Cohen, 1983: 179).

Entretanto, é só na década de 1930 que a total identifica-


ção ontológica entre movimento ininterrupto e o ser da dança
é claramente articulada como uma exigência inescapável para

3.  Uma das outras razões para a superioridade da marionete é sua falta de vida interior,
psicológica, a qual previne o boneco deslocar seus “centros naturais de gravidade” para
outras partes do corpo, garantindo assim a pura expressão de movimentos graciosos. O
texto de Kleist foi objeto de numerosas leituras e análises críticas. A mais influente, sem
dúvida, é a de Paul de Man em The Rhetoric of Romanticism (1984). Resumidamente, de
Man compreende o texto de Kleist como uma parábola sobre o ato de ler, no qual a leitura
é entendida como um teste inacabável para o leitor, que sempre perderá as marcas da escri-
ta. Sem negar a leitura proposta por de Man, eu diria que “On the Puppet Theatre” requer
uma expansão de sua interpretação como um comentário unicamente sobre a leitura, se
levarmos em conta os três argumentos ontocinético-teológicos que ele propõe entre o
movimento humano, o movimento animal e o movimento da marionete em suas relações
com a expressividade, a verdade, Deus e o ser. Devemos notar também que a evocação
feita por Kleist dos elfos nessa citação é historicamente sugestiva, e que sua descrição das
dançantes marionetes como resistentes à gravidade poderiam muito bem se encaixar nas
performances de “técnicas do voo” encenadas por Charles Didelot – máquinas teatrais que
criaram, no final do século XVIII, a ilusão de voar em cena.

24
qualquer projeto coreográfico. John Martin, em suas famosas
palestras de 1933 na New School University de Nova York,
propôs que só após o advento da dança moderna a dança final-
mente achou seu verdadeiro (e ontologicamente fundamenta-
do) começo: “este começo foi a descoberta da real substância
da dança, que é o movimento” (Martin, 1972: 6). Para Mar-
tin, as explorações coreográficas do balé romântico e clássico, e
mesmo a libertação anti-balé da expressividade corporal enca-
beçada por Isadora Duncan, haviam se desviado do verdadeiro
ser da dança. Não se compreendera que a dança deveria ser
fundada apenas no movimento. Para Martin, o balé era dra-
maturgicamente dependente da narrativa e coreograficamen-
te investido na pose de efeito, enquanto a dança de Duncan
era demasiado subserviente à música. De acordo com Martin,
foi só com Martha Graham e Doris Humphrey nos EUA, e
Mary Wigman e Rudolph von Laban na Europa, que a dança
moderna descobriu o movimento como a sua essência e “se
tornou uma arte independente pela primeira vez” (1972:6).
O alinhamento estrito da dança com o movimento que
John Martin anunciou e celebrou é o resultado lógico de sua
ideologia modernista, de seu desejo de assegurar teoricamente
uma autonomia para a dança que a deixasse em pé de igual-
dade com outras formas de arte erudita. O modernismo de
Martin é um constructo, um projeto que, como mostrou o
historiador da dança Mark Franko, toma forma não apenas
em seus escritos e resenhas, mas também no disputado espaço
entre o coreográfico e o teórico, o corpóreo e o ideológico, o
cinético e o político (Franko, 1995). O pesquisador em dan-
ça Randy Martin observa como o projeto de fundamentar a
ontologia da dança no puro movimento leva a “uma suposta
autonomia do estético no campo da teoria, que é [...] o que
funda, sem precisar nomear ou situar, a autoridade do teórico
ou do crítico” (Martin, 1998: 186). Essa luta por autoridade
crítica e teórica define a dinâmica discursiva que informa a
produção, a circulação e a recepção crítica da dança; ela de-

25
fine como em resenhas jornalísticas de dança, em decisões
curatoriais, bem como em processos legais, algumas danças
são consideradas adequadas enquanto outras são descartadas
como atos de traição ontológica. Compreender que a dança
acontece nesse espaço de disputa esclarece como as recentes
acusações de traição dão voz a um programa ideológico que
define, fixa e reproduz o que deve ser valorizado como dança
e o que deve ser excluído de seu domínio como “sem futuro”,
“insignificante” ou “obsceno”.
Enquanto isso, a questão da ontologia da dança continua
em aberto.
É por essa questão em aberto, com todas as suas implica-
ções estéticas, políticas, econômicas, teóricas, cinéticas e per-
formativas, que Exaurir a Dança se interessa. Eu dedico cada
capítulo deste livro à leitura detalhada de peças de coreógrafos
contemporâneos europeus e norte-americanos, artistas visuais
e de performance, cujos trabalhos (a despeito de caírem ade-
quadamente ou não na categoria da dança cênica) propõem,
com particular intensidade, uma crítica de alguns dos elemen-
tos constitutivos da dança cênica ocidental. Os elementos crí-
ticos que eu destaco são, por ordem de aparição: o solipsismo,
a imobilidade, a materialidade linguística do corpo, a derro-
cada do plano vertical de representação, o tropeço no terreno
racista, a proposta de uma política do chão e a crítica da pul-
são melancólica no coração da coreografia. Os artistas cujos
trabalhos acionam estes elementos críticos são (também em
ordem de aparição): Bruce Nauman, Juan Dominguez, Xavier
Le Roy, Jérôme Bel, Trisha Brown, La Ribot, William Pope.L
e Vera Mantero.
O fato de dois destes artistas não serem “propriamente”
dançarinos e de não descreverem a si mesmos como coreó-
grafos, embora tenham explicitamente experimentado exercí-
cios coreográficos (Bruce Nauman) e explicitamente tratado
da política da motilidade na contemporaneidade (William
Pope.L), é metodologicamente importante para o argumen-

26
to que o livro avança. Os trabalhos de ambos permitem um
reenquadramento da coreografia fora de limites disciplinares
artificialmente autônomos, bem como o reconhecimento da
força da ontologia política da modernidade em todo o seu
estranho e hipercinético ser. Tratar o coreográfico fora dos li-
mites próprios da dança sugere uma expansão do privilegiado
objeto de análise da pesquisa em dança; exige dessa pesquisa
que ela pise em outros campos artísticos, criando novas possi-
bilidades de se pensar as relações entre corpos, subjetividades,
política e movimento.
Uma das relações que este livro privilegia é aquela entre a
dança, os estudos da dança e a filosofia. Este diálogo teórico
parte da observação de que a dificuldade em avaliar critica-
mente a dança que recusa manter-se confinada ao “fluxo ou
continuidade de movimento” sinaliza uma reconfiguração da
relação da dança com sua presentificação, com o seu tornar-se
presente. Ora, “presença” não é simplesmente um termo que
se refere à habilidade do dançarino em negociar proficiência
técnica e artística na performance de uma coreografia. É tam-
bém um conceito filosófico fundamental, um dos principais
objetos da destruktion da metafísica de Heidegger e da des-
construção de Derrida.4 Logo, qualquer dança que investiga
e complica os modos pelos quais se torna presente e o lugar
onde estabelece o alicerce de seu ser, exige dos estudos críticos
em dança um diálogo renovado com a filosofia contemporâ-
nea. Eu estou aqui a pensar sobretudo naqueles autores que
dão seguimento à destruição da filosofia tradicional empre-
endida por Nietzsche através da proposição de uma crítica
da vontade de potência – um projeto que informa o trabalho
filosófico e político de Michel Foucault, Jacques Derrida, Gil-

4.  Para Derrida, toda a história da metafísica ocidental (que ele identificava como a “his-
tória do Ocidente”) girava em torno de um centro fixo: o “Ser como presença em todos
os sentidos da palavra” (Derrida, 1978: 279). Para Derrida, foi somente com Nietzsche,
Freud e Heidegger que a presença como Verdade, a presença como Sujeito e a presença
como Ser, respectivamente, são fundamentalmente decentralizadas (1978: 279).

27
les Deleuze e Félix Guattari, trabalhos e autores que invoco
frequentemente ao longo deste livro. Ora, a filosofia destes
autores não é apenas uma filosofia do corpo, mas uma filosofia
que cria conceitos que permitem um reenquadramento polí-
tico do corpo. Uma filosofia que percebe o corpo não como
entidade encerrada em si mesma, mas como sistema aberto
e dinâmico de trocas, constantemente produzindo modos de
sujeição e controle, bem como modos de resistência e devir.5
Como explica a teórica feminista Elizabeth Grosz, depois de

Nietzsche [...] o corpo é o lugar de emanação da vontade


de potência (ou de múltiplas vontades), um locus intensa-
mente energético para toda produção cultural, um concei-
to que acredito ser mais adequado para repensar o sujeito
em termos do corpo. (Grosz, 1994: 147)

Repensar o sujeito em termos do corpo é precisamente a


função da coreografia, uma tarefa que nem sempre é submissa
ao imperativo da cinética, uma tarefa que está sempre e já em
diálogo com a filosofia e a teoria crítica. Frederic Jameson vê
o retorno à filosofia nos recentes Estudos Culturais como um
retorno perigoso aos ideais e ideologias modernistas e con-
servadores (Jameson, 2002: 1-5). Eu não considero que uma
coisa necessariamente leve à outra. Eu vejo o posicionamento
de Jameson como um exemplo perfeito das certeiras palavras
de Homi Bhabha em seu ensaio “O Compromisso com a Te-
oria”: “Existe uma pressuposição prejudicial e autodestrutiva
de que a teoria é necessariamente a linguagem da elite dos que
são privilegiados social e culturalmente (Bhabha, 2003: 43).

5.  Derrida permanece um filósofo do corpo no sentido de que ele reconfigura radicalmente
a questão da linguagem como uma questão de gramatologia, prestando rigorosa atenção
à prática da escritura e aos efeitos fantasmáticos desta. O fato de que o corpo é, para
Derrida, já linguístico, já imbuído numa máquina de escritura, no sentido que Kafka deu
ao corpo, não o torna menos corpóreo. Ver, nesse sentido, a preocupação de Derrida com
as performances em si e com a centralidade dos performativos em alguns de seus mais
estimados temas: a força de lei, o ato de dar, a ética, a morte, a escuta do outro, a teologia.

28
Bhabha nos lembra que há uma “distinção a ser feita entre a
história institucional da teoria crítica e seu potencial conceitu-
al para a mudança e inovação” (2003: 60). Esta é precisamente
a posição de Deleuze ao distinguir a história institucional da
filosofia e força política da filosofia (Deleuze, 1992: 169-193).
Se há uma proposição que me cabe fazer aos estudos da dança
é justamente a de investigar como a coreografia e a filosofia
partilham daquela questão fundamental – política, ontológi-
ca, fisiológica e ética – que Deleuze recupera a Espinosa e a
Nietzsche: o que pode um corpo?
O trabalho dos filósofos e teóricos críticos com os quais dia-
logo desdobram a força política que esta questão fundamental
articula, no cruzamento necessário que ela propõe entre teoria
crítica, filosofia e todos as formas de performance, incluindo
a dança. Assim, ao longo de todo o livro eu invoco a crítica à
autoridade do autor elaborada por Roland Barthes e Michel
Foucault, a crítica à economia geral da representação em Jac-
ques Derrida, a noção de Avery Gordon sobre a força socioló-
gica do fantasmagórico/espectral, a releitura de Ann Cheng do
conceito de melancolia em Freud, o conceito do Corpo sem
Órgãos de Deleuze e Guattari, o desvendamento da ontologia
cinética da modernidade por Peter Sloterdijk, a crítica da on-
tologia na condição colonial em Frantz Fanon e a reanimação
do performativo de Austin por Judith Butler – tudo de modo
a compreender a implementação especificamente coreográfica
destes conceitos cruciais. De resto, o diálogo com a filosofia é
um no qual também os artistas que discuto estão engajados.
De fato, poderíamos dizer que se estes artistas não estivessem
explicitamente comprometidos com a filosofia e com a teoria
crítica, seus trabalhos provavelmente não teriam emergido.
Como mostrarei ao longo dos capítulos, Vera Mantero dialoga
diretamente com a noção de imanência de Deleuze, William
Pope.L “conversa” com Heidegger e Frantz Fanon, Jérôme Bel
cita a importância das noções deleuzianas de diferença e repe-
tição para seu trabalho, Bruce Nauman invoca Wittgenstein,

29
enquanto Xavier Le Roy explicitamente reconhece a influ-
ência de Elizabeth Grosz. Mesmo quando este diálogo não
é totalmente explicitado, podemos tornar claro como Trisha
Brown conversa com a teoria da arquitetura e como La Ribot
entra em debate com a noção de Verfallen em Heidegger. Em
todo o livro, tudo que eu faço é escutar as proposições de cada
coreógrafo e dar relevo à filosofia que eles articulam. E a cada
capítulo eu reitero a questão de Bhabha: “Em que formas hí-
bridas, portanto, poderá emergir uma política da afirmativa
teórica?” (2004: 47).
Grande parte do meu argumento neste livro gira em torno
da formação da coreografia como uma invenção peculiar da
modernidade, como uma tecnologia que cria um corpo dis-
ciplinado para se mover de acordo com os comandos da es-
crita. A primeira versão do termo “coreografia” foi forjada em
1589, quando nomeou um dos manuais de dança mais famo-
sos daquele período: Orchesographie, do padre jesuíta Thoinot
Arbeau (literalmente: a escrita, graphie, da dança, orchesis).6
Fundidas em uma só palavra, cruzadas uma com a outra, dan-
ça e escrita qualitativamente produziram relações tão forçosas
quanto insuspeitas entre o sujeito que se move e o sujeito que
escreve. Com Arbeau, estes dois sujeitos tornaram-se um. E
através desta assimilação em nada óbvia, o corpo moderno
revelou-se a si mesmo como uma entidade linguística.
Não é por acaso que a invenção desta nova arte de codificar e
exibir o movimento disciplinado coincide historicamente com
o desenrolar do projeto da modernidade e a sua consolidação.
Desde o Renascimento, ao perseguir sua própria autonomia
6.  Thoinot Arbeau cunha o termo “orchesographie” – uma escrita (“graphie”) da dança (“or-
chesis”) em 1589. O sinônimo atualmente em uso, “coreografia”, é introduzido em 1700
no tratado clássico de mesmo nome escrito por Raoul-Auger Feuillet. Curiosamente, em
1706, John Weaver publica An Exact and Just Translation from the French of Monsieur
Feuillet na qual ele traduz o título original Chorégraphie como “orchesography”, indicando
portanto a validade do antigo termo no século XVIII. Em ambas configurações da palavra,
a fusão da dança com a escrita nomeia uma prática cujas forças programáticas, técnicas,
discursivas, econômicas, ideológicas e simbólicas permanecem ativas até hoje.

30
como forma artística, a dança conjuga-se à consolidação desse
grande projeto do Ocidente conhecido como modernidade.
Dança e modernidade se entrelaçam num modo cinético de
ser-no-mundo. O historiador da cultura Harvie Ferguson es-
creveu que “o único elemento imutável da modernidade é sua
propensão ao movimento, o que se torna, por assim dizer, seu
emblema permanente” (Ferguson, 2000: 11). É assim que para
buscar sua essência a dança volta-se de modo crescente para o
movimento. O filósofo alemão Peter Sloterdijk defendeu que
o projeto da modernidade é um projeto fundamentalmente
cinético: “A modernidade é, ontologicamente, puro ser-para-
-o-movimento” (Sloterdijk, 2002: 33). A dança acessa a mo-
dernidade por via de seu alinhamento ontológico crescente
com o movimento, este por sua vez tomado como espetáculo
do ser desta modernidade. Ao escrever sobre dança barroca,
em particular quando realizada pelo corpo de Luís XIV, o Rei
Sol, Mark Franko enfatiza como a coreografia é antes de tudo
uma performance centrada na exibição de um corpo discipli-
nado que encena o espetáculo de sua própria capacidade de se
colocar em movimento:

Qualquer um que tenha feito aulas de dança barroca sob


a atenta supervisão de um professor pode comprovar que
a forma permite pouca ou nenhuma improvisação. O
corpo régio dançando era levado a representar a si mesmo
como remaquinado a serviço de uma coordenação muito
precisa entre os membros inferiores e superiores, tudo
controlado por uma rigorosa estrutura musical. Tra-
tava-se de um tecno-corpo do início da era moderna.
(Franko, 2000: 36, grifo meu)

Se a coreografia emerge no início na modernidade de modo


a remaquinar o corpo para que este “represente a si” como
total “ser-para-o-movimento”, talvez a exaustão recente da no-
ção de dança como pura exibição do movimento ininterrupto
compartilhe de uma crítica geral deste modo de disciplinar a

31
subjetividade, de constituir o ser como sujeito. Se concorda-
mos com Ferguson em que o movimento é o “emblema per-
manente” da modernidade, então este ponto de partida teórico
pode nos ajudar a reenquadrar discursivamente a atual exaus-
tão da dança. Se o “único elemento imutável” da modernidade
(Ferguson, 2000: 11) é, paradoxalmente, o movimento, então
poderíamos dizer que ao romper a aliança entre dança e movi-
mento, ao criticar a possibilidade de se sustentar um modo de
se mover num “fluxo e continuidade de movimento”, algumas
danças recentes estejam de fato desafiando política e teorica-
mente aquela velha aliança entre as simultâneas invenções da
coreografia e da modernidade como “ser-para-o-movimento”
e a ontologia política do movimento na modernidade. Neste
sentido, exaurir a dança é exaurir o emblema permanente da
modernidade. É levar ao limite esse modo de criar e privilegiar
uma subjetividade cinética instituído pela era moderna. É, afi-
nal, exaurir a modernidade, para usar a potente expressão de
Teresa Brennan, a qual poderia ser tomada como sinônimo do
título deste livro (Brennan, 1998).
Já que “modernidade” e “subjetividade” são termos centrais
nos capítulos a seguir, eles merecem alguma clarificação desde
já. Meu uso do termo “subjetividade” não indica um retorno
à noção de sujeito e nem uma reapropriação desta noção. O
“sujeito” é usualmente associado a uma reificação da subje-
tividade na figura legal da pessoa, junto a uma afirmação da
pessoa como indivíduo autônomo e autocontido ligado a uma
identidade fixa, e com a identificação de uma presença plena
no centro do discurso (Dupré, 1993: 13-17, Ferguson, 2000:
38-44).7 Ao longo deste livro, a subjetividade não deve ser
confundida com essa noção de um sujeito fixo. Ao contrário,
ela deve ser percebida como um conceito dinâmico, ressaltan-
do modos de agência (política, desejante, afetiva, coreográfica)
7.  “O traço distintivo da corporeidade moderna repousa no processo de individuação, na
identificação do corpo com a pessoa como indivíduo exclusivo e, portanto, como porta-
dor de valores e direitos legalmente sancionáveis” (Ferguson, 2000: 38).

32
que revelam “um processo de subjetivação, isto é, uma produção
de modo de existência [que] não pode se confundir com um
sujeito” (Deleuze, 1992: 123, grifo meu)8. Subjetividade deve
ser entendida como força performativa, como a possibilida-
de da vida ser constantemente inventada e reinventada, como
um “modo intensivo e não um sujeito pessoal” (1992: 123).
O entendimento de Deleuze sobre subjetividade é próximo
das “tecnologias de si” que Foucault define como operações.
Tecnologias de si

permitem aos indivíduos efetuar, com seus próprios meios


[...] um certo número de operações em seus próprios
corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de
modo a transformá-los com o objetivo de alcançar um
certo estado de felicidade (Foucault, 2004: 323).

Desta forma, tanto para Foucault quanto para Deleuze,


subjetividades são sempre processos de subjetivação, devires
ativos, expansão de potências e forças de modo a criar para si
a possibilidade da “existência como obra de arte” (Deleuze,
1992: 120).
Nesta dinâmica, não é possível negligenciar o efeito destru-
tivo de forças hegemônicas que constantemente tentam domi-
nar e prevenir a criação de subjetividades ao amarrar indiví-
duos em mecanismos de sujeição, abjeção e dominação. Para
esclarecer esse efeito hegemônico, eu gostaria de suplementar
as noções de subjetividade em Deleuze e Foucault invocando
um modelo de subjetivação que eles explicitamente rejeita-
ram, mas que todavia eu considero útil para reconhecermos
criticamente as múltiplas forças em jogo na constituição das
subjetividades. Este modelo é descrito por Louis Althusser
em seu ensaio “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado”

8.  As citações de Gilles Deleuze nesta seção, retiradas do ensaio “Life as a Work of Art”, fo-
ram traduzidas da própria versão em inglês, já que não encontramos este ensaio traduzido
para o português (N.T.).

33
(2008). Althusser propôs que as forças hegemônicas estão
permanentemente “interpelando os indivíduos como sujeitos
em nome de um Sujeito Único e Absoluto” (2008: 290). E o
modo como Althusser descreve esse mecanismo tem algo de
estranhamente coreográfico:

O indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se


submeta livremente às ordens do Sujeito, portanto, para
que aceite (livremente) seu submetimento e, portanto,
para que ‘cumpra por si mesmo’ os gestos e atos de seu
submetimento. Os sujeitos só existem por meio de e para
seu submetimento. É a razão pela qual ‘funcionam sozi-
nhos’ (2008: 291-292).

Podemos entender porque Deleuze e Foucault criticariam


esse mecanismo, onde não parece haver qualquer possibili-
dade de agência e onde a reificação é crucial. Entretanto, a
relevância do modelo de Althusser para os estudos da dança
foram ressaltados por Mark Franko. Mesmo criticando o fato
de Althusser alocar os centros de poder ideológico em insti-
tuições específicas (igreja, polícia, estado), Franko interessa-
-se por como a interpelação “implica um dirigir-se ao outro
visceralmente” e portanto permanece uma noção muito útil
para os estudos da dança e da performance, uma noção que
propõe que dança e “performance também podem chamar o
espectador a ocupar uma posição de sujeito” (Franko, 2002:
60). Eu concordo com Franko quando ele propõe que o mo-
delo de Althusser para como os indivíduos são “recrutados”
para a subjetividade normativa é particularmente útil para
entendermos como a coreografia cria seu processo de subje-
tivação. A coreografia demanda uma aquiescência às vozes e
comandos dos mestres (vivos e mortos), uma submissão do
corpo e do desejo a regimes disciplinares (anatômicos, die-
téticos, de gênero e de raça), tudo pelo cumprimento perfei-
to de um conjunto transcendental e preordenado de passos,

34
posturas e gestos que todavia devem parecer “espontâneos”.
Quando Althusser escreve que o indivíduo deverá submeter-
-se “livremente às ordens do Sujeito, portanto, para que aceite
(livremente) seu submetimento e, portanto, para que ‘cumpra
por si mesmo’ os gestos e atos de seu submetimento” (2008:
291-292), isto evoca precisamente o mecanismo fundamental
estabelecido pela coreografia para seu sucesso representacional
e reprodutivo.
Mas há ainda outro aspecto do modelo de Althusser que
é de suma importância para a minha análise. Em Excitable
Speech, Judith Butler recupera a noção de interpelação em Al-
thusser de modo a demonstrar como a subjetividade é con-
tinuamente constituída por uma dialética de resistência e
sujeição que é o próprio “mecanismo dos discursos cuja efi-
ciência é irredutível ao momento de sua enunciação” (Butler,
1997b: 32). As noções de chamado e de interpelação como
mecanismos discursivos serão particularmente úteis no Capí-
tulo 5, quando eu discuto as estratégias cinéticas de William
Pope.L ao pôr-se em movimento no traiçoeiro terreno, racista
e neoimperial, da contemporaneidade – um terreno onde pro-
ferimentos injuriosos derrubam corpos ao chão e dão forma a
gestos, posturas e movimentos.
Agora gostaria de voltar à questão da modernidade. Harvie
Ferguson afirma que a “modernidade é a nova forma da subje-
tividade” (Ferguson, 2000: 5). Dado que para Ferguson, como
vimos, o emblema da modernidade é o movimento, segue-se
que a modernidade interpela seus sujeitos a se constituírem
como espetáculos emblemáticos de seu ser: motilidade. A
subjetividade da modernidade é seu movimento, ela cria seus
sujeitos interpelando corpos a constantemente exibirem-se
em movimento, a assumirem a agitação ontológica que Peter
Sloterdijk identifica como o “excedente cinético” da moderni-
dade (2002: 29). É de dentro deste imperativo ontopolítico
esmagador de movimentar-se que as subjetividades criam suas

35
rotas de fuga (seus devires) e negociam seu auto-aprisiona-
mento (suas sujeições).
Se a modernidade é uma nova forma de subjetividade, qual
seria seu escopo histórico? Podemos usar o termo “moderni-
dade” para tratar da contemporaneidade? Aqui, não há con-
senso. Frederic Jameson escreveu sobre as “dinâmicas políticas
da palavra modernidade, a qual tem sido reavivada por todo o
mundo” e associou essa dinâmica e seu ressurgimento recente
à morte (para ele desconcertante) da pós-modernidade (Ja-
meson, 2002: 10). Jameson enxerga vários tipos de regressão
acontecendo com o ressurgimento da palavra modernidade.
Para ele, a morte da pós-modernidade e o retorno da moder-
nidade como conceito indica um retorno indesejável da filoso-
fia, da estética e do “falocentrismo” do modernismo no discur-
so crítico (2002: 9-17).9 Quanto à identificação da época da
modernidade, Jameson afirma que “o único sentido semântico
satisfatório da modernidade repousa em sua associação com o
capitalismo” (2002: 11). Portanto, de acordo com Jameson,
podemos falar em modernidade apenas quando duas condi-
ções são cumpridas: a emergência da crítica do Iluminismo
em Kant e o estabelecimento dos modos de produção do ca-
pitalismo industrial (2002: 99). A opinião de Jameson é pró-
xima a de Foucault e de Habermas, para quem a formação das
condições políticas, epistêmicas e afetivas que prevalecem na
contemporaneidade podem ser localizadas no século XVIII,
particularmente na filosofia de Kant.
Entretanto, outra forma de temporalizarmos a modernida-
de seria seguir as pistas de Ferguson e considerar que a moder-
nidade é de fato “uma forma de subjetividade”. A periodização
da modernidade dependeria assim não de identificarmos um
período ou geografia particular, mas processos de subjetivação
que produzem e reproduzem esta forma particular. O histo-

9.  Jameson exagera levemente sua argumentação quando identifica Deleuze como “um
modernista quintessencial” (2002: 4).

36
riador cultural Louis Dupré identifica uma forma moderna de
subjetividade claramente tomando lugar por volta do século
XVII e se prologando até o nosso (Dupré, 1993: 3, 7). O en-
tendimento temporal da modernidade que eu emprego neste
livro alinha-se com o de Dupré, mas também com aqueles
dispostos por Francis Barker (1995), Teresa Brennan (2000),
Gerard Delanty (2000), Harvie Ferguson (2000) e Peter Slo-
terdijk (2002). Estes autores identificam a fundação da moder-
nidade na subjetivação implementada pela divisão cartesiana
entre res cogita e res extensa. Mesmo Jameson, em sua dura crí-
tica do ressurgimento da palavra modernidade, afirma que “é
apenas por meio desta recém-assegurada certeza [exposta pelo
método de Descartes] que uma nova concepção de verdade
como justeza pode emergir historicamente; ou, em outras pa-
lavras, que algo tal como a ‘modernidade’ pode aparecer” (Ja-
meson, 2002: 47). Aqui, Jameson está explicando a crítica de
Heidegger à representação (Vorstellung) em relação à filosofia
de Descartes e defendendo que a crítica de Heidegger ilumina
a modernidade como um modo de “subjetivação” (2002: 47).
Jameson admite que tal entendimento da modernidade como
subjetivação “é provavelmente preferível às numerosas e fanta-
siosas histórias do enfadonho humanismo” (2002: 49).
O que caracteriza este modo ou forma de subjetivação? Pri-
meiro e mais importante: ele isola a subjetividade dentro de
uma experiência de corte com o mundo externo. Na moder-
nidade, a subjetividade está capturada dentro de uma expe-
riência solipsista do “ego como sujeito final para e da repre-
sentação” (Courtine, 1991: 79) que considera “o corpo como
existindo independentemente e governado por leis imanentes”
(Ferguson, 2000: 7). Brennan é particularmente insistente em
chamar atenção para a centralidade desse sujeito que experien-
cia seu ser como totalmente independente e ontologicamente
separado do mundo como constitutivo do processo moderno
de subjetivação. Ela identifica no sujeito monádico autossu-
ficiente o trabalho psíquico de uma “fantasia fundamental”

37
particularmente alienante (Brennan, 2000: 36).10 Esta fantasia
deve reproduzir a si mesma a todo custo, de modo a manter
no lugar a pilhagem afetiva e ecológica que sustenta os modos
de produção desencadeados pelo capitalismo inicial e exacer-
bados a um paroxismo em nossa contemporaneidade neoim-
perial. Ela diz:

Podemos debater se o nascimento da consciência interior


marca a modernidade, o que seria difícil de sustentar da-
das as evidentes exceções a ela. Eu diria que uma medi-
da mais justa seria a invariável negação, no Ocidente, da
transmissão dos afetos que vemos efetuada desde o século
XVII até hoje. (Brennan, 2000: 10)

Para a subjetividade moderna, o desafio ético, afetivo e po-


lítico é achar modos sustentáveis de relacionalidade. Como
pode um suposto ser independente estabelecer uma relação
com as coisas, com o mundo, com o outro, e ainda manter-se
como um bom avatar do “emblema” da modernidade: o mo-
vimento? A inclusão do cinético na questão ético-política da
subjetividade moderna nos leva de volta ao problema de como
dançar contra as fantasias hegemônicas da modernidade, uma
vez que estas fantasias são ligadas ao imperativo de exibir cons-
tantemente a mobilidade.
É por isso que a análise de coreografias e performances que
tratam diretamente da impossibilidade de sustentar o “fluxo
ou continuidade de movimento” são de interesse teórico e po-
lítico. Se levarmos em conta o que Randy Martin chamou de
“estudos críticos da dança”, então a proposição desenvolvida
em seu livro Critical Moves – a necessidade de reexaminarmos

10.  “É uma fantasia que confere certos atributos ao sujeito e que desapossa o resto deles
como – e por – um processo que faz do outro, um objeto, um entorno (como Heidegger
diria), um pano de fundo ausente contra o qual ele se faz presente. É uma fantasia que
confia num divórcio entre configuração mental e ação corporal para sustentar sua negação
onipotente. Nesta fantasia, o sujeito deve também negar sua história, já que essa história
revela sua dependência numa origem materna” (Brennan, 2000: 36).

38
a noção de “mobilização” como “um conceito que faz a me-
diação entre dança e política” – é particularmente relevante
para nossa discussão. De fato, para Martin, mobilização é um
conceito chave que os estudos da dança precisam investigar
e aprofundar, desde que o objetivo seja sair de sua estranha
paralisia política.11 A formação de uma prática e de uma teo-
ria política calcada na primazia do movimento deve partir da
sugestão de Martin de que “a relação da dança com a teoria
política não pode ser proveitosamente tomada como mera-
mente analógica ou metafórica” (1998: 6). Assim, considerar
as relações entre dança e política como literais e metonímicas
(em oposição a analógicas e metafóricas) vira requisito funda-
mental para a teoria crítica e política tratar as dinâmicas core-
ográficas das mudanças e dos movimentos sociais, a despeito
destes movimentos e mudanças manifestarem-se num palco
ou nas ruas. Martin aponta que

as teorias da política são cheias de ideias, mas ela têm sido


menos exitosas em articular como o trabalho concreto da
participação necessário para executar tais ideias é acumu-
lado através do movimento dos corpos no tempo e no
espaço sociais. A política não vai a lugar algum sem o mo-
vimento. (Martin, 1998: 3)

Poderíamos ler o projeto de Martin não apenas como uma


atualização crítico-cinética das famosas onze teses de Marx
sobre Feuerbach,12 mas também como uma provocante afir-
mação de que a percepção e a prática da dança vista pela lente
do pensamento político poderia realmente possibilitar a mo-
bilização não apenas de teorias, mas também de corpos que de
outro modo permaneceriam politicamente passivos. A palavra
11.  “Grande parte da crítica e pesquisa sobre dança contemporânea ainda é propensa a
acreditar [...] que olhar para a dança politicamente pode de alguma forma interferir na
sua eficácia” (Martin, 1998: 14).
12.  “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo, de várias formas; a questão é mudá-lo”
(Marx e Engels, 1969: 15).

39
“participação” na teoria de Martin é importante pois contém
em si uma crítica da representação. Para Martin, mobilização
já é participação, um mover-se-em-direção-ao-mundo, naque-
le sentido de que a methexis propõe um encontro participativo
que desafia as forças de distanciamento da mimesis. De fato, a
argumentação de Martin apoia-se numa política progressista
entendida como “aquelas forças mobilizadoras contra a fixidez
do que é dominante na ordem social” (1998: 10).
A observação de Martin repete uma noção geralmente in-
contestada que associa a força do movimento com uma dinâ-
mica politicamente positiva. Pensemos por exemplo em Gilles
Deleuze, quando ele define duas posições políticas básicas: “es-
posar o movimento ou então brecá-lo” (Deleuze, 1992: 158).
Deleuze associava à última uma força reacionária. Pensemos
também nas noções de devir em Deleuze e Guattari, como
forças e poderes amalgamando-se num plano de consistência
definido como plano de imanência onde intensidades circu-
lam desbloqueadas, bem como do Corpo sem Órgãos – lem-
bremos como para Deleuze e Guattari o Corpo sem Órgãos
pode lograr êxito ou não, o último sendo definido sempre pela
obstrução das intensidades.
Seja em Randy Martin, Deleuze ou Guattari, o movimen-
to é aparentemente associado de forma positiva como aquilo
que sempre utilizará sua força na direção de uma política do
progresso, ou pelo menos na direção de uma formação críti-
ca que poderia ser considerada progressista. Podemos pensar
em muitos outros exemplos similares desta mesma associa-
ção. Mas diante do que expus sobre a condição da moder-
nidade ser sua emblemática motilidade, a questão se torna
não a de descobrir onde “a fixidez do que é dominante” pode
estar. A questão é saber se e como o dominante se move. E,
mais além, saber quando, o quê e quem é que o dominante
obriga a se mover.

40
É aqui que a “crítica da cinética política” proposta por
Peter Sloterdijk em seu livro Eurotaoismus13 se torna particu-
larmente relevante. Sloterdijk defende que a única maneira
de calcular plenamente a ontologia política da modernidade
é examinando criticamente o que ele chama de “motivo ci-
nético e cinestético da modernidade” (Sloterdijk, 2002: 31).
Sloterdijk postula que “a modernidade é, ontologicamente,
puro ser-para-o-movimento” (2002: 33). Logo, “um discur-
so filosófico da modernidade não é possível salvo como uma
teoria crítica da mobilização” (2000b: 126). Aqui, podemos
quase ler as palavras de Randy Martin em Critical Moves nas
proposições de Sloterdijk, já que para ambos é o ser cinético
da modernidade que vem sendo profundamente negligencia-
do pela teoria crítica. Mas as ideias de Sloterdijk poderiam
também ser lidas como advertência que discorda e ao mesmo
tempo dá suporte e suplementa a compreensão de Martin. Ao
contrário de Martin, Sloterdijk defende que a teoria crítica e
a política progressista devem levar em conta que não há nada
fixo na ordem dominante ou hegemônica. A rigor, para Sloter-
dijk, é precisamente o impulso cinético da modernidade articu-
lado como mobilização o que revela o processo de subjetiva-
ção na contemporaneidade como uma materialização parva da
subjetividade associada a performances cinéticas amplamente
difundidas de eficácia, eficiência e efetividade tayloristas (para
usar os termos de Jon Mackenzie [2000]). Para Sloterdijk, a
falta de uma teoria crítica do impulso cinético na modernida-
de é uma falha central na teoria marxista, a qual teoricamente
negligenciou ocupar-se de uma crítica do cinético devido a
sua entusiástica aceitação da industrialização plena. Embora
as proposições de Randy Martin pareçam ter sido articuladas
sem o conhecimento da filosofia política de Sloterdijk, e apesar

13  Eutotaoismus: Zur Kritik der politischen Kinetik (1989) é o título do original em alemão
do livro A Mobilização Infinita, o qual vem sendo citado até aqui. Em nota, o editor da
publicação francesa (originalmente utilizada por Lepecki) informa que o título mudou
para La Mobilisation infinie a pedido de Sloterdijk. Ver Sloterdijk (2000b). (N.T.)

41
de em alguns momentos ele possa estar em direta discordância
com algumas leituras de Sloterdijk sobre Marx, a crítica da
modernidade como “excesso cinético” proposta pelo filósofo
alemão complementa as noções de Martin sobre os diferentes
usos que podemos fazer da mobilização em processos e pensa-
mentos políticos. Se Sloterdijk é muito mais crítico da teoria
marxista do que Martin provavelmente permitiria, ambos es-
tão entretanto procurando articular “se é possível imaginar a
política de dentro da mobilização” (Martin, 1998: 12). Sloter-
dijk, assim como Martin, também busca possibilidades de se
contrariar diretrizes hegemônicas ao pensar a partir da mobi-
lização, ainda que aponte para as contradições que este termo
arrasta consigo. Penso que Martin concordaria com Sloterdijk
quando este afirma que:

As duas versões de teoria crítica até agora conhecidas (há


que pensar, sobretudo, nas escolas marxista e de Frankfurt)
ainda permanecem sem sentido, porque ou não apreendem
o seu objeto – a realidade cinética da Modernidade enquanto
mobilização – ou não podem apresentar uma diferença crí-
tica em relação a esta, já que elas próprias são, pelo seu efei-
to, mobilizadoras. (Sloterdijk, 2002: 27, grifo no original)

A filosofia de Sloterdijk delineia uma crítica da mobiliza-


ção ao tratar da “política cinestésica” da modernidade como um
exausto e exaustivo projeto ontopolítico do “ser-para-o-movi-
mento” (2002: 33). O que os trabalhos de Sloterdijk e Martin
evidenciam é que chegamos num momento da teoria crítica e
dos estudos críticos da dança de onde o problema político da
modernidade contemporânea, do capitalismo e da ação são dis-
postos como pertencendo essencialmente ao domínio da onto-
logia coreográfica da modernidade. Este é um desdobramento
importante não só para a teoria crítica, mas também para as
possíveis intervenções teóricas que os estudos da dança porven-
tura venham a empreender na análise das subjetividades.

42
Em resumo, a modernidade é entendida neste livro como
um longo projeto duracional que produz e reproduz, metafísi-
ca e historicamente, um enquadramento psicofilosófico (Phe-
lan, 1993: 5) em que o sujeito privilegiado do discurso é sem-
pre do gênero masculino, heteronormativo, da raça branca, e
cuja experiência da verdade é – e emerge de – uma pulsão in-
cessante pelo movimento autônomo, automotivado, infinito e
espetacular. Mas como pode um corpo mover-se de modo tão
espetacular, tão eficiente e tão autossuficiente? Que chão é esse
sobre o qual o sujeito cinético se movimenta aparentemente
tão sem esforço, sempre tão energizado e livre de tropeços? É
aqui que a inescapável fantasia topográfica da modernidade
informa sua formação coreográfica: pois a modernidade sem-
pre imagina sua topografia abstraindo o fato de que seu assen-
tamento deu-se numa terra previamente ocupada por outros
corpos humanos e outras formas de vida, habitada por ou-
tras dinâmicas, gestos, passos e temporalidades. Como expli-
ca Bhabha, “para a emergência da modernidade – como uma
ideologia do começo, a modernidade como o novo – o molde
desse ‘não-lugar’ se torna o espaço colonial (2003: 339). Fun-
damental para nossa discussão aqui é o fato de que o chão da
modernidade é o terreno colonizado, alisado e terraplanado
onde a fantasia da infinita e autossuficiente motilidade ocorre.
Já que a rigor não existe um sistema vivo autossuficiente, en-
tão toda mobilização e toda subjetividade que se acha um to-
tal “ser-para-o-movimento” deve retirar sua energia de algum
lugar. A fantasia do sujeito cinético moderno é que a encena-
ção da modernidade como movimento acontece na inocência.
O espetáculo cinético da modernidade apaga da imagem do
movimento todas as catástrofes ecológicas, tragédias pessoais e
fraturas coletivas provocadas pela pilhagem colonial de recur-
sos naturais, corpos e subjetividades que sustentam a realidade
“mais real” da modernidade no seu lugar: o seu ser cinético.
Já que toda criação social e política hoje ocorre já circunscrita
pelo colonialismo e suas metamorfoses, eu tomo a teoria pós-

43
-colonial e a crítica da raça como parceiros fundamentais na
observação de como algumas peças de dança contemporânea e
de performance provocam o colonialismo e suas aparições. Eu
exploro a força colonialista da modernidade e seu impacto nas
práticas coreográficas contemporâneas nos capítulos 3, 4 e 6,
quando discuto trabalhos de Trisha Brown, La Ribot, William
Pope.L e Vera Mantero, e invoco as teorias críticas de Homi
Bhabha, Henri Lefebvre, Frantz Fanon, Paul Carter, Anne An-
lin Cheng, José Muñoz e Avery Gordon.
Uma ultima observação epistemológica feita por Bhabha,
ao identificar a condição colonial como a condição da moder-
nidade, é que o projeto colonial não só inaugura uma cegueira
espacial (a percepção de que todo espaço é um “espaço vazio”),
mas introduz também uma temporalidade fantástica da qual o
conceito de pós-modernidade participa. Minha relutância em
usar esse termo tão central para os estudos da dança deriva não
só do debate inconclusivo no final dos anos 1980 entre Susan
Manning e Sally Banes sobre o que constitui a “dança pós-
-moderna”,14 publicado no The Drama Review, mas também
da profunda compreensão de Bhabha quando ele escreve que
“o projeto da modernidade se revela ele próprio tão contra-
ditório e irresolvido através da inserção do ‘entre-tempo’, no
qual os momentos colonial e pós-colonial emergem como sig-
no e história, que vejo com ceticismo aquelas transições para a
pós-modernidade” que “os escritos acadêmicos do Ocidente”
teorizam” (Bhabha, 2003: 329). Por todo este livro, meu uso
da palavra “modernidade” resulta do mesmo ceticismo, apon-
tado pela teoria pós-colonial e reforçado pela recente hipervi-
sibilidade da velha brutalidade imperialista e colonialista que
habilmente agencia corpos e mobiliza a morte. O insight de
Bhabha reenquadra a descrição de Habermas da modernidade
como um “projeto incompleto” (Habermas, 1998) – enquan-

14.  Ver Banes (1989), Manning (1988). Ver também Siegel (1992).

44
to a condição colonial existir (não importa sob qual aparência)
não teremos chegado ao fim da modernidade.
Durante o intervalo de tempo em que Sloterdijk (em
1989) e Martin (em 1998) estavam cada qual a sua maneira
chamando atenção da teoria crítica para as formações ciné-
tico-políticas das modernidade contemporânea, alguns dan-
çarinos e coreógrafos experimentais na Europa e nos EUA
estavam reorganizando a relação da dança com sua própria
política e ética do movimento. Os dançarinos desafiavam a
própria ontologia política da dança através da performance
do não-movimento, da prática daquilo que Gaston Bache-
lard chamou de “ontologia mais lenta” (Bachelard, 1978:
337). Como ficará claro nos trabalhos discutidos ao longo
deste livro, a inserção de corpos parados na dança e o uso
de várias formas de desacelerar o movimento e o tempo são
proposições particularmente fortes para repensarmos a ação
e a motilidade através de atos-parados, em oposição ao mo-
vimento contínuo.15
O “ato-parado” é um conceito proposto pela antropóloga
Nadia Seremetakis para descrever os momentos em que o su-
jeito interrompe o fluxo histórico e pratica uma interrogação
histórica. Assim, ainda que o ato-parado não acarrete rigidez
ou morbidez, ele demanda uma performance de suspensão,
uma interrupção corporalmente assentada dos modos de im-
posição dos fluxos. A paragem age porque ela interroga eco-
nomias do tempo, porque revela a possibilidade de agência
mesmo dentro dos regimes autoritários do capital, da subjeti-
vidade, do trabalho e da motilidade. “Contra o fluxo do pre-
sente”, escreve Seremetakis,

há um estar-parado na cultura material do que é histórico:


aquelas coisas, espaços, gestos e anedotas que mediam a
capacidade perceptual para uma criação histórica elemen-

15.  Eu discuto a “ontologia mais lenta” de Bachelard no Capítulo 3.

45
tar. O estar-parado é o instante em que aquilo que está
enterrado, descartado e esquecido sobe para a superfície
social da percepção como oxigênio vital. É o escapar da
poeira histórica (1994: 12).

Escapar da poeira histórica é recusar a sedimentação da his-


tória em camadas muito nítidas e organizadas. O ato-parado
revela como a poeira da história na modernidade pode ser agi-
tada, borrando as divisões artificiais entre o sensorial e o social,
o somático e mnemônico, o linguístico e o corporal, o móvel e
o imóvel. A poeira histórica não é simplesmente uma metáfora.
Tomada literalmente, ela demonstra como as forças históricas
penetram profundamente nas camadas internas do corpo: a po-
eira sedimenta o corpo, opera enrijecendo as rotações suaves dos
ligamentos e articulações, fixando o sujeito dentro de trilhas e
passos altamente prescritos, colando o movimento a certas polí-
ticas do tempo e do lugar. A coreografia contemporânea, através
do paradoxal ato-parado, mapeia as tensões no sujeito, isto é, as
tensões na subjetividade sob a força da sedimentação histórica e
empoeirada do corpo. Contra a brutalidade da poeira histórica
que literalmente recai sobre os corpos, o ato-parado reorganiza
a posição do sujeito em relação ao movimento e a passagem do
tempo. Como atesta Bhabha, “a função do lapso é desacelerar o
tempo linear, progressivo, da modernidade para revelar seu ‘ges-
to’, seus tempi, ‘as pausas e marcações de toda a performance’”
(Bhabha, 2003: 350). Meu primeiro encontro com a exaustão
cinética da dança em ato-parado, como resposta em suspensão
a eventos políticos prementes, foi no outono de 1992, quando
uma série de atos-parados foram apresentados por um grupo
imensamente diverso de coreógrafos, músicos, críticos e artistas
reunidos da Cité Universitaire em Paris, durante um laborató-
rio coreográfico que levou o nome de SKITE, com duração de
um mês e curadoria do programador e crítico de dança francês
Jean-Marc Adolphe. A introdução do ato-parado tinha tudo a
ver com as violentas performances do colonialismo e do racis-

46
mo. Era logo após a primeira guerra do Golfo. A guerra civil na
Bósnia e Herzegovina estava no auge. Os motins de Los Angeles
haviam estourado há pouco. No SKITE, tanto a coreógrafa por-
tuguesa Vera Mantero quanto o coreógrafo espanhol Santiago
Sempere declararam que os eventos políticos no mundo eram
tantos e tão intensos que eles não podiam dançar. A coreógrafa
norte-americana Meg Stuart compôs uma dança parada para
um homem deitado no chão, procurando alcançar cuidadosa-
mente suas memórias passadas.16 O coreógrafo australiano Paul
Gazzola deitou, silenciosamente, à noite, nu, num improvável
abrigo ao largo de uma autoestrada. Eu vejo esse momento du-
rante o SKITE como um no qual as forças sedimentárias da
poeira histórica foram reconhecidas pelos coreógrafos através de
suas elaborações da própria noção de dança: não só da posição
da dança em relação à política, mas do papel ontológico e políti-
co do movimento na formação destes perturbadores eventos. E
a manifestação coreográfica aconteceu por meio do ato-parado.
Naquele momento, eu senti que as peças tinham uma qualidade
espontânea, afinal não havia ocorrido qualquer discussão para
que se criassem trabalhos baseados na dramaturgia do parado.
Mas a sucessão de atos-parados parecia sugerir uma crise súbita
da imagem da presença do dançarino (no palco e no mundo)
como um serviçal do movimento. O ato-parado, a exaustão da
dança, abria a possibilidade de pensar a autocrítica da dança
experimental contemporânea como uma crítica ontológica e,
mais além, como uma crítica da ontologia política da dança.
A abolição do alinhamento até então inquestionável da dança
com o movimento iniciada pelo ato-parado reconfigura a par-
ticipação do dançarino no projeto de mobilidade moderno: ela
inicia uma crítica performativa de sua participação na economia
geral da mobilidade que informa, reproduz e dá suporte às for-
mações ideológicas da modernidade capitalista tardia.

16.  O homem em questão é o crítico e programador francês Jean-Marc Adolphe.

47
Os capítulos a seguir podem ser lidos em qualquer ordem,
mas eu devo delinear a progressão temática principal entre
eles. Cada capítulo investiga um elemento particular que eu
creio ser importante para uma crítica da participação da core-
ografia na ontologia política da modernidade.
No próximo capítulo, eu discuto alguns elementos e forças
não cinéticas que são intrínsecas à coreografia e que têm perse-
guido suas condições de possibilidade tão fortemente quanto
o próprio desejo de se mover. Estes elementos e forças são: a
voz do mestre morto, a relação entre coreografia e o que Jac-
ques Derrida chamou de “força ilocucionária ou perlocutória”
no cerne da lei (Derrida, 2010: 11), a natureza solipsista do
estúdio de dança e o desejo homossocial masculino no co-
ração do coreográfico. Eu identifico estas forças numa série
de filmes criados pelo artista visual Bruce Nauman no final
dos anos 1960, nos quais ele aparece sozinho em seu estúdio
vazio rigorosamente executando passos predefinidos. Minha
leitura desses filmes considera a força de assombração [haun-
ting] do coreográfico, uma força que elimina o tempo linear
e que sempre irrompe quando certas condições de subjetiva-
ção são cumpridas. Daí eu analiso duas obras dos coreógrafos
contemporâneos europeus Juan Dominguez e Xavier Le Roy
nas quais o solipsismo e a masculinidade são ativados numa
crítica do coreográfico que reimagina o corpo masculino do
dançarino em relação à linguagem (Juan Dominguez) e em
seu investimento nos devires (Le Roy).
O capítulo 3 expande algumas noções exploradas no capí-
tulo 2 através da análise de várias peças do coreógrafo francês
Jérôme Bel, nas quais pesa sobretudo o uso da repetição, da
imobilidade e da linguagem. Eu proponho que a materialida-
de linguística do corpo proposta por Bel, uma vez associada
à deflação de movimento que é também emblemática de seu
trabalho, permite a identificação de efeitos paronomásticos
que reinauguram a relação da coreografia com a temporali-
dade, aproximando assim o trabalho de Bel às filosofias de

48
Heidegger e Derrida. Eu sugiro também que o trabalho de Bel
opera temporalmente de acordo com o que Gaston Bachelard
chamou de uma “ontologia lenta”, a qual desconfia da estabili-
dade das formas, recusa uma estética da geometria e, no lugar,
privilegia uma aproximação aos fenômenos como campos de
força e sistemas de intensidade.
Minha leitura do trabalho de Bel introduz um enquadra-
mento teórico para a crítica da representação que eu adoto no
capítulo 4, quando passo a focar em duas peças de duas core-
ógrafas bastante diferentes: a norte-americana Trisha Brown
e a espanhola La Ribot. Aqui, tenho interesse em investigar
como cada uma delas engaja-se num diálogo direto com as ar-
tes visuais de modo a reconfigurar aquilo que consiste o chão
ou fundamento da dança. Eu observo como a obra It’s a Draw/
Live Feed de Brown articula uma crítica da verticalidade a par-
tir da crítica à pulsão masculinista na pintura de Pollock. Eu
invoco as leituras de Rosalind Krauss da noção do informe em
Georges Bataille e a revelação de Henri Lefebvre sobre a “erec-
tilidade” que se articula na formação arquitetônica de “espaços
abstratos”, considerando assim como Brown cria seu espaço
ao confundir relações normativas e disciplinares entre dança
e desenho. Minha leitura da performance de longa duração
Panoramix de La Ribot introduz o oblíquo como espaço de
provocação dismórfica diante do favorecimento arquitetônico
do vertical. O trabalho de La Ribot, entretanto, acrescenta a
questão fenomenológica do peso do olhar, a qual suplementa
o apego à perspectiva que Brown mantém em sua performan-
ce de It’s a Draw/Live Feed.
Já que a subjetividade moderna propõe um “ser-para-o-
-movimento” vagando por campos colonizados e racializados,
qualquer crítica da ontologia política da dança invariavelmen-
te implica uma crítica de como mover num solo devastado
por injúrias racistas e pilhagens colonialistas. No capítulo 5,
eu constato o tropeço como termo mediador entre a política e
a cinética ao fazer uma leitura de Frantz Fanon no seu famoso

49
capítulo L’expérience vécue du Noir (1967) e relacionando-o às
práticas paracoreográficas do artista de performance William
Pope.L. Sugiro que as rastejadas de Pope.L revelam uma imen-
sa força coreopolítica quando colocados em relação com aqui-
lo que Paul Carter chamou “uma política do chão” (Carter,
1996). E sustento que tal política do chão reconfigura a crítica
da ontologia em Fanon. Eu proponho o esforço sobre o plano
sagital na performance de Pope.L como um abrandamento do
cinético que diretamente responde e profundamente interpela
o neocolonial que nos rodeia e nos atravessa.
Observar os modos como o colonialismo e a coreografia –
estas facetas do ser-para-o-movimento cinético moderno – de-
pendem de uma determinada política do chão revela aqueles
movimentos desencadeados pelos “corpos mal enterrados da
história”, os corpos que Avery Gordon acredita assombrarem
[haunt] a epistemologia, como forças éticas e críticas muito
poderosas (Gordon, 1997). No capítulo 6, eu me detenho no
solo uma misteriosa Coisa disse e.e. cummings, de Vera Mante-
ro, de modo a repensar a melancolia pós-colonial. Dou ênfa-
se especial à ética da lembrança e do esquecimento, na rela-
ção com os estudos críticos de raça (particularmente em José
Muñoz) e com o projeto ontológico da coreografia. Ao focar
as particularidades de um solo criado na última nação euro-
peia abertamente imperial, Portugal, eu procuro mostrar a
centralidade do Outro racializado como fonte de energia para
a mobilidade coreográfica em geral. O livro conclui com uma
breve nota, onde trato do “projeto da melancolia” na moder-
nidade (Agamben, 1993) de modo a mapear o impacto deste
projeto nas recentes concepções ontológicas da coreografia nos
estudos da dança e da performance, e onde eu proponho uma
modalidade alternativa de tempo e um tipo diferente de afeto
para estas duas disciplinas.

50
I
MASCULINIDADE,
SOLIPSISMO, COREOGRAFIA
BRUCE NAUMAN, JUAN DOMINGUEZ,
XAVIER LE ROY

Se desejarmos entender e descrever corretamente


essa performance e sua temporalidade em parti-
cular precisamos largar mão completamente da
terminologia da causalidade, memória e expecta-
tiva, e representação (Carr, 1986: 36).

O lugar da dança circula através do tempo, as-


sombrando tanto o real como o imaginário (Lou-
ppe, 1994: 13).

Sofrer assombração é estar preso aos efeitos his-


tóricos e sociais (Gordon, 1997: 190).

Assombrando17 o lugar temporalmente circulatório da


dança e desafiando as lógicas da representação e do princípio

17.  Em inglês: haunting, verbo que denota as ações de um fantasma no mundo dos vivos
(perseguir, assombrar, possuir, obsidiar etc.). O uso do conceito de “haunting” na teo-
ria crítica anglo-saxã é muito difundido e sua força é particularmente importante neste
livro. Mas trata-se de um uso (e de um termo) particularmente difícil de traduzir. Jac-
ques Derrida (1994), em Espectros de Marx, inventa o conceito de hauntology [hantologie],
um neologismo unindo “haunting” e “ontology”, que se refere à indecidibilidade do ser
como uma disjunção temporal, histórica e ontológica na qual a presença é continuamente
substituída por sua não-origem ausente; de fato, o ser como um fantasma: nem presente
nem ausente, nem corpo nem alma, nem dentro nem fora, nem presente nem passado,
de causalidade, move-se uma subjetividade particular, a qual
é ontohistoricamente fundamental à coreografia ocidental:
o macho dançarino solitário. Este capítulo cruza os tempos
históricos da dança para examinar os ecos contemporâneos
do surgimento da coreografia ocidental – desde o manual de
dança Orchesographie (1589) de Thoinot-Arbeau – como uma
máquina de subjetivação do começo da era moderna em que o
solipsismo masculino é um elemento essencial. Logo, todas as
peças analisadas neste capítulo trazem homens movimentan-
do-se solitários em espaços explicitamente fechados e vazios
– quartos fechados, estúdios fechados, cômodos fechados, vá-
cuos sombrios onde a solidão assombrada [haunted solitude], a
absorção da vontade e a precisão na execução juntam-se para
criar o que só podemos descrever como excesso solipsista. É o
caso dos experimentos paracoreográficos de Bruce Nauman do
final dos anos 1960, particularmente Walking in an Exaggera-
ted Manner Around the Perimeter of a Square [Andar de Modo
Exagerado Ao Redor do Perímetro de um Quadrado] (1967-
8),18 Dance or Exercise on the Perimeter of a Square [Dança
ou Exercício no Perímetro de um Quadrado] (1967-8),19 e o
lindamente pueril exercício antigravitacional Revolving Upside

nem vivo nem morto. No livro de Derrida, a força da espectralidade vem tanto de Marx
e Engels (quando estes afirmam no Manifesto do Partido Comunista que um “espectro
ronda [hante] a Europa – o espectro do comunismo”), quanto do Hamlet de Shakespeare
(o qual, assombrado pelo fantasma do pai, apreende com certa clareza a “disjunção do
tempo” ao asseverar: “Time is out of joint”). Derrida recupera a ideia da disjunção do
tempo e da história em Hamlet e a força do espectral em Marx e Engels para referir-se
justo à heterogeneidade da presença e do presente, ambos habitados e assombrados por
múltiplas temporalidades, uma ideia fundamental para assimilarmos o modo como Le-
pecki conceitua “coreografia” aqui, bem como sua compreensão do próprio “dançarino”,
sempre possuído e animado por espectros de dançarinos ausentes. A tradução de haunting
na edição brasileira de Espectros de Marx é “obsessão” na forma substantiva e “obsidiar”
na forma verbal. Em Exaurir a Dança, entretanto, decidimos usar “assombração” e “as-
sombrar”, que além de traduzirem o verbo hanter (francês) e haunt (inglês), acreditamos
evocar a performatividade e o afeto do espectral de modo mais objetivo do que “obsessão”
ou “obsidiar”. (N.T.)
18.  Filme, 16 mm, preto e branco, silencioso, 400 pés, aproximadamente 10 minutos.
19.  Filme, 16 mm, preto e branco, som, 400 pés, aproximadamente 10 minutos.

52
Down [Girar de Cabeça para Baixo] (1969).20 Igual é o caso
do absolutamente autocentrado e textual AGSAMA (2003),
de Juan Dominguez, e do divertido Self Unfinished [Eu Ina-
cabado] (1999) de Xavier Le Roy. Minha leitura destes traba-
lhos rastreia como os efeitos históricos, sociais e ontológicos
da coreografia assombram [haunt] a (e são assombrados pela)
masculinidade solipsista.
O solipsismo na coreografia reflete sua condição dúbia na
filosofia. Para pensar a ambiguidade filosófica do solipsismo,
concentro-me particularmente nos breves comentários sobre
o tema no Tractatus Logico-Philosophicus de Ludwig Witt-
genstein (proposições 5.6 a 5.6331, Wittgenstein, 1968), nos
quais o filósofo austríaco identifica o solipsismo no centro da
relação do sujeito metafísico com a experiência, revelando
inesperadamente o solipsismo para o mundo. As proposições
de Wittgenstein no Tractatus nos possibilitam pensar que é
precisamente no ponto crítico em que o solipsismo vincula a
subjetividade à lógica da linguagem, que o coreográfico – isto
é, a tecnologia que liga o moderno “ser-para-o-movimento” à
escrita – decididamente alinha-se com a filosofia para simulta-
neamente gerar e criticar a masculinidade solitária.
Estas observações preliminares exigem uma fundamenta-
ção mais clara. Começo por destacar os experimentos paraco-
reográficos do artista visual Bruce Nauman nos seus filmes em
vídeo e 16mm. Ao completar sua pós-graduação em pintura e
escultura na Universidade da Califórnia em Davis, em 1966,
Nauman começa a criar fotografias, esculturas e filmes toman-
do o próprio corpo como elemento central. A crítica de arte
Coosje van Bruggen define 1966 e 1967 como o período em
que “Nauman começa a desenvolver uma forte consciência
corporal” em seu trabalho (van Bruggen In: Morgan, 2002:
43). A “consciência corporal” de Nauman gerou três séries
de trabalhos significativamente divergentes, embora comple-

20.  Vídeo, preto e branco, silencioso, 8 minutos.

53
mentares: moldes corporais (o belo From Hand to Mouth [Da
Mão à Boca], 1967); estruturas ocupadas pelo corpo móvel
do espectador (o inquietante Performance Corridor [Corredor
da Performance], 1969); e um intrigante uso, mais elusivo e
performativo, do seu próprio “corpo como critério para medir
seus arredores” (Bruggen In: Morgan, 2002: 43). Desta tercei-
ra série, algumas performances foram executadas em galerias
(como Performance (Slightly Crouched) [Performance (Leve-
mente Agachado)], 1968) enquanto outras foram gravadas em
vídeo e filme. Meu interesse é nestas últimas, as performances
filmadas de Nauman (1967-9), pois elas revelam, de forma
extraordinária, como a coreografia vem assombrar [haunts]
sempre que seus elementos ontohistóricos são convocados.
Os filmes de ateliê de Nauman, primeiramente filmados
em seu ateliê na Califórnia (1967-8) e mais tarde em Nova
York (1968-9), retratam Nauman movimentando-se em es-
paços esvaziados, abandonados, executando séries rigorosas e
obsessivas de ações centradas em seu próprio corpo, conscien-
temente isolado, e as relações do seu corpo com o movimento,
o som, a anatomia, a linguagem, o equilíbrio, o espaço, a mas-
culinidade e a dança. Nauman: “Eu pensava nelas como pro-
blemas de dança sem que eu fosse um dançarino” (entrevista
com Willoughby Sharp In: Kraynak, 2003: 142).
Alguns críticos avaliam que a relação de Nauman com a
dança deriva da sua “dívida com a dança experimental da pri-
meira metade dos 1960, na qual o significado e os materiais
mais básicos da dança foram escrutados” (Kraynak, 2003: 15).
Janet Kraynak refere-se especificamente aos coreógrafos asso-
ciados ao movimento Judson Dance Theater da Nova York do
início dos anos 1960 – em especial Yvonne Rainer. A curadora
e crítica de arte Susan Cross também defende uma influência
do movimento Judson sobre Nauman (Cross, 2003: 14). Situ-
ar Nauman diretamente no contexto da dança contemporânea
da década de 1960 é uma alegação historiográfica provocan-
te e cada vez mais comum em contextos distintos e inespe-

54
rados. Numa entrevista com Eric de Bruyn, o artista visual
Dan Graham relembra como “em São Francisco, aquela era a
época de La Monte Young, Terry Riley (que influenciou Steve
Reich), e de dançarinos como Simone Forti e Bruce Nauman,
os quais desenvolviam trabalhos no workshop de Anne [sic]
Halprin” (Graham; de Bruyn, 2004: 110, grifo meu). Colocar
Nauman no estúdio de Halprin, como fez Graham, é algo
fora do comum. Até minha leitura desta menção,21 absolu-
tamente nenhuma das pesquisas realizadas para este capítulo
até então haviam indicado qualquer participação de Nauman
no famoso (e até mesmo inaugural, no que concerne o Judson
Dance Theater) estúdio de dança de Halprin.22 Eventualmen-
te, eu recebi duas confirmações independentes de que Nau-
man não havia de fato participado do workshop de Halprin
– primeiramente de Constance M. Lewallen, curadora-chefe
do Berkeley Art Museum, da Universidade da Califórnia, e
depois diretamente do estúdio de Bruce Nauman, através da
Galeria Donald Young.23 Com estas refutações, a lembrança
de Graham adquire um sugestivo contorno de lapso de me-
mória – que por sua vez sintomatiza esse desejo recente de
restabelecer uma relação de Nauman com a dança. Ao chamar
Nauman de dançarino e localizá-lo numa das principais ori-
gens do movimento estético de Judson, o lapso de memória
de Graham faz ressoar o desejo de Kraynak de recompor uma
relação de Nauman com a coreografia e de incluir o artista na
21.  Meu agradecimento a Ramsey Burt por me apontar esta entrevista.
22.  Membros do Judson Dance Theatre, bem como artistas próximos ao movimento, que
fizeram aula com Halprin em seu workshop de São Francisco incluem Yvonne Rainer,
Ruth Emerson, Simone Forti, Robert Morris, Trisha Brown e La Monte Young. Mais
tarde, Meredith Monk também fez aulas com Halprin (ver Banes, 1993: 141-2; Banes,
1995: passim). Janice Ross escreve: “Para Halprin, era da dança moderna institucionaliza-
da e de todas as suas leis de representação, teatralidade e ilusão” que ela queria fugir (In:
Banes e Baryshnikov, 2003: 29). A rejeição de Halprin da teatralidade e das sufocantes
regras da representação antecipam o posterior alinhamento de Rainer com o minimalismo
e a rejeição explícita da ilusão e da representação conforme registrada famosamente em
seu “NO Manifesto”.
23.  Meu agradecimento a Jenn Joy por sua ótima pesquisa sobre esse assunto.

55
grande narrativa da dança pós-moderna norte americana. Mas
este impulso é perturbador, pois que atribui ao movimento
Judson um papel totalitário em relação a outras formas de pes-
quisa experimental do movimento nos EUA dos anos 1960.
“Lembrar” de Nauman onde ele nunca esteve, chamá-lo de
dançarino pós-moderno, ou alegar uma “dívida” sua para com
o movimento Judson de certa maneira impede uma leitura
alternativa das funções específicas que o coreográfico muito
especialmente assume em seu trabalho.
Coosje van Bruggen, num texto de 1988, enfatiza a qua-
lidade pedestre das “danças” de Nauman (a qualidade “pe-
destre” é uma das características definidoras da dança de Ju-
dson), mas pelo menos a autora não estende as influências
de Nauman a uma suposta “dívida” com Judson. A rigor, ela
descreve a relação de Nauman com a dança durante o perí-
odo dos seus filmes de ateliê como efeito de sua atenção a
Merce Cunningham e ao uso que este fazia dos movimentos
cotidianos e de dançarinos não-treinados na primeira meta-
de da década de 1950, no Brandeis University Creative Arts
Festival (1952) (Bruggen In: Morgan, 2002: 50). E quanto a
Nauman? O que ele pessoalmente tem a dizer sobre sua rela-
ção com a dança? Em 1972, em entrevista a Lorraine Sciarra,
Nauman relembra o que lhe passava à cabeça enquanto tra-
balhava nos seus filmes de ateliê:

Eu conheci Meredith Monk, que era dançarina em São


Francisco. Ela havia visto parte dos trabalhos [os seus
filmes de ateliê] na costa leste e nós conversamos um
pouco, foi muito bom conversar com alguém sobre isso.
Porque de alguma maneira eu pensava no que eu fazia
como um tipo de dança, pois eu conhecia algumas das
coisas que Cunningham havia feito e outros dançarinos
também, onde você pode pegar qualquer movimento
comum e transformá-lo em dança, pelo simples fato
de apresentá-lo como tal. Eu não era dançarino, mas
de certo modo pensei que, se eu pegasse coisas que eu

56
não sabia fazer e as levasse muito a sério, então que elas
também seriam levadas a sério (Entrevista com Lorraine
Sciarra In: Kraynak, 2003: 166).

Há uma clara relação estabelecida com a dança na lem-


brança de Nauman sobre seu processo de trabalho nos filmes:
“de alguma maneira eu pensava no que eu fazia como um tipo
de dança”. Mas talvez mais clara ainda seja sua hesitação em
definir o que ele pensava estar fazendo, bem como em definir
suas influências, linhas de transmissão estética e débito auto-
ral. A hesitação de Nauman solicita um certo comedimento
em relação às declarações que afirmam uma direta influência
de Judson em seu trabalho. Nauman não nomeia aqueles “ou-
tros dançarinos” que podem tê-lo influenciado na costa oeste.
Confirmando o argumento mais prudente de van Bruggen,
Nauman de fato refere-se, durante a entrevista de 1970, ao
seu interesse pelos experimentos de Cunningham do início
da década de 1950 (eventualmente, em 1969, Nauman dese-
nharia o cenário da peça Tread, de Cunningham, que estreou
em 1970). Mas, na mesma entrevista, ele também afirma que
“a primeira vez que eu realmente conversei com alguém sobre
consciência corporal foi no verão de 1968” (“Entrevista com
Bruce Nauman, 1971 (Maio de 1970)”, Willoughby Sharp
In: Kraynak, 2003: 142). Nauman referia-se aqui a Meredi-
th Monk, que na época encontrava-se em São Francisco.24 As
alegações sobre uma dívida de Nauman com o movimento
Judson são embasadas numa sincronicidade histórica, mas elas
são contraditas pelo silêncio do próprio artista em suas decla-
rações a respeito da relação de seu trabalho com a dança e em
particular com a vibrante cena da dança nos EUA ao longo

24.  Em 1969, Nauman fez uma versão a três do seu filme de ateliê Bouncing in the corner,
No. 1 (1968) com sua mulher à época, Judy Nauman, e Meredith Monk, na exposi-
ção Anti-Ilusions: Procedures/Materials (1969) no Whitney Museum of American Art, em
Nova York.

57
dos anos 1960. Será que o problema aqui não surge de um uso
acrítico da palavra “dança”?
Então, como reformular esse problema? A despeito de
quem procriou quem (uma questão que a historiadora Susan
Manning acertadamente descarta como insuportavelmente
edipiana, de tão persistente e obsessiva que é na historiografia
da dança [2004: 13]), o fato é que ao romper o inverno de
1967/1968, Nauman começou a trabalhar numa série de fil-
mes e vídeos aonde ele aparece executando movimentos muito
precisos em seu ateliê vazio. A qualidade hiperbólica da pre-
sença solitária de Nauman é extraordinária em si mesma, e ela
só aumenta na medida em que assistimos sucessivamente os
mais de vinte filmes e vídeos criados durante os anos 1967-
1969. O que é verdadeiramente notável nos filmes de ateliê de
Nauman é a inquietante, embora explícita, emergência não ne-
cessariamente da dança, mas sim do coreográfico – sinalizada
pela execução rigorosa, metódica e monomaníaca de Nauman
de uma série de passos previamente estabelecidos. Tomemos,
por exemplo, Walking in an Exaggerated Manner Around the
Perimeter of a Square (preto e branco, filme em 16mm, 1967-
8).25 Anotemos seus movimentos. Coreografemo-los.
Encontre um aposento vazio. Tranque-se lá dentro. Como
no teatro, defina um boca de cena e limpe o chão ao centro.
Encoste um espelho retangular não muito pequeno na parede
do fundo, seu lado mais estreito no chão, virado para o espa-
ço aberto, mas sem refletir ninguém. Marque com fita crepe
branca um quadrado de aproximadamente três metros sobre o
chão. Por dentro deste quadrado, marque outro menor, com
lados paralelos ao primeiro, mantendo uma distância aproxi-
mada de 30 centímetros entre eles. Coloque-se de pé sobre
um dos lados do quadrado de fora, com um pé na frente do
outro, calcanhar contra o dedão, como numa corda bamba.
25.  As datas nos filmes e vídeos de Nauman são por vezes contraditórias e podem variar
a depender das fontes consultadas. Eu sigo aqui a “Videografia” de Nauman listada em
Bruce Nauman, de Robert C. Morgan (2002).

58
Comece a andar calmamente, colocando um pé sempre na
cola do outro, certificando-se que ambos permaneçam sempre
em cima da fita branca, enquanto você ondula os quadris de
modo muito exagerado com cada passo (facilita se a lombar fi-
car levemente arqueada, projetando a barriga para frente, com
uma aparência meio ridícula). Ao completar um perímetro
inteiro, reverter a ação, caminhando para trás de modo exa-
gerado, colocando um pé atrás do outro, calcanhar encostado
aos dedos. Ao completar outro perímetro inteiro, reverter e
caminhar novamente para frente. Repetir. Ad nauseam. (Nota:
deixar um banquinho vazio ao lado daquele espelho encostado
na parede e que nada reflete, para o caso de não haver certeza
absoluta, apesar da aparência, de se estar realmente sozinho no
aposento vazio.)
Descrever a coreografia metódica de Nauman neste filme
silencioso de dez minutos é quase sugerir uma dança que qual-
quer um é capaz de executar. Mas será mesmo? Como mui-
to da arte de performance do final dos anos 1960 e começo
dos 1970, a questão não é exatamente se qualquer um pode
executá-la ou não, ou mesmo se “qualquer coisa é possível”
– para citar o subtítulo de um livro sobre a dança dos anos
1960 (Banes e Baryshnikov, 2003) – mas sim sondar o que se
pode produzir – fisicamente, subjetivamente, temporalmen-
te, politicamente, formalmente – sempre que alguém decide
seguir estrita e metodicamente um programa preestabelecido
até suas últimas consequências. No caso dos filmes de ateliê de
Nauman, é muito claro que, seja qual for o programa, ele deve
ser seguido minunciosamente até o fim. Kraynak observa que

todos os Filmes de Ateliê de Nauman, com a execução preci-


sa das tarefas delineadas em seus títulos, constituem essencial-
mente a demonstração de um conjunto de instruções. Em outras
palavras, eles retratam não simplesmente o corpo, mas tam-
bém a partitura coreográfica: o que pode ser entendido como
a linguagem do movimento (Kraynak, 2003: 17, grifo meu).

59
Permaneçamos por um momento no vínculo associati-
vo estabelecido por Kraynak entre a demonstração de “um
conjunto de instruções” e a apresentação de uma “partitura
coreográfica” como a “linguagem do movimento”. Seguir o
percurso associativo de Kraynak é entender coreografia como
o meio pelo qual instruções podem ser claramente demons-
tradas, inteiramente realizadas, tornadas visíveis. Kraynak liga
coreografia ao problema da obediência, à questão da lei e à
misteriosa capacidade da coreografia de visibilizar e presen-
tificar forças e vozes de comando de outro modo ausentes.
Ora, se este for o caso – se a coreografia demonstra e torna
presente a força de lei – então a inclusão da palavra “lingua-
gem” no final da sequência associativa de Kraynak complica
a questão. Pois essa inclusão não tem procedência lógica nem
etimológica, já que “coreografia” não é, e jamais pode ser, “a
linguagem do movimento”26 – antes, trata-se da escrita dele
(uma escrita que ou bem precede o movimento, ou se organiza
depois dele).27 Mas então, onde a linguagem se equivale ao
coreográfico, à escrita do movimento? Minha sugestão é que,
ao invocar a “linguagem” após definir o coreográfico como a
execução cuidadosa e dedicada de um conjunto de instruções
preestabelecidas, a frase de Kraynak revela a linguagem como
análoga à coreografia apenas naqueles casos estritos em que a
fala pode ser classificada de performativa – particularmente
naqueles casos em que o efeito perlocucionário do ato de fala
põe corpos em movimento (no proferimento perlocucionário
a “fala produz efeitos, mas não é ela mesma o efeito” [Butler,
1997b: 39]). Os experimentos coreográficos de Nauman reve-

26.  Para uma crítica da noção de movimento como “linguagem” na dança ver a discussão
de José Gil (1997) sobre a “infra-linguagem” em Metamorfoses do Corpo.
27.  Mark Franko observa que, embora desde o século XVI a “dança seja frequentemente cha-
mada de linguagem, os efeitos dos passos e movimentos na comunicação de uma mensagem
não é tratada e nem seus possíveis valores como signos são levados em conta” (Franko, 1986:
8). A distinção entre linguagem e escrita que estou propondo agora será particularmente
relevante quando eu discutir o efeito espectral da escrita dentro do coreográfico.

60
lam a linguagem agindo sobre e através do corpo; eles expõem
como a linguagem mobiliza.
Kraynak constata como nos filmes de ateliê “todo o processo
é gerado a partir de um enunciado linguístico: uma instrução,
por assim dizer” (Kraynak, 2003: 23). Tal enunciado-instrução
é sempre manifesto no título de cada peça. Cada filme de Nau-
man “performa” ou “faz” o que seu título anuncia. O título ga-
nha uma autoridade autoral, definindo um espaço muito restri-
to para o comportamento e o ser.28 Kraynak sagazmente sugere
que os títulos de Nauman para seus filmes de ateliê operam
precisamente aquilo que J. L. Austin chamou de “performati-
vos perlocucionários”, indicando assim o interesse de Nauman
pelos aspectos “de ação” da linguagem, sua função não-consta-
tativa: “Devemos distinguir o ato ilocucionário do ato perlo-
cucionário. Por exemplo, devemos distinguir entre ‘ao dizer tal
coisa eu o estava prevenindo’ e ‘por dizer tal coisa eu o convenci,
ou surpreendi, ou o fiz parar’” (Austin, 1990: 96). À sagacidade
de Kraynak eu gostaria de acrescentar que “por dizer” (o título)
Nauman “convenceu-se” e “fez-se ir” (irrecusavelmente, como
sob comando), expondo assim uma essência estranhamente co-
reográfica no cerne do ato de fala perlocucionário.
As ações cuidadosamente executadas de Nauman – precisa
e metodicamente dando corpo e movimento a um conjunto
de instruções prévias – revelam uma força de comando tanto
na linguagem como na coreografia. Ou melhor, elas revelam
como a relação entre linguagem e coreografia é uma relação
mediada pela força. Quando Nauman caminha de uma ma-
neira exagerada ao longo do perímetro de um quadrado, de-
dicadamente obedecendo ao título da peça como organização
imperativa de sua motilidade, ele expõe as tensões e fissuras na
“relação entre a força e a forma, entre a força e a significação,
[...] força performativa, força ilocucionária ou perlocutória”,

28.  Sobre a função de comando nos títulos de esculturas e desenhos de Nauman, ver o
ensaio de Paul Schimmel “Pay Attention” (in. Simon, 1994).

61
para usar as reflexões de Jacques Derrida sobre o “caráter dife-
rencial da força” (Derrida, 2010: 11).
O que significa submeter-se compulsoriamente à força de
um proferimento perlocucionário, seguir uma demanda core-
ográfica como programa inescapável? Uma resposta possível
seria: sujeitar-se a uma estrutura de comando, seguir as regras
do jogo, ceder à força citacional do ato de fala proferido sob
o signo da lei – uma força que sempre precede e determina a
entrada de um indivíduo na subjetivação/subjetividade. Mas
talvez ainda existam outras formas de pensar esse desejo de
submeter-se tão completamente à execução perfeita de um co-
mando coreográfico. Em seu ensaio “Dance with the Law” (In:
Morgan, 2002), Jean-Charles Massera associa explicitamente
o coreográfico àquela aquiescência programática de Nauman
à lei. Mas ele propõe aquiescência à lei como um modo pelo
qual o cumprimento da demanda coreográfica vira não uma
submissão passiva, uma obediência cega, mas a resoluta ativa-
ção de uma vontade, de um poder: “a lei é uma cadência, um
ritmo que circula pelos corpos. Quanto mais suas pulsões são
sincronizadas com o ritmo da lei, mais fácil será a execução de
uma tarefa” (In: Morgan, 2002: 178). Esta dança-conforme-
-à-lei, em nome da facilidade da expressão, é a cadência ideo-
lógica do coreográfico. Haveria uma associação histórica, e até
mesmo ontológica, entre o coreográfico, a escrita e a lei? Uma
associação, inclusive, onde o solipsismo e a masculinidade
girariam um ao redor do outro para estabelecer a ambiguidade
da coreografia com relação ao seu projeto para a subjetividade?
Circulemos então no tempo da dança até o momento em
que a dança ocidental fundiu o seu ser com a escrita para criar
o neologismo “orchesographie” (uma escrita, graphie, da or-
chesis, dança), título do famoso manual de dança de Thoinot
Arbeau, de 1589.29 Encontramos não apenas que a fusão da
29.  O nome real do autor era Jehan Tabourot (1519-93). De 1542 até sua morte, Ta-
bourot serviu na Catedral de Langres, onde exerceu as funções de tesoureiro, juiz eclesi-
ástico e vigário geral. Os laços jurídicos e históricos entre a coreografia, o teológico e o

62
escrita com a dança em um novo vocábulo criou um nome
próprio para o “ser-para-o-movimento” moderno (Sloterdijk,
2002: 33),30 mas também que este ato léxico com implica-
ções corporais realizou-se graças à solicitação de um advogado.
Em Orchesographie, um jovem advogado retorna de Paris para
Langres para visitar seu velho mestre de “matemática”. Mas o
professor do advogado, Thoinot Arbeau, não é só um mate-
mático, ele é também um padre jesuíta e um mestre de dança.
Capriol, o advogado, implora ao seu professor Arbeau, mestre
de dança/padre/matemático, que o ensine a arte de dançar,
para que Capriol possa viver mais adequadamente na socieda-
de, ou, como ele mesmo coloca, para que “não seja difamado
por ter o coração de um porco e a cabeça de um burro” (Arbe-
au, 1966: 17). No momento crítico em que a dança encontra
seu destino como coreografia, vemos o trabalho coordenado
de um advogado e de um padre. Eis aqui um poderoso dueto
inaugural para considerarmos a relação ontohistórica da co-
reografia com a força de lei. Um casal de homens, dançando
dentro de um espaço psicofilosófico, teológico e sexualmente
específico [gendered], triangulado por discursos e disciplinas
bastante severas: matemática, religião, direito. O desejo do
jovem advogado pela dança como modo de socialização ini-
cia um projeto que é tão cinético quanto textual, tanto social
quanto subjetivo, tanto corporal quanto escritural: orchesogra-
phie. Na emergência de orchesographie como novo significante,
como prática, como vínculo tecnológico da dança com a escri-
ta, como laço pedagógico entre homens, como resposta a um
chamado da e pela lei, alguns fatores não-cinéticos bastante
intrigantes assumem um papel importante: a lei, a escrita, o
ateliê recluso, a homossociabilidade pedagógica e, paradoxal-
mente (dado o casal dialógico), o solipsismo.

jurídico são portanto bem mais do que meros floreios narrativos ensaiados por Arbeau,
o alter ego de Tabourot.
30.  Eu discuto o conceito de Sloterdijk na Introdução.

63
Capriol solicita aulas de dança para alcançar o que Erving
Goffman chamou de uma “representação do eu” socialmente
aceitável (Goffman, 1959: 17-79) – uma performance que da-
ria ao jovem advogado ingresso no teatro do social, na dança
heterossexual normativa da sociedade. O que parece interes-
sante, sob esse aspecto, é que Orchesographie assegura a possibi-
lidade da dança e do acasalamento heterossexual numa prévia
homossocialização pedagógica. Mais além, a socialização com
o mesmo-outro surge em Orchesographie como o modo espe-
cífico da coreografia acessar presenças ausentes. Não se trata
aqui de um efeito retórico. Em Orchesographie, o projeto de
dança-escritura, a arte nascente da coreografia, comporta uma
promessa espectral-tecnológica: a promessa de descobrir um
meio que permita o sujeito masculino transcender a presença
como aquilo que deve sempre estar presente. A conjuração do
neologismo “orchesographie” libera a força espectral no signi-
ficante e permite acesso direto a presenças ausentes. A socia-
lização com aqueles que não estão exatamente lá é alcançada
sempre que um livro de dança é lido num aposento isolado.
Fazer um par com o espectral requer uma forma peculiar de
solipsismo masculino.

ARBEAU: Em relação às danças antigas tudo que eu pos-


so dizer-te é que a passagem do tempo, a indolência do
homem ou a dificuldade de descrevê-las roubou-nos todo
conhecimento sobre elas.
CAPRIOL: Presumo então que a posteridade permane-
cerá ignorante a respeito de todas as danças novas sobre
as quais me contaste, pelas mesmas razões que estamos
impedidos de conhecer as danças de nossos ancestrais.
ARBEAU: Provavelmente, sim.
CAPRIOL: Não deixa que isto aconteça, Monsieur Arbe-
au, tens o poder de evitá-lo. Deita estas coisas na escrita
e capacita-me a aprender esta arte, pois ao fazer isto, tu
de alguma forma estarás reunindo-te às companhias da tua
juventude, e ainda exercitarás o corpo e a mente, pois que

64
será difícil refrear pernas e braços na hora de demonstrar
os movimentos corretos. Em verdade, teu método de es-
crita é tal que um pupilo, ao seguir tua teoria e preceitos,
mesmo em tua ausência, poderá ensinar a si mesmo na re-
clusão do próprio aposento (Arbeau, 1966: 14, grifos meus).

Graças ao livro coreográfico, um estudante pode dançar


com o fantasma de seu mestre na reclusão do seu (antes vazio)
aposento. Graças ao coreográfico, um advogado poderá ofe-
recer seu corpo genuína e sinceramente a um devir-espectral.
Mais importante ainda: através deste devir, Capriol pode ca-
nalizar o afeto melancólico de seu mestre – para tanto, precisa
apenas conceder ao mestre mais uma dança, enquanto torna-
-se, por efeito da solitária dança-leitura, um daqueles idos
companheiros de juventude de seu mestre. Enquanto a dança
é uma técnica de socialização, enquanto a dança é em si mes-
ma uma socialização, a coreografia, ao que tudo indica, é uma
tecnologia solipsista para socializar com o espectral, presen-
tificando a força do ausente no campo de desejo masculino.
O efeito coreográfico pode ser melhor definido agora como o
efeito espectral da escritura no campo de desejo masculino.31
Em Orchesographie, a escrita se torna uma tecnologia de
transporte, mais precisamente de teletransporte. O advogado
dançante e o padre dançante anteciparam Derrida em sua des-
crição do tipo de efeito telecomunicacional que a escrita pro-
duz. Em “Assinatura Evento Contexto”, Derrida identificou
um “tipo de máquina” operando no coração da escrita, a qual

31.  Refiro-me a um desejo que é expressado como primário na produção da “coreografia”


como neologismo e tecnologia da escrita do movimento – uma produção que resulta do
encontro pedagógico entre dois homens. Isto não significa que muitas das danças no livro
de Arbeau excluem mulheres. A rigor, um dos objetivos sociais principais da dança do Re-
nascimento é ocasionar a socialização e o acasalamento heterossexual. Entretanto, exceto
como parceiras para a dança, as mulheres não exercem qualquer papel que seja no dueto
textual entre o padre e o advogado dançantes. O nascimento deste poderoso termo para
a modernidade – orchesographie – é resultado de um encontro homossocial e do desejo de
prender o objeto amado: o mestre.

65
ele associou à tecnologia da telecomunicação. Para Derrida, a
função telecomunicacional da escrita perturba profundamen-
te a noção de presença:

Qualquer escrita deve [...] para ser o que é, poder funcionar


na ausência radical de qualquer destinatário empiricamente
determinado em geral. E essa ausência não é uma modifi-
cação contínua da presença, é uma ruptura de presença, a
“morte” ou a possibilidade da “morte” do destinatário ins-
crita na estrutura da marca (Derrida, 1991: 356).

Derrida conclui: “O que vale para o destinatário vale também,


pelas mesmas razões, para o emissor ou para o produtor” (1991:
357). É porque as mortes do produtor e do interlocutor são cons-
titutivas da dança que o apelo coreográfico pode ser enunciado.
“Deita estas coisas na escrita e me capacita a aprender esta arte,
pois ao fazer isto, tu de alguma forma estarás reunindo-te às com-
panhias da tua juventude”, pede Capriol, aparentemente identi-
ficando na escrita a possibilidade do devir-espectral. O advoga-
do percebe na coreografia uma performance da melancolia, um
mecanismo que impede o objeto amado de partir para sempre,
identificando assim uma essência mórbida no dançar em si. A
certeza da morte futura do coreógrafo, do mestre, do padre-escri-
tor dançante, torna-se central na criação do projeto coreográfico:
ler as danças permite a Capriol reunir-se mais uma vez com seu
mestre quando ele não estiver mais entre os vivos. A coreografia
vira aquilo que permite um advogado citar, transcrever, repetir
os gestos fundamentais, a presença ausente e a cadência da força
originária de uma dança. Retornamos assim à profunda conexão
entre coreografia e ato de fala performativo – ambos conseguem
impor ou forçar a si mesmos, mas apenas sob a condição de sua
citacionalidade (Butler, 1993: 12-16).32

32.  Uma citacionalidade que Butler conecta, além do mais, à questão da lei:
A formação, a manufatura, o suporte, a circulação, a significação daquele corpo sexua-
do — tudo isso não será um conjunto de ações executadas em obediência à lei; pelo

66
Portanto, fundir dança e escrita não é simplesmente criar
um novo signo linguístico. Pois esta criação já é uma mobiliza-
ção particular da marca escrita rumo à sua capacidade teleco-
municacional de convocar o espectral. Não é de admirar que
na primeira edição de Orchesographie, logo acima do brasão
do editor, lemos como epígrafe do livro um reconhecimento
explícito que o novo significante a fundir dança e escrita só
se sustenta por completo quando relacionado diretamente à
essência melancólica do coreográfico. A epígrafe diz: tempus
plangendi, & tempus saltandi – tempo de lamentar, & tempo
de dançar (Eclesiastes, 3:4). O lamento de Capriol nas pri-
meiras páginas de Orchesographie sugerem que a função do
conjuntivo “&”, na epígrafe de um livro cujo título já é con-
juntivo, é plugar diretamente o tempo do lamento ao tempo
dos homens que dançam a presença ausente uns dos outros.
Esta dança ocorre, não esqueçamos, num aposento vazio.
No espaço assombrado do aposento coreográfico, o que a
escrita põe em marcha e faz funcionar mesmo após o desapare-
cimento de seu autor e de seu destinatário,33 é uma cadência e
uma produtividade no significante que pode simultaneamen-
te reiterar mas também reescrever o que já está escrito. Esse
contínuo reescrever gera a temporalidade da assombração,
dos fantasmas, dos espectros, da qual a coreografia participa.
Meu uso do termo “assombração” [haunting] tem um duplo
sentido: o primeiro é a ênfase na função dos fantasmas no
“tempo de lamentar &/como tempo de dançar” coreográfico,
uma ênfase nessa capacidade que a coreografia tem de invo-
car presenças ausentes; o segundo sentido é o de propor uma
consideração da temporalidade particularmente circulatória
iniciada pela habilidade da coreografia de obsidiar/assombrar

contrário, será um conjunto de ações mobilizadas pela lei, será a acumulação citacional e a
dissimulação da lei produzindo efeitos materiais, será a necessidade vivida daqueles efeitos
e a contestação vivida daquela necessidade. (Butler, 2000: 166)
33.  “Uma escrita que não seja estruturalmente legível – iterável – para além da morte do
destinatário não seria uma escrita” (Derrida, 1991: 356).

67
a história, como sugerido por Laurence Louppe na epígrafe a
este capítulo. Pois a assombração [haunting] “é histórica, cer-
tamente, mas não é datada, nunca se deixa fixar docilmente
com uma data na sucessão de presentes, dia após dia, segundo
a ordem instituída pelo calendário” (Derrida 1994: 4).34 Em
outros termos: a assombração [haunting] bagunça o tempo e
causa aparições quando menos as esperamos – por exemplo,
a aparição do coreográfico numa série de filmes de um jovem
escultor em seu ateliê vazio na Califórnia.
Qual a função do ateliê nisso tudo? Com o dançarino re-
movido do campo social e confinado na privacidade (mal ou
bem, porém sempre) assombrada de sua estudiosa leitura, o
aposento solitário opera como um acumulador de subjetivida-
de. Ao analisar a formação da subjetividade moderna, Francis
Barker aponta que por volta do século XVII, “a cena da escri-
tura e da leitura era, assim como o túmulo, um lugar privado”
(Barker, 1995: 2). A consolidação deste novo lugar privado
para leitura e escrita está em vias de acontecer quando Arbeau
escreve Orchesographie nos últimos anos do século XVI. Ba-
rker retrata o quarto que encasula o sujeito moderno como
um tipo de câmara espectral de ressonância onde, literalmen-
te, e por via daquela força telecomunicacional do livro, “mur-
múrios fantasmáticos podem ser ouvidos, zunindo por entre
os subterfúgios e evasões do emaranhado discurso do texto”
(Barker, 1995: 2). A descrição de Barker ilustra perfeitamente
como a coreografia, esta tecnologia da subjetividade moder-
na, necessita do espaço privado do aposento para as operações
espectrais da modernidade. Neste novo aposento privado cha-
mado ateliê (já nessa época, na Europa, um lugar perturbado-
ramente evocativo daquele onde repousam os mortos)35 não
achamos apenas a filosofia moderna – tal como na proposição

34.  Para um esboço de uma sociologia e uma epistemologia da assombração [haunting] ou


do espectral/fantasmático, ver Gordon (1997).
35.  Para uma história da sepultura como espaço privado no Ocidente, ver Philippe Ariès
(1974, 1977, 1982) e Alain Corbin (1986).

68
de Descartes de uma origem metafísica da subjetividade cuja
verdade é constatada em solilóquio. Com Arbeau, a coreogra-
fia como escritura e como máquina de subjetividade a mediar
ausência e presença encontra suas condições de possibilidade
no repouso da estudiosa privacidade.
É assim que retornamos a Nauman em seu ateliê e obser-
vamos que, embora aparentemente vazio, o espaço de Walking
in an Exaggerated Manner around the Perimeter of a Square é
completamente habitado por elementos coreográficos: o es-
pelho na parede, o esquadro de dança no chão e até o ban-
quinho do mestre. É por isso que eu devo discordar de van
Bruggen quando ela defende que nesta peça, bem como em
Dance or Exercise on the Perimeter of a Square (1967-8), “o uso
do quadrado no chão é de certa forma arbitrário – poderia ter
sido um círculo ou um triângulo” (Bruggen In: Morgan 2002:
48). Ainda que van Bruggen reconheça que a forma no chão
“sirva para direcionar os movimentos e formalizar os exercí-
cios, dotando-os de mais importância como dança do que eles
teriam tido se Nauman tivesse simplesmente vagueado sem
direção” (2002: 48), minha visão é que a formalização em si
marca uma transição da dança em geral para o coreográfico
em particular. O esquadro é um índice fundamental da pre-
sença assombrada/persecutória do coreográfico – não só do
aposento de Capriol, mas da representação da pista de dança
de Raoul-Auger Feuillet em seu manual Choréographie (1700)
como um quadrado vazio sobre fundo branco.36 Assim como
na descrição de Barker sobre os zunidos espectrais que assom-
bram [haunt] o gabinete do filósofo, o ateliê de Nauman tam-
bém ressoa com os murmúrios do fantasma da coreografia, na
desordenada temporalidade da assombração.
Logo, retornamos a Nauman uma questão previamente
posta a Arbeau: qual seria a função do ateliê/aposento nos ex-
perimentos coreográficos de Nauman? Van Bruggen relata um

36.  Eu discuto o quadrado de Feuillet no Capítulo 4.

69
incidente interessante que aparentemente precedeu os movi-
mentos confinados de Nauman em seu ateliê. Segundo van
Bruggen, certa vez Nauman contou a

um amigo filósofo que ele imaginava-o [o amigo] pas-


sando a maior parte do seu tempo numa escrivaninha, a
escrever. Mas, na verdade, seu amigo exercitava o pensa-
mento enquanto fazia longas caminhadas ao longo do dia.
Isto fez Nauman perceber que ele próprio passava a maior
parte do seu tempo caminhando em seu ateliê, tomando
café. E então ele decidiu filmar isto – apenas o caminhar
(Bruggen In: Morgan, 2002: 47).

Nós já constatamos que há mais do que uma mera e ale-


atória caminhada nos filmes de ateliê de Nauman, que o ar-
tista formaliza a caminhada e que esta formalização é crucial
para o impacto de seus filmes não como danças, mas como
exercícios coreográficos. Mas há uma ironia na anedota acima
que van Bruggen deixa passar. Nauman imagina o ambiente
adequado da filosofia como um gabinete isolado e a cinética
da filosofia como uma postura pensativa. Ele imagina o filóso-
fo como um solitário escritor-pensador, um sujeito removido
do mundo, sentado silenciosamente em sua escrivaninha. Mas
eis que o filósofo é na verdade um andarilho (como Sócra-
tes, como Rousseau, como Nietzsche, como Débord, como
Deleuze e como Guattari). E não apenas o pensamento do
filósofo acontece graças à sua caminhada, mas o espaço de seu
caminhar-filosofar é ao ar livre, fora dos aposentos, na cidade
ou no campo. O irônico é que depois de ouvir tudo isso de seu
amigo filósofo, numa equivocada operação, Nauman trans-
forma a deriva filosófica ao ar livre em uma privada, reclusa, e
frequentemente37 metódica pisada coreografada em seu solitá-
37.  Eu escrevo “frequentemente” porque alguns dos filmes de ateliê de Nauman mostram o
artista caminhando de modo menos coreografado. É o caso particular de Playing a Note on
the Violin While I Walk Around the Studio (1967-8) e Violin Tuned D E A D (1969). Entre-
tanto, considero significativo que nestes dois filmes a força perlocucionária do título não

70
rio ateliê. Ao invés de se lançar ao mundo, Nauman tranca-se
em seu ateliê vazio e realiza uma série de autocontidas, en-
clausuradas, solipsistas e coreográficas investigações – usando
a filosofia como desculpa.
Qual o papel da filosofia no solipsismo coreográfico de
Nauman em seus filmes de ateliê? Ao escolher para seus expe-
rimentos um espaço confinado para a coreografia, o qual ele
avaliava equivalente ao espaço da filosofia, Nauman reconfigu-
ra seu ateliê como espaço cranial. Robert Morgan diz:

No caso dos primeiros vídeos em preto e branco, como


Revolving Upside Down (1969), a pura fisicalidade do cor-
po, movendo-se no espaço ilimitável do ateliê do artis-
ta com suas propriedades tão escassamente atenuadas, é
transferida para um ato mental, o que Duchamp entendia
como cervelle, o “fato cerebral” (Morgan, 2002: 13).

Nauman explicitamente equaciona seus “atos mentais”


com o aposento privado numa extraordinária instalação, con-
temporânea de seus filmes de estúdio. Em 1968, ele criou uma
instalação de som com dois autofalantes num quarto vazio.
Toda vez que alguém entrasse no quarto, os autofalantes gri-
tariam o título da obra: Get Out of My Mind, Get Out of This
Room [Saia da minha mente, saia deste quarto]. Então, para
Nauman, a mente é o quarto, assim como o quarto é a men-
te: ambos intimamente atados à linguagem por meio de um
ato de fala autoritário, mobilizador. Eis o espaço-pensamento
solipsista que Nauman constrói quando ele começa não só a
“caminhar em seu ateliê”, mas a executar cuidadosamente ca-
minhadas extremamente precisas: ao redor do perímetro de
quadrados, pulando sobre um pé, dançando padrões geomé-
se dirige ao movimento em si, mas sim à execução de uma outra tarefa (tocar o violino). O
outro único filme de ateliê que é significativamente acoreográfico (lidando explicitamente
com o acaso, o acidente e a improbabilidade do movimento) é Bouncing Two Balls between
the Floor and the Ceiling with Changing Rhythms (1967-8). Mas esta última exceção tem
outra conotação bastante forte, a qual eu detalharei em seguida.

71
tricos. O coreográfico acontece em um espaço explicitamente
definido como solipsista, coreográfico e filosófico: o espaço do
pensamento em movimento.
Se o quarto é um acumulador de subjetividade, que tipo
de subjetividade ele acumula? Em Bouncing Two Balls betwe-
en the Floor and the Ceiling with Changing Rhythms [Quicar
Duas Bolas entre o Chão e o Teto com Ritmos Alternados]
(1967-8)38 vemos Nauman dentro do mesmo quadrado onde
ele dançou e caminhou de um modo exagerado – o esqua-
dro coreográfico abrigado pelo ateliê-acumulador. Nesta peça,
Nauman engaja-se num experimento newtoniano altamente
energético: ele tenta manter duas bolas quicando sem parar
entre o piso e o teto do ateliê. Aqui, a precisão coreográfica
é quebrada devido à inabilidade do artista em obedecer ao
comando do título. As trajetórias e velocidades das duas bolas
escapam ao seu domínio. A cena toda torna-se aleatória, ab-
surda, frustrante. As bolas quicam pelo ateliê seguindo traje-
tórias imprevistas, apesar do que prometem as leis da inércia
de Newton e a suposta previsibilidade da balística. Mais uma
vez encontramos Nauman envolvido em solipsismo, confina-
do a um espaço de não-relação, encenando um ato mental
em cima do esquadro coreográfico marcado no chão, todos
esses elementos ordenados de modo a unir física e esporte – o
campo de jogo da masculinidade normativa. Não é possível
afirmar que esse experimento submete-se à sujeição coreográ-
fica própria à cadência do comando. Aqui, não há cadência. O
mundo da física não é dócil, não se rende facilmente à força
perlocucionária do ato de fala, ao desejo do artista de obedecer
ao comando do título.

BRUCE NAUMAN: De repente eu tinha duas bolas ao


mesmo tempo e corria para todo lado sem parar, tentan-
do pegá-las. Às vezes elas batiam em algo no chão ou no

38.  Filme, 16 mm, preto e branco, som, aproximadamente 10 minutos.

72
teto e desviavam para o canto e esbarravam uma na outra.
Finalmente eu perdi o controle das duas. Eu peguei uma
das bolas e simplesmente a joguei contra a parede. Eu es-
tava furioso.
WILLOUGHBY SHARP: Por que?
BRUCE NAUMAN: Porque eu estava perdendo o con-
trole do jogo. Eu tentava manter o ritmo certo, com as
duas bolas quicando uma vez no chão e outra vez no teto,
e daí pegá-las, ou duas vezes no chão e uma vez no teto.
Tinha um ritmo rolando e, quando eu perdi o ritmo, fina-
lizei o filme ([1971] in Kraynak, 2003: 147).

A falta de ritmo, de cadência e de controle no movimento


em Bouncing Two Balls é surpreendente quando comparados
ao caminhar cronométrico, calmo e controlado de Nauman
ao redor do mesmo quadrado, marcado por um metrônomo
em seu Dance or Exercise on the Perimeter of a Square (1967-
1968). Em Bouncing Two Balls, Nauman irrita-se. Percebemos
isso claramente no vídeo. Não admira portanto que meses de-
pois ele retorne ao problema do controle sobre duas bolas em
movimento. Só que desta vez ele as consegue dominar – por
via de um afastamento ainda maior do mundo e de um ater-
ramento mais profundo no domínio masculino do solipsismo
coreográfico, uma entrada mais definitiva na relação hiperbó-
lica com o eu-mesmo, num nível tal de hiper-homo-relacio-
nalidade que chega a beirar o narcisismo. Em Bouncing Balls
[Quicar Bolas] (1969)39 Nauman resgata o título da peça que
tanto o irritara e usa uma câmera de alta velocidade para fil-
mar um close-up de seus testículos, os quais ele golpeia. Aqui,
no espaço de solidão masculina, o solipsismo coreográfico es-
correga para o masturbatório. Mas há outro detalhe no que
diz respeito à temporalidade: a ação propriamente de Nauman
golpeando seus testículos [“his balls”, em inglês] levou apenas
alguns segundos, mas por ter filmado em alta velocidade e

39.  Filme, 16 mm, preto e branco, silencioso, 9 minutos.

73
depois conferido uma velocidade normal ao filme, o resultado
é uma imagem em câmera lenta extrema: uma ação original
de 6 a 10 segundos vira um filme de 10 minutos. Com este
efeito, Nauman alcança uma “suspensão do tempo e da gravi-
dade” (Bruggen, 2002: 57), contrariando o puxo newtoniano.
Fazendo pular suas “bolas”, Nauman oferece uma imagem flu-
tuante da autossuficiência do desejo masculino como controle
solipsista do movimento.
Rosalind Krauss observou que, nos anos 1960, a questão
para Nauman era exercer pressão crítica e material sobre o pro-
jeto moderno da escultura. Ao introduzir, não necessariamen-
te a dança, mas o coreográfico no campo expandido do escul-
tórico, Nauman “põe pressão sobre a noção que o espectador
tem de si mesmo como ‘axiomaticamente coordenado’ – como
estável e fixo em si e para si mesmo” (Krauss, 1981: 240). Em
outros termos, quando a escultura é produzida coreografica-
mente, ela perturba o mito axiomático da subjetividade au-
toestabelecida: subjetividade como masculinidade monádica,
como ser-para-o-movimento, como o imutável e localizável
“self ”. Os experimentos coreográficos de Nauman não são
apenas estéticos: seu solipsismo e sua maníaca obediência à
lei satura a subjetividade masculina ao ponto do absurdo. Em
1969, isso culmina com o masturbatório Bouncing Balls e com
o pueril Revolving Upside Down (1969). Neste último, o puxo
antigravitacional ensaiado em Bouncing Balls por meio da câ-
mera lenta agora é representado por uma inversão no eixo da
câmera, a qual cria a ilusão de que Nauman está na verdade
suspenso de ponta cabeça no teto. Enquanto ele gira sobre um
pé e alterna a perna que lhe dá base, Nauman demonstra um
padrão coreográfico que une perfeitamente dificuldade técnica
(intensa demanda de equilíbrio e força nas coxas e na lombar)
a uma diminuta performance de pura tontura. Nas coreogra-
fias solipsistas de Nauman, particularmente nestas duas peças
de 1969 em que o masturbatório e o espaço da tontura apare-
cem de modo tão literal, o masculino ser-para-o-movimento

74
como subjetividade solipsista alcança um ponto crítico de to-
tal saturação. Este ponto é carregado de energia crítica, ciné-
tica e potencial para mutações coreopolíticas de grande rele-
vância. Para seguir as pistas destas mutações, eu gostaria então
de me voltar para experimentos mais recentes em solipsismo
coreográfico masculino, em que o ontohistórico coreográfico
é pressionado ao limite.
Nós vimos como a dança teatral ocidental encontra sua
energia (melancólica) primária e crescente (moderna) autono-
mia graças a uma figura em particular que ocupa um lugar
particular: um advogado a ler um livro na “privacidade de seu
aposento”, de modo a dançar com o fantasma de seu mestre,
morto e ausente. Eu defendo que o coreográfico é ontohisto-
ricamente conectado ao que Derrida chamou de efeito tele-
comunicacional da escrita. O dançarino-leitor pode até estar
sozinho em seu quarto, mas, graças ao livro coreográfico, ele
estará sempre pronto para invocar e dançar com aqueles que
não estão mais lá, com os que já partiram para outra. Há qual-
quer coisa nas imbricações entre dança, escrita, melancolia,
solipsismo, espectralidade, masculinidade e o ser-para-o-mo-
vimento moderno, cinético, autossuficiente e auto-impulsio-
nado que só pode ser qualificado como idiótico, no sentido
especificamente etimológico encontrado por Paola Mieli no
termo “idiota”: do grego idiotes, “uma pessoa reservada, indi-
vidual, ‘alguém numa estação privada’ – de ideios, referente ao
que é só seu, separado, removido da responsabilidade social”
(Mieli et al., 1999: 181). Neste sentido particular, o idiota
não é necessariamente um estúpido ou um sujeito de menta-
lidade débil. Na verdade o idiota é aquele indivíduo isolado e
autocentrado que fantasia a subjetividade como ser autôno-
mo e auto-móvel. A coreografia, essa expressão e tecnologia
do moderno ser-para-o-movimento, participa integralmente
do projeto exaustivo, psicológico, afetivo e energético da sub-
jetivação moderna como a criação de um idiota socialmente
apartado, energeticamente autocontido e emocionalmente

75
automotivado, cuja resposta à aparição do outro é uma cri-
se insuportável que desencadeia o sintoma. A dinâmica desta
idiotice e sua arraigada relação com a coreografia é explorada
pelo coreógrafo espanhol Juan Dominguez em sua peça All
Good Spies Are My Age (AGSAMA) (2003).
Ao contrário dos filmes de ateliê de Nauman, em AGSA-
MA, Dominguez põe-se inquestionavelmente diante de um
público. Assim, nesta performance, o solipsismo coreográfico
masculino emerge como representação de uma condição. A
coreografia como escritura é exageradamente disposta: prati-
camente tudo que a plateia e o coreógrafo fazem ao longo dos
70 minutos de duração da peça é ler uma obscura, convoluta
e autocentrada narrativa, cujo andamento é inteiramente de-
terminado pela vontade do coreógrafo. De seu lugar sentado
dentro de um cômodo,40 Dominguez manipula uma série de
pequenas fichas impressas com frases, parágrafos e ocasional-
mente palavras soltas, cujas imagens ele projeta ao vivo numa
tela branca a seu lado, com ajuda de uma pequena câmera de
vídeo apoiada na mesa a sua frente. É como se Dominguez só
pudesse encarar seu público, só pudesse estar diante do outro,
porque coreografou sua aparição como algo completamente
mediado pela escrita e pelos “murmúrios” fantasmáticos das
presenças ausentes que a escrita conjura.
Uma série de assombrações ontohistóricas [ontohistorical
hauntings] emergindo em AGSAMA podem ser identificadas.
Intrusão do coreográfico ontohistórico número 1:

Sobre seu status como ferramenta de comunicação a lon-


ga distância, podemos citar, entre outros testemunhos,
o procedimento detalhado em um texto dos arquivos de

40.  Eu assisti AGSAMA em Berlim, durante sua estreia mundial no festival Tanz in August,
em 2003. A peça não foi apresentada em um teatro convencional ou em um auditório,
mas em uma grande sala branca e retangular, com janelas verticais em uma de suas pare-
des. Na parede oposta, duas portas de tamanho padrão permitiam a entrada e saída do pú-
blico e do performer. O fato da plateia sentar em arquibancadas não diminuiu o impacto
visual e espacial do fato de estarmos todos numa sala e não em um teatro.

76
Hardouin-Médor, em Caen: os mestres de dança da ci-
dade são trancafiados numa sala com papel, escrivaninha,
“estojo matemático, etc.”, como se estivessem numa pro-
va escrita; eles compõem coreografias para bailes e balés,
as quais são enviadas a Paris para serem julgadas e classi-
ficadas pela Academia; só depois vem o teste prático, ou a
“execução” (Laurenti, 1994: 86).

É assim que o historiador da dança Jean-Noël Laurenti


descreve os procedimentos da coreografia no século XVII na
França. Três séculos depois, AGSAMA os reencena: um ma-
cho/coreógrafo senta na escrivaninha – a qual, aliás, é suspei-
tosamente similar a uma carteira escolar – sozinho numa sala
para criar uma dança que existe apenas como texto a ser lido à
distância pelo público. Só no resta descobrir que tipo de teste
posterior, ou “execução”, AGSAMA propõe.
O cenário é mínimo: uma pequena escrivaninha com
uma miúda câmera de vídeo, lentes viradas para a mesa; uma
tela branca usual sobre um tripé ao lado da mesa; um proje-
tor de vídeo colocado em frente à tela; e uma lâmpada verti-
cal junto à mesa. Tudo sugere que a peça poderia ser fruída
como um show de slides semiprivado ou como uma palestra
numa grande sala de aula. Intrusão do coreográfico ontohistó-
rico número 2: a escrivaninha em AGSAMA é incomum – há
um primeiro assento acoplado a ela, que é onde Dominguez
senta, e há outro assento acoplado, idêntico ao primeiro, mas
do outro lado da mesa, mais próximo ao público. Este segun-
do assento permanece vazio ao longo de toda a peça. Como
em Walking in an Exaggerated Manner around the Perime-
ter of a Square de Nauman, o assento vazio no quarto onde
um homem dança sozinho levanta a questão: para quem é
este lugar vazio? O fantasma de Arbeau? Intrusão do coreo-
gráfico ontohistórico número 3: o banco acoplado à escriva-
ninha, sua escala, sua forma, tudo sugere uma escrivaninha
escolar. Assim como em Orchesographie, o espaço do coreo-

77
gráfico confunde-se com o espaço do pedagógico, e ambos
são habitados por fortes presenças ausentes. Mesmo antes de
AGSAMA começar propriamente, a performance já propõe
o coreográfico como sempre endereçado ao ausente, sempre
encenado no espaço da escrita, sempre concebido a partir da
marca pedagógica e sempre entrelaçando estes aspectos todos
a uma certa solidão masculina que permanece, entretanto,
afinada às invisibilidades. Todos os elementos do efeito on-
tohistórico coreográfico já estão em seus devidos lugares em
AGSAMA. Mas como eles são mobilizados por Dominguez,
como são executados e o que eles executam – ou seja, o que
eles destroem no instante de suas (ontohistóricas, isto é, on-
tofantasmáticas41 [hauntological]) reiterações?
Quando a plateia acomoda-se, Dominguez entra na sala
vestido com um terno branco. Ele liga o projetor de vídeo.
O cabo de energia da câmera. A comprida lâmpada halógena
vertical ao lado, que vai iluminar a sala atrás dele com uma
clara luz branca. Então, casualmente, Dominguez senta-se e
organiza as pilhas de fichas de papel que já estavam sobre a
mesa. Ele escolhe uma das pilhas de papel e a coloca cuida-
dosamente sob a lente da câmera. Uma imagem projetada da
ficha de papel preenche a tela. Lemos em negrito, impresso em
inglês: “TTIM = The Taste Is Mine”42 [OGEM = O Gosto É
Meu]. Três segundos depois, aproximadamente, outro papel é
colocado em cima deste primeiro e lemos:

41.  Criamos aqui o neologismo “ontofantasmática” para traduzir “hauntological”, o qual


é, por sua vez, um neologismo criado por Jacques Derrida para dar conta da fusão entre
ontologia e espectralidade (haunting) em sua crítica do ser, da presença e da história.
Nossa tradução aqui procura ressaltar precisamente a dinâmica fantasmática da presença
em Derrida, sobre a qual Lepecki constrói sua crítica do coreográfico como disjunção-
-contração de temporalidades e de regimes de presença/ausência, com efeitos políticos
relevantes para uma análise crítica da modernidade a partir do movimento. Ver a primeira
nota a este capítulo para uma maior elaboração do conceito de “hauntology” e da perfor-
matividade dos espectros em Derrida. (N.T.)
42.  Título da peça anterior de Dominguez, criada em 2000.

78
AGSAMA = All Good Spies Are My Age [TOBETMI: Todos
Os Bons Espiões Têm Minha Idade]
TTIM = The Taste Is Mine [OGEM: O Gosto É Meu]
SL = Swan Lake [LDC: Lago dos Cisnes]

Daí, consecutivamente e quase rápido demais para acom-


panhar, três outras fichas, uma em cima da outra. “Do a show
with ten people” [Faça um espetáculo com dez pessoas], depois
“Obsession with age” [Obsessão com a idade] e “Exhibition in
a Museum in Paris Theme: Memory” [Exposição em um museu
de Paris Tema: Memória]. Então uma breve pausa e outra ficha:
“How much time do you buy with an entrance ticket?” [Quan-
do tempo você compra com um ingresso de entrada?].
E segue, ficha após ficha, palavra após palavra, tecendo
uma complicada teia de narrativas, linhas de fuga, referências
obscuras, referências explícitas, retornos, giros de linguagem,
giros de enredo, perda de enredo, cenas sem sentido, sonhos
masturbatórios... por 70 minutos. O título da peça, conforme
o programa, é AGSAMA. Mas logo no começo uma ficha com
a palavra solta “Title” [Título] aparece na tela – sendo em se-
guida coberta por outra ficha na qual se lê:

Num quarto de hotel no Porto: Minha namorada dor-


mindo numa cama virada para a direita. Em frente a ela o
guarda-roupas com portas de espelho. Eu estou acordado
na mesma cama atrás dela, também virado para a direita.
Eu observo seu corpo. Eu levando a cabeça um pouco e
vejo tudo no espelho. Eu me escondo atrás dela.

Poderia este ser um outro título de AGSAMA? Um títu-


lo não-relacional, no espaço de um aposento onde o eu/olho
masculino esconde-se do espelho que reflete demasiado do
mundo e do outro feminino que por acaso nem está inteira-
mente presente. Mais além, nesta dança que encena a si mes-
ma como literalmente coreográfica, a tipografia emoldura a

79
significação e a semântica por via de uma referência jocosa
ao impacto performativo da escrita. As palavras impressas nas
fichas são todas em letras garrafais multicoloridas (azul claro,
vermelho, amarelo, preto, verde claro) numa fonte chamada
Impact. Intrusão do coreográfico ontohistórico número 4: o efei-
to coreográfico como impacto tipográfico do significante no
espaço da leitura solitária.
A próxima sucessão de fichas contam ao público sobre mu-
lheres, mulheres lindas, mulheres excessivas, mulheres demais,
mulheres desejáveis demais – a existência coletiva delas cria
um distinto contraste com a figura do homem sozinho em
sua escrivaninha. Mais tarde, lemos que, no lugar de se re-
lacionar com estas lindas mulheres que tanto o excitam (se-
gundo as fichas), o narrador tranca-se num banheiro público
e se masturba. Mais uma performance do desejo masculino
a portas fechadas. Intrusão do coreográfico ontohistórico núme-
ro 5: o filme Bouncing Balls (1969) de Nauman, em que o
solipsismo masculino encontra desejo, cadência e vontade de
controle sobre o movimento. É pelo meticuloso acúmulo de
todas essas intrusões do coreográfico ontohistórico que AG-
SAMA encena e imperiosamente reintroduz a figura inaugural
do macho dançarino solitário na economia masturbatória da
modernidade – a modernidade da energia exaurida, da melan-
cólica relação com o tempo e da subjetividade idiótica.
Como lidar com as proposições de AGSAMA em relação à
temporalidade da escrita, a cadência da leitura e o impactante
efeito da masculinidade solitária sobre o campo ontohistóri-
co do coreográfico? Mais especificamente, como lidar com as
proposições desta peça uma vez entendidas como coreográfi-
cas? Dada sua total participação na formação da máquina de
subjetividade cinética da modernidade, o coreográfico é infor-
mado pelas próprias incoerências estruturais da modernidade:
ao enfatizar a presença, a coreografia descobre a ausência; ao
enfatizar a dança, ela descobre o lamento; ao desejar a socializa-
ção, ela abstrai-se entre quatro paredes. Sobrevindo do próprio

80
do campo do efeito coreográfico, estas incoerências são aquilo
que AGSAMA tão sistematicamente identifica e desmantela ao
revelar enfaticamente seus mecanismos e cadências.
Dominguez dispõe as fichas escritas sobre a mesa em um
ritmo próprio, arrumando-as caprichosamente sob a lente da
pequena câmera de vídeo. A leitura é exaustiva. O público é
convidado a entrar numa cadência de leitura que é imposta
pelo outro. Na iminência de desistirmos desse ritmo, dessa
leitura, desse homem, passados talvez já três quartos da peça,
o inexorável fluxo de palavras é substituído por um alivia-
dor fluxo de imagens. Dominguez interrompe a procissão de
fichas e palavras e passa a mostrar (sempre através do olho
da câmera) uma série de retratos fotográficos de si mesmo.
Da infância à vida adulta, o homem vai deitando foto sobre
fotos de si mesmo. Essa mudança é apenas momentânea. A
acumulação de imagens uma sobre a outra repete o ritmo
das fichas, reforçando a autoprodução de subjetividade so-
lipsista assegurada pelo mecanismo reiterativo da aparição.
Súbito, uma desordem na acumulação de imagens do eu-
-mesmo: uma das fotos mostra uma segunda pessoa. A erup-
ção inesperada de um outro é como um choque. Mas antes
de começarmos a identificar os primeiros contornos deste
outro, Dominguez imediatamente cobre o rosto dele ou dela
com mais uma ficha escrita. O homem sentado, manuseando
escrita e imagens como dança, permanece o único e absoluto
centro de atenção: nossa e dele. Esta erupção reprimida do
outro é o núcleo dramatúrgico da peça. A intrusão inespera-
da do outro é o trauma de AGSAMA, e também seu sintoma.
É o excessivo gesto de retirada do outro da sala de dança que
nos permite ler a peça coreograficamente.
Mas como ler esta peça em relação à filosofia? Filosofi-
camente, o solipsismo é comumente associado ao projeto
cartesiano de produção automotivada e autoreferencial da
verdade que dispõe o sujeito solitário do discurso no centro
e no limite desta verdade. Não admira portanto que o solip-

81
sismo tenha sido objeto de sérias objeções levantadas contra
o projeto cartesiano. Na virada do século XX, o projeto de
Edmund Husserl de estabelecer a fenomenologia como filo-
sofia da consciência estava totalmente a par dos perigos em
potencial que o solipsismo representava. Martin Heidegger e
Maurice Merleau-Ponty empenharam-se consideravelmente
na tarefa de manter essa objeção ao largo: Heidegger, através
da formulação de seu conceito de Da-sein como modo de
ser-no-mundo (Heidegger, 1996: 213-40, 279-84, e parti-
cularmente 317-20), e Merleau-Ponty com sua “elementar”
noção de carne como entrelace de self e mundo (Merleau-
-Ponty, 1968: 130-55).
Mas são as proposições de Wittgenstein sobre o solipsismo
que podem nos ajudar a considerar como os usos do solip-
sismo coreográfico em Nauman e Dominguez podem propor
uma saída do idiótico ser-para-o-movimento. As reflexões
muito breves de Wittgenstein sobre solipsismo no Tractatus
Logico-Philosophicus começam na proposição 5.6: “Os limites
de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”; e
terminam na proposição 5.621: “O mundo e a vida são um
só” (Wittgenstein, 1968: 111). Estes dois enunciados já come-
çam a esclarecer tanto a relação de Nauman com seus títulos
(e com seu particular entendimento da linguagem em geral,
sobre o qual ele explicitamente atribuiu influência de Witt-
genstein [Kraynak, 2003: 5-10]), quanto a autoclausura de
Dominguez entre as paredes de texto em AGSAMA. Se o limi-
te da “minha linguagem” denota o limite “do meu mundo”, e
se a constituição do coreográfico (que eu expus na discussão
sobre Orchesographie) significa o vir-a-ser de um corpo cuja
presença e cinética já é informada, pré-formada e performada
graças ao seu entrelaçamento ontocinético com a escrita, en-
tão habitar e explorar realmente a linguagem, devir por meio
da linguagem e ampliar sua lógica ao limite possível é também
jogar a si mesmo bem no meio do mundo. Mas, para isso, faz-
-se necessário uma reconfiguração do entendimento comum

82
de solipsismo. É preciso transformá-lo de um modo de sub-
jetivação que privilegia a reclusão, a mônada idiótica, a mor-
te do mundo, o fim da relacionalidade, para um “solipsismo
metodológico” (Natansom, 1974: 242), em que o importante
é reforçá-lo para a criação de meticulosas e sistemáticas expe-
rimentações.
Na proposição 5.62, Wittgenstein trata sobre “até onde o
solipsismo é uma verdade”, precisamente nesse sentido de en-
xergar nele uma possibilidade metodológica para uma abertu-
ra radical do pensamento e do ser:

O que o solipsismo nomeadamente acha é inteiramente


correto, mas isto se mostra em vez de deixar-se dizer.
Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque
os limites da linguagem (da linguagem que somente eu
compreendo) denotam os limites do meu mundo (1968:
111, grifos no original).

Jakko Hintikka defende que a “interpretação peculiar de


solipsismo” de Wittgenstein “só pode ser compreendida no
contexto de outras doutrinas do Tractatus” e conclui: “Se eu
posso afirmar que algo é meu, segue imediatamente que este
algo possivelmente pode ser seu também” (Hintikka, 1958:
88, 89). Este é o momento em que a linguagem “que somen-
te eu compreendo” se confunde com o “meu mundo” – para
afirmar que esse “eu” e sua linguagem-mundo é totalmente
inclusiva. Em Wittgenstein, tanto o “eu” linguístico quando o
mundo (onto)logicamente participam do outro. Assim, o que
o solipsismo denota (sem dizê-lo, mas de certo mostrando-o) é
que o continuum eu-linguagem-mundo necessariamente con-
tém, é, e é contido por, o eu-linguagem-mundo do outro. O.
H. Mounce associa a noção de solipsismo de Wittgenstein à
de Schopenhauer, enfatizando que para este último,

o erro [do solipsista] é que ele pensa poder [...] eliminar


o mundo para que só ele exista. Ele falhou em perce-

83
ber que sujeito e objeto são correlativos. Um precisa do
outro. Se ele elimina o mundo, ele elimina a si mesmo.
(Mounce, 1997: 10)

Mounce afirma que Wittgenstein seguiu Schopenhauer em


sua formulação no Tractatus de que “o que é verdade no so-
lipsismo não pode ser expressado sem reconhecer a verdade
no realismo” (1997: 11). Dado que o “meu mundo” solipsista
necessariamente inclui e é incluído pelo outro, então “por aqui
se vê que o solipsismo, levado às últimas consequências, coin-
cide com o realismo puro. O eu do solipsismo reduz-se a um
ponto sem extensão, a realidade permanecendo coordenada a
ele” (Wittgenstein 1968: 112). Hintikka conclui:

Podemos dizer que a razão pela qual Wittgenstein defen-


deu que o solipsismo é essencialmente correto é diametri-
camente oposta à razão usualmente dada ao solipsismo.
O que em geral é tomado como asserção do solipsismo é
a impossibilidade de ir “além das fronteiras de mim mes-
mo”. O solipsismo de Wittgenstein é baseado na asserção
exatamente oposta de que toda fronteira ordinária de mim
mesmo é inteiramente contingente e portanto irrelevante
“para o que está no alto” (Hintikka, 1958: 91).

Começamos a perceber agora por que Nauman e Domin-


guez devem lançar mão do solipsismo coreográfico. O solip-
sismo coreográfico é um modo de desmantelar por dentro a
subjetivação da modernidade como esse modo idiótico, au-
tossuficiente e autônomo de solidão. O solipsismo torna-se
uma contrametodologia crítica e coreográfica, um modo de
intensificar, crítica e fisicamente, as condições hegemônicas
da subjetivação e explodi-las em direções imprevisíveis. Nes-
te sentido, o homem solitário transforma seus aposentos: de
jaula para aquele espaço crítico chamado por Phillip Zarrilli de
“o ateliê metafísico, [...] um lugar de hipóteses, portanto de
possibilidades, [...] onde algo pode surgir do nada” (Zarrilli,

84
2002: 160). É por isso que ao final de AGSAMA, o que havia
se iniciado como uma exaustiva exibição de masculinidade,
solidão, escrita, cadência e autorreferencialidade, aos poucos
dissolve-se numa estranha teia de inclusões – narrativas, mas
também experienciais. Inclusões que mostram como o core-
ográfico (precisamente por ser uma tecnologia de subjetiva-
ção que funde movimento com escrita com corpo com au-
sência com presença) também pode oferecer rotas de fuga de
seu dúbio projeto de mobilização sem sentido. Inclusões que
mostram, portanto, como o solipsismo, uma vez entendido
como metodologia filosófica que implica a força poética da
linguagem no próprio coração do mundo, pode tornar-se um
meio de transcender o autocontido, o socialmente apartado e
o autossuficiente ser-para-o-movimento moderno.
É aqui, quando Wittgenstein em seu Tractatus abandona
a noção de sujeito, que um incrível solo de Xavier Le Roy
– produzido sob as condições dessa ideia expandida de um
solipsismo metodológico que perturba a noção de isolamento
absoluto – deve ser invocado. Em Self Unfinished (1999), Le
Roy também renuncia à noção de sujeito, e com ela os modos
de prender o ser em categorias fixas: masculino e feminino,
humano e animal, objeto e sujeito, passivo e ativo, mecânico
e orgânico, ausente e presente, todas essas oposições que têm
psicofilosoficamente emoldurado a subjetividade moderna
dentro de opções binárias fixas. Le Roy substitui estas catego-
rias por uma série de puros devires, no sentido estrito dado a
eles por Deleuze e Guattari:

Um devir não é uma correspondência de relações. Mas


tampouco é ele uma semelhança, uma imitação e, em últi-
ma instância, uma identificação. [...] O devir não produz
outra coisa senão ele próprio. [...] Devir é um verbo tendo
toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz
a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir”
(Deleuze e Guattari 2007: 18-19).

85
O que um devir produz ao produzir a si mesmo? Uma for-
ça, um plano de consistência ou composição de desejo, um
Corpo Sem Órgãos (Deleuze e Guattari 2007: 60). O que
é produzido por um devir nunca é uma representação, mas
um plano de imanência do desejo, o qual, através da ativa-
ção daqueles “experimentos” próprios ao devir, inaugura uma
política de micropercepções que dá margem a agrupamentos
de agência e posições minoritárias: esquizos, crianças, negros,
mulheres, animais... (Deleuze e Guattari, 2007: 87-90). Esta é
precisamente a força biopolítica de qualquer devir: “todo devir
é um devir-minoritário” (Deleuze e Guattari, 2007: 87). Sig-
nificativamente, invenções de cada posição minoritária apare-
cem e desaparecem continuamente em Self-Unfinished.
A palavra chave é “experimentação” – como condição fun-
damental para alcançar “outras possibilidades contemporâne-
as” que revelem o corpo como “organismo, história e sujeito
da enunciação”, revelando ao mesmo tempo aqueles modos de
sujeição hegemônica que “nos roubam” o corpo “para fabricar
organismos oponíveis” (homem ou mulher, menino ou meni-
na, dançarino ou advogado, padre ou escultor, coreógrafo ou
teórico) (Deleuze e Guattari, 2007: 69). Em outros termos:
experimentação contínua, ontologicamente interminável. O
solo de Le Roy nunca cai nestas oposições, restituindo assim ao
corpo o poder de constantemente reinventar-se. Neste exemplo
de solipsismo coreográfico metodológico, encontramos o idiota
abandonando seu plano de autocontenção e tornando-se gene-
rativa e inteligentemente bobo em seu progressivo devir maquí-
nico e orgânico, humano e objetual, subjetivo e interminável,
homem e mulher, animal e escultural, negro e branco, ativo e
passivo, alegre e triste, solitário e múltiplo – constantemente
desorganizando e reorganizando aquela pergunta fundamental
que liga a filosofia à dança: o que pode um corpo?
Ao entrarmos no espaço da performance, encontramos Le
Roy sentado numa escrivaninha, vestido em camisa e calças
pretas, a receber o público, a observar nossa chegada. Durante

86
uma hora, ele executa três séries de ações: primeiro, totalmen-
te vestido em suas calças e camisa pretas, ele move-se como
uma imitação bem humorada de um ser robótico, vocalizando
sons maquínicos. Depois, ele tira os sapatos e as calças e desen-
rola a camisa revelando-a como um longo tubo que se estende
até os pés, feito um vestido. Este devir mulher é rapidamente
dissolvido quando ele flexiona o corpo na forma de um V in-
vertido e passa a mover pela cena como um quadrúpede sem
cabeça. De quatro, Le Roy vai até a parede ao fundo e se eleva
sobre as mãos durante um tempo. Então, apoiado pelos om-
bros, virado para a parede, ele prossegue tirando toda a roupa.
Nu, e sempre apoiado pelos ombros, seus braços são tomados
como franzinos órgãos de equilíbrio e localização espacial –
seu corpo se torna uma figura não reconhecível (ao meu lado
no The Kitchen, em Nova York, em 2003, alguém murmura
que ele “parece, tipo assim, uma galinha processada crua”).
Le Roy demora-se um tempo nesta forma: nu, apoiado sobre
os ombros no chão, com a cabeça escondida entre as pernas,
nádegas para cima, movendo de forma pateticamente inefi-
ciente, tornando-se informe. De todos os trabalhos analisados
até aqui, esta é a primeira vez que a representação total, radical
e consistentemente subverte o isomorfismo hegemônico entre
presença, masculinidade, verticalidade, figura, nome próprio,
frontalidade, facialidade e motilidade eficiente.
Ainda assim, o coreográfico ontohistórico emerge para as-
sombrar [haunt] e forçar sua presença, ainda que agora apenas
em seus elementos mais mínimos: a escrivaninha do coreó-
grafo-escritor-filósofo está lá com seu inescapável assento; o
espaço branco, vazio, abstrato está lá; assim como também
está lá, sobre o chão, um aparelho de som portátil, de modo
que a telecomunicação com a voz do outro ausente perma-
nece possível. (No final da performance, Le Roy sai de cena
completamente vestido outra vez, deixando o público com o
aparelho de som tocando Diana Ross: “Upside Down / now
you’re turning me / inside out / round and round...” [“De ponta

87
cabeça / agora você me vira / ao avesso / a girar...”]. Mas a pre-
sença de entradas ontofantasmáticas [hauntological inclusions]
em Self Unfinished já indica a morte delas: na metade da peça,
nu, de ponta cabeça, sobre os ombros, cabeça escondida, uma
massa informe de descrição impossível, já em contínua muta-
ção a cada instante, Le Roy desliza para baixo da escrivaninha
e a destrói aos chutes. E embora aperte o play no som portátil
várias vezes ao longo da peça, ele nunca o faz funcionar, atra-
sando assim a chegada da voz do outro. Também o corpo mas-
culino como presença privilegiada no espaço solitário da core-
ografia desaparece rapidamente graças ao uso trans-gênero que
Le Roy faz de sua roupa e ao devir animal sugerido pelas in-
voluções e contorções de seu corpo nu, cujos olhos nunca nos
olha. Le Roy oferece uma percepção inteiramente diferente do
que é um corpo: não um estável hospedeiro de carne para um
sujeito, mas uma força dinâmica, um experimento ininterrup-
to pronto para alcançar imprevisíveis planos de imanência e
consistência. Em seu uso radical do solipsismo coreográfico,
Le Roy exaure o ser-para-o-movimento. Pois o que interessa
em Self Unfinished nunca é o espetáculo do movimento, mas
sim o pacote de afectos e perceptos desprendidos das muitas
paragens, repetições, reiterações, imagens divertidas e formas
inomináveis que Le Roy nos apresenta.
Já não estamos mais diante da noção do self como casa pró-
pria do sujeito individuado, como pressuposta condição para
o corpo disciplinado ser habitado pelo coreográfico. O self
de Le Roy é unfinished [inacabado] não porque ainda não se
completou, mas porque jamais poderá completar-se. Essa in-
completude não deriva da trágica interrupção de um processo
teleológico, mas da afirmação de Le Roy de uma ontologia da
incompletude radical, um processo que ele chama “relação”
(Le Roy, 2002: 46). Ao explicar sua noção de relação, Le Roy
invoca o conceito de “corpo-imagem” de Paul Schilder (1964)
e o faz funcionar junto às noções de devir e Corpo sem Órgãos

88
de Deleuze e Guattari.43 Numa “Auto-Entrevista” de novem-
bro de 2000, Le Roy escreve:

X5: Não sei. Mas frequentemente me pergunto por que


nossos corpos deveriam terminar na pele ou no máximo
incluir outros seres, organismos ou objetos encapsulados
pela pele?
Y5: Eu não sei também, mas você pode falar sobre o fato
de que a imagem do corpo é extremamente fluida e di-
nâmica. Que suas bordas, fronteiras ou contornos são
“osmóticas” e que elas têm o poder extraordinário de in-
corporar e expelir o dentro e o fora numa troca contínua?
X6: Sim. Como você diz, as imagens do corpo são capazes
de acomodar e incorporar uma gama extremamente am-
pla de objetos e discursos. Qualquer coisa que entre em
contato com as superfícies do corpo e permaneça ali tem-
po o suficiente será incorporada à imagem do corpo [...]
Y6: Então, em outras palavras, você está dizendo que a
imagem do corpo é uma função tanto da psicologia e con-
texto sócio-histórico do sujeito quando de sua anatomia.
E que há várias influências não humanas tecidas em nós.
X7: Exatamente. Então deve haver outra alternativa para
a imagem do corpo que a anatômica.
X8: Por exemplo: Eu penso que o corpo poderia ser per-
cebido como espaço e tempo para a troca, o tráfico e o
intercâmbio...
X9:... seguindo essa ideia, isso significaria que cada indi-
víduo seria percebido como uma infinidade de partes ex-
tensivas. Em outros termos, só existiriam indivíduos com-
postos. Um indivíduo seria uma noção completamente
desprovida de sentido. (Le Roy, 2002: 45-6)

Self Unfinished de Le Roy propõe um entendimento do cor-


po que desafia o confinamento do corpo trazido pela moder-
nidade. O corpo individual, o corpo monádico, não tem mais
vez. Se, como nos relembra Harvie Ferguson, “o traço distintivo

43.  Eu discuto a noção de “corpo-imagem” de Paul Schilder no próximo capítulo.

89
da corporeidade moderna repousa no processo de individuação,
na identificação do corpo com a pessoa como indivíduo exclu-
sivo e, portanto, como portador de valores e direitos legalmente
sancionáveis” (Ferguson, 2000: 38), então podemos perceber a
distinta dimensão do gesto de Le Roy dentro da sanção onto-
coreográfica do modo de autoreprodução da modernidade. O
deslocamento da noção de indivíduo em Le Roy é a suprema
exaustão do modo de coreografar a dança da subjetividade na
modernidade. Sem individuação, não pode haver possibilidade
de se designar uma subjetividade dentro das economias da lei,
na nomeação e da significação. Através do tipo particular de
solipsismo tão intensamente informe performado por Le Roy,
o desmantelamento do corpo idiótico da modernidade e sua
substituição por um corpo relacional renova a coreografia como
prática de potencialidade política.

90
II
UMA “ONTOLOGIA MAIS LENTA”
DA COREOGRAFIA A CRÍTICA DA
REPRESENTAÇÃO EM JÉRÔME BEL

Esta representação, cuja estrutura se imprime não


apenas na arte mas em toda a cultura ocidental
(as suas religiões, as suas filosofias, a sua política),
designa portanto mais do que um tipo particular
de construção teatral. (Derrida, 2002: 153)

Antes de escrever sobre o trabalho do coreógrafo francês


Jérôme Bel, é importante contextualizar brevemente o movi-
mento particular na recente dança europeia do qual ele emerge.
Penso aqui nas propostas criadas a partir de meados da década
90 por coreógrafos como La Ribot, Jonathan Burrows, Boris
Charmatz, Xavier Le Roy, Mårten Spångberg, Vera Mantero,
Thomas Lehmen, Meg Stuart, Juan Dominguez, para nomear
apenas alguns dos mais reconhecidos.44 Este movimento ganha
forma, força e visibilidade a partir da metade da década de 90,
mas não é sob qualquer aspecto um movimento organizado
ou com nome próprio.45 Apesar das múltiplas diferenças nos

44.  Para uma discussão do trabalho de La Ribot, ver Capítulo 4; sobre o trabalho de Juan
Dominguez, ver Capítulo 2; sobre o trabalho de Vera Mantero, ver Capítulo 6. Mais sobre
esse movimento recente na dança europeia, ver Lepecki (2000, 2004), Ploebst (2001),
Burt (2004) e Siegmund (2004).
45.  Críticos de dança costumam referir-se a este movimento como “dança conceitual”.
Muitos coreógrafos envolvidos não aceitam essa definição. Ver, por exemplo, a declaração
modos de trabalhar, das divergentes escolhas dramatúrgicas e,
por vezes, até de antagonismos declarados entre os modos como
cada coreógrafo lida com a forma, o discurso e o conteúdo, é
possível identificar convergências bastante expressivas entre eles.
Um interesse predominante é o questionamento da ontologia
política da coreografia, o qual é particularmente significativo
para a questão que eu pretendo explorar neste capítulo: a dança
que inicia uma crítica da representação ao insistir no parado, na
lentidão e naquela forma particular de repetição conhecida na
retórica como “paronomásia”. Se tal questionamento está pre-
sente em muitos dos trabalhos dos coreógrafos listados acima,
nenhum foi tão implacável e consistente em levá-lo ao seu limi-
de Xavier Le Roy: “Eu não me considero um artista conceitual e não conheço qualquer
coreógrafo que trabalhe com dança sem um conceito” (Le Roy et al., 2004: 10). Em 2001,
um grupo formado por muitos coreógrafos e críticos alinhados a esta cena experimental
(incluindo La Ribot, Xavier Le Roy e Christopher Wavelet) reuniram-se em Viena para
redigir um documento a ser submetido à União Europeia com sugestões de diretrizes
políticas para a dança e performance europeia. Neste documento, havia uma resoluta
resistência a nomear as práticas coreográficas atuais sob um único termo:

Nossas práticas podem ser chamadas de: “arte de performance”,


“live art”, “happenings”, “eventos”, “body art”, “dança/teatro
contemporâneos”, “dança experimental”, “nova dança”, “perfor-
mance multimídia”, “site specific”, “instalação corporal”, “teatro
físico”, “laboratório”, “dança conceitual”, “independência”, “dan-
ça/performance pós-colonial”, “dança de rua”, “dança urbana”,
dança-teatro”, “dança-performance” – para citar só alguns... (Ma-
nifesto for a European Performance Policy, 2001).

Eu considero, entretanto, que o termo “dança conceitual” pelo menos situa historicamente
este movimento da dança europeia dentro de uma genealogia da performance e das artes
visuais no século XX, ao referenciar a arte conceitual do final da década de 1960 e co-
meço dos 1970, a qual partilha de uma série de características análogas, como a crítica
da representação, a insistência na política, a fusão do visual com o linguístico, a pulsão
pela dissolução dos gêneros artísticos, a crítica da autoria, a dispersão da obra de arte, o
privilégio do evento, a crítica das instituições e a ênfase estética no minimalismo – todos
traços recorrentes em muitos dos trabalhos coreográficos realizados na Europa dos quais
Jérôme Bel é um dos iniciadores. O termo “dança conceitual” no mínimo previne uma
pretensão de originalidade histórica absoluta ao movimento, o que acredito ser desejável
aos participantes, já que todos mantém um diálogo franco e aberto com a história da arte
de performance e da dança pós-moderna.

92
te quanto Jérôme Bel, desde sua primeira peça de noite inteira
Nom Donné par l’Auteur [Nome Dado pelo Autor] (1994).
O enfrentamento de Bel da ontologia política da dança
toma a forma de uma sistemática crítica à participação da co-
reografia no projeto mais amplo da representação ocidental.
A crítica da representação é uma das principais característi-
cas da performance, do teatro e da dança experimentais do
começo do século XX – desde, pelo menos, a “urgência” de
Brecht em “compreender a mimesis [...] como historicamente
mediada” (Diamond, 1997: viii), e os famosos manifestos de
Antonin Artaud por um teatro da crueldade no começo da
década de 1930, os quais, como observa Derrida, não apenas
anunciam o “limite da representação” mas propõem também
um “sistema de críticas abalando o todo da história do Oci-
dente” (Derrida, 2002: 153, grifo no original).46 Em termos
teóricos, a crítica da representação anuncia “uma fratura no
regime epistemológico da modernidade, um regime que re-
pousava numa crença no efeito de realidade” da representação
na medida em que este assegurava a estabilidade do discurso
(Gordon, 1997: 10). A teoria crítica (particularmente após a
Dialética do Esclarecimento (1985) de Adorno e Horkheimer)
e a desconstrução (toda a obra de Derrida) precipitaram e par-
ticiparam desta fratura epistemológica do efeito de realidade
da representação de modo a revelar como ela reproduz, discur-
siva e performativamente, formas de dominação. Na dança, a
crítica da representação foi um dos impulsos determinantes
por trás da dança pós-moderna norte-americana da década de
1960, um impulso que a tornou particularmente próxima do
projeto político da arte de performance e da estética do mini-
malismo – como articula Yvonne Rainer em seu famoso “NO
Manifesto” (“Manifesto NÃO”): “NÃO ao espetáculo não à

46.  Para uma discussão de toda uma tradição de crítica representacional na performance
contemporânea desde o teatro épico de Bertold Brecht, ver Elin Diamond, Unmaking
Mimesis (1997). Para uma crítica da representação na arte de performance, ver Amelia
Jones, Body Art/Performing the Subject (1998).

93
virtuosidade não às transformações e à mágica e ao fazer de
conta” (In: Banes, 1987: 43).
Bel é totalmente consciente destas experimentações esté-
ticas, teóricas e políticas. O que distingue seu modo específi-
co de criticar o representacional é sua insistência em desvelar
como a coreografia participa de modo particular da “submis-
são da subjetividade” efetuada pela representação dentro das
estruturas modernas do poder e como dela se faz cúmplice
(Foucault, 1997: 332).47 O trabalho de Bel articula a seguin-
te proposição: para pensar a relação entre coreografia, repre-
sentação e subjetividade, é preciso entender a representação
não só como algo específico ao mimético (isto é, ao que é
propriamente teatral no teatro), mas considerá-la como uma
força ontohistórica, uma força que no Ocidente aprisiona a
subjetividade dentro de uma série de equivalências isomórfi-
cas. Particularmente relevante aos estudos da dança é o modo
como Bel revela as equivalências, impressas “não apenas na
arte, mas em toda a cultura ocidental (as suas religiões, as suas
filosofias, a sua política)” (Derrida, 2002: 153), que a repre-
sentação estabelece entre visibilidade e presença, presença e
unidade da forma, unidade da forma e identidade. O uso que
Bel faz da parado, da lentidão e da reiteração paronomástica
ilustra como a coreografia reforça e reifica estas séries de equi-
valências, exibindo espetacularmente o confinamento da sub-

47.  Foucault escreve, de modo retrospecto, em 1982, “não é o poder, mas o sujeito que
constitui o tema geral de minha pesquisa” (Foucault, 2010: 232). Ele esclarece:

Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo con-


trole e dependência, e [sujeito] preso a sua própria identidade por
uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma
de poder que subjuga e torna sujeito a. (Foucault, 2010: 235)

Assim, como explica Deleuze, Foucault não reinsere uma noção transcendental “do sujeito”
de volta em sua teoria, mas entende o “sujeito” como função do poder: “É idiota dizer que
Foucault descobre ou reintroduz um sujeito oculto depois de o ter negado. Não há sujeito,
mas uma produção de subjetividade: a subjetividade deve ser produzida, quando chega o
momento, justamente porque não há sujeito” (Deleuze, 1992: 141).

94
jetividade dentro da nervosa cinética moderna do “ser-para-o-
-movimento” (Sloterdijk, 2002: 33).48
Refletindo assim sobre a ontologia política da coreografia
em relação à representação e à subjetividade, o trabalho de
Bel propõe as seguintes questões: de que modos a coreogra-
fia ocidental faz parte de uma economia geral da mimesis49
que molda e aprisiona a subjetividade? Como, ao explorar as
condições que possibilitam a coreografia, podemos revelar sua
participação na produção da subjetividade no espaço da repre-
sentação? Que mecanismos permitem ao dançarino tornar-se
um representante do coreógrafo? Que força estranha é essa
no cerne do coreográfico que subjuga o dançarino a seguir
rigorosamente uma série de passos predeterminados, mesmo
na ausência do coreógrafo? Como o pacto da coreografia com
o imperativo do movimento abastece, reproduz e captura a
subjetividade na economia geral do representacional?
Em termos dramatúrgicos, composicionais e coreográficos,
Bel responde a estas questões destilando drasticamente a core-
ografia aos seus elementos mais básicos. Historicamente, estes
elementos da coreografia (e eu gostaria de insistir nas parti-
cularidades invocadas por esta palavra) têm sido: um espaço
fechado com um piso plano e liso; pelo menos um corpo, ade-
quadamente disciplinado; um voluntarismo deste corpo em
submeter-se ao comando para mover-se; um tornar-se visível
sob as condições do que é teatral (perspectiva, distância, ilu-
são); e a crença numa unidade estável entre a visibilidade do
corpo, sua presença e sua subjetividade. Bel trata de cada um
destes elementos em seus trabalhos: expondo-os, exagerando-
-os, subvertendo-os, destruindo-os, complicando-os.

48.  Para uma discussão detalhada deste conceito, ver Introdução e Capítulo 2.
49.  Derrida chamou a fusão da economia geral e da economia restrita com a lógica do
mimético (da representação) “economimesis” – um termo que enfatiza como a lei (nomos)
da representação é o abrigo (oikos) onde repousam a metafísica e a estética ocidentais
(Derrida, 1981).

95
Na peça The Last Performance [A Última Performance]
(1998), as relações entre presença, visibilidade, representação
e subjetividade são trazidas para o primeiro plano e então exa-
minadas, esquadrinhadas, exauridas. Ao longo dos 60 minu-
tos deste trabalho, quatro dançarinos (Antonio Carallo, Claire
Haenni, Frédéric Seguette, Jérôme Bel) trocam continuamen-
te de nome, personagem, subjetividade: um corpo que não é
de Jérôme Bel abre o espetáculo anunciando para o público,
inexpressivamente, sozinho em cena, em frente a um microfo-
ne: “Je suis Jérôme Bel” [Eu sou Jérôme Bel]. Depois de esperar
parado durante um minuto (contado em seu relógio), Frédé-
ric Seguette-Jérôme Bel sai de cena e um corpo que carrega
legalmente o nome Jérôme Bel, vestido de branco como um
jogador de tênis, entra e nos anuncia em inglês, no mesmo mi-
crofone, inexpressivamente, sozinho no centro do palco: “I am
Andre Agassi” [Eu sou Andre Agassi]. Depois de bater algumas
bolas de tênis contra a parede ao fundo do palco, Bel-Agassi
sai de cena e o dançarino Antonio Carallo entra, espera cerca
de um minuto em silêncio, parado em frente ao microfone, e
nos diz, inexpressivamente: “I am Hamlet” [Eu sou Hamlet].
A anunciação de Carallo esclarece a questão central desta peça,
isto é, a questão da ontologia em seu enredamento com a his-
tória da representação (teatral). Pois, imediatamente após nos
anunciar quem ele representa, Carallo-Hamlet pronuncia as
famosas linhas da Cena 1 do Terceiro Ato. Primeiro, as pala-
vras “to be” [ser] são ditas em cena, no microfone, e depois ele
caminha calmamente para a coxia e de lá grita “or not to be”
[ou não ser], retornando calmamente para apresentar a essên-
cia dramatúrgica da peça: “that is the question” [eis a questão].
A questão de Hamlet é, evidentemente, a questão do ser, aqui-
lo que Heidegger em Introdução à Metafísica chamou “a ques-
tão fundamental” (Heidegger, 1987: 1-51). O que Bel faz em
The Last Performance é mostrar como esta questão, uma vez
enunciada sob o signo da coreografia naquele espaço represen-
tacional particularmente hiperbólico, que é o palco de teatro,

96
tem o potencial de revelar uma série de associações reificadas
entre presença e visibilidade, ausência e invisibilidade.
Eu retornarei a The Last Performance no final deste capítulo.
Por ora, gravemos apenas sua operação sintagmática – em The
Last Performance, um conjunto restrito de nomes são cons-
tantemente trocados e reatribuídos, complicando assim qual-
quer atribuição “própria” ou estável da subjetividade dentro da
questão fundamental do ser (ou não ser) no campo expandido
do representacional. Ao intercambiar nomes num jogo per-
mutativo de ontológicos, The Last Performance explicita que a
questão fundamental trazida a tona por Heidegger e Hamlet –
a questão da ontologia – persegue/assombra [haunts] qualquer
reflexão crítica sobre a performance – como já indicado na
famosa noção de Richard Schechner sobre “comportamento
duas vezes experienciado” (twice-behaved behavior), a qual
depende de uma ontologia paradoxal, sempre oscilando entre
“não-eu e não não-eu” (Schechner, 1985: 127), ou conforme
articulado por Peggy Phelan quando ela propõe que a ontolo-
gia da performance é também uma “ontologia da subjetivida-
de” (Phelan, 1993: 146).50
The Last Performance exemplifica muito claramente como
corpos e subjetividades são capturados dentro de espaços de
representação linguísticos e culturais, mas também físicos e
materiais. Todo o trabalho de Bel mostra como supostos ele-
mentos “externos” à coreografia (particularmente a linguagem
e o próprio espaço do teatro) são na verdade cúmplices numa
sujeição coletiva à representação. Mas o trabalho revela tam-
bém que o fim da representação permanece ao mesmo tempo
um projeto e uma impossibilidade. Bel concordaria com Der-
rida quando este escreve que “porque ela sempre já começou, a
representação não tem portanto fim” (Derrida, 2002: 176). O
jogo de Bel com os nomes, com personagens históricos, com
50.  Ver também Phelan (1993: 27, 148). Phelan expande mais explicitamente sua pesqui-
sa ontológica sobre a performance como pesquisa ontológica sobre a subjetividade em
Mourning Sex (1997).

97
a linguagem, indica que seu trabalho é informado pelo fato
de que a “presença, para ser presença e presença a si, come-
çou já sempre a representar-se, já sempre a ser iniciada [pela
representação]” (Derrida, 2002: 174). Seu trabalho toca na-
quela ambiguidade da subjetividade que Deleuze e Guattari
identificam, quando estes afirmam ser “uma falsa alternati-
va que nos faz dizer: ou imitamos ou somos” (Deleuze and
Guattari, 2007: 18). Mas se o fim da representação permanece
um projeto político e estético sem fim, a exploração dos seus
meios permanece uma necessidade – dado o enredamento da
representação com as formas hegemônicas da sujeição/subje-
tivação. Bel insiste nesta exploração dos meios da representa-
ção ao postular que o fim da representação é o limite de sua
capacidade de transformar a presença em subjetividade fixa,
reconhecível. Para a realização plena desse projeto, é crucial
uma interpelação simultânea dos contextos históricos, onto-
lógicos e espaciais da coreografia. Daí, dois elementos cons-
tantes no trabalho de Bel: seu uso de corpos isolados (mesmo
em suas peças de grupo, corpos aparecem como envoltos em
solipsismo), e sua interrogação da arquitetura do teatro em si
como representante espacial da isolada e isolante interioridade
da representação. De fato, as peças de Bel sugerem constante-
mente que tanto performers quanto espectadores estão coex-
tensivamente capturados por estas máquinas representacionais
particularmente carregadas: a linguagem e o teatro.
Na peça Jérôme Bel (1995), quatro dançarinos entram nus
em cena carregando nada além de uma lâmpada acesa e giz
branco.51 Esta lâmpada acesa será a única fonte de luz da peça
que dura cerca de uma hora (sua literalidade minimalista in-
voca o “não à ilusão” de Yvonne Rainer). O giz branco é usa-
do pelos dançarinos Claire Haenni e Frédéric Seguette para
escreverem seus nomes próprios na parede dos fundos, bem

51.  Os performers são, em geral: Claire Haenni, Éric Lamoureux, Yseult Roch, Frédéric
Seguette, Gisèle Tremey. Ocasionalmente, Patrick Harlay substitui Yseult Roch.

98
em cima de suas cabeças (ressaltando a sobredeterminação da
presença que a força legal do nome próprio encena), junto
com suas idades, seus saldos bancários, seus números de te-
lefone, peso e altura, listados um abaixo do outro ao lado de
seus corpos. Eles ficam parados em pé por um tempo sob seus
nomes, ao lado de suas informações numéricas, como se seus
corpos fossem as legendas daquilo que lemos na parede. Os
outros dois dançarinos fazem a mesma ação e também ficam
parados em pé, mas sob nomes que não são os seus, nomes que
eles representam, nomes que serão representados pelas ações
dos dançarinos. Assim, a mulher mais velha (Gisèle Tremey),
que segura a lâmpada acesa, escreve e põe-se abaixo de “Tho-
mas Edison”. A mulher mais jovem (Yseult Roch), que cantará
A Sagração da Primavera na íntegra ao longo da maior parte
de Jérôme Bel, escreve e põe-se abaixo de “Stravinsky, Igor”. A
primeira salienta a fotologia que repousa na essência da repre-
sentação; a segunda acentua a força espectral [haunting force]
da dança escorrendo através do tempo. A luz bem localizada,
o vazio do palco, a nudez dos dançarinos, todos os nomes
sobredeterminando a presença (incluindo o nome do coreó-
grafo, que é o título da peça e que, portanto, paira sobre todas
as cenas), tudo mostra como a representação opera como uma
força isolante e centrípeta que define constantemente seu es-
paço como pura interioridade. O Jérôme Bel de Jérôme Bel
nos lembra que, se a representação facilita uma experiência do
“fora”, é apenas como uma relação subordinada ao “dentro”
que a representação assegura, preserva e reproduz. E o que a
representação reproduz infinitamente é ela própria – a repre-
sentação reproduz seu poder de espelhar perpetuamente sua
auto-sustentação.52

52.  É assim que Jean-Luc Nancy descreve o funcionamento da representação em seu en-
saio “The Birth to Presence”. Para Nancy, “representação é o que determina a si mesma
por seu limite” (Nancy, 1993: 1). Assim, a expansão temporal e geográfica do Ocidente
corresponde a uma reiteração infinita, centrípeta, de sua confinação em seu próprio “fe-
chamento... chamado representação” (1993: 1).

99
Bel explora e desestabiliza o circuito fechado da representa-
ção ao bagunçar os isomorfismos reificados que a representa-
ção estabelece entre presença, visibilidade, personagem, nome,
corpo, subjetividade e ser – todos conceitos funcionalmente
equivalentes para a representação e que sustentam a fantasia
da unidade do sujeito. Se uma peça se chama Jérôme Bel, mas o
corpo representado pelo nome que o título evoca não aparece,
não está visualmente ali, como podemos identificar a presença
com aparição? Como podemos conferir uma presença total a
um corpo singular?53 De fato, talvez Bel esteja propondo uma
revisão de nossas concepções de presença, corpo e do estar lá.
Num texto publicado em 1999, Bel articula sua recusa em
aceitar a noção do sujeito como entidade fechada e auto-re-
presentacional, limitada por suas fronteiras corporais visíveis e
localizáveis: “não há algo como um sujeito individual ou um
foco central (um ‘tu’ e um ‘eu’)” (1999: 36). Ele segue enu-
merando todos os corpos que ele foi no momento de escrever
aquele texto – 33 nomes individuais e coletivos, desde Gilles
Deleuze a Myriam van Imschoot, de Samuel Beckett a “indi-
víduos desconhecidos na megalópole onde resido”, de Peggy
Phelan a “Claude Ramey (um nome inventado, talvez real)”,
de Hegel a Xavier Le Roy, a Madame Bovary, a Diana Ross, ao
Ballet de Frankfurt, a “você mesmo” (Bel, 1999: 36). E ele nos
faz lembrar que cada um destes nomes também são matilhas

53.  A ruptura da noção de presença da percepção de um ser totalmente visível foi pro-
posta por algumas filosofias do começo do século XX. Partindo da fenomenologia de
Husserl, e a complicando, Martin Heidegger foi um dos que executaram o que John
Sallis chamou de “decisivo [...] deslocamento da presença”. Sallis explicou que para
Heidegger “não há presença pura; pois seja lá o que se apresente, já existe aí em jogo a
operação da significação” (Sallis, 1984: 598). Para mais discussão sobre o deslocamento
da presença efetuado por Heidegger e suas implicações para os estudos da performance
e da dança, ver Capítulo 4. Outra importante contribuição para este deslocamento,
embora advinda de outra tradição filosófica e direcionada a outros objetivos e preo-
cupações, vem de Henri Bergson, cuja teoria da memória (particularmente conforme
articulada em Matéria e Memória) o permitiu mostrar como a metafísica ocidental havia
sempre “confundido Ser com estar-presente” (Deleuze, 1988: 55). Eu discuto a teoria
da memória e da temporalidade de Bergson na Conclusão.

100
de outros corpos e outras coletividades. A subjetividade e o
corpo que Bel oferece claramente não são mônadas ou singu-
laridades auto-reflexivas, mas matilhas, coletividades abertas,
processos contínuos de multiplicidades em desdobramento.54
Como ele próprio nos diz, seu interesse é em subjetividades e
corpos análogos ao “Corpo sem Órgãos” teorizado por Gilles
Deleuze e Félix Guattari: um corpo rizomático, um projeto
artaudiano, um experimento em curso.
Deleuze e Guattari propuseram que “há um modo de in-
dividuação muito diferente daquele de uma pessoa, um su-
jeito, uma coisa ou uma substância”, que eles chamaram de
“matilha”55 (Deleuze e Guattari, 2007: 47). Esta subjetividade
aberta, que não é circunscrita pelo cerco legal imposto pelo
nome, pela personagem ou pela reificação do isomorfismo en-
tre corpo visível e presença plena. Ela faz ecoar teoricamente o
conceito de “corpo-imagem” de Paul Schilder – um conceito
contemporâneo ao segundo manifesto do teatro da crueldade
de Artaud (1935) e precedendo em uma década o clamor de
Artaud por um corpo sem órgãos. Para o psicanalista austría-
co, o corpo-imagem de alguém não coincide com a presença
visível de seu corpo. Na realidade, o corpo-imagem estende-se
para qualquer lugar no qual qualquer partícula do corpo de
alguém chegou através do tempo e do espaço. Em qualquer
lugar onde deixamos uma partícula do nosso corpo (fezes, san-
gue, menstruação, urina, suor, lágrimas, sêmen) encontramos
os limites do nosso corpo-imagem. Em qualquer lugar onde

54.  “Uma multiplicidade se define, não pelos elementos que a compõem em extensão,
nem pelas características que a compõem em compreensão, mas pelas linhas e dimensões
que ela comporta em ‘intensão’” (Deleuze e Guattari, 2007: 27). A “intensão” do autor
ou autora (e não sua “intenção”) é a ativação de seu afeto por “linhas e dimensões” que
“constituem a matilha em tal momento” (idem).
55.  Em inglês, “pack”, traduzido do francês “meute”: bando de lobos. Em português o
termo correto seria, portanto, “alcateia”. Mas na edição de Mil Platôs consultada por nós
(São Paulo: Editora 34, 2007), o termo utilizado é “matilha”, bando de cachorros. Para
não confundir o leitor brasileiro, mantivemos, com esta ressalva, o levemente inexato
termo “matilha” ao longo deste livro. (N.T.)

101
deixamos uma impressão do nosso corpo (incluindo impres-
sões linguísticas, afetivas, sensórias) encontramos os limites
do nosso corpo-imagem. A noção de Schilder do corpo como
corpo-imagem já é rizomática, esquizo, no sentido de procla-
mar um corpo sempre para além de suas fronteiras particula-
res, para além das noções metafísicas tradicionais de presença:
um corpo que está sempre atrasado para sua chegada e sempre
adiantado para sua partida, um corpo nunca inteiramente ali
no contexto de sua aparição (Schilder, 1964).
Essa abertura do corpo e da subjetividade para além de um
circuito fechado proposta por Jérôme Bel estabelece alguns
desafios metodológicos e epistemológicos para os estudos da
dança. Se o sujeito dançante já não é mais uma unidade e se o
corpo visível em cena já não revela inteiramente sua presença,
como podem agora os estudos da dança tratarem daquilo que,
como disciplina, é pressuposto ser o seu domínio: a presença
em movimento de corpos no restrito espaço do palco? Se o
corpo é uma matilha, um rizoma, um corpo-imagem, se ele
é semântico tanto quanto somático, espraiando-se através do
tempo e do espaço, então de que modos a linguagem crítica
pode avaliar trabalhos coreográficos construídos a partir deste
modelo expandido do corpo e da subjetividade? Uma possível
resposta para a disciplina dos estudos da dança seria convidá-
-la a considerar o questionamento radical da pressuposta es-
tabilidade (assegurada pela representação) entre a aparição de
um corpo em movimento no palco (sua presença) e o espetá-
culo de sua subjetividade (que a representação sempre compu-
ta como espetáculo de uma identidade).
Se aderirmos a esta operação crítica, logo perceberemos
que não é apenas o status do corpo dançante em cena que de-
manda uma revisão crítica. A suposta singularidade do autor-
-coreógrafo também deve ser revista.56 Não é de surpreender

56.  A crítica à singularidade do autor atinge seu auge no final da década de 1960, particular-
mente com o ensaio “A Morte do Autor” (1968) de Barthes, o ensaio “La différance” (1968)

102
que uma reavaliação da singularidade do autor é um dos ele-
mentos que Jérôme Bel está particularmente interessado em
investigar na sua crítica da coreografia. De fato, suas duas pri-
meiras peças de noite inteira (Nom Donné par l’Auteur, 1994
e Jérôme Bel, 1995) tratam explicitamente da questão da au-
toria, da figura do autor e do poder teológico-econômico do
autor como transcendental nome-que-nomeia – aquele poder
que Foucault chamou de “função autor”:

A função autor está ligada ao sistema jurídico e institu-


cional que contém, determina, articula o universo dos
discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma
maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e
em todas as formas de civilização; ela não é definida pela
atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor,
mas por uma série de operações específicas e complexas;
ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real,
ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias
posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos po-
dem vir a ocupar. (Foucault, 2009: 279-80)

Em Nom Donné par l’Auteur (1994), são precisamente os


mecanismos da função autor que são revelados, desmonta-
dos e recombinados por meio de uma série de procedimentos
precisos e complexos. Durante toda a peça, dois performers
(em geral, mas nem sempre, Frédéric Seguette e Jérôme Bel)57
calmamente exploram a relação entre um objeto e seu nome.
Rodeados de objetos muito familiares (pertences cotidianos

de Derrida e “O que é um autor?” (1969) de Foucault. Para uma consideração mais recente
do impacto dessa problemática na teoria da performance, ver Schneider (2005).
57.  Às vezes Claire Haenni substitui Jérôme Bel e Jean Torrent substitui Frédéric Seguette.
Numa troca de e-mails com Jérôme Bel durante a escrita deste capítulo, ele contou-me
que embora Claire Haenni o havia substituído algumas vezes, não é o que ele próprio pre-
fere, pois isto cria a possibilidade de uma leitura rasa da obra como peça sobre as relações
heterossexuais de casal, o que não seria “nem um pouco interessante”, em sua opinião.
Portanto Claire Haenni é solicitada a atuar em Nom Donné par l”Auteur apenas quando
Jérôme Bel está, por alguma razão, indisponível.

103
de Bel, como um aspirador de pó, uma bola de futebol, um
tapete, uma caixa de sal, um dicionário, um secador de cabelo,
uma lanterna, um par de patins de gelo, uma nota de dinhei-
ro), os dois performers colocam um objeto perante o outro,
em silêncio, e colocam seus corpos em relação com os obje-
tos, numa série de arranjos e rearranjos de correspondências e
permutações que criam um jogo visual surpreendente e muito
aberto, sêmico e sintagmático. Bel explica, conforme cita o
crítico de dança Helmut Ploebst: “[Eu estava tentando] criar
significados em cena, ainda que fosse muito difícil e maçante
para o público – sem dança, sem música, sem figurino, sem
dançarinos” (In: Ploebst, 2001: 200). A questão portanto é:
sem dança, música e dançarinos, poderia ainda haver algo de
coreográfico nesta peça?
Para identificar como Nom Donné par l’Auteur faz uso da
coreografia é preciso atentar-se ao ritmo padronizado da sua
execução e ao silêncio dos performers. Nesta peça, o silên-
cio não deve ser definido negativamente como falta de som,
mas positivamente, como um ativador, uma força, uma ope-
ração crítica. O silêncio opera na peça como intensificador
da atenção, dando densidade aos objetos. O silêncio também
posiciona os performers no mesmo nível dos objetos que eles
manipulam, ressaltando a mudez do dançarino no processo
ontohistórico de transformação da coreografia ocidental em
forma artística autônoma. Não esqueçamos que a dança oci-
dental alcançou sua autonomia representacional (e portanto
sua reinvindicação a uma ontologia) tornando-se literalmente
muda. O silenciamento do corpo pela coreografia realça seu
comprometimento com a produção de um puro ser-para-o-
-movimento, um esplêndido mudo-móvel.
Nom Donné par l’Auteur nos faz lembrar que um título é só
um nome dado por um autor ou autora à sua obra. Iniciando
sua carreira coreográfica com uma peça que explora explicita-
mente a questão da nomeação no espaço do mutismo, Bel foi
até o fundamento do coreográfico para ressaltar seu cerne pa-

104
radoxal. A coreografia não é só uma curiosa e hipermimética
forma artística produzida pelo início da modernidade. Como
discuti no capítulo anterior, coreografia é o nome próprio dado
por um padre-juíz jesuíta à tecnologia de “escrever movimen-
tos” para que não esqueçamos deles.58 Não devemos tomar
como trivial o fato do nascimento da coreografia – como nome
e como disciplina – ter sido gerado na escrita de um padre. É
aqui que a história da coreografia revela seu mais que metafórico
enredamento com o que Derrida chamou, em seu ensaio sobre
Artaud, de “palco teológico” da representação. A descrição com-
pleta deste palco por Derrida merece ser citada aqui:

O palco é teológico enquanto a sua estrutura comportar,


segundo toda a tradição, os seguintes elementos: um au-
tor-criador que, ausente e distante, armado de um texto,
vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da represen-
tação, deixando esta representá-lo no que se chama o con-
teúdo dos seus pensamentos, das suas intenções, das suas
ideias. Representar por representantes, diretores ou atores,
intérpretes subjugados que representam personagens que,
em primeiro lugar pelo que dizem, representam mais ou
menos diretamente o pensamento do “criador”. Escravos
interpretando, executando fielmente os desígnios provi-
denciais do “senhor”. (Derrida, 2002: 154)

No palco teológico, ainda que um ator fale, será na condi-


ção de um mutismo prévio e necessário – pois a boca do ator
não deve passar de uma câmara de ressonância para a voz do
mestre. E se o palco teológico acolhe a coreografia, uma arte
que precisou emudecer o corpo para tornar-se autônoma,59
58.  Foi o padre jesuíta e mestre de dança Thoinot Arbeau (codinome de Jehan Tabourot)
quem mesclou em um só nome, pela primeira vez, o cinético e o linguístico, criando
em 1589 o primeiro significante do ser-para-o-movimento da modernidade: “orcheso-
graphie” (o graphie, escrita, da orchesis, dança). Para mais detalhes sobre esta discussão,
ver Capítulos 1 e 2.
59.  Não foi por acaso que uma das maiores libertadoras da voz do dançarino, Pina Bausch,
precisou romper com a tradição da composição coreográfica e da subjetividade. Bausch

105
então é a expressividade do corpo que dança que deve ser si-
lenciada, tornando-se nada além do que a fiel execução dos
desígnios da força da vontade do mestre – ausente, distante,
talvez morto, mas presente como assombração [haunting].60
Ao criar sua primeira coreografia em mudez objetal, Bel
aponta para a força teológica do autor-coreógrafo na fundação
da coreografia. Como mostrei, esta estratégia é tornada explí-
cita em Jérôme Bel, onde a homonímia entre o título da peça e
o nome do autor acentua a ausência controladora do coreógra-
fo, ressaltando como no palco teológico o coreógrafo se deixa
“representar por representantes” (Derrida, 2002: 154). (É por
isso que Jérôme Bel não deve jamais atuar em Jérôme Bel).
Em Nom Donné par l’Auteur, a estratégia de Bel para pon-
tuar a natureza teológica do palco coreográfico é levemente di-
ferente, ainda que siga vinculada à função do nome do autor.
Aqui, Bel organiza as condições para um outro tipo de relação
de poder para o espectador. Derrida afirma que o bom funcio-
namento do palco teológico depende não apenas de uma sub-
declarou famosamente que seu interesse não era em como as pessoas se movem, mas sim o
que move as pessoas. Seu Tanztheater emerge de um profundo diálogo com outras forças
antirepresentacionais das artes visuais e da performance do começo dos 1970 (a escultura
social de Joseph Beuys, Fluxus). De fato, o método criado por Bausch para romper com
a subjetividade muda dos dançarinos consistia em bombardeá-los com perguntas. Res-
ponder a essas perguntas era tanto um modo de habitar a boca dos dançarinos com suas
próprias vozes, quanto de dar nova forma a esses corpos, dando a ele ou ela uma nova cor-
poreidade. Ainda hoje, esse método encontra grande resistência entre muitos dançarinos
e coreógrafos. Para uma excelente narrativa situada deste processo, ver Hoghe (1987). Ver
também Fernandes (2002).
60.  Aqui, a famosa parábola de Heinrich von Kleist, “Sobre o Teatro de Marionetes”,
escrita em 1810, delineia claramente que tipo de subjetividade o dançarino ideal deve
ter no palco teológico. O dançarino ideal é uma marionete, esvaziado de afetação e vida
psicológica interior, mudo, com um corpo flexível, juntas soltas e receptividade infinita
para os movimentos do mestre, os quais são direta e misteriosamente transmitidos do cen-
tro de gravidade do mestre para o centro de gravidade do boneco. O fato desta parábola
invocar o “livro de Moisés” e a queda bíblica como motivo principal dos humanos serem
menos perfeitos como dançarinos do que as marionetes não deve ser tomado como mera
coincidência. Kleist (ironicamente) identifica o palco teológico operando a todo vapor na
dança teatral. Para uma discussão mais aprofundada da relação da coreografia com uma
força ausente, porém autoritária, ver Capítulo 2.

106
jetividade passiva por parte do performer, mas também de um
público passivo: o palco teológico comporta “um público pas-
sivo, sentado, um público de espectadores, de consumidores,
de ‘usufruidores’ [...] assistindo a um espetáculo sem verdadei-
ro volume nem profundidade, exposto, oferecido ao seu olhar
de curiosos” (Derrida, 2002: 154). E é ativando o público
para fora de seu voyeurismo consumista que Nom Donné par
l”Auteur expõe sua força antirepresentacional e antiteológica.
Pois, ainda que a peça mantenha a divisão espacial entre palco
e plateia, a reiteração persistente e silenciosa de formas e obje-
tos, a familiaridade destes e ao mesmo tempo sua desfamiliari-
zação na disposição de pares improváveis, tudo gradualmente
leva a uma dissolução da passividade do público. Simplesmen-
te assistir esta peça é perdê-la. É crucial estar preparado para
aceitar o convite de engajar-se com ela e sua brincadeira, pas-
sar da curiosidade óptico-passiva à receptividade multissen-
sorial, polissêmica e ativa. Só assim percebemos que não há
nada de silencioso no mutismo dessa peça. Descobrimos que
“o silêncio como repouso sonoro marca igualmente o estado
absoluto do movimento” (Deleuze e Guattari, 2007: 56). De
fato, não há nada imóvel na aparente estabilidade e aparente
não-dança dos objetos e performers. O que Nom Donné par
l’Auteur alcança é uma leve alegria no mutismo dos objetos e
dos dançarinos. A peça revela não o silêncio das coisas, mas o
soar do significante ecoando na borda de cada objeto, o mur-
múrio da linguagem correndo na superfície de cada corpo,
como sal salpicado nas páginas de um dicionário francês.
O rumor dos objetos, sua voz não-linguística, evoca um
conceito de uma das influências teóricas declaradas de Bel:
Roland Barthes. Barthes escreve que “o rumor é o próprio
ruído do gozo plural” deduzindo “uma comunidade de cor-
pos” mas na qual “nenhuma voz se eleva [...] nenhuma voz se
constitui” (Barthes, 2004: 95). Por seu ritmo calmo e por seu
silêncio, Nom Donné par l’Auteur revela o rumor da lingua-
gem a operar em cada um daqueles objetos e, por extensão,

107
em todo e qualquer objeto. Ao ativar a comunidade de cor-
pos (objetos, performers, plateia) necessária para que o rumor
opere seu “gozo plural”, a peça introduz ainda um outro giro
crítico de Barthes: a destruição do mito da figura unitária do
autor-mestre. Isto acontece por via de um deslocamento e de
uma multiplicação da voz autoral: cada pessoa que assiste ati-
vamente Nom Donné par l’Auteur torna-se um autor.
Bel inicia portanto sua carreira coreográfica rachando a
questão da intencionalidade autoral, bem como da unidade
do autor, dentro do campo da representação: nomes são dados
pelo autor, anuncia o título da peça. Mas quem dá o quê a
quem? É possível identificar um autor em sua singularidade
intencional? A resposta de Bel é um claro não: o autor torna-
-se uma função-autor, uma multiplicidade alastrando-se para
além de uma quarta parede, graças ao rumor coletivo da no-
meação silenciosa.
A insistência de Bel no poder da nomeação, no alastrado ru-
mor da linguagem e nos jogos sintagmáticos é particularmente
significativo para os estudos da dança, pois ela proclama para
o corpo dançante uma inegável materialidade linguística, tão
constitutiva de seu ser quanto seus aspectos anatômicos, afe-
tivos, energéticos, viscerais e cinéticos. Em Shirtologie (1997),
corpo e linguagem fundem-se na demonstração de modos
de subjetivação. Um dançarino permanece em pé durante a
maior parte da peça, enquanto se despe de várias camadas de
camisetas e moletons estampados com palavras e marcas.61
Neste solo, o corpo do dançarino surge, por metonímia, como
uma superfície estratificada de inscrição, fazendo recordar de
certa forma a descrição do corpo por Foucault como “superfí-
cie de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a lingua-

61.  Uma primeira versão de Shirtologie foi criada em 1997 para o dançarino português
Miguel Pereira, comissionada pelo Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Em 1998, Bel
recriou e adaptou a peça para o dançarino Frédéric Seguette, que a executa ainda hoje
na maior parte das vezes. Em uma ocasião, eu tive a oportunidade de vê-la dançada pelo
próprio Jérôme Bel.

108
gem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissociação do
Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volu-
me em perpétua pulverização” (Foucault, 2011: 22). Bel nos
mostra como o linguístico enreda o corpo numa estratificação
representacional que captura a subjetividade. O dançarino em
Shirtologie (geralmente Frédéric Seguette) permanece em pé
no centro do palco, neutro, cabeça baixa, quase alheio.62 Ele
entra em cena três vezes ao longo da peça e, a cada aparição,
traz no corpo dúzias de camisetas uma sobre a outra, camada
sobre camada, as quais ele muito simplesmente, em silêncio
e com o olhar baixo, remove até a última. A dramaturgia é
muito clara desde o início: a cada primeira camiseta exibida,
ou temos uma indicação sobre o que será aquela seção da peça
(a primeira seção por exemplo é uma simples contagem re-
gressiva seguindo os números estampados nas camisas, desde
uma com “Lille 2004” até chegar na “Copa do Mundo França
1998”, “Euro-Disney 1992”, “Michigan Final Four” [Quartas
de Finais Michigan] e “One T-Shirt for the Life” [Uma Cami-
seta Para a Vida]), ou então o dançarino encena o que dita
a inscrição, desenho ou logo estampado: uma camiseta por
exemplo tem um fragmento de Eine kleine Nachmusik de Mo-
zart, o qual Seguette canta. A próxima mostra uma mulher
numa pose agressiva, a qual Seguette imita. Neste sentido, as
seções de Shirtologie desvelam aquela peculiar aliança da core-
ografia com a força perlocucionária do ato de fala performa-
tivo – aquela função da fala na qual “por dizer tal coisa eu o
convenço” (Austin, 1990: 96). O primeiro momento na peça
em que o dançarino sai da imobilidade e reconhecidamente
dança por um minuto é quando a camiseta revelada mostra
um desenho de Keith Harring com as palavras “Dance or Die”
[Dance ou Morra]. Convencido pelo forte enunciado, o dan-

62.  Em correspondência pessoal, Bel me disse que apreciava a capacidade de Seguette


de “ficar parado” e quase “desaparecer” de sua própria presença em cena enquanto per-
forma esta peça.

109
çarino opta pela vida e dança enquanto canta a melodia de
Mozart outra vez.
Todas as camisetas foram compradas por Jérôme Bel em
lojas de varejo, portanto Shirtologie traz à tona todo um ro-
busto arquivo linguístico e imagético que nos espreita cons-
tantemente, um arquivo de comandos quase-invisíveis que
todos nós vestimos e exibimos (“Just Do It” [slogan da Nike,
“Simplesmente Faça”] e “Dance ou Morra”), um arquivo que
faz parte de nossa subjetividade e corpo-imagem na socieda-
de do espetáculo. Shirtologie revela o modo como a cultura
da representação, uma vez associada à subjetividade do ca-
pitalismo tardio, floresce na reprodução incessante de uma
poética da mercadoria, do logotipo, da marca registrada –
tudo permeando nossos corpos, nossa linguagem, nossa per-
cepção, formando subjetividades e conformando identida-
des. Shirtologie encena como a representação encontra aquele
outro modo totalitário de autofechamento: o capitalismo.
Mas como Jérôme Bel afirmou, a peça também revela como a
performance possibilita uma liberação dessa incansável rotu-
lação da identidade pelo capital sob o signo da marca regis-
trada. Em 1997, Bel criou uma versão coletiva de Shirtologie
para um grupo de jovens não-dançarinos, e com esta versão
um permissivo bom humor achou seu lugar na dramaturgia.
Uma jovem vestindo uma camiseta com o rosto da cantora
pop Madonna interpreta a canção “Like a Prayer”; um outro
rapaz vestindo uma camiseta com as palavras “No Time to
Lose” [Sem Tempo a Perder] rapidamente corre fugindo do
palco. Bel explica que, nesta peça, “estávamos usando a ener-
gia do capitalismo para nos expressar” (In: Ploebst, 2001:
204). Portanto, existe a possibilidade concreta de reenergizar
a linguagem, reenergizando as forças do capital alinhadas ao
representacional, e recodificar o ato de fala.
Já vimos como em Nom Donné Par l’Auteur a poética do
silêncio abre a possibilidade para a escuta de sutis, embora
emudecidas, modulações do significado, através de uma con-

110
frontação direta com objetos. Mas o que acontece quando so-
mos confrontados diretamente com a linguagem? Estaremos
todos inevitavelmente submetidos ao seu comando, à sua for-
ça ilocucionária e perlocucionária, e mesmo à sua violência?
Na peça Jérôme Bel encontramos uma resposta direta a esta
pergunta. Eu já expus como a linguagem paira sobre esta peça,
criando suas condições de visibilidade e sobredeterminando a
presença dos dançarinos. Mas algo de extraordinário ocorre na
intersecção entre corpo e linguagem nesta bela peça, algo flui-
do que suspende a prisão domiciliar do corpo pela linguagem
e pelas leis da significação e da assinatura. A fluidez surge atra-
vés da ação daquilo que Georges Bataille chamou de “excesso
inassimilável” que o corpo constantemente produz. Em deter-
minado momento da peça, Frédéric Seguette e Claire Haenni
urinam no chão. Em silêncio, o corpo visceral age, trazendo
à tona uma interioridade que a representação não conside-
ra e nem controla completamente. Muitos enxergam este ato
como indecente, a despeito da sua suave e tranquila execução.
Ele certamente causou um embaraço de Jérôme Bel com as leis
de atentado ao pudor das cortes europeias.63 Mas o ato de uri-
nar não puxa atenção só para os funcionamentos internos do
corpo visceral – ele também tem uma função. Ele será usado
para indicar como o corpo é o agente primário de transfor-
mação da linguagem. Quando os dois dançarinos terminam
de urinar, eles pegam o líquido com as mãos e o utilizam para
apagar as letras e números escritos na parede. Os nomes desa-
parecem, mas algumas letras são deixadas de modo a formar
uma frase que afinal revela um potencial linguístico escondido
nos rabiscos anteriores: “Eric chante Sting” [Eric canta Sting].
Todos os performers saem de cena e um homem, totalmente
vestido, entra, põe-se de pé na penumbra e canta a canção “An
Englishman in New York” de Sting. Se a linguagem, o nome, a

63.  Sobre a ação judicial e acusação de obscenidade contra o International Dance Festival
na Irlanda por ter exibido Jérôme Bel em 2002, ver Capítulo 1.

111
história, a propriedade e os títulos podem ser apagados, rear-
ranjados, transformados em brincadeira, e se nesta brincadeira
o que é reescrito pode conjurar uma nova performance, um
novo corpo, um novo performativo, um novo começo, uma
nova canção, tudo isso acontece graças a um apagar e a um
reescrever ativado pelo que o corpo visceral dos dançarinos
produz. Apagar, reescrever, renomear, revocar – todas elas ope-
rações possibilitadas quando a força do nome que estruturou
toda a peça é desfeita por aquele excesso inassimilável que o
corpo produz. Este reescrever evoca os termos de Judith Bu-
tler quando ela recupera a noção de sujeição em Althusser em
relação do ato de fala de Austin: “Nós fazemos coisas com a
linguagem, produzimos efeitos com a linguagem, mas a lin-
guagem é também a coisa que nós fazemos. Linguagem é o
nome do nosso fazer” (Butler, 1997b: 8). Bel propõe uma no-
ção muito específica de linguagem, tão maleável, brincalhona
e dinâmica quanto o próprio corpo. Ele também propõe como
o corpo, em sua ativação mais visceral, não é uma mera super-
fície de inscrição dos discursos, como identificou Foucault,
mas um instrumento de escrita, um agente inassimilável que
constantemente reescreve a história de volta.
Até aqui, eu venho discutindo os elementos básicos da crí-
tica da representação de Jérôme Bel ao enfatizar a importância
dos elementos não-cinéticos em seu trabalho: a crítica ao po-
der autoral, a questão da indeterminação da presença no cam-
po do nome, a crítica do palco teológico, a ativação da plateia.
Agora, me interessa tratar por que a crítica da participação da
coreografia na máquina de criar sujeitos, que é a representa-
ção, deve envolver uma cinética do lento, do imóvel, isto é,
uma deflação particular do movimento.
Assim como Bel mobiliza a singularidade para propor
como a subjetividade é sempre uma multiplicidade, eu diria
que ele mobiliza o parado e a lentidão para propor como o
movimento não é só uma questão de cinética, mas também
de intensidades, de criação de um campo intensivo de micro-

112
percepções.64 Entender o movimento como intensidade abre
espaço para uma crítica da participação da representação no
continuum ontopolítico entre representação e subjetividade
que nos leva diretamente à questão do parar, do parado, e da
paragem. Assim como o silêncio não é usado por Bel como ne-
gação do sonoro, também o parado não é usado como negação
do movimento. A crítica da ontologia política da coreografia
em Bel deriva das fortes ativações políticas e epistemológicas
contidas no ato-parado, o qual delimita para a dança aquilo
que não parece ser próprio de sua ontologia.
A antropóloga grega Nadia Seremetakis propôs o concei-
to de “ato-parado” para descrever uma política dos sentidos
que enseje “a capacidade perceptiva para uma criação histórica
elementar” (Seremetakis, 1994: 13).65 Na crítica da represen-
tação articulada por Bel, a capacidade perceptiva ativada para
gerar uma “criação histórica elementar” é a que evidencie a
ontologia política da coreografia como tecnologia essencial
de subjetivação. Se aceitarmos a premissa de Peter Sloterdijk,
discutida no primeiro capítulo, de que a ontologia da moder-
nidade é um puro “ser-para-o-movimento”, e se lembrarmos
do fato histórico de que o poder (o poder teológico, o poder
régio, o poder de estado) ocupa o centro do ser coreográfico,
emblematizado pelo emparelhamento da igreja com a lei atra-
vés de Arbeau e Capriol, bem como pela criação da primeira
Academia de Dança em 1649 por Luís XIV, bem como por
sua dança como manifestação do poder totalitário do corpo
autônomo em movimento (Franko, 2002: 36), então procede
que a intrusão do parado na coreografia (o ato-parado) dá iní-

64.  Para uma fenomenologia do microperceptível do parado na dança do século XX, ver
meu ensaio “Still: On the Vibratile Microscopy of Dance” (Brandstetter et al., 2000).
65.  Para uma discussão sobre a noção de “ato-parado” (“still-act”) em Seremetakis, ver
Capítulo 1.

113
cio a uma crítica ontopolítica da perene interpelação cinética
do sujeito pela modernidade.66
Sloterdijk observou que a modernidade gera seu ser cinéti-
co a partir de uma “acumulação de subjetividade”, a qual deve
preceder a acumulação primária do capital defendida pela te-
oria marxista como fundamental para a expansão da moder-
nidade capitalista. Se concordamos com Sloterdijk quando ele
diz que a forma da subjetividade moderna é um puro “ser-pa-
ra-o-movimento”, e que a modernidade interpela seus sujeitos
de modo a transformá-los em “auto-móveis”, então o que a
subjetividade precisou acumular primariamente até tornar-se
este ser-para-o-movimento foi energia em potencial, a qual a
modernidade libera na forma de energia cinética. Mas, uma
vez que não há qualquer sistema vivo energeticamente autô-
nomo, a própria ideia de uma subjetividade autonomamente
cinética, isto é, a ideia de uma subjetividade autocontida e
automobilizadora, emerge como a manifestação de uma pro-
funda cegueira ideológica. Teresa Brennan afirma:

O sujeito não é palpavelmente a fonte de toda agência, uma


vez que é energeticamente conectado ao (e portanto afeta-
do pelo) seu contexto. De tão insolente, o sujeito moderno
considera este fato intragável; o sujeito aferra-se à noção de
que os seres humanos são energeticamente separados, que
nascem desta forma, dentro de uma espécie de cápsula que
os protege e os separa do mundo. A rigor, esta cápsula foi
adquirida, ela se chama ego (Brennan, 2000: 10).

Brennan sugere que a subjetividade moderna depende de


um projeto energético particularmente predatório e exaustivo.
Este projeto exige, por um lado, uma exibição contínua do
imperativo ontológico de se pôr em permanente estado de agi-
tação, e, por outro lado, requer também a pilhagem de todo e

66.  Para uma explicação do meu uso de “subjetividade” e “subjetivação” em relação à noção
de interpelação em Althusser, ver Capítulo 1.

114
qualquer recurso que esteja à mão para sustentar o espetácu-
lo da mobilidade. Ao representar a si mesma constantemente
como espetáculo cinético e negar sua falta de autonomia ener-
gética, a subjetividade moderna estabelece sua relação colonia-
lista com toda sorte de fontes de energia, sejam estas naturais
e fisiológicas ou afetivas: desejos, afetos, devires.67 O tipo de
performance que estrutura o autofechamento da subjetividade
dentro da representação, como uma clausura na mobilidade
espetacular compulsiva, é aquela que o começo da modernida-
de inventou e nomeou: a coreografia. A coreografia é uma tec-
nologia necessária para uma subjetividade errática e agitada,
que só consegue achar sua fundamentação ontológica como
eterno ser-para-o-movimento.68
Ao descrever as principais características do trabalho do
coreógrafo alemão Thomas Lehmen, o teórico da dança Ge-
rald Siegmund levanta algumas peculiaridades que eu também
usaria para caracterizar a crítica de Jérôme Bel à participação
da dança neste projeto de perpétua agitação. Siegmund ob-
serva que é importante “evitarmos representar o corpo como
signo a ser consumido pelo público como representação da
flexibilidade, mobilidade, juventude, atletismo, força e poder
econômico” (Siegmund, 2003: 84). Não é de surpreender,
portanto, que a dança precise ser desacelerada – como modo
de desacelerar o ímpeto cego e totalitário da máquina cinéti-
co-representacional.

67.  Ver Exhausting Modernity de Teresa Brennan para uma proposição original e extrema-
mente lúcida de como a modernidade e a economia psicológica do capitalismo devem ser
tratadas como “estudo das conexões energéticas e afetivas” (Brennan, 2000: 10). A esse res-
peito, é intrigante que a análise de Brennan negligencie a crítica marxista da psicanálise e da
subjetividade levada a cabo por Wilhelm Reich no começo dos anos 1930, a qual inaugurou
uma teoria da energética em relação às patologias individuais e sociais e que está por trás
de muito do que articulam Deleuze e Guattari acerca do capitalismo e sua Edipização da
representação em Anti-Édipo. Ver Reich (1972, 1973) e Deleuze e Guattari (2010), passim.
68.  Para uma maior discussão sobre a emergência da coreografia como neologismo e tec-
nologia da subjetivação moderna, ver Capítulo 2.

115
Bel tem um modo muito particular de desacelerar a dança.
Aqui, gostaria de retornar a The Last Performance [A Última
Performance] e propor uma leitura de seu uso particular da-
quela intrigante figura retórica, a paronomásia. Acredito ser
na paronomásia que podemos localizar a proposta de Bel para
uma ontologia política mais lenta da coreografia.
Eu já mencionei no começo do capítulo como The Last
Performance desdobra-se a partir de uma desestabilização
constante das relações de propriedade entre corpo, self, iden-
tidade, corpo-imagem e o nome. Eu gostaria de voltar àquele
momento da peça em que o dançarino Antonio Carallo olha
fixamente para a plateia e anuncia: “Eu sou Hamlet”, fazen-
do então uma pausa e dizendo “Ser...”, retirando-se do palco,
pausando mais uma vez, e gritando das coxias “ou não ser...”,
retornando finalmente à cena e, posicionado centralmente em
frente ao microfone, finaliza sussurrando, “eis a questão”.
Seguindo-se a um corpo que alegava ser Jérôme Bel e ou-
tro que se declarava Andre Agassi, um Hamlet entra em cena.
E eu gostaria de enfatizar o artigo indefinido que precede o
nome próprio; ou melhor, o emparelhamento entre artigo in-
definido e nome próprio. Deleuze propôs que o artigo inde-
finido é “a potência [puissance] de um impessoal que não é
uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau”
(Deleuze, 2008: 77-78). Com Guattari, Deleuze também ob-
servou como “o nome próprio não indica um sujeito [...]. O
nome próprio designa antes algo que é da ordem do aconteci-
mento” (Deleuze e Guattari, 2007: 51). Desta forma, um Ha-
mlet que entra em cena em The Last Performance significa um
acontecimento singular do mais alto grau. Que potência esta
singularidade traz consigo? Qual acontecimento esta entrada
anuncia? A potência é aquela da questão fundamental, a força
do ontológico. O acontecimento é o de prefaciar a primeira
erupção da dança coreografada em toda a obra de Bel. Depois
de quatro anos e três peças, finalmente, a dança!

116
Por que o acontecimento da dança coreografada no traba-
lho de Bel precisa ser precedida pela questão fundamental de
um Hamlet? Francis Barker elucidou que o Hamlet de Shakes-
peare articulou, primeiramente e de forma muito clara, um
“sistema de presença” no qual “a mortal subjetividade do mo-
derno já começa a emergir” (Barker, 1995: 21). Para Barker,
os conflitos de Hamlet são aqueles que designam a emergên-
cia da subjetividade moderna como um sistema de presença
subjugado à visibilidade, à melancolia e à disciplina. Hamlet
anuncia a invenção do sujeito monádico moderno, um sujei-
to centralizado num eu, contido pelos limites do corpo, iso-
mórfico àquele corpo entendido como propriedade privada,
portador de uma biografia, alojando segredos privativos e fan-
tasmas exclusivos, responsável perante o estado, estritamente
binomial em termos de gênero, domesticado no investimento
de seu desejo (Barker, 1995: 10-37). Vale ressaltar que este
sistema de presença, ao emaranhar o espetáculo da visibilidade
no cerne da subjetividade, é também um sistema de represen-
tação. E este sistema de representação “designa mais do que
um tipo particular de construção teatral”, estendendo-se para
toda a lógica cultural do Ocidente (para evocar as palavras de
Derrida na epígrafe a este capítulo).
Portanto, a entrada de um acontecimento-Hamlet em The
Last Performance cria ressonâncias ontohistóricas e políticas:
um Hamlet entra permitindo assim que o advento de uma
dança coreografada seja possível. É como se Jérôme Bel propu-
sesse que sem este sujeito monádico, sem a questão melancó-
lica acerca do ser como uma decisão binomial entre presença/
visibilidade/interioridade ou ausência/invisibilidade/exteriori-
dade, isto é, sem um Hamlet, não teria havido coreografia.69
Logo, quando Bel leva Carallo-Hamlet a entrar em cena em
The Last Performance, seu proferimento e sua presença não tra-

69.  Para uma exploração desta ideia e da relação entre o advento da coreografia e a pulsão
melancólica por trás de sua percepção da ausência, ver Capítulos 2 e 7.

117
tam apenas da história do teatro: eles são enunciados extrema-
mente provocativos direcionados à ontologia política da dança
cênica ocidental.70
Tão logo Carallo-Hamlet lança a questão ontológica e sai
de cena, a dança entra corporificada por Claire Haenni, que irá
dançar um fragmento de Wandlung (1978), de Susanne Linke,
ao som de A Morte e A Donzela de Franz Schubert.71 A dan-
çarina entra em cena vestida de branco e usando uma peruca
loura, aproxima-se do microfone e anuncia, em tom neutro:
“Ich bin Susanne Linke” [Eu sou Susanne Linke]. Então, ela se
posiciona ao fundo do palco e dança a pequena coreografia de
Linke. Quando, em agosto de 1999, eu assisti The Last Per-
formance no Theatre am Hallescher Uffer, em Berlim, houve
uma imensa diminuição da tensão neste momento. O público
já estava à beira de um motim, quando afinal apareceu o movi-
mento.72 Finalmente, alguém acompanhava a música nos mo-
delos reconhecíveis do que é “dança”. Fluxo, música clássica,
corpo, presença, mulher, feminilidade, movimento contínuo,
vestido branco gracioso – era possível finalmente entrar na
zona de reconhecimento e relaxar com o cinético familiar. Mas

70.  Como sugeri anteriormente, a questão da ontologia é central para os estudos da per-
formance. É curioso ver como um Hamlet também surge na identificação de Richard
Schechner de uma profunda instabilidade própria à performance, como se Hamlet fosse
um evento inevitável na relação da performance com o ser: “Toda performance efetiva-
mente partilha dessa qualidade ‘não / não-não’: Olivier não é Hamlet, mas ele também
não não é Hamlet: a sua performance está entre uma negação de ser o outro (=Eu sou
eu) e a negação de não ser o outro (=Eu sou Hamlet)” (Schechner, 1985: 123). Pode-
ríamos argumentar que em sua totalidade, The Last Performance gira em torno desse
insight e dessa ambiguidade.
71.  A coreógrafa Susanne Linke, assim como Pina Bausch, é uma das mais importantes
inventoras do Tanztheater alemão.
72.  Em sua palestra sobre The Last Performance no Tanzquartier Wien, em março de 2004,
Bel narra como na estreia da peça em Bruxelas alguns espectadores entraram no palco
proferindo insultos ao coreógrafo e aos dançarinos, desencadeando assim confrontos entre
o próprio público. Em Berlim, em 1999, eu testemunhei algumas vaias e exigências para
que houvesse “Dança!”. É como se o trabalho de Bel fosse capaz de ativar, com sua quieta
atmosfera, aquele papel histórico que os espectadores burgueses de dança tomaram para si
desde Sacré du printemps de Nijinsky: o papel do desordeiro.

118
o segmento de Linke é curto, não passa de quatro minutos, e
começa com a dançarina deitada no chão próxima e paralela
à parede dos fundos, e ali permanecendo quase o tempo todo.
Quando Haenni-Linke sai de cena, a familiaridade logo nos
bate a cara. Eis que Susanne Linke torna a entrar no palco,
desta vez num corpo chamado Jérôme Bel. Bel-Linke anuncia:
“Ich bin Susanne Linke”. A música recomeça e também a dan-
ça, no exato lugar previamente ocupado por Haenni-Linke, as
mesmas notas, os mesmos movimentos executados na mesma
delicada precisão. A dança termina, Bel-Linke deixa o palco e
Carallo-Linke entra usando o mesmo vestido branco e anun-
ciando “Ich bin Susanne Linke”. Ele dança a mesma sequência
e é seguido por Seguette-Linke que recomeça toda a ação mais
uma vez. O que está sendo declarado no ato de fala proferido
por cada dançarino que prefacia cada nova dança, “Ich bin
Susanne Linke”? O que está em jogo nesta dança empacada
em sua contínua repetição, como a reconfigurar o movimento
teleológico linear do tempo?
Numa fala pública sobre The Last Performance apresentada
algumas vezes pela Europa, Bel menciona como concebeu esta
cena de dança em torno de duas questões principais: a questão
formal sobre como citar uma peça de dança, tipo um rapper
que samplea uma canção de outro músico, e a questão per-
ceptiva sobre como a repetição gera séries de diferenças. Bel
diz ter achado inspiração em Diferença e Repetição de Deleuze
durante a composição da peça. Neste livro, Deleuze pergunta:

O paradoxo da repetição não está no fato de que não se


pode falar em repetição a não ser pela diferença ou mu-
dança que ela introduz no espírito que a contempla? A
não ser por uma diferença que o espírito transvasa à repe-
tição? (Deleuze, 2006: 75)

119
Portanto, cada reiteração de passos, música, vestido e pro-
ferimento do nome do autor inevitavelmente põe à vista a di-
ferença na essência da repetição.
A repetição cria uma forma de ficar parado em pé que nada
tem de imóvel. E a forma particular de repetição utilizada
nesta cena de dança em The Last Performance é reminiscente
da paronomásia, um termo composto do grego para, simul-
taneamente “ao lado de” e “para além de”, e onomos, “nome”,
indicando portanto pequenas variações de sentido, caracterís-
tica própria do trocadilho. E como se performa esse tipo de
movimento paronomástico? Linguisticamente, pela reiteração
cuidadosa de uma ideia através do encadeamento de diferen-
tes palavras que partilham a mesma raiz. Esta repetição-com-
-uma-diferença dá corpo a um espaçamento reiterativo da
ideia, propiciando um tipo específico de giro lento que “dá
variação a ‘objetos intelectuais’ e portanto muda seus aspec-
tos e aparências. Graças à paronomásia, a linguagem é capaz
de fazer um objeto girar e girar” (Rapaport, 1991: 108). Mas
como se dança um movimento paronomástico? Dançando
Wandlung repetidas vezes, percebemos que aqueles corpos di-
ferentes estão menos interessados em sustentarem ser Susanne
Linke do que em experimentar o que acontece quando se deci-
de mover ao lado de um nome – isto é, engajar-se literalmente
em paronomásia. Além de trazer humor à cena, esta forma
particular de repetição em movimento revela como dançar ao
lado e para além de um nome é também permanecer com ele,
revelar suas facetas escondidas, desdobrá-lo, liberar suas linhas
de fuga, romper com a ilusão de fixidez que o nome suposta-
mente deve assegurar para seu referente.
O que se cria neste momento intrigante em que a repetição
confunde a percepção, graças à paronomásia? O que se propõe
através dessa exibição contundente da máquina coreográfica?
Didi-Huberman escreve sobre como qualquer “acte immobi-
le”, devido à sua natureza paradoxal, é um “discreto porém
perturbador acontecimento da memória” (Didi-Huberman,

120
1998: 66, grifo no original). De modo similar, a paronomá-
sia cria condições perceptivas e críticas que revelam como a
coreografia pode escapar do “sistema de presença”, reificado e
cristalizado como um verdadeiro truísmo da dança naqueles
famosos versos de W. B. Yeats em seu poema “Entre Crianças
de Escola” [Among School Children]: “Oh corpo animado pela
música, Oh visão iluminada, / Como distinguir a dançarina
da dança?” [O body swayed to music, O brightening glance, /
How can we know the dancer from the dance?].
Peggy Phelan acertadamente identificou, nesse poema de
Yeats, um intratável desejo escópico vinculado a essa captura
espetacular do corpo dançante em sua pura e fugaz visibilidade:

O fato da dançarina sempre servir de índice da dança


moderna ocidental é mais do que uma evidência lógica
da intratabilidade da persistente questão de Yeats; é so-
bretudo um sintoma do desejo de ver o corpo do outro
como espelho e como tela para o próprio corpo daquele
que olha. (Phelan, 1995: 206)

A cada vez que Wandlung é dançada em The Last Performan-


ce, a cada vez que a paronomásia faz a dança surgir diferente-
mente em sua similaridade, a cada vez que um corpo diferente
traz para o mesmo fragmento de dança variações inconscien-
tes de ênfase e micromarcas incontroláveis de individualida-
de, nós testemunhamos uma subversão daquela “intratável”
identificação entre dançarino e dança. A paronomásia revela a
dança como independente do dançarino. Revela a coreografia
como uma máquina fantasmática, um sequestrador de corpos.
Revela o efeito telepático no coreográfico, a manifestação da
força inquientante e espectral [haunting] da coreografia. Na
manifestação paronomástica da coreografia, a dança emerge
como força desencarnada pronta a ser ocupada por qualquer
corpo. Ao descolar a dança do dançarino, o dançarino pode
ser habitado por outros passos não pré-formatados; e a coreo-

121
grafia desvela a si mesma como sempre esgarçada pelos tremo-
res, atos involuntários, morfologias, desequilíbrios e técnicas
de cada corpo. Imune à fugacidade do olhar, mas denuncian-
do a natureza da coreografia como cúmplice inevitável de um
modo paronomástico do “ser visto”, o dançarino pode reivin-
dicar outros modos de lidar com o visível.
Toda repetição é um tipo de queda; a queda numa ar-
madilha chamada temporalidade. A queda no tempo que o
ato-parado desencadeia é também ativação da proposição de
uma ética do ser que será sempre um embaraço com o tem-
po. Sloterdijk explica que Heidegger deliberadamente escolhe
uma palavra para caracterizar esta queda na temporalidade
de modo a distanciar qualquer noção metafísica ou cristã da
Queda: Verfallen. Em Ser e Tempo, Heidegger escreve: “Assim,
a de-cadência [Verfallen] da presença também não pode ser
apreendida como ‘queda’ de um ‘estado original’, mais puro
e superior” (Heidegger, 2005: 237).73 Na sua tradução para o
inglês de Ser e Tempo, Joan Stambaugh observa que “Verfallen
é, por assim dizer, um tipo de ‘movimento’ que não leva a
lugar algum” (In Heidegger, 1996: 403).74 Este tipo de mobi-
lidade que permanece a postos, este movimento que não leva
a lugar algum, mas vai para todos os lados porque permane-
73.  Na tradução para o inglês utilizada por André Lepecki: “Thus, neither must the entan-
glement (Verfallen) of Da-sein be interpreted as a ‘fall’ from a purer and higher ‘primordial
condition’” (Heidegger, 1996: 164). Portanto, “entanglement (Verfallen) of Da-sein” é
traduzido como “de-cadência da presença” por Marcia Sá Cavalcante Schuback na edição
brasileira. Mantenho a versão brasileira aqui com ressalvas, considerando que o termo
“de-cadência” retém um desejável duplo sentido de queda e degradação que a expressão
alemã Verfallen evoca. Mas é necessário notar que a palavra “entanglement” – equivalente
a “embaraço” em português – que Joan Stambaugh escolheu para traduzir Verfallen neste
parágrafo, expressa melhor o sentido de “movimento que não sai do lugar” que Lepecki
procura ressaltar aqui. (N.T.)
74.  O autor faz referência a uma nota da tradutora norte-americana que não consta na
versão brasileira, portanto deixei a referência original no corpo do texto. “Entanglement”
ou “falling pray”, duas expressões utilizadas por Stambaugh na tradução de Verfallen
podem ser traduzidas como “embaraço” ou “queda na rede” (e.g. numa armadilha) em
português, portanto um movimento que não leva a lugar algum (“movement that does
not get anywhere”). (N.T.)

122
ce parado, é o da paronomásia. Herman Rapaport o descreve
como “um ir além, mesmo quando se permanece no mesmo
lugar” (1991: 14), e ressalta que a paronomásia influencia pro-
fundamente a filosofia de Heidegger e de Derrida. Como ir
além enquanto se permanece a postos? E o que se pode ganhar
com este movimento? Eu diria que o movimento paronomás-
tico desarma a imposição que o ser-para-o-movimento da
modernidade impõe sobre a subjetividade para que este esteja
sempre na hora. A paronomásia oferece à subjetividade modos
alternativos de estar no tempo. A paronomásia insiste na rei-
teração daquilo que nunca é exatamente o mesmo e, em sua
lenta, incerta, bamba pirueta, possibilida a extração de uma
seiva de temporalidade que concede ao corpo figurar em um
outro regime de atenção e fincar os pés em outro – menos fir-
me – chão (ontológico). Neste, o movimento pertence mais às
intensidades do que à cinética; e o corpo em aparição deve ser
entendido menos como forma sólida do que como um desli-
zamento por linhas de intensidade.
A operação paronomástica, que é uma operação coreográfi-
ca, transforma qualitativamente a questão ontológica da dan-
ça. Ela consegue isso através da manipulação de velocidades,
através de uma atenção que cuidadosamente revela zonas e flu-
xos de intensidade de outro modo insuspeitados. Esse entalhe
e expansão temporal performam-se neste que é o ato mais mal
interpretado na dança: o permanecer parado. Esta intensifica-
ção do parado em paronomásia, além de pedir um novo regi-
me de atenção, um novo cuidado em relação aos mecanismos
que viabilizam a aparição do corpo dançante, desafia também
a cronometragem da ontologia, dando espaço a uma tempo-
ralidade radical contra a queixa melancólica da dança: uma
temporalidade que excede os limites formais da presença e
que não é amarrada na apresentação da presença. É assim que
eu compreendo a noção de “ontologia mais lenta” em Gaston
Bachelard, uma ontologia das multiplicações e intensificações
dos micromovimentos e da fluidez energética, uma ontologia

123
das vibrações e dos atrasos, uma ontologia atrasada, ou seja,
“mais segura que aquela que se baseia nas imagens geométri-
cas” (1978: 337).
Eu gostaria de finalizar ressaltando que a morada coreográfi-
ca do parado paronomástico demanda uma reconfiguração dos
termos que nos ajudam a refletir teoricamente, bem como a agir
coreograficamente, em cima da ontologia política da dança. Na
coleção de gestos, atos de fala, personagens, roteiros e fantasias
que tem historicamente servido de alicerce para a dança cênica
ocidental, a dança foi abduzida por um exaustivo programa de
subjetividade, uma idiótica economia das energias, um impos-
sível corpo e um melancólico lamento sobre uma noção muito
limitada de tempo e temporalidade. A paronomásia coreográfi-
ca na forma do ato-parado propõe um programa para o corpo,
para a subjetividade, para a temporalidade e para a política, o
qual liquefaz e desacelera não só os pressupostos da ontologia
da dança, mas também as infelicidades e idiotices incrustadas
na reprodução pela dança do projeto cinético da modernidade,
na sua infinita aceleração e agitação. Uma desaceleração onto-
lógica desta ordem inaugura um projeto energético diferente,
um novo regime de atenção, pois relança a figura do dançarino
e de sua subjetividade por novas linhas de potencialidade para a
ontologia política do coreográfico justo no momento de maior
exaustão do movimento.

124
III
DESABAR A DANÇA
A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO
EM TRISHA BROWN E LA RIBOT

Um sentimento corrente entre os pintores e que


os leva a criar um espaço no qual qualquer coi-
sa pode acontecer é um sentimento que também
acomete os dançarinos. (Cunningham, 1997: 66)

Meados de março, 2003. Por dois dias consecutivos, a


coreógrafa norte-americana Trisha Brown performou It’s a
Draw / Live Feed [É um desenho / Projeção ao Vivo] no Fa-
bric Workshop and Museum (FWM) da Filadélfia, um even-
to em colaboração com o Departamento de Arte Moderna
e Contemporânea do Philadelphia Museum of Art. A per-
formance de Brown era incomum: sozinha, numa das gale-
rias cubo-branco do museu, ela daria forma ao que o release
do FWM chamou de “desenhos monumentais em contexto
público”. Essa performance de Brown, difícil de categorizar
– um híbrido de dança improvisada e desenho automático –
foi assistida “ao vivo” por um público acomodado em outro
espaço do museu, através de uma projeção simultânea em
vídeo da dança-desenho.
Meados de março, 2003. Por dois dias consecutivos, a
coreógrafa espanhola Maria La Ribot performou Panoramix
no Tate Modern de Londres, um evento em colaboração com
a Live Art Development Agency. A performance de La Ribot
era incomum: em uma das galerias cubo-branco do museu,
ela criaria o que o release do evento chamou de “performance
de longa duração”, agrupando em contexto público os últi-
mos dez anos de seu trabalho cênico. Ao contrário de It’s a
Draw / Live Feed, o Panoramix de La Ribot foi apresentado
para um público que dividiu o mesmo espaço da galeria com
a própria dançarina.
Estes dois eventos temporalmente coincidentes – nos quais
a dança aconteceu no espaço das (e em diálogo com) as ar-
tes visuais – foram concebidos por duas coreógrafas separadas
pela nacionalidade, estilo, geografia e geração. Apesar de extre-
mamente distintos, os dois eventos foram aproximados criti-
camente por uma insistência singular na relação da dança com
as artes visuais. No caso de Brown, tratava-se da relação da
dança com o desenho. No caso de La Ribot, da dança com a
escultura e a instalação. Mais além, as duas peças similarmen-
te articularam um gesto explícito de reavaliar criticamente a
complexa relação da dança e das artes visuais com a horizonta-
lidade. Em outras palavras: ambas as coreógrafas ocuparam-se,
de diferentes maneiras, em tratar de um plano que manteve
uma relação particularmente problemática com a política de
gênero nas artes visuais do século XX: o plano horizontal.
O uso da horizontalidade nas artes visuais do período pós-
-segunda guerra mundial é usualmente traçado de volta a Ja-
ckson Pollock e sua derrubada da tela do plano vertical para o
horizontal, em 1947. Eu seu ensaio “Horizontality”, Rosalind
Krauss (Bois e Krauss, 1997) argumenta que o rebaixamento
da tela (da vertical para a horizontal) efetuado por Pollock não
apenas permitiu o surgimento de sua técnica de gotejamen-
to (dripping), mas também, mais fundamentalmente, abriu a
possibilidade para futuras subversões (nunca exploradas pelo
próprio Pollock) daquela “eretilidade fálica” que Henri Lefe-
bvre dizia “conferir um status especial ao perpendicular, pro-
clamando a falocracia como orientação do espaço” (Lefebvre,
1991: 287). Krauss apoia sua leitura sobre horizontalidade

126
em um antigo fragmento de Walter Benjamin no qual o fi-
lósofo alemão propõe uma distinção entre os planos vertical
e horizontal baseada na relação que cada plano mantém com
a figuração e a escrita. Para Benjamin, o plano vertical é o
da pintura, da representação, daquilo que “contém objetos”,
enquanto o horizontal é o plano da marca gráfica, da escri-
ta – que “contém signos” (Benjamin, 1996: 82).75 Seguindo
esta ideia, Krauss defende que a derrubada da tela por Pollo-
ck subverte o favorecimento da verticalidade como plano de
representação da pintura (Bois e Krauss, 1997). Eu comple-
mentaria a observação de Krauss dizendo que essa derrubada
permitiu também a Pollock literalmente transformar a tela em
chão, em terreno, território limpo sobre o qual o artista pode
pisar de acordo com sua vontade e imprimir os traços de seus
movimentos. Neste sentido, as ações de Pollock sobre a tela
derrubada eram equivalentes a uma territorialização, entendi-
da aqui como ato de captura de um ambiente e transformação
deste numa propriedade por meio de uma marca (Deleuze e
Guattari, 2007: 123). Dado o “patrionismo de pai fundador”
[founding father patrionics] (Schneider, 2005: 26) informando
os discursos críticos sobre a action painting de Pollock, sua
caminhada sobre a tela branca derrubada imbui-se da aura mí-
tica da proclamação de um território virgem, da colonização
do horizontal como aquela “terra vazia ou deserta cuja história
tem de ser começada” (Bhabha, 2003: 339).
Talvez por suas ações na tela horizontal terem sido de fato
sobre a criação de um território virgem, Pollock nunca com-
prometeu-se completamente com o atravessamento de fron-
teiras que sua derrubada do plano representacional preconiza-
va. Ele jamais conseguiu re-localizar a pintura fora do espaço
próprio da tela, deixar que a pintura seguisse o jorro de tinta

75.  “Poderíamos falar de dois cortes atravessando a substância do mundo: o corte longi-
tudinal da pintura e o corte transversal de certas produções gráficas. O corte longitudinal
parece ser o da representação, ele contém, de certo modo, as coisas; o corte transversal é
simbólico, ele contém signos” (Benjamin, 1996: 82).

127
que escapava ao domínio territorializado por ele estabelecido.
Como apontado por Krauss, a derrubada da tela em Pollock
não passou de um momento transitório na produção de suas
pinturas; não um fim, mas um meio para que a tela achasse de
volta a verticalidade privilegiada pelos imperativos represen-
tacionais da economia visual do consumo da arte. Mas suas
ações sobre a tela derrubada, sua pisada e seu derramamento
de tinta sobre ela, indicavam claramente que havia um po-
tencial de atravessamento do qual aqueles mais dispostos a
sair do enquadramento pictórico poderiam lançar mão. Em
1958, como é sabido, Allan Kaprow anunciou como as ações
de Pollock sobre a tela derrubada o inspiraram a criar suas
próprias ações e happenings. Kaprow viu nas ações de Pollock
um potencial de liberação não apenas da pintura, mas do fazer
artístico como um todo: o artista deveria atravessar a fronteira
da tela e entrar na esfera social, ou, nas palavras de Kaprow,
entrar na “vida” (Kaprow & Kelley, 2003: 1-9).
Apesar desse potencial de liberação da derrubada da tela
em Pollock, que Kaprow e outros identificaram e exploraram
(especialmente aqueles artistas agrupados em torno do movi-
mento Fluxus), é claro que as ações de Pollock foram informa-
das por uma política de gênero extremamente problemática.76
Rosalind Krauss nos lembra que Andy Warhol, já no começo
da década de 1960, havia claramente percebido no “gesto que
um homem em pé executa ao derramar líquido sobre um chão
horizontal” o inegável “machismo que rondava a action pain-
ting” (Bois & Krauss, 1997: 99). Uma crítica parecida pode
ser identificada na arte de performance feminista do começo
dos anos 60, como em Vagina Painting [Pintura com Vagina]
(1965) de Shigeko Kubota, no Perpetual Fluxfest na cidade
de Nova York, peça na qual a artista japonesa, agachada sobre
um papel branco, pinta-o com um pincel saído de sua vagina,

76.  Para uma crítica aprofundada do projeto de Pollock em relação a seu enquadramento
filosófico, inovação estética e política de gênero, ver Amelia Jones (1998).

128
criando “um processo de pintura gestual deliberadamente ‘fe-
minino’, fluindo do centro criativo do corpo da mulher, em
contraste à ‘ejaculação’ da tinta jogada, derramada e espalha-
da” em Pollock (Reckitt, 2001: 65).77 Rebecca Schneider, em
um ensaio extraordinário intitulado “Solo Solo Solo”, concor-
da com o diagnóstico dado por Warhol e Kubota, e também
identifica um impasse epistemológico que emerge do machis-
mo de Pollock – um impasse derivado do que ela considera
uma reverência obstinada da história da arte de performance à
figura de Pollock como herói patriarcal:

Vez por outra (num eco reverberante de Allan Kaprow) nos


é dito que o artista americano de action painting Jackson
Pollock foi o responsável pelo ato supremamente masculi-
no de liberar a arte da tela e desencadear toda a arte calcada
na performance da segunda metade do século XX. Todas as
outras possibilidades são, por assim dizer, relegadas à uma
nota de pé de página (Schneider, 2005: 36).

Estando consciente do comentário certeiro de Schneider,


por que então eu invoco Pollock no começo deste capítulo so-
bre Trisha Brown e La Ribot? Por que trazer à tona a figura
do pai morto? Não poderíamos deixar Brown e La Ribot em
paz, experimentando sozinhas? Em seu ensaio, Schneider ofe-
rece uma resposta a estas objeções. Sua crítica da noção mo-
dernista de singularidade e de originalidade no “artista solo”
propõe uma escrita crítica que se põe contra “o desejo de ‘eleger’
um artista unitário em oposição à consideração dos contextos
mais abrangentes de polinização, colaboração dialógica e am-
pla influência diaspórica cruzando vetores nacionais, étnicos e
temporais” (2005: 35). Assim, eu invoco Pollock precisamente
para indicar como as distintas operações que Trisha Brown e
La Ribot executam no plano horizontal – quando suas danças
encontram as artes visuais no contexto institucional do museu

77.  Ver também Schneider (1997: 38).

129
e no contexto discursivo da historiografia da arte – já estão em
diálogo trans-temporal com (e numa crítica trans-nacional das)
práticas artísticas e discursos oficiais que as precederam. Ambas
inevitavelmente precisam negociar com a intrusão do espectro
de Papa Pollock, bem como com narrativas oficiais particular-
mente poderosas da história da arte (de performance) que pri-
vilegiam mitos de origem e linhagem patrilinear masculina. É
com o legado das linhagens patriarcais na história da arte, do
machismo da história da arte, o legado da “originalidade histó-
rica” que depende de um heróico gênio masculino descobrindo
por si e para si os prazeres de adentrar temporariamente num
território virgem (a horizontalidade branca da tela), que Brown
e La Ribot inevitavelmente se deparam em suas performances e
na recepção de suas performances. É disso que elas também pre-
cisam escapar a qualquer custo em seus distintos e particulares
usos do horizontal – um plano cuja associação imediata com a
derrubada pollockiana emerge como uma praga. Eu argumen-
taria que It’s a Draw / Live Feed de Brown e Panoramix de La
Ribot propõem modos de relação com o horizontal que deixam
surgir espacialidades não-falogocêntricas (para usar o termo de
Derrida) e territorializações não-colonialistas. Neste sentido, ao
contrário de Pollock, estas duas performances de fato fazem de-
sabar o plano de representação.78 Insistindo na relação da dança
com as artes visuais, Brown e La Ribot atualizam e emprestam
um gênero (feminino) à observação de Merce Cunningham em
1952, quando ele sugeriu que os dançarinos retiram da pintura
não necessariamente seus aspectos formais, mas o desejo utópi-
co de criar um espaço de pura potencialidade. O que significa
para mulheres coreógrafas criarem para si um espaço de pura
potencialidade ao trabalhar a horizontalidade em seus diálogos
com as artes visuais? Eu gostaria de começar a responder esta
pergunta tratando primeiramente das ações de Trisha Brown
em It’s a Draw / Live Feed.

78.  Sobre a relação entre colonialismo, o território vazio e a representação, ver Carter (1996).

130
HORIZONTALIDADE SEM PERSPECTIVA:
DANÇAR DESENHAR CAIR

Trisha Brown tem tido uma longa relação com o desenho.


No catálogo de uma exposição sobre a prolífica carreira de
Trisha Brown (Art and Dialogue 1961-2001), a teórica france-
sa da dança Laurence Louppe escreve a respeito da resiliente,
embora de certa forma secreta (pelo menos na primeira década
de seu trabalho), “artista visual em Brown” (In: Teicher, 2002:
66). Algumas das peças coreográficas de Brown do começo da
década de 1970 parecem encontrar versões diretas nos seus de-
senhos do mesmo período (por exemplo, sua série de desenhos
Quadrigrams e sua coreografia Locus, 1975).79 Ao longo das
décadas de 1980 e 1990, os desenhos de Brown foram adqui-
rindo maior autonomia na exibição pública de sua arte. Nos
últimos anos, seus desenhos vêm sendo exibidos em galerias e
museus ao redor do mundo, incluindo o Musée de Marseille
(1998), o Drawing Center e o New Museum em Nova York
(2004). A questão se torna, portanto, descobrir o que justifica
o release de imprensa do FWM ter classificado como “inco-
mum” a performance de It’s a Draw / Live Feed. Certamente, a
escala monumental dos desenhos – embora não seja novidade
na pintura – é incomum. Também o fato de Brown desenhar
em um contexto público subverte a natureza de certa forma
mais intimista do desenho – muito embora, como já notamos
acima, a presença do público é retardada devido à projeção do
vídeo ao vivo (a única plateia em frente a Brown enquanto ela
dança e desenha é a equipe de vídeo).80 O que eu acredito ter

79.  Laurence Louppe propõe uma analogia dos quadrigrams de Brown com as caixas de
Donald Judd. Embora de fato haja semelhança na forma, a intrusão do linguístico e do
matemático na formulação do cubo como dispositivo composicional em Brown a coloca
mais próxima da questão ontológica da criação de espaço pela coreografia como uma ne-
gociação contínua entre linguagem, corpo e espaço. Ver Louppe (1994: 147).
80.  Em uma ocasião, durante o Festival de Dança de Montpellier, Trisha Brown apresen-
tou It’s a Draw / Live Feed em um palco teatral diante de uma plateia. Até a escrita deste
capítulo, esta foi a única ocasião em que Brown teve o público diante de si neste trabalho.

131
tornado este evento algo bastante incomum não foi nenhum
dos elementos acima, mas sim a forma como Brown coreogra-
fou um modo de aparição no espaço institucional e discursivo
das artes visuais, fundindo dança e desenho, e depois inexo-
ravelmente ligando ambos à horizontalidade através de uma
aproximação à linha que exemplifica o que Georges Bataille
chamou de “informe”.
Yve-Alain Bois discute o informe em Georges Bataille em
termos de uma operação antirepresentacional: “metáfora, figu-
ra, tema, morfologia, significado – tudo que faz lembrar alguma
coisa, tudo que se agrupa na unidade de um conceito – isto é o
que a operação do informe destrói” (Bois and Krauss, 1997: 79).
Em It’s a Draw / Live Feed, é precisamente a relação do corpo
dançante com a figuração, tema e significado, e com seu modo
de aparecer dentro do espaço representacional, que é questiona-
da. O uso que Brown faz de linhas e movimentos informes em
seu dançar-desenhar perturba o significado e seus imperativos
de figuras e temas claramente delineados. Seu dançar-desenhar
simultâneo destrói todos aqueles conceitos que Bois descreve
como asseguradores da suave reprodução ideológica da econo-
mia do representacional. Se o informe destrói significado e figu-
ra, ele também destrói a possibilidade de fixar a representação
dentro de uma legibilidade visual ou gramatical. Vejamos como
Brown realiza formalmente esta virada crítica e o que ela pode
ter realizado politicamente através deles.
Em It’s a Draw / Live Feed, o público vê Brown entran-
do numa sala branca aparentemente vazia: o cubo branco
abstrato do museu moderno. Lefebvre enxergou no “espaço
abstrato” a produção simultaneamente material e ideológica
de “uma anaforização [...] que transforma o corpo ao trans-
portá-lo para fora de si e para dentro do domínio visual-
-ideal” (1991: 309). Este transporte do corpo para dentro
É importante ressaltar aqui que minha análise restringe-se exclusivamente à performance
apresentada na Filadélfia, devido às implicações críticas acarretadas pelo modo como esta
peça foi mediada pela câmera.

132
do domínio visual-ideal é a brutalidade necessária no cerne
da desincorporação que assegura hegemonias espaciais e es-
cópicas. Em It’s a Draw / Live Feed, podemos dizer que o
transporte anafórico do corpo para o domínio visual-ideal é
iniciado pela força do espaço do museu em si, força esta rei-
terada pelo cubo branco onde Brown dança-desenha e refor-
çada pelo achatamento de sua imagem via câmera de vídeo.
O ponto de vista do público visitante é predeterminado por
um longo plano fixo e sem edição produzido ao vivo pela
câmera e projetado em monitores verticais e bidimensionais.
Se ao colocar-se diretamente no espaço abstrato do museu
Brown já ativa um devir-visual-ideal, então a câmera multi-
plica este devir ao colocar a imagem de Brown dentro de uma
composição altamente perspectivista. Na imagem em projeção
ao vivo [live feed], é como se as muitas superfícies e planos
brancos (piso, teto, paredes, grande pedaço de papel sobre o
chão) refletissem e refratassem umas às outras, criando uma
especularidade minimalista; uma espécie de tensão visual que
subsistisse ao longo de toda a performance entre a ortogonali-
dade de múltiplas superfícies bidimensionais (a folha de papel,
as telas dos monitores, as paredes) e o efeito obtuso de um
corpo movendo-se em um espaço tridimensional.81 Na versão
da Filadélfia de It’s a Draw / Live Feed, a câmera permanece
parada. A imagem em vídeo funciona como uma janela, crian-
do uma ilusão de perspectiva, pois organiza o ponto de fuga
da imagem próximo ao ponto de vista ideal de um espectador
que encara a tela.82
Múltiplas camadas de espaço abstrato, portanto, e Brown
sequer começou a dançar-desenhar. A primeira camada deriva
da participação da sala de exibição na economia visual-ideo-

81.  Sobre a função do obtuso como aquilo que numa imagem permanece para além do
significado e da própria visibilidade, ver “The Third Image” de Roland Barthes (1985).
82.  “Estaremos falando de uma visão totalmente ‘perspectiva’ do espaço [...] apenas quan-
do a tela inteira haver sido transformada [...] numa ‘janela’, e quando se espera de nós
acreditarmos que olhamos para o espaço através dessa janela” (Panofsky, 1997: 27).

133
lógica do museu de arte. A segunda camada deriva do fato da
performance de Brown ser televisionada, posicionando assim
sua dança-desenho ainda mais no virtual. Terceira camada: o
enquadramento em perspectiva e sua inevitável desincorpora-
ção da visão. Quarta camada, particularmente relevante aos
estudos da dança e provocado pela especificidade do espaço
branco: o espaço abstrato no qual Brown entra cria ressonân-
cias históricas com uma abstração originária em particular,
a qual iniciou a própria coreografia moderna. A sala branca
para a dança-desenho de Brown é perfeitamente similar ao
quadrado proposto pelo mestre de dança Raoul-Auger Feuillet
(o criador do neologismo “coreografia”), em 1700, como o
espaço ideal para a dança – um quadrado vazio branco cuja
presença precede àquela do corpo e cuja superfície aplainada,
homogênea e branca, é irrevogavelmente apartada do esbu-
racado e sujo terreno social. A historiadora da dança Susan
Foster associou o espaço abstrato da dança criado por Feuillet
com a página branca: “Raoul-Auger Feuillet simulou o piso
retangular da área de dança com o layout retangular da página
impressa” (Foster, 1996: 24). Uma sobreposição muito similar
da página com o palco é proposta em It’s a Draw / Live Feed.
Tal sobreposição confunde o alicerce do desenho e o alicerce
da dança. Os efeitos positivos desta confusão no nível da per-
cepção, significação e motilidade formam os impulsos críticos
e estéticos que sustentam a dança-desenho de Brown em It’s a
Draw / Live Feed.
Se o espaço no qual Brown desenha e dança é de alguma
forma reminiscente do quadrado de Feuillet, então os seus
movimentos naquele espaço perturbam profundamente essa
ligação histórica. Há uma diferença profunda entre os movi-
mentos improvisados de Brown e o aparato histórico da core-
ografia como um conjunto de passos pré-determinados. Mais
além, o sistema de Feuillet só era capaz de mapear o traçado
dos pés na pista-página de dança (seu sistema foi intensamen-
te criticado por seus contemporâneos por ser incapaz de dar

134
conta dos movimentos dos braços, cabeça e mãos).83 Neste
sentido, a confusão de Feuillet entre a página do livro e o piso
de dança revela a função gráfico-significante que Walter Ben-
jamin atribuiu ao plano horizontal.
Em oposição à assimilação da página branca ao espaço ho-
rizontal da significação gráfica, em Feuillet como em Benja-
min, o que Brown faz no instante mesmo em que começa a
desenhar-dançar sobre o “corte transversal” do simbólico ben-
jaminiano tem muito pouco a ver com assinatura ou mesmo
com a escrita. Se ela desenha no plano horizontal, ela parece
muito pouco preocupada em circunscrever uma marca signifi-
cante ou um sentido simbólico na transversal. Além disso, ela
frequentemente dança deitada ao longo do plano horizontal,
rejeitando a associação de figura e verticalidade que Benjamin
identifica com a função representacional do vertical. Reti-
rando-se da estrita divisão de planos benjaminiana de acordo
com suas funcionalidades semióticas, Brown também escapa à
axiomática convencional de significação e representação. Por
fora da escrita, por fora do corte transversal do simbólico, por
fora da representação longitudinal, o que ela faz, então?
Brown entra no cubo branco vazio de aproximadamente
seis metros quadrados e caminha pelo palco-página histori-
camente ressoante. De maneira calma e concentrada, quase
hesitante, ela distribui pedaços de carvão e de lápis pastel ao
redor das bordas da grande folha de papel (aproximadamen-
te 3 metros quadrados). Segurando o carvão, Brown começa
a caminhar, mantendo-se próxima à periferia do papel, sem
pisar dentro dele por enquanto. Aproximando-se mais ainda
da superfície de desenho, ela imediatamente suspende qual-
quer possibilidade de associarmos sua dança-desenho com
um mero traçado de passos ou uma execução de padrões de
movimento. O que Brown faz tão logo ela se aproxima do pa-

83.  Para um resumo destas críticas, ver o ensaio de Jean-Noël Laurenti, “Feuillet’s
Thinking” (In: Louppe, 1994: 86-8).

135
pel é: primeiro, ponderar – tomar seu tempo pensativamente,
concentrar-se, não mover – e, então, cair.
De forma comedida, Brown cai para fora dos limites do
papel, como a afrontar os limites impostos por este às suas
ações. Um atravessamento, desde o início: ela desterritoria-
liza o horizontal ao executar um primeiro movimento de sua
dança-desenho fora dos limites próprios do papel. Ela recolhe
de suas juntas e músculos a quantidade exata de tensão para
que seu corpo quebre suavemente o alinhamento vertical da
postura do caminhante e ceda à gravidade. Brown destila-se ao
chão, renuncia seu peso numa espécie de rotação controlada
e sustentada pela singular “ondulação” de seu corpo: aquela
qualidade que Hubert Goddard identificou como específica a
Brown, uma “motilidade, um modo de autorizar o movimen-
to sem restrição” (citado por Louppe In: Teicher, 2002: 69).
Esta queda ao mesmo tempo controlada e desprendida, esta
renúncia voluntária e temporária à verticalidade da figura é o
que irrestritamente autoriza Brown a abraçar a horizontalida-
de como uma crítica da perspectiva e do vertical no jogo as-
simbólico e antirepresentacional que é It’s a Draw / Live Feed.
Já existe uma política no cuidadoso colapso de Brown para
fora dos limites da página: um gesto sinalizando que sua dan-
ça sempre excederá o imperativo da marca como único modo
da artista relacionar-se com o espaço. Em oposição à postura
masculinista de Pollock sobre a tela derrubada, em oposição
à sua recusa de sair de dentro das fronteiras apropriadas da
representação, Brown não caminha de modo a dominar a su-
perfície plana ou a confinar seus movimentos aos limites do
papel. Ela não se tornará a figura em pé sobre o terreno virgem
da página branca. Ao renunciar à sua própria verticalidade,
ela recusa a “erectilidade fálica” que organiza a abstrata e he-
gemônica “orientação do espaço” (Lefebvre, 1991: 287). Ela
forja uma aproximação ao horizontal deitando-se sobre ele,
estando junto com ele, deslizando-se e esfregando-se nele. O

136
cair de Brown é mais como um esguichar: o jorro informe que
impossibilita a figuração.
No chão, Trisha Brown não vira grafema, nem signo, nem
símbolo, nem figura, mas sim algo tão informe quanto tinta
salpicada. Seu cair é um devir-informe. Em jorro, a dança-de-
senho de Brown escapa às economias perspectivistas do olhar
e à significação simbólica. Mas diferente da tinta, particular-
mente da tinta pingada por Pollock, o jorro de Brown agrega
uma outra camada do informe, uma outra possibilidade de
resistência a reivindicar posse sobre um território, pois trata-
-se de um jorro que não se deixa prender, que não seca e não
se fixa. No chão, ela mantém-se em movimento, ela não se
permite ficar imóvel. E assim como seu cair-jorrar é um devir-
-informe, seu rabiscar com carvão não sucumbirá à figuração,
nem à significação, nem à representação. Ao deitar no plano
transversal que Benjamin associou à escrita e ao simbolismo
gráfico, o dançar-desenhar de Brown permanece decidida-
mente fora da representação – nada está sendo escrito, nada
está sendo simbolizado. Seu corpo, carvão e giz pastel movem-
-se entre o intencional e o acidental, entre a premeditação e
a espontaneidade, entre o marcar e o apagar, entre o quase
desenhar e o quase escrever, mas nenhum deles exatamente.
Tanto o corpo de Brown quanto seu desenho não se referem
a nada além deles próprios. Esta é a auto-referencialidade do
jorro, inexoravelmente atada ao que cai. Ao desenhar-dançar,
Brown não cria nada que propõe um tema, que encabeça uma
figura central, que avança uma metáfora criativa, que inicia
um significado. As linhas de carvão e giz pastel traçadas pelas
mãos e pelos pés de Brown deitada sobre o chão vaporizam-se
na poeira, contorcem-se em hesitação, racham sob seu ataque,
desencadeiam fluxos, refletem precisão e incorrem no erro.
Ocasionalmente, a vemos traçar um membro do corpo (braço,
pé, joelho). Quando posteriormente observamos os desenhos,
o máximo que conseguimos perceber são possibilidades para
reconhecermos que um corpo esteve sobre aquela tela, que ela

137
pode ter optado desenhá-lo; entretanto, o resultado final re-
siste à representação de corpos completos ou morfologias pro-
priamente formadas, assim como não se registram passos que
possam ser decodificados, ensaiados e dançados outra vez. Es-
tas danças-desenhos definitivamente não são representações.
Elas são operações, performances.
E no entanto... algo se inscreve no papel. Se quisermos en-
tender a performatividade das inscrições executadas por uma
coreógrafa caindo, movendo, rolando, pulando, esfregando,
deslizando mãos, pés, pernas, costas, seios, cabeça, rosto, bun-
da e barriga sobre um improvável e pequeno palco de papel
(ou sobre uma improvável e imensa página em branco dei-
tada ao chão), é preciso levar em conta a especificidade dos
movimentos de Brown em relação à sua economia, isto é, em
relação ao eventual destino dos seus movimentos como traços.
Laurence Louppe, ao escrever sobre a história da relação en-
tre coreografia e desenho, nota que “o papel de modo algum
salva um registro da dança, ele salva um traço que em si não
poderia ser destinado a qualquer outro lugar” (Louppe, 1994:
22). Esse resíduo que não é um registro da dança é exatamen-
te o que testemunhamos na dança-desenho de Brown. Pois o
fascinante em It’s a Draw / Live Feed não é exatamente o fato
de que uma coreógrafa está a desenhar, ou que a coreógrafa
improvisa danças enquanto desenha, ou mesmo que esta core-
ógrafa exponha tão abertamente, tão generosamente, seu ato
íntimo de criação a um público anônimo, presente, ausente.
O fascinante é perceber como a dança-desenho de Brown não
está de modo algum restrito e direcionado a produzir uma
obra final em papel. Ao contrário, Brown gera uma quantida-
de imoderada de movimentos, gestos, pequenos passos e mi-
crodanças que não são de forma alguma direcionadas ao papel,
e que não deixarão absolutamente qualquer marca ou impres-
são no papel. Nos gestos e na motilidade cuidadosa, alegre,
discreta e atentamente concentrada de Brown existe um ex-
cedente de ações, passos e traçados que não serão capturados

138
pelo, ou amarrados ao, horizontal; uma pletora de ações que
não deixam marcas, que não têm nada a ver com marcar nem
com reivindicar posse sobre um território – nada a ver com
territorializar. Um ou outro movimento de Brown resulta em
inscrições, como quando mãos ou pés esfregam-se no papel
e deixam marcas. Outros permanecerão não-marcados, como
quando ela dança sem um foco no horizontal, ou quando o
papel escapa ao carvão e a pressão do giz pastel é leve demais
para deixar qualquer marca.
Escapar à marca: um dispêndio sem rastros que já é uma
desterritorialização da arte. O modo particular de Brown criar
o espaço sem marcar território traz consigo algumas implica-
ções micropolíticas. Gilles Deleuze e Félix Guattari associaram
o que eles denominaram “fator territorializante” com o devir
da arte, quando eles inequivocamente postularam o território
“como efeito da arte” (2007: 123). Suas palavras são: “o artis-
ta, primeiro homem que erige um marco ou faz uma marca”
(Deleuze e Guattari, 2007: 123). E pode mesmo ser o caso.
Pelo menos este parece ser o caso ao nos voltarmos para o
modo masculinista de ocupar a tela derrubada que Andy Wa-
rhol identificou no “machismo” de Pollock, no qual o “gesto
que um homem em pé executa ao derramar líquido sobre um
chão horizontal é simplesmente decodificado como ato de uri-
nar” (Bois e Krauss, 1997: 102). Se o caráter “urinário” da ac-
tion painting está de acordo com a noção da arte como marca-
ção de um território em Deleuze e Guattari, a dança-desenho
de Brown nos possibilita discordar deles momentaneamente.
Ou pelo menos nos permite considerar outros modos de fazer
arte, ou de pensarmos uma relação entre arte e espaço que
recuse as implicações coloniais da marcação de território com
a bandeira do artista. O dançar-desenhar de Brown – no qual
grande parte da dança e grande parte do desenho não procu-
ram deixar marcas – oferece então uma crítica da associação
feita por Deleuze e Guattari entre a(o) marca(o), a territoria-
lização, a reivindicação de propriedade e o ato artístico. Neste

139
sentido, como desenho, a ação de Brown já interpela a história
das artes visuais, ensaiando uma crítica profunda do uso do
horizontal em Pollock.
Voltemos à experiência de assistir It’s a Draw / Live Feed
nas telas planas e verticais dos monitores. Enquanto Brown
dança-desenha, a atenção do público é levada a passar por uma
série de rupturas. Será que devemos mirar o papel e seguir a
materialização do desenho? Ou mirar o corpo de Brown e se-
guir a materialização da dança? Devemos olhar para as linhas
ou para os gestos? Para poder perceber as duas coisas é preciso
olhar para cima, para baixo e para os lados simultaneamente.
Nesta dança do olhar e da atenção, que se produz por dentro
de um espaço excessivamente enquadrado – um quadro den-
tro de um quadro dentro de um quadro: o quadro fixo do mo-
nitor de TV, o quadro fixo da lente da câmera, o quadro fixo
das paredes da galeria, o quadro fixo do papel sobre o chão – o
público se vê obrigado a dar conta simultaneamente do plano
vertical da representação do movimento e do plano horizontal
da inscrição das marcas. Brown opera nos dois planos simulta-
neamente, gerando conglomerados de pontos de fuga no espa-
ço bidimensional que se projeta ao vivo para o público, como
numa hipérbole de perspectivas. E assim ela cria uma disper-
são contínua na qual nenhum ato (dança, desenho) ou gênero
artístico (dança, desenho) é privilegiado em relação a outro.
Ao contrário, cria-se uma simultaneidade entontecedora de
gêneros e atos. Esta tontura já indica um desmantelamento da
ordem estriada da perspectiva.
A perspectiva é um efeito criado por uma organização espe-
cífica de linhas numa superfície representacional (geralmente
vertical) que assegura uma figuração geometricamente coeren-
te da profundidade espacial. O efeito perspectivo depende de
um “ponto de fuga central”, aquele ponto matemático onde
todas as ortogonais se encontram e “que é determinado pela
perpendicular que vai do olho até a superfície do plano” (Pa-
nofsky, 1997: 28). Erwin Panofsky mostrou que embora seja

140
possível obter uma representação perspectiva com mais de um
ponto de fuga na mesma imagem, a relação privilegiada da
perspectiva com ideologias e práticas hegemônicas de repre-
sentação só se constituiu quando a pintura alicerçou sua pre-
tensão de verdade numa imagem organizada em torno de um
único ponto de fuga. O ponto de fuga unitário é essencial para
unificar e harmonizar o olhar do espectador com forças repre-
sentacionais, teológicas e discursivas (Panofsky, 1997: 141-2).
Panofsky nos faz lembrar ainda que “a ’perspectiva central’
cria duas suposições tácitas, mas essenciais: primeiro, que nós
enxergamos com um olho imóvel e unitário; e segundo, que a
secção transversal plana da pirâmide visual pode passar como
uma reprodução adequada de nossa imagem ótica” (Panofsky,
1997: 29). Portanto, a perspectiva sempre opera por redução. E
o que é reduzido na perspectiva não é apenas a tridimensiona-
lidade do espaço, mas a natureza corporalizada da percepção, já
que o embasamento corpóreo da sensação cede seu lugar para
algoritmos de visibilidade. O que se perde assim é a corporifica-
ção da visão, por meio de uma operação que subtrai à percepção
os nossos olhos continuamente moventes, descentralizados, es-
tereoscópicos, substituindo-os por um ponto de vista monoma-
niacamente fixo e artificialmente monocular.84 É por isso que a
“construção perspectiva é uma abstração sistemática da estrutu-
ra de espaço psicofisiológico” (Panofsky, 1997: 31). Relevante à
nossa discussão da criação de espaço por Brown em It’s a Draw /
Live Feed é o fato da operação de abstração que é a perspectiva,
sua redução perceptual em nome da consistência monocular,
“também vale, é claro, para a operação inteiramente análoga da
câmera” (Panofsky, 1997: 31).
Acontece que em It’s a Draw / Live Feed os olhos do espec-
tador jamais são autorizados a permanecer imóveis. Mesmo se
a peça é hiperbolicamente imobilizada pela sobreposição de
múltiplos enquadramentos (câmera, monitor, paredes, papel),

84.  Para uma crítica da perspectiva em relação à mobilidade e a corporeidade, ver Weiss (1995).

141
os movimentos e ações de Brown criam um problema cinéti-
co-visual acarretado por sua constante criação, redistribuição
e mobilização de multiplicáveis pontos de fuga. O que Bro-
wn efetua em seu dançar-desenhar é a transformação da ope-
ração redutiva da câmera como máquina de perspectiva em
uma operação multiplicadora da visão. Distribuindo, criando
e destruindo uma multiplicidade de pontos de fuga, Brown
fabrica um espaço dentro uma sala fechada que não a confina-
rá sob a economia da perspectiva, aquele modo de olhar que
historicamente consignou mulheres às suas prisões domicilia-
res.85 Recusando-se a permanecer em prisão domiciliar, Bro-
wn altera o espaço: de nome para verbo. Seu dançar-desenhar,
antes de mais nada, acrescenta uma dinâmica insuspeitada aos
planos de inscrição e de representação verticais e horizontais,
fazendo-os converterem-se de dimensões planas em zonas de
intensidade, graças às operações informes e não-fixáveis de
uma cadente e corporalizada agência.
Ao fim de It’s a Draw / Live Feed, Brown terá criado quatro
diferentes desenhos. Ao completar cada um deles, um proces-
so que dura entre 10 e 12 minutos, Brown retira-se da sala
branca e dois funcionários do museu entram empurrando um
andaime. Cuidadosamente, eles recolhem o papel desenhado
do chão e o penduram em uma das paredes. Ao levantarem a
folha de papel marcada, uma outra folha em branco aparece
logo abaixo, pronta para receber novos movimentos e impres-
sões de Brown. Ao completarem a tarefa de erguer o desenho
de seu plano horizontal-coreográfico do chão e prendê-lo em
seu novo plano vertical86, os dois assistentes deixam o espaço
e logo a coreógrafa retorna e recomeça o processo outra vez.
Mas é no levantamento final da folha de papel – um levan-
tamento que de súbito revela um ímpeto teleológico ao redor
de todo o evento – do plano horizontal para o plano vertical

85.  Sobre a questão da mulher, dança e prisão domiciliar, ver Derrida (1995).
86.  O topo do desenho é o lado paralelo mais próximo da parede na qual ele será pendurado.

142
de representação e contemplação que podemos vislumbrar os
limites da desterritorialização radical de Brown e a ativação
total da força territorializante da máquina-museu – uma má-
quina dedicada a sempre erguer algo e afixá-lo no plano verti-
cal de representação. Após toda a fratura do olhar que Brown
efetua por meio de sua submissão à gravidade e ao jorro, por
meio de sua dança ondulante, por meio de sua contínua cria-
ção, descentralização e desaparelhamento de tantos pontos de
fuga, por meio de seu uso do informe na dança e no desenho,
algo afinal é erigido uma vez que a dança-desenho de Brown se
completa. A entrada dos assistentes marca a entrada daquelas
demandas visuais-arquiteturais-econômicas que caracterizam
o museu como máquina territorializante. Ao fixarem o papel
de volta no plano vertical de exibição, os assistentes, feito pro-
curadores da máquina-museu, transformam o espaçar dester-
ritorializante em território regido pelo imperativo de exibir a
marca(ção) (autoral). Assim, o informe deve ser erguido de seu
plano horizontal de produção cinética, em interesse de seu re-
assentamento no plano vertical como objeto de contemplação.
Tal ereção é um claro recuo dos deslocamentos radicais per-
formados por Brown diante de nós. Faz recordar a crítica de
Rosalind Krauss a Pollock quando ela escreve que ele acolheu
a gravidade e a horizontalidade apenas para evacuar ambos
no instante em que a economia da representação demandou a
exibição de um produto final, reinserindo assim o antes der-
rubado no plano longitudinal “próprio” do consumo visual
(Bois e Krauss, 1997: 93).
Durante a performance de It’s a Draw / Live Feed o espaço
do dançar-desenhar de Brown explode numa série de explora-
ções estonteantes entre gêneros artísticos, entre pontos focais,
entre a confusão de posições e certezas sobre espectatorialida-
de, autoria, disciplinas, documentação, o original, a cópia, a
presença, o ao vivo, a dança e a arte. Mas no final, e precisa-
mente porque deve haver um final (pois museus não lidam
bem com a incompletude nem com o aspecto temporal do

143
l’informe), a entrada dos dois assistentes do museu vestidos
de preto nos fazem acordar para a falta de neutralidade de
qualquer espaço que seja – não importando o quão abstrato
e vazio aquele espaço pareça ao espectador. Não mais dançar-
-desenhar: o produto final deve resignar-se ao destino de obje-
tos de arte no espaço fálico-vertical da representação.

O OBLÍQUO: ESCULPIR DANÇAR ESTRAGAR

Meados de março, 2003. Estou sentado com outras deze-


nas de pessoas sobre um piso coberto de papelão em um dos
grandes espaços de exibição do museu Tate Modern. Colados
à parede, como é costumeiro para o público de performance
quando não se sabe onde será o proscênio, sentindo o calor
do papelão e seu cheiro-cor indefinível, todos esperamos por
Panoramix, a performance duracional em que La Ribot apre-
senta ao logo de mais de três horas todas as 34 de suas Piezas
Distinguidas (1993-2003). Esta é a primeira vez que todas as
peças distinguidas de La Ribot serão apresentadas em um úni-
co evento. O título Panoramix, portanto, sugere um resumo
final, uma visão panorâmica dos dez anos de suas criações.
Mas ao me acomodar no largo e branco espaço da galeria do
museu e esperar pela entrada de La Ribot, vai ficando claro
que a disposição espacial da sala enfraquece qualquer possibi-
lidade de se conceber Panoramix como um evento associado
à pulsão óptico-histórica totalizante que caracteriza a função
representacional do panorama.87
Piezas Distinguidas é o nome de uma série de performances
curtas que La Ribot começou a criar em 1993 e finalizou em
2003. As premissas dramatúrgicas da série eram: cada uma de
suas piezas constitutivas tomaria a forma de um solo performa-
do por La Ribot; cada uma duraria entre 30 segundos e 7 minu-

87.  Para uma análise histórica das funções ideológicas e representacionais do panorama,
ver Oettermann (1997).

144
tos; tanto o conteúdo quanto a duração de cada pieza deveriam
ser negociados com seu “distinguido proprietário” – indivíduos
ou empresas que comprariam cada peça distinguida de La Ri-
bot. À princípio, estas peças seriam apresentadas em espaços
teatrais: pequenos palcos ou caixas pretas. Este foi o caso, por
exemplo, de Piezas Distinguidas (1993-1994) e de Mas Distin-
guidas (1997). Foi só a partir de Still Distinguished (2000) que
La Ribot repensou a questão do espaço e deslocou todas as peças
para fora do teatro. Este deslocamento obviamente acarretou
mudanças em termos de suas apresentações: iluminação de pal-
co não seria mais possível, alterando radicalmente o impacto
formal das imagens cuidadosamente construídas e que tanto
encantavam os espectadores de Piezas Distinguidas; uma visão
frontal das peças não seria mais garantida, já que o proscênio
estava desfeito; saídas de som estariam localizadas e com menor
qualidade acústica. Além disso, La Ribot aparece sempre nua no
espaço da galeria, vestindo-se apenas quando a pieza requer. E
uma vez finalizada cada pieza, ela volta à nudez, deixando suas
roupas espalhadas, como detritos ou amontoados escultóricos
no plano horizontal. Assim, o deslocamento espacial não mu-
dou suas peças apenas esteticamente; mudou também o modo
delas. Como escreveu a artista:

Agora o espaço pertence aos espectadores e a mim sem


hierarquias. Meus objetos, as bolsas e os casacos deles; os
comentários deles e minha sonoplastia; às vezes minha
imobilidade e os movimentos deles, outras vezes meu mo-
vimento e a imobilidade deles. Tudo e todos espalhados
sobre o chão, numa superfície infinita, na qual movemos
silenciosamente, sem direção precisa, sem ordem definida.
(In: Heathfield e Glendinning, 2004: 30)

Para La Ribot, esse deslocamento tinha um objetivo muito


importante: a desmontagem da máquina hierárquica que é o
teatro. A dispersão espacial do público e suas coisas no mesmo
plano de encenação da artista e seus objetos, o nivelamento

145
dos “comentários deles e [da] minha sonoplastia”, e a partilha
de uma horizontalidade enfática refletem três aspectos impor-
tantes dessa mudança de modo nas Piezas Distinguidas de La
Ribot: uma rendição ao puxo gravitacional, uma intensifica-
ção do microperceptual e uma apresentação não-teleológica
de pequenos trabalhos. Ao privilegiar a ausência de finalidade,
o ziguezague, a deriva (mesmo quando se permanece no mes-
mo lugar), ao enfatizar a criação de infinitos pontos de vista
(sem lugar fixo para o público), La Ribot desterritorializa o
espaço estriado, ortogonal da galeria institucional, tornando-
-o uma dimensão ao mesmo tempo indeterminada e precária.
Mais além, quando seu corpo e nosso corpo juntam-se a seus
objetos e nossos objetos sobre o mesmo piso de papelão, há
uma ênfase inevitável do efeito geral que se produz sobre as
obras de arte e seus espectadores por meio daquela força trans-
cendental, embora pouco reconhecida: o puxo declinante da
gravidade. Panoramix nivela a todos nós na mesma queda.
Ceder à gravidade é a consequência necessária da retirada de
La Ribot do enquadramento teatral. Ceder à gravidade também
permite lermos em seu desejo de deslocamento das piezas um
desejo paralelo de iniciar uma derrubada, uma degradação de
tudo que é considerado “bem-construído” – o bem organiza-
do, o direcional, o teleológico, o planejado, o representacional,
o perspectivo, o arquitetural e o coreográfico. Rosalind Krauss
observa, referindo-se ao uso da gravidade, da horizontalidade
e do peso em uma performance de 1961 do escultor Robert
Morris, na qual ele derruba uma coluna de quase dois metros
de altura num palco de teatro e chama a ação de performance de
dança: “uma função do bem-construído, a forma é desta manei-
ra vertical, pois é capaz de resistir à gravidade; aquilo que cede
à gravidade, portanto, é antiforma” (Bois e Krauss, 1997: 97).
De modo análogo, no desejo de degradar coreograficamente o
bem-construído em La Ribot, uma antiforma é inaugurada em
seu abandono do enquadramento performado pelo proscênio,
a qual é imediatamente reforçada em uma acolhida generali-

146
zada da gravidade como equalizadora de presenças. La Ribot
explicou sua retirada do contexto teatral para a galeria com es-
tas poucas e reveladoras palavras: “Eu gostaria de falar da apre-
sentação, ao invés da representação” (La Ribot In: Heathfield e
Glendinning, 2004: 30).
O afastamento de La Ribot da representação opera uma
mudança inevitável de modo no que concerne a presença de
seu corpo. Agora, seu corpo efetua uma relação positiva com
a gravidade que é ontologicamente crucial. Há uma operação
heideggeriana acontecendo aqui, como vista no capítulo ante-
rior, que compreende a presença como um ser-no-mundo ético,
associado a um modo particular de queda (“jogação” ou “de-
-cadência”, em português; em inglês: “throwness”; em alemão:
Verfallen). Para Heidegger e La Ribot, a gravidade surge como
aquela força (e lei) transcendental dada, à qual todos nós nos
submetemos sem necessariamente tornarmo-nos submissos a
ela. Desta maneira, uma das incumbências éticas de Da-sein (o
ser que já se sabe “decadente” e que deve empenhar-se para do-
mar tal condição) é perceber como o ser-no-mundo é condicio-
nado por este imperativo terreno (Heidegger, 1996: 319). Além
disso, para Heidegger, o vir-a-ser da obra de arte é precisamente
a expressão desta tensão permanente entre o puxo da terra para
baixo e as operações antigravitacionais do mundo.88 Eis porque
a retirada que La Ribot faz da representação para a apresenta-
ção deve envolver uma atenção ao puxo da terra para baixo,
uma acolhida da “de-cadência” transcendental, daí sua ênfase
na função do plano horizontal como uma membrana ativa, um
tímpano zunindo a dialética elástica entre terra e mundo como
uma dialética sobredeterminada pela força da queda. Como es-
creveu certa vez o pesquisador da dança Jaime Conde-Salazar,
quando assistimos La Ribot apresentando-se numa galeria, “a

88.  Sobre a distinção ontológica entre “mundo” e “terra” ver “The Origin of the Work of
Art” (Heidegger, 1993).

147
única certeza que temos é do peso de nossos corpos sobre o
chão” (Conde-Salazar, 2002: 62).
Antes mesmo de La Ribot entrar na galeria do Tate Mo-
dern, o trabalho invisível desta ameaça contínua ao bem-cons-
truído chamada gravidade já faz do espaço uma performance.
A superfície lisa amarelo-marrom do papelão que cobre o pla-
no horizontal é desordenada aqui e ali por um par de espre-
guiçadeiras de madeira fechadas, um grande corte de tecido
branco, algumas miudezas indistinguíveis: matéria, cor e for-
ma embolando pelo espaço, como nossos corpos agachados,
nossos casacos, nossas bolsas espalhadas. Nas quatro paredes
ao nosso redor, pairando dois metros acima do chão, dezenas
de objetos são assegurados por fita crepe. É como se qualquer
uma de nossas próprias coisas pudessem estar presas ali em
cima. Toda a galeria vira uma escultura, mas uma escultura
com toda a instabilidade e precariedade do “mal construído”,
toda a vibração sem propósito que a “imobilidade e movimen-
to” da plateia como elementos esculturais faz criar.
Visualmente, a instabilidade é encenada em Panoramix gra-
ças à tensão entre o revestimento mole de papelão amarelo-
-marrom no qual a plateia se acomoda e a ortogonalidade dura
do imperativo estético modernista materializado nas paredes
brancas (Wigley, 1995). Esta tensão era reforçada pela colori-
da profusão de objetos improváveis desleixadamente colados
nas paredes brancas com fita marrom, objetos que La Ribot
em breve tomaria para manipular ou vestir nas próximas 3
horas: óculos de mergulho, um par de calças translúcidas, um
imenso par de asas de papel azul, grandes asas de anjo de es-
ponja amarela, um corpo d’água, um vestido verde, um vesti-
do verde com flores, um vestido preto estampado com rostos,
um vestido pink, uma peruca elétrica azul, uma caixa de som,
um cartaz de “for sale” [“à venda”], toalha branca, sapatos ver-
melhos, um urinol branco esmaltado, microfone, galinha de
borracha, garrafa plástica de água, casaco marrom, um snorkel,
colar de pérolas, uma lanterna, caixa de sapatos vermelha, ca-

148
pacete de bicicletista, um marcador preto, etc., etc. Os obje-
tos pendurados na parede, presos por fita crepe, criam dois
efeitos: uma confusão semântica diante da incongruência de
sua exibição, objetos-nomes listados feito palavras misturadas
numa frase ainda a ser organizada gramaticalmente; e um efei-
to mais físico resultante da precariedade de sua exposição, o
jeito barato com que foram afixados nas paredes do Tate Mo-
dern, ressaltando como estes objetos não pertenciam de fato
àquele lugar, como não eram de fato objetos de arte, nem mes-
mo (ou não mais) ready-mades. A dupla natureza da presença
daqueles objetos no espaço (uma série de nomes, uma série de
formas), associada ao seu precário modo de exposição, acen-
tuava a constante ameaça de uma queda iminente: sua queda
física e sua queda linguística.
Em Panoramix, a ameaça desta dupla queda produz um
resultado muito específico: La Ribot cria um espaço que
opera como um distúrbio arquitetural. Eu me refiro à arqui-
tetura aqui no sentido definido por Denis Hollier em sua
leitura de Georges Bataille, isto é, arquitetura como uma
função do “bem-construído”, como cúmplice privilegiado
das economias hegemônicas da propriedade representacio-
nal (teórica, teológica, desejante): “imperialismo, filosofia,
matemática, arquitetura etc., compõem o sistema de petrifi-
cação” da humanidade (Hollier, 1992: 50), um processo no
qual “o livro e a arquitetura dão apoio mútuo e fomentam
essa sistematicidade monológica” (Hollier, 1992: 42). Este
sistema de petrificação como garantidor da estabilidade mo-
nológica da forma depende de uma resoluta significação, o
requerimento mínimo para o sucesso representacional. É por
isso que a “arquitetura, antes de qualquer outra qualificação,
é idêntica ao espaço de representação” (Hollier, 1992: 31),
e é por isso que “quando a estrutura define a forma geral
da legibilidade, nada se torna legível a não ser que seja sub-
metido à grade arquitetônica” (Hollier, 1992: 31). Em ou-
tros palavras: a arquitetura é uma economia de legibilidade,

149
uma estrutura dupla de citacionalidade e comando legislada
pela estabilidade da forma ereta. Em Panoramix, a operação
do distúrbio arquitetural é alcançada linguisticamente pela
ameaça iminente de se cair na assignificação dos objetos-
-nomes precariamente afixados nas paredes; e é alcançada in-
fralinguisticamente pelo cheiro difundido do papelão e pela
subordinação difundida ao puxo gravitacional. A intrusão
de objetos assignificantes, forças informes e sensações sutis
desordena o arquitetural como ortogonalidade enrijecida.
Assim, na operação de distúrbio arquitetural de Panoramix,
uma série de micromovimentos é desencadeada desde o início,
cuja força e impacto são confirmadas (e não enfraquecidas) por
sua quase invisibilidade. Primeiro micromovimento: o cheiro
sutil de papelão a complicar não apenas a própria constituição
do espaço representacional da galeria como puramente visual,
mas corroendo implacavelmente a solidez das superfícies pla-
nas, minando a confiança da galeria em sua ortogonalidade
plana. Cheiro que borra linhas retas e dobra planos nivelados;
que vaporiza a estriagem rígida da grade. O cheiro materializa
a distensão dos planos horizontal e vertical em muitos oblí-
quos, dobras e curvas, criando desta forma o que Alain Borer
(escrevendo sobre a função do cheiro no trabalho de Joseph
Beuys) chamou de “dimensão impalpável” (Borer et al., 1996:
19). É a produção de uma tal dimensão oblíqua impalpável, e
no entanto materialmente impactante, que atravessa Panora-
mix (em contraste à legibilidade estriada do espaço ortogonal).
Daí o segundo micromovimento: a substituição da espacia-
lidade pela dimensionalidade. La Ribot cria para suas peças
não um espaço, mas uma dimensão. É notável e abundante
nos trabalhos de La Ribot o uso da dimensionalidade em de-
trimento da grade espacial. Daí a centralidade da escala em
suas peças; ou a necessidade de estar fora de escala em suas
peças: ações desproporcionais em relação às suas intenções, ou
ao tom de voz, ou gestos que parecem grandiosos demais para
a dimensão da sala (escala disfuncional); desenhos que contém

150
versões menores de si mesmos dentro de si mesmos (Poema In-
finito Pieza Distinguida #21, 1997, propriedade de Julia e Pe-
dro Núñez, Madrid) ou objetos alinhados de acordo com uma
perspectiva forçada (escala distorcida). Ambos, o disfuncional
e o distorcido, revelam a inadequação da espacialidade orto-
gonal diante da dimensionalidade impalpável que La Ribot
cria para a apresentação de seu corpo. Em Candida Iluminaris
(Pieza Distinguida #30, 2000, propriedade de Victor Ramos,
Paris), La Ribot liga uma lanterna de bolso e a coloca no chão,
direcionando a luz para a parede mais distante, e dentro do
cone de luz que se forma ela alinha uma série de objetos, co-
meçando no vértice com uma minúscula peça de joia e seguin-
do a operação até uma das espreguiçadeiras dobradas no final,
terminando a sequência com seu próprio corpo nu deitado
no chão, barriga para cima, olhos fechados, cantando com os
lábios fechados por dois ou três minutos. Aqui, a ação de for-
çar uma perspectiva dentro do campo de luz vai da sequência
de objetos triviais até um corpo sonoro vibracional, dançando
horizontalmente sua imobilidade ativa.
Terceira série de micromovimentos: La Ribot performan-
do rigorosamente o que em capítulos anteriores eu chamei de
“atos-parados” e suas “ontologias mais lentas”, como a enfa-
tizar a espessura do tempo contraindo-se na implacável di-
mensionalidade do não-representacional.89 Um ato-parado,
por exemplo, pontua Candida Iluminaris, ao estendê-la tam-
bém no tempo. Outro ato-parado estrutura uma pieza inteira
quando, deitada de lado, La Ribot assume uma peruca loura
e, cobrindo suas pernas com papel branco, torna-se uma sereia
agonizante no chão, sofrendo espasmos, calada, sobre o pape-
lão: um saco de energia, uma estranha visão da feminilidade
(Muriéndose la Sirena [Morte da Sereira], Pieza Distinguida
#1, 1993, em memória de Chinorris). Outro ato-parado ainda

89.  Ver também meu ensaio “Still: On the Vibratile Microscopy of Dance” (In: Brands-
tetter et al. 2000)

151
acontece quando, de pé, ela bebe um litro e meio de água sem
respirar e se esparrama no chão, sem mijar (Zurrutada, Pie-
za Distinguida #32, 2000, proprietário distinto Arteleku, San
Sebastián). Por fim, em Another Bloody Mary [Outro Bloo-
dy Mary] (Pieza Distinguida #27, proprietário distinguido
Franko B. e Louis Keidan, Londres), ela deita no chão nua,
um falso tufo de cabelos vermelhos afivelado aos seus pelos
púbicos, pernas abertas, a cor vermelha vazando ao seu re-
dor (não tinta, mas papel vermelho, caixas vermelhas, vestido
vermelho), uma remontagem de Etant Donnés (1946-66) de
Marcel Duchamp ou L’Origine du Monde (1866) de Gustave
Courbet. Assim, uma condição necessária para a terceira série
de micromovimentos efetuar-se em Panoramix é a nudez de La
Ribot. Muitas de suas piezas são executadas sem roupa; quan-
do ela apresenta aquelas que demandam um vestido, ou asas
de anjo, ou uma peruca, ela os veste apenas para a duração da
pieza, despindo-se assim que acaba. E se seu corpo nu às vezes
opera como uma imagem, esta é sempre sutilmente trêmula,
revelando sempre sua natureza fisiológica através de pequenas
tensões, pulsações, hesitações, desequilíbrios, arrepios, contra-
ções, expansões – os incansáveis elementos cinéticos das pe-
quenas danças e dos atos-parados de La Ribot.
Na época em que transferiu suas peças do prédio te-
atral para a galeria, La Ribot escreveu a respeito da função
do parado. Em seu texto ela menciona como o estar parado
é uma estratégia coreográfica que permite à dança deixar a
representação e entrar em uma outra economia da presença.
Para ela, conforme explica, estar parada desencadeia também
um enfraquecimento da rígida temporalidade linear da repre-
sentação, substituindo-a por “um sentido de ser ou de sentir
uma presença corporal e de contemplar um tempo não-teatral
– o ‘teatral’ entendido como algo que tem começo e fim” (In:
Heathfield e Glendinning, 2004: 30).
Com essa definição do “teatral” dada por La Ribot como
um empreendimento teleológico, contido numa temporalida-

152
de linear marcada por um claro começo e direcionada a uma
resolução final, entramos na questão dramatúrgica posta e
provocada por Panoramix – uma questão estúpida, demasia-
do literal, mas absolutamente necessária: de onde veio todo
aquele papelão cobrindo a imensa área da galeria? Primeiro,
nós rimos dessa questão, como é apropriado reagir a muitas
das piezas incrivelmente bem humoradas de La Ribot. Mas se
após a risada permanecemos com a pergunta demasiado literal
por mais um segundo percebemos que ela não é em nada ir-
racional. Na realidade, Panoramix parece oferecer uma respos-
ta muito rapidamente – uma resposta que entrelaça o tempo
não-teleológico e não-cronométrico com a instabilidade pro-
ducente do espaço mal construído, prestes a desabar.
Logo no começo da apresentação das 34 peças, La Ribot
toma da parede um pequeno retângulo de papelão (de apro-
ximadamente 75 cm de largura) e o carrega caminhando pelo
espaço da galeria, mantendo-o sempre paralelo ao plano verti-
cal de seu corpo. É Pieza Distinguida #2 (Fatelo Con Me [Faça
Comigo], 1993, distinguido proprietário Ar Condicionados
Daikin, Madrid), executada ao som da canção pop italiana
homônima de Anna Oxa. Logo de entrada nas Piezas Distin-
guidas, portanto, La Ribot desfila nua com este pedaço de pa-
pelão ao longo de seu corpo, segurando-o sempre alinhado na
vertical, como a nos relembrar da aliança intrínseca entre a
verticalidade das paredes e a verticalidade do corpo na repre-
sentação. Poderia este pequeno cartaz de papelão, surgido apa-
rentemente do nada e logo no começo das Piezas Distinguidas,
dez anos antes da concepção de Panoramix, ser a origem de
tudo – uma miniatura portátil, uma provocação perpendicu-
lar, um anúncio anacrônico do massivo piso de papelão em
Panoramix? Se for este o caso, então por que abandonou a ver-
ticalidade, o paralelismo do corpo em pé e desnudo, em favor
da horizontalidade? Como veio a expandir-se massivamente
pelo chão até os limites do espaço de exibição?

153
Mais uma vez a questão é sobre a arquitetura como estru-
tura de legibilidade. No contexto do proscênio teatral, para
o qual Fatelo Con Me foi inicialmente concebida, o pedaço
de papelão tinha uma função visual-dramatúrgica específica:
enquanto La Ribot andava a passo pelo palco, ela mantinha o
retângulo de papelão posicionado sempre entre seu corpo e a
plateia, cobrindo assim seus seios, nádegas e sexo. Tal coreo-
grafia do recato bem humorado só era possível devido à posi-
ção frontal do público em relação à perspectiva do proscênio.
Mas no espaço da galeria essa legibilidade arquitetural colapsa:
não há frente ou fundo, não há lugar fixo para a plateia, nem
um lugar apropriado para o corpo tornar-se imagem. Desta
forma, no Tate Modern, assim como em It’s a Draw / Live Feed
de Trisha Brown na Filadélfia, a organização da visibilidade é
performada por dois funcionários do museu. No caso de It’s a
Draw / Live Feed, vimos que dois assistentes erguem os dese-
nhos de Brown da horizontal para a vertical. Durante a exe-
cução de Fatelo Con Me em Panoramix, dois funcionários do
museu encostam-se em duas paredes opostas da galeria man-
tendo o público atrás de uma linha imaginária a correr entre
ambos. Os assistentes tornam-se assim procuradores vivos do
arco do proscênio, assegurando um ponto de vista adequado
para o público e garantindo o sucesso visual desta pieza em
particular. Como substitutos de um constructo arquitetural
ausente, os funcionários do museu impedem o público de cru-
zar a fronteira definida por eles. Eles corporificam o imperati-
vo arquitetural do representacional.
Este é um momento interessante, no qual a intenção da
coreógrafa é sabotada por uma inércia representacional in-
crustada nas máquinas visuais do teatro e do museu. Este é
um momento que mais uma vez revela a relação entre verti-
calidade, arquitetura, representação e o olhar. Como Jacques
Lacan (1988) mostrou, se há algo do corpo que precede sua
estruturação, determinando entretanto sua construção, se há
algo na percepção que participa das premissas representacio-

154
nais-representativas do bem-construído, este algo é o olhar.90
Neste sentido, o olhar pode ser considerado a primeira má-
quina antigravitacional, a tecnologia psico-fisiológica primária
permitindo acesso ao visual apenas como legibilidade vertical-
mente enquadrada. Paul Virilio discute o paralelismo entre a
gravidade, a representação, a arquitetura, a figura do vertical,
a legibilidade e o peso do olhar:

Peso e gravidade são elementos chave na organização da


percepção. A noção de cima-baixo associada à gravida-
de da terra não passa de um elemento de perspectiva.
A perspectiva do Quattrocento não pode ser separada
do efeito de orientação do campo da visão causado pela
gravidade e pela dimensão frontal da tela, a qual nunca
é inclinada. Tanto a pintura quanto a pesquisa de pers-
pectiva foram sempre conduzidas na dimensão frontal
(Limon e Virilio, 1995: 178).

É interessante notar como, mesmo após abandonar o en-


quadramento frontal do perspectivo-teatral, mesmo depois de
adotar a “apresentação” em sua rendição à gravidade, ao parado,
à horizontalidade, resquícios do bem-construído invadem o tra-
balho de La Ribot pelas vias e marcas explícitas do institucio-
nal. E é por isso que a pergunta estúpida sobre o papelão é tão
crucial. Pois, se um pedaço de papelão parece funcionar pela
e com a visualização frontal, o fato de anos depois ele acabar
cobrindo todo o chão da galeria sugere que a apresentação na
qual La Ribot está interessada é uma que oscila necessariamen-
te entre o (plano vertical do) representacional e o (plano hori-
zontal do) coreográfico – o coreográfico entendido aqui como
a inscrição de uma simbologia do movimento na página. Esta
oscilação constante, estes movimentos traducionais de um lado
90.  “Para começar, preciso insistir nisto – no campo escópico, o olhar está do lado de fora,
sou olhado, quer dizer, sou quadro. É aí que está a função que se encontra no mais íntimo
da instituição do sujeito no visível. O que me determina fundamentalmente no visível é o
olhar que está do lado de fora” (Lacan, 1988: 104).

155
a outro, desencadeia a aparição de muitos oblíquos, da incli-
nação que segundo Virilio é negligenciada pela representação
(e arquitetura) ocidental. A inclinação refere-se não apenas aos
ângulos oblíquos, aqueles que fazem a mediação entre o ver-
tical e o horizontal, mas também à força de olhares oblíquos,
aos olhares deslizantes que focam em uma angulação. No caso
de Panoramix, esta oscilação fundamental entre o vertical e o
horizontal que introduz o oblíquo – um plano no qual tudo
já está a escorregar, a desabar, a não se segurar – é performado
por meio de três operações antiarquiteturais (o arquitetural aqui
entendido como a boa-construção da forma e da significação): a
diluição do ortogonal, a diluição da objetualidade dos próprios
objetos usados nas piezas e a diluição de uma presença e de uma
subjetividade subservientes ao representacional.
É por isso que apesar da evidente presença das artes visuais
no trabalho de La Ribot, é impossível pensar Panoramix e a
série das Piezas Distinguidas fora da estrutura ontohistórica
da dança teatral ocidental. O que este alicerce ontohistórico
produz como seu modelo privilegiado é um corpo necessa-
riamente apto a operar simultaneamente no plano vertical da
representação formal e objetual e o plano horizontal da es-
critura e do desenho. Este é um corpo cuja integralidade e
congruência ocorrem pela (e dentro da) cisão entre os dois
planos benjaminianos. Este corpo ontohistoricamente cindi-
do do dançarino ocidental, dupla e simultaneamente inscrito
no plano vertical da representação (da figura) e no plano ho-
rizontal do símbolo (da escrita), criou um modo específico
de perceber a presentificação da dança no campo do visível.
No plano vertical, a dança exige que a percepção caia dentro
dos parâmetros da representação frontal e da perspectiva linear
(como já demandava Georges Noverre em suas famosas Cartas
sobre a Dança e o Ballet)91; no plano horizontal, a dança exige
91.  “Se, para criar um sentido de ilusão, o artista cênico trabalha de acordo com as leis da
perspectiva, por que deveria o maître de ballet, que também é um artista, ou deveria ser,
transgredi-las?” (Noverre, 1968: 45).

156
que a percepção siga o traçado de passos, de modo a garantir
a possibilidade de leitura do desenho coreográfico (como em
Feuillet, por exemplo). Em ambos os casos, é a visibilidade
como legibilidade que é privilegiada; é a fixação ortogonal en-
tre os dois planos que é exigida. La Ribot inicia uma relação
diferente através de sua crítica do ortogonal, solicitando uma
atenção à natureza oblíqua do corpo dançante – a qual implica
uma iminente queda para fora da visibilidade, da legibilidade,
da verticalidade, do bem-construído e da teleologia.
Até aqui, eu discuti a instabilidade espacial produtiva de
Panoramix em relação aos movimentos inclinados do mal-
-construído. Mas o que dizer de sua temporalidade? Poderí-
amos falar de um declive temporal acontecendo na peça? Eu
mencionei que Panoramix não tem a ver com acumulação
histórica – um termo cuja força conotativa para a história
da dança imediatamente faz evocar as peças Accumulation de
Trisha Brown (1971-3, 1978, 1997). Panoramix produz uma
outra temporalidade. Ao invés de acumulativa, uma operação
que depende da repetição e da sequencialidade, Panoramix
confunde a sequência cronológica da produção de suas séries.
Assim, no lugar de repetição, ela enfatiza o efeito temporal
do contraível. Em Panoramix, há uma obliquidade espacial e
uma contração temporal, a qual segundo Deleuze e Guattari
já é a introdução de linhas oblíquas dentro da temporalidade.
A contração implica em operar a temporalidade de forma iso-
mórfica à operação de La Ribot na espacialidade. Contração é
um termo retirado da filosofia de Henri Bergson, que sugeriu
um entendimento do presente como simultânea e permanen-
temente cindindo-se em direção ao passado (em dilatação) e
em direção ao porvir (em contração).92 Para a performance em
geral, e especificamente para uma performance que explícita
e intencionalmente apresenta-se sob o signo do histórico (o
92.  Em francês, “l’avenir”, que Jacques Derrida distingue de “futuro”. O primeiro pertence
ao desdobrar do sempre imprevisto enquanto o segundo pertence ao regimento progra-
mático da cronometria eficiente.

157
panorama-mix), a noção de contração tem implicações pro-
fundas para o entendimento da presença do corpo em relação
à temporalidade, memória e ação. Pois contração envolve não
apenas uma abertura do corpo ao porvir, mas também a to-
das as potências do corpo temporalmente sujeitado, no que
Gilles Deleuze chamou de subjetividade-contração (Deleuze,
1999: 40). Aqui, o passado emerge como contemporâneo ao
presente que foi e que se estende como matéria-memória. E
afinal que ser é este a performar constantemente o tecer da
contemporaneidade ao passado e de volta do futuro senão o
corpo – movendo sua presença não numa grade espacial, mas
na multidimensionalidade de dobras de sua instável, inclinada
e oblíqua de-cadência no tempo?
Panoramix atua no tempo verbal do presente enquanto
empurra o passado contra o futuro da memória. Eis a opera-
ção da peça de unificar o virtual ao material, ausência à pre-
sença – contração. Mas Panoramix propõe que a contração,
uma operação temporal pela qual matéria e memória se mis-
turam ontologicamente, só pode acontecer após a derrubada
do arqui-enquadramento do plano vertical da representação
e da angulação do plano horizontal de inscrição. Distúrbio
do espaço, produção de dimensões, contração de tudo que
aconteceu com tudo que está por vir e que ainda permanece
não anunciado – tudo desdobrando-se naquelas trocas ciné-
ticas e visuais entre a grade ortogonal-representacional, que
assegura o peso do olhar, e a dimensionalidade oblíqua de
dobras, massas e linhas gravitacionais e antigravitacionais da
visão. Feito a imagem de La Ribot como sereia agonizante:
deitada no papelão, espasmando ao lado de nossos corpos
amontoados, acolhendo o peso do nosso olhar, expandin-
do sua presença através do aroma brilho-zumbido do chão,
devindo-peso, devindo-chão, pulsando no chão, pulsando o
chão, pulsando o tempo, criando o espaço na obliquidade
instável do não-construído.

158
IV
TROPEÇAR A DANÇA
AS RASTEJADAS DE WILLIAM POPE.L

Agora, o ente não é mais aquilo que simplesmen-


te acontece estar presente; ele começa a tremer
e a oscilar, a despeito de o reconhecermos com
toda segurança ou não, a despeito de o apreen-
dermos em todo o seu escopo ou não. (Heideg-
ger, 1987: 28)

“Olha o negro!” [...] Tropecei. (Fanon, 1967: 109)

Por que iniciar uma discussão sobre as rastejadas de William


Pope.L com epígrafes de Martin Heidegger e Frantz Fanon?
Como se a junção dos dois não fosse uma atitude arriscada, até
mesmo desconcertante, dado o “conservadorismo ultra-revo-
lucionário” que Pierre Bourdieu identificou em Heidegger –
incluindo a sua “recusa em desaprovar seu compromisso com
o Nazismo” (1991: viii)93 – e a militância esquerdista radical
de Fanon na vanguarda crítico-teórica, na vanguarda psicote-
rapêutica e na vanguarda armada anticolonialista na Argélia.94
Uma atitude arriscada, um início arriscado, uma junção arris-

93.  Mais sobre o posicionamento político de Heidegger e a política de seu projeto filosófi-
co, ver Wolin (1993), The Heidegger Controversy: A Critical Reader.
94.  Para uma excelente revisão da obra crítica e clínica de Fanon, ver Read (1996).
cada a introduzir um modo muito específico de se mover do
artista negro norte-americano cuja marca registrada ostenta a
frase: “O Artista Negro Mais Amistoso da América ®”.
Um modo simples de sair desse embaraço e risco seria in-
vocar a permissão dada pelo artista mais amistoso em pessoa.
No único ensaio escrito por Pope.L, publicado no primeiro
catálogo mais abrangente de sua obra, ele diz:

Eu tenho ancestralidade africana, mas eu não converso


com os deuses. Eu converso com o atendente da MCI
[empresa de telefonia]. Eu converso com minha mãe. Eu
converso com Wittgenstein, Heidegger, Terry Eagleton,
Bakhtin e Frantz Fanon, mas eu não converso com os
deuses. (Bessire, 2002: 72)

Ao confessar sua conversa com a filosofia e a teoria crítica,


particularmente com Heidegger e Fanon, poderíamos dizer
que Pope.L autoriza-me a tomar os riscos que tomei. Entre-
tanto, só a permissão do artista ainda não é suficiente para
justificar a necessidade crítica desse emparelhamento, parti-
cularmente se o par em questão é articulado num livro que se
propõe a repensar a política do movimento.
Avizinhar as mediações sobre a questão fundamental do
ser (necessariamente dessemelhantes) de Heidegger e Fanon
(Heidegger projetava a destruktion de velhas suposições da
metafísica ocidental que alinhavam o ser com uma visibilida-
de inteiramente auto-presente; enquanto Fanon visava uma
desarticulação da aliança psico-política-filosófica que deu sus-
tento ao projeto ocidental do colonialismo e do racismo) é
agitar o chão da teoria crítica, é criar uma “sismologia”: aquele
efeito crítico-político reverberante que Roland Barthes enxer-
gou no teatro de Bertold Brecht, um efeito capaz de pertur-
bar o próprio funcionamento de sistemas semióticos fechados

160
(Barthes, 2007: 313).95 Eu proponho neste capítulo que os
efeitos reverberantes da força sísmico-crítica gerada por Fanon
e por Heidegger em suas respectivas críticas da ontologia ani-
mam o chão sobre o qual Pope.L compõe sua arte – e, mais
especificamente, onde ele executa suas rastejadas. Ao conside-
rar os modos como o trabalho de Pope.L pode intervir critica-
mente na discussão sobre formações coreográficas e políticas
de corpos, subjetividades e movimentos, eu me concentrarei
no conjunto específico de peças que o artista vem encenando
em diferentes configurações desde 1978, chamadas de “ras-
tejadas” [crawls]. Nelas, Pope.L cineticamente dá forma não
apenas a uma crítica profunda da negritude e da branquidade,
da verticalidade e da horizontalidade, mas articula também
uma crítica geral da ontologia, uma crítica geral da dimensão
cinética da nossa contemporaneidade e uma crítica geral dos
processos abjetos de subjetivação e corporificação agenciados
pela máquina colonialista-racista – tudo isso ao propor uma
forma particular de locomoção após o “tropeço” fanoniano.
Desta forma, avizinhando Fanon, Heidegger e Pope.L, des-
cobrimos um chão ontopolítico que não é plano ou estável,
mas incessantemente trêmulo e assolapante. Qualquer um
que reconheça estar movendo sobre este chão já oferece uma
perturbação cinética fundamental da ontologia – uma pertur-
bação do alinhamento da ontologia com a fantasia da estabi-
lidade temporal e geométrica da forma e do ser. Sob o efei-
to sismológico, tanto o ser, quanto o corpo e a figura sofrem
uma indistinção radical. Proponho que a identificação crítica
e a sondagem cinética deste chão sísmico e de seus efeitos so-
bre processos de subjetivação, ambas operações efetuadas por
Pope.L, abalam com suposições profundamente arraigadas a
respeito da ontologia política do movimento. Este capítulo
dedica-se a identificar algumas destas suposições, particular-

95.  “Portanto, melhor do que semiologia, o que se deveria reter de Brecht é uma sismolo-
gia” (Barthes, 2007: 313).

161
mente as que ligam movimento, colonialismo e racismo às
questões de presença, visibilidade e do chão da dança.
Não podemos deixar de notar que no extraordinário ca-
pítulo de Pele Negra Máscaras Brancas, intitulado “A Experi-
ência Vivida do Negro” [“L’expérience vécue du Noir”], Fanon
levanta, já na primeira página, a questão da ontologia, quando
proclama categoricamente sua crítica de Hegel e Sartre nos
seguintes termos: “qualquer ontologia torna-se irrealizável em
uma sociedade colonizada e civilizada” (Fanon, 1967: 109).
Observemos a especificidade do enunciado de Fanon: não é
que a ontologia seja impossível numa sociedade colonizada
e civilizada, mas que ela não se permite realizar. A possibili-
dade da ontologia permanece, mas ela está fora de alcance. E
o que parece tornar a ontologia fora de alcance é justo o fato
da colonização e do racismo imbuído nela. Fatos que levam
Fanon a afirmar, mais adiante, que a “ontologia [...] não nos
permite compreender o ser do negro” (1967: 110). Para Fa-
non, isto ocorre porque, primeiro, para o homem negro, o ser
sempre acontece em relação (subordinada) à branquidade; e
segundo, devido à particular “temporalidade da emergência”
específica à entrada do homem negro na visibilidade, como
explica Homi Bhabha em sua exegese de “L’expérience vécue
du Noir”, sobre o chão colonizado que define a modernidade
(Bhabha, 2003: 327).96 De acordo com Bhabha, Fanon refere-
-se ao negro emergindo sempre “tarde demais” em relação à
branquidade, quando esta é tomada/construída como emble-
ma da modernidade. E é esta defasagem temporal do negro,
este “caráter tardio” de não-estar-ainda-lá no momento de sua
emergência na presença, “que não apenas torna a questão da
ontologia inadequada à identidade negra, mas de certa for-
ma impossível para a própria compreensão da humanidade no

96.  Para uma discussão sobre a íntima relação da modernidade com o colonialismo, ver
Capítulo 1.

162
mundo [colonialista] da modernidade” (Bhabha, 2003: 327,
grifo no original).
A virada crítica de Fanon na maior parte de seus ensaios,
mas sobretudo em “L’expérience vécue du Noir”, revela a in-
sustentabilidade de uma ontologia geral, ao mesmo tempo
deixando em aberto a sua possibilidade futura. Já que para
Fanon não há um “fora” do colonialismo, pois que não ha-
veria qualquer sociedade em relação de exterioridade com o
processo de colonização e com a violência do racismo, então a
ontologia permanece esta ferida aberta no corpo da filosofia.
Como explicou Stuart Hall, “a estratégia do texto de Fanon
é engajar-se com certas posições estabelecidas como parte de
uma ontologia geral, e então revelar como isto falha em operar
ou em explicar a situação específica do sujeito colonial negro”
(Hall In: Read, 1996: 27).
Hall também nos lembra que se não reconhecermos Fanon
como um pensador “de fato em diálogo com temas da filosofia
europeia” (1996: 26), estaremos fazendo um profundo desser-
viço à compreensão de seu radical projeto crítico, clínico, polí-
tico e filosófico. Que projeto foi este? O de trazer a questão do
racismo e do colonialismo para o entendimento psicanalítico
e filosófico de como a presença do sujeito é formada, e de
como o ser é necessariamente articulado dentro de formações
psicofilosóficas de exclusão e violência. Fanon mostra muito
claramente que o supostamente transcendental modo de tratar
a questão do ser na ontologia não passa de uma estratégia po-
lítica indispensável na sustentação do projeto racista-colonia-
lista: um projeto que afinal revela como a política e a filosofia
unem suas forças na mediação discursiva de todos os modos
de aparição e de estar-presente. Após Fanon, qualquer ontolo-
gia que se pretenda “alcançável” novamente precisa, antes de
mais nada, levar em consideração sua (reprimida) cumplicida-
de com sua própria fundamentação racista-colonialista.
E sobre Heidegger? Sua destruktion da metafísica ocidental
(articulada ao longo de sua vida desde a publicação de Ser

163
e Tempo em 1927) significou que para qualquer ontologia
tornar-se alcançável (para usar a expressão de Fanon) ela te-
ria, antes de mais nada, de iniciar uma crítica de suas pres-
suposições sobre as relações entre presença, estabilidade, visi-
bilidade e unidade.97 A partir de Heidegger, a ontologia fica
impossibilitada de basear-se num ser que “simplesmente está
presente”. Como esclarece David Krell, a crítica da ontologia
em Heidegger propõe “uma Praesenz altamente complexa [...],
ostensivamente não-estática, e que de um modo meio deso-
rientador inclui a Absenz” (Krell, 1988: 115). Assim, um ano
após a publicação da primeira edição de Pele Negra, Máscaras
Brancas, Heidegger nos reconta – ao finalmente publicar suas
palestras sobre metafísica – que não é mais suficiente o ser
simplesmente emergir no campo da presença, nem simples-
mente fazer-se aparecer no campo do visível, nem anunciar
a si mesmo como aquilo que ocupa inteiramente o presente
em sua presença plena. Aquilo que é (o “ente”) não pode mais
ser concebido como algo que simplesmente acontece estar lá,
apresentando-se ao nosso presenciamento no momento de sua
aparição. Ao contrário, para Heidegger, aquilo que é, o ente,
entra na dimensão do ser no momento em que é infundido
com uma quantidade mínima de movimento. Heidegger é
coreograficamente específico ao descrever a infusão de movi-
mento na ontologia. O ente oscila – entre presença e ausência,
ocultamento e revelação, visibilidade e invisibilidade, unidade
e multiplicidade. Só estas qualidades-movimentos em particu-
lar garantem a total emergência do ser como presença: ondu-
lação, oscilação, vibração.
97.  Ver particularmente o capítulo “Gramática e Etimologia do Ser” (Heidegger, 1987: 52-74).
Aqui, Heidegger descreve como a parousia (presença) grega pode ser traduzida em alemão
como uma propriedade que “consiste em si mesma ou fechada em si mesma (...). Para os gre-
gos, ‘ser’ basicamente significava este estar presente” (1987: 61). Ver p. 70-72 para como este
“estar presente” também é um emergir na luz. Derrida aprofunda a crítica de Heidegger à me-
tafísica ao lembrar-nos que toda a metafísica do Ocidente depende de um sistema de presença
que assegura seu centro. A noção de différance em Derrida desestabiliza o centro ao introduzir
a mobilidade fundamental do diferimento/adiamento (Derrida 2002; 1991).

164
A oscilação já acarreta consigo uma incerteza fundamental
sobre a unidade do ente, uma perturbação constitutiva de seu
ser-para-a-visão. Oscilação é também o modo como Heideg-
ger descreve a natureza ambígua do ser em relação a sua pró-
pria presença. Pois o ser é sempre e simultaneamente “metade
ser, metade não ser” (Heidegger, 1987: 28). É ao mesmo tem-
po presente e ausente. E porque o ser é, em si mesmo, tan-
to presente quanto ausente, esta é também a razão pela qual
“não podemos pertencer inteiramente a nada, nem sequer a
nós mesmos” (Heidegger, 1987: 28). Preservemos pois estas
noções de ontologicamente jamais pertencermos inteiramente
sequer a nós mesmos, de visualmente nunca estar completa-
mente lá, de estar sempre de algum modo ausente ou atrasado
no instante de estar-presente. Estas noções são cruciais para
compreendermos como William Pope.L alicerça cineticamen-
te a questão da masculinidade negra (sua presença, sua visibi-
lidade e seu ser diante do racismo) através do ato de rastejar.
Desde meados da década de 1970, Pope.L vem criando tra-
balhos de vários gêneros artísticos, desde pintura e escultura,
até arte de performance e instalação, vídeo e poesia. Sua prolí-
fica obra pode mesmo ser entendida como um manifesto esté-
tico e político sobre como a arte contemporânea é incapaz de
sustentar a própria noção de gênero artístico. Não se trata de
descrever seu trabalho como interdisciplinar ou transdiscipli-
nar, pois a realidade é que a questão da disciplina é inteiramen-
te abandonada e substituída por uma ênfase na ética do artista
como trabalhador. Aluno de Allan Kaprow, Pope.L e sua obra
revelam influências do Fluxus (do qual Kaprow participou),
no uso de materiais baratos, objetos achados e substâncias pre-
cárias, particularmente comida industrializada: maionese (em
Broken Column [Coluna Quebrada], 1995-1998, quando ele
empilhou potes cheios de maionese quebrados, fita adesiva,
caixas de papelão e colunas inclinadas; ou na performance
How Much is that Nigger in the Window [Quanto Custa Aquele
Criolo na Janela], 1990-1, quando passa maionese no próprio

165
corpo); manteiga de amendoim (The White Mountain [Won-
der Bread Performance] [A Montanha Branca [Performance do
Pão de Forma] 1998); salsichas (Map of the World, [Mapa do
Mundo] 2001: salsichas, mostarda e ketchup). A influência
do Fluxus também aparece no modo afiado como Pope.L faz
uso do humor, criando o que ele chama de “zonas de des-
conforto” para o público. Tais zonas de desconforto, porém,
criadas por Pope.L para e com o público, não se convertem em
zonas de confronto ou antagonismo aberto. Pope.L não tem
nenhum interesse em chocar o público ou épater le bourgeois
– afinal de contas ele é o artista mais amistoso da América,
como proclama sua marca registrada. As zonas de desconforto
são cuidadosamente orquestradas por Pope.L sempre em cima
de bases que permitem a possibilidade de sua transformação
em zonas generativas de diálogo e relacionalidade. Para tanto,
ele elabora dramaturgias que o permitem criar, pelo menos
temporariamente, uma possibilidade real de confronto aberto,
para imediatamente transformar tal ameaça em um brando e
frequentemente bem humorado convite ao diálogo. Como ele
próprio declarou certa vez, sua intenção é “trazer um descon-
forto novo a um problema muito velho” (Bessire, 2002: 45).
À maneira de outra artista de performance e filósofa afro-
-americana, Adrian Piper,98 o trabalho de Pope.L é uma crítica
focada, sofisticada e impiedosa daquela força tão instrumental
à regeneração aparentemente infinita da atualidade do colo-
nialismo – o racismo. As obras de Pope.L apontam como os
mecanismos discursivos, estéticos, econômicos, filosóficos,
críticos e – sim – artísticos estão constantemente na iminência
de serem capturados por uma mesma agenda: a naturaliza-
ção e reprodução de exclusões raciais. Estas exclusões, aliás,
podem ocorrer nos ambientes mais aparentemente afáveis,
como, por exemplo, em avaliações críticas acolhedoras e en-

98.  Para uma leitura crítica da produnda intercessão entre performance e filosofia no tra-
balho de Piper, ver Moten (2003: 233-54).

166
tusiasmadas de sua obra. No texto já mencionado, escrito por
Pope.L e publicado em seu catálogo, o artista refere-se a um
episódio em que dois acadêmicos descreveram seu trabalho
como “evoca[ndo] o Vodun africano”. Pope.L responde que,
para ele, este é “um argumento muito intrigante. Gostaria eu
mesmo de poder achar o mesmo”, e continua:

Eu quero que o Sr. Bessire e a Srta. Crawford achem meu


trabalho intrigante, então eu faço de conta que há, de fato,
uma conexão entre meu trabalho e o trabalho dos artistas-
-ativadores de bocio [artefatos vodun da África ocidental].
Mas ao mesmo tempo me pergunto: por que não é o bas-
tante que eu seja um artista negro americano? Pelo visto
é preciso que eu vire mais negro ainda. Mais autêntico. É
preciso que eu me torne o artista negro com raízes obscuras,
misteriosas e atávicas em alguma Alteridade primitiva. Mas
quem fala aqui? Quem me diz isso? (In: Bessire, 2002: 71).

É neste mesmo texto que Pope.L explica aos seus bem in-
tencionados admiradores que ele frequentemente conversa
com a filosofia e a teoria crítica, com sua mãe, com o serviço
de atendimento ao cliente, mas não com “os deuses”. Ao dar
nome a seus interlocutores, Pope.L enfatiza como sua con-
temporaneidade lhe está sendo negada pelo desejo dos dois
críticos de o manter numa atrasada “temporalidade da emer-
gência” (Bhabha, 2003: 327), a qual faz dele um prisioneiro de
suas “raízes atávicas em alguma Alteridade primitiva”. As prá-
ticas artísticas de Pope.L tratam precisamente de todas essas
forças psico-filosóficas e ontopolíticas que criam, reproduzem
e fixam o campo racista e sua cegueira física e discursiva.
Em seus White Drawings [Desenhos Brancos] (caneta e
marcador sobre folha de caderno, 2000-2001), uma série de
48 desenhos em pequena escala, emoldurados, cada qual con-
tendo uma breve frase escrita em letras garrafais vermelhas ou
amarelas, Pope.L cria uma série de enunciados como elemen-
tos sintagmáticos mínimos que ao mesmo tempo revelam e

167
desencadeiam uma contranarrativa aos bem intencionados sis-
temas de exclusão. Nós lemos: “PESSOAS BRANCAS SÃO
O CÉU, A CORDA E A FOGUEIRA”, “PESSOAS BRAN-
CAS SÃO AS MOEDAS SOB AS ALMOFADAS”, “PESSO-
AS BRANCAS SÃO A CURVA DO MEU BRAÇO”, “PES-
SOAS BRANCAS SÃO O SILÊNCIO QUE ELAS NÃO
CONSEGUEM ENTENDER”, “PESSOAS BRANCAS
SÃO O QUEIJO NO MEU BURRITO”, ou – invocando
aquele crucial conceito de Heidegger – “PESSOAS BRAN-
CAS SÃO O SANGUE E O HORIZONTE”. Em um dos
desenhos, Pope.L oferece uma leitura lacaniana devastadora
da constituição do desejo racial dentro do espaço claustrofó-
bico da subjetividade branca: “PESSOAS BRANCAS SÃO O
QUE LHES FALTA”.
A relação entre falta e raça no trabalho de Pope.L é essen-
cial. É também por esta via que podemos começar a com-
preender sua “desistência da verticalidade” e sua adoção do
rastejar como manifesto coreopolítico. As rastejadas de Pope.L
propõem uma crítica cinética da verticalidade, da ligação en-
tre verticalidade e eretilidade fálica e sua íntima associação
com a “brutalidade do poder político, dos meios de contro-
le/contenção: polícia, exército, burocracia” (Lefebvre, 1991:
287). Ao adotar tão claramente a horizontalidade, o ato de
rastejar de Pope.L revela como o vertical “confere um status
especial ao perpendicular, proclamando a falocracia como a
orientação do espaço” (Lefebvre, 1991: 287). As rastejadas de
Pope.L desencadeiam uma profunda e coreográfica crítica da
ontologia (e portanto da presença) análoga à crítica articulada
por Fanon em “L’expérience vécue du Noir”. Para Fanon, como
expliquei anteriormente, após o tropeço no terreno racista não
resta qualquer possibilidade para o puro ser. Mas as rastejadas
de Pope.L também evocam as críticas implacáveis de Heide-
gger sobre “o ser” como unidade estável, que “simplesmente
acontece estar presente” à visão, perfeitamente imóvel e per-
tencendo inteiramente a si mesmo. Pope.L ataca a questão da

168
presença ao postular o tropeço do ser, e sua impossibilidade de
pertencer totalmente a si mesmo, como suas condições de pos-
sibilidade. Ele concede um gênero a esta questão ao enfatizar
a especificidade da masculinidade negra na forma como ela é
“representada na cultura ocidental como o enigma central de
uma humanidade envolta nas mais escuras e mais profundas
fantasias subliminais do inconsciente cultural coletivo da Eu-
ropa e da América” (Louis Gates Jr. In: Golden, 1994: 13). É
em relação a estas fantasias, nas quais desejo e violência entre-
laçam-se e depois projetam-se ambiguamente sobre o homem
negro, que William Pope.L descreve o corpo negro masculino
como constituído por uma dialética de ter/não ter (o falo):

O corpo negro é uma falta que vale a pena ter. O cor-


po negro masculino (também conhecido como BAM99),
sendo masculino, esforça-se por preservar e promover sua
presença ao custo de sua falta. Por que? Porque em nos-
sa sociedade, masculinidade é medida em presença. E no
entanto, não importa quanta presença o BAM é capaz de
produzir, ele continuará a ser marcado como falta. Este é
o dilema do BAM (Pope.L In: Bessire, 2002: 62).

O dilema do corpo negro masculino é descrito por Pope.L


de modo tal que nos permite pensar em termos psicanalíticos,
particularmente em relação ao entendimento de Lacan sobre
a castração como aquela ferida indispensável que condiciona
a entrada do sujeito na ordem simbólica “entendida como a
lei sobre a qual esta ordem é fundamentada (...), uma agên-
cia que promulga a lei” como a lei-do-Pai (Laplanche, 1973:

99.  Do jargão policial norte-americano, black adult male (BAM), literalmente “homem
adulto negro”, torna-se na poética de Pope.L uma abreviatura não convencional para black
male body (corpo negro masculino). Como ficará claro adiante, Lepecki faz uma leitura
dessa inusitada abreviatura (BAM) com a imagem sonora do impacto físico de uma queda
ou de um gesto violento. Mantivemos o original “BAM” ao longo desta tradução, em
detrimento de uma possível tradução desta imagem sonora (como “POW!” Ou “PAF!”),
ou de uma versão portuguesa da abreviatura para “homem adulto negro” (HAN). (N.T.)

169
440). A ferida-como-falta indica uma exclusão que o patriar-
cado assinala ao feminino, mas que também pode ser esten-
dida à percepção ambivalente pelo patriarcado da sexualidade
do corpo negro masculino: simultaneamente percebida como
bestial e ameaçadora, mas também “dispersada por um pro-
cesso de fetichização que verte a ‘ameaça’ negro-masculina em
feminina, através de um processo de objetificação patriarcal”,
como aponta bel hooks quando escreve sobre a política do
corpo na masculinidade negra (In: Golden, 1994: 131). Na
performance de rua Member (a.k.a. “Schlong Journey”),100 de
1996, Pope.L caminha pelas ruas do Harlem com um tubo de
plástico de quase dois metros de comprimento acoplado à sua
virilha e apoiado sobre rodinhas. Seu longo “schlong” cria uma
cena cômica nas ruas, pois sua exibição fálica hiperbólica é
repleta de ambivalências. Se o corpo negro masculino tem um
grande membro, ele é feito de plástico branco; se ele esbanja
propriedade fálica, ele não apresenta a “eretilidade fálica” que
Lefebvre identificou com a orientação falocrática do espaço.
O “schlong” de Pope.L até move-se, mas exclusivamente no
plano horizontal, criando um outro modo de espacialização
que é condicionado pela derrubada iniciada por aquela falta
que vale a pena ter. Aqui, devemos resgatar a leitura feita por
Stuart Hall da crítica da ontologia geral em Fanon, como uma
crítica também assentada em um entendimento específico da
operação da falta na construção da subjetividade negro-mas-
culina no contexto do racismo.
Hall afirma no ensaio “The After Life of Frantz Fanon” que,
se para Lacan, “‘do ponto de vista do Outro’, a condição para
a formação da subjetividade na dialética do desejo” pressupõe
uma “permanente ‘falta’ de completude para o self ”, a ques-
tão para Fanon é saber se esta falta é “parte de uma ontolo-
gia geral ou se é historicamente específica à relação colonial”

100.  Nos EUA, schlong é uma gíria para pênis, mas que sonoramente incorpora a palavra
“long” (“long journey” = “longa jornada”). (N.T.)

170
(Hall In: Read, 1996: 27). Eu já afirmei anteriormente que,
para Fanon, este ser-na-falta do corpo negro é uma matéria
de circunstâncias históricas. E, dada a citação acima, parece
que Pope.L concorda com Fanon. Mas também toca-me ob-
servar como Pope.L complica Fanon. De acordo com a crítica
C. Carr, Pope.L desenvolveu uma “Teoria do Buraco” [“Hole
Theory”], a qual é explicada por ele como uma teoria da especi-
ficidade da relacionalidade intersubjetiva no campo do terreno
racista: “buracos são conectores de falta (...). Se você tem a fê-
mea como “menos que” e o negro como “menos que”, ambos
estão em relacionalidade com o patriarcado, todos disputando
o reconhecimento através da falta” (In: Bessire, 2002: 52).
Quando afirma que a falta atribuída ao homem negro pelo
simbólico é algo valioso de se ter, Pope.L complica o mode-
lo lacaniano. Mas lembremos também que Pope.L escreve
“Pessoas brancas são o que lhes falta”. Portanto, no campo
do terreno racista, a falta é uma força estruturante. A falta
no BAM é o que o torna inteiro [whole]. A performance des-
te buraco-inteireza [w/hole], do cheio-vazio, é precisamente o
que Fanon identifica em sua descrição da alucinada expansão
que o corpo do homem negro é obrigado a aturar no domínio
racista-colonialista – uma expansão que paradoxalmente o re-
lega à total invisibilidade: “no trem, foi-me cedido não apenas
um, mas três assentos... Eu existia triplamente” (Fanon, 1967:
112). É como se o corpo negro fosse incapaz de pertencer ade-
quadamente ao sistema de coordenadas cartesiano, como se
ele oscilasse continuamente para frente e para trás no tempo
e no espaço, sua ontologia acelerada até virar uma mancha
indetectável. O estar-lá do corpo negro (seu Da-sein) é sempre
parcial, como numa excessiva, selvagem oscilação heideggeria-
na. Os assentos livres no trem ao lado do homem negro não
estão completamente vazios, nem completamente cheios. Eles
mostram como o corpo do black adult male [homem adulto
negro] é decodificado como um corpo que sempre ocupa mais

171
espaço do que devia, mesmo quando não lhe é dado o direito
a um lugar na ordem cinética do visível.
Pensando sobre a função da falta na performance negra,
ou na performance da negritude, Fred Moten escreve sobre a
possibilidade de recuperarmos a castração “como condição de
possibilidade de um engajamento, [convocando] a castração
radicalmente e (...) irrevogavelmente para uma questão abun-
dante ou improvisacional” (Moten, 2003: 177). Esta “questão
abundante” é uma função crucial do buraco-inteireza [w/hole]
como desordenação (negra) não só de sistemas de interpre-
tação (isto é, psicanálise), mas da ontologia em si, dado seu
envolvimento com a noção de abundância:

A repressão da consciência do buraco [hole] no signifi-


cante é camuflada por outra, menos sentida, repressão
da consciência da inteireza [whole] no significante. Esta é
uma repressão da amplificação, do som e, mais especifica-
mente, da abundância (...) de onde a inteireza expande-se
para além de si mesma, à maneira de um conjunto mu-
sical [ensemble], que faz a formulação ontológica conven-
cional explodir. O buraco [hole] fala da falta, da divisão,
da incompletude; a inteireza fala de uma extremidade, de
uma incomensurabilidade do excesso, de uma ultrapassa-
gem do significante” (Moten, 2003: 173).

Ultrapassar o significante por meio de uma falta abundante


– um movimento que mapeia a posicionalidade complicada do
que Pope.L curiosamente chama de BAM – uma abreviatura
nada óbvia para black male body (corpo negro masculino). Se o
corpo negro masculino significa uma masculinidade racializa-
da que é simultânea e paradoxalmente afirmada e negada pelo
simbólico, então a estranha abreviatura BAM equipara a ques-
tão de ser um corpo negro a uma acústica do conflito, a uma

172
balística da linguagem no campo do racismo: BAM!101 O corpo
negro masculino torna-se uma imagem acústica interruptiva, a
clássica definição de Saussure para o significante. Como sugere
Fred Moten, o BAM como buraco-inteireza [w/hole], que é ao
mesmo tempo falta e excesso incomensurável, aponta para além
desta clássica definição do significante. O BAM aponta para
além do significante e, assim, reorienta a ontologia ao insistir
na paradoxicalidade fundamental que consolida o modo de ser
negro sobre o chão ontohistórico do racismo.
Foi com uma imagem acústica interruptiva particularmen-
te forte que Pope.L performou uma intervenção no Tate Mo-
dern em março de 2003. Convidado a proferir uma palestra
no evento Live, Pope.L chegou para sua participação, dirigiu-
-se ao microfone e leu, por 20 minutos, um texto de pura glos-
solalia. Ao fim, ele desceu do palco e desapareceu do evento.
Aparentemente, de acordo com alguns dos organizadores, os
quais eu conheci, ao longo de toda sua estadia em Londres
Pope.L não enunciou uma única palavra “correta” ou reconhe-
cível. Ele comunicou-se exclusivamente através da força sônica
de puras e assignificantes imagens acústicas.
Com Heidegger, Fanon e Pope.L algo de fundamental no
plano da ontologia é inclinado, desaprumado, deposto: o chão
do ser. Paul Virilio teorizou sobre a política do declive. Toda
vez que “alguém põe-se de pé sobre um plano inclinado, a ins-
tabilidade do posicionamento” assegura que “o indivíduo es-
tará sempre em uma posição de resistência” (Limon e Virilio,
1995: 178). Virilio refere-se à resistência física, mas também à
resistência política, àquela força biopolítica desencadeada pela
instabilidade que o declive acarreta. A operação executada por
Heidegger, Fanon e Pope.L, ao inclinarem o chão do ser, tam-
bém provoca uma instabilidade ontológica, uma incerteza ci-
nética que destrói a unidade da presença e a velha associação
101.  Como dito anteriormente, em inglês coloquial, “Bam!” figura-se como a onomato-
peia de um impacto físico. Em algumas regiões do Brasil, a tradução onomatopeica para
“Bam!” seria “Pow!” ou “Paf!” (N.T.)

173
entre presença, unidade, ser e visibilidade. A oscilação heideg-
geriana e o tropeço fanoniano – dois modos muito diferentes
de perceber o vir-à-presença do ser – revelam ao mesmo tem-
po a necessidade e a impossibilidade de preservar e promover
a presença de um corpo ao custo de sua falta. Toda vez que a
estabilidade do ser é balançada, toda vez que alguém entabula
uma sismologia crítica da presença (particularmente quando
tal operação crítica é simultaneamente filosófica e cinética) a
ontologia geral e suas duvidosas políticas são ameaçadas. A
“falta que vale a pena ter” de Pope.L é mais uma formulação
capaz de sacudir o chão da presença.
Desta forma, os elementos cinéticos, bem como as topo-
grafias particularmente políticas, raciais e de gênero da ontolo-
gia repercutem na definição do ser. O que a crítica da ontolo-
gia de Fanon evidencia é que a oscilação da presença entre ser
e não-ser não representa uma vaga e abstrata reflexão teórica
sobre o status filosófico da subjetividade negra dentro do colo-
nialismo, mas que uma tal oscilação ricocheteia de volta para
o corpóreo, podendo inclusive ser iniciada por uma descarga
nervosa, um esforço muscular, uma contorção ou um tremor.
Ela pode ser provocada pela súbita inclinação do chão, por
seus ignorados tremores, por suas ranhuras camufladas. Por
fim, a conturbação cinética da presença também pode ser des-
pertada pelo impacto da linguagem. Tal como a força vertida
num insulto racial que leva um homem negro a tropeçar nas
ruas de Lyon, indicando como os significantes guardam uma
balística própria, poderosa e com miras bem precisas.
Lembram como Fanon sentia-se feliz em estar finalmen-
te na metrópole colonial, um jovem médico recém-chegado
do outro lado distante, colonizado, colorido, pobre e exóti-
co, desejoso por oferecer suas habilidades e conhecimentos
àquela nação ferida, ávido para ajudar a França recuperar-se
da invasão nazista? Lembram como ele imaginava a si mes-
mo como uma versão baudelairiana de flâneur, deslizando
tranquilamente na superfície plana da Europa, um burguês a

174
mais, simplesmente, inclusive médico, gozando sua liberdade
de movimento, gozando seu usufruto da promessa, sedução
e recompensa da modernidade civilizada – movimento solto,
usufruto do movimento, ou, nos termos de Sloterdijk, “ser-
-para-o-movimento” – ao sair distraidamente para passear em
uma via principal de Lyon? E lembram o que lhe aconteceu,
então, durante a caminhada, quando ele tropeçou pela primei-
ra vez no fato102 de sua negritude?103 Não surpreendentemen-
te, ele tropeçou graças ao impacto do significante.
“Olha o negro!”, um garoto gritou do outro lado da rua,
dedo apontado para Fanon, conclamando-o a assumir uma
posição de sujeito: “Mamãe, olha o negro! Estou com medo!”,
repetiu o garoto. E lembram o que aconteceu em seguida,
quando o chão sacudiu sob seus pés e Fanon tropeçou pela
primeira vez no fato de sua negritude? “Tropecei. (...) Explo-
di” (Fanon, 1967: 106). BAM! Uma abreviação nada óbvia,
um som perfurante criando um buraco no significante da
negritude, perfurando-o para além do seus limites. Se BAM
é abreviação de “corpo negro masculino” [black male body],
a imagética acústica produzida por BAM é uma lembrança
poderosa de como dentro do colonialismo e do racismo o
corpo negro masculino torna-se tanto a bala quanto o alvo
da ontologia. Olha o negro! BAM! Mamãe, olha o negro. Estou
com medo! BAM! BAM! Palavras que empurram um homem
negro ao chão, desmembrando seu corpo. Após o tropeço e a
desintegração, Fanon descreve o realinhamento coreográfico
exigido por este novo modo de ser, este novo modo de pre-
sença forçado pela balística do insulto racial e pela sacudida
do chão sob seus pés. Este realinhamento coreográfico aponta
relevantemente a inadequação daquelas posturas corporais e
relações temporais privilegiadas pela dança teatral ocidental.

102.  A tradução em inglês do capítulo “L’expérience vécue du Noir” é “The Fact of Blackness”
(O Fato da Negritude). (N.T.)
103.  Eu refiro o leitor para o excelente documentário sobre Frantz Fanon do diretor Isaac
Julien: Frantz Fanon: Black Skin, White Mask, Grã-Bretanha, 1996, Mark Nash, produtor.

175
Pois um realinhamento desta ordem não supõe apenas uma
dança paradoxal, ele obriga tratarmos da impossibilidade da
dança permanecer inquestionada. Se a dança tem qualquer
pretensão de atender às dinâmicas e inércias que atravessam
o terreno racista, se a dança tem qualquer pretensão de tratar
da política da cinética no terreno racista e colonialista, que é
o próprio chão da nossa contemporaneidade, então ela precisa
reparar nas palavras de Fanon ao descrever seus movimentos
após sofrer o impacto da palavra-bala no chão acidentado do
racismo: “prossigo rastejando. (...) Estou fixado” (1967: 116).
Que tipo de dança foi esta, se é que podemos chamar assim?
O que é este tropeço e queda, este desmembramento e afrou-
xamento do próprio corpo, este rastejar forçado, provocado
pela balística do ato de fala, este movimento penoso que para-
doxalmente fixa a presença “como se fixa uma solução química
com um estabilizador” (Fanon, 1967: 109)? E o que houve
exatamente com o chão sob os pés de Fanon? Um terremoto
particular? A tectônica da racialização força a questão: como é
possível dançar sobre um chão tão traiçoeiramente racializado,
onde só é possível avançar às rastejadas, onde a presença é de-
tida e presa? Aqui, o ato de fala força sobre o corpo racializado
tanto uma postura quanto uma cinestesia, e especifica o fluxo
da temporalidade: “eu agora movo-me lentamente no mundo,
habituado a não buscar mais agitação” (Fanon: 1967: 116).
BAM. Um corpo negro masculino está no chão. BAM. Ele
prossegue rastejando. BAM. Não busca mais agitação. BAM.
“A verticalidade é um gueto” (Limon e Virilio, 1995: 181).
Chris Thompson descreve a “performance da horizontali-
dade” de Pope.L como um “compromisso com a imprevisibi-
lidade do encontro com o outro, que produz o espaço social”
(Thompson, 2004: 73). Como afirma Pope.L:

Na sociedade ocidental, recebemos exemplos do vertical: o


foguete, o arranha-céu, o sistema Guerra nas Estrelas de Re-
agan e Bush... tudo é muito para cima. Eu quero contestar

176
e desafiar isso. Nas peças rastejadas, como Great White Way
[Grande Caminho Branco], eu estou sugerindo que não é
porque uma pessoa está deitada na calçada que ela tenha
desistido de sua humanidade. Que a verticalidade não deve
ser tão celebrada assim (In: Thompson, 2004: 73).

A rastejada final de Pope.L, Times Square Crawl [Rastejada


em Times Square], ocorreu em 1978. Nesta rastejada, vestido
em terno marrom, aparentando um cidadão normal de classe
média nas ruas de uma cidade grande, Pope.L renunciou sua
verticalidade e acolheu o único modo possível de se mover, de
acordo com Fanon, para o homem negro após o tropeço: o
lento rastejar. A renúncia da verticalidade, a lenta progressão
ao longo do plano sagital,104 já é uma crítica do dócil funcio-
namento cinético da cidade moderna, sustentado por ideais
de fluxo eficiente de corpos e mercadorias. O rastejar e seus
esforços, sua temporalidade inepta, evidenciam as muitas e
despercebidas presunções de cidadania em suas relações com
velocidades e posturas apropriadas de inclusão. A rastejada
quebra com todos os requisitos cinéticos relacionados aos me-
canismos ideológicos, raciais e de gênero, do pertencimento,
da abjeção e da circulação urbanos. Se Walter Benjamin cele-
bremente identificou a consolidação da subjetividade capita-
lista urbana com um modo particular de locomoção, indicada
pelo caminhar distraído do flâneur (Benjamin, 1999: 416-
55),105 Pope.L expõe como, para alguns sujeitos, a motilidade
e “intoxicação” do flâneur é inalcançável, excluída de antemão.

104.  De acordo com o sistema de notação do movimento de Laban, o sagital refere-se


“ao plano para frente/para trás e qualquer outro plano paralelo a partir dele” (Hutchin-
son, 1970: 497).
105.  “Uma intoxicação arremata o homem que caminha sem destino pelas ruas. A cada
passo, a caminhada adquire maior energia” (Benjamin, 1999: 417). Benjamin viu no
flâneur uma ativação da dialética entre indivíduo e multidão. Entretanto, o privilégio do
flâneur nunca é exatamente apontado. Benjamin rascunha a seguinte anotação, a qual gera
ressonâncias com o argumento que vou desenvolver em um instante sobre a questão do
chão do racismo: “Asfalto foi primeiramente utilizado nas calçadas” (1999: 427). Percebe-
mos assim que a intoxicação e crescente energia do flâneur depende de uma terraplanagem

177
Mas por que abrir mão da verticalidade? Haveria aqui um ges-
to autodestrutivo? Uma reencenação do encontro traumático
com a interpelação racial? Ou será que estamos diante de uma
outra possibilidade?
“O não-ter permeia tudo que eu faço”, declara Pope.L (Bes-
sire, 2002: 49). Outra vez a ênfase na falta permeia sua arte,
seus atos. Mas com o rastejar, revelam-se também relações in-
suspeitadas entre falta e movimento, entre falta e chão. Carr
nos informa que ao performar seu Times Square Crawl em
1978, Pope.L “tinha um irmão, uma tia e dois tios morando
na rua”, e que, até 2002, seu irmão ainda era sem-teto (Carr,
2002: 49). As rastejadas de Pope.L inevitavelmente desafiam
o pressuposto do livre movimento como algo dado a todos os
cidadãos, ao trazer à tona como certos sujeitos mantém uma
relação muito diferente com a motilidade, a verticalidade, a
circulação e o próprio chão, já que eles tropeçaram e (como
mostrou Fanon) foram fixados por um ato de fala que “indica
uma certa força na linguagem” (Butler, 1997b: 9). Ao elaborar
como a “linguagem age (...) sobre o destinatário de um modo
injurioso”, Judith Butler argumenta que a mesma força de lin-
guagem que causa injúria também “pressagia e inaugura uma
força subsequente” (1997b: 9). Esta força subsequente, esta
contra-força, esta força de enfrentamento, pode ser reconheci-
da nos esforços de Pope.L em engajar-se com afinco na lenta
progressão no plano sagital após o tropeço fanoniano.
Carr faz menção ao estado mental de Pope.L em relação à
quantidade de corpos negros morando nas ruas da cidade:

Quando [Pope.L] começou a rastejar, ele estava a pensar


sobre “a história das habilidades e do conhecimento”,
agora adormecidos, em cada um daqueles corpos iner-
tes. “E eu me perguntava como entrar nessas imagens e
construir uma tensão entre a imobilidade que você vê e

do chão, em si já um gesto colonial, se não o gesto colonial por excelência. Sobre o flâneur,
ver também Benjamin (1986b: 156-8).

178
o sentido de negligência que provavelmente levou-os a
estarem ali. Eu queria mostrar a luta inerente àqueles
corpos” (Carr, 2002: 49).

Como escreveu Frantz Fanon após seu tropeço em Lyon,


o colonialismo e o racismo exigem de alguns sujeitos que eles
nada façam, a não ser “prosseguir rastejando”, enquanto ou-
tros participem de uma cinética diferente, de uma mobilidade
desenfreada. Não podemos imaginar aqui que o colonialismo
e o racismo estejam enterrados no passado da lei colonial ex-
plícita. Portanto, diante desta simples dinâmica geopolítica e
do fato ontológico da modernidade contemporânea, o que faz
Pope.L? Ele “às vezes organiza rastejadas em grupo, e outros
unem-se a ele na ‘desistência de sua verticalidade’” (2002: 49).
Verão de 2004. Como curador de um laboratório de artis-
tas no festival In Transit, em Berlim, eu convido Pope.L a jun-
tar-se a nós por uma semana no Haus der Kulturen der Welt.106
Ele graciosamente aceitou meu convite e passou oito dias com
o laboratório, desenvolvendo alguns projetos na cidade que
não envolviam rastejadas. Em seu último dia conosco, como
presente de despedida, Pope.L perguntou se o grupo estaria
disposto a abandonar a verticalidade e executar uma rastejada
coletiva. Esta rastejada coletiva no Haus der Kulturen der Welt
foi um marco crítico em minha relação com a performance de
Pope.L. Do lugar de espectador – o qual, no caso das rasteja-
das de Pope.L, é uma posição que enfatiza a verticalidade da
postura de espectador – nós todos migramos para uma hori-
zontalidade ativa; uma difícil, fanoniana, progressão rastejan-
te. No chão, a primeira coisa que o grupo descobriu foi que
o terreno das cidades e dos prédios não tem nada a ver com
superfície plana. No instante em que abrimos mão da nossa
verticalidade, a primeira coisa que percebemos é que mesmo
o mais liso dos chãos nada tem de plano. O chão é fissurado,
106.  Os artistas incluíam Filipa Francisco, Sophiatou Kossoko, Eleonora Fabião, Meg Stu-
art, Lula Wanderley, Gina Ferreira, Harry Lewis, William Pope.L e eu.

179
quebrado, frio, doloroso, quente, fedido, sujo. O chão fura,
fere, prende, arranha. O chão, acima de tudo, pesa. Enquanto
prosseguimos com dificuldade, dor, arquejamento, aparentan-
do bobos, a observação do teórico crítico Paul Carter de que
“muitas camadas se interpõem entre nós e a terra granular –
uma terra que de qualquer maneira já foi deslocada” – ressoa
em toda a sua força política (Carter, 1996: 2).
Carter emplaca a noção de uma “política do chão” (Carter,
1996: 302) em seu extraordinário livro The Lie of the Land,
no qual investiga uma laboriosa questão: quais são as relações
profundas entre “tudo que compreende as artes ocidentais da
representação” (Carter, 1996: 5) e os fundamentos filosóficos,
políticos, cinéticos e raciais da “experiência colonial” (Carter,
1996: 13), particularmente do racismo colonialista? Carter
amarra a questão do colonialismo à questão da representação,
à questão da ontologia e à noção do chão. Para Carter, este
chão deve ser entendido não só como uma categoria metafísi-
ca, mas também como a entidade muito física e material que
ele é. Ele demanda que o chão seja teoricamente compreen-
dido não como uma abstrata “superfície, mas como um múl-
tiplo de superfícies, [com] suas diferentes amplitudes com-
pondo um ambiente (...) singularmente local, impossível de
ser transportado” (Carter, 1996: 16). A consideração do chão
como um múltiplo é fundamental para Carter no sentido de
afastar o “modelamento do movimento como uma sequência
de ricochetes calculada sobre um chão nivelado, de duas di-
mensões, [que] parece caracterizar a experiência colonial em
geral” (Carter, 1996: 13). A crítica de Carter da experiência
colonial também é uma crítica do impulso colonizador da tra-
dição metafísica ocidental de criar a si mesma apenas sobre um
chão nivelado:

A este respeito, a filosofia ocidental tem operado quase


indistintamente das tuneleiras, tratores de esteira e re-
troescavadeiras: sua primeira prioridade tem sido sempre

180
limpar o terreno de impedimentos acidentais, marcar com
estacas as suas definições e argumentos. De fato, é difícil
imaginar uma filosofia, tanto quanto uma polis, fundada
sobre um chão desnivelado, sobre um chão que sacoleja,
ou que por virtude de sua obliquidade natural já forneça
uma infinidade de posições, poses e pontos de paragem a
qualquer um que se disponha a atravessá-lo em diferentes
direções (Carter, 1996: 3).

É por isso que a política do chão em Carter gera uma fér-


til parceria com a crítica à metafísica ocidental de Heideg-
ger. Pois em Heidegger, a crítica da noção tradicional do ser
“avança imediatamente em direção a um chão”, “o chão da
oscilação do ente”, que para ele é um chão que demanda sal-
tos, um salto-chão: “chamamos este salto (...) de descoberta
do nosso chão” (Heidegger, 1987: 27, 28, 6). Um salto-chão,
um chão que obriga a oscilação. Estas antinomias não devem
ser lidas como oximoros paralisantes. Elas devem ser tomadas
como desafios ontopolíticos e coreopolíticos que podem ilu-
minar com particular intensidade as condições de mobilidade
no terreno colonialista, e como estas condições estão ligadas
à “oposição emocionalmente catatônica e historicamente des-
trutiva entre mobilidade e estabilidade” (Carter, 1996: 5), pois
“se estivéssemos em relação com o chão, a oposição cultural
entre movimento e estase desapareceria” (1996: 3). Carter
defende que aquilo que sustenta o colonialismo é a criação
de uma subjetividade “sem um apego à terra” (Carter, 1996:
294), um aplainamento topológico do chão que é também um
distanciamento dele. Esta retro escavação do chão, este gesto
colonialista, é também o gesto que permite à representação
tomar seu lugar numa superfície lisa e vazia, e que gera, sus-
tenta e reproduz uma subjetividade que percebe sua própria
verdade como uma autopropulsionada “máquina para o livre
movimento” (Carter, 1996: 364), deslizando ao longo de um
terreno plano e fixo.

181
Para Carter, a primeira condição para o tipo de livre mo-
vimento requerido pelo colonialismo é a limpeza do terreno,
a criação de uma superfície plana, “e para tanto, para verter o
áspero-acidentado em liso, passivo, passável, nós o tornamos
linear, conceituando o chão, e de fato o mundo civilizado,
como um espaço idealmente plano, cuja superfície de mesa
de bilhar pode ser patinada sem obstáculos” (Carter, 1996: 2).
Enquanto isso, outros corpos caem e habitam dobras e fissuras
não consideradas. Enquanto isso, o chão sacode e treme, agi-
tando os caídos.
No chão, rastejando sobre o piso de mármore e carpete,
escadas e elevadores do Haus der Kulturen der Welt, Pope.L
nos ensina a “rastejada militar”. “A melhor forma de não se
machucar”, ele diz. Assim, descobrimos que o rastejar não
tem a ver com uma dor auto-infligida. Não se trata de um
ato sacrificial. Não é, certamente, uma forma de ordeal art.107
Trata-se simplesmente de perceber o que acontece quando
abrimos mão do privilégio do vertical e entramos em uma
relação diferente com o esforço e a mobilidade. Eis a bio-
política performativa da rastejada. É também sobre identi-
ficar quem detém o conhecimento do chão – seja em nome
da sobrevivência ou da conquista imperialista. Estamos em
Berlim, enquanto no Afeganistão e no Iraque a nova roupa-
gem do colonialismo se desenrola em violentos estágios, e
vemo-nos executando a rastejada militar conforme ensinada
por William Pope.L. O que isto pode dizer da criação de
uma crítica do racismo por Pope.L como modo autorizado
de socialização neste (não tão pós-colonial assim, certamen-
te neoimperial) momento do capitalismo tardio? É aí que a
proposição de Paul Carter sobre uma política do chão, se ela
pretende iniciar uma poética verdadeiramente pós-colonial e
anticolonialista, deve antes de mais nada gerar práticas dis-

107.  Ordeal Art: subgênero da arte de performance que envolve o ato de suportar no corpo
ações dolorosas ou de longuíssima duração. (N.T.)

182
cursivas e cinéticas que evidenciem o corpo em movimen-
to como uma extensão inevitável do terreno que o sustenta.
Portanto, qualquer política do chão é mais que uma mera
topografia política, ela é também uma cinese política.
Desde Times Square Crawl em 1978, Pope.L rastejou em Bu-
dapeste, Berlim, Praga, Madrid (todas estas em 1999) e Tóquio
(Shopping Crawl, 2001). Ele também retornou a Manhattan
para performar Tompkins Square Crawl (18 de Julho, 1991) e,
em 2002, para dar início à sua mais longa rastejada. Titulada The
Great White Way, esta rastejada de 35 km deve ser executada em
diferentes fases anuais até sua conclusão marcada para 2007.108
Para The Great White Way, Pope.L começou a rastejar na Estátua
da Liberdade e planeja subir a Broadway até seu destino final no
Bronx, perto da residência de sua mãe. Nesta rastejada, Pope.L
incluiu elementos visuais e cinéticos que não estavam presentes
em suas outras rastejadas em Manhattan. Em vez de um terno
de executivo, ele agora veste uma roupa de Super-Homem, mas
sem capa, a qual foi substituída por um skate pendurado nas
costas. O skate tem uma função importante: permite ao artista
negociar uma porção particularmente difícil ou perigosa do ter-
reno ao virar de costas e deslizar deitado sobre as rodinhas. Em
certa ocasião, ele explicou-me que o skate é especialmente útil
quando ele atravessar uma rua sem interromper o trânsito ou
correr algum risco.
No inverno de 2003 eu pude ver uma das fases desta raste-
jada de 5 anos, no sul de Manhattan, entre a região do World
Trade Center e a prefeitura. Ao recordar Pope.L progredindo
naquele chão coberto de gelo, temperatura abaixo de zero, seu
esforço em avançar enquanto negocia meticulosamente o im-
pacto do frio, do terreno inóspito e sujo, as poucas pessoas em
pé ao seu redor, também trêmulas de frio, não consigo senão ser
levado a uma passagem de “L’expérience vécue du Noir”, na qual
o embate racista é representado como um gélido encontro:

108.  O ano de publicação de Exhausting Dance foi 2006. (N.T.)

183
Olha o negro, está frio, o negro está tremendo, o negro
está tremendo porque está frio, o garotinho está tremendo
porque está com medo do negro, o negro está tremendo
de frio, aquele frio que atravessa os ossos, o lindo garoti-
nho está tremendo porque pensa que o negro treme de
raiva (Fanon, 1967: 113-114).

Naquele dia de inverno em particular, a conversa de Pope.L


com Fanon torna-se mais transparente. O esforço de Pope.L,
sua visível dor e sua lenta progressão são vividamente suplemen-
tadas pelo inevitável estremecimento provocado pela tempera-
tura congelante e pelo chão frio, bordado de gelo e neve. BAM.
William Pope.L no chão e tremendo. BAM. Nós em pé ao seu
lado, tremendo. BAM. Ao nosso lado, o buraco onde um dia
as torres gêmeas foram erigidas, comprimindo em sua banguela
topografia toda a história da violência colonial. Este ambiente
insuportavelmente gélido, este modo de estar presente e tornar-
-se presença no chão racista, este tremor incontrolável fabrica-
do por corpos e signos mal interpretados, este frio descrito por
Fanon, tudo torna-se de repente não só o clima dos encontros
racistas, mas a temperatura crítica na qual um derretimento das
distinções fixas entre dentro e fora pode ocorrer. Frio e tremor
são evidências físicas e cinéticas do espaço racializado onde rai-
va, medo, corpos e performances tropeçam uns nos outros num
estremecimento nada inocente do ser.
Dentro do campo colonial do racismo, a questão do mo-
vimento vira a questão da mira, da balística tática, do que é
feito para permanecer em pé e do que deve ser derrubado.
Prédios, corpos, monumentos, torres de petróleo, significa-
do. Se é fato que The Great White Way foi concebido antes
do ataque às torres gêmeas no 11 de setembro de 2001 e que
sua primeira fase (Training Crawl [For the Great White Way],
Lewiston, ME, 2001) aconteceu antes desta data, também é
verdade que, como nos lembra Chris Thompson, “a rastejada
de Pope.L tornou-se inextricavelmente ligada” ao ataque às

184
torres (Thompson, 2004: 67). Desta forma, The Great White
Way inevitavelmente sofre mudanças dramatúrgicas e políticas
na medida em que seu percurso intersecta com desdobramen-
tos históricos. Pois estes desdobramentos literalmente provo-
cam mudanças no chão em que pisamos e na performance
que testemunhamos. Pope.L iniciou The Great White Way em
um contexto histórico e geopolítico específico. Mas na me-
dida em que o artista continua seguindo o trajeto original,
vai tornando-se claro que qualquer ideia de progressão line-
ar é um mito coreográfico tão grande quanto o mito de um
desdobramento linear e previsível da história. Uma vez que a
geopolítica do neoimperialismo e o legado da colonização e do
racismo ganham novos modos de visibilidade e desencadeiam
novas e insuspeitadas ações, toda a relação entre movimento
e intenção é radicalmente abalada. Distendendo a si mesmo
através do tempo do evento e do espaço do entulho históri-
co, o Super-Homem negro em rastejada militar de Pope.L,
caído desde já no chão congelado do centro financeiro de Ma-
nhattan, transforma-se em uma escaldante performance das
narrativas coloniais que nunca foram contadas e dos legados
raciais mal escondidos que ainda hoje informam modos de ser,
modos de mover e modos de abater corpos ao chão.
Neste sentido o corpo rastejante de Pope.L reescreve conti-
nuamente a história. Esta é uma força que longas performan-
ces duracionais trazem consigo: o desdobrar dos eventos nun-
ca está totalmente sob controle da intenção do performer. A
única coisa que o performer pode fazer é assegurar que ele ou
ela mantenha-se alerta às forças históricas quando estas atra-
vessam seus corpos e os corpos de seus espectadores. O corpo
do performer torna-se um canal de historicidade mais do que
de intencionalidade teleológica. Paul Carter explica como a
crítica de Richard Dennet à noção de intencionalidade (do
autor) parte da observação de que a palavra “intento” nos che-
ga “por metáfora” do latim “intendere arcum in, que significa
apontar um arco e flecha para alguma coisa” (Dennet apud

185
Carter, 1996: 329). A partir de Dennet, Carter propõe que
todo o sistema da metafísica ocidental e da historiografia, que
propicia a invasão falogocêntrica e a terraplanagem do chão
colonizado, baseia-se nesta “tradição tecnologicamente refor-
çada de pensar em linhas retas, [a qual tem] contribuído para
a deficiência da poética ocidental” e das noções ocidentais de
historiografia. Enquanto as rastejadas de Pope.L progridem e
a história se desdobra, enquanto o chão estremece e colapsa,
racha e abre de maneiras imprevisíveis, a linha inicial de in-
tenção da rastejada é desviada. Seu movimento indica linhas
históricas tortas, abertas pela imprevisibilidade do evento, li-
nhas que em si rastejam pelo corpo de Pope.L e pelos corpos
daqueles interpelados por seu rastejar.
Thompson narra a ocasião na qual uma multidão raivo-
sa circulou Pope.L enquanto ele passava pelo lugar das torres
gêmeas, alguns gritando com ele, acusando a performance de
dessacralizar e zombar dos mortos. Eventualmente um policial
interrompeu Pope.L, exigindo que ele levantasse do chão e
dizendo que o artista precisaria de autorização para continuar.
Como narra Thompson, Pope.L repetia calmamente, “eu só
quero rastejar. Eu quero rastejar. Eu não sabia que precisa-
va de uma autorização para rastejar” (Thompson, 2004: 78).
Diante da calma e persistência do artista, o policial acabou por
desistir. Pope.L retomou sua rastejada e, neste momento, a
multidão (mesmo a mais raivosa), comemorou a continuação
da performance. Como escreve Thompson no mesmo ensaio:

Então, em ondas, por assim dizer, tornou-se evidente para


os espectadores que a rastejada – apesar da irreverência
inicialmente suscitada pela fantasia de Super-Homem, e
apesar do quanto ela possa ter aparentado relativizar a per-
da das vidas causadas pelos ataques terroristas do 11 de se-
tembro – era, ou havia-se permitido tornar, uma resposta
decididamente séria, e mesmo compadecida, àqueles atos
de violência e seus legados (2004: 78-9).

186
Eu concordo com Thompson em sua leitura. Mas eu penso
que dentro dos parâmetros cinéticos estabelecidos pelo trope-
ço fanoniano, a questão da violência, tal qual indicada pelo
desmembramento do corpo através da força do significante,
descrita por Fanon e performada pelo uso da rastejada militar
de Pope.L, merece maior aprofundamento. O que precisamos
aprofundar é a relação entre o acolhimento da horizontalida-
de, o ato de “prosseguir rastejando” e a cinética de como me-
lhor negociar a relação do corpo com o chão.
As rastejadas de Pope.L propiciam uma reconfiguração
performativa de como Fanon faz tropeçar a temporalidade
pressuposta pela ontologia e sua postura vertical no campo
racista. Abrir mão da verticalidade é já estar caído. O modo
como Pope.L chega à presença após o tropeço, através do ras-
tejar, inventa um programa coreográfico, uma dança lenta, a
qual reconta a relação de Fanon com o movimento e a verti-
calidade após tropeçar no terreno racista: “eu agora movo-me
lentamente no mundo, habituado a não buscar mais agita-
ção” (Fanon: 1967: 116). Tal desistência da verticalidade nada
tem da neutralidade formal que algumas coreografias buscam,
e por vezes encontram, ao explorar o plano horizontal. Este
devir-chão, esta presença despencada, este acolhimento da
dolorosa horizontalidade, este entendimento das fissuras e
temperaturas do chão físico e histórico onde inevitavelmente
a presença é negociada, tudo isso é o reconhecimento que a
“zona de desconforto” é o lugar onde todos vivemos e no qual
nos movimentamos. Nesta zona, o corpo de Pope.L torna-
-se chão em vez de forma, e neste domínio ele cria uma “real
dialética entre corpo e mundo” (Bessire, 2002: 49). Esta real
dialética inclui tratar diretamente a ubiquidade da violência
na vida cotidiana. Voltar-se diretamente para a brutalidade
da violência como grande agente organizacional dentro das
democracias supostamente iluminadas é criar uma zona de
desconforto em muita teoria crítica e política. Allen Feldman
defende de forma convincente que “conceituar a violência po-

187
lítica como elemento rotineiro da vida cotidiana” permanece
um dos maiores obstáculos à teorização sociológica e antro-
pológica da violência, pois a maior parte das pesquisas nesta
área ainda se vê presa à famosa proposição de Norbert Elias
de que a “modernização traz consigo uma retirada progres-
siva da violência da vida cotidiana em consonância com sua
crescente monopolização pelo estado”, uma proposição que
Feldman considera reveladora da “pulsão evolucionária da no-
ção de processo civilizador em Norbert Elias” (1994: 87, 88).
Feldman argumenta que a maior parte da teoria política ainda
conceitua a violência como ocupando apenas “as margens do
processo civilizador e da modernidade europeia”, bem como
da modernidade ocidental como um todo (1994: 88). Assim,
identificar a violência como um dos princípios mais funda-
mentais da organização política nas democracias contemporâ-
neas e assinalar a sua ubiquidade, sua profunda relação com a
constituição da força política e com aqueles ritmos, hábitos e
performances do dia-a-dia, é um ato imprescindível não ape-
nas para entender o desejo de Pope.L em criar “zonas de des-
conforto”, mas também para entender como ele continua seu
diálogo com Fanon para além da questão da ontologia e rumo
a questões de performances políticas. A rastejada militar é só
um item a mais no índice de técnicas cinéticas da violência,
associado ao poder imperial do Super-Homem, da América
Branca, tudo isso revelado e ativado por um homem negro,
extremamente amigável, rastejando no The Great White Way,
junto às valas coletivas que diariamente continuam sendo ca-
vadas pelo legado de polícias colonialistas e imperiais. BAM.
Na dialética entre corpo e mundo de Pope.L, nessa zona de
desconforto criada por ele, o tropeço fanoniano assevera uma
eloquência diferenciada.
Como podemos definir o ser depois do tropeço da onto-
logia geral? Que tipos de movimento este ser é capaz de per-
formar, agora que mapeamos, com ajuda de Fanon, Heideg-
ger e Pope.L, a problemática da presença no chão racializado?

188
Talvez qualquer corpo movente sobre o chão racista já seja
um corpo em tropeço. A aterrissagem da presença e da perfor-
mance no pé tropeçante abre espaço para o que Alain Badiou
chamou “uma ética da situação” (Badiou e Hallward, 2001).
Ela suscita a possibilidade de se criar uma resposta crítica à
violência do racismo que é ao mesmo tempo uma resposta
coreográfica. Tal modo particular de mobilização, informado
pelo tropeço, o tremor, a oscilação do ser, propõe diferentes
formas de se fazer a mediação entre dança e política. Este é o
ponto em que pulamos radicalmente da noção geral de estre-
mecimento do ser em Heidegger para a descrição contextual-
mente específica do tropeço e do estremecimento no terreno
racista-colonialista em Fanon. Um terreno informado por um
chão ao mesmo tempo cambiante e cambaleante, bem como
por palavreados abruptos, um terreno nervoso onde o corpo
suporta reconfigurações radicais diante da força ilocucionária
e perlocucionária do ato de fala performativo, mas também
onde o corpo tropeça em sua própria capacidade de abundar
na falta, de mover-se dentro de sua fixidez, de negociar um
terreno que de outra forma seria totalmente inóspito. Eis o
impacto da rastejada, não como ato de submissão, mas como
esforço coreopolítico que transcende a sentença da ordem
simbólica ao adentrar, corajosamente, no chão trêmulo do ser.

189
V
A MELANCÓLICA DANÇA DO
ESPECTRAL PÓS-COLONIAL
VERA MANTERO CONVOCA
JOSEPHINE BAKER

Uma intolerância
Uma não-visão
Uma incapacidade
Um querer
Um vazio
Um vazio
Um vazio
Um vazio
Uma ternura
Uma queda
Um abismo
Uma alegria.
Vera Mantero, 1996

De fato, a melancolia racial [...] sempre existiu


para o sujeito racializado, tanto como signo de
rejeição, quanto como estratégia psíquica em res-
posta a essa rejeição (Cheng, 2001: 20).

Onde repousa a história, se é que repousa? Como a história


pode ser acordada e posta a mover? Como é que a história
pode achar seu alicerce, seu ritmo, sua anatomia? Estas ques-
tões servem de ponto de partida para uma consideração dos
efeitos críticos, artísticos e políticos desencadeados por uma
recente invocação histórica – o ressurgimento coreográfico
de uma imagem particularmente fantasmática [haunting]109,
e particularmente icônica, que tanto ocupou a imaginação
europeia sobre os afro-americanos, sobre a dança e a femini-
lidade negra. De fato, desde o começo da década de 1920 até
meados dos 1930, a imagem dançante de uma certa mulher,
afro-americana, ilustrou e perturbou notavelmente a compli-
cada dinâmica do que Brett Berliner chamou de melancolia
colonialista do século XX: aquele ambivalente sentimento
no colonizador de sensualmente possuir e, ao mesmo tempo,
metodicamente brutalizar o outro colonial e racial (Berliner,
2002: 200). Como indicado no título deste capítulo, a ima-
gem icônica, fantasmática [ghostly] e perturbadora em questão
– cuja voz e figura denunciam a melancolia colonialista e pós-
-colonialista europeia – é a de Josephine Baker.
Convocar o fantasmático em Josephine Baker é recuperá-la
como voz crítica na contemporaneidade, uma voz que per-
manece ativa e resistente mesmo postumamente. É também
reconhecer que a força de Baker ainda move, que invocar sua
presença é operar um chamado político específico. Admitir
a possibilidade de agência de Baker ainda hoje é reconhecer
a sua participação naquela legião de corpos que Avery Gor-
don identificou como os “corpos mal enterrados” da história:
corpos tornados abjetos mesmo na morte, e cujos chão, lu-
gar e paz foram negados pelas narrativas hegemônicas e pelas
forças da história (Gordon, 1997: 16). Gordon acredita que
estes corpos mal enterrados, uma vez assinalados com uma
raça específica, congregam em obscuras comunidades, conde-
nados a uma dupla invisibilidade autorizada por uma violên-
cia meticulosamente imposta: a invisibilidade do espectral e a

109.  Ver Nota do Tradutor na primeira página do Capítulo 2 para uma referência a este
conceito e à dificuldade de sua tradução. Embora o conceito de haunting atravesse todo
o livro, ele opera mais fundamentalmente nos Capítulos 2 e 6. É digno de nota que,
neste capítulo, “haunting” seja frequentemente traduzido como “fantasmático”, seguindo
a enorme influência do trabalho de Avery Gordon a respeito da força sociológica dos
fantasmas. (N.T.)

192
invisibilidade própria à racialização. Ao refletir sobre os elos
que se estabelecem entre regimes escópicos raciais e os regimes
afetivos da racialização, Anne Anlin Cheng propõe que “o mo-
mento racial” ocorre precisamente dentro de um campo social
de “invisibilidade mútua” (2001: 16) entre sujeitos brancos e
sujeitos de cor. Mas vale lembrar, como defende Cheng em
sua análise do romance Invisible Man de Ralph Ellison, que
invisibilidade racial não significa falta de materialidade. É jus-
tamente a condição paradoxal de ser um corpo material que,
todavia, permanece não visto, o que finda por desencadear a
história de violentas colisões, conflitos e desencontros entre
sujeitos racializados.
Gordon segue os sinais, as cicatrizes e as marcas deixadas
pelas colisões da história sobre os corpos desses sujeitos ha-
bitando o campo racial da invisibilidade, e evidencia que as
forças da exclusão racial deixam, sim, rastros materiais sobre
quem é violentado. Em um movimento que rememora Michel
Foucault, Gordon propõe que a inscrição da história sobre os
corpos marginalizados, feito marca da “violência da força que
os fabricou” (Gordon, 1997: 22), gera ações contrárias de
resistência. Para Gordon, tais atos de resistência constituem
precisamente a força do espectral através do tempo – perfor-
mances e “histórias concernindo exclusões e invisibilidades”,
em que o fantasma surge como “figura-limite para a mediação
política e a memória histórica” (1997: 17,18).
Neste capítulo, eu analiso uma reflexão coreográfica con-
temporânea da coreógrafa portuguesa Vera Mantero acerca
do racismo atual na Europa e do esquecimento europeu de
sua recente história colonialista. Esta reflexão acontece preci-
samente através da forma como Mantero encena um campo
de invisibilidade linguístico e escópico enquanto, ao mesmo
tempo, coreografa os efeitos deste campo sobre um corpo hi-
perbolicamente racializado. Mais além, esta reflexão coreográ-
fica de Mantero articula-se e é posta em cena com o auxílio
da figura fantasmática [haunting figure] de Josephine Baker.

193
Apoio-me na figura da performer afro-americana e faço uma
leitura da peça uma misteriosa Coisa disse e.e. cummings, criada
por Mantero em 1996, como informada por (e proponente
de) uma poderosa contraperformance política direcionada ao
racismo e ao colonialismo. Mantero alcança essa contraperfor-
mance por meio de seu uso estratégico da melancolia contra a
abjeção racial e colonialista. Eu situo o solo de Mantero como
proposta coreopoética para uma consideração política das am-
nésias históricas europeias a respeito da brutalidade colonialis-
ta e mostro como é através da inquietante [uncanny] evocação
da força fantasmática de Josephine Baker que uma proposta
política desta ordem pode ser efetuada com êxito. Isto significa
que na peça de Mantero, bem como ao longo deste capítulo,
a figura de Baker emerge como uma ponte vacilante entre a
melancolia europeia (como um modo de subjetividade estru-
turado em torno da oscilação dos sentimentos de perda e de
raiva, como sugerem Cheng [2001] e Judith Butler [1997a]) e
a legião histórica de sujeitos racializados e colonizados, vivos e
mortos, condenados a uma subjetividade na qual o mais pro-
fundo pesar deve ser sempre transformado, pelo desequilíbrio
melancólico do colonialismo, em um co-movente espetáculo
para o colonizador.
O movimento toma importante lugar nas minhas reflexões
sobre o espectral, o melancólico e o sujeito pós-colonialista.
De fato, se o pensamento político e a teoria crítica recentes, se-
guindo os Espectros de Marx de Derrida, vêm legitimando o es-
pectral como conceito crítico, o termo recentemente também
tornou-se instrumental para os estudos de raça, particular-
mente através dos trabalhos de Gordon e Cheng. Considera-
ções críticas do espectral, do invisível, do presente-ausente, do
desaparecido, também vêm possibilitando importantes avan-
ços nas leituras críticas, políticas e filosóficas da performance
– mais notavelmente em Peggy Phelan (1993), Diana Taylor
(1997) e José Muñoz (1999). Entretanto, o movimento, esta
outra face do espectral na constituição de sua inquietante apa-

194
rição, ainda não achou seu lugar como fato e ferramenta críti-
ca fundamental nos estudos críticos da performance e da raça.
Critical Moves, de Randy Martin, ofereceu uma sofistica-
da e engajada leitura marxista da dança teatral e não teatral
norte-americana (Martin, 1998).110 Através da noção de “mo-
bilização”, Martin articulou claramente para a teoria social e
para a teoria da performance a importância de considerarmos
o movimento criticamente, epistemologicamente e politica-
mente. O que eu procuro fazer aqui é levar a sério a proposta
de Martin sobre a centralidade política do movimento, mas
considerando-a em uma escala diferente. Volto-me, assim,
para um movimento menos preocupado com a mobilização
social em massa e mais interessado na criação de micro-con-
tra-memórias e de pequenas ações contrárias ocorrendo no
limiar do significantemente aparente – ou seja, precisamen-
te dentro dos territórios assombrados [haunted territories] da
melancolia e da negação racista e colonialista europeia. Esta
atenção às pequenas percepções responde não só aos desafios
de uma micropolítica e de uma coreografia de pequenos ges-
tos contidos na peça de Mantero, mas também à capacidade
fenomenológica da “melancolia [de ficar] fora de vista”, dessa
noção de melancolia como “uma absorção por algo que não
pode ser acomodado pela visão, que resiste ser trazido à tona,
nem visto, nem declarado” (Butler, 1997a: 186).
Por fim, concluindo esta introdução sobre método, eu gos-
taria de acrescentar que invocar teoricamente a assombração e
o fantasmático [haunting] significa dar uma atenção particular
ao papel do inquietante [uncanny] na construção das narrati-
vas e performances colonialistas e anticolonialistas.
Freud, em seu ensaio “O Inquietante” [Das Unheimliche],
de 1919, tratou do espectral e de seu impacto estético como
uma das duas principais características de qualquer experiên-

110.  Para uma breve descrição das noções de mobilização em Martin e de sua articulação
de uma política para os estudos críticos da dança, ver Capítulo 1.

195
cia inquietante.111 Mas é a outra principal e definidora caracte-
rística no inquietante freudiano que se torna particularmente
relevante para meu argumento: as inesperadas, incontroláveis,
desregradas formas de movimento. De fato, atender às ações e
palavras que emergem em territórios assombrados, assolados
por fantasmas, é rastrear as implicações teóricas para os estu-
dos de raça, da dança e da performance, daquilo que Freud
julgou ser uma das assinaturas mais explícitas do inquietante:
o movimento acontecendo onde não deveria, o movimento
ocupando um corpo que deveria estar inerte, o movimento
ocorrendo em um tempo inoportuno, com um ritmo inopor-
tuno e com intensidades distorcidas. É impressionante como o
ensaio de Freud está repleto de exemplos do inquietante como
disfunção do movimento, como movimento que perturba os
sentidos de uma postura “normal” ou de um comportamento
normativo do corpo.112 Isto significa que o inquietante não
passa de um movimento inesperado, que desafia as leis do lar,
cujas origem e agência não podem ser verificadas visual ou
cientificamente. Os movimentos do inquietante resistem à do-
cumentação, à certificação e à economia. O que é inquietan-
te no movimento, portanto, o que torna qualquer momento
inquietante, é sua aparente falta de propósito, de eficiência e
de função. Ao contrário, no inquietante, temos sempre e sim-
plesmente o movimento pelo movimento.

111.  O termo alemão “Unheimliche” já foi traduzido no Brasil como “estranho”, “estranho-
-familiar”, “sinistro” e, mais recentemente, “inquietante”. Ver Freud (2010a). (N.T)
112.  Aqui, refiro-me não apenas ao famoso esboço da “compulsão à repetição” que Freud
discute nas últimas páginas de seu ensaio – o qual prefacia suas reflexões posteriores sobre
a pulsão de morte em Além do Princípio do Prazer – mas também às descrições feitas por
Freud de suas perambulações nas “ruas desconhecidas e ermas de uma pequena cidade ita-
liana” como provocando nele um sentimento inquietante (2010a: 265); “o efeito inquie-
tante da epilepsia” devido às suas convulsões incontroláveis (2010a: 271); os movimen-
tos de “autômatos e bonecos” animados (2010a: 256); e, mais diretamente relevante ao
ponto, os movimentos de “pés que dançam sozinhos” (2010a: 271). Freud descreve todos
esses exemplos de mobilidade inquietante como deslocamentos simbólicos da aparência
e da motilidade no campo escópico daquilo que deveria permanecer sempre escondido e
imóvel: a genitália da mãe (Freud, 2010a).

196
Aqui, voltamos para o problema ontológico da dança oci-
dental como fantasticamente concebida, pelo menos desde o
começo do século XIX, por Heinrich von Kleist, mas também
já no século XVI por Thoinot Arbeau, como aquela miste-
riosa animação do corpo que de outra forma estaria defunto,
ou apático. Nesta fantasia europeia que iguala dança e vida,
ou dança e alma, vemos surgir um tema familiar aos estudos
críticos da raça: o tema da animação da natureza melancólica
da branquidade (a tristeza da branquidade, meticulosamen-
te diagnosticada desde o famoso tratado de 1658 de Robert
Burton, A Anatomia da Melancolia [2011], e teorizada mais
recentemente por Giorgio Agamben [2007] e Harvie Fergu-
son [2000] como a marca da subjetividade moderna europeia)
pela contagiante e energizante “força de espírito” negra [black
“soul power”]. A animação da branquidade pelo espírito negro
e pelo movimento dos negros participa integral e simetrica-
mente das narrativas que equiparam a dança com a inquietan-
te infusão de vida no cadáver. Este “soul power”, este surto de
movimento no apático corpo europeu, infecta e suspende a
melancolia endêmica da branquidade a cada vez que ela assiste
o espetáculo de movimentos inquietantes, seja maravilhando-
-se com a dança dos escravos na plantação colonial ou bus-
cando um groove nas pistas de dança pós-coloniais. Este mo-
vimento contagiante trazendo a branquidade de volta à vida
reintroduz no domínio estético a fantasia primordial por trás
do modo de exploração colonialista.113
Tratar epistemologicamente do inquietante significa, pri-
meiro, projetar, e depois achar sentido onde não deveria haver
nada além de desatentos movimentos do acaso.114 Em outras
palavras, significa ressaltar teoricamente, em primeiro plano,
o coincidente. Tratar das coincidências epistemologicamente
é preparar o terreno para uma análise histórica mais densa,
113.  Para uma discussão da negritude como contágio, ver Browning (1998).
114.  A atmosfera inquietante trazida pela repetição “impõe-nos a ideia de algo fatal, inelu-
tável, quando normalmente falaríamos apenas de ‘acaso’” (Freud, 2010a: 265).

197
de modo a permitir leituras improváveis, particularmente as
leituras censuradas, proibidas e vedadas pelas narrativas co-
lonialistas. É tratar da distribuição geográfica e das colisões
temporais-coincidentes de fatos, nomes e eventos, como dese-
nhando improváveis – ainda que absolutamente significativas
historicamente – coreografias de encontros e desencontros.
Se a história do projeto colonialista europeu foi sempre uma
história de fantasias discursivas e aventureiras, de produção
narrativa de justificativas teleológicas para a ocupação de ter-
ras continuamente representadas como vazias (não obstante a
presença de “nativos”), bem como de fabricação de histórias
que legitimassem o apagamento do outro, então invocar his-
tórias improváveis é desmantelar essa máquina-narrativa colo-
nialista. É identificar padrões alternativos informando linhas
narrativas alternativas, um movimento que Paul Carter con-
sidera como requisito ético de qualquer projeto de historio-
grafia, performance ou criação, em um contexto colonial ou
pós-colonial.115 Os ensaios de Carter sobre colonialismo são
influentes também em um outro nível. Seguindo as pistas de
Jacques Derrida (Patton e Derrida, 2001), Carter não vê qual-
quer distinção entre o colonial e o pós-colonial, salvo como
atalho linguístico, como camuflagem débil para a perpetuação
de um tipo de sujeição racista atroz e de uma exploração geo-
política que persiste essencialmente desde o período colonial,
apesar da independência oficial das antigas colônias. Eu con-
cordo com a posição de Carter e de Derrida, razão pela qual,
ao longo deste capítulo, ainda que eu use “colonial” e “pós-
-colonial” para demarcar Portugal cronologicamente antes e
depois da independência de suas colônias, eu entendo que os
dois termos devem fundir-se quando usados para descrever-
mos as atitudes culturais e políticas hegemônicas ocidentais
contemporâneas em relação ao mundo em desenvolvimento.

115.  Para uma discussão sobre a “política do chão” em Paul Carter, ver Capítulo 5. Ver
também Carter (1996).

198
É por esta razão também que eu modifiquei os termos “co-
lonial” e “pós-colonial” para os mais ríspidos “colonialista” e
“pós-colonialista”, de modo a deixar mais claro qual é o propó-
sito e a natureza do contínuo empenho colonial.
Quais são as inquietantes coincidências históricas rondan-
do Josephine Baker e o destino dos projetos e fantasias colonia-
listas europeus? Poderíamos começar com o paralelo acidental
entre a ascendência de Baker na cena europeia e o começo do
declínio do controle colonialista europeu na África. De fato, a
cantora, dançarina e performer afro-americana viu o auge de
sua notoriedade na França e na Europa coincidir com o come-
ço do fim da explícita autodefinição política da Europa como
continente colonialista, logo antes do começo da 2a Guerra
Mundial – um declínio que se acelera após o fim da guerra.
Poderíamos complementar com o fato da morte de Baker em
1975 no Hôpital de la Salpêtrière, em Paris, ter coincidido
com a independência das últimas cinco colônias europeias no
continente africano: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São
Tomé e Príncipe e Moçambique. Todas estas colônias portu-
guesas cuja independência foi precedida por um golpe militar
em Portugal, em 1974 (contra o regime fascista que governa-
va o país desde 1928), e por treze anos de sangrentas guerras
coloniais (em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, entre
1961 e 1974). Talvez estas não sejam coincidências tão im-
pressionantes; talvez eu esteja de fato forçando um inquietante
desdobrar de paralelos aqui. Mas talvez o paralelo acidental
entre a morte de Baker e o colapso colonial europeu se aden-
se, histórica e teoricamente, quando eu trouxer para primeiro
plano o modo como eles delineiam um desenho inquietante
que viabiliza a possibilidade de uma insuspeita mobilização
nos estudos críticos de raça e da dança.
Movimento ocorrendo onde deveria haver imobilidade
anuncia a entrada do espectral com a força de uma agência
irrefreável, exercitando seu chamado sobre os campos de vi-
sibilidade, movimento e consciência histórica. Este é o mo-

199
mento em que somos obrigados a considerar o fato de que
foi realmente em Lisboa, em 1996, 21 anos após a morte de
Josephine Baker, 21 anos após o débâcle do império colonial
português, que a figura de Baker foi postumamente convocada
de volta ao palco, para dançar uma vez mais para um público
europeu fascinado, cosmopolita e majoritariamente branco.
Baker estava de volta a Lisboa (onde apresentou-se, nos anos
1950, durante o regime fascista), atendendo ao chamado de
um banco estatal desta última capital colonialista daquele até
recentemente colonialista continente europeu.
Um ressurgimento tão excêntrico do corpo dançante de
Baker resultou de um convite/invocação feito por António
Pinto Ribeiro, então curador e diretor de programação dos
serviços culturais do maior banco estatal de Portugal, a Caixa
Geral de Depósitos. Ribeiro convidou três coreógrafos dife-
rentes a criarem um solo de 20 minutos “inspirado” em Jo-
sephine Baker. Os três coreógrafos eram: o norte-americano
(mas radicado em Paris) Mark Tompkins, a afro-americana
Blondell Cummins e a portuguesa Vera Mantero. Embora
todos os três solos apresentados por estes importantes coreó-
grafos contemporâneos tenham sido extraordinários, eu vou
tratar exclusivamente da peça de Mantero, uma misteriosa Coi-
sa, disse e.e. cummings. Estou interessado nos modos como a
peça de Mantero oferece indícios para a compreensão de como
a presença dançante de uma mulher afro-americana – mais
especificamente sua presença espectral dançante – perturba e
subverte narrativas e silêncios históricos atuais na Europa a
respeito de seu bastante recente e brutal passado colonialista.
Também me interesso pelos modos como a peça de Mantero
evidencia a autonegação política da Europa a respeito de seu
atual presente racista.
A incumbência de Mantero, como performer e coreógrafa,
não foi nada fácil. Foi preciso superar uma série de obstáculos
éticos para criar essa dança: como uma mulher europeia bran-
ca, natural de um país que, até 1974, via como sua essência e

200
missão a “colonização de pessoas e territórios”, pode retratar,
invocar, reivindicar e dançar em nome de – e no corpo de –
uma dançarina afro-americana morta?116
Meu argumento é que o modo como o corpo branco, eu-
ropeu e feminino de Mantero escolheu falar sobre (o fantasma
de) Josephine Baker como precisamente uma subjetividade
que assombra [a haunting subjectivity], bem como um corpo
assombrado [a haunted body], engrossa a correnteza de histó-
rias e de memórias colonialistas europeias, das atuais fantasias
raciais europeias e sua amnésia colonialista, ao proporcionar
uma apresentação inquietante de uma imagem improvável e
desafiadora de uma mulher, de uma dançarina e de uma sub-
jetividade. Também argumento que, do ponto de vista da au-
diência europeia, presenciar o ressurgimento de Baker através
do corpo de Mantero promove uma dinâmica afetiva-mnemô-
nica ainda mais complexa – a qual podemos chamar (expan-
dindo o conceito de Berliner) de melancolia pós-colonialista.
Neste caso em particular, onde a melancolia mistura-se a pro-
cessos de racialização e exploração brutais, o que informa a
dinâmica de fantasias pós-colonialistas não é apenas o desejo
ambivalente pela absoluta possessão sensual do outro junto
à sua violenta e absoluta abjeção, mas também o particular
mecanismo psíquico da ambivalência – o mecanismo que Ju-
dith Butler descreveu como um deixar o sujeito melancólico
sempre suspenso entre a perda e a raiva (1997a: 167-98). Rele-
vante na análise de Judith Butler é sua ênfase (seguindo Walter
Benjamin) não apenas na psicologia da melancolia, mas na
centralidade do que ela chama de “topografia da melancolia”
(1997a: 174). Uma tal topografia psíquica é importante ao
tratarmos das fantasias pós-colonialistas europeias sobre o lu-

116.  O Artigo 2 do Acto Colonial Português de 1930, documento legislativo que regula o
“Império”, aprovado por Salazar antes mesmo da retificação da nova constituição de seu
Estado Novo, diz: “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função his-
tórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas
que neles se compreendam” (Rosas e Brito, 1996: 21, grifo meu).

201
gar “apropriado” dos (e para os) afro-americanos dentro do
mapeamento racial da subjetividade europeia. Ela é também
crucial para identificarmos onde e quando os “inapropriados”
e desgovernados movimentos dos corpos de pessoas racializa-
das acham seu lugar e seu tempo/ritmo de (re)ação.
O topográfico esclarece ainda um outro importante ele-
mento no que estou chamando de melancolia pós-colonialis-
ta. Freud observa que um sujeito pode entrar em luto não só
pela “perda de uma pessoa amada” mas também, significati-
vamente, pela “perda de abstrações colocadas em seu lugar,
tais como pátria, liberdade, um ideal etc.” (Freud, 2006: 103).
Tal luto por um ideal, ou por uma terra perdida, pode muito
bem desenvolver-se na “mórbida condição patológica” da me-
lancolia (Freud, 2006: 103). Este é um ponto que eu gostaria
de reter ao longo deste capítulo. Que o sentimento de “perda”
das “amadas colônias” da Europa dá lugar a uma subjetividade
melancólica mórbida que se energiza como raiva no racismo
contemporâneo europeu. A melancolia – a incapacidade do
sujeito de abrir mão do objeto perdido e aceitar a perda –
estabelece uma simetria oblíqua e perversa na afetividade e
no racismo pós-colonialista europeu. Nesta vesga simetria, o
lamento do colonizado é (mal) escutado como a voz do colo-
nizador e de sua própria perda. A incapacidade do europeu
de superar a perda colonial forja uma topografia psíquica que
transforma a Europa num espaço onde tipos específicos de
(não)encontros tomam lugar. O lamento do colonizado, ao
cantar, dançar e performar a perda de sua terra natal, encontra
uma enviesada, afetiva e inesperada reverberação no próprio
sentido de perda (antitética, racista, raivosa) do colonizador.
Isto explica o tipo de fascinação europeia com o corpo e a voz
de Josephine Baker, como discuto a seguir. Isto também expli-
ca o uso que Mantero faz de sua própria voz ao coreografar a
invocação de Baker.
Por que a peça de Vera Mantero, criada em um país euro-
peu periférico e cujo público será sempre limitado aos poucos

202
frequentadores de festivais internacionais de dança, seria rele-
vante para uma discussão de como a Europa se enegrece em
sua fascinação menestrel117 pelos afro-americanos ao longo de
século XX? E como podemos começar a reconsiderar fanta-
sias europeias contemporâneas a respeito do movimento, da
animação dos corpos e da feminilidade negra ao lado da velha
fascinação da Europa com os negros norte-americanos dan-
çando em suas metrópoles coloniais? Este assunto é relevan-
te histórica e ontologicamente. Historicamente, em seu livro
sobre o desejo europeu pelo outro negro entre as décadas de
1910 e 1930, Berliner registra como a dança e a música afro-
-americanas começam a circular pela França como alternativas
“civilizadas” às imagens e sonoridades produzidas pelos negros
africanos colonizados, os quais eram percebidos pelo público
europeu como mais “selvagens” e, logo, irremediavelmente in-
feriores que seus irmãos norte-americanos. Berliner distingue
os modos como as palavras sauvage e primitif eram usados no
francês coloquial, bem como nos textos etnográficos das pri-
meiras décadas do século XX:

Enquanto sauvage era reservado principalmente para os ne-


gros africanos e seus descendentes nas colônias francesas, o
termo primitif (...) referia-se a alguém desprovido de civi-
lização, mas que possuía alguma moralidade e capacidade
para a civilização. O primitivo, mais do que o selvagem,
era frequentemente exaltado nos anos 1920 e era objeto de
muitas pesquisas e fantasias exóticas (Berliner, 2002: 7).

117.  “Minstrel fascination”: o autor faz alusão aqui à fascinação dos europeus pelos perfor-
mers afro-americanos durante o século XX como uma admiração eminentemente ambiva-
lente. A ambivalência pode ser lida no modo como a expressão “minstrel fascination” evoca
a infame tradição de minstrel shows, um gênero de performance burlesca muito popular
nos EUA do século XIX, entendido como inaceitavelmente racista, no qual atores predo-
minantemente brancos pintavam a cara de preto (blackface) e representavam personagens
negros de forma paródica, degradante e estereotipada, em geral como sujeitos tolos, pre-
guiçosos, supersticiosos, mas também hiperbolicamente animados, musicais e dançantes.
Na teoria e na historiografia teatral ocidental, sobretudo norte-americana, o minstrel show
do século XIX é o principal paradigma de performance racista nos EUA. (N.T.)

203
Tais fantasias exóticas (e eróticas) fomentadas pelo “primiti-
vo”, cujo símbolo principal era o(a) performer – dançarino(a)/
cantor(a)/musicista – produziam no europeu uma incontro-
lável resposta cinestésica: um ímpeto de vaguear, de se agi-
tar, de se perder, de se desprender do chão. Movimento como
busca, como jornada, como dissolução do self: isto não passa
de “movimento pelo movimento”, que é precisamente a nova
compreensão que o modernismo vai ter acerca do movimento,
como famosamente anunciou John Martin quando, em 1933,
escreveu sobre o rompimento histórico da dança moderna
com a toda a tradição da dança ocidental ao descobrir, afinal,
que a essência da dança é pura e simplesmente o movimento
(Martin, 1972: 6).118 A “descoberta” feita pelo modernismo
do movimento pelo movimento é contemporânea à descober-
ta feita pelo europeu que dançava em clubes “negros”, lugar
onde corpos brancos viam-se inflamados e levados a dançar
pela simples e contaminante presença de sons e danças afro-
-americanas “primitivas”. Toca-me enfatizar este ponto, esta
aliança fibrilante entre fantasias exóticas/eróticas, os sons e
as danças afro-americanas, e a instigação no branco-europeu
ao desejo de se lançar ao movimento como pura aventura do
movimento. Pois esta aliança atravessa as grandes narrativas
ontológicas (e históricas) da dança teatral ocidental – narra-
tivas que se recusam a enxergar projetos de corporeidade e de
disciplina na própria fundação da dança ocidental que, para
além de serem profundamente racializados, são também pro-
fundamente investidos em uma “busca e uma fantasia exótica”
colonialista. Este movimento na fundação da dança ocidental
rumo a um complicado desejo que necessita uma reinvenção
da habilidade do corpo branco de mover-se diante do espelho
da alteridade colonial e racial é o que estou chamando aqui de
chão melancólico e colonialista da dança europeia.

118.  Para uma discussão sobra as implicações de tal “descoberta” ontológica, ver Capítulo 1.

204
Como Mantero habitou este perturbado e perturban-
te chão, quando ela foi convidada a invocar o fantasma de
Josephine Baker no principal teatro do banco nacional, 21
anos depois do império colonial português colapsar com um
murmúrio tão significante em sua negação histórica, política
e moral que levou o filósofo português Eduardo Lourenço a
indagar como era possível que

um acontecimento tão espetacular como a derrocada de


um “império” de quinhentos anos, cuja posse parecia co-
-essencial à nossa realidade histórica e mais ainda fazer
parte da nossa imagem corporal, ética e metafísica de por-
tugueses, [acabar] sem drama? (Lourenço, 1991: 43).

Foi assim que Mantero preparou o terreno para sua reflexão


coreográfica a respeito da fantasmática presença de afro-ameri-
canos em meio à amnésia colonialista portuguesa (e europeia).
O palco encontra-se escuro quando o público entra no teatro.
O restante das luzes baixam e a escuridão torna-se completa. O
tempo passa e escutamos o som hesitante de algo que bate no
piso de madeira. A batida é incerta e move-se pelo palco. Logo
ela cessa, perto de nós, no centro do palco. Aos poucos, um
fraco raio de luz, um refletor estreitamente focado, revela uma
larga e muito branca face de mulher, de lábios muito verme-
lhos, cílios muito longos e sombras azuis brilhantes sobre as pál-
pebras. É uma face hiperbolicamente teatral, uma máscara de
mulher branca encenando a imagem clichê da sedução ao estilo
vaudeville. A face, no entanto, não sorri, nem seduz. Permanece
calma, alerta. Sob a pálida luz do refletor, a face parece flutu-
ar, desprovida de corpo. Instantes depois, a vermelhíssima boca
abre-se, e quieta, calma e infinitamente, começa a recitar, com
algumas interrupções e acelerações, uma litania. Ela começa, em
português: “uma tristeza, um abismo, uma má-vontade, uma
cegueira... atrozes, atrozes”. Com o passar do tempo, o refletor
gradualmente alarga seu campo de luz e o corpo de Mantero

205
torna-se cada vez mais visível. No que a branquíssima face ga-
nha um corpo, constatamos que aquele é um corpo racializado,
o corpo nu de uma mulher branca que decidiu cobrir a maior
parte de sua pele com maquiagem marrom, de modo a criar a
ilusão de negritude. Trata-se de uma ilusão deliberada, não só
porque a face de Mantero permanece branca (como a marcar
que a branquidade participa já de um teatro da raça, de um
baile de máscaras racial/racista), mas porque suas mãos também
permanecem intocadas pelo pó marrom. As mãos e o pescoço
separam-se do resto do corpo por linhas retas de tinta. Assim,
a maquiagem marrom funciona não como um dispositivo de
minstrelsy,119 no sentido de que o minstrelsy “caricaturava negros
por esporte e lucro” (Lott, 1993: 3), mas, ao contrário, como
marcador gestual de um artificial e hiperbolicamente constru-
ído corpo racializado: parte marrom, parte branco, ambas as
partes enfaticamente fabricadas.
A historiadora da dança Susan Manning propôs o conceito
de “minstrelsy metafórico” para falar de uma “convenção atra-
vés da qual os corpos de dançarinos brancos faziam referência
a sujeitos não-brancos” na dança teatral americana dos anos
1930. Manning defende que “em contraste aos performers
de blackface, os dançarinos modernos não se empenhavam na
personificação [do outro]. Na realidade, seus corpos torna-
vam-se veículos para os teores de sujeitos não-brancos” (Man-
ning, 2004: 10). Eu sugiro que Mantero faz algo totalmente
diferente do “minstrelsy metafórico”. Pois seu corpo não é um
“veículo” para o corpo de Baker, nem pretende representá-lo.
Se algo é vocalizado, se algo é referenciado, não é o corpo do
outro, nem a voz do outro, mas o lamento da violência parti-
lhada e da profunda tristeza produzida no campo racializado.
O que temos quando Mantero usa a maquiagem no ene-
grecimento de seu corpo é precisamente a marcação tanto

119.  Referente ao minstrel show, espetáculo racista do século XIX cuja característica visual
mais evidente era o uso do blackface (máscara negra executada com maquiagem). (N.T.)

206
da negritude quanto da branquidade como forças de ten-
são para a mútua construção das identidades das mulheres
através da linha de cor – e particularmente a construção da
sexualidade de uma mulher branca como já em dialogo com
a negritude. Uma vez considerado o terceiro elemento no
“figurino” que Mantero cria para seu corpo em uma miste-
riosa Coisa disse e.e. cummings, temos uma figura ainda mais
complexa a importunar a oposição binária entre negritu-
de e branquidade. Este terceiro elemento aparece na peça,
primeiramente, como sonoridade, com os sons de batidas
ao redor do palco; depois, ele é visualmente apontado e su-
plementado pela constante falta de equilíbrio da performer
(quando a luz ainda é demasiado fraca para expor seu cor-
po inteiramente); e, quando por fim seu corpo é totalmen-
te revelado, esse elemento torna-se o apogeu visual da peça:
Mantero sustenta-se, precariamente, esforçadamente, sobre
as patas de uma cabra. A mulher duplamente racializada des-
vela ainda outra armadilha das subjetividades colonialistas,
patriarcais e coreográficas: seu corpo também é bestial. A
besta é o perigo em emboscada da genitália feminina, é a
animalização “selvagem” do corpo na visão racista sobre a
negritude, e é a imagem selvagem usada por Mantero em
seu corpo explícito em performance. A imagem do animal
que ela escolhe proteticamente incorporar em sua nudez tem
uma conotação muito específica em português – uma cono-
tação que em última análise obriga este solo a curvar-se sobre
si mesmo em seu fluxo de significação, na medida em que
este deita suas camadas sobre a figura composta de Mante-
ro, sobre as imbricações desta figura com a história colonial
portuguesa, e sobre os esforços contemporâneos portugueses
em esquecer esta história, agora que o país corre em busca de
uma desejada “europeidade”. Cabra, em Portugal, é um si-

207
nônimo vulgar de prostituta.120 Aqui, significantes rodopiam
ao redor do campo de força feminino no terreno ideológico
da modernidade, tomado como um projeto desde sempre
generificante, racializante, colonizador.
Ao substituir a sapatilha da bailarina pelos cascos anima-
lescos de uma cabra, Mantero opera duas poderosas afirma-
ções visuais. Coreograficamente, ela propõe a Josephine Baker
uma dança de desequilíbrio e dor (ela precisa sustentar-se em
demi-pointe por mais de 25 minutos, ressaltando desta forma
a dança como um trabalho de esforço). Semanticamente, ela
nos leva de volta à figura da prostituta. Um terceiro elemen-
to deve ser incluído na composição deste lamento específi-
co – a litania de Mantero, quase repetindo-se infinitamente,
calmamente, trivialmente, insistentemente, suspensa entre a
afirmação factual, a poesia minimalista e a franca acusação.
Ela começa sua recitação:

um desgosto
uma impossibilidade
atrozes, atrozes
uma impossibilidade
um desgosto
atrozes, atrozes
um desgosto
uma tristeza
uma impossibilidade
atrozes, atrozes
uma má-vontade
uma impossibilidade
um desgosto
atrozes, atrozes
...

120.  Aqui também opera uma figura mítica do folclore português. A “dama dos pés de cabra”
é uma sedutora encantada já marcada como outra, já que se trata de uma mulher mourisca.

208
uma queda
uma impossibilidade
uma ausência
atrozes, atrozes
uma queda
uma impossibilidade
um desgosto
uma tristeza
atrozes, atrozes
uma queda
uma ausência
uma tristeza
uma impossibilidade
atrozes, atrozes
...

Este não é um alegre tributo a Josephine Baker. Embora ja-


mais perca de foco a figura da dançarina afro-americana, Man-
tero não procura representar Baker. Na realidade, ela constrói
cuidadosamente uma figura na qual se anima não uma Baker
histórica, mas a ressonante ausência de Baker como algo cen-
tral ao conluio entre dança, colonialismo, raça e melancolia no
corpo da mulher. Mantero não poderia simplesmente incorpo-
rar a imagem de Baker, não com a história do minstrelsy, com a
apropriação do corpo da mulher negra por mulheres brancas,
e não com o passado colonial português recente. Mantero faz
bastante esforço para desfazer a máquina mimética do racismo
e do minstrelsy, mas ela o faz indicando precisamente o meca-
nismo através do qual a mímica cria corpos.
Homi Bhabha mostrou como a mímica [mimicry] tem um
papel fundamental na construção dos discursos e políticas co-
loniais, atuando “como uma das estratégias mais ardilosas e
eficazes do poder e do saber coloniais” (Bhabha, 2003: 130).
Tal estratégia, para Bhabha, opera no nível de uma metódica
destruição do “corpo e [do] livro”, do anatômico e do verbal,
que atravessa o projeto colonialista (2003: 138). O impressio-

209
nante na compreensão de Bhabha sobre mímica colonial, e o
que eu acho particularmente relevante na apreciação da peça
de Mantero como simultaneamente espectral e melancólica,
é que Bhabha julga a mímica colonial como fundamental-
mente ambivalente. A mímica deve permanecer um projeto
inconcluso para que o outro permaneça familiar, isto é, quase
o mesmo, “mas não exatamente”, e ameaçador, mas não exa-
tamente (2003: 130): “a ambivalência da autoridade colonial
repetidamente passa de mímica – uma diferença que é quase
nada, mas não exatamente – a ameaça – uma diferença que é
quase total, mas não exatamente” (Bhabha, 2003: 138, grifo
no original). Esta ambivalência, direcionada à criação discur-
siva de uma perturbadoramente não familiar familiaridade,
imediatamente posiciona a questão da mímica colonial dentro
do campo operacional do inquietante freudiano. Além disso,
como discutido acima, a ambivalência da mímica colonial tem
espantosa similaridade com a identificada por Berliner na me-
lancolia colonial e com a percepção de Butler sobre a operação
da melancolia no nível da formação do sujeito. Aqui, não é
de surpreender que percebamos como, de acordo com Bha-
bha, a ambivalente fundamentação do colonialismo produza
o outro racializado e colonizado como uma espectral e inquie-
tante subjetividade. De fato, Bhabha escreve, “a ambivalên-
cia da mímica (...) fixa o sujeito colonial como uma presença
‘parcial’ (...) tanto ‘incompleto’ quanto ‘virtual’” (2003: 131,
grifo no original). É na articulação dessa fixação colonial do
outro racializado como uma presença incompleta, não exa-
tamente presente, ameaçadoramente quase familiar, que nós
podemos paradoxalmente começarmos a vislumbrar a resis-
tente emergência do inquietante espectral e racial como mo-
vimento desgovernado no quase familiar – isto é, como uma
performance estrategicamente melancólica de lamento do co-
lonizado. Como é que o outro pode gerar e sustentar contra-
-identidades e contra-movimentos de resistência quando ele é
condenado a mover e existir como meia-presença dentro do

210
campo da invisibilidade racial? Esta é justamente a questão
coreográfica (como aparecer em um corpo seguindo os passos
necessários) que a recente teoria da raça vem aprofundando
através do conceito psicanalítico de melancolia. É aqui que o
corpo fantástico e a lamentação poética de Mantero ocupam e
subvertem mais uma vez as estratégias representacionais colo-
nialistas e pós-colonialistas.
No livro Disidentifications, José Muñoz mobiliza uma crí-
tica das práticas de performance, cênicas e cotidianas, que di-
retamente abordam o que ele chama de “atos desidentificató-
rios” resistentes diante dos regimes hegemônicos de formação
da identidade. Não é de surpreender que a noção de Muñoz
de desidentificação também faz uso do conceito psicanalítico
de melancolia. As práticas de performance e práticas teóricas
promovidas por Muñoz levam a uma mobilização fecunda,
crítica e social. Assim, ele entente o reenquadramento da me-
lancolia, de uma “patologia ou (...) humor auto-absorto que
inibe o ativismo” para uma reconsideração contrária da me-
lancolia como “um mecanismo que nos auxilia a (re)construir
a identidade” (Muñoz, 1999: 74), como um verdadeiro impe-
rativo ético. Depois dele, David L. Eng e Shinhee Han leva-
ram este argumento além, rumo a uma investigação de como
“a melancolia pode ser concebida como sustentáculo das nos-
sas lutas e conflitos cotidianos diante de experiências com a
imigração, a assimilação e a racialização” (Eng e Han, 2003:
344). Fundamental no projeto de Muñoz é o modo como
esse reenquadramento da melancolia, agora um mecanismo
de desidentificação, só pode acontecer através da invocação e
da mobilização do espectral dentro dos campos da crítica po-
lítica, da mobilização social e da formação do sujeito. Como
ele mesmo coloca, sob esta nova luz, a melancolia permite-nos
“levar nossos mortos conosco nas muitas batalhas que preci-
samos travar em seus nomes – e em nossos nomes” (Muñoz,
1999: 74).

211
Dançando em nome de Josephine Baker na antiga capital
do último império europeu, uma hiperbolicamente (não) nua
mulher performa uma série de meias-presenças diante de nós.
Transpirando, maquiada, ela propõe uma imagem que se re-
cusa a permanecer presa em qualquer conjunto de identidades
fixas dentro da representação. Ela está, como descreveu Bha-
bha, habitando plenamente aquelas presenças parciais que o
colonialismo oferece ao outro racializado. Dentro do campo
cego da mútua invisibilidade racial, seu corpo desvela anato-
micamente os signos e as marcas de insuspeitadas colisões. Ela
é parte-prostituta, parte-feiticeira, parte-acusadora; ela pode
estar com dor, ela pode ser um monstro, talvez ela até seja
bela, mas definitivamente, desafiadoramente, ela equilibra-se
no limiar do que ainda pode ser dança. Ela procura manter-
-se em pé, mas esta é a mais extenuante incumbência física
de todas. Ela metódica e insistentemente nos conta de um
atroz e generalizado campo de cegueira enquanto encara nos-
sos olhos. Eis que resultamos incapazes de descansar, de modo
imparcial, em nossos lugares. Sua dor e sua repetitiva recitação
convocam-nos a entrar no tempo da peça que cuidadosamen-
te ela tece. Esse tempo, seu tempo, o tempo do espectro, do
lamento, encerra um espaço que se torna metonímia de seu
próprio corpo. Este é o momento em que voz e corpo, movi-
mento e pele, produzem uma topografia da melancolia (racia-
lizada). Os pés cambaleantes de Mantero, seu desequilíbrio,
metonimicamente revelam fissuras de outro modo invisíveis
no terreno, denunciando o palco como chão oco, como lugar
de congregação para aqueles corpos tão atrozmente mal enter-
rados pelo braço do colonialismo. De modo significativo, este
chão (de Mantero, de Baker, da misteriosa Coisa) é contíguo
àquele no qual o público sustenta a si próprio.
Desta forma, gradualmente, o campo invisível do racis-
mo passa a preencher-se de presenças, vozes, terras. E nós
tornamo-nos incapazes de desviar os olhos daquele corpo sob
pressão, aprisionado em si mesmo, aprisionado sob suas mui-

212
tas camadas de pele, cada pele tão historicamente sobredeter-
minada quanto a próxima. Em sua simultânea exacerbação e
diferimento da presença plena, a imobilidade parcial de Man-
tero funciona como um tipo de reiteração visual da repetição
poética da palavra “atrozes” em seu discurso. Cegueira atroz,
desgosto atroz, silêncio atroz, má-vontade atroz, impossibili-
dades atrozes, tristeza atroz – pelo menos enquanto dure a
convocação de Baker por Mantero, por seu lamento bestial,
por sua aparição na meia-presença, meias-sombras de uma ra-
cializada e misteriosa Coisa, ao público não é possível escapar
da posição de ser absolutamente contemporâneo àquele corpo
condoído. Cheng observa:

Quando nos voltamos para a longa história de pesar, e


para a igualmente protelada história do gerenciamento
físico e emocional deste pesar por parte dos povos mar-
ginalizados e racializados, nós vemos que sempre houvera
uma interação entre melancolia no sentido cotidiano de
afeto, de “tristeza” ou de “blues”, e melancolia no sentido
de uma formação identificatória estrutural vinculada à – e
em ativa negociação com a – perda de si como legitimação
(Cheng, 2001: 20).

A dor acontece devido à insistência de Mantero em tentar


sustentar-se sobre suas improváveis patas de cabra e por sua es-
colha coreográfica de manter-se em um só lugar durante toda
a peça, isto é, por sua escolha de não se mover, quando o que
se espera das dançarinas é que elas movam-se. Enquanto Man-
tero procura equilíbrio com seus cascos bestiais e grotescos,
expandindo e explodindo assim as definições e expectativas
do que é “dança”, ela desativa ainda outro registro no campo
da representação e da mímica colonial. Enquanto esforça-se,
enquanto recita, enquanto permanece sob o foco de luz, go-
tas de suor silenciosamente passam a riscar seu corpo. Se so-
noramente ela provoca com sua triste recitação, visualmente
ela perturba o campo da dança ao tornar suor e tremor em

213
agentes explícitos de significado. O suor significa a labuta de
Mantero onde aparentemente não há nenhuma (ela não pare-
ce fazer valer o dinheiro pago pelo seu público). No que seu
esforço físico aumenta, o suor também vai removendo sutil-
mente a tinta escura de sua pele, abrindo cicatrizes brancas em
seu corpo, mostrando que tudo é ficção, imagem, uma ima-
gem de mulheres-prostitutas condenadas a dançar melodias
assobiadas pelos lábios de outras.
Por fim, através da assombração [haunting] de Baker, o cor-
po nu de uma dançarina contemporânea portuguesa não se
torna nem pretexto nem substituto para o gozo voyeurístico
do fetichismo europeu para com os afro-americanos. Tampou-
co ele vira veículo para a reiteração de supostas harmonias ra-
ciais. Ao contrário, ele opera como o poderoso disparador de
uma inquietante náusea provocada pela súbita revelação: em
sua desvelada presença, aquele corpo besta-mulher-prostituta
grita uma história de cegueira e desencontro, uma história de
violência e labuta silenciadas, uma história da meticulosa des-
truição de corpos que ainda aguardam para serem propria-
mente vistos e enterrados.
Eis como o corpo composto por Mantero rearranja o chão
sobre o qual espectatorialidade e dança se sustentam. Não es-
tamos a ver Josephine, embora ela esteja lá. Não estamos a ver
Vera, não obstante sua exposição. O corpo nu de Mantero
transpira opacidade – literalmente, já que sua coloração escura
devém suor, escorrendo por sua pele e revelando um corpo
branco por baixo do sobredeterminado corpo de dançarina-
-prostituta. No final das contas, a presença é diferida. O foco
de luz que primeiramente iluminou apenas sua face, e que de-
pois, num fade-in de 20 minutos, gradualmente vai revelando
o resto de seu corpo, cria um efeito reverso de iluminação. Pois
quanto mais luz é derramada sobre o corpo de Mantero, me-
nos conseguimos enxergá-la, menos conseguimos enxergar Jo-
sephine Baker, menos conseguimos enxergar a mulher-cabra.
O que vai preenchendo nossos sentidos é seu suor, seu tremor

214
e, sobretudo, sua voz. O que resta da dança de Mantero é
uma imagem acústica. É como se o campo de luz definido no
palco também definisse o campo de cegueira racial, de mútua
cegueira racial, um campo que só o aural consegue romper
– como nas mal-assombradas batidas de fantasmas pela casa,
como nas batidas pelo palco precedendo a peça. Quando eu
assisti à peça em Lisboa, em 1996, a recitação de Mantero
provocou um crescente e agressivo desconforto nos especta-
dores. Suas palavras tornaram-se fonte de agitação e mal-estar.
A palavra “atrozes”, a qual intervém praticamente em todas as
outras do texto, virou alvo da agressão. Enquanto Mantero se-
guia sob o fecho de luz procurando equilibrar-se e contando-
-nos do abismo, da cegueira, da má-vontade, uma espectadora
branca de meia-idade, enfrentou a artista com desaprovação,
gritando: “Artrose! Artrose!”
Na interpelação verbal de Mantero por uma anônima
portuguesa, naquela estranha sessão espírita no Portugal pós-
-colonial, podemos entrever como o campo de invisibilida-
de e surdez racial desdobra-se sobre o palco. Enquanto uma
profere lamentos e conta uma história de dor, a outra zom-
ba e chama de doente o corpo que sofre – acusa-o, de fato,
de não estar apto a performar o que deveria: uma dança. É
aqui onde as fantasias europeias sobre a dança coincidem mais
uma vez com o projeto colonial: o corpo da dançarina, como
o corpo do escravo, só é relevante, produtivo, significativo e
valioso na medida em que ele produz movimento eficiente e
propriamente controlado. O maior crime do escravo é ter um
corpo em dor e vocalizar essa dor de forma direta, inquietan-
te, não-camuflada, não-espetacular. E no entanto, apesar da
condenação do escravo à meia-presença, apesar do campo de
invisibilidade que cobre o corpo do sujeito racializado, apesar
da negação do passado colonialista europeu e do seu presente e
endêmico racismo, as batidas e os lamentos fantasmáticos são
sempre ouvidos por colonizadores brancos entre as paredes de
suas bem vigiadas casas. O lamento espectral sempre chega,

215
desencadeando pois a melancolia branca, aquela ambivalente
subjetividade a pairar entre a perda e a raiva.
Uma pergunta segue sem resposta. Por que Josephine
Baker? Por que, afinal, seu chamado deu-se a ouvir pelo pro-
gramador cultural pós-colonialista português, e por que o
chamado deste por Mantero para que ela encenasse Baker foi
atendido? Se considerarmos o fato de Baker ter sido uma das
poucas mulheres afro-americanas a ter significativamente al-
cançado destaque no campo de visibilidade, representação e
reconhecimento no imaginário europeu do século XX, então
parece termos chegado a um paradoxo. Como referir-se à for-
ça de Baker em termos de uma meia-presença colonizada se
ela parece tão inescapável. Ou como discutir suas performan-
ces em termos de uma prática de cumplicidade com aqueles
contra-atos de resistência operados por corpos menos visíveis
de africanos colonizados? Como falar do uso do movimen-
to resistente e inquietante do espectral melancólico em Baker
quando ela foi tão bem-sucedida, tão presente, tão destacada?
Estas questões tornam-se ainda mais complexas quando leva-
mos em conta que as personagens representadas por Baker em
três dos seus quatro filmes franceses (La Sirène des Tropiques,
1927; Zou Zou, 1934; e Princess Tam Tam, 1935) são justo
representações de outros corpos colonizados africanos não-
-vistos, irrepresentáveis, menos nobres e, de fato, “selvagens”
para o colonizador europeu. Nestes três filmes, Baker não re-
presenta uma afro-americana, mas sim uma martinicana, uma
francesa negra (das Antilhas) e uma “africana”. O corpo afro-
-americano de Baker ocupa o lugar destes outros corpos racia-
lizados, os quais tanto incomodam o lar europeu propriamen-
te asseado, regulado e colonialista. Como suplente da africana
colonizada e da martinicana, Baker emerge como uma meia-
-presença complicada no campo geral da invisibilidade racial,
já que como afro-americana ela poderia ser tomada como uma
africana colonizada.

216
Mas um paradoxo não significa necessariamente um im-
passe, nem uma rendição. A agência inquietante de Baker está
precisamente no seu reservado entendimento do que estava
em jogo no seu sucesso na Europa. Esta consciência pode ser
verificada em todas as páginas de sua autobiografia. E pode ser
melhor verificada, ainda, nos modos como Baker, ao longo de
sua carreira, forneceu voz e transporte a um lamento que nota-
damente situou-a ao lado do lamento do colonizado – direta-
mente influenciada pelos melancólicos contra-atos de resistên-
cia do colonizado. Em todos os seus filmes, as personagens de
Baker invariavelmente aparecem suspensas entre a indomável
espontaneidade e a profunda melancolia. Tal ambivalência no
comportamento de suas personagens foi certamente conferida
a ela por seus diretores, roteiristas e colaboradores franceses.
Mas tendo-lhe sido oferecida, ela a tomou para si – e é cer-
to que ela encarnou plenamente estas personagens com uma
recíproca ambivalência e sabedoria. O que impressiona ver-
dadeiramente nas performances de Baker nestes filmes é que,
apesar da proximidade da câmera, apesar da estrutura fílmica
do comando, apesar da edição e dos rudimentares efeitos espe-
ciais, sua dança nunca foi capturada, e, portanto, nunca pro-
priamente fixada, nem propriamente vista. Seria possível ar-
gumentar que as danças de Baker para filme performam uma
recusa a entrar no campo do visível. É quase como se a câmera
fosse incapacitada, seja de encontrar seu lugar adequado ou de
enquadrar Baker no espaço. Como se os movimentos de Baker
não se permitissem afixar-se, capturar-se e engaiolar-se pelo
olhar maquínico. O que presenciamos, efetivamente, ao assis-
tirmos o final de Princess Tam Tam e sua dança “selvagem” em
um cabaret parisiense, ou as esquetes de Zou Zou no palco de
vaudeville, é a prevalência de uma borrada ausência, composta
de rápidos cortes, estranhas edições e esquisitos movimentos
de câmera. E o que desliza por essa contínua perturbação vi-
sual, o que move através da meia-presença fílmica de Baker, é
uma voz parcialmente desencarnada, clamando pela Martini-

217
ca, pela África, ou pela liberdade. Os franceses adoravam esta
nobre exibição de pesar levada à cabo por uma afro-americana
encenando o que eles acreditavam representar a distintiva nos-
talgia africana e caribenha. Mas o problema que ela coloca
para este encantado público europeu, ou a inquietante som-
bra que seus movimentos lançam em todos os seus filmes, é
o fato de que nem Baker nem o africano colonizado estavam
completa e exatamente ali. Baker tinha plena consciência
do que ela fazia no movente campo da mímica colonial, das
meias-presenças, do colonialismo e da melancolia espectral.
Ela coreografava e dançava não para o olho e sua captura, mas
para outros sentidos – aqueles ativados no inexato campo da
subjetividade melancólica. Sentidos afinados a tudo que “não
pode ser acomodado pela visão, que resiste ser trazido à tona,
nem visto, nem declarado”, para repetirmos a formulação de
Butler sobre a particular fenomenologia da melancolia (Butler,
1997a: 186).
Michael Taussig descreve a dança de Josephine Baker como
“desorganizando a mimesis da mimesis” (Taussig, 1993: 68).
Taussig defende que Baker compreendia perfeitamente o que
estava em jogo para o colonizador na mímica colonial – jus-
to a integridade do colonizador, como corpo e sujeito, cujo
próprio ser depende da bruta apropriação e absoluto apaga-
mento de qualquer voz autônoma e independente ou qual-
quer presença plena e total do corpo colonizado e racializado.
O modo de Baker esquivar-se da pulsão colonialista que in-
formava seus admiradores europeus era precisamente frustrar
qualquer possibilidade dos europeus replicarem, repetirem e
reproduzirem seus movimentos. Quando compareceu a uma
festa na residência do Conde Harry Kessler em Berlim, em
1926, os convidados brancos “imploraram” para ela dançasse.
Conforme reconta o Conde, os convidados logo começaram a
imitar os movimentos de Baker, “aqui e ali, Luli Meiern tam-
bém improvisou alguns movimentos, bastante harmônicos e
deleitáveis; mas com um giro do braço de Josephine Baker,

218
toda aquela graça extinguiu-se, dissolvida no ar feito neblina
da montanha” (In: Taussig, 1993: 69).
Esta compreensão da dança como uma prática inoportuna,
como uma prática que se apresenta essencialmente como an-
tirrepertório, uma prática impossível de ser capturada e retida
por uma certa subjetividade e um certo corpo; esta compre-
ensão do potencial da dança para o inquietante; esta reivindi-
cação de um movimento que não é para ser visto pelo olho;
esta estratégica coreografia do lamento do colonizado como
parcialmente nunca presente; esta performance da meia-pre-
sença da dançarina dentro do campo de invisibilidades que
a racialização e o colonialismo inauguram; esta compreensão
da raça e da dança como invocação – ontológica e epistemo-
lógica – de fantasmas: tudo coalesce no projeto de destruição
das premissas colonialistas da própria dança que Baker efe-
tua. É esta destruição que transforma Mantero e Baker em
cúmplices e parceiras em suas lutas particulares – cada qual a
meia-presença inquietante e desgovernada da outra, no campo
melancólico do pós-colonial europeu.

219
CONCLUSÃO
EXAURIR A DANÇA – PARA ACABAR
COM O PONTO DE FUGA

Se temos tanta dificuldade em pensar uma sobre-


vivência em si do passado, é porque acreditamos
que o passado já não é, que ele deixou de ser.
Confundimos, então, o Ser com o ser-presente
(Deleuze, 1999: 42).

No Capítulo 2, eu discuti como a Orchesographie de Arbe-


au fundiu primeiramente a dança e a escrita em um neologis-
mo. Eu constatei como esta fusão gerou implicações não só
para a significação, mas também para a subjetividade. Eu de-
fendi que no momento em que Arbeau escolheu um verso do
Eclesiastes (“tempo de lamentar & tempo de dançar”) como
epígrafe de sua Orchesographie, a centralidade do espectral nes-
te manual de dança transformou profundamente a função do
conjuntivo “&” na citação bíblica original. Ao invés de separar
o tempo de dançar do tempo de lamentar, este “&” findou
por interligar ontologicamente o tempo da dança e o tempo
do lamento como emblema mesmo da temporalidade daquela
nova tecnologia de telepresença, a coreografia. Fundir dança e
escrita em uma só palavra, como fez Arbeau, correspondeu a
fundir o “tempo de dançar” e o “tempo de lamentar” em uma
só temporalidade – criando, desta forma, um novo modo de
compreender a chegada à presença do sujeito dançante. Tais
operações semânticas e afetivas, ocorrendo no coração da core-
ografia, reafirmam como o vir-a-ser da dança teatral ocidental
esteve sobremaneira preso a um afeto tipicamente moderno: a
percepção pesarosa da temporalidade do presente como uma
incessante e contínua morte do “agora”.
Ao teorizar as consequências para os estudos da dança de
tal investimento no “agora”, Randy Martin faz-nos lembrar
como a crítica da história de Nietzsche procura

articular a experiência da modernidade como uma aten-


ção à perda interminável do presente, que só é possível
quando o que é sentido como “apenas agora” (modernus)
torna-se um referente cultural central. É a cultura de um
continuamente passageiro “agora” que propicia ao passa-
do figurar como compensação da morte iminente daquilo
que é (Martin, 1998: 40).

Neste sentido, a queixa da dança em relação à percepção


de seu ser como constitucionalmente efêmero tornou-se a
sua modernidade – e logo esta queixa passou a desenvolver
características melancólicas. Giorgio Agamben indica acerta-
damente em sua leitura de “Luto e Melancolia”, o ensaio de
1917 de Freud (2006), que

“na melancolia, o objeto não é nem apropriado nem per-


dido, mas as duas coisas acontecem ao mesmo tempo (...),
assim o objeto da intenção melancólica é, contemporane-
amente, real e irreal, incorporado e perdido, afirmado e
negado” (Agamben, 2007: 46, grifo meu).

É assim notável, na melancolia, a intromissão do status am-


bíguo da realidade do objeto perdido como ao mesmo tem-
po presente e ausente. Mas vejamos também a forma como
Agamben caracteriza a melancolia como um projeto, referin-

222
do-se ao “objeto da intenção melancólica”.121 Um projeto de
subjetivação, portanto, estabelecendo a relação entre a moder-
nidade e os modos com que esta negocia a presença e a ausên-
cia. Harvie Ferguson observa como a subjetividade moderna,
“tendo estabelecido a si mesma como melancolia (...) infectou
toda forma de sensualidade e sensorialidade com uma certa
morbidez” (Ferguson, 2000: 134).
A coreografia chega a si como uma tecnologia particular-
mente habilitada a atender ao (e fomentar o) projeto melancóli-
co da modernidade. Seu impulso é fixar a ausência na presença,
ocasionar ao dançarino “reunir-se outra vez” aos já falecidos.122
O advento da coreografia está vinculado à percepção da tem-
poralidade do corpo em movimento como já e desde sempre
sob um feitiço melancólico: quando o cinético torna-se o em-
blema da modernidade, nada mais garante a permanência do
ser.123 Tal percepção sugere para os estudos críticos de dança
que a dança teatral ocidental – na medida em que, na sua
busca por autonomia artística, confinou-se em espaços cres-
centemente abstraídos (a corte, o salão, o teatro, o estúdio) –
deve ser teoricamente percebida não apenas como um projeto
cinético, mas também como um projeto afetivo. Um projeto
afetivo profundamente marcado pela infusão do cinético no
cerne da subjetividade, produzindo seguidamente a queixa
da dança como arte que desaparece, como irremediavelmente
presa à sua própria perda, como nunca estando exatamente ali
no momento fugidio em que visivelmente move-se.
Arbeau, em 1589: “Em relação às danças antigas tudo que
eu posso dizer-te é que a passagem do tempo, a indolência do
homem ou a dificuldade de descrevê-las roubou-nos todo co-
nhecimento sobre elas” (Arbeau, 1966: 15). Jean-Georges No-

121.  Na tradução em inglês do texto de Agamben, por Ronald L. Martinez, originalmente cita-
da por Lepecki, lê-se, mais claramente: “the object of the melancholic project” (1993: 21). (N.T.)
122.  Eu discuto esta dinâmica em meu ensaio “Inscribing Dance” (Lepecki, 2004). [Para
uma recente tradução deste ensaio, em português, ver Lepecki (2017) (N.T.)].
123.  Ver Agamben (2007: 33-47).

223
verre, em 1760: “Por que não sabemos os nomes dos maîtres
de ballets? Porque trabalhos desta natureza duram apenas um
momento e são esquecidos tão rapidamente quanto as impres-
sões que eles produzem” (Noverre, 1968: 1). A modernidade
da dança fundamenta-se nesta percepção insuportável da re-
lação do corpo dançante com a temporalidade. Mas notemos
uma sutileza no lamento da dança e em sua lamentável condi-
ção de estar condenada ao esquecimento no próprio instante
de sua performance. Notemos como, na queixa melancólica,
o que se perde não é apenas o presente da dança. Como mos-
tram as citações de Arbeau e de Noverre, a perda do presente
da dança implica também na perda do seu passado. O primeiro
queixa-se de não conhecermos as danças antigas; o segundo
de não lembrarmos os nomes dos velhos mestres. Nada parece
permanecer nos arquivos da dança. A dança perde tudo. Per-
de sobretudo a si mesma. Eis a maldição da dança no tempo
da modernidade: esquecer demais, nada reter. A dança segue
silenciosa para o futuro apenas para revelar a este como um
vasto passado amnésico. Dentro do campo afetivo e percep-
tivo melancólico da modernidade, a dança não oferece nada,
salvo visões fugazes e morredouras de seu brilho momentâneo
numa sucessão de irrecuperáveis agoras.
A coreografia emerge precisamente para contrariar esta
condição ontológica. A coreografia ativa a escritura no domí-
nio da dança, de modo a garantir que o presente desta ganhe
um passado e, portanto, um futuro. Notemos que, nessa ope-
ração, a coreografia não dispensa o melancólico; na realidade,
ela o reforça, ao manter-se em constante estado de insatisfação
com o seu próprio projeto.
Se o nascimento da coreografia é ontohistoricamente as-
sociado à queixa melancólica sobre a incapacidade da dança
de permanecer, será que esta condição ainda opera hoje? Nos
estudos contemporâneos da dança, uma das mais famosas e
explícitas reiterações da total participação da dança no projeto
melancólico da modernidade pode ser identificada no pará-

224
grafo inicial do livro de Marcia Siegel, At the Vanishing Point
[No Ponto de Fuga]. Ela escreve:

A dança existe como um eterno ponto de fuga. No


momento de sua criação, ela some. Todos os anos de
treinamento de um dançarino no estúdio, todo o plane-
jamento do coreógrafo, os ensaios, a colaboração de de-
signers, compositores e técnicos, a captação de dinheiro
e a reunião de pessoas na criação de um público, tudo
isso é apenas a preparação para um evento que desapare-
ce no próprio ato de sua materialização. Nenhuma outra
arte é tão difícil de ser alcançada, tão impossível de ser
segurada (Siegel, 1972: 1).

Notemos como, nesse parágrafo de Siegel, não é só a per-


formance da dança que é descrita como efêmera. Todo o tra-
balho e todas as preparações que possibilitam o vir-a-ser da
dança são praticamente descritos como ritos fúnebres – a pre-
paração para um evento “que desaparece no próprio ato de sua
materialização”. Se uma tal descrição é empregada no trabalho
de “designers, compositores e técnicos”, pois imagine as im-
plicações para o trabalho do dançarino. Sob a ótica de Siegel,
os anos de treinamento do dançarino, de condicionamento do
seu corpo-mente para o momento fugaz da dança, não pas-
sam da aceitação de uma subjetividade sacrificial, da criação
de um modo particular de ser-no-mundo que resultaria em
nada mais que uma vida inteira ensaiando e performando uma
eterna sucessão de enterros vivos. É como se o fato de existir
no ponto de fuga transformasse anos de treinamento, apren-
dizado, criação e dança em anos de contínuo luto antecipado
e reiterada melancolia retroativa. Sob tais condições, o dança-
rino é sempre-já uma presença ausente no campo do olhar, em
algum lugar entre o corpo e o fantasma, um lampejo suspenso
entre passado e futuro.
Siegel propõe que a impossibilidade da dança ser segurada,
sua incapacidade de adquirir uma temporalidade e uma den-

225
sidade duráveis, é o que impede a sua inclusão na economia:
“precisamente porque ela não se entrega a qualquer forma de
reprodução, a dança foi a única das artes que não foi embalada
em pacotes portáteis e distribuída a um mercado massificado”
(1972: 5). Ela conclui: a dança não está “pronta para a recicla-
gem” (Siegel, 1972: 5). Eu argumentaria, por outro lado, que
não se entregar à reprodução não livra nada, nem ninguém,
das forças hegemônicas e das violências ontológicas próprias
ao representacional, isto é, à economia da representação, ao
que Derrida denominou “economimesis” (Derrida, 1981). Pois
é precisamente a autofiguração da dança como forma artística
lamentavelmente efêmera, isto é, a pulsão melancólica em seu
próprio cerne, o que acaba por gerar sistemas e performances
de alta reprodutibilidade: técnicas estritas, batizadas com os
nomes de velhos mestres mortos e aplicadas em corpos cui-
dadosamente selecionados; padronização contínua de corpos
através da repetição infinita de exercícios; dietas; cirurgias;
perpetuação de sistemas de exclusão racial em nome de uma
visibilidade “adequada”; uma erupção endêmica de males de
arquivos; o alastramento internacional e transcultural de balés
nacionais a executar passos do século XIX como forma de dan-
çar/demonstrar seus status de nações modernas (particular-
mente nos países “em desenvolvimento”, aquelas ex-colônias
formais do Ocidente, onde a companhia de dança nacional
converte-se em signo da capacidade do estado de superar o
“atraso” de suas emergências como estados-nações); o mer-
chandising de marcas e nomes; o franchising; os fetiches. Toda
uma economia da dança e de seus suplementos, energizada
pelo lamento melancólico do advogado Capriol, possibilita
precisamente à dança e às danças serem constantemente re-
cicladas, reproduzidas, empacotadas, distribuídas, institucio-
nalizadas, vendidas. A descrição feita por Siegel da existência
da dança no ponto de fuga ironicamente a situa justo de volta
no centro do sistema psicofilosófico que autoriza a reprodu-
tibilidade da representação no centro (ontoteológico) do vi-

226
sível. Pois, como expus no Capítulo 4, é esta invenção óptica
particularmente moderna – o ponto de fuga – que sustenta a
representação em perspectiva e sua política de figuração, pre-
sença e visibilidade. Existir no ponto de fuga significa nunca
ser figurado dentro da representação em perspectiva, é existir
no ponto abstrato, matemático, de uma singularidade virtual.
Mas se o ponto de fuga é em si mesmo uma invisibilidade, ele
é de tal modo uma invisibilidade que assegura a relação entre
a representação escópica e as ideologias de visibilidade e sub-
jetivação da modernidade.124 Existir no ponto de fuga é justa-
mente existir no cerne daquilo que garante a própria possibili-
dade da representação, é existir no cerne do próprio poder da
representação. Neste sentido, o local atribuído ao ser da dança
pela modernidade melancólica torna-se um articulador trans-
cendental da possibilidade de visibilidade representacional,
sempre vinculada à figuração de estabilidades ontoteológicas
e ontopolíticas, conforme demonstrado por Erwin Panofsky
(1997) e Allen Weiss (1995).
As observações de Siegel no começo da década de 1970 so-
bre a relação ontológica da dança com a efemeridade, e sobre a
complicada relação da dança com a economia, antecipam uma
influente proposta para a ontologia da performance publicada
duas décadas depois. Há impressionantes similaridades entre
a descrição de Siegel da existência da dança no ponto de fuga
e a descrição da ontologia da performance conforme articu-
lada por Peggy Phelan em seu celebrado ensaio “A Ontologia
da Performance: Representação sem Reprodução” (Phelan,
1993). Interessa-me explorar estas semelhanças, não para esta-
belecer supostas linhas de influência direta, que podem haver
ou não, mas para destacar como a ontologia da performance
de Phelan (consciente ou inconscientemente) dialoga estrei-
tamente com a formação ontohistórica da coreografia como
emblema cinético do projeto moderno de melancolia.

124.  Ver Capítulo 4.

227
As linhas iniciais do ensaio de Phelan são bastante conheci-
das: “A única vida da performance dá-se no presente”. Phelan
conclui o parágrafo inicial observando: “O ser da performan-
ce, tal como a ontologia da subjetividade que aqui é proposta,
atinge-se por via da desaparição” (Phelan, 1998: 171, grifo
meu). De uma forma similar a Siegel, Phelan observa que uma
tal ontologia, condicionada à desaparição, desafia a economia:
“sem uma cópia, a performance ao vivo mergulha na visibili-
dade – num presente maniacamente carregado – e desapare-
ce na memória, no reino da invisibilidade e do inconsciente,
onde escapa à regulamentação e ao controlo” (1998: 173),
estorvando assim “os maquinismos suaves da representação
reprodutiva necessários à circulação do capital” (173).
A estruturação teórica de Phelan é informada pela psica-
nálise e sua pesquisa propõe uma importante e singular lei-
tura feminista de Freud e Lacan. Quando Phelan afirma que
a performance desaparece na memória, é para indicar que ela
entra no domínio atemporal e desregulado do inconsciente.
Mas é justo nesse momento do “mergulho” da performance
que precisamos identificar a topografia precisa desse lugar para
o qual ela “desaparece”. Aqui, surgem alguns problemas a res-
peito do projeto político desta desaparição – particularmente
dada a sua proximidade ao, e reificação do, projeto melancó-
lico da subjetivação moderna e coreográfica. A depender de
onde nos posicionamos em relação ao desenvolvimento do
trabalho de Freud, o inconsciente não escapa de maneira al-
guma da regulação. É precisamente Lacan quem nos lembra
que, para a psicanálise criticamente avaliar a estruturação da
ordem simbólica em torno do nome do Pai, entendido como
o “não” do Pai, Freud foi obrigado a desenvolver sua segunda
“topografia” do inconsciente, articulada em 1923, em O Ego e
o Id. Neste livro, Freud sofistica sua noção de inconsciente. O
inconsciente deixa de ser apenas um lugar para os recalques e
passa a abarcar mais claramente operações do ego e do supere-
go – particularmente aquelas ligadas às “proibições dos pais”

228
(Laplanche e Pontalis, 1973: 453). Na segunda topografia de
Freud o inconsciente carrega consigo funções altamente re-
gulatórias. Assim, um mergulho no inconsciente não implica
necessariamente uma escapada da regulação.
Além disso, se a única vida da performance dá-se no pre-
sente, deveríamos lembrar que o inconsciente freudiano (em
ambas as topografias, pré e pós-1923) caracteriza-se por sua
radical atemporalidade – o inconsciente pertence inteiramen-
te não “ao presente”, mas ao seu próprio presente. Se o incons-
ciente é estruturado como linguagem, para usarmos a famosa
formulação de Lacan, então trata-se de uma linguagem sem
flexão verbal. Freud: “Os processos do sistema Ics são atempo-
rais, isto é, não são ordenados temporalmente, não são altera-
dos pela passagem do tempo, não têm relação nenhuma com
o tempo” (Freud, 2010b: 93-4). A intrusão desta particular
atemporalidade do inconsciente confere um duplo sentido à
sentença inicial de Phelan em seu ensaio. Se a única vida da
performance ocorre no presente, seu mergulho no inconscien-
te é o que garante seu persistente (ainda que atemporal) sis-
tema de presença, pois o inconsciente revela apenas o tempo
presente atemporal da memória. Esta é uma das razões pelas
quais o melancólico deve sempre pensar e falar do passado:
lembrar, como total rendição ao passado, é um modo muito
eficaz de retirar-se à passagem do tempo.
Desaparecer para a memória é o primeiro passo para per-
manecer no presente. O melancólico compreende isso e mer-
gulha na memória para preservar o objeto perdido dentro do
sistema de presença dessa memória (ainda que tal preservação
sofra as operações do inconsciente – deslocamento, recalque,
condensação e sublimação). É neste sentido que a ontologia
da performance de Phelan partilha com a ontologia da dan-
ça de um abrangedor afeto melancólico em relação ao evento-
-dança. Na história da dança, este afeto segue não-teorizado,
apesar da própria “Ontologia da Performance” de Phelan dar
margem para uma teorização desta natureza (Phelan, 1993).

229
Eu proponho o seguinte, como uma das implicações desta te-
orização: acabar com a modernidade da coreografia, acabar
com o projeto afetivo que vincula o coreográfico ao melancó-
lico, seria acabar com a temporalidade que opera no centro do
ponto de fuga – a temporalidade que absorve o presente no
imediato “agora”.
Como vimos no capítulo anterior, acabar com a melanco-
lia, acabar com a existência no ponto de fuga, levanta algumas
dificuldades éticas. Como propôs minha leitura da convoca-
ção de Josephine Baker por Vera Mantero, se a melancolia é
uma condição da modernidade, se ela é um dos principais
projetos de subjetivação da modernidade, devemos manter em
mente que a teoria crítica de raça assinala que, na modernida-
de, é através da melancolia que os afetos são trocados no campo
racista e racializado. Esta troca indica um potencial producen-
te no acolhimento da melancolia como subjetividade e como
projeto político. Pois, se a melancolia conserva subjetividades
particularmente mórbidas e suas constitutivas cegueiras rela-
cionais, ela também é o afeto que possibilita uma ética da re-
cordação e uma troca de afetos depois do colonialismo. Mais
além, a teoria queer e os estudos críticos de raça vêm consis-
tentemente apontando como certos modos de esquecimento
trazem consigo privilégios e violências. José Muñoz, em parti-
cular, defende pungentemente a necessidade de não esquecer-
mos aqueles que já não estão entre nós, os que sucumbiram
à violência esmagadora, à ignorância virulenta e à negligência
injuriosa (Muñoz, 1999). Neste sentido, a posição melancóli-
ca, ou, enfatizando o termo de Agamben, a intenção melancó-
lica, é inexoravelmente ligada a subjetividades resistentes, ao
que Julia Kristeva chamou de “lucidez suprema, metafísica” da
depressão (Kristeva, 1989: 12).
Talvez, portanto, a questão para uma ontologia política da
coreografia, e para a temporalidade da dança que se recusa a
viver presa ao ponto de fuga, não deva ser articulada como
uma escolha de lados entre lembrar e esquecer. Talvez a ques-

230
tão deva ser posta em termos de como saber desligar o “não-
-esquecimento” das implicações mórbidas que a melancolia
carrega consigo. Esta é uma questão que faz fundir o afetivo
e o teórico, o político e o coreográfico. Todos esses elementos
devem trabalhar juntos para produzir outras possibilidades de
experimentar e pensar a temporalidade da dança que não a
condene necessariamente a uma fatal desaparição. Isto signifi-
caria seguir o conselho de Deleuze na epígrafe deste capítulo
e não confundir o Ser com o ser-presente, desaparição com
invisibilidade, passado com memória.
Aqui, noções de temporalidade propostas por modelos não-
-psicanalíticos podem ser úteis. Por exemplo: a particular tem-
poralidade da memória e da percepção avançada por Henri Ber-
gson em Matéria e Memória. As noções de Bergson possibilitam
uma reconfiguração do que constitui o passado e o que consti-
tui o lembrar. Em termos simples, para Bergson, “o passado é
por essência o que não atua mais” (Bergson, 1999: 72, grifo no
original). Para que esta afirmativa faça sentido, é preciso desligar
o “ato” do entendimento que o postula como a visibilidade ime-
diata de uma ação no momento de sua performance. Para Ber-
gson, qualquer ato, desde que continue gerando efeitos e afetos,
permanece no presente. Desde que haja um ato, há devir; para
Bergson, tudo que é presente é devir, só o passado é. Em outras
palavras, “o passado é a ontologia pura” (Deleuze, 1999: 43).
No capítulo 3, eu discuti como Paul Schilder substituiu a noção
singular de corpo, do corpo como unidade estável preso pela
superfície da pele, do corpo como espacial e temporalmente
pertencente ao único lugar-instante de sua aparição, pela noção
centrífuga do corpo-imagem como uma multiplicidade desdo-
brável alastrando-se pelo tempo e espaço. Com Bergson, esta-
mos diante de uma operação análoga em termos da memória
e do tempo: qualquer ação que continue ativa em seus efeitos
(não importando quando a ação tomou lugar) aí encontramos e
seguimos uma linha do nosso presente. Se a pura passividade do
passado é o seu encontro com a ontologia, então qualquer coisa

231
que mexe e faz-nos mexer (uma força, um afeto, uma memória,
uma imagem), seja visível ou invisível, perto ou longe, física ou
metafísica, linguística ou visceral, constitui um presente, enten-
dido como um devir. Consequência direta: uma abertura sem
precedentes no entendimento restrito do “presente” imputado a
ele pela noção melancólica do tempo como a morte irrecuperá-
vel de únicos e irreversíveis instantes operados numa sucessão de
“agoras”.125 Porque, conforme explica Deleuze sobre a compre-
ensão do tempo em Bergson, “uma sucessão de instantes não faz
o tempo; ela também o desfaz”, porque “o tempo só se constitui
na síntese originária que incide sobre a repetição dos instantes”,
e porque “esta síntese contrai uns nos outros os instantes su-
cessivos independentes, [constituindo] desse modo, o presente
vivido, o presente vivo”, o presente abre-se para longe do seu
investimento no agora (Deleuze, 2006: 75).
A visão melancólica da dança sobre sua temporalidade (e a
temporalidade em geral) como alinhada à irrecuperável morte
do “agora” deixou a dança praticamente sem presente. Dei-
xou-a certamente sem passado (sem memória) e também sem
futuro (sem a ativação da memória para a futuridade da dan-
ça). O que as noções de Bergson sobre temporalidade, matéria
e memória propõem são modos de ser no presente capazes de
escapar à melancolia desse fugaz “agora”. Com Bergson, o pre-
sente não é mais equivalente ao agora. O presente espalha-se
em atividade, afetos e efeitos, para fora do momento do agora.
Como explica Deleuze:

O passado e o futuro não designam instantes, distintos de


um instante supostamente presente, mas as dimensões do
próprio presente, na medida em que ele contrai os instan-

125.  Phelan observa: “é apenas muito raramente que o ‘agora’ ao qual a performance dirige as
suas mais profundas questões se vê valorizado na nossa cultura. (E este é o motivo pelo qual
o ‘agora’ se vê suplementado pela câmara do documentarista, pelo arquivo videográfico)”
(1998: 171). Mas, se seguirmos Bergson, esta questão deve ser revertida, pois o “agora” – se
for de fato um agora temporal – não poderia jamais ser reduzido a um instante que passa. O
instante, como demonstra Bergson, é uma quantidade, enquanto o tempo é uma qualidade.

232
tes. O presente não tem de sair de si para ir do passado ao
futuro (Deleuze, 2006: 75-6).

Expansão do presente, portanto – mas também sua multi-


plicação, graças à sua sobrevida. Deleuze identifica em Berg-
son o fim do artigo definido para qualificar “presente”, graças
à sua sobrevida. A sobrevida implica e revela não mais o pre-
sente, mas sim presentes: “Dois presentes sucessivos podem ser
contemporâneos de um terceiro” (Deleuze, 2006: 81). Este
outro presente, estes outros presentes contemporâneos podem
ser mais ou menos estendidos “pelo número de instantes que
[cada um] contrai” (Deleuze, 2006: 81).
Uma questão de contração, portanto, mas também de iden-
tificar cada corpo, cada modo de subjetivação como modo de
contrair temporalidade, de criar e multiplicar sínteses, isto
é, de criar, multiplicar e identificar o viver como fundamen-
talmente constituído por uma multiplicidade de presentes,
estendendo-se para passado e futuro de diferentes formas,
conforme diferentes vetores, intensidades, afetos. Não é por
acaso que uma tal temporalidade apresente um componente
anticinético; ou pelo menos uma crítica imanente do ser-para-
-o-movimento que tem sido o traço conceitual central deste
livro, em sua relação com o projeto melancólico-coreográfico
da modernidade. Pois, para aceitar e acessar fundamentalmen-
te a multiplicação de presentes em qualquer modo de ser-no-
-mundo, um certo estar-parado faz-se necessário:

Um organismo dispõe de uma duração de presente, de di-


versas durações de presente, segundo o alcance natural de
contração de suas almas contemplativas. Quer dizer que a
fadiga pertence realmente à contemplação. Diz-se que se
fatiga aquele que nada faz (Deleuze, 2006: 81).

O que acontece com as noções expandidas de presente de


Bergson e Deleuze quando as aplicamos à temporalidade da

233
dança no ponto de fuga, entendida esta como vinculada à no-
ção do presente que desaparece quando é performado? É a
própria noção do presente como uma sucessão de eternamente
perdidos “agoras” que não pode mais ser sustentada. Pois o
presente pode ser achado em qualquer ato-parado. A ativação de
tudo que não deve supostamente estar lá quando sua tempora-
lidade é imputada – a expansão dos presentes no passado e fu-
turo, suas coexistências – indica a possibilidade de um recor-
dar ético necessário a uma política dos mortos, no sentido de
dar acesso à motilidade contínua de presenças ausentes. Isto
aponta para a possibilidade de tratarmos de um fantasmático
que dispensa as forças mórbidas da melancolia e propõe uma
alegria na beira do abismo temporal (tal como a que Mante-
ro dança quando convoca Josephine Baker). Os expandidos
e sempre multiplicáveis presentes nas danças e performances,
atuando ao longo e através do tempo e do espaço, acessados
e revelados graças às fadigas e contemplações, ativariam sen-
sações, percepções e memórias, como afetos excitáveis, presos
não ao que aconteceu e desapareceu no “tempo perdido”, mas
a uma intimidade com essa coisa qualquer que insiste em con-
tinuar acontecendo.
A intimidade é o afeto teórico e fenomenológico fecun-
do de uma temporalidade que escapa ao dançar no ponto de
fuga, e que, ainda assim, é capaz de da conta de uma ética do
recordar. A este afeto da temporalidade, Bergson deu nome de
“duração”, o qual “define-se menos pela sucessão do que pela
coexistência” (Deleuze, 1999: 46). Ligado a temporalidades
situadas, esta coexistência possibilitaria desenvolvermos “uma
teoria da contingência dos ambientes cronotópicos, ou tem-
po-espaço” que permitiria aos “estudos da dança [rastrearem
o modo] como unidades de temporalidade circulam numa
mesma performance” (Martin, 1998: 209). Rastrear a coexis-
tência de múltiplas temporalidades dentro da temporalidade
da dança, identificar múltiplos presentes na performance de
dança, expandir a noção do presente para além de seu des-

234
tino melancólico, para além de sua captura no microscópio
do agora, rumo à extensão do presente ao longo de diversos
atos-parados, revelar a intimidade da duração – são todos mo-
vimentos teóricos e políticos que produzem e propõem afetos
alternativos, através dos quais os estudos da dança podem ex-
trair a si mesmos da armadilha melancólica no ponto de fuga.

235
BIBLIOGRAFIA

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do


Esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio
de Janeiro: Zahar, 1985.

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cul-


tura ocidental. Tradução de Selvino José Assmann. Belo Hori-
zonte: Editora UFMG, 2007.

ARBEAU, Thoinot. Orchesography: A Treatise in the Form of


a Dialogue Whereby All Manner of Persons May Easily Acquire
and Practice the Honourable Exercise of Dancing. New York:
Dance Horizons, 1966.

ALTHUSSER, Louis. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de


Estado (Notas para uma pesquisa)” In: Sobre a Reprodução.
Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2008.

ARIÈS, Philippe. Western Attitudes toward Death: From the


Middle Ages to the Present. Baltimore, MD: Johns Hopkins
University Press, 1974.
ARIÈS, Philippe. L’Homme devant la mort. Paris: Éditions du
Soleil, 1977.

ARIÈS, Philippe. The Hour of Our Death. New York: Vintage


Books, 1982.

AUSTIN, John Langshaw. Quando Dizer É Fazer. Tradução


de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Mé-
dicas, 1990.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. In: BACHE-


LARD, Gaston, 1884-1962. Coleção Os Pensadores. Seleção
de textos de José Américo Motta Pessanha; Traduções de Jo-
aquim José Moura Ramos et al.. São Paulo: Abril Cultural,
1978.

BADIOU, Alain. Ethics: An Essay on the Understanding of Evil.


London: Verso, 2001.
BANES, Sally. Terpsichore in Sneakers: Post-Modern Dance.
Middletown, Conn.: Wesleyan University Press, 1987.

BANES, Sally. “Terpsichore Combat Continued” In: The Dra-


ma Review, 33, 4 (Winter), pp. 17-18, 1989.

BANES, Sally. Greenwich Village 1963: Avant-Garde Perfor-


mance and the Effervecent Body. Durham, NC: Duke Univer-
sity Press, 1993.

BANES, Sally. Democracy’s Body: Judson Dance Theater, 1962-


1964. Durham, NC: Duke University Press, 1995.

BANES, Sally e BARYSHNIKOV. Reinventing Dance in the


1960s: Everything Was Possible. Madison, Wisc.: University of
Wisconsin Press, 2003.

238
BANES, Sally e MANNING, Susan. “Terpsichore in Com-
bat Boots” In: The Drama Review, 33, 1 (Spring), pp. 13-16,
1989.

BARKER, Francis. The Tremulous Private Body: Essays on


Subjection. Ann Arbor, Mich.: University of Michigan Press,
1995.

BARTHES, Roland. The Responsibility of Forms: Critical Essays


on Music, Art, and Representation. New York: Hill & Wang,
1985.

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. Tradução: Mário


Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BARTHES, Roland. Escritos Sobre Teatro. Tradução: Mário


Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

BEL, Jérôme. “I Am the (W)Hole between Their Two Apart-


ments” In: Ballet International / Tanz Actuell Yearbook, pp.
36-37, 1999.

BENJAMIN, Walter. “On Language as Such and on the


Language of Man” In: Reflections, pp. 314-332. New York:
Schocken Books, 1986a.

BENJAMIN, Walter. “Paris, Capital of the Nineteenth Cen-


tury” In: Reflections, pp. 146-162. New York: Schocken Books,
1986b.

BENJAMIN, Walter. “Painting and the Graphic Arts” In:


JENNINGS, M. (org.) Walter Benjamin: Selected Writings,
1913-1926, p. 82. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of
Harvard University Press, 1996.

239
BENJAMIN, Walter. The Arcades Project. Cambridge, Mass.:
The Belknap Press of Harvard University Press, 1999.

BERLINER, Brett. Ambivalent Desire: The Exotic Black Other


in Jazz-Age France. Amherst, Mass.: University of Massachu-
setts Press, 2002.

BESSIRE, Mark (org.). William Pope.L: The Friendliest Black


Artist in America. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002.

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Tradução de Myriam


Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçal-
ves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

BOIS, Yve-Alain e KRAUSS, Rosalind. Formless: A User’s


Guide. New York: Zone Books, 1997.

BORER, Alain e BEUYS, Joseph. The Essential Joseph Beuys.


Londres: Thames & Hudson, 1996.

BOURDIEU, Pierre. The Political Ontology of Martin Hei-


degger. Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1991.

BRANDSTETTER, G., VÖLCKERS, B., MAU, B., LEP-


ECKI, A. Remembering the Body. Ostfildern-Ruit: Hatje
Cantz, 2000.

BRENNAN, Teresa. Exhausting Modernity: Grounds for a New


Economy. London: Routledge, 2000.

BROWNING, Barbara. Infectious Rhythm: Metaphors of Con-


tagion and the Spread of African Culture. New York: Routledge,
1998.

240
BRUGGEN, Coosje van. Bruce Nauman. New York: Rizzoli,
1988.

BURT, Ramsey. Alien Bodies: Representations of Modernity,


‘Race’ and Nation in Early Modern Dance. London: Routledge,
1998.

BURT, Ramsey. “Memory, Repetition, and Critical Interven-


tion: The Politics of Historical Reference in Recent European
Dance Performance” In: Performance Research, 8, 2 (June),
pp. 34-41, 2003.

BURTON, Robert. A anatomia da melancholia. Tradução de


Guilherme Gontijo Flores. Curitiba: Editora UFPR, 2011.

BUTLER, Judith. The Psychic Life of Power: Theories in Subjec-


tion. Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1997a.

BUTLER, Judith. Excitable Speech: A Politics of the Performa-


tive. New York: Routledge, 1997b.

BUTLER, Judith. “Corpos que Pesam”. Tradução de Tomaz


Tadeu da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo
Educado: Pedagogias da Sexualidade, Belo Horizonte: Autênti-
ca, 2000.

CARR, Cynthia. “In The Discomfort Zone” In: BESSIRE,


Mark (org.). William Pope.L: The Friendliest Black Artist in
America, pp. 48-53. Cambridge, Mass.: MIT Press, 2002.

CARR, David. Time, Narrative and History. Bloomington,


Ind.: Indiana University Press, 1986.

CARTER, Paul. The Lie of the Land. Boston, Mass.: Faber &
Faber, 1996.

241
CHENG, Anne Anlin. The Melancholy of Race. Oxford: Ox-
ford University Press, 2001.

CONDE-SALAZAR, Jaime. “On the Ground” In: Ballet In-


ternational, October, 60-63, 2002.

COPELAND, Roger. e COHEN, Marshall. (eds.). What is


Dance? Oxford: Oxford University Press, 1983.

CORBIN, Alain. The Foul and the Fragrant: Odor and the
French Social Imagination. Cambridge, Mass.: Harvard Uni-
versity Press, 1986.

CRIMP, Douglas e LAWLER, Louise. On the Museum’s Ruins.


Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993.

CROSS, Susan. Bruce Nauman: Theaters of Experience. New


York: Guggenheim Museum Publications, 2003.

COURTINE, Jean-François. “Voice of Consciousness and


Call of Being” In: CADAVA, E. CONNOR, P e NANCY,
J-L. (eds.) Who Comes After the Subject?, pp. 79-93. London:
Routledge, 1991.

CUNNINGHAM, Merce. “Space, Time, and Dance” In:


HARRIS, M. (ed.) Merce Cunningham: Fifty Years. New York:
Aperture, 1997.

DEBORD, Guy. The Society of the Spectacle. New York: Zone


Books, 1994.

DELANTY, Gerard. Modernity and Postmodernity: Knowl-


edge, Power and the Self. London: Sage, 2000.

242
DELEUZE, Gilles. Conversações 1972-1990. Tradução de Pe-
ter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Or-


landi. São Paulo: Editora 34, 1999.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz B.


L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart.


São Paulo: Editora 34, 2008.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. What Is Philosophy?


New York: Columbia University Press, 1994.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs, Vol. 4.


Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 2007.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Tradu-


ção de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010

DERRIDA, Jacques. “Economimesis” In: Diacritics, 11, pp.


2-25, 1981.

DERRIDA, Jacques. The Truth in Painting. Chicago: Univer-


sity of Chicago Press, 1987.

DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Tradução de Joa-


quim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas, SP:
Papirus, 1991.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o


trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria
Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

243
DERRIDA, Jacques. “Choreographies” In: GOELLNER,
E.W. e MURPHY, J.S. (eds.) Bodies of the Text, New Bruns-
wick, NJ: Rutgers University Press, 1995.

DERRIDA, Jacques. A Escritura e A Diferença. Tradução de


Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva,
2002.

DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da au-


toridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2010.

DEXTER, Emma. Bruce Nauman: Raw Materials. New York:


Abrams, 2005.

DIAMOND, Elin. Unmaking Mimesis. London: Routledge,


1997.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Phasmes: Essais sur l’Apparition.


Paris: Les Éditions de Minuit, 1998.

DUPRÉ, Louis. Passage to Modernity: an Essay in the Herme-


neutics of Nature and Culture. New Haven, Conn.: Yale Uni-
versity Press, 1993.

ENG, David; HAN, Shinhee. “A Dialogue on Racial Melan-


cholia” In: ENG, David; KAZANJIAN, David (eds.). Loss:
The Politics of Mourning. Berkeley, CA: University of Califor-
nia Press, 2003.

FALVEY, D. “Patron Sues over Show’s ‘Obscenity’”, Irish


Times, 5.

FANON, Frantz. Black Skin, White Masks. New York: Grove


Press, 1967.

244
FELDMAN, Allen. “From Desert Storm to Rodney King via
Ex-Yugoslavia: On Cultural Anesthesia” In: SEREMETAKIS,
Nadia C. (ed.) The Senses Still: Perception and Memory as Ma-
terial Culture in Modernity. Chicago: University of Chicago
Press, 1994.

FERGUSON, Harvie. Modernity and Subjectivity: Body, Soul,


Spirit. Charlottesville, VA: University of Virginia Press, 2000.

FERNANDES, Ciane. Pina Bausch and The Wuppertal Dance


Theater: the Aesthetics of Repetition and Transformation. New
York: P. Lang, 2002.

FEUILLET, Raoul-Auger. Chorégraphie, ou l’art de décrire la


danse. New York: Broude Bros., 1968.

FOSTER, Susan Leigh. Choreography and Narrative: Ballet’s


Staging of Story and Desire. Bloomington, Ind.: Indiana Uni-
versity Press, 1996.

FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, Genealogy, History” In:


BOUCHARD, D. F. (ed.) Language, Counter-Memory, Practi-
ce. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1977.

FOUCAULT, Michel. Ethics: Subjectivity and Truth. New


York: The New Press, 1997.

FOUCAULT, Michel. “Tecnologias de si, 1982”. Tradução de


Andre Degenszajn. In: Revista Verve, n. 6, pp. 321-360, São
Paulo, PUC-SP: 2004.

FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?” In: Estética: lite-


ratura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos,
Vol. 3, Trad. Inês Autran Dourado Barbosa, pp. 264-298. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

245
FOUCAULT, Michel. “Sujeito e Poder”. In: DREYFUS, H;
& RABINOW, P.. Michel Foucault, uma trajetória filosófica
para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FRANKO, Mark. The Dancing Body in Renaissance Choreogra-


phy. Birmingham, AL.: Summa Publications, 1986.

FRANKO, Mark. Body as Text, Ideologies of the Baroque Body.


Oxford: Oxford University Press, 1993.

FRANKO, Mark. Dancing Modernism / Performing Politics.


Bloomington, In.: Indiana University Press, 1995.

FRANKO, Mark. “Figural Inversions of Louis XIV’s Dancing


Body” In: FRANKO, M.; RICHARDS, A. (eds.) Acting on the
Past. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press, 2000.

FRANKO, Mark. The Work of Dance: Labor, Movement, and


Identity in the 1930s. Middletown, Conn.: Wesleyan Univer-
sity Press, 2002.

FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia”. In: FREUD, Sig-


mund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Obras Psico-
lógicas de Sigmund Freud. (Vol. 2, pp. 99-122). Tradução de
Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

FREUD, Sigmund. “O Inquitante”. In: FREUD, Sigmund.


Obras Completas, Volume 14. Tradução de Paulo César Lima
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a.

FREUD, Sigmund. “O Inconsciente (1915)”. In: FREUD,


Sigmund. Obras Completas, Volume 12. Tradução de Pau-
lo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2010b.

246
GARAFOLA, Lynn. (ed.) Rethinking the Sylph: New Perspec-
tives on the Romantic Ballet. Hanover, NH.: University Press
of New England, 1997.

GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água


Editores, 1997

GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life.


New York: Doubleday, 1959.

GOLDEN, Thelma. (ed.) Black Male: Representations of Mac-


ulinity in Contemporary American Art. New York: Whitney
Museum of American Art, 1994.

GORDON, Avery. Ghostly Matters: Haunting and the Socio-


logical Imagination. Minneapolis, Minn.: University of Min-
nesota Press, 1997.

GRAHAM, D.; de BRUYN, E. “Sound is Material” In: Grey


Room, 17, pp. 108-117, 2004.

GROSZ, Elizabeth. Volatile Bodies: Toward a Corporeal Femi-


nism. Bloomington, In.: Indiana University Press, 1994.

HABERMAS, Jürgen. “Modernity – An Incomplete Project”


In: HALL, Stuart. (ed.) The Anti-Aesthetic: Essays on Postmod-
ern Culture. New York: The New Press, 1998.

HALL, Stuart. “The After Life of Frantz Fanon: Why Fanon?


Why Now? Why Black Skin White Masks?” In: READ, Alan.
The Fact of Blackness. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996.

HEATHFIELD, Adrian; GLENDINNING, Hugo. Live: Art


and Performance. New York: Routledge, 2004.

247
HEIDEGGER, Martin. Introduction to Metaphysics. New Ha-
ven, Conn.: Yale University Press, 1987.

HEIDEGGER, Martin. Basic Writings. San Francisco, Calif.:


Harper & Collins, 1993.

HEIDEGGER, Martin. Being and Time: A Translation of Sein


und Zeit. Albany, NY.: SUNY Press, 1996.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo, Parte I. Tradução de


Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Editora Voz-
es, 2005.

HINTIKKA, Jaakko. “On Wittgenstein’s Solipsism” In: Mind,


67, pp. 80-91, 1958.

HOGHE, Raimund. Pina Bausch: Histoires de Théâtre Dansé.


Paris: L’Arche, 1987.

HOLLAND, K. “Action against Dance Festival Fails” Irish


Times, 34, 2004.

HOLLIER, Denis. Against Architecture: The Writings of Georg-


es Bataille. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1992.

HUTCHINSON, Ann. Labanotation. New York: Theatre


Arts Books, 1970.

JAMESON, Frederic. A Singular Modernity: Essay on the On-


tology of the Present. New York: Verso, 2002.

JONES, Amelia. Body Art / Performing the Subject. Minneapo-


lis, Minn.: University of Minnesota Press, 1998.

248
JOWITT, Deborah. Time and the Dancing Image. Berkeley,
Calif.: University of California Press, 1988.

KAPROW, Allan; KELLEY, Jeff. Essays on the Blurring of Art


and Life. Berkeley, Calif.: University of California Press, 2003.

KISSELGOFF, Anna. “Partial to Balanchine, and a Loto f


Built-In Down Time”, The New York Times, E6, 2000.

KRAUSS, Rosalind. Passages in Modern Sculpture. Cambridge,


Mass.: MIT Press, 1981.

KRAYNAK, Janet. Please Pay Attention Please: Bruce Nauman’s


Words: Writings and Interviews. Cambridge, Mass.: MIT Press,
2003.

KRELL, D.F. “The Perfect Future: A Note on Heidegger and


Derrida” In: SALLIS, John. Deconstruction and Philosophy:
The Texts of Jacques Derrida. Chicago: University of Chicago
Press, 1988.

KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. Tradução


de Carlota Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos


Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi-
tor, 1988.

LAPLANCHE, J; PONTALIS, J-B. The Language of Psychoa-


nalysis. New York: W.W. Norton, 1973.

LAURENTI, Jean-Noël. “Feuillet’s Thinking” In: LOUPPE,


Laurence. Traces of Dance: Drawings and Notations of Choreog-
raphers. Paris: Editions Dis Voir, 1994.

249
LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Cambridge,
Mass.: Blackwell, 1991.

LEPECKI, André. “Still: On the Vibratile Microscopy of


Dance” In: BRANDSTETTER, G., VÖLCKERS, B., MAU,
B., LEPECKI, A. Remembering the Body. Ostfildern-Ruit:
Hatje Cantz, 2000.

LEPECKI, André. Of the Presence of the Body: Essays on Dance


and Performance Theory. Middletown, Conn.: Wesleyan Uni-
versity Press, 2004.

LEPECKI, André. “Inscrever a Dança”. Tradução comentada


de Sérgio Andrade e Lidia Larangeira. In: Revista Vazantes,
n.1, 2017.

LE ROY, Xavier. “Self-Interview 27.11.2000” In: KNOLL,


K.; MALZACHER, F. (eds.) True Truth About the Nearly Real.
Frankfurt: Künstlerhaus Mousonturm, pp. 45-56, 2002.

LE ROY, Xavier; BURROWS, J.; RUCKERT, F. “Meeting of


Minds”. Dance Theatre Journal, 20, pp. 9-13, 2004.

LIMON, E.; VIRILIO, Paul. “Paul Virilio and the Oblique”.


Lusitania, pp. 174-184, 1993.

LOTT, Eric. Love and Theft: Blackface Minstrelsy and the Amer-
ican Working Class. London: Oxford University Press, 1993.

LOUPPE, Laurence. Traces of Dance: Drawings and Notations


of Choreographers. Paris: Editions Dis Voir, 1994.

LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade: Psicanálise


Mítica do Destino Português. Lisboa: Publicações Dom Quix-
ote, 1991.

250
MACKENZIE, Jon. Perform or Else. New York: Routledge,
2000.

MAN, Paul de. The Rhetoric of Romanticism. New York: Co-


lumbia University Press, 1984.

MANIFESTO for a European Performance Policy (2001),


disponível online em http://www.meeting-one.info/manifes-
to.htm

MANNING, Susan. “Modernist Dogma and ‘Post-Modern’


Rhetoric: A Response to Sally Banes’ Terpsichore in Sneakers”,
In: The Drama Review, 32, pp. 32-39, 1988.

MANNING, Susan. Ecstasy and the Demon: Feminism and


Nationalism in the Dance of Mary Wigman. Berkeley, Calif.:
University of California Press, 1993.

MANNING, Susan. Modern Dance, Negro Dance: Race in


Motion. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2004.

MARTIN, John. The Modern Dance. New York: Dance Ho-


rizons, 1972.

MARTIN, Randy. Critical Moves. Durham, NC.: Duke Uni-


versity Press, 1998.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Selected Works, Vol 1.


Moscow: Progress Publishers, 1969.

MERLEAU-PONTY, Maurice. The Visible and the Invisible.


Evanston, IL: Northwestern University Press, 1968.

251
MIELI, P.; STAFFORD, M.; HOUIS, J. Being Human: The
Technological Extensions of the Body. New York: Agincourt/
Marsilio, 1999.

MORGAN, Robert C. Bruce Nauman. Baltimore, MD: Johns


Hopkins University Press, 2002.

MOTEN, Fred. In The Break: The Aesthetics of the Black Radi-


cal Tradition. Minneapolis: University of Minnesota Press,
2003.

MOUNCE, O. H. “Philosophy, Solipsism and Thought” In:


Philosophical Quaterly, 47, 186 (January), pp. 1-18, 1997.

MUÑOZ, José. Disidentifications: Queers of Color and the


Performance of Politics. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1999.

NANCY, Jean-Luc. The Birth of Presence. Stanford, Calif.:


Stanford University Press, 1993.

NATANSOM, Maurice. “Solipsism and Sociality” In: New


Literary History, 5, 2, (Winter), pp. 237-244, 1974.

NAUMAN, Bruce; CASTELLI, Leo. Bruce Nauman 25 Years.


New York: Rizzoli, 1994.

NOVERRE, Jean Georges. Letters on Dancing and Ballets.


New York: Dance Horizons, 1968.

OETTERMANN, Stephan. The Panorama: History of a Mass


Medium. New York: Zone Books, 1997.

PANOFSKY, Erwin. Perspective as Symbolic Form. New York:


Zone Books, 1997.

252
PATTON, Paul; DERRIDA, Jacques. “A Discussion with
Jacques Derrida” In: Theory and Event, 5, 1, 2001.

PHELAN, Peggy. Unmarked: The Politics of Performance. New


York: Routledge, 1993.

PHELAN, Peggy. “Thirteen Ways of Looking at Choreograph-


ing Writing” In: FOSTER, Susan Leigh (ed.) Choreographing
History. Bloomington, Ind.: Indiana University Press, 1995.

PHELAN, Peggy. Mourning Sex: Performing Public Memories.


New York: Routledge, 1997.

PHELAN, Peggy. “A Ontologia da Performance” In: MON-


TEIRO, Paulo Felipe (org.). Revista de Comunicação e Lin-
guagens (pp. 171-191). Tradução de André Lepecki. Lisboa:
Cosmos, 1998.

PLOEBST, Helmut. No Wind No Word: New Choreography


in the Society of the Spectacle. Munique, Alemanha: K. Kieser,
2001.

RAPAPORT, Herman. Heidegger and Derrida: Reflections


on Time and Language. Lincoln, Nebr.: Nebraska University
Press, 1991.

READ, Alan. The Fact of Blackness: Frantz Fanon and Visual


Representation. Seattle, Wash.: Bay Press, 1996.

RECKITT, Helena. Art and Feminism. New York: Phaidon


Press, 2001.

REICH, Wilhelm. Character Analysis. New York: Farrar,


Straus & Giroux, 1972.

253
REICH, Wilhelm. The Function of the Orgasm: Sex-Economic
Problems of Biological Energy. New York: Noonday Press, 1973.

ROSAS, F.; BRITO, J.M.B.D. (eds.) Dicionário de História do


Estado Novo. Lisboa: Bertrand Editora, 1996.

SALLIS, John. “Heidegger/Derrida-Presence” In: Journal of


Philosophy, 81, pp. 594-601, 1984.

SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology.


Philadelphia, PA.: University of Pennsylvania Press, 1985.

SCHILDER, Paul. The Image and Appearance of the Human


Body: Studies in the Constructive Energies of the Psyche.
New York: Wiley, 1964.

SCHNEIDER, Rebecca. The Explicit Body in Performance.


New York: Routledge, 1997.

SCHNEIDER, Rebecca. “Solo, Solo, Solo” In: BUTT, Gavin


(ed.) After Criticism: New Responses to Art and Performance, pp.
23-47. London: Blackwel, 2005.

SCHWARTZ, Hillel. “Torque: The New Kinaesthetics” In:


CRARY, Jonathan; KWINTER, S. (eds.) Incorporations, New
York: Zone Books, 1992.

SEREMETAKIS, Nadia C. (ed.) The Senses Still: Perception


and Memory as Material Culture in Modernity. Chicago: Uni-
versity of Chicago Press, 1994.

SIEGEL, Marcia. At the Vanishing Point: A Critic Looks at


Dance. New York: Saturday Review Press, 1972.

254
SIEGEL, Marcia. “What Has Become of Postmodern Dance?
Answers and Other Questions” In: The Drama Review, 36, 1
(Spring), pp. 48-69, 1992.

SIEGMOND, Gerald. “Strategies of Avoidance: Dance in the


Age of the Mass Culture of the Body” In: Performance Re-
search, 8, pp. 81-90, 2003.

SIMON, Joan. (ed.) Bruce Nauman: Exhibition Catalogue and


Catalogue Raisonné. Minneapolis: Walker Art Center, 1994.

SLOTERDIJK, Peter. Thinker on the Stage: Nietzsche’s Materi-


alism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.

SLOTERDIJK, Peter. L’Heure du crime et le temps de l’oeuvre


d’art. Paris: Calmann-Lévi, 2000a.

SLOTERDIJK, Peter. La Mobilisation infinie. Paris: Christian


Bourgeois Editeurs, 2000b.

SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Infinita: para uma crítica


da cinética política. Tradução de Paulo Osório de Castro. Lis-
boa: Relógio D’Água Ed.: 2002.

SPÅNGBERG, M. “In the Quarry of the Modern Age” In:


Ballet International/Tanz Actuell Yearbook, pp. 40-42, 1999.

TAUSSIG, Michael. Mimesis and Alterity: A Particular History


of the Senses. New York: Routledge, 1993.

TAYLOR, Diana. Disappearing Acts: Spectacles of Gender and


Nationalism in Argentina’s “Dirty War”. Durham NC.: Duke
University Press, 1997.

255
TEICHER, Hendel. Trisha Brown: Dance and Art in Dialogue
1961-2001. Andover, Mass.: Addison Gallery of American
Art, 2002.

THOMPSON, C. “Afterbirth of a Nation: William Pope.L’s


Great White Way” In: Women and Performance, 27, 14:1, pp.
65-90, 2004.

WEISS, Allen. Mirrors of Infinity: The French Formal Garden


and 17th Century Metaphysics. New York: Princeton Architec-
tural Press, 1995.

WIGLEY, Mark. White Walls, Designer Dresses: The Fashioning


of Modern Architecture. Cambridge, MA.: MIT Press.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus.


Tradução e apresentação de José Arthur Giannotti. São Pau-
lo: Companhia Editora Nacional, Editora da Universidade de
São Paulo, 1968.

WOLIN, Richard. The Heidegger Controversy: A Critical Read-


er. Cambridge, MA.: MIT Press, 1993.

ZARRILLI, Phillip. “The Metaphysical Studio” In: The Dra-


ma Review, 46, 2 (Summer), pp. 157-170, 2002.

256

Das könnte Ihnen auch gefallen