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A nova guerra total

Marildo Menegat
Para Rafael Braga,

Porém meu ódio é o melhor de mim.


Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Carlos Drummond de Andrade

I.

A sociedade burguesa é inseparável da noção de que sua forma de vida é uma permanente
progressão que, somada à teoria da evolução das espécies de Darwin, se constitui numa poderosa
expectativa de que estes feitos pertencem aos designios universais da natureza. Afora desvios aqui e
ali, a linha do curso ao fim se mostrará reta – e quem a enxerga, provavelmente, um tonto. Tal
noção só é possível como um modo completamente reificado da memória deste curso. Por isso, é
difícil compreender este tempo em toda sua violência. Na aparência - aquela que a ideologia captura
como verdade - a era do capitalismo seria uma bem sucedida forma de controle da destrutividade
cotidiana dos seres humanos, tendo como obra prima o monopólio do uso legítimo da violência pelo
Estado que, conforme seus acólitos, parece ter suprimido a barbárie do passado. Contudo, um dos
elementos essenciais para a preservação deste culto do progresso é sua inexorável e permanente
revolução da técnica, a qual, da origem até hoje, se mostrou uma assombrosa força destrutiva. Sem
as armas de fogo e a guerra, o capitalismo jamais teria surgido e atingido as atuais proporções 1. Ao
que se sabe, em nenhum outro lugar do planeta, onde outros grupos humanos integrantes da espécie
já há muito habitavam, este designio era esperado. Desde os séculos XVI-XVII, porém, os canhões
do ocidente lanham a carne do que se lhe opõe em todos os quadrantes, para impor esta reta
verdade. No século XIX, a guerra total se tornou uma realidade em que sociedades inteiras são
mobilizadas para um fim destrutivo2. Foi este esforço, justamente, que tornou possível o impulso

1
“A moderna democracia do Ocidente é incapaz de ocultar o fato de ser herdeira da ditadura militar e armamentista
do início da modernidade - e isso não só na esfera tecnológica, mas também em sua estrutura social. Sob a fina
superfície dos rituais de votação e dos discursos políticos, encontramos o monstro de um aparato que administra e
disciplina de forma continuada o cidadão aparentemente livre do Estado em nome da economia monetária total e da
economia de guerra a ela vinculada até hoje. Em nenhuma sociedade da história houve tão grande percentual de
funcionários públicos e administradores de recursos humanos, soldados e policiais; nenhuma jamais desbaratou
uma parcela tão grande de seus recursos em armamentos e exército”. Cf. KURZ, R. “A origem destrutiva do
capitalismo”, in: Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997; p. 245. Deste autor ver também sua imprescindível
construção ampliada do mesmo argumento em Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona, 2014, em especial pp. 101-
120.
2
“Quando houve uma escalada nos gastos do governo, às vésperas das Guerras Napoleônicas e no decorrer delas, o
nível de produção e a velocidade das inovações em produtos e processos na indústria siderurgica aumentaram
muito, e a indústria de bens de capital tornou-se um ‘departamento’ muito mais autônomo da economia doméstica
britânica do que jamais tinha sido, ou do que era até então em qualquer outro país”. Cf. ARRIGHI, G. O longo
século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: UNESP, 1996, p. 267.
industrializante do mecanismo autômato da produção pela produção de valor. Em pleno lumiar do
progresso, a verdade que ficou oculta, foi esta necessidade lógica do seu reverso.

No fim da fase liberal do capitalismo, na passagem do século XIX ao XX, se iniciou uma longa
crise, que exigiu um reordenamento da dinâmica desta forma social, em que a insânia da guerra
total chegou ao paroxismo da possível e quase realizada auto aniquilação da espécie, como ficou
patente na capacidade de produzir a morte em escala inaudita durante a Iª e IIª Guerras Mundiais.
Após esta fase, a reconstrução da marcha vencedora da civilização burguesa obrigou mudanças
importantes nos fundamentos da teoria do Estado. A democracia de massas, ao que parece, era de
fato a forma política mais estável para uma sociedade que havia chegado à produção e ao consumo
também de massas. A legitimação deste Estado sustentada na socialização universal por meio da
mercadoria, que a expansão da produção fordista com pleno emprego garantiu, dava a impressão de
que o sistema teria encontrado um ponto de equilíbrio perpétuo. A defesa da democracia como valor
universal consolidou este período como um tempo de amnésia da sua força destrutiva encapsulada
num duvidoso estágio avançado do progresso. No fim dos anos 1960, no entanto, a política
americana – seguida de perto pela Europa Ocidental - de ‘armas, pão e manteiga’ passou a sofrer
cada vez mais avarias e impossibilidades de prosseguir. A abertura de outra longa fase de crise e
esgotamento do sistema, que perdura até hoje, há tempo tem exigido uma nova virada no parafuso
da teoria do Estado e nos fundamentos de sua legitimação. As transformações tecnológicas dos
processos de produção deste período mandaram para o inferno a quimera do pleno emprego no
capitalismo. Nenhum Estado Nacional pelo mundo pôde bancar, desde a metade dos anos 1980, sua
legitimação com o apoio das classes subalternas por meio de uma política social de bem-estar. O
capitalismo já não consegue encenar o mito de ser uma civilização da inclusão mundializada por
meio da imposição do trabalho. O universalismo adquire, assim, sua verdade no inverso, assim
como ocorreu com o progresso.

Em sua genealogia do estado de exceção, Giorgio Agamben descreve uma situação que podemos
tomar como originária da sua forma contemporânea. Diferente das ditaduras bonapartista que se
seguiram às revoluções modernizadoras, como reação ao radicalismo que as ameaçava, mas
também, como confirmação do essencial das novas formas conquistadas – como foi, por exemplo, o
período do Iº Império Napoleônico -, o estado de exceção no século XX surge numa conjuntura em
que o Estado já estava transformado pelo poder dos monopólios econômicos, mas enfrentava
ameaças de dissolução presentes tanto nas guerras – como na Iª e IIª GM – como nas crises
econômicas – que lhe eram inerentes e estavam em simbiose com estes acontecimentos - em que a
substância do valor representada no dinheiro se esfumaçava. Conforme Agamben, “a ampliação dos
poderes do executivo […] prosseguiu depois do fim das hostilidades e é significativo que a
emergência militar então desse lugar à emergência econômica por meio de uma assimilação
implícita entre guerra e economia”3. Em toda a cronologia da adoção do estado de exceção no pós Iª
GM nos países da Europa Ocidental, a sua justificação está associada à crise das moedas no
contexto de desmoronamento do padrão ouro da economia mundial. Em 1923, na Alemanha, o
governo social-democrata decreta poderes excepcionais amplos “para enfrentar a queda do
marco”4. Na França, em “janeiro de 1924, num momento de grave crise que ameaçava a
estabilidade do franco, o governo […] pediu plenos poderes”. Esta situação se repete em 1935, com
o governo Laval que, “para evitar a desvalorização do franco”, pede ao Parlamento plenos poderes.
E, em 1937, a mesma esquerda que era oposição a este governo, e “se colocou contra esta prática
‘fascista’”, “uma vez no poder com a Frente Popular […], pediu ao Parlamento plenos poderes para
desvalorizar o franco [...]”5.

Estes terremotos das sociedades produtoras de mercadorias podem ser melhor compreendidos
quando observamos que o dinheiro representa um dos fundamentos abstratos essenciais da dinâmica
deste mecanismo social. Ao se desmanchar a substância que sustenta o poder social do dinheiro –
que é a forma valor como medida do tempo de trabalho social -, toda a solidez da sociedade
capitalista se move para o abismo. Segundo Kurz, as economias de guerra do século passado (e
parece que mais intensamente ainda depois do fim do Acordo de Bretton-Woods, em 1971)
“deixaram de se mobilizar pelo ‘movimento em si mesmo’ do fetiche do capital”, fazendo com que
o dinheiro, enquanto ‘signo’, não precisasse mais ter sua equivalência em metais preciosos (ouro), e
fosse substituido “por meros lançamentos contabilisticos (o chamado nominalismo)” 6. O estado de
exceção, portanto, surge justamente destas situações, como uma força decisória que pretende fazer
que tudo fique em pé quando os alicerces já estão em dissolução. Como a confiança é um dos
elementos constitutivos do poder social do dinheiro, cuja imposição violenta da decisão pretende
restituir à forceps sua legalidade (econômica) corroida pelos processos de desvalorização – o que
não implica necessariamente na restituição da sua possibilidade de objetivação social, pois o
dinheiro é uma expressão do valor que apenas secundariamente acompanha este movimento, uma
vez que depende de outros fatores (estritamente econômicos) -, esta operação de guerra faz a vez da
política, no esforço desesperado de prolongar as condições de possibilidade desta sociabilidade em
que seus fundamentos se tornaram estilhaços de uma fantasmagoria vagando por todos espaços com
acentuada potência destrutiva.

3
Cf. AGAMBEN, G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 26.
4
Idem, p. 29.
5
Idem, p. 26.
6
Cf. KURZ op. cit., 2014, p. 188.
Tal situação originária do estado de exceção, que na verdade nunca se dissipou desde o seu
aparecimento efetivo como meio constituinte da política contemporânea, e se manteve atuante numa
progressiva tensão na segunda metade do século XX, embora tenha estado escondido sob a bruma
da democracia de massas, voltou com intensidade depois do início da crise do capital dos anos
1970. Um dos primeiros sinais desta virada, como destaca Habermas num ensaio de 1982, sobre o
neoconservadorismo na Alemanha e nos Estados Unidos, partem de argumentos como os
comentários feitos pelo jurista conservador Ernst Forsthoff acerca dos princípios que deveriam
assegurar a legitimidade da Constituição da República Federal da Alemanha de 1945. Para
Forsthoff, seguindo a exposição de Habermas, “as normas que definiam o estatuto do Estado de
direito […] deveriam manter uma procedência absoluta sobre a cláusula que exigia o Estado de
bem-estar social, a qual deveria ser entendida apenas como recomendação política”7. Esta ênfase,
no entanto, demarca uma percepção apurada – pois se sustenta em algo que permanece como regra
ao longo da história contemporânea8, apesar do seu intencional esquecimento pelo espetáculo
legislativo das democracias burguesas - das condições primordiais de existência da máquina de
guerra que é o Estado, que é a preservação de sua capacidade de intervenção na estabilização de
uma sociedade em convulsão devido a frustração das massas em não conseguirem satisfazer suas
necessidades elementares num sistema totalitário de mútua dependência, como é o mercado,
especialmente na fase atual do capitalismo. Na medida em que a lealdade e obediência do povo
(fraturado em sua unidade) não pode mais ser o princípio de legitimação do Estado, em razão da
crise do sistema e suas repercussões sobre a arrecadação fiscal 9, para os neoconservadores, o
“guardião do bem comum precisa ter o poder político de não argumentar e, em vez disso,
decidir”10. Neste caso, não é o conceito de justiça e igualdade que deve servir de argamassa para re-
ligar os estilhaços da sociabilidade implodida, mas o fato de que “o Estado tem de legitimar-se […]
no modo como leva a cabo a tarefa central de assegurar a paz, a defesa contra os inimigos
externos e internos”.11

Os inimigos internos são grupos humanos descartados pelas condições de concorrência em sua fase
presente da mundialização do capital sob as bases da revolução técnica da micro-eletrônica e da

7
Cf. HABERMAS, J. “A crítica neoconservadora da cultura nos Estados Unidos e na Alemanha”, in: A nova
obscuridade – pequenos escritos políticos V. São Paulo: UNESP,2015, pp. 79-80.
8
“Hoje […] a emergência; como Benjamin havia pressagiado, tornou-se a regra [...]”. Cf AGAMBEN, G. Homo
Sacer – o poder da vida nua - I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p. 19.
9
A pretensão de legitimação do Estado, para Habermas, deriva da sua “garantia de evitar a desintegração social”.
Para realizar tal finalidade, o “subsistema político assume a tarefa de proteger a sociedade da desintegração, mas
não pode dispor livremente das capacidades de integração social [...]”. Cf. HABERMAS, J. Para a reconstrução do
materialismo histórico. São Paulo: UNESP. 2016, p. 382.
10
Cf. HABERMAS, op. cit. 2015, p. 80.
11
Idem, p. 97.
robótica12. Que a guerra civil, que desta condição emerge, seja, ao mesmo tempo, tanto um sintoma
agudo da impossibilidade de legitimação por consenso do Estado em crise, como também um meio
perverso para atingir tal fim, através de maiorias eleitorais contingentes, parece algo irrefutável.
Diferente de Habermas que, segundo diz, ainda espera a conclusão do projeto da modernidade, a
guerra civil, que se segue à situação originária do estado de exceção, para Agamben, demonstra que
a democracia moderna foi incapaz de nos salvar da ruína da sociedade burguesa 13. Dessa forma,
ao contrário do esperado pelo filósofo alemão, o desentendimento por meios violentos, escrachado
pelos conflitos sociais, como as novas modalidades de guerra civil em curso pelo mundo, pode ser,
por paradoxal que pareça, legalizado e, por isso mesmo, servir de força sustentadora do próprio
regime democrático, contra o qual esta violência aparentemente conspiraria – como se ela não fosse,
justamente, uma reação à impotência das instituições públicas em subordinar as forças do
mercado.14 Desse modo, a presente modalidade de democracia só sobrevive ao preço de estar
permanentemente ameaçada pelo desepero daqueles que, em tese, dela mais precisariam - para
mudar por meio da ação coletiva suas condições de existência. Ou seja, ela só sobrevive se estiver
fora do alcance do povo e, portanto, se não for um governo do povo, como se presume da
etimologia da palavra, mas um governo contra o povo. Frente a ameaça de implosão da ordem – e
frequentemente por sua efetivação, localizada ou generalizada -, em consequência do abandono do
Estado de todas suas funções de responsabilidade social, este alcança as condições para a sua
legitimação através do uso da violência (e não pela assertiva dissuasiva presente no princípio do
‘monopólio do uso’) contra estes grupos sociais deserdados de sua clientela.

II.

Este processo histórico alcançou o Brasil nos anos 1980. Uma confluência de fatores contraditórios,
capaz de desmontar qualquer forma comum de vida social, deu a tônica na conclusão da transição
da ditadura civil-militar à democracia. De um lado, armou-se a expectativa de que seria possível
reemendar o fio da história destroçado em 1964. Parte significativa da experiência virtuosa do
fordismo e do Estado de bem-estar no pós Segunda Guerra Mundial ficava por conta do sentido da

12
As projeções sobre a 4ª Revolução tecnológica em curso, que se sustenta numa nova geração de Robôs, capazes de
fazer tarefas complexas e inteligentes, não são nada promissoras. Diz uma reportagem sobre o tema: “O Brasil é um
dos países com maior potencial de automatização de mão de obra, atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos na
quantidade de trabalhadores que poderiam ser substituídos por máquinas. De acordo com estudo da consultoria
McKinsey, 50% dos atuais postos de trabalho no Brasil poderiam ser automatizados, ou 53,7 milhões de um total de
107,3 milhões. O setor com maior percentual de empregos automatizáveis no Brasil é a indústria, com 69% dos
postos. Em seguida, ficam hotelaria e comida (63%) e transporte e armazenamento (61%)”. Cf. PORTINARI, N.
Folha de São Paulo, Caderno Mercado, 17/05/2017 - http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1884633-50-
do-trabalho-no-brasil-pode-ser-feito-por-robo-diz-estudo.shtml
13
Cf AGAMBEN, op. cit., p. 17.
14
Cf AGAMBEN, 2004, p. 13.
retomada daqueles 20 anos perdidos. Contudo, neste mesmo período, o fordismo já havia se tornado
um tempo morto da acumulação de capital. A ele se seguiram outros regimes de acumulação e
programas de contra-reformas do Estado, como o neoliberal, que tentavam contornar a crise que
desde o início dos 1970 mantinha a economia mundial num ritmo de estagnação. O último ato da
transição, que guardou a explosividade da confluência destes tempos, que se pretendiam não-
sincrônicos, foi a Constituição de 1988. O modelo nela seguido – e aqui me apoio no que dizem
juristas como Gilberto Bercovici15 - é o de uma constituição dirigente, a qual se define “por meio
das chamadas normas constitucionais programáticas, fins e programas de ação futura no sentido de
melhoria das condições sociais e econômicas da população”16. Esta é a mesma modalidade de
constituição contra a qual se insurgia o argumento de Ernst Forsthoff, conforme visto anteriormente.
Não tardou muito a Constituição ser submetida ao mesmo tipo de crítica também por aqui. A
contraparte deste contexto era a virada nas políticas que haviam garantido, na fase anterior, as
mudanças nos fundamentos da teoria do Estado, e que foram adotadas muito tardiamente no Brasil
como princípios constitucionais. O neoliberalismo, cujas posições foram parcialmente derrotadas
nos debates da constituinte, foi sendo introduzido no período imediatamente posterior,
subrepticiamente, como se fosse a única percepção racional da crise em andamento, e se tornou
senso comum ainda no início da década de 1990. Sua força ilusionista foi representar uma saída
para este impasse sem ser uma saída, mas o aprofundamento da instabilidade. O fato é que a defesa
de uma constituinte dirigente numa época em que a financeirização tornava improvável qualquer
expansão de direitos, se apresenta como uma contradição sem solução no chão histórico do
capitalismo tardio. A construção de tal impasse neste contexto a que estou me referindo, funcionava
como uma maldição voluntária, ou, se se preferir, a sequência final de um colapso anunciado. Foi
ainda o então presidente da República José Sarney quem começou com a lenga lenga da
ingovernabilidade que a Constituição produzia. O que se está chamando de cobertor curto da lei,
contudo, não chega a ser uma novidade num país como o Brasil. Mas, a guinada dos argumentos
revisores da Constituição tem como pano de fundo o reconhecimento de uma situação, esta sim,
nova, que não foi vivida pelo país no período a que Agamben se refere na descrição de sua
conhecida genealogia.

Em outro artigo sobre este tema, Bercovici fez um rápido balanço, não apenas das polêmicas sobre
o modelo da Constituição de 1988, mas das emendas que esta sofreu, principalmente no capítulo

15
Devo mais do que a inspiração destes passos, e os seguintes, à leitura DE SOUZA, M. S. O penhor de uma
igualdade: contradições e vivissitudes do projeto constitucional de 1988 no Brasil do capital fictício. Tese de
doutorado em Direito – PPG-Direito, UFSC, 2017. Novamente agradeço a oportunidade de ter aprendido com seu
texto coisas essenciais sobre os limites do Direito em nosso tempo.
16
Cf. BERCOVICI, G. “A Problemática da Constituição Dirigente: Algumas Considerações sobre o Caso Brasileiro”,
Revista de Informação Legislativa nº 142, Brasília, Senado Federal, abril/junho de 1999, p.36.
sobre economia. A desfiguração foi tanta que o autor sugere uma nova denominação da sua
modalidade: o de constituição dirigente invertida17. Esta mudança se impõe devido a necessidade
incontornável que os programas de finaceirização neoliberal têm em fazer do Estado uma base
ampliada da reprodução fictícia do capital. As dívidas públicas, segundo Kurz, tornaram-se um
elemento estruturante das finanças dos Estados – e do capital - desde o esforço de guerra da
primeira metade do século passado18. Depois deste período, elas foram necessárias para financiar,
em parte, as crescentes funções que o Estado precisou assumir na reprodução social, como
educação, saúde, transporte e aparatos de segurança; e foram suficientemente amplas para tornar a
combinação do limite lógico da acumulação - perceptível no colapso do capital a partir dos 1970 e
que se reflete na crise fiscal do Estado - com o endividamento exponencial, em algo insolúvel e
revelador do teto histórico a que chegou o capitalismo. Nestas dívidas o Estado recorre ao crédito
para fazer gastos que, para a lógica interna do capital, são improdutivos. Marx já havia
demonstrado19, que as dividas públicas são um dos meios por excelência da transformação de
dinheiro em mais dinheiro, sem que nesta operação, no entanto, ocorra a mediação de investimentos
em produção, da qual se extrai o mais valor que justificaria, após sua realização, o ponto de chegada
da acumulação de capital. Já nos anos 1980 os Estados Nacionais foram sendo enquadrados mundo
afora nas malhas das dividas transformadas em mecanismos de compensação para o limite da
acumulação, o que resultou numa fórmula bizarra de fuga para frente, com gastos crescentes por
conta do financiamento de dívidas impagáveis e o enxugamento catastrófico das funções de
responsabilidade social do Estado. O problema central é que isso não cabe numa ordinária escolha
de programas de governo, mas é a imposição objetivada da dinâmica agônica do capital. Este modo
de produzir a vida social, fundado na socialização abstrata do valor e sustentado numa ruptura
metabólica com a natureza - o que leva à sua inconsciente e irreversível destruição -, é
insustentável. Por isso, observa Bercovici, como parte da dissolução inconsciente em que esta
sociedade se move, foi se impondo “a desarticulação das ordens financeira e econômica nas
constituições”20. A primeira, que foi na sua origem um instrumento de planejamento do Estado
subordinado à ordem econômica, passa agora a ser um fator determinante da sobrevida da economia
capitalista. O passo em falso de um bêbado, antes do anunciado tombo, no máximo pode ser
seguido por outro passo em falso. Esta ‘desarticulação das ordens’ tem como finalidade precípua “a
17
“A indiferença atual entre direito constitucional e direito financeiro ignora o tema central da articulação entre
constituição financeira, constituição econômica e constituição política dentro da constituição total. E isto não ocorre
sem razão. Confirmando a hegemonia das tendências neoliberais que sucederam a ruptura do padrão de
financiamento da economia do segundo pós-guerra, a desarticulação das ordens financeira e econômica nas
constituições reflete a contradição do novo padrão sistêmico de acumulação com o paradigma da constituição
dirigente, implicando o surgimento de um novo fenômeno: a constituição dirigente invertida”. Cf. BERCOVICI,
G.; MASSONETTO, L. F. “A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da
constituição econômica”, Boletin de Ciências Econômicas nº XLIX, Lisboa, Universidade de Coimbra, 2006, p. 57.
18
Cf. KURZ, R. “A realidade irreal”, p. 130-1; in: Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997.
19
Cf. MARX, K. O Capital – crítica da economia política. Livro III, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
20
Cf. BERCOVICI, G.; MASSONETTO, L. F., p. 57
consolidação da supremacia do orçamento monetário, ou seja, a garantia do custo da moeda
(definido pelo Banco Central e pelo Conselho de Política Monetária – COPOM, à margem do
Congresso Nacional), voltado para a estabilidade monetária, sobre o orçamento fiscal”21. Estamos
às voltas, portanto, com o impasse que serve de base para a situação de origem do estado de
exceção. A função do orçamento não é o de garantir o bem-estar da reprodução social da
população, isto é, o patamar civilizatório básico das melhores energias deste tempo, mas de ser a
âncora da estabilização monetária.

III

A história deste processo constitutivo da situação originária de um estado de exceção à brasileira


tem sua força definidora no início da década de 1990. É verdade também que seus contornos mais
brutais apenas estão esboçados, apesar de ‘subrepticiamente’ legitimados. Dois momentos
importantes desta história recente terão de ser ainda analisados em profundidade por quem pretende
fazer a crítica desta situação e, quem sabe, contribuir para impedir que o pior do espírito desse
tempo se realize plenamente. Ambos os momentos envolvem setores das chamadas ‘forças
progressistas’ que se opuseram à ditadura civil-militar e, por isso, torna obrigatório um acerto de
contas radical com estas correntes do pensamento, assim como com as expectativas modernizadoras
do país. O primeiro são os governos do PSDB, iniciados ainda na época do plano Real. As
implicações deste plano precisam ser entendidas no vasto movimento no qual se integram, isto é, no
de serem uma resposta ao colapso da economia iniciado no lustro anterior, e de proporem, por isso,
uma organização salvífica de uma parte da sociedade em detrimento da restante. Em outras
palavras, o Plano Real assume e legaliza uma economia política da barbárie, a qual se sustenta no
saque “em que é despedaçada a substância física da economia nacional arruinada” (KURZ).
Francisco de Oliveira identifica um momento fundamental deste Plano na conversão da dívida
externa em dívida interna, precisamente, no financiando de seus custos por meio da especulação
com os títulos do Tesouro Nacional. Desse modo, segundo ele, se formam “os excedentes do setor
privado, sem o que as empresas […] teriam ido todas à falência” 22. A ideia de que o Plano Real
tenha sido, em contrapartida, a criação de uma moeda nacional forte, e não simplesmente um
escandaloso saque da riqueza autóctone, é uma dessas fantasmagorias ideológicas produzidas pelo
darwinismo social para ofuscar grotescamente o fracasso de seu resultado. Neste mesmo período da
‘estabilização monetária’, a instabilidade produzida pela violência cotidiana nas grandes

21
Idem, p. 71.
22
Cf. OLIVEIRA, F., Os direitos do antivalor – a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes,
1998, p. 167.
metrópoles, assim como o aprisionamento em massa, deram seus primeiros grandes saltos
reveladores da necrose social em que o país afunda. Esta ilusão da moeda forte foi em parte
sustentada pela paridade forçada entre o Real e o Dolar durante os primeiros anos de sua vigência.
Tal fato, no entanto, não era mais do que uma impotência diante da situação catastrófica, definidora
do quadro de ‘desmonte da nação’ - como muitos intelectuais se referiram a este processo -, uma
vez que deixava patente que “o Estado Nacional não tem mais o monopólio exclusivo da violência,
já que a moeda é o conversor público de todas violências privadas” 23. A reprodução da sociedade
passa a ser hipotecada para salvar um circulo cada vez menos abrangente e mais capenga da
acumulação de capital.

O segundo momento, que tem articulações internas com o anterior e é o seu consequente
agravamento, decorrente do aprofundamento da crise em 2008, ocorreu durante o primeiro governo
de Dilma Rousseff. Como é sabido, a lei antiterrorismo, na sua primeira versão adotada em 2013,
foi uma exigência de um organismo internacional do qual o Brasil participa - o Grupo de Ação
Financeira (GAFI). Sua necessidade é posta, portanto, pelo Ministério da Fazenda que, até um dia
antes, nada tinha a ver com a instabilidade política gerada por atos terroristas. O ministro da Justiça
de plantão, naquele período, logo subiu ao palco para defender a autoria do imbróglio e retirar a
evidência do verdadeiro sentido da lei. Todavia, a possibilidade (e, portanto, a intenção) de tipificar
qualquer resistência coletiva contra o Estado como um ato promovido por organização terrorista é
evidente24. Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, e a reação dos EUA e seus aliados
Ocidentais, indicam o nível alarmante do aprofundamento da crise generalizada do capitalismo.
Desde então, o estado de exceção desta época passou a deixar rapidamente as brumas e a se
solidificar em leis de exceção mundo afora. É de Lincoln Secco 25 a observação melancólica do
contraste entre a fase heróica da história do PT, quando se gritava em manifestações de rua que “a

23
Idem, p. 195.
24
O primeiro uso da lei (sancionada pela presidente Dilma Rousseff em março de 2016) foi às vésperas das
Olimpíadas, quando um punhado de atentados havia recentemente comovido a França, e a falência do Estado do
Rio acabava de ser decretada. O governo Temer não perdeu a oportunidade de mostrar suas habilidades de
fanfarrão. A ocupação da cidade do Rio de Janeiro por tropas do Exército, que seriam necessárias para garantir a
segurança do evento, precisava dar a impressão (que é um critério de legitimidade na sociedade do espetáculo),
para o turista estrangeiro, de que se devia ao temor de que tais acontecimentos da Europa pudessem também ocorrer
por aqui, e não pelas sobejas razões locais de insegurança, como a ameaça de greve da Polícia Militar e de
manifestações de funcionários públicos por atrasos de pagamentos dos salários ou as frequentes ondas de assaltos
que ocorriam em diversas regiões da cidade naquele momento. Esta situação pode ser uma demonstração da
intenção e do alcance da lei nº 13.260/16. Na ocasião, 13 pessoas foram denunciadas e presas no país por serem
suspeitas de promoverem organizações terroristas. Dessas, 8 pessoas ainda permanecem abusivamente presas, sem
que contra elas se formule uma sentença. Uma das pessoas presas foi assassinada na prisão, no Mato Grosso, por
outros presos: "A versão de todos os detentos é que o crime foi cometido porque ele seria terrorista e que terrorista
derrama sangue inocente, por isso ele não era para estar ali", disse o delegado Marcelo Jardim, que presidiu o
inquérito. Cf. Folha de São Paulo, Caderno Cotidiano, 23/04/2017;
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/04/1877803-prisao-de-acusados-por-terrorismo-tem-de-assassinato-a-
greve-de-fome.shtml
25
Cf. SECCO, L. História do PT. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011, p. 286.
luta faz a lei”, com sua decadente fase governista, quando o partido criou uma legislação
antiterrorismo cujo alvo são justamente as manifestações de rua que procuram organizar de modo
elementar a reação à necrose social. Os governos petistas tinham sido uma relativa inflexão na
intencionalidade da gestão pública, e seu grande trunfo foi a criação de uma precária
governabilidade social. Esta, para muitos ideólogos do melhor dos mundos, seria a segunda etapa da
‘revolução’ iniciada com a estabilidade monetária, a qual se acrescentaria, daí em diante, a
necessária estabilidade social. As técnicas desenvolvidas para realizar a gestão da barbárie, contudo,
já não eram suficientes, após quase 12 anos de governos do PT, para assegurar a governabilidade. A
garantia do valor totalmente artificial da moeda nacional - o [ir]Real - implica cada vez mais nas
condições de intervenção da máquina de guerra do Estado na pacificação interna. As desproporções
entre os coquetéis molotov’s dos manifestantes e o arsenal de guerra das polícias já podia ser
antevista nas ações em favelas no período anterior às manifestações de junho 26. Porém, na fase que
se abre depois de 2013, está será a condição de todo enfrentamento: um estado declarado de guerra.
As manifestações de protesto recentes contra as reformas de um governo completamente sem
legitimidade que, não obstante, conta com o apoio unanime da elite empresarial, dão a medida do
que está vindo por aí. O horror, que antes confortava a classe média branca saber que somente seria
usado contra os de baixo, tornou-se há tempo o regime geral. Esta guerra precisa se tornar uma
espécie de novo tipo de guerra total. Ela não pode ser avaliada somente pelos investimentos que
funcionam como mecanismos de compensação em uma economia colapsada, uma fuga para a
frente, mas ela deve ser entendida como a única forma possível da política nesta situação histórica
“que deixou de se mobilizar pelo ‘movimento em si mesmo’ do fetiche do capital”. Um monstro de
muitas mãos atadas. As agências internacionais do mercado precisam da paz de cemitério para que
seus contratos, em que ‘a substância física da economia é despedaçada’, sejam respeitados e
realizados; o Dolar (ao qual o Real está atrelado), que mesmo sem lastro mantém seu papel – sem
valor – de moeda mundial, precisa do céu de brigadeiro para sua escalada ao nada e, para que ele
tenha combustível na ascensão, os gastos com armas são imprescindíveis – assim como as guerras e
a destruição ampliada da natureza. Do mesmo modo que a linha reta da ficcionalização do Dolar e
dos contratos não podem ser perturbados pelos solavancos aterrorizados da humanidade, esta deve
aceitar, como seu destino, ser oferecida em sacrifício, admitindo que sua existência é um imenso
atrapalho à economia de mercado.

IV

26
Sobre as manifestações de junho de 2013 ver o a esta altura já clássico ARANTES, P. E., “Depois de junho a paz
será total”, in: O novo tempo do mundo – e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
Quando os fantasmas deste tempo acordarem no futuro, depois de terem legitimado mais este
período assombroso da história, em que mantiveram em pé os escombros de uma antiga e estranha
civilização, que por seus próprios meios se tornou a mais abjeta das barbáries, a figura de ‘fina
estampa’ de um D. Quixote, em sua luta contra moinhos de vento, poderá ser vista finalmente em
toda sua grandeza. Ao contrário do que pensou Lukács 27, o que diferencia o romance moderno da
época anterior, não é o fato de que os ideais de seus personagens são maiores do que as convenções
da sociedade, mas de que o mundo que recusava D. Quixote, não o recusava por ser maior que seus
ideais, e sim, porque os moinhos de vento nada são diante das bombas de hidrogênio. Os devaneios
do homem medieval frente ao desaparecimento de seu mundo são suaves aventuras, enquanto a
loucura do homem moderno para tentar manter presente o que já não pode ser é a ameaça de tudo
suprimir num juízo final profano.

27
CF. LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, pp. 99 e ss.

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