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Discurso e Memória
DOI: http://dx.doi.org/10.20396/resgate.v24i1.8647083
Resumo: Abstract:
A narração de experiências traumáticas tensio- The narration of traumatic experiences
na os limites entre memória e linguagem. A tightens the boundaries between memory
possibilidade de representar o que aconteceu é and language. The ability to represent what
dissipada na memória estilhaçada, e malograda happened is dissipated in the shattered
na tentativa de representar-se em linguagem. O memory, and unsuccessful in trying to
sujeito que viveu experiências de choque tem represent in language. The man who lived
sua subjetividade constantemente questiona- shock experiences has its subjectivity
da em suas certezas, quando estas são invadi- constantly challenged in their certainties,
das pelas lembranças involuntárias que surgem when they are invaded by involuntary
memories that come with the full weight
com todo o peso do vivido. Desse modo, essa
of the lived. This way, this subjectivity in
subjetividade em devir funda-se em uma me-
becoming is based on a memory that is made
mória que é feita de puro rastro, reminiscência,
of pure trail, throwback, which reappears
que ressurge no presente, este então abalado
in the present time, this so shaken by the
pela força do passado que se inaugura de novo.
force of the past that opens again. The truth
A verdade do passado se confunde com a aber-
of the past is intertwined with the opening
tura do presente nos dramas pessoais experien-
of the present in the experienced personal
ciados. É o que se vê na narrativa de Exortação tragedies. This is what we see in the narrative
aos crocodilos (1999), romance de António Lobo Exortação aos crocodilos (1999), a novel by
Antunes, em que os fatos são apresentados nes- António Lobo Antunes, in which the facts
se momento de limiar do acontecimento, que é are presented at the moment of occurrence
todo o acontecer. O sentido que se fala está nes- of the threshold, that’s all happening. The
se movimento. Daí o acontecimento, junto à lin- meaning it talks is this movement. Hence
guagem, permanecer em um processo de cons- the event, along with language, remain in a
tante abertura: a força da experiência presente constant process of opening: the strength of
alterando as lembranças do passado, refazendo this experience by changing the memories of
estas na linguagem que é fala que falha e está a the past, retracing these in language that is
dizer. speak that fail and is to say.
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I n t r o d u ç ã o
Um passo em falso
E
m Exortação aos crocodilos, roman- linguagem é incapaz de dizer essa coisa
ce de António Lobo Antunes de que é tecida pelas lembranças das sub-
1999, a narrativa é um passo em jetividades, das personagens. O roman-
falso. Muito menos que uma história, ce está no divã, e dele saem múltiplas
configura-se como um projeto de nar- vozes que se confundem e gaguejam
rar, que falha sempre em estratégias um quase-enredo, uma quase-história,
linguísticas imprecisas e insuficientes: a que estamos a seguir a esperar...
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jante, em que se repete sempre o mes- - O que fazes aqui vai-te embora some-te
da vista (ANTUNES, 1999, p. 268-269).
mo esforçando-se por acrescer a este
um termo seguinte que lhe dê sentido. É um jogo do dizer que arquiteta um
[...] fosse um tique, não um chamamento, discurso em devir e apresenta uma
qualquer coisa que a boca sabe de cor ig- realidade contingente, em constan-
norando que o sabe, intitulavam meu pai
a um conjunto de parcelas desconexas te mutação, impossível de ser logica-
contradizendo-se, anulando-se, estra-
mente estabelecida. Porque, aqui, a
nhando-se e onde o termo
realidade é a subjetividade de sujeitos
- Filha
indefinidos e indefiníveis que se fazem
não passava do resultado de uma com-
bustão de acaso, de tempos a tempos a linguagem em processo de elaboração
maçã de adão saltava para diante após
uma colher de sopa e fechava-se numa de si própria.
contracção inesperada, a pupila redonda
amortecia por instantes e tornava a cres- As partes desconexas do sujeito des-
cer, a minha mãe resplandecendo ale-
grias de vitória conectam a linguagem racional. O
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que se escuta, então, é uma fala doen- em cada texto que o forma sem, no en-
tia, esquizofrênica, que não sabe de si tanto, dizê-lo definitivamente.
mesma e, por isso mesmo, não pode
signi-ficar, fixar um signo, ou um sen- Nesse sentido, não há sentido. O que
tido. Fica-se em um regime de signos: há é uma significância ilimitada, que
acaba por constituir um meio em que
Os signos emitem signos uns para os ou- os conteúdos dos signos se dissolvem,
tros. Não se trata ainda de saber o que tal
destituindo-se de suas formas pró-
signo significa, mas a que outros signos
prias, (f)ato que implica uma dessigni-
remete, que outros signos a ele se acres-
ficação do signo, que o torna impoten-
centam, para formar uma rede sem co-
te em si mesmo, precisando, a partir
meço nem fim que projeta sua sombra
sobre um continuum amorfo atmosférico.
disso, remeter-se a outro signo, e este
É esse continuum amorfo que represen- a outro e assim ad infinitum.
ta, por enquanto, o papel de “significa-
O signo não significa. Ele sinaliza,
do”, mas ele não para de deslizar sob o
significante para o qual serve apenas de
aponta. Por isso o que a fala fala não
meio ou de muro: todos os conteúdos é exatamente o que ela diz. A fala fala:
vêm dissolver nele suas formas próprias. nesse trabalho está todo o significado.
Atmosferização ou mundanização dos Na ação da linguagem, no movimen-
conteúdos. Abstrai-se, então, o conteúdo to das palavras é que se promove um
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 62). acesso ao significar. Uma fala difícil,
que força as palavras a um limite agra-
O acontecimento de linguagem que é
matical1, condição mesma para fazer a
Exortação aos crocodilos desfaz a noção
poesia acontecer em texto.
clássica de signo linguístico, apontando
ao longo de todo o livro que o sentido
Essa fala difícil é que promove uma
não está no dito, mas no fluxo do dizer.
1 A linguagem empurrada a seu limite, acaba por evitar o
É na dinâmica do signo que se delineia a significante como princípio de entrada do processo de sig-
nificação. O agramatical tende ao assignificante, proble-
possibilidade de um significar. À clássica matiza essa condição de primazia no estabelecimento de
pergunta acerca do significado do texto uma referenciação lógica e inteligível, circunstancialmente
dominante, que privilegia na linguagem o significante. No
ou do livro responde-se com o significan- lugar disso, tem-se uma dinâmica de reterritorializações e
desterritorializações do desejo, o que, segundo Deleuze,
te, com o que é possível referir-se a. O que promove o “rachar das palavras”, abrindo o signo a ressig-
nificar no movimento intempestivo e circular do signo na
quer dizer o livro está a dizer (e a ser dito) linguagem.
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fala o que ninguém sabe (Cf. FREUD, radoxal, o não-senso da superfície, o pon-
to aleatório sempre deslocado de onde
1974), a fala, no romance, é permitida jorra o acontecimento como sentido (DE-
pelo não-saber. A ausência de pensa- LEUZE, 2007, p. 139-140).
mento, de (cons)ciência é que possibi-
O vazio é o lugar do infinito da lingua-
lita essa fala reveladora e criadora, que
gem. É esse momento de limiar do
diz no fazer da linguagem. O não-pen-
acontecimento que é todo o aconte-
sar abre espaço para a manifestação
cer. Porque este não se efetiva, não se
do desejo, a força impulsionadora do
conclui, mas está a fazer-se, reverbe-
falar. Fala livre, que revela nas falhas,
2 Faz-se referência ao conto-novela Bartleby, o escrivão, de
no limite do que é dito e do que se quer Herman Melville.
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namorado que não era doente, não era sado reconstruído, retomado, não se
inválida, podia falar conforme as pessoas
falam, nunca roubei dinheiro a ninguém, sustentam na narrativa de Exortação
não descia aos esgotos a fumar e a contar
moedas mas a minha boca não conseguia,
porque seus limites estáticos são des-
os sons paralisavam-se, não sentia as gen- feitos com a fragilidade da lembrança
givas, não me sentia a mim, graças a Deus
uma frase completa formou-se devagar enquanto estilhaço; abrem-se neles li-
ecoando sílabas, o olho intacto desorbi-
tava-se a conservá-la, a mantê-la nítida, a nhas de fuga do certo que aconteceu
aperfeiçoá-la, ajudando-a a não submer- que tocam no que deveria ter aconteci-
gir em restos de discursos, estilhaços de
recordações, gestos imóveis, talvez meus, do e no que poderia acontecer. Um fato
flutuando sem ordem, rostos muito anti-
gos, familiares e estranhos cria o outro. É um brotar espontâneo
não, familiares que condiciona o narrar. São sintag-
não, estranhos mas nominais e orações coordenadas
não, familiares (ANTUNES, 1999, p. 276- que se justapõem a períodos simples,
277).
incisivos, vibrantes, num frenesi verbal
Os acontecimentos estão no mesmo que liquidifica toda imagem que prin-
lapso de tempo: o agora. Confundem- cipiava a formar-se. As quase-imagens
-se porque se equivalem, substituem- da memória surgem e, imediatamen-
-se, tensionam-se. Nesse forçar os fa- te, esvaem-se em incertezas da lem-
tos, produz-se (e se tem acesso a) o brança, confundindo-se com outras
acontecer em estado puro, o fato aber- lembranças em resto que surgem e se
to, a jorrar intempestivamente no fluxo desfazem. Presente e passado se con-
sígnico das palavras em devir. Os fatos fundem na força do instante criador.
são inconclusos, abertos, em espiral,
A ficção cria sua verdade, pautada no
não linear, “flutuando sem ordem”.
mistério dos não-fatos, sendo “uma
Essa abertura, em verdade, desesta- experiência que, ilusória ou não, apa-
biliza toda noção de estrutura de tex- rece como meio de descoberta e de
to, de tempo e espaço narrativo, de um esforço, não para expressar o que
representação. Está-se a perseguir o sabemos, mas para sentir o que não
acontecimento. A inverdade da me- sabemos” (BLANCHOT, 1997, p. 81).
mória é a origem desse processo. Os A associação livre das palavras e das
“gestos imóveis” como cenas do pas- lembranças revela a condição dessa
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FREUD, 1974). A escritura literária (po- firmes, as vogais correctas, o nexo sem
uma única falha, uma frase melhor, mais
ética) também não3. Estabelece-se as-
bonita, mais ampla que todas as frases
sim um discurso em devir, que fala no
que consegui até hoje, não existiam dú-
trânsito das temporalidades da língua vidas, segredos, mistérios, tudo simulta-
e da memória. É sempre limiar. Dizer o neamente tão profundo e tão simples, o
indizível: a estratégia da linguagem é que do meu corpo não era meu tornou
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a aconselhar - Eh
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pai com trombose se confunde com a íntima dessa literatura, temos que mer-
filha – esta também desfigurada e de- gulhar numa camada especial, a mais
profunda, dessa memória involuntária,
sajustada pelas experiências traumáti-
na qual o momentos da reminiscência,
cas da infância e da vida adulta como
não mais isoladamente, com imagens,
guerrilheira do partido comunista. As
mas informes, não-visuais, indefinidos e
subjetividades em pedaços da filha e densos, anunciam-nos um todo, como o
do pai confundem-se, são incertas, de- peso da rede anuncia sua presa ao pesca-
sordenadas. Uma frase lógica e orde- dor (BENJAMIN, 1994, p. 48-49)
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