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Dossiê

Discurso e Memória
DOI: http://dx.doi.org/10.20396/resgate.v24i1.8647083

Maicon Araújo dos Santos Memórias e escrituras


maiconservo@gmail.com que fal(h)am em
Exortação aos Crocodilos
L icenciado em Letras (2004) pela Universidade
Estadual do Ceará (UECE); especialista em En-
sino de Literatura Brasileira (2007) pela mesma Memories and scriptures that speak
universidade; mestre (2012) e doutorando em Li- (fail) in “Exortação aos Crocodilos”
teratura Comparada pela Universidade Federal do
Ceará (UFC). Atualmente é professor da UECE.

Resumo: Abstract:
A narração de experiências traumáticas tensio- The narration of traumatic experiences
na os limites entre memória e linguagem. A tightens the boundaries between memory
possibilidade de representar o que aconteceu é and language. The ability to represent what
dissipada na memória estilhaçada, e malograda happened is dissipated in the shattered
na tentativa de representar-se em linguagem. O memory, and unsuccessful in trying to
sujeito que viveu experiências de choque tem represent in language. The man who lived
sua subjetividade constantemente questiona- shock experiences has its subjectivity
da em suas certezas, quando estas são invadi- constantly challenged in their certainties,
das pelas lembranças involuntárias que surgem when they are invaded by involuntary
memories that come with the full weight
com todo o peso do vivido. Desse modo, essa
of the lived. This way, this subjectivity in
subjetividade em devir funda-se em uma me-
becoming is based on a memory that is made
mória que é feita de puro rastro, reminiscência,
of pure trail, throwback, which reappears
que ressurge no presente, este então abalado
in the present time, this so shaken by the
pela força do passado que se inaugura de novo.
force of the past that opens again. The truth
A verdade do passado se confunde com a aber-
of the past is intertwined with the opening
tura do presente nos dramas pessoais experien-
of the present in the experienced personal
ciados. É o que se vê na narrativa de Exortação tragedies. This is what we see in the narrative
aos crocodilos (1999), romance de António Lobo Exortação aos crocodilos (1999), a novel by
Antunes, em que os fatos são apresentados nes- António Lobo Antunes, in which the facts
se momento de limiar do acontecimento, que é are presented at the moment of occurrence
todo o acontecer. O sentido que se fala está nes- of the threshold, that’s all happening. The
se movimento. Daí o acontecimento, junto à lin- meaning it talks is this movement. Hence
guagem, permanecer em um processo de cons- the event, along with language, remain in a
tante abertura: a força da experiência presente constant process of opening: the strength of
alterando as lembranças do passado, refazendo this experience by changing the memories of
estas na linguagem que é fala que falha e está a the past, retracing these in language that is
dizer. speak that fail and is to say.

Palavras-chave: Memória; Linguagem; Nar- Keywords: Memory; Language; Narrative.


rativa.

Resgate - Rev. Interdiscip. Cult., Campinas, v. 24, n. 1 [31], p. 99-114, jan./jun. 2016 – e-ISSN: 2178-3284 99
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I n t r o d u ç ã o
Um passo em falso

E
m Exortação aos crocodilos, roman- linguagem é incapaz de dizer essa coisa
ce de António Lobo Antunes de que é tecida pelas lembranças das sub-
1999, a narrativa é um passo em jetividades, das personagens. O roman-
falso. Muito menos que uma história, ce está no divã, e dele saem múltiplas
configura-se como um projeto de nar- vozes que se confundem e gaguejam
rar, que falha sempre em estratégias um quase-enredo, uma quase-história,
linguísticas imprecisas e insuficientes: a que estamos a seguir a esperar...

Uma colcha de retalhos em que as cos-


turas não se sustentam, está cheia de
buracos através dos quais sondamos,
suspeitamos, angustiadamente, uma
resposta à pergunta que funda toda
narrativa: “O que aconteceu?”. Esses
retalhos são as sensações, que, revivi-
das pelas personas, são acrescidas de
uma emoção e de um desejo poten-
cialmente novos que redimensionam a
verdade da memória, e fazem do que
aconteceu algo incerto, questionável,
desestabilizando as possibilidades da
verdade da linguagem e desfazendo
os limites entre o que é passado e o
que é presente.
Imagem 1 – Capa do livro “Exortação aos Crocodilos”, de
António Lobo Nunes, pela Editora Dom Quixote, de Lisboa Tinha sonhado com a minha avó e ao che-
(1999). gar à janela antes da manhã, atravessan-

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do os móveis sem tocar no soalho como Facultar à memória a condição de viver


se continuasse a dormir (o corpo era a
e de ser está além de nostalgia: é fazer
sombra do meu corpo movendo-se sem
do passado o presente e o condicio-
peso nos chinelos porque o corpo verda-
deiro permanecia na cama, nesta cama nante de todo o futuro possível.
ou em Coimbra há muitos anos, perto
dos salgueiros altos, a eu crescida obser- De fato, a dominância do instante pro-
vado a eu pequena ou a eu pequena ob- move uma diluição das temporalida-
servando a eu crescida, não sei) (ANTU- des dos fatos: tudo acontece no agora,
NES, 1999, p. 7).
ao qual vão sendo integrados ao longo
Essa é a cena inicial do romance. Ele dos capítulos os lapsos de memória
começa com um notório jogo de ver- das quatro mulheres que protagoni-
bos em diferentes tempos e modos. zam a narrativa. É o mesmo agora que
Delineia-se, desde aí, o recurso da con- vai se redefinindo pelas lembranças
jugação (e confusão) das temporalida- de cada subjetividade em devir. Como
des, manifesta em linguagem, revela- num quadro cubista, a cena é uma só,
dora da fragmentação e da fragilidade reaberta, no entanto, sob um novo
das subjetividades que ocupam o lu- ângulo a cada devaneio, a cada espas-
gar das personagens nesse livro. A in- mo de memória, refazendo a visão,
certeza do que aconteceu tem sua ori- tornando o mesmo diferente. Todo o
gem nessas subjetividades que estão acontecimento já está dado; o que vai
no limite do ser e do não-ser. Elas são se nos desvelando são as nuances, as
um acontecimento, esvaziado, no en- sugestões de detalhes, sempre envol-
tanto, de toda a potência do acontecer, tas na brumosidade das lembranças
restando, daí, apenas a possibilidade em que não se confia, dado que oriun-
de lembrar. das de subjetividades profundamente
incertas de si próprias, desconfiadas
Traço de semelhança entre as personas
de si mesmas.
do livro, a memória é o que possibilita
algum viver (e algum morrer) à Mimi, Não há, assim, progressão textual. O
à Fátima, à Celina e à Simone. Estão que há é uma circularidade em tor-
presas àquela como a uma tábua de no de um acontecido que se repete: o
salvação, como o que possibilita o ser. mesmo, que, repetido, nunca é o mes-

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mo, porque se faz na intempestividade - Engoliu

própria da linguagem literária. Assim, apressava-se a teimar no caldo julgando


obter o consentimento de pedaços do
a explosão narrada por Mimi é a mes- meu pai (e que não eram o meu pai mas
ma que narram as outras mulheres, e fragmentos de estranhos que alguém
reuniu ao acaso, não podia ser meu pai
nunca é a mesma dita por elas, pois dado que o meu pai nunca dizia
são vozes distintas, subjetividades em - Filha
carência de si mesmas, e nisso seme- dizia

lhantes, que, no entanto, transforma- - Eh

das em linguagem, são sempre outras. dizia


- Tu aí
Isso se manifesta em texto nas expres- dizia
sões que se repetem diferenciando-se - Simone

sempre pelo acréscimo de um novo no caso de me pedir dinheiro emprestado


ou encontrá-lo a rondar-me as gavetas e
termo, um novo sintagma, o novo que mesmo assim o
abala a estrutura linguística, refazen- - Simone
do o dito, re-dizendo, re-definindo as não significava
coisas e os seres. É linguagem sobre - Simone
linguagem num movimento gague- significava

jante, em que se repete sempre o mes- - O que fazes aqui vai-te embora some-te
da vista (ANTUNES, 1999, p. 268-269).
mo esforçando-se por acrescer a este
um termo seguinte que lhe dê sentido. É um jogo do dizer que arquiteta um
[...] fosse um tique, não um chamamento, discurso em devir e apresenta uma
qualquer coisa que a boca sabe de cor ig- realidade contingente, em constan-
norando que o sabe, intitulavam meu pai
a um conjunto de parcelas desconexas te mutação, impossível de ser logica-
contradizendo-se, anulando-se, estra-
mente estabelecida. Porque, aqui, a
nhando-se e onde o termo
realidade é a subjetividade de sujeitos
- Filha
indefinidos e indefiníveis que se fazem
não passava do resultado de uma com-
bustão de acaso, de tempos a tempos a linguagem em processo de elaboração
maçã de adão saltava para diante após
uma colher de sopa e fechava-se numa de si própria.
contracção inesperada, a pupila redonda
amortecia por instantes e tornava a cres- As partes desconexas do sujeito des-
cer, a minha mãe resplandecendo ale-
grias de vitória conectam a linguagem racional. O

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que se escuta, então, é uma fala doen- em cada texto que o forma sem, no en-
tia, esquizofrênica, que não sabe de si tanto, dizê-lo definitivamente.
mesma e, por isso mesmo, não pode
signi-ficar, fixar um signo, ou um sen- Nesse sentido, não há sentido. O que
tido. Fica-se em um regime de signos: há é uma significância ilimitada, que
acaba por constituir um meio em que
Os signos emitem signos uns para os ou- os conteúdos dos signos se dissolvem,
tros. Não se trata ainda de saber o que tal
destituindo-se de suas formas pró-
signo significa, mas a que outros signos
prias, (f)ato que implica uma dessigni-
remete, que outros signos a ele se acres-
ficação do signo, que o torna impoten-
centam, para formar uma rede sem co-
te em si mesmo, precisando, a partir
meço nem fim que projeta sua sombra
sobre um continuum amorfo atmosférico.
disso, remeter-se a outro signo, e este
É esse continuum amorfo que represen- a outro e assim ad infinitum.
ta, por enquanto, o papel de “significa-
O signo não significa. Ele sinaliza,
do”, mas ele não para de deslizar sob o
significante para o qual serve apenas de
aponta. Por isso o que a fala fala não
meio ou de muro: todos os conteúdos é exatamente o que ela diz. A fala fala:
vêm dissolver nele suas formas próprias. nesse trabalho está todo o significado.
Atmosferização ou mundanização dos Na ação da linguagem, no movimen-
conteúdos. Abstrai-se, então, o conteúdo to das palavras é que se promove um
(DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 62). acesso ao significar. Uma fala difícil,
que força as palavras a um limite agra-
O acontecimento de linguagem que é
matical1, condição mesma para fazer a
Exortação aos crocodilos desfaz a noção
poesia acontecer em texto.
clássica de signo linguístico, apontando
ao longo de todo o livro que o sentido
Essa fala difícil é que promove uma
não está no dito, mas no fluxo do dizer.
1 A linguagem empurrada a seu limite, acaba por evitar o
É na dinâmica do signo que se delineia a significante como princípio de entrada do processo de sig-
nificação. O agramatical tende ao assignificante, proble-
possibilidade de um significar. À clássica matiza essa condição de primazia no estabelecimento de
pergunta acerca do significado do texto uma referenciação lógica e inteligível, circunstancialmente
dominante, que privilegia na linguagem o significante. No
ou do livro responde-se com o significan- lugar disso, tem-se uma dinâmica de reterritorializações e
desterritorializações do desejo, o que, segundo Deleuze,
te, com o que é possível referir-se a. O que promove o “rachar das palavras”, abrindo o signo a ressig-
nificar no movimento intempestivo e circular do signo na
quer dizer o livro está a dizer (e a ser dito) linguagem.

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vibração na estrutura da linguagem ocultar. Nesse ponto, a fala está à bei-


literária que é, por isso, criadora, abre ra do desastre. E força uma passagem.
o processo de significância, e este per- Acaba falando a partir da resistência
manece. Inicia-se uma errância da do silêncio que se quer sobrepor. O que
linguagem em que as palavras são in- se tem nas palavras são restos desse
dícios de uma inconstância, de uma in- silêncio.
certeza. Por isso elas não podem tam-
Na verdade, preferir-se-ia não falar, à
bém ser estruturadas, bem acabadas,
maneira de Bartleby2. As experiências
com um significante e um significado
de choque ou traumáticas abalam e
bem definidos. As palavras só podem
desconcertam a razão, o pensamento.
ser também, estrutural e semantica-
Não há como dizê-las. Prefere-se não
mente, imprecisas. Daí os termos em
dizê-las. Prefere-se não. Mas quando se
decomposição no texto antuniano.
força a fala de tais experiências, o que re-
As palavras não se sustentam (- Como
sulta é uma fala selvagem, sem limites,
carregariam assim um significado?).
inaugural, a fala do acontecimento.
Rapidamente elas entram em proces-
so de desmontagem, incompletude, Através das significações abolidas e das
designações perdidas, o vazio é o lugar
recorte e deformação. É um processo
do sentido ou do acontecimento que se
de abertura só. E errância... compõem com o seu próprio não-senso,
lá onde não há mais lugar a não ser o lu-
Como na fala psicanalítica, em que se gar. O vazio é ele próprio o elemento pa-

fala o que ninguém sabe (Cf. FREUD, radoxal, o não-senso da superfície, o pon-
to aleatório sempre deslocado de onde
1974), a fala, no romance, é permitida jorra o acontecimento como sentido (DE-
pelo não-saber. A ausência de pensa- LEUZE, 2007, p. 139-140).
mento, de (cons)ciência é que possibi-
O vazio é o lugar do infinito da lingua-
lita essa fala reveladora e criadora, que
gem. É esse momento de limiar do
diz no fazer da linguagem. O não-pen-
acontecimento que é todo o aconte-
sar abre espaço para a manifestação
cer. Porque este não se efetiva, não se
do desejo, a força impulsionadora do
conclui, mas está a fazer-se, reverbe-
falar. Fala livre, que revela nas falhas,
2 Faz-se referência ao conto-novela Bartleby, o escrivão, de
no limite do que é dito e do que se quer Herman Melville.

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rando na intempestividade da signi- nuidade) entre os tempos: o presente


ficância da linguagem. O sentido está é o outro do ser passado, e vice e ver-
nesse movimento. Daí o acontecimen- sa. O que aconteceu deixa de fundar a
to, junto à linguagem, permanecer em narrativa porque todo acontecimento
um processo de constante abertura. está a acontecer, reverberando sobre
As quatro mulheres do romance par- si mesmo um princípio de ação que é
ticipam do mesmo ocorrido. Estão no incerto.
mesmo acontecer que se inaugura a [...] tectos de rosas de estuque, pirâmides
cada fala de uma delas. Vivenciam-no de folhas, as portadas da varanda que
não lográvamos fechar, golpeei o sujei-
em profundidade, ao ponto de trans- to de chapéu ou o bêbedo mascarado de
mulher que me troçava da taberna, um
mudar seus passados pessoais: a força espantalho assimétrico desmoronou no
da experiência presente alterando as talude o seu fato vazio enquanto uma tos-
se molhada, enquanto a boca
lembranças do passado. É o princípio
- Eh
da rememoração benjaminiana. “Ar-
enquanto o senhor bispo, enquanto o co-
ticular historicamente o passado não mandante, enquanto o general

significa conhecê-lo ‘como ele de fato - Eh

foi’. Significa apropriar-se de uma re- no compartimento onde desmanchavam


a feira antes da vinda do exército, se eu
miniscência, tal como ela relampeja no não for para Espinho, se não me derem o
café, se não tivermos tempo de abando-
momento de um perigo” (BENJAMIN,
nar a vivenda, esconder o carro na vereda
1994, p. 224). de silvas, premir o detonador no pinhal,
o sujeito de chapéu sentado nos chorões
a fitar-me, os guardas espanhóis a pren-
A verdade do que é lembrado no pre- derem-me os braços, a afastarem-me do
meu pai, a empurrarem-me, o meu namo-
sente será tanto mais forte quanto rado a tirar-me a metralhadora
maior o traço emotivo associado à - Estás doida?
lembrança. O passado ressuscita na caras que apareciam e desapareciam no
abertura que o presente apresenta, armazém, o cigarro da viúva entre a mesa
e os lábios, os presépios do Cordeiro ilumi-
no rasgo da consciência do sujeito que nados, a surda a abençoar-me num sorri-
so, a afilhada do senhor bispo a mirá-las a
vive a experiência do momento. O pre- ambas e a mirar-me a seguir como se en-
sente, assim, ilumina o passado. Nesse tendesse por fim

instante, passado e presente se con- - Vocês aí

fundem, e se alteram. Instala-se um a minha mãe amarrava-me a toalha ao


pescoço, aproximava-se com a sopa de
princípio de alteridade (não de conti- cenoura e a colher, tentei explicar ao meu

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namorado que não era doente, não era sado reconstruído, retomado, não se
inválida, podia falar conforme as pessoas
falam, nunca roubei dinheiro a ninguém, sustentam na narrativa de Exortação
não descia aos esgotos a fumar e a contar
moedas mas a minha boca não conseguia,
porque seus limites estáticos são des-
os sons paralisavam-se, não sentia as gen- feitos com a fragilidade da lembrança
givas, não me sentia a mim, graças a Deus
uma frase completa formou-se devagar enquanto estilhaço; abrem-se neles li-
ecoando sílabas, o olho intacto desorbi-
tava-se a conservá-la, a mantê-la nítida, a nhas de fuga do certo que aconteceu
aperfeiçoá-la, ajudando-a a não submer- que tocam no que deveria ter aconteci-
gir em restos de discursos, estilhaços de
recordações, gestos imóveis, talvez meus, do e no que poderia acontecer. Um fato
flutuando sem ordem, rostos muito anti-
gos, familiares e estranhos cria o outro. É um brotar espontâneo
não, familiares que condiciona o narrar. São sintag-
não, estranhos mas nominais e orações coordenadas
não, familiares (ANTUNES, 1999, p. 276- que se justapõem a períodos simples,
277).
incisivos, vibrantes, num frenesi verbal
Os acontecimentos estão no mesmo que liquidifica toda imagem que prin-
lapso de tempo: o agora. Confundem- cipiava a formar-se. As quase-imagens
-se porque se equivalem, substituem- da memória surgem e, imediatamen-
-se, tensionam-se. Nesse forçar os fa- te, esvaem-se em incertezas da lem-
tos, produz-se (e se tem acesso a) o brança, confundindo-se com outras
acontecer em estado puro, o fato aber- lembranças em resto que surgem e se
to, a jorrar intempestivamente no fluxo desfazem. Presente e passado se con-
sígnico das palavras em devir. Os fatos fundem na força do instante criador.
são inconclusos, abertos, em espiral,
A ficção cria sua verdade, pautada no
não linear, “flutuando sem ordem”.
mistério dos não-fatos, sendo “uma
Essa abertura, em verdade, desesta- experiência que, ilusória ou não, apa-
biliza toda noção de estrutura de tex- rece como meio de descoberta e de
to, de tempo e espaço narrativo, de um esforço, não para expressar o que
representação. Está-se a perseguir o sabemos, mas para sentir o que não
acontecimento. A inverdade da me- sabemos” (BLANCHOT, 1997, p. 81).
mória é a origem desse processo. Os A associação livre das palavras e das
“gestos imóveis” como cenas do pas- lembranças revela a condição dessa

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escritura: não há pensamento. A fa- de si e da realidade, estabelecer senti-


lência da linguagem e a impossível do, é um milagre –“graças a Deus”. Mas
representação do passado são resul- isso não dura:
tantes da ausência de pensamento en-
[...] enxergava a minha mãe, a Gisélia, o
quanto consciência, ou seja, enquan- anel do senhor bispo na dispensa, o meu
to instância elaborada racionalmente namorado e o sujeito de chapéu a fitarem-
que ajusta o desejo irrepresentável a -me na camioneta, os guardas espanhóis

uma expressão estruturada e inteligí- empilharam o último caixote e designa-


vam-me com o dedo, lembro-me de pa-
vel. Não é isso o que pulsa no texto de
lavras que assim juntas, umas a seguir às
Lobo Antunes. O que está aí é o desejo
outras, embora dispostas numa sequên-
em potência, uma dinâmica de sen- cia que me parecia correcta não possuíam
sações a interpenetrarem-se e, assim, sentido, compreendia cada uma e não as
a criar a escrita instintiva, a que não compreendia agrupadas visto cavalga-

tem expressão, a que não representa, rem-se, misturarem-se, anularem-se ao


passo que a minha frase ali estava pronta
mas apresenta, com a força do desejo,
a exprimir-se, óbvia, exaltante, nítida, or-
a realidade interior das subjetivida-
denando o mundo, trouxe-a devagarinho
des fragilizadas pelos traumas re-vivi- com a língua até ao vértice da boca sem
dos. E o trauma não tem passado (Cf. que nada saísse do lugar, os ditongos

FREUD, 1974). A escritura literária (po- firmes, as vogais correctas, o nexo sem
uma única falha, uma frase melhor, mais
ética) também não3. Estabelece-se as-
bonita, mais ampla que todas as frases
sim um discurso em devir, que fala no
que consegui até hoje, não existiam dú-
trânsito das temporalidades da língua vidas, segredos, mistérios, tudo simulta-
e da memória. É sempre limiar. Dizer o neamente tão profundo e tão simples, o
indizível: a estratégia da linguagem é que do meu corpo não era meu tornou

circular nela mesma. a pertencer-me, não necessito que me


alimentem, me levantem, me deitem,
Construir uma frase completa, revela- me mudem a roupa às terças-feiras, me
vigiem o sono, receiem que morra, des-
dora de uma certeza do que se pensa, o
cansem que não vou morrer, me passem
que aponta para alguma compreensão
de manhã uma esponja na cara, os om-
3 Conforme propõe Gaston Bachelard, em A poética do espa- bros simétricos, os olhos iguais, as mãos
ço (1988), ao destacar o caráter inaugural do instante cria-
dor da poesia. da mesma idade, eu idêntica a mim na

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camioneta em Alcântara, voltei-me para - Eh


a janela decidida a oferecer-lhes a razão, o
exatamente o que pretendia comunicar-
motivo, a explicação verdadeira, apoiei o
-lhes, o que pretendia esclarecer
nariz ou a testa, a testa, notava-se que era
a testa, no caixilho a fim de me escutarem - Eh
melhor, a testa a pedir
só Deus sabe o que me custou falar tanto,
- Oiçam ser-lhes tão generosa, tão útil

a aconselhar - Eh

- Oiçam e então pude dar-me a recompensa de


alastrar no banco, me despir de ossos, co-
a advertir com segurança
locar uma sobre a outra as mãos desiguais
- Ides finalmente saber à medida que tudo se calava no interior
de mim e a minha mulher e a minha filha
nenhuma saliva a embaraçar-me, nenhum
abandonavam a sala até não sobrar mais
músculo a trair-me, nenhum dente que me
que o carrinho do chá (ANTUNES, 1999, p.
proibisse, os guardas espanhóis e o meu
278-279).
namorado à espera, reverentes, tive a im-
pressão de que alguém O resto que comunica, que esclarece,
(o sujeito do chapéu sempre a palpar a é toda a possibilidade da fala. “Eh” é
nuca?) um ruído, um balbucio, uma negação
da palavra. E é tudo que se consegue
comentava
dizer. Todo o discurso inteligível, ra-
- Está doida
cional, que pretende estabelecer uma
e não era o sujeito do chapéu, era uma verdade, uma ciência, “ordenar o mun-
brincadeira do vento nas casas, essas ma- do”, falha, não se sustenta. A grande
nias do vento que as paredes deformam de fala lúcida e firme, sem “dúvidas, se-
modo que limpei a garganta, estendi o pes- gredos, mistérios”, efetiva-se em um
coço, comprimi a língua nas gengivas, senti
profundo desastre. O que se tenta or-
que o pedaço de um pedaço se imobilizava
denar é a fala que representa o mundo,
e murchava, nada de importante, o pedaço
uma expressão deste; projeto desde o
de um pedaço, a frase inteira, completa,
sem falhas, elucidando o mundo, ultrapas-
princípio condenado ao fracasso, dado
sou os lábios e o fragmento murcho no ins- que a realizar-se por um ser que não
tante em que desciam o vidro se afirma, que não tem certeza de si: o

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pai com trombose se confunde com a íntima dessa literatura, temos que mer-

filha – esta também desfigurada e de- gulhar numa camada especial, a mais
profunda, dessa memória involuntária,
sajustada pelas experiências traumáti-
na qual o momentos da reminiscência,
cas da infância e da vida adulta como
não mais isoladamente, com imagens,
guerrilheira do partido comunista. As
mas informes, não-visuais, indefinidos e
subjetividades em pedaços da filha e densos, anunciam-nos um todo, como o
do pai confundem-se, são incertas, de- peso da rede anuncia sua presa ao pesca-
sordenadas. Uma frase lógica e orde- dor (BENJAMIN, 1994, p. 48-49)

nadora é impossível. O que é possível é


Pode-se sentir a profunda falha, o fra-
uma fala sem lógica, sem pensamen-
casso da imagem e da linguagem ins-
to, a fala do desejo frustrado.
critos no “Eh”. A indefinição das ima-
“Eh” é resultado e, ao mesmo tempo, gens fundada na densidade do discurso
anúncio: um esgotamento da possi- potencialmente incomunicável é o que
bilidade da fala e uma tentativa da permite a fala da Exortação em quatro
mesma. Ficamos a esperar um dizer. vozes. As lembranças surgem, invadem
“Eh” coloca a linguagem em seu mo- a subjetividade em ruínas, estabele-
mento de origem, em que há um pre- cem uma dinâmica de interpenetração
dos resíduos mnemônicos eivados de
núncio no caos instaurado. Anuncia-se
erotismo – substância das experiências
algo na desordem e na falta. Esse algo
traumáticas – que enchem o ser abrin-
é incerto, e nunca se saberá dele, mas
do os limites deste, criando linhas de
pode-se senti-lo todo no momento em
fuga de qualquer limite, o que impossi-
que se apresenta.
bilita a estruturação, a organização do
Sem dúvida a maioria das recordações pensamento, da realidade e da lingua-
que buscamos aparecem à nossa frente gem. No fim, é esta que fala, desestru-
sob a forma de imagens visuais. Mesmo turando e anunciando o que se fica a
as formações espontâneas da mémoire esperar infinitamente.
involontaire são imagens visuais ainda em
grande parte isoladas, apesar do caráter As mulheres estão (inconscientemen-
enigmático da sua presença. Mas por isso te?) à procura de uma redenção. O pas-
mesmo, se quisermos captar com pleno sado lhes vem para participar delas,
conhecimento de causa a vibração mais reconstituí-las, refazê-las e refazer-se

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nelas. E encontra na precariedade-po- miserável, o general, perpetuam-se a


tência do signo linguístico a abertura apoderar-se delas. São subjugadas pela
para balançar-se entre o dizer e o ocul- força da reminiscência revivida e pre-
tar, entre o presente e o passado, entre sentificada que se atualiza como uma
a lembrança e o esquecimento. Por isso “lei de verdade”, uma forma de poder
elas falam, falam até que falham. O que se impõe às suas vidas.
esboço de pessoa que são não susten-
Esta forma de poder aplica-se à vida co-
ta o discurso: gaguejam, não sabem,
tidiana imediata que categoriza o indiví-
não lembram, não terminam a frase, o
duo, marca-o com sua própria individu-
pensamento falha. São subjetividades
alidade, liga-o à sua própria identidade,
frágeis que vibram em uma linguagem
impõe-lhe uma lei de verdade, que deve-
estranha e insuficiente. Por isso a tenta- mos reconhecer e que os outros têm que
tiva de rememorar o vivido no sentido reconhecer nele. É uma forma de poder
de resgatar o passado é desde o princí- que faz dos indivíduos sujeitos. Há dois
pio impossível. É o movimento de tecer significados para a palavra sujeito: sujei-
a memória que revela a possibilidade to a alguém pelo controle e dependên-
de falar do passado. Fazer o passado é cia, e preso à sua própria identidade por
uma maneira de tê-lo, e, consequente- uma consciência ou autoconhecimento.

mente, de ter a si próprio. Ambos sugerem uma forma de poder


que subjuga e torna sujeito a (FOUCAULT,
As mulheres estão à procura de si mes- 2010, p. 278).
mas. Ter o seu passado lhes daria um
presente, um si-mesmo. Elas não se A lembrança determina a persona das
governam, não são capazes de condu- mulheres ao tornarem-nas subjetivida-
zir suas vidas porque são incapazes de des incertas e sujeitas à força da lem-
se relacionarem consigo próprias e com brança traumática. Elas são condicio-
seu meio. São providas de um impoder. nadas pela memória. Suas identidades
Estão sempre sob a custódia de um ou- não passam de meras sujeições à força
tro que lhes manipula o tempo todo em das reminiscências. Não conseguem ser
todos os tempos. Através da memória, mais que isso. Suas ações, inclusive, são
esses manipuladores governam as vi- condicionadas pelo poder da lembran-
das dessas mulheres. O tio abusador, ça, pois o poder se exerce, como destaca
o padrinho pervertido, o namorado Foucault (2010, p. 243), como “um con-

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junto de ações sobre ações possíveis; O texto de Lobo Antunes é um tecido


ele opera sobre o campo de possibilida- denso e instável. A sequência de pa-
de onde se inscreve o comportamento lavras ilimitada é decorrente do acon-
dos sujeitos ativos”. São os sujeitos do tecimento, que é lembrado, fugindo,
trauma, da guerra, em que o governo com isso, das amarras da represen-
de si desmorona no indivíduo neurótico tação do vivido na realidade. O que é
e esquizofrênico que impossibilita uma dito apresenta-se e não representa.
sociedade, um discurso, uma frase em Cada fala é inaugural, um novo pre-
ordem. sente e um novo passado. Uma narra-
tiva que circula numa espiral vista de
Uma escritura da desordem, porque cima, ou seja, muda sem mudar, o ato
coloca em texto a desordem da sub- puro, deixando o ato narrativo a acon-
jetividade contemporânea, sujeita à tecer sem cessar, pois, afinal, “No fun-
força da reminiscência, condicionada do, é o mesmo dia que retorna sempre
pela precariedade do rastro, traduzida sob a forma dos dias feriados, que são
em linguagem insuficiente. os dias da reminiscência” (BENJAMIN,
1994, p. 230).
Falando sobre a obra de Proust, Ben-
jamin (1994, p. 37) diz: “Sabemos que Reminiscência é rastro4, é resto, vestí-
Proust não descreveu em sua obra gio. Pensar um “rigor” da reminiscência
uma vida como de fato foi, e sim uma é aproximar-se da instabilidade da lin-
vida lembrada por quem a viveu”. E guagem do romance antuniano. O que
conclui que temos são pistas do que aconteceu. E
pistas não intencionais. As reminiscên-
um acontecimento vivido é finito, ou pelo
menos encerrado na esfera do vivido, ao cias são indícios deixados sem inten-
passo que o acontecimento lembrado é ção prévia. Fruto do acaso e da negli-
sem limites, porque é apenas uma chave
gência, elas simplesmente acontecem,
para tudo o que veio antes e depois. Num
outro sentido, é a reminiscência que pres- 4 Aqui nos termos de Emmanuel Lévinas (1993, p. 84): “O
creve, com rigor, o modo de textura. Ou rastro autêntico [...] decompõe a ordem do mundo; vem
como em ‘sobre-impressão’. Sua significância original dese-
seja, a unidade do texto está apenas no nha-se na marca impressa que deixa, por exemplo, aquele
actus purus da própria recordação, e não que quis apagar seus rastros, no cuidado de realizar um cri-
na pessoa do autor, e muito menos na me perfeito. Aquele que deixou rastros ao querer apagá-los,
nada quis dizer nem fazer pelos rastros que deixou. Ele de-
ação (BENJAMIN, 1994, p. 37). compôs a ordem de forma irreparável”.

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invadem a consciência fraturada das narrativa: é o mesmo presente a inau-


subjetividades desestruturadas pelos gurar o mesmo passado novo uma vez
traumas. Denunciam uma presença mais.
ausente e anunciam uma ausência pre-
A memória fala na falha. O que ela
sente. Nesse entre elas vibram, pulsam
pode dizer de mais autêntico é do do-
entre as palavras que tentam agarrá-
mínio do não-representável. Essa au-
-las e acomodá-las em suas estrutu-
tenticidade confere à memória uma
ras linguísticas. Mas as lembranças
potência criadora. Ela sai de sua condi-
escapam, tem a selvageria da experi-
ção depositária, passiva e inativa, para
ência de choque, explodem os limites,
um estado de elemento que institui
vazam pelo discurso que se torna ina-
possibilidades de ações, de interpreta-
preensível, denso e indefinido. O fio de
ções e de sensações. As lembranças das
Ariadne é rompido, como as migalhas
experiências de choque são fundadas
espalhadas que garantiam o caminho
no desejo que impulsiona ações instin-
seguro são dissipadas pela força do
tivas, fora do cerceamento da razão. A
tornado- memória do sujeito fratura-
espontaneidade delas rompe os limites
do pelos traumas vividos. A memória
da representação, desfazendo as ima-
desse sujeito está em ação permanen-
gens da memória – que dariam a certe-
te: fazendo, desfazendo, refazendo o
za do que é lembrado – em reminiscên-
que acontece(u), involuntariamente,
cias que são rastros, lampejos incertos
ela desprovê a consciência de qualquer
do acontecido. Nesse movimento de
segurança de si e de toda capacidade
negatividade e luminosidade tem-se o
de organização do mundo.
momento limiar em que se estabelece
É a tessitura do acontecer que promo- a possibilidade da criação. O que se cria
ve o texto literário. Em Exortação aos é uma abertura do acontecimento, em
crocodilos, a dinâmica entre a lembran- que este é percebido em sua dinâmica
ça, o esquecimento e a palavra vai co- de construção. O que aconteceu é im-
sendo e desfazendo o bordado imper- possível de ser representado ou defini-
feito da história. “o mesmo dia” aponta do porque ele, novamente, acontece,
para essa circularidade em que se faz a no relato que está vivo, inapreensível.

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A narrativa do acontecimento vibra em ras do indivíduo, que são puro desejo,


linguagem criadora, um discurso vo- irrepresentável, impalavreável. Fica-
látil, nutrido pelas sensações do agora mos no movimento em que um signo
que engloba presente e passado. Nessa remete a um outro signo, sem nunca
narrativa, está-se a viver de novo o ocor- remeter a um significado preciso, a al-
rido, e, ao mesmo tempo, reelabora-se gum referencial seguro. É a condição
o acontecido (e o sujeito que testemu- do instante inaugural, fala que está
nha), que continua a acontecer na lin- sempre começando, está por dizer,
guagem essencialmente intempestiva. por isso tateante, redundante, despe-
daçada, caótica, e anunciadora do que
A memória falha na fala. Na tentativa nunca chega. É a condição da Poesia:
de evocar o inapreensível – o passado essa linguagem de memória em rastro
vivido –, a fala da memória circula na é potencialmente a linguagem da Poe-
abertura que a incerteza do sujeito sia. Esta que também se faz no agora
promove em relação a si e ao que, de que continua a acontecer e na abertura
fato, aconteceu. As palavras são peda- do signo rachado pela força do desejo
ços de um querer-dizer essencial que criador da subjetividade em ruínas do
não se dá. Respondem apenas à in- indivíduo que está a (des)fazer-se infi-
tenção originária, às sensações obscu- nitamente.

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