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RELAÇÕES E PRÁTICAS GURU-DISCÍPULO:

UM ESTUDO DE CASO

Fernanda Gentil de Mello e Silva Botner

Mestrado em Antropologia Social


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador:
Prof. Dr. Otávio Velho

Rio de Janeiro

2005
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RELAÇÕES E PRÁTICAS GURU-DISCÍPULO:
UM ESTUDO DE CASO

Fernanda Gentil de Mello e Silva Botner

Dissertação de mestrado submetida ao corpo docente do Departamento de


Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

________________________________________ - Orientador
Prof. Dr.Otávio Guilherme Velho

________________________________________
Prof. Dr. Amir Geiger

________________________________________
Profa. Dra. Giralda Seyferth

Rio de Janeiro
2005

2
Agradecimentos

A meu orientador, Otávio Velho, pelo “bom encontro” do Espinoza - aquele que faz
aumentar a nossa potência - e por ter me dado a liberdade de trilhar meu próprio
caminho.

A meus professores no mestrado que me proporcionaram cursos fundamentais:


Otávio Velho, Luiz Fernando Dias Duarte, Eduardo Viveiros de Castro, Márcio
Goldman e Carlos Fausto.

A colegas com quem compartilhei interesses e que enriqueceram todo o percurso,


Hélder Farago, Evandro Bonfim, Sérgio Brissac, Pablo Séman, Diana Lima, Luiz
“Dido”, Consolação, Juliana Jabor, Eloísa Martin, Flávia Pires, Andréa Lacombe,
Maria Elvira e Ypuan Garcia.

A Marcela Coelho de Souza e Eduardo Viveiros de Castro que me ouviram com


paciência e ofereceram sugestões para esse trabalho.

A todos os colegas de curso pela troca enriquecedora.

Ao Centro de Meditação Siddha Yoga do Rio de Janeiro pelo acolhimento.

Aos entrevistados pela disponibilidade e generosidade com que me receberam.

A Márcio pela compreensão e bom humor.

A Ana Clara e João Miguel, por tudo.

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RESUMO

Esse trabalho se baseia num “olhar etnográfico” sobre a relação guru-discípulo em


Siddha Yoga, grupo de origem hindu que se estabeleceu no Ocidente no início da década de
1970. A pesquisa foi realizada no Centro de Meditação Siddha Yoga, localizado no Rio de
Janeiro, ao longo de seis meses, de maio a outubro de 2003, com especial atenção dada às
dez entrevistas realizadas com discípulos entre junho e agosto do mesmo ano.
A investigação apresentada aqui parte da tentativa de colocar em evidência um
preceito central em Siddha Yoga, o de que a relação guru-discípulo é uma prática espiritual.
Essa prática espiritual possui uma série de premissas e características que formam um
quadro particular, com o seu próprio “caderno de encargos”. O esforço a ser feito, portanto,
se concentra em tratar a relação guru-discípulo na sua especificidade. No entanto, vale
explicitar que essa prática não é exclusividade do grupo em questão, o que a torna ainda
mais interessante, mesmo que não se possa fazer generalizações para outros casos sem mais
estudos etnográficos.
Entre outros pontos de exame, a pesquisa atravessa questões que dizem respeito ao
modo como esta relação-prática espiritual é vivenciada por devotos não-hindus
originalmente, considerando que a relação, no âmbito deste trabalho, é entre uma Guru
indiana e os seus discípulos brasileiros.

4
ABSTRACT

This is na etnographic view of the guru-disciple relationship in Siddha Yoga, a


group of hindu origins which settled in the West in the begining of the 70’s. The research is
based on fieldwork in the Meditation Center of Rio de Janeiro between may and october of
2003, with special attention given to ten interviews realized with disciples in june and
august of the same year.
This study highlights a central principle of Siddha Yoga, the guru-disciple
relationship as spiritual practice. Such practice concerns a set of aspects and premises that
gives form to a particular setting. The attempt, therefore, is to treat the guru-disciple
relationship in its specificity, as being the center of analysis. This practice is not exclusive
of the Siddha Yoga group, however it is not possible to generalyze without more
etnographic studies.
This study also raises questions concerning the way this relationship is experienced
by disciples who were not hindus originally, considering that the focus here is the
relationship between an indian guru and her brazilian devotees.

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SUMÁRIO

Introdução 7

Capítulo 1 _Apresentando a relação guru-Discípulo 15


1.1) Gurus no Ocidente: trajetórias 15
1.2) Relação guru-discípulo, o que os gurus Siddha têm a dizer 25

Capítulo 2 _Conhecendo Siddha Yoga 35


2.1) Apresentando Siddha Yoga 35
2.2) Dados e Questões gerais 39
2.3) O Centro de Meditação Siddha Yoga do Rio de Janeiro 48

Capítulo 3 _ Praticando a relação guru-discípulo 56


3.1) Chegada no Centro 56
3.2) Práticas 63
3.3) “Despertar espiritual”, a experiência da iniciação Shaktipat 70

Capítulo 4 _ Diante do guru 75


4.1) A presença física 75
4.2) Sobre o ashram 81

Considerações Finais 90

Bibliografia 93

Anexos 99

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INTRODUÇÃO:

Conheci o Centro de Meditação Siddha Yoga no início de 2001, por recomendação


de uma vizinha que veio a ser depois uma de minhas entrevistadas. Comentei com B.
(utilizarei apenas as iniciais, de todos os entrevistados e participantes desse trabalho, no
sentido de preservá-los) que naquele ano pretendia tentar a seleção do mestrado em
Antropologia, já que pensava seriamente em estudar “religião”, assunto que muito me
interessava. Considerei então que a Antropologia parecia “o lugar próprio” para as minhas
questões, voltadas especialmente para a vivência dos fiéis.
Mais do que depressa B. argumentou que se eu era uma “curiosa” e com “mente
aberta”, como ela supunha, deveria conhecer Siddha Yoga que era logo ali, pertinho da
gente, a duas quadras para ser exata, no Largo dos Leões, Humaitá. Ela, por sua vez, uma
freqüentadora de mais de dez anos, comentou que Siddha Yoga fazia um “bem danado” e
que “graças a deus” tinha conhecido a sua mestra, uma “mulher linda, moderna,
articulada”, verdadeira graça. Mas era ver pra crer. Com certeza eu ia gostar.
Fui umas duas semanas depois, no satsang (literalmente “encontro com a verdade”)
de quinta-feira à noite, reunião semanal do Centro de Siddha Yoga cuja programação
consta, em geral, de cantos de mantras ou palestra, com meditação no final. Neste
momento, basta dizer que foi tudo muito agradável e curioso, pois ao longo do trabalho
certas impressões iniciais, tanto quanto outras posteriores, serão comentadas com mais
detalhes. Continuei indo aos satsangs durante o ano de 2001, sem contudo realizar algumas
práticas, o que me deixou numa posição de “simpatizante”, expressão bem-humorada usada
por alguns devotos.
Em 2002 ingressei no PPGAS e, mais ocupada do que antes além de mobilizada
com os estudos antropológicos, quase não fui ao Centro. No entanto, descobri que havia
uma etnografia sobre Siddha Yoga, uma dissertação do PPGAS defendida em 1999 pela
mestranda Maria Barroso do Amaral, sob orientação do professor Luiz Fernando Dias
Duarte. Naquele momento, não tinha intenção de escrever sobre Siddha Yoga, mas percebi
que mesmo que tivesse me ocorrido essa idéia, lá estava um bom motivo para desconsiderá-

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la. Duas dissertações, com poucos anos de diferença, sobre o mesmo grupo, parecia um
exagero.
Afinal, não estaria falando sobre, por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), ou sobre pentecostalismo, assuntos que justificam o número de trabalhos pela
“centralidade” do tema a partir, entre outras questões, do crescimento do número de
adeptos, força política e por constarem na pauta do senso-comum nacional que vem
discutindo, e quer continuar discutindo, o “fenômeno”.
Mais tarde, considerei que o “central” e o “periférico” não são dados fixos, ditados
institucionalmente, ainda que na leitura de Bruno Latour isso pareça sugerido, quando ele
insiste na importância de se fazer uma antropologia do que é ‘central’para as nossas
sociedades, como por exemplo, a Ciência. Apesar disso, sabemos que qualquer tema,
dependendo da abordagem e de como é desenvolvido, pode ser mais ou menos interessante.
E o que se torna de fato interessante é também, digamos, central.
No entanto, cogitei trabalhos diferentes e cheguei a enveredar por possíveis
pesquisas de campo que se mostraram inviáveis na prática, pelo tempo de que dispunha no
mestrado e até pela distância dos campos inicialmente pretendidos. Além do que, não tinha
muita convicção sobre essas escolhas.
Foi somente em 2003, após ter passado o carnaval num retiro de SiddhaYoga, numa
casa tipo hotel-fazenda, perto de Ouro Preto, Minas Gerais, que arrisquei pensar que aquele
grupo tinha, sim, “pano pra manga”. Pensei que uma dissertação, mesmo bem-realizada,
não poderia ter esgotado o tema. No início do semestre letivo, li a dissertação sobre Siddha
Yoga e confirmei a suspeita. As questões que mais me chamavam a atenção não estavam
contempladas naquela abordagem, em especial a relação guru-discípulo, que veio a ser o
foco da minha pesquisa.
Voltei a freqüentar o Centro de Meditação Siddha Yoga assiduamente, durante o
período que correspondeu a seis meses, de maio a outubro de 2003, já como pesquisadora,
fazendo anotações no meu caderno de campo, bem como agendando as entrevistas
realizadas entre junho e agosto que, vale dizer, só foram possíveis pela minha familiaridade
com o grupo. Caso contrário, teria sido difícil empreender a aproximação correta, propícia,
para que os entrevistados me vissem como alguém confiável que não tinha o propósito de
“distorcer” Siddha Yoga ou ironizar o que porventura eu não compreendesse.

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A despeito da impossibilidade de tratar as múltiplas dimensões do trabalho de
campo e etnografia, talvez faça sentido observar que é bastante conhecida a idéia de que o
modo de fazer trabalho de campo, a forma como a pesquisa é feita, ou seja, o seu método,
traz conseqüências para os resultados alcançados, colocando assim em relação direta e
indissociável problemas de método e de teoria. Como veremos, tanto o método de
trabalho(que incluiu entrevistas), quanto a dinâmica da pesquisa não me levou a trabalhar
as mesmas perguntas, nem os mesmos autores que a dissertação citada sobre Siddha Yoga.
Quanto ao meu período de campo, estarei explicitamente comentando certas
experiências e impressões que me ocorreram durante o trabalho de campo propriamente
dito. Devo sublinhar, porém, que essa reflexão não implica, no que se convencionou
nomear na disciplina, em “reflexividade”, pois refletir sobre o que fazemos, em maior ou
menor grau, não é privilégio da Antropologia, nem de uma “postura metodológica”.
Poderia, com mais propriedade, falar em subjetividade como “meio de
conhecimento”, como escreve Lévi-Strauss(1954), acrescentando que “não é jamais ele
mesmo nem o outro que ele [ o etnógrafo] encontra ao final de sua pesquisa”. O trabalho de
campo representaria, assim, para o antropólogo “única forma de operar a síntese de
conhecimentos obtidos de forma fragmentada e condição para a justa compreensão até
mesmo de outras experiências de campo”( Goldman 2001).

Algumas escolhas

De saída, preciso esclarecer duas das decisões tomadas nesse trabalho. Uma delas
sendo a de concentrar o meu foco de análise na “relação guru-discípulo” e a outra a de ter
optado por incluir entrevistas. Vamos por partes.
Após poucos meses participando dos satsangs do Centro, já me parecia bastante
evidente que o eixo principal do grupo era a relação com o guru. Tudo se dava a partir
dessa relação, através da graça do guru e da devoção do discípulo.
É perfeitamente corriqueiro que alguém vá ao Centro porque gosta de cantar
mantras, ou porque aquele parece um lugar reservado para a prática da meditação, ou para
encontrar pessoas, fazer dali um espaço de socialização etc. Ou todas as opções anteriores.

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Um grande número de adeptos se forma também em decorrência da atração exercida pela
novidade, pelos rituais, música e outras razões. O objetivo é deixar que cada um se sinta à
vontade, pois as pessoas são “livres” e têm o seu “tempo próprio”. O importante é fazer
valer o princípio de Swami (que pode ser traduzido por monge) Muktananda, fundador de
Siddha Yoga no Ocidente, chamado também de Baba (lit., “pai”) que diz: “dou aquilo que
as pessoas querem esperando que um dia elas queiram o que eu tenho para dar”.
Ou seja, se você não tem em mente qual o objetivo de Siddha Yoga, tudo bem, se
não está praticando “o caminho de Siddha Yoga”, não tem problema, contudo a sua
participação no Centro não necessariamente é considerada (por outros devotos ou pela
própria guru) como a de um devoto. Admito que essa era a minha situação que se
evidenciava na resistência a, por exemplo, fazer o darshan ( prestar reverência ao Guru se
ajoelhando em frente ao altar) ou Seva( serviço desinteressado) possibilitando a brincadeira
com o “simpatizante”.
Ao notar os livros disponíveis na livraria do Centro, percebi que dificilmente
encontraria entre os muitos livros e palestras de Baba e Gurumayi (lit., “a que está
absorvida no guru”), atual guru da linhagem, um único que deixe de mencionar a relação
guru-discípulo, ou que não se reporte aos ensinamentos que eles teriam recebido do seu
próprio guru.
No início de cada satsang, a frase de abertura e de fechamento é Sadgurunath
Maharaj ki Jay! , isto é “eu saúdo aquele que me disse a verdade”. Assim também a canção
que abre o programa, Jyota se Jyota, é um pedido de graça ao guru e começa dizendo :
“Acenda minha chama com sua chama, ó Sadguru; acenda minha chama com a sua chama.
Remova a escuridão que cobre o meu coração”. Já o canto final, Gurudeva Hamara Pyara,
é um louvor ao guru que expressa a gratidão do discípulo e diz o refrão “Nosso Gurudeva é
nosso amado! É o amparo de nossa vida”.
Podemos encontrar a relação guru-discípulo visível em seus vários aspectos, como
na decoração do Centro, por exemplo, com muitas fotos dos Gurus da linhagem,
principalmente de Gurumayi e pujas (altares) ao Guru. Mas não é só a recorrência de
imagens, cantos e outras manifestações sobre a relação guru-discípulo que está em jogo. É,
sim, a própria centralidade da relação. A medida que vai se conhecendo o grupo e as

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práticas, percebe-se mais claramente que a relação guru-discípulo é o eixo de organização e
sustentação de Siddha Yoga.
Essa relação guru-discípulo é considerada uma prática espiritual que encarna em si a
meta de Siddha Yoga, isto é, a transformação do discípulo. Se toda relação pode ser
transformadora, essa deve ser transformadora para fazer sentido, é aí que reside tanto a sua
premissa quanto o seu objetivo, ao mesmo tempo causa e conseqüência. Um devoto quando
estava reclamando de problemas do Centro do Rio, concluiu: “Com tudo isso (as críticas
que estava fazendo), não podemos perder de vista o que importa, o verdadeiro sentido de
estarmos aqui, que é a relação com Gurumayi, essa relação que é transformadora,
alquímica”.
Como diz Latour em Reflexão sobre o culto moderno dos deuses
fe(i)tiches(2002:81) ao comentar o trabalho de Elizabeth Claverie sobre a aparição da
Virgem Maria, “o envoltório ontológico criado pela virgem salvadora, seu “caderno de
encargos”, pode-se ousar dizer, obedece a exigências que não recortam, em nenhum
momento, os dois pólos da pobre existência e da pobre representação. Ela faz algo
completamente diferente, ela ocupa o mundo – sim, eu disse o mundo – de uma forma que
surpreende tanto os clérigos como os anticlericais”. E o que dizer sobre o guru e o seu
discípulo, qual é o seu “caderno de encargos”, de que é feita essa relação em sua
especificidade ou de que forma ela ocupa o mundo? Será que é possível dizer que as
exigências que o guru obedece são tais que não recortam os dois pólos, o da existência e o
da representação?
O que pensar de uma vivência religiosa conscientemente centrada na transformação
do discípulo, através dessa prática que conta com a presença de um guru que está, ao
mesmo tempo, nos ashrams, no altar de casa e nos mantras? Como encarar a afirmação do
próprio guru de que “o guru não é uma pessoa, um indivíduo, não é um ser-humano, mas o
poder divino da graça”?
Enfim, e essa é a investigação principal aqui, quais são as características dessa
relação-prática espiritual que forma um quadro particular? Não é de modo algum
arbitrariamente que essa pergunta é feita, mas a partir da compreensão de que é esse o cerne
do movimento espiritual em foco nessa pesquisa.

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Diante dessa compreensão, decidi privilegiar a relação guru-discípulo, mas me
deparei com um possível problema que me levou a optar pelas entrevistas. Apesar de
encarar todas as práticas, o próprio Centro, a relação com os outros devotos, os cantos,
meditação, reverência etc, como “mediadores” que “mostram” a relação dos discípulos com
Gurumayi, e de levar a sério a afirmação de Gurumayi de que a verdadeira relação com o
guru se dá através da devoção, e não da “presença física”, não pude deixar de colocar em
xeque o fato de não estar vendo a Guru em relação direta com os devotos.
Gurumayi passa metade do ano em seu ashram (“comunidade espiritual, mosteiro”)
na Índia e a outra metade em seu ashram em South Fallsburg (próximo de Nova Iorque),
sem nunca ter vindo ao Brasil. Portanto esse fato, a sua “presença virtual” no Centro,
através de fotos, vídeos e até palestras “em tempo real”, me colocou diante da dificuldade
de não poder observar, “in loco”, o comportamento dos devotos com Gurumayi e vice-
versa.
Bem, a opção por fazer entrevistas me pareceu, então, a mais viável e produtiva no
sentido de colaborar com uma visão mais abrangente. Os depoimentos não estariam
colocados como única fonte, mas como dado complementar da pesquisa de campo. Entendo
que trabalhar com entrevistas, gravadas ou não, apresenta inconvenientes (sobretudo se não
se está suficientemente avisado), entre eles o fato de que esses depoimentos são sempre
construções a posteriori, representando a forma como o indivíduo se apresenta diante do
pesquisador, e em alguns casos constituem depoimentos mais ou menos padronizados cuja
“verdade” representa também a “verdade” do grupo a que pertence o depoente.
Além do que, como nos chama a atenção Otávio Velho “encorporações, habilidades
– ou, como diriam os anglo-americanos, embodiment e skills – talvez sejam outras tantas
noções que ajudem a pensar essas mediações, tão pouco habermasianas e ao mesmo tempo
tão partes de uma prática, que nos alertam para não absolutizarmos como fonte de
informação os discursos formais, produtos de entrevistas”.(2003:10)
Levando isso em conta e sabendo que o discurso que aparece nos depoimentos é um
discurso construído social e individualmente, construído mesmo na própria situação social
da pesquisa, é que pretendo tentar entender parcialmente o processo da relação guru-
discípulo no contexto específico de Siddha Yoga. De fato, feita a ressalva, acredito que a

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solução se mostrou muito produtiva. Além dessas entrevistas de caráter formal, foram feitas
outras, informais, sem uso de gravador, que trouxeram dados valiosos.
A importância da visita ao ashram e encontro direto com Gurumayi, evento este
vivenciado por sete dos dez entrevistados, formaram um capítulo à parte, tal o seu impacto
na experiência dos devotos. Claramente, nesse caso particular, o capítulo 4, os relatos são a
minha única fonte.
Quanto aos entrevistados, todos pertencem às camadas médias brasileiras,
condizendo com a grande maioria dos freqüentadores de Siddha Yoga. Os dez entrevistados
são moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro, profissionais liberais, com terceiro grau
completo, entre as profissões, só para citar algumas, constam professor, psicólogo,
jornalista, arquiteto etc. Alguns deles possuem pós-graduação e apenas um entrevistado
tinha apenas o segundo grau completo.
A faixa etária ficou principalmente entre 35 e 50 anos, oito dos entrevistados
correspondem a esta faixa, fora um entrevistado de 23 anos, o mais jovem, e outro de 62
anos. Apesar do grupo de jovens em Siddha Yoga ser significativo e muito atuante, a
maioria dos devotos, num dia comum de satsang, se encontra justamente nesta faixa etária
já referida, portanto esse pequeno grupo de entrevistados representa bem, nesse sentido, o
quadro visível de quem participa dos encontros do Centro de Meditação Siddha Yoga.
No que se refere aos capítulos da dissertação, posso adiantar algumas diretrizes e
um brevíssimo resumo de cada um. No capítulo 1, “Apresentando a relação guru-
Discípulo”, procurei oferecer um panorama da vinda dos Gurus para o Ocidente, com
alguns exemplos de trajetórias, a título de contextualização do tema. Foi no sentido de
colaborar com a familiarização do contexto de um Guru e seus discípulos que selecionei
recortes, com a intenção de apresentar, nesse primeiro momento, uma espécie de pano de
fundo. Também, no mesmo capítulo, procurei levar a sério a “literatura nativa”, os vários
escritos e textos usados como referências pelos dois principais gurus da linhagem Siddha,
além de seus próprios livros. Isto é, apresento a relação guru-Discípulo tematizada pelos
próprios gurus que discorrem sobre questões diversas, como as formas e aspectos do guru,
os falsos gurus e as qualidades principais do guru e do discípulo.
Contudo, devo comentar que somente através das escrituras sagradas não se
conhecem essas religiões (talvez nenhuma), daí também a centralidade da relação guru-

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discípulo do ponto de vista etnográfico. Além de ser uma maneira de não ficar só nos
discursos.
No capítulo 2, “Conhecendo Siddha Yoga”, trabalho o Movimento Siddha em
diferentes enfoques. Inicialmente, tentei apresentar o Movimento Siddha Yoga apontando
os seus fundamentos principais e traçando um breve histórico do grupo. Abordo, em
seguida, dados e questões gerais do grupo em nível global, no sentido de discutir e atualizar
as diretrizes do Movimento como a sua organização, crescimento e problemas enfrentados.
Ao tratar do Centro de Meditação do Rio de janeiro, onde fiz a pesquisa, me volto para as
questões locais, como o próprio espaço físico do Centro, gerenciamento e assuntos internos.
Esse item já se baseia na minha observação em campo.
Os capítulos 3 e 4 se baseiam na pesquisa de campo e entrevistas, sendo
basicamente etnográficos. O capítulo 3 conta o movimento de chegada no Centro,
principalmente dos entrevistados, em que circunstâncias conheceram Siddha Yoga e quais
foram as impressões iniciais. Traz também depoimentos e considerações sobre a
experiência de Shaktipat (lit., “concessão da graça”), ritual de “iniciação espiritual”
geralmente realizado em programa especial de dois dias, ou um dia inteiro, conhecido por
Intensivo. Além disso, as várias práticas espirituais de Siddha Yoga são discutidas e
analisadas, os entrevistados contam um pouco a sua vivência de cada uma delas, bem como
a relação com os outros devotos. O capítulo 4, como dito anteriormente, trata
principalmente do encontro dos devotos com Gurumayi, bem como dos períodos passados
nos ashrams (comunidade espiritual, mosteiro, a morada do guru) de Nova Iorque e/ou
Índia, e o impacto dessa experiência. Já nas “Considerações Finais” não houve intenção de
fazer uma revisão do trabalho, mas de apontar outras possibilidades de estudo e
aprofundamento do tema.

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Capítulo 1: APRESENTANDO A RELAÇÃO GURU-DISCÍPULO

1.1) Gurus no Ocidente: trajetórias

A Renascença Hindu, ou Reforma Hindu, ou Neo-Hinduísmo, foi um


movimento nacional indiano que procurava, ao mesmo tempo, integrar valores ocidentais e
oferecer uma resposta religiosa aos desafios do Cristianismo e do Ocidente. Um movimento
identificado tanto como Reformista, já que várias reformas foram adotadas sob influência
ocidental, quanto Revivalista, ao restaurar a imagem do Hinduísmo dentro e fora da Índia,
constituindo inclusive um discurso “pra fora”, na tentativa de evitar assim distorções e
mal-entendidos sobre a religião hindu.
Um exemplo paradigmático desta perspectiva, que procurava valorizar o
hinduísmo e apresentá-lo de forma acessível aos ocidentais, foi a atuação de Vivekananda
no Parlamento das Religiões de Chicago, em 1893. O famoso discurso de Vivekananda
tomou o sentido de responder e contrapor-se à imagem difundida no Ocidente sobre a
religião hindu, principalmente por missionários cristãos, defendendo uma imagem do
Hinduísmo inclusivista, pluralista e tolerante, revendo uma identidade que dentro da
própria Índia precisava ser restaurada naquele momento.
O discurso de Vivekananda é considerado um dos eventos mais
significativos de divulgação do Hinduísmo, como também de consolidação de uma certa
imagem da religião hindu no Ocidente. A sua mensagem de pluralidade religiosa despertou
enorme interesse para a filosofia hindu e a yoga nos Estados Unidos, abrindo caminho para
muitos mestres que lá desembarcariam em seguida. 1

1
Esta visão continuou a se espalhar através da Sociedade Vedanta, sob a supervisão de Vivekananda. As duas primeiras
Sociedades foram instaladas no país pelo próprio, em Nova Iorque e São Francisco, que permaneceu nos Estados Unidos
por dois anos, entre 1893 e 1896. Swami Vivekananda criou a Missão Ramakrishna em 1898, dois anos após a morte de
Ramakrishna( guru que enfatizou o aspecto amoroso e devocional do hinduísmo). Com sede estabelecida em mosteiro às
margens do Ganges, a Missão tinha como duplo objetivo a realização individual e o serviço social, como doação de
comida e educação para todos os indianos. Havia na Índia muitos reformadores que trabalhavam em prol do serviço social
e também vedantistas, mas era raro encontrar alguém que fosse ao mesmo tempo vedantista e reformador social, pois esta
perspectiva contrariava a visão tradicional vedantista da auto-realização como único objetivo a ser buscado pelos devotos.
(Madan 2003 e 87)

15
Os mestres hindus que foram para o Ocidente no final do século XIX e
início do século XX, estavam motivados pelas questões da Renascença Hindu e a
necessidade de representar o Hinduísmo. O principal nome deste momento foi Paramahansa
Yogananda que fundou o segundo grupo hindu com presença expressiva nos Estados
Unidos, estabelecendo-se no país em 1920. Parte deste sucesso é explicado pela adoção de
propaganda e ampla divulgação na mídia, jornais, revistas e rádio, o que atraiu grande
público.(Barroso, 99)
A essência dos ensinamentos de Yogananda concentrava-se na idéia de que
embora a realização de Deus fosse possível aqui e agora no Ocidente, ela não dependia de
uma mera vontade individual, mas também de planos divinos pré-estabelecidos, dentro do
qual a presença de um guru como iniciador seria imprescindível. Yogananda ensinava a
krya yoga, que se apóia em técnicas de respiração como medida para se entrar em contato
com planos mais sutis, em direção ao seu propósito final, a realização da alma como
centelha divina.(Barroso, 99: 43)
No entanto, a vinda do Siddha Yoga para o Ocidente, no início dos anos
70, através de Swami Muktananda, assim como a vinda de diversos outros gurus, possui um
pano de fundo bastante diferente daquele que regia a migração de mestres durante o início
do século XX.
A Independência da Índia já era uma realidade, obtida em 1947, e o
Hinduísmo não precisava mais se apresentar ao Ocidente. Devidamente apresentado,
ocupava o papel de religião do Estado, formando um novo contexto.
As relações entre religião e política na Índia são complexas e
historicamente variáveis. No entanto, após a Independência, a despeito da antipatia inicial
de Nehru, um dos líderes da Independência indiana, (Madan, 98) de relacionar líderes
religiosos e plataformas políticas, as novas organizações religiosas vinham
progressivamente participando de uma forma mais explícita na política Nacional. O cenário
indiano passou a consolidar esta tendência, compondo um tipo determinado de secularismo.
Em 1980 este imbrincamento político-religioso se tornou fato, a partir
desta visão particular de secularismo: “the term ‘secularism’ as used in the indian press and
in political practice, no longer referred to a political system that attempts to distance itself

16
from religious affairs. With the increasing proeminence of hindu nationalist ideology,
secularism came to be widely interpreted as the state’s obligation to support all religions,
with the greatest support going to Hinduism, the religion of a purported majority of
indians”( McKean, 1996)
Esta mudança no quadro político e institucional da Índia reflete-se de
muitas maneiras, inclusive nas estratégias de propagação do Hinduísmo. Houve uma
tendência, por exemplo, de tratar o Hinduísmo como filosofia, modo ou estilo de vida. Um
exemplo de propagação desta imagem foi Mahesh Yogi que chegou aos Estados Unidos em
1959, originando a Meditação Transcendental (TM). Embora ele proclamasse a sua
inspiração Védica, insistia que a Meditação Transcendental não era religião, mas um
“programa cientificamente comprovado”.(Madan, 2003).2
Assim, a vinda de diversos grupos e gurus para o Ocidente, nos anos 60 e
70, se valia das muitas transformações em processo no território indiano, como
financiamento e apoio a grupos religiosos. Mas não era só isso. Como se sabe, as mudanças
não estavam acontecendo somente na Índia e a “migração hindu” vinha informada também
por todo o fenômeno da Contracultura.
Muito já foi escrito a respeito da Contracultura dos anos sessenta nos
Estados Unidos e de sua influência no estilo de vida americano. Maria Barroso(1999), em
sua etnografia sobre o Siddha Yoga, discorre sobre o tema num capítulo bastante
ilustrativo, Valéria Lyra(1987) faz o mesmo em seu estudo sobre os adeptos do Rajneesh(
depois conhecido como Osho) em Brasília, também Silas Guerriero ( 1989) na dissertação
sobre Nova Gokula, principal sede do Movimento Hare-Krishna no Brasil e Marcos
Silveira( 1999)na sua tese sobre o principal ritual do Movimento Hare-Krishna, o Hari
Nama Sankirtana.
O ambiente contra-cultural fazia dos Estados Unidos, principalmente, um
local favorável para os novos gurus. Entre os grupos mais importantes que vieram para o
Ocidente nessa época, podemos mencionar – fora o próprio Swami Muktananda, introdutor
do Siddha Yoga, cuja trajetória será examinada com detalhes posteriormente – Swami

2
Um dos críticos desta imagem, por sua vez, coloca a questão da seguinte forma: “The first issue that confronts the
modern hindu is that of self-image. Due to an infortunate posturing hindus often claim that theirs is not a religion but
rather a way of life and that hindus do not believe in conversion. Both these premises are false and indefensible, Hinduism
is a religion based on the illuminations of the Vedic rishis, as expressed in the Vedas, the Upanishads, the Baghavad Gita

17
Chidananda, que iniciou em 1959 a divulgação no Ocidente da “Divine Life Society”;
Mahesh Yogi, já citado, que criou a Meditação Transcendental começando a sua divulgação
em 1958 na Inglaterra e em 1961 nos Estados Unidos; Swami Prabhupada que chegou aos
Estados Unidos em 1965 onde fundou a “Society for Krishna Consciousness”(ISKCON);
Balyogeshwar que estabeleceu a “Divine Light Mission”nos Estados Unidos em 1970, dez
anos após a criação do grupo na Índia por seu pai; e Rajneesh (que nos seus últimos anos de
vida se auto-nomeou Osho) que iniciou o Movimento Rajneesh na Índia em 1974 e fundou
a comunidade de Rajneeshpuram, nos Estados Unidos, em 1981 ( Rawlinson 98, Barroso
99).
Srila Prabhupada é considerado um exemplo de guru bem-sucedido no
Ocidente, por ter sido aquele que melhor empreendeu a divulgação e estabelecimento do
seu Movimento, conquistando um grande número de discípulos e fundando vários ashrams
(em sânscrito asrama: centro espiritual, local de retiro monástico, lugar onde habita um
guru ou santo) e templos.
Silveira trabalha em sua tese a chegada de Srila Prabhupada, fundador do
Movimento Hare Krishna, em 1965. Para este guru a “Consciência de Krishna pura” estava
morrendo na Índia e poderia encontrar solo fértil no Ocidente. O desejo era espalhar a
consciência de Krishna no mundo inteiro e Prabhupada profetizava uma Revolução de
Krishna que começaria nos Estados Unidos. “Isto é a ideologia do Movimento Hare
Krishna obviamente. O que realmente vale a pena considerar, é que tal percepção só faz
sentido dentro da relação de Srila Prabhupada com seus discípulos”(99: 49).
Quando Prabhupada chega aos Estados Unidos, esclarece Silveira, o
Vedantismo característico da Missão Ramakrishna era bem conhecido nos círculos
alternativos e espiritualistas, como o próprio Prabhupada comentou em suas cartas ao Prof.

and the Shaivic agamas. With its emphasis on self-Knowledge the hindu tradition celebrates diversity, but the unity

18
Stall. A visão que os círculos contraculturais tinham do Hinduísmo era, em larga medida,
as divulgadas por Vivekananda e seus seguidores, desde 1893. 3
Silveira comenta que o movimento de Sankirtana chega pronto aos EUA,
mas a ISKCON (Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna) que Prabhupada
funda, em 1966, é um claro exemplo de “nova religião”, característico da contracultura dos
anos sessenta, e concorda quando Robert Bellah (1986) analisa a ISKCON, entre outras
seitas, como uma “paródia dos movimentos políticos e religiosos mais amplos que eles
representam”. Pois acredita que esta afirmação, entre outras considerações que Bellah
levanta, tem como fundamento principal as dimensões indianas mínimas de Chaitanya
Bhakti, base do Movimento de Prabhupada, enquanto que nos EUA, já nos anos 70, o
movimento se estabilizaria em torno de quatro mil adeptos, inclusive enviando convertidos
para a Índia. (Barroso, 99: 50)
De acordo com Swami Chandramuka, o responsável pelo ashram Hare Krishna
Vrajabumi, em Teresópolis, com quem conversei em várias ocasiões durante 2003, o
número atual de devotos ocidentais e indianos é praticamente o mesmo na Índia, pois nos
templos pode se encontrar algo como metade/ metade.
Porém, o caráter “eminentemente ocidentalizado” do Movimento Hare Krishna, bem
como o maior número de adeptos ocidentais no início do Movimento e ao longo de muitos
anos, suscitou questionamentos como os do antropólogo Charles Brooks, em seu livro
“Hare Krishnas in India”. 4

underlying this diversity is apparent to each hindu and any objective outsider”(Kak, 1990)
3
Prabhupada portanto não estava pregando em terreno virgem. A Chaitanya Bhakti de seu mestre espiritual,
só poderia fazer sentido se ele conseguisse chamar a atenção, naquele meio americano, para a sua versão do
que e de como deveria ser o louvor à Krishna. “Mais uma vez o Hari Nama Sankirtana foi a solução
encontrada. Foi cantando hare Krishna hare Rama, acompanhado por um par de címbalos, um tambor ou
harmônio, que Prabhupada chamou atenção de jovens alternativos de Nova Iorque”( 99:49)

4
Brooks(1989) faz uma etnografia de Vindraban, cidade onde existe um grande templo e comunidade Hare Krishna,
procurando analisar justamente as interações entre os devotos ocidentais e os indianos desde 1975, quando se estabeleceu
o complexo criado em torno do templo Krishna-Balaram. Assim descreve o seu “problema”: “Members of the
International Society for Krishna Consciousness(ISKCON), foreigners to India, yet Hindus by a complex process of
conversion and cultural change, have successfully established a temple in the traditional pilgrimage town of Vrindaban,
and it has become a popular part of that town’s sacred complex. (...) Futhermore, since in the traditional view, it is an

19
Srila Prabhupada e seus adeptos gravaram um disco com os Beatles e o
“Maha Mantra”, o famoso “hare Krishna hare Rama”, foi incluído na trilha sonora do
musical Hair, associando-se à cultura hippie novaiorquina. “O Sankirtana chegava ao
mundo pop ... sugerindo mais uma vez um sistema simbólico em formação, no trânsito
religioso da Contracultura. Tal coincidência nos traz de volta ao desafio de entender esta
via de mão dupla em que o Movimento demonstra atuar, pois o Hari Nama Sankirtana, em
particular, surge, neste modelo, como operando uma mediação entre dois movimentos
culturais – Contracultura e Neo-hinduísmo...”(99:53)
Outro guru, o Rajneesh/Osho, criou adeptos e muitas controvérsias, de
alguma maneira parece ter sido figura marcante para a construção de um imaginário sobre
gurus, no que diz respeito às práticas sexuais e enriquecimento próprio. Ao situar a história
do movimento “Osho neo-sannyas”, criado pelo então Bhagawan Sri Rajneesh, Valéria
Lyra distingue algumas de suas fases.
Professor de filosofia, Osho cria, em 1968, um centro de meditação em
Bombaim, onde desenvolveria suas técnicas terapêuticas, aberto a um público nem
exclusivamente indiano, nem exclusivamente ocidental. O local, apesar de ser chamado de
ashram, não correspondia aos ashrams locais. Suas meditações não obedeciam à
contemplação e seriedade dos iogues, ao contrário, eram festivos e o Bagawan dizia que
“tudo era uma grande brincadeira”. O fato mesmo de atrair ocidentais ao seu redor já
implicava num certo afastamento da comunidade hindu daquelas proximidades.(Lyra, 87:
34) A preocupação do Bhagawan naquele momento era formar terapeutas que, mais tarde e
paralelamente ao centro, divulgariam as técnicas do mestre, assim como criar um “centro
energético”, para restituir a “plenitude da consciência”, desaparecendo a dicotomia entre
sujeito(eu) e objeto(mundo). (Lyra 87:36)
Em 1974, o centro localizado em Bombaim não comportava mais a quantidade de
adeptos e visitantes que atraia, mudou-se então para Poona, a capital do estado de
Maharastha, perto de Bombaim, transformando-se numa comunidade espiritual, dando

impossibility for foreigners to become Hindu, much less Brahman, as these Western devotees claim to be, a paradox is
created by their very presence. Pragmatically, then, I wished to know how this conflict was being resolved in the
situations of every day life in Vindraban, and what consequences were resulting from that resolution.”

20
início a uma das fases mais prósperas do Bagwan e seu movimento. Esta fase, em Poona,
foi chamada de “a grande expansão” e ficou muito marcada pela ênfase na liberação da
energia sexual. A energia sexual era uma preocupação que se sobressaía às outras. Os
trabalhos de meditação tinham a liberação da energia como ponto de partida, os exercícios
estavam voltados para essa preocupação, pois, de acordo com o mestre, seria a partir dela
que o homem “reprimido do Ocidente” poderia começar a sua trajetória religiosa. O
primeiro obstáculo, para se chegar ao estado pleno, era a repressão exercida pela sociedade
sobre o sexo nos ocidentais. ( Lyra 87:42-43)
O comportamento do Bagawan, que promovia orgias e colecionava carros, não
parecia convir a um “homem religioso”, abrindo a discussão sobre a diferença de
compromisso e moral entre o guru e, por exemplo, sacerdotes da Igreja Católica.
Vários dos livros do Bagwan foram dedicados, de acordo com o próprio, a
responder as lacunas deixadas pelo conhecimento ocidental, através do “holismo da
tradição oriental”. Os discursos de Osho foram gravados e publicados em mais de 350
livros, versando sobre os mais variados temas: Tantra, Yoga, Buda, Cristo, Jung, Reich,
Freud, Marx, Darwin e outros. O mestre dizia que cada indivíduo tem seu próprio destino,
seu potencial a realizar, não existiria desse modo uma técnica única a ser adotada no
ashram, nem a mais adequada. Neste sentido, o centro procurava organizar suas atividades
multidisciplinarmente, essas técnicas passavam pelo Budismo, Sufismo, Yoga,
Cristianismo esotérico, todas com um único objetivo: promover uma expansão para o auto-
conhecimento.(87:51)
Esta visão holista do Bagawan faz coro com o que poderia ser chamado de uma
espécie de “neo-hinduísmo diluído” que, em muitos momentos, se aproxima da “Nova
Era”, perfazendo uma religiosidade que se dispõe a experimentar vários conteúdos, pois o
somatório de experiências pretende levar ao sentido espiritual último, à realização ou auto-
conhecimento, como incentiva o Bagawan. Leila Amaral, em sua tese sobre a Nova Era,
defende que: “...o sentido espiritual último só existiria, para esses buscadores, de forma
acabada, no conjunto de suas realizações, necessitando-se para senti-lo proceder a um
somatório, o mais completo possível. ... Uma espécie de irreverência espiritual contribui
para essa religiosidade aberta a vários campos de sentido que podem ser
experimentados...Uma busca não de homogeneidade, mas de correspondências de sentido,

21
em um extenso leque de tradições espirituais. Uma religiosidade plural, sim, mas vazia,
para a apropriação de técnicas espirituais e modelos religiosos diversos, tendendo a ser,
portanto, sincrética e vaga.”(Amaral, 2000:178) .
Em Poona, verificava-se o acirramento das tensões sentidas tanto pelo governo
quanto pelos moradores locais.Isso, aliado às dificuldades de saúde do Bagwan, foram
motivos suficientes para que o grupo se retirasse do território indiano indo procurar abrigo
no Ocidente. Em 1981, a comunidade e o mestre mudam-se para o estado do Oregon,
adquirindo uma fazenda que ficou conhecida como Rajneeshpuram (“cidade do Rajneesh”).
O objetivo era construir uma cidade “alternativa e auto-suficiente onde todos poderiam se
auto-realizar”. Instalou-se ali a Rajneesh Foundation, responsável pela administração da
comunidade. Assim é que Rajneeshpuram se tornou modelo da “grande comunidade que
deu certo” pelo trabalho organizado e sistemático dos discípulos.5
Para que fosse possível sua permanência nos EUA, fez-se necessário a
institucionalização do grupo enquanto seita religiosa, obrigando-os a estabelecerem os
dogmas e princípios necessários. (87: 38-40) A partir de 1983, a comunidade passou a ter
sérios problemas, pressionada a se comportar como “verdadeira religião”, acabou criando
uma caricatura disso. Lançava-se a Bíblia do Bagawan. Na verdade, diziam os devotos, era
a forma como o mestre respondia às pressões que vinham de fora. Neste mesmo período,
em que se acirravam os problemas com o governo americano, o Bagawan sofre, por parte
de sua mais antiga ajudante que fugiu para a Suécia, um golpe que levou da Fundação
Rajneesh a quantia de 35 milhões de dólares aproximadamente. Rajneesh é expulso em
1985 e retorna à Poona, reestabelecendo seu ashram que funciona até hoje, falecendo cinco
anos depois. ( 87: 62-80)

5
Neste ponto, de acordo com Lyra, existe um desvirtuamento da ideologia “hippie”, pois se na contracultura se observa
o desapego das coisas materiais, no Rajneeshismo se propõe a revalorização dos bens, uma maneira de tirar proveito
daquilo que o homem produziu. Não caberia continuar, de acordo com o Bagawan, “negando o sistema de olhos
fechados”. Uma representação icônica desta perspectiva do Bagawan era a sua famosa coleção de Rolls Royces.

22
****

O exemplo de Rajneesh, juntamente com o de Srila Prabhupada, foi analisado por


Silveira como obedecendo a um padrão. Swami Muktananda, guru de Siddha Yoga,
poderia também se encaixar no modelo proposto: 1. Formação espiritual em território
indiano, 2. Estabelecimento formal da vida renunciada em território indiano, 3. Partida para
o Ocidente em missão de pregação e conversão, 4. Aceitação de discípulos, formação de
comunidade de adeptos, estabelecimento de centros, templos e ashrams, 5. Retorno à Índia
com o estabelecimento de comunidade de adeptos e ashrams em território indiano, 6.
Trânsito entre a Índia e os países onde a missão foi estabelecida.
“Com o estabelecimento de um trânsito de devotos entre a Índia e o Ocidente, o
movimento característico do universo das seitas neo-hindus opera plenamente. Swamis e
seus discípulos circulam por templos e comunidades, estabelecendo uma contra-
estruturação de um estilo de vida bastante formal, caracterizado por disciplinas espirituais e
realização de cerimônias. Contracultura orientalizada no Ocidente, Neo-hinduísmo
ocidentalizado na Índia.” (99: 58)
Já o trabalho de McKean nos aponta para tipos e graus de “ocidentalização”
experimentados por estes grupos a partir de seu deslocamento para o Ocidente. 6
Um dos pontos mais polêmicos em relação a estes grupos no Ocidente, a relação
comercial, é abordada de uma forma que nos permite relativizar a idéia de uma simples
consequência da “ocidentalização”. A este respeito, McKean nos remonta a raízes mais
antigas, comentando que as relações comerciais entre os líderes de grupos religiosos na
Índia e a sociedade eram um fato desde o final do século XVIII e ao longo do século XIX.
Com isto, não se pode dizer que apenas os gurus que vieram para o Ocidente teriam um
perfil “mercantilizado”, uma vez que as mesmas práticas aconteciam dentro da própria
Índia entre os devotos hindus.

6
Apesar das críticas à McKean sobre a sua análise dos grupos neo-hindus, onde faz uma espécie de “vitimização” dos
adeptos e tira conclusões simplificadoras sobre a relação guru-discípulo, e embora concordando com Kripal, que escreve
uma resenha sobre o livro de McKean, comentando a improbabilidade da relação guru_discípulo “nada mais ser” do que
troca econômica assimétrica, exploração social e nacionalismo político(Barroso, 99: 70), é importante situar a questão do
“comércio da espiritualidade”(McKean, 96: 18-19).

23
Apesar disso, parece que a vinda de gurus para o Ocidente fez com que este ethos
passasse por uma significativa acentuação, ainda que houvesse o caráter inicialmente crítico
dos movimentos alternativos à sociedade de consumo. Prova disso são as numerosas lojas
dentro dos centros de meditação Siddha Yoga hoje, que respondem por um comércio
expressivo de artigos, bem como as vendas através de listas na Internet7, além das
reclamações dos devotos sobre os preços dos Intensivos (principal programa do Centro), e
queixas de ex-devotos sobre a quantidades de “quinquilharias” que acabam comprando em
momentos de “descontrole”. (Barroso, 99:70)
Outros aspectos que apontam a “ocidentalização” dos grupos de origem hindu, são
os tecnológicos, gerenciais e de mídia. No caso de Siddha Yoga, tem sido cada vez mais
freqüente a realização de cursos intensivos satelizados, que ocorrem simultaneamente em
todos os centros ao redor do mundo. Este recurso permite uma interatividade em tempo real
entre os centros, que é muito apreciada e sempre elogiada pelos devotos no início dos
programas deste tipo, por permitir maior eficiência em nome da missão Siddha e maior
aproximação entre os devotos em torno de Gurumayi, atual Guru.
No campo gerencial, Siddha Yoga é administrado pela SYDA Foundation,
organização americana localizada no ashram de South Fallsburg, próximo à Nova Iorque,
que orienta todos os centros, recomendando as suas diretrizes e financiando viagens de
swamis e do próprio guru pelos diversos centros e dois ashrams. Como disse, certa vez,
uma devota em entrevista “Siddha Yoga é uma religião indiana com organização e
marketing americano”.

7
Segue, nos anexos, exemplo de correspondência pela internet de venda de produtos.

24
1.2) Relação guru-discípulo, o que os gurus têm a dizer.

Siddha Yoga oferece textura e forma contemporâneas a um conjunto de valores,


perspectivas e disciplinas centradas no que ficou conhecido na espiritualidade indiana por
termos como gurubhakti, “devoção ao guru”; gurupasana, “reverência ao guru”; gurupasti,
“adoração ao guru” e gurumarga, “o caminho do guru”.
A palavra sânscrito guru é frequentemente traduzida como “professor”. De acordo
com William K. Mahony esta tradução é apropriada, porém algo limitadora, pois guru se
refere a um tipo especial de professor, já que na Índia existem muitas palavras para
descrever aquele que ensina um outro. Além do que, comenta Mahony, o termo mais antigo
na Índia que se refere a professor é acarya, “aquele que sabe e ensina o modo apropriado de
conduta”, um significado que sugere que a noção antiga de ensinamento envolve mais do
que simples passagem de informação. O acarya se preocupava com o desenvolvimento
espiritual do aluno e não com a aquisição de conhecimento. A educação formal então era
dirigida para brahmavarcasa, a compreensão e a experiência do “esplendor de Brahman”, e
o acarya não ensinava apenas por instrução formal, mas pelo seu exemplo.(Mahony 97:239)
Swami Muktananda escreveu a respeito da necessidade de um professor: “It is
universally true that in all fields, if there is a student, then there must also be a teacher. ...
similarly, if there is a spiritual seeker, there must also be a guide to point out the right path.
In Siddha Yoga, the Siddha Guru guides the seeker”.(94:59)
Sobre a sua trajetória espiritual, explica: “Quando estava empenhado em minha
sadhana, segui muitos professores e muitos caminhos. Li bastante sobre os santos e cheguei
à conclusão de que só poderia conhecer o meu ser interior com a ajuda de um Guru. E isso
era verdade: recebi tudo do meu Guru e ainda hoje recebo suas bençãos. Por essa razão
digo que não há nada maior ou mais precioso do que o Guru.”(2003:129)
O pensamento indiano sustenta que quem busca conhecimento espiritual deve
procurar a ajuda de um professor, porque o absoluto é inconcebível para a mente que não
tenha passado por uma mudança de atenção e percepção necessárias para compreender a
sua própria fonte, a realidade última. Como este não é um conhecimento que possa ser
apreendido pelo esforço mental, aquele que deseja conhecer o absoluto deve se apoiar num

25
professor que esteja estabelecido neste conhecimento. Como esclarece o Katha Upanishad:
“Unless taught by a teacher[ who truly understands], there is no acess there, for – being
more subtle than the subtle – [ ultimate reality] is inconceivable. Dearest one! This
knowledge is not attained through reasoning. Truly, for ease of understanding it must be
taught by another”.
Na Gurugita, a “canção do guru”, cantada diariamente nos centros e ashrams e
considerada por Swami Muktananda “o texto indispensável” de Siddha Yoga, o guru é
definido como um poder transformador. O propósito fundamental da relação
guru_discípulo é a trasformação do discípulo. Se toda relação é ou pode ser transformadora,
essa deve ser transformadora para fazer sentido, é a sua meta.
A Gurugita diz: “A sílaba gu é escuridão, e é dito que a sílaba ru é luz. Não há
dúvida de que o Guru é, efetivamente, o conhecimento supremo que absorve a escuridão da
ignorância. ( estrofe 23) A primeira sílaba gu representa princípios tais como maya e a
segunda sílaba, ru, o conhecimento supremo que destrói a ilusão de maya.(estrofe 24).
Se, de acordo com a perspectiva de gurumarga, o caminho para alcançar a união
com Deus é através da relação guru-discípulo, então a pergunta é: o que ou quem é o guru?

Formas do Guru

É importante saber que de acordo com os ensinamentos de Siddha Yoga, assim


como de outras tradições hindus, existem diferentes formas ou aspectos do guru. A pessoa
física é só uma destas formas, isto é, o guru físico, o professor humano a quem os devotos
expressam amor e reverência.
Diz Muktananda: “Na verdade, o Guru não é, de forma alguma, um ser humano. A
palavra Guru na verdade se refere ao criador da glória deste mundo. No Shivaísmo da
Caxemira é dito que Deus executa cinco ações: criação, manutenção, dissolução, ocultação
e concessão da graça. O Shiva Sutra diz: ‘o Guru é o poder outorgador da graça de
Deus.’Em outras palavras, o Guru não é um indivíduo, mas o poder divino da graça fluindo
através daquele indivíduo. Esse poder é a mesma shakti que cria e sustenta o mundo. O
princípio do Guru está dentro de todos como o Ser interior e assim, quando honramos o

26
Guru, honramos nosso próprio Ser. O Guru é o Ser; não é nada mais que a suprema
Consciência e o supremo êxtase.”
A presença física do guru para o seu discípulo é necessariamente constrangida
por limites de tempo e espaço. O mesmo não é verdade para outras formas do guru que
podem ser acessíveis ainda que o guru físico esteja muito distante. Swami Chidvilasananda
comentou, “Muitas pessoas perguntam ‘como posso aprender qualquer coisa se não tenho o
mestre na minha frente?’” Ao que ela respondeu dizendo “É a sua bhava [atitude], a sua
devoção que determina o que você obtém”. Siddha Yoga sustenta que o discípulo não
precisa da presença física do guru para obter a sua graça. Ao ensinar a importância da
devoção, independente da presença ou ausência do guru, Gurumayi (anteriormente Baba
também contava a mesma história) contou a história de Eklavia.
A história: “No Mahabarata há uma história de um guru de nome Dronacharya, que
foi o maior mestre na arte do arco e flecha que o mundo jamais produziu. Ele ensinava
apenas a príncipes.Um dia, um garoto tribal de nome Eklavia se aproximou dele e lhe
solici ãec(a)6.80604(p)-9.20196G04ê.05851(i)5.39837(a)

27
_ Eu.
_ Quem lhe ensinou?
_ Eu aprendi com meu guru.
_ Quem é o seu guru?
_ Dronachyara.
Eles levaram Eklavia a Dronachyara e lhe disseram:
_ Aqui está aquele que atirou a flecha. Ele diz que você lhe ensinou este segredo. É claro
que você o ocultou de nós.
Dronacharya interpelou Eklavia:
_ Com quem você aprendeu este segredo?
_ Você se recusou a me ensinar, então fui para casa e fiz a sua imagem em argila – disse
Eklavia. – Meditei regularmente diante dela e conscientizei-me da minha identidade com
você. Então, espontaneamente, este segredo se revelou dentro de mim”.
Comentando a história, Baba escreveu: “De modo que o Guru não tem que decidir
dar shaktipat (a iniciação, a concessão da graça do Guru, o despertar da energia espiritual
do discípulo, chamada de kundalini). Você pode obrigá-lo a dar a você, como fez Eklavia.
O amor e a devoção têm imenso poder. Através deles, você pode conseguir o que quiser do
seu Guru”. A meditação de Eklavia é conhecida como gurubhava, um termo traduzido
como “meditação na forma do Guru”. 8
Em Siddha Yoga, grande ênfase é dada a outra forma do Guru chamada de “Guru
interno” ou “Ser interior”. Este Ser interior está constantemente acessível, mas apenas
depois de receber a shakti do Guru físico, ou seja, após o discípulo ter sido “despertado”,
será possível aproximar-se do Ser interior, vê-lo em meditação, visões ou sonhos.
Perguntaram certa vez ao Swami Muktananda “O Ser interior é o meu Guru?”, ao
que ele respondeu: “O Ser interior é o seu Guru se você tem acesso ao Ser interior. O Guru
é aquele que mostra o caminho. Se o seu Ser interior pode mostrá-lo o caminho, muito bem.
Em meditação você deve procurar o Ser interior e ver se pode receber orientação
dele”.(94:307)

8
Sim, diria Latour, Eklavia “fez falar” a estátua, que disse mais do que o próprio o guru. A estátua de barro supera o seu
criador e até mesmo aquele a quem o barro foi feito à própria imagem, o modelo, o guru. É isto o fetiche, continua Latour,
um “fazer-falar”. Não é apenas feito, como querem denunciar os anti-fetichistas, mas feito e fato, construção e realidade.

28
O guru físico pode ser compreendido como uma manifestação do guru interior. Este
último possui uma forma chamada de “sutil”, algumas tradições contemplativas, por
exemplo, descrevem os “locais”, ou “assentos” do guru no corpo, sendo que o mais
poderoso se encontra no topo da cabeça.(Mahony, 97: 228)
Em Siddha Yoga, afirma-se que a shakti “caminha” pelo corpo desde que é
despertada na base da coluna, através de shaktipat9, até o topo da cabeça, em constante
ascenção. A medida que a shakti vai subindo pela coluna o discípulo vai adquirindo uma
maior compreensão da realidade, podendo até manifestar poderes como a capacidade de ver
o futuro e outros, mas somente quando chega no sahasrara( topo da cabeça) o discípulo
alcança samaddhi, “estado de união com Deus”, a iluminação. Este processo pode durar
muitas vidas.
O discípulo entra em contato com o Ser interior não apenas por sonhos ou visões,
mas através de meditação, contemplação, puja ( adoração, como a feita por Eklavia) e
outros meios que abririam as “dimensões sutis” de si mesmo.

Muktananda explica que : “The Guru lives in the sahasrara as much as he lives
outside” e continua “for this reason, you don’t have to continue to search for a Guru. The
Guru neither leaves nor comes. He always stays inside constantly”. Ao que ele completa:
“If you experience this relantionship between a Guru and a disciple, even for a moment, it
is more than enough.”( 94:307)
Ao perguntarem “qual é a diferença entre a forma externa do guru e a forma
interna?”, Baba respondeu “That is the true Guru who dwells inside. The true Guru has no
form. The scriptures say that the Guru is the Self, so the inner Self is the true Guru...
Remember that the Guru is not the body; the Guru is the grace-bestowing power of God.
Lord Shiva said, “O Goddess, understand that I am the Guru who makes the mantra active
and who makes the shakti work inside. So the inner shakti is the Guru.”
Então a Shakti é o guru. O Ser interior é o guru. O poder da graça é o guru. O Shiva
Sutra diz: “O guru é o meio”, só através dele se chega a Deus. O guru é o poder
transformador. O guru é também o mantra.

9
Shaktipat é a transmissão da graça do Guru, capaz de despertar a energia espiritual de quem a recebe. Fala-se
também em “concessão da graça do Guru”, “descida do poder”, “despertar da kundalini shakti”, ou “iniciação”.

29
Gurumayi disse em palestra que a mantrayoga, a yoga do mantra, é um caminho
completo em si mesmo. Muktananda lembrava aos seus alunos que a identificação do
mantra e do guru é tão indissociável que “o mantra é a forma do guru”.O discípulo pode se
iluminar repetindo o mantra constantemente, porque o “Guru se tornou um com o mantra”.
Assim também Siddha Yoga complementa afirmando que as “sandálias” ou “pés”
do guru contêm o poder liberador do mantra. As sandálias ou os pés não são objetos físicos,
mas manifestações da energia do guru no corpo sutil.
Na Gurugita, a canção em louvor ao guru, na verdade um longo diálogo que dura
em média uma hora e meia sendo cantado, tratando da relação guru-discípulo, lemos: “A
raiz da meditação é a forma do Guru. A raiz da adoração são os pés do Guru. A raiz do
mantra é a palavra do Guru. A raiz da liberação é a graça do Guru.”( estrofe 76)
“O Guru é Brahma. O Guru é Vishnu. O Guru é o Senhor Shiva. O Guru é realmente o
Parabrahman. Saudações a Sri Guru.”( estrofe 32) e “Saudações a Shri Guru. O Guru é o
princípio ( de tudo, porém) ele é sem princípio. O Guru é a deidade suprema. Não existe
nada mais elevado que o Guru.”( estrofe 77)

As qualidades do Guru e do discípulo

“Existem imitações em todas as atividades, assim não é de surpreender que


também haja imitações entre gurus. Isso não quer dizer que todo guru seja falso. Contudo é
muito bom que suspeitemos dos gurus, pois, desta forma exercitaremos o discernimento e
aprenderemos a escolher um guru verdadeiro. Por que existem falsos gurus? A culpa é
nossa. Escolhemos nossos gurus exatamente como escolhemos os nossos políticos. O
mercado de falsos gurus está crescendo porque o mercado de falsos discípulos também está.
Um verdadeiro discípulo nunca seria aprisionado por um falso guru”. (Muktananda,
2003:129)
Em virtude de uma relação entre mestre e discípulo tão próxima e vital, a
tradição espiritual indiana acumulou vários escritos sobre como ambos devem se
comportar, indicando o modo apropriado de conduta no relacionamento. Existe uma certa

30
quantidade de austeridades (tapas, tapasya) envolvidas, porque a educação espiritual
depende da purificação do corpo, da mente e do espírito.( Mahony, 97: 241)
No entanto, toda a relação guru-discípulo é construída em torno da
compaixão do guru e da confiança do discípulo. Swami Chidvilasananda escreveu: “The
essence of the Guru-disciple relantionship is the Guru’s compassion. ... So subtle yet
infinitely powerful, it takes a disciple across the ocean of birth and death”( 90: ). De
acordo com a perspectiva devocional hindu, a miséria e sofrimento de uma pessoa através
de vários ciclos de vida advém do seu afastamento de Deus. Tradições alinhadas com o
“caminho do guru” sustentam que o trabalho do guru é oferecer ao discípulo uma ponte que
diminua esta distância, permitindo o retorno para Deus.
Em Siddha Yoga, afirma-se que a relação de cada pessoa com o seu guru é
única, porém, o que há de elemento comum em todas estas relações únicas é o amor
compartilhado por guru e discípulo. Se o guru ensina o aluno por amor e compaixão, o
aluno, por sua vez, deve dar ao guru o seu amor e confiança. Sem confiança, o aluno é
consumido por dúvidas e inseguranças. De acordo com Gurumayi: “As much as the Guru
grace is abundant, the disciple’s grace must be very generous too; them the eternal bond
between the Guru and disciple can flourish. ... Unless you trust the Guru fully and in every
way, you are eaten up by your own shortcomings...”
A perspectiva Vedantista da relação guru-discípulo trabalha em torno da
idéia de que o discípulo deve ser genuíno no seu desejo de conhecer a “verdade”, agindo
conforme esta aspiração. Um texto considerado tradicional, atribuído a Sankaracarya, um
dos mais citados em palestras de Gurumayi, apresenta as qualidades que um discípulo deve
cultivar. Sankara descreve um verdadeiro discípulo desta maneira: “One who discriminates
[ between the real and the unreal], who possess tranquility and related virtues, and who
longs for liberation: only that one may be considered qualified to study Brahman.”
Sankara aponta os quatro pré-requisitos de um discípulo verdadeiro: o
discernimento, isto é a capacidade de diferenciar o real e o irreal, a renúncia dos frutos das
ações, ou seja, o desapego, e logo após se refere a um grupo de seis virtudes que veremos a
seguir como terceiro pré-requisito, por último está o desejo pela liberação. As seis virtudes
citadas são identificadas como tranqüilidade, auto-controle, equanimidade mental,
paciência, confiança e um certo contentamento consigo mesmo.

31
O texto enfatiza que para o discipulado, duas destas qualidades são as mais
importantes, a renúncia e o desejo de liberação. Estas duas qualidades juntamente com a
graça do guru fariam com que o progresso espiritual do discípulo fosse seguro, e garante
“without them, there can be no discipleship”.
Também o Jnaneswari, comentário do santo Jnaneshwar Maharaj do
século XIII sobre o Bhagavad Gita e um dos textos mais respeitados em Siddha Yoga,
descreve um certo número de virtudes do discípulo. Entre outros, Jnaneshvar explicita a
importância da humildade, da atitude não-violenta, da paciência, da pureza, auto-controle e
não-vaidade.
Swami Chidvilasananda ofereceu aos seus devotos uma série de palestras,
sobre as virtudes que devem ser praticadas pelos discípulos que foram compiladas no livro
“Meu Senhor ama um coração puro”. Entre as virtudes estão o destemor, a pureza do ser, a
firmeza no yoga e no conhecimento (ou a determinação), a libertação da raiva, a
compaixão, a humildade, o respeito e o serviço desinteressado.
Gurumayi, na introdução comenta: “No início, amor. No final, amor. No
meio, nós temos que cultivar as virtudes”. Gurumayi, em sua palestra sobre o destemor, a
primeira de uma série ensinou: “A primeira virtude que o senhor Krishna recomenda a
Arjuna no Bhagavad Gita é o destemor. Jnaneshwar Maharaj, o grande santo-poeta de
Maharastra diz ao comentar estes versos: De todas as qualidades divinas, o destemor ocupa
o lugar mais elevado....Baba Muktananda diz: Há somente duas coisas que inspiram medo.
A primeira é que você não está consciente do espaço divino de destemor em seu interior. A
outra é que você não está consciente da ajuda de Deus.”
Em relação às qualidades do guru, Baba Muktananda chama atenção para
quem e como é um verdadeiro guru relatando o comportamento de Nityananda, o seu
próprio guru, assim como Gurumayi exalta constantemente o seu guru, Baba. Entre vários
escritos e comentários esparsos, alguns são mais recorrentes, podendo ser organizados desta
maneira abaixo.
O verdadeiro guru provém de uma linhagem de gurus. Alguém só pode se
tornar guru recebendo o comando do seu próprio guru. A linhagem de gurus, assim como
sua eterna gratidão e louvor ao seu próprio guru, deverá estar presente de forma constante e

32
vital. Disse Baba: “antes de aceitar um Guru você deveria conhecer a sua
linhagem”.(Muktananda 2003:131)
O guru também deve ser versado nas escrituras. Um guru genuíno tem
conhecimento integral da verdade contida nos Upanishads e a sua doutrina é a mesma dos
antigos sábios. Além disso, o guru deve ser versado nas artes e habilidades mundanas. Se o
guru vai guiar os buscadores que existem no mundo, ele deverá estar familiarizado com
todas as suas alegrias e problemas(Muktananda 2003:132).
O Guru deve também ter tido a experiência direta de Deus. “Como
resultado, ele não mais vê o mundo como um fenômeno material, mas como a luz da pura
consciência”. Um verdadeiro Guru não é apenas iluminado como também pode dar a
experiência da iluminação a outros. Ou seja, ele pode oferecer shaktipat, o despertar da
energia espiritual do discípulo. “É costume dizer que, da mesma forma que muitas chamas
podem ser acesas por uma única chama, a shakti do Guru pode acender a shakti interior de
muitos discípulos”( Muktananda 2003:132).
Um Guru não torna uma pessoa fraca ou dependente, nem a mantém sob
seu controle. Ao contrário, ele a liberta de toda dependência. “Quando me refugiei em meu
Guru, tornei-me completamente livre”. O objetivo do discipulado não é se manter o mesmo
nem permanecer sempre discípulo, é alcançar o estado do seu guru, em plena identificação
com ele, é se transformar em guru, não no sentido de obter discípulos para si mesmo, mas
de ter o mesmo tipo de visão divina que o guru teria. Diz Gurumayi: “Discipleship does not
involve becoming someone else’s slave or servant. It involves the way you conduct
ourselves10 in every situation, in every circunstance, at every moment, with everyone. The
sadhana of discipleship is the sadhana of life itself.”(Chidvilasananda,1993)
O guru deve testar o seu discípulo para dissolver o seu ego. É através da
dissolução do ego que o discípulo se torna um com o guru. Tornar-se um com o guru é o
objetivo, pois significa “ter realizado Deus em si mesmo”. Ao falar sobre os testes que o
seu guru lhe fez passar, Baba esclarece: “Nityananda me ajudou muito na minha sadhanna.
Ele foi especialmente útil em esmagar o meu ego. Eu era uma espécie de erudito. Tinha
alguns livros e certo conhecimento das escrituras. Então eu tinha orgulho deste
conhecimento. Acima de tudo, usava as vestes de sannyasi (renunciante), e estava

33
representando aquele papel. Meu Guru deve ter tido muito trabalho tentando me consertar,
mas ele conseguiu.”(2000: )
Quando um discípulo perguntou a natureza do discipulado, Baba
respondeu: “He is a disciple who has lost himself in the Guru. He is the Guru who has
entered into the disciple. Jnaneshwar Maharaj said, ‘when the Guru and the disciple come
together, when the Guru and the disciple become one, God reveals himself.’ In Siddha
Yoga, we say that he is the Guru who can awaken the energy of a disciple. He is the
disciple who becomes the Guru’s. So, the oneness of the Guru and the disciple is called
Siddha Yoga.”

10
O Guru inclui a si mesmo como discípulo, pois não deve perder a postura de devoção nem de discipulado,

34
Capítulo 2: CONHECENDO SIDDHA YOGA

2.1) Apresentando Siddha Yoga

“My work in this world is to start a meditation revolution... I want to see the whole world full of
saints. I want to see everyone happy.”(Muktananda, 82)

Swami Muktananda foi quem deu ao Movimento de Meditação Siddha Yoga


o seu nome atual e quem estabeleceu a sua forma contemporânea, sempre
relacionando este caminho com a antiga tradição dos sábios indianos, numa
linhagem de homens santos que remontaria a Krishna. Ao mesmo tempo, a história
de Siddha Yoga como Movimento Contemporâneo é essencialmente a história de
três mestres espirituais e seus discípulos.
São eles: Bhagawan Nityananda, um homem santo silencioso, que
peregrinava nu ou com um lençol de pano branco, ganhando fama pelos milagres
que ocorriam em sua volta, é considerado o primeiro mestre a fornecer um tipo de
iniciação não-convencional que forneceria um dos pilares de Siddha Yoga. Swami
Muktananda, discípulo e um dos sucessores de Nityananda, iogue com abertura ao
Ocidente, tornou-se uma figura mais assimilável do que o seu mestre e estabeleceu
as bases do Movimento Siddha na Índia e no Ocidente. E Swami Chidvilasananda,
discípula de Muktananda e atual guru, que tem conseguido ampliar e fortalecer
Siddha Yoga em vários países do mundo.
No entanto, esta não é somente a história de três personalidades espirituais,
mas de como uma tradição espiritual baseada no relacionamento pessoal entre guru
e discípulo, se expandiu a ponto de se tornar um movimento de dimensões globais,
com mais de trezentos Centros de Meditação pelo mundo, atraindo inúmeras
pessoas que nada sabem sobre as suas origens ou tradições.

mesmo tendo se tornado ele próprio um guru.

35
No começo dos anos 70, Swami Muktananda se lançou em viagens para criar
o que ele chamaria mais tarde de uma “revolução de meditação”. O seu objetivo era
“despertar” para o caminho de Siddha Yoga o maior número de pessoas possível.
Para isso, valia-se da meditação, mas com um ingrediente especial, a transmissão
chamada de Shaktipat.
De acordo com Swami Durgananda, esta pouco conhecida e misteriosa
iniciação, descrita mais amplamente em algumas escrituras shivaítas, era
historicamente dada por poucos gurus para discípulos altamente preparados. Em
Shaktipat, um guru auto-realizado, isto é, um Siddha, desperta a energia espiritual
do discípulo, conhecida como Kundalini Shakti nas tradições de Yoga. Após
despertada através da graça do Guru, a kundalini shakti automaticamente começa a
subir até estágios mais altos que se manifestam no próprio corpo, bem como nas
experiências de vida, até a “iluminação”.(Durgananda 97;4-5)
Swami Muktananda escreveu que, ordinariamente, um guru poderia dar
shaktipat somente para poucas pessoas de uma vez, e apenas para aquelas que
tivessem se preparado através de longo processo de auto-purificação, serviço e
estudo. Contudo, todos os três gurus Siddha seriam capazes de oferecer shaktipat à
vontade e sem exigir nenhuma preparação daqueles que a recebem. Swami
Muktananda, como também Gurumayi atualmente, iniciava em larga escala, tendo
inclusive desenvolvido um programa, o Intensivo, que permitiu que shaktipat fosse
oferecido num final de semana. Esta inovação na transmissão de shaktipat tem sido
a base do Movimento Siddha Yoga.
Igualmente importante são os ensinamentos de não-dualismo radical,
resumidos em uma frase de Swami Muktananda que se encontra em sua
autobiografia: “Tudo é Deus”.
Swami Muktananda e Chidvilasananda têm sustentado a orientação de
Siddha Yoga com um corpo de doutrinas e práticas, selecionado do vasto repertório
indiano, com o intuito de levar os “estudantes siddha” a combinar “esforço pessoal”
e “graça do guru”, até o momento em que poderiam experimentar este mundo e a si
mesmo como divinos.

36
Através dos anos muita coisa mudou no estilo e na organização de Siddha
Yoga. Basta pensar que Bhagawan Nityananda raramente falava e que vivia
modestamente nos fundos de um templo de Shiva, em Ganeshpuri, uma cidade
pobre da Índia. Enquanto que hoje, os modernos ashrams ricamente decorados, com
instalações para acomodar confortavelmente até três mil pessoas, com palestras de
mais duas horas de Gurumayi, parecem ter pouco em comum com o santo silencioso
de Ganespuri.
De qualquer forma, os elementos reconhecidamente essenciais do
Movimento Siddha, a saber, a relação guru-discípulo, shaktipat, e a meditação,

37
fundos de um pequeno templo abandonado e começou a alimentar as pessoas da região,
também providenciou roupas, construiu uma escola para as crianças e um centro de
alimentação gratuita. Até hoje, Ganeshpuri vive basicamente da peregrinação em torno do
santuário onde Nityananda, que morreu em 1961, foi enterrado.
Muktananda abandonou a casa de sua família, aos quinze anos, para seguir o
caminho espiritual. Esta atitude não era de todo incomum na Índia da época. Muktananda
peregrinou durante muitos anos em busca de homens santos, tendo morado alguns anos no
ashram de Siddharuda, onde fez os votos de sannyasi, mas quando este mestre morreu,
continuou a sua peregrinação. Aos 39 anos, Muktananda encontrou o seu mestre
Nityananda, declarando que a sua busca havia finalmente terminado. Tornou-se discípulo
de Nityananda e atingiu a iluminação, de acordo com as palavras de seu Guru, em 1956.
Em 1961, antes de falecer, Nityananda teria passado a sucessão para Muktananda que
fundou um pequeno ashram. Nem todos aceitaram Muktananda como sucessor e outros
discípulos de Nityananda também montaram ashrams próprios.
Albert Rudolph, conhecido como Rudi, um professor de meditação em Nova Iorque,
tinha ido a Ganeshpuri conhecer Nityananda, no entanto o mestre o encaminhou para
receber shaktipat de Muktananda. Rudi tomou os votos de monge em 1965 e foi figura
fundamental na organização da viagem de Muktananda, em 1970, aos Estados Unidos.
Porém, Rudi tinha os seus próprios discípulos e se remetia apenas a Nityananda como
mestre.
Rudi apresentou Muktananda ao seu amigo Baba Ram Dass, ex-professor de
Harvard e escritor de um best-seller da Contracultura, o livro Be Here Now, que relatava as
suas experiências com o Hinduísmo e a Ioga. Muktananda tornou-se então figura assídua do
meio contracultural americano, atraindo muitos seguidores, incluindo nomes famosos como
o cantor de rock James Taylor e o astronauta Edgar Mitchell.
De 1970 até 1982, ano de seu falecimento, Muktananda expandiu imensamente as
atividades do grupo fora da Índia, que chegou a ter 31 centros de meditação em diversos
países. Alguns meses antes de sua morte, Muktananda indicou como seus sucessores um
casal de irmãos, Malti Shetty e Subash Shetty, filhos de um casal de devotos antigos.

38
Nityananda Saraswati, e sua irmã, Malti recebeu seus votos em 1982, aos 27 anos, sob o
nome de Swami Chidvilasananda. Malti era devota desde criança e havia acompanhado
Muktananda em todas as suas viagens para o Ocidente como sua tradutora.
Entre 1982 e 1985, a liderança do grupo ficou nas mãos dos dois irmãos, até a
renúncia de Swami Nityananda provocada pelo seu rompimento do voto de castidade. A
partir de então, Gurumayi assumiu sozinha o papel de guru, posição que ocupa até hoje.

Durgananda(98)

39
2.2) Dados e questões gerais.

Crescimento e mudanças

Algo que salta aos olhos em Siddha Yoga é a observação de que “está se fazendo
uma religião”. Não pretendo dizer com isso que as outras religiões, mesmo as mundiais e
tradicionais, não estejam de alguma maneira “se fazendo” também, na medida em que a
realidade do local onde se encontram e dos seus adeptos vai exigindo adaptações ou mesmo
mudanças mais radicais.
O fato é que em Siddha Yoga aspectos decisivos para o grupo estão em plena
elaboração, sendo inventados a cada ano. O ano de 2004, por exemplo, foi de mudanças. O
diretor do Comitê Nacional, responsável pelo funcionamento e programação dos Centros de
Siddha Yoga no Brasil, me contou que teve uma reunião esse ano, na Índia, com os
diretores de todos os Comitês Nacionais para tratar das novas diretrizes que Gurumayi vem
exigindo.
O principal é o tipo de postura que os centros devem adotar. No momento, os
centros ainda são muito marcados pelos cantos e satsangs (duas vezes por semana, às
quintas e sábados), porém a idéia é incorporar práticas diferentes no programa e
diversificar as atividades no Centro, oferecendo cursos de música, de Hatha Yoga, grupos
de estudo de escrituras, como por exemplo o Bhagavad Gita e outras.
Pretendem incluir também, com mais freqüência, a “prática da contemplação” nos
satsangs, e incentivar a leitura dos textos, tanto individualmente quanto em grupo. O foco é
que o centro deve funcionar como uma escola e os devotos devem encarar a si mesmos
como “estudantes siddha”.
Todos os centros e ashrams, de acordo com a orientação recente, deveriam começar
a se aproximar mais do modelo de Gurudev Siddha Peeth, o ashram da Índia onde
Gurumayi passa metade do ano, que é considerado uma Gurukula (literalmente, “escola de

40
Gurus”), no sentido da dedicação ao aprendizado. Swami Durgananda, uma das monjas
mais antigas de Siddha Yoga, escreveu que Gurudev Siddha Peeth é uma gurukula em
“old-style”, isto é, com 100 a 150 estudantes, sem nunca ultrapassar este número, onde cada
um dos estudantes obedece uma disciplina restrita de serviços e estudo diário de no
mínimo três horas por dia.
Os dados não são precisos, mas já ouvi swamis e anfitriões falarem em mais
de trezentos Centros de Meditação Siddha espalhados em vinte e nove países, entre eles
África do Sul e Rússia. Muitos centros estão localizados na Europa e Estados Unidos, a
América Latina é, digamos assim, mais periférica. E também foram mencionados dez
ashrams ou comunidades Siddha, sendo que dois ashrams são os pontos de encontro de
toda a comunidade.
Ambos os ashrams, o da Índia e o de South Fallsburg são descritos pelos
visitantes como lugares paradisíacos, aqueles que visitaram o Gurudev Siddha Peeth, na
Índia, o descreveram como verdadeiro oásis em meio a uma região muito quente, pois lá a
temperatura cai graças a quantidade de jardins e árvores frutíferas.
O ashram de South Fallsburg, o Shree Muktananda Ashram, começou em
1976, quando Muktananda passou a alugar quartos num velho hotel da região. O próprio
Muktananda pagou em dinheiro por três hotéis próximos que estavam decadentes, o
Brickman, Gilbert e o Windsor. Eles foram modernizados e, de acordo com uma jornalista
do New Yorker que escreveu longa matéria sobre Siddha Yoga em 1994, em estilo
“country-club”. Segundo Swami Durgananda o ashram triplicou nos anos 80 e não pára de
crescer nem de se modernizar. Atualmente o ashram é um grande complexo.
Barroso, que esteve no ashram, informou que o Shree Muktananda Ashram
localiza-se em uma propriedade rural que possui três grupos principais de edificações para
abrigar uma quantidade de hóspedes que chega a 3.000 pessoas. Suas instalações são
extremamente agradáveis e práticas, todas conectadas por ônibus de circulação interna,
gratuitos. Além das acomodações para os hóspedes, o ashram possui lojas onde pode ser
comprada uma enorme variedade de produtos indianos e mais diversos recintos para a
meditação e realização de cursos, bem como os templos, entre os quais se destaca o
dedicado à Nityananda, com uma estátua de três metros de altura do guru, cercada por
grandes quartzos de diversos tons em uma construção elegante em meio a um jardim.

41
Durante um final de semana no ashram, SYDA pode levantar mais de um
milhão de dólares (Harris, 94) em dados desatualizados, com venda de comida, produtos,
cursos e Intensivos (programas pagos de dois dias especialmente criados por Muktananda
com objetivo de oferecer iniciação, shaktipat). O Intensivo não é um programa que se faça
apenas uma vez para despertar a shakti, a idéia é “quanto mais intensivos melhor”, mais
fortalecido e em contato com a própria energia espiritual fica o discípulo.
Quase todo o trabalho realizado no ashram é feito sob a forma de seva
(serviço voluntário), somente algumas pessoas recebem salários. Não se sabe quão rica
SYDA é, uma organização religiosa sem fins lucrativos, mas o tipo de instalação,
decoração e infra-estrutura abre espaço para comentários como o da escritora Linda
Johnsen que aos visitar o ashram de South Fallsburg chamou Siddha Yoga de “Yuppie
Yoga”.(96:115)
Em vista do crescimento de Siddha Yoga, algumas adaptações acabaram
sendo implementadas. Por exemplo, os visitantes de Gurudev Siddha Peeth devem
preencher um formulário explicitando as suas razões de visita ao ashram. Esta medida foi
adotada com a intenção de preservar o ashram de se tornar um local de turismo, ou de
hospedagem barata, em alguns casos de graça, o que parecia estar acontecendo antes que
estas regras fossem estabelecidas. Já o Shree Muktananda Ashram fica aberto para
visitantes que vão passar os finais de semana, uma semana, um mês, que vão fazer cursos
avulsos, Intensivos e programas públicos, como participar do Yajna, a cerimônia do fogo.
A rotina de Gurumayi também mudou nos últimos anos. A guru que passava
de dois a quatro meses por ano em turnês mundiais, atualmente viaja pouco. Os swamis,
por sua vez, estão cada vez mais encarregados de fazer viagens, palestras e consultorias
para os diversos centros espalhados.
Em 1996, Gurumayi suspendeu uma prática tradicional, o darshan, momento em
que o devoto fica em frente ao guru (que está sentado em sua cadeira) e o reverencia, este
seria o momento de estar cara-a-cara com o Guru. Muitos depoimentos de discípulos se
referem ao darshan como um momento especial, em que o olhar de Gurumayi, mesmo
quando ela fica em silêncio, “diz uma série de coisas”, ou que uma pergunta cordial que ela
costuma fazer do tipo “como foi a sua viagem?” ou “está gostanto da hospedagem?”
provoca significados e sensações incomuns.

42
No entanto, as filas de darshan estavam grandes demais e Gurumayi argumentou
que os discípulos deveriam entender que não precisavam estar na sua frente para estarem
próximos dela , ou receber ensinamentos ou graça. Gurumayi disse que parou com o
darshan porque estava na hora de mudar, já que os devotos estavam se valendo demais
daquele momento para estabelecer contato, quando deveriam fazer isso o tempo todo em
“seu coração”.
Uma já tradição em Siddha Yoga, com pouco mais de dez anos, iniciada por
Gurumayi, é a “mensagem”. Todo ano, no dia 1o de Janeiro, ou até na virada de 31 para 1o ,
em pleno Ano-Novo, Gurumayi oferece uma mensagem para o ano que está começando,
uma palestra que dura em média duas horas ou mais. Esta mensagem vai orientar aquele
ano inteiro nos ashrams e centros. Ao longo de todo o ano temas mensais são passados para
os centros e devem ser trabalhados semanalmente nos satsangs, como aprofundamento da
mensagem. Esta unidade de propósito traria “força”, ou “concentração de energias”, para a
melhor compreensão do tema proposto.
Por exemplo, a mensagem do ano passado foi: “Confie”. Uma longa palestra sobre a
confiança, a falta de confiança, e as suas conseqüências. O ano inteiro foi então dedicado a
se exercitar a confiança que é, nas palavras de Gurumayi, apoiada por cinco pilares. A
confiança é “transcendente, resoluta, universal, sagrada e tolerante”. Cada uma das
características da confiança foi estudada em torno de dois meses, intercalados com
Intensivos e outras atividades.
Esse ano a mensagem é: “Experimente o poder interior, Kundalini Shakti”.
Após recebermos a mensagem dia primeiro, durante o início da tarde, via satélite, todos
brincavam com a mensagem deste ano, repetindo “experimenta, experimenta”, como no
anúncio de cerveja. Outras mensagens recentes foram “Acredite no amor” e “Aproxime-se
do presente com o consentimento do seu coração. Torne-o um acontecimento abençoado”.

****

Considerações sobre o futuro de Siddha Yoga são motivo de especulação.


Por exemplo, R., um dos entrevistados, acredita que Gurumayi será a última Guru da
linhagem, ou seja que ela não passará a sucessão e que Siddha Yoga se tornará uma religião

43
sem “guru vivo”, como aconteceu com o “Cristianismo” e o “Budismo”. R. aposta também
que, se Siddha Yoga continuar crescendo como tem crescido, vai se tornar uma religião
mundial em mais algumas décadas.
Outro devoto, no entanto, discordou, considerando que Siddha Yoga só faz
sentido nesta relação com o “mestre em pessoa”, isto é, o fato do guru estar vivo é o que
faria a diferença, este mesmo devoto acha que é possível, e até preferível, que Siddha Yoga
fique restrita quanto ao número de devotos, no estilo de uma tradição mística como,
exemplificou, a “tradição Sufi”.
Em suma, não é por acaso que parece “estar se inventando uma religião”
provocando, no mínimo, uma certa curiosidade. Muitas questões estão em pauta com
apostas diferentes, mesmo a compreensão sobre o que

44
ao guru, ou se comportasse de maneira reprovável aos olhos do grupo, ao que seria
imediatamente repreendido.
Uma questão levantada na matéria foi a de possíveis abusos sexuais
cometidos por Baba, que selecionava, em certas ocasiões, alguns devotos para lhe fazerem
companhia durante a noite, escolhendo preferencialmente moças, de acordo com Harris,
“jovens e bonitas”, sendo que curiosamente ninguém deveria ou poderia comentar as suas
preferências ou práticas com estas moças que tinham com ele “conversas privadas”, em
ambiente particular. Uma das devotas escolhidas falou da estranheza de uma destas noites,
sem contudo caracterizar “abuso sexual”, uma outra, entrevistada pela jornalista, disse que
não havia nada de sexual nestes encontros.
Também tornou-se bastante estranha, aos olhos de quem lê a matéria, a
disputa pela sucessão entre Gurumayi e o seu irmão Nityananda. Contava-se no ashram e
na comunidade de Siddha Yoga que Nityananda havia renunciado ao papel de guru após ter
rompido com seu voto de castidade. Harris sugere que Nityananda foi pressionado a
renunciar o seu papel de guru e deixar o ashram sem volta, numa espécie de exílio, porque
tinha sim, e este fato tornou-se notório, rompido com o voto de castidade, mas também
porque sua irmã Gurumayi teria se pronunciado de maneira veemente e autoritária em
relação a ele, inclusive o colocando sob retiro forçado numa pequena cela até que ele se
desculpasse com a comunidade Siddha e se retirasse definitivamente. Após alguns anos,
Nityananda, arrependido, teria pedido a Gurumayi para reassumir a sua posição de guru,
mas o seu pedido foi recusado. Nityananda então fundou um ashram próprio, não muito
longe do ashram da irmã.
Esta matéria ganhou grande repercussão na comunidade de Siddha Yoga e
fora dela. Harris, inclusive, disse ter sido chantageada por adeptos do grupo que tentaram
dissuadi-la a desistir da matéria, sob a alegação de que “magoaria muita gente”. No entanto,
“O Guru, Guru, Guru” tornou-se importante, especialmente pelas conseqüências que
provocou.
No site do Ex-cult, dedicado a ser um grupo de apoio e discussão para ex-
adeptos de seitas que se sentiram prejudicados ou vitimizados, a primeira referência à
SYDA é uma carta escrita em nome “de um grupo de pessoas que deixaram Siddha Yoga e
que foram, em algum momento, muito envolvidas em suas atividades”, iniciando com “foi

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o artigo de Lis Harris, em Novembro de 1994, que nos abriu os olhos e nos ajudou a
reconhecer que SYDA e os seus líderes são bem diferentes daquilo que eles afirmam ser e
do que eles parecem ser”.
A partir daí a carta gira em torno de “controle” e “manipulação” dos
discípulos por Muktananda e Gurumayi, “personalidades carismáticas e autoritárias”, que
se colocam acima de qualquer valor, moral ou crítica porque se consideram “perfeitos” e
“iluminados”, o que justificaria qualquer atitude, sem que eles possam ser julgados “como
todos nós”. Além disso, a carta comenta que as críticas ao guru ou à organização SYDA
eram severamente desestimuladas pelos swamis, criando um ambiente de “repressão”e
“censura”onde os adeptos se sentiam “acuados”, ou no mínimo “culpados”quando se viam
com alguma dúvida sobre o grupo ou o guru.
Esta primeira carta gerou várias outras em resposta, além de um grupo de
discussão de ex-adeptos de Siddha Yoga, a qual entrou, por sua vez, na lista de “seitas”
neste site. Entre outras “seitas”, da mesma época, estavam Amway, ICC(International
Church of Christ), Neo-Tech, Cientologia, Testemunha de Jeová e Zen Master Rama. Em
princípio, achei curioso constatar a presença de grupos não-religiosos nesta lista,

46
Ananda Marga, pelo suposto militantismo político do

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Ao receber esta resposta, pareceu satisfeita, comentando: “dissertação, tese, tudo bem,
Siddha Yoga até incentiva porque é mais sério e não é considerado divulgação, porque
mesmo que seja publicado o interesse é restrito.”

2.4) Centro de Meditação Siddha Yoga do Rio de Janeiro

Espaço físico e organização de departamentos

Siddha Yoga começou no Rio de Janeiro como um grupo de canto, no apartamento


de um casal que tinha voltado de uma temporada no ashram na Índia. Após alguns anos, o
grupo começou a alugar uma sala no centro da cidade para os programas especiais, vários
devotos que entrevistei são da “época da Rio Branco”, como os próprios anunciam. Porém
sete anos atrás, alugou-se uma sede fixa para Siddha Yoga, numa casa de dois andares com
jardim, em Botafogo. O número de pessoas que freqüentam o Centro aumenta a cada ano, o
que pude perceber nos últimos anos.
Como contei na Introdução, conheci o Centro convidada por uma vizinha, em 2001,
tornando-me então uma freqüentadora esporádica entre 2001 e 2002, até que após alguns
meses de ausência retornei mais intensamente ao Centro para a pesquisa de campo em
2003. Pude verificar então que os satsangs de quinta-feira, por exemplo, que ocupavam
apenas uma sala em 2001, passaram a ocupar, no final de 2003, três salas lotadas e em dias
comemorativos, de festas, era importante chegar cedo para conseguir lugar.
No andar de baixo da casa ficam o salão principal, o maior da casa, uma sala
pequena, cozinha, corredor e um cômodo que funciona como restaurante e lanchonete, após
o programa. No andar de cima, ficam a sala em homenagem a Nityananda, dois banheiros e
outros cômodos que são usados apenas pelos devotos voluntários, os sevaítas ( são aqueles
que fazem seva, lit. “ serviço desinteressado”). Nas salas que não costumam ser usadas
durante os programas, ficam guardados equipamentos de som e vídeo, instrumentos

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musicais, almofadas etc, nelas também acontecem reuniões, cursos e ensaios de música. Do
lado de fora, onde anteriormente era a garagem da casa, fica a livraria do Centro, onde são
vendidos livros, fotos, Cds e outros artigos.
Cada salão tem o seu puja (altar) que segue um determinado padrão, estabelecido
pela Fundação Syda para todos os Centros. Foto de Gurumayi no meio, Muktananda do
lado direito e Nityananda do lado esquerdo. Na frente da foto de Gurumayi estão as suas
sandálias. No altar também se encontram velas e arranjos de flores.
Toda a casa é decorada com esmero. Tapete vermelho na escada, elefante de marfim
na entrada do segundo andar, muitas fotos em preto e branco de siddhas na sala pequena,
jardim cultivado com grama cortada, plantas e flores.
Há apenas um funcionário pago que é o porteiro e vigia da casa. A responsabilidade
pelo cuidado e gerenciamento do Centro é inteiramente dos sevaítas. O seva é uma das
principais práticas de Siddha Yoga e será analisada mais de perto no capítulo seguinte.

Lista de departamentos e função de cada um

• Comitê Dirigente – Representa o Centro de Meditação do Rio de Janeiro frente ao


Comitê Nacional e coordena os demais departamentos.
• Programação – Decide e organiza a programação semanal do Centro.
• Guru Gita – Garante a realização do canto a Guru Gita, todas as manhãs, durante a
semana às sete e meia e sábados, domingos e feriados às oito horas.
• Arati – Prepara o ato ritual de adoração(arati), no qual uma chama é ondeada diante
de uma forma do guru, em frente ao puja( altar).
• Shiva Mahimnah – Organiza o canto em louvor a Shiva cantado uma vez por
semana no Centro.
• Rudram – Organiza o canto em homenagem a Rudra, um dos aspectos de Shiva, que
significa “senhor das lágrimas”.
• Hatha Yoga – Oferece aulas de Hatha Yoga uma ou duas vezes por semana.
• Som e Vídeo – Responsável pelo funcionamento de som e vídeo durante os
programas, cursos e intensivos.

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• Tradução – Responsável pela tradução de textos e palestras em vídeo.
• Música – Responsável pela apresentação dos músicos, bem como ensaios e
instrumentos, em determinados programas (não é sempre que há música nos
satsangs).
• Puja – Responsável pela limpeza e decoração dos altares.
• Acolhimento – Treina e organiza os anfitriões que recebem as pessoas nos
programas.
• Mesa de Informações – Mesa disponível em todos os programas para esclarecer
qualquer dúvida sobre eventos, programação e outras.
• Dakshina – Mesa que recebe e organiza doações em dinheiro para o Centro e a
Fundação Syda.
• Livraria – Vende artigos de Siddha Yoga, como livros, Cds etc, enviados pela
Fundação Syda.
• Mesa de Seva – Encaminha quem quer começar a fazer seva no Centro.
• Amrit – Lanchonete/restaurante que funciona quase sempre para lanche após os
programas, ou almoço e jantar indianos em ocasiões especiais.
• Jovens – Realiza reuniões e eventos especiais para jovens até 25 anos.
• Família – Organiza programas direcionados para crianças e seus pais.
• Cursos – Responsável por cursos de música, estudos etc, que podem ser ministrados
por swamis ou não.
• Prasad – Oferece Prasad (dádiva abençoada do guru) em forma de comida, ou
doces (trufas, por exemplo), em dias festivos.
• Decoração – Responsável pela decoração.
• Jardim – Manutenção e cultivo do jardim.
• Flores – Arranjos de flores para decoração dos altares e casa como um todo.

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Novas atividades e questionamentos

O Centro do Rio, de acordo com as diretrizes da Fundação Syda, está


implementando novidades. A nova orientação de Gurumayi aponta para uma maior
dedicação ao estudo e todos os centros devem trabalhar nesse sentido, como já foi
comentado.
A primeira medida foi oferecer aulas de Hatha Yoga uma vez por semana e
incentivar as pessoas a se reunirem para estudar. O Centro sugere que se leia algo em torno
de um livro, ou trecho de livro por mês, especialmente algum de Baba ou Gurumayi, para
ajudar no estudo da mensagem. Também está à venda na livraria as “agendas” de estudo,
com o objetivo de ser um caderno de notas sobre as suas reflexões e descobertas.
Além disso, o Centro promoveu, em 2004, reuniões de estudo conduzidas
por swamis. No final do ano, foram realizados cursos especiais para sevaítas ministrados
também por swamis, como por exemplo, “como falar de Siddha Yoga para familiares e
amigos”, “a arte de ser anfitrião” e “como criar satsangs”.
Pode parecer contraditória essa ênfase nos estudos, portanto aqui é preciso um
esclarecimento. Afinal, em Siddha Yoga, há inúmeras histórias de discípulos que se
iluminam graças a meditação, ou ao serviço desinteressado prestado ao guru, enfim a
devoção traduzida em ação e disciplina. Ninguém se ilumina estudando os textos sagrados.
Na Guru Gita, canto essencial entoado todas as manhãs, há um verso que afirma
que toda a erudição e austeridade nada valem sem o amor pelo Guru, um ignorante com
devoção está mais perto da verdade do que os grandes sábios sem o mesmo sentimento. A
“verdade”, afirmou Baba e Gurumayi, não será alcançada pelo intelecto, não é possível se
aproximar de Deus lendo livros. Baba comentou, em sua biografia, que o seu renomado
conhecimento teológico atrapalhou o processo de iluminação, pois isso lhe trazia vaidade.
Pois bem, então qual seria o sentido de se ler mais e de discutir as palestras de Gurumayi e
Baba? Que frutos poderiam vir daí?
Em primeiro lugar, a tradição siddha não se organiza em torno de um corpo dado
e fixo de textos, conceitos ou valores. É difícil até falar de uma tradição siddha como se
fosse um corpo unificado de idéias e práticas. Existem siddhas e tradições siddhas.

51
Cada guru siddha contribui para o processo de desenvolvimento de seu ou sua
linhagem, não necessariamente através da escrita, ou mesmo da fala. A presença do guru e
o ambiente que o cerca podem ser suficientes como contribuição. Alguns gurus escrevem,
outros não. Alguns ensinam com palavras, outros apenas através do exemplo. De qualquer
modo, o siddha está no coração do cânone definindo o que é verdadeiro, autorizado e
apropriado dentro da linhagem ou para um discípulo.
Em outras tradições religiosas, inclusive algumas do próprio hinduísmo, um texto
ou corpo de textos é autorizado por si. Ou seja, a Bíblia é uma fonte autorizada,
independente do seu intérprete, ou sem a necessidade de uma voz que habilite, capacite ou
autorize os seus ensinamentos. No entanto, em Siddha Yoga, existe outra forma de ganhar
“status canônico”: o guru como árbitro de autoridade.
Em Siddha Yoga um texto é autorizado apenas quando a intenção do
Guru(sankalpa), isto é, o poder inato do Guru(shakti) determina o seu conteúdo, significado
e uso. Entender como um cânone é escolhido e interpretado exige um exame do papel do
guru como árbitro dos ensinamentos das escrituras e como aquele que “encorpora”( o
embodyment de Csordas) idéias espirituais. Os textos sagrados de Siddha Yoga são, ao
mesmo tempo, as escolhas do guru (e de sua linhagem) e a infusão nessas escrituras de seu
poder espiritual. Isto é, as palavras do guru e os textos escolhidos estão, sobretudo (e isso
que é o mais importante), cheios de shakti, impregnados com a intenção e energia espiritual
do guru e por isso têm “força”, poder transformador.
O estudante siddha, por sua vez, adota uma forma diferente de “estudo” que não se
restringe à leitura. O estudante deve ler os ensinamentos, discutir com amigos e,
principalmente, contemplar os ensinamentos. A diferença está na contemplação. A
contemplação de um ensinamento é uma prática espiritual em si mesma, uma espécie de
meditação nesse ensinamento, escrito ou não.
Geralmente, tira-se uma dúvida em relação ao ensinamento (texto, frase etc) a partir
de uma pergunta que será contemplada. Por exemplo, “o que Gurumayi quis dizer com
isso?”. A resposta deve vir da contemplação, do silêncio meditativo que “dirá a resposta”. É
o espaço interno que deve dizer algo, o Guru interno, a voz interior, algo que se poderia
chamar, aproximadamente, de “intuição”. A resposta pode ser clara ou não, pode vir na

52
forma de uma palavra, ou imagem, ou sensação. A contemplação faz com que a shakti
daquele texto, a energia espiritual dele se “revele internamente”.
A contemplação é usada, também, para que se tome uma decisão acertada na vida
pessoal, ou para que se descubra o que fazer e/ou como fazer determinada coisa. Arriscaria
dizer que é o equivalente a ser “guiado pelo espírito santo”, de acordo com os cardeais no
Conclave, na escolha do novo papa. O “espírito santo”, em SiddhaYoga, é o “Ser interior”,
o Guru interno.

***

No entanto, a despeito de explicações, há questões práticas. Por exemplo, as críticas


quanto a forma de implementação da novidade. O problema é que todos os cursos,
atividades e livros são pagos, o que fez com que uma das devotas retrucasse:“Como querem
que a gente tenha postura de estudante se no Centro não tem uma biblioteca, só livraria?
Não dá”.
Preços e pagamentos parecem ser questões sempre em pauta, em Siddha Yoga. O
preço do Intensivo talvez seja a questão mais problemática ultimamente. A adoção de um
valor para o Intensivo envolve o Centro do Rio de Janeiro, o Comitê Nacional e a Fundação
Syda. Tem gente (não saberia dizer se é a maioria) que acha que a Fundação Syda impõe o
preço do Intensivo para todos os Centros, estipulando um valor único em dólares. Essa
medida faria com que o Intensivo ficasse muito caro em países onde não se ganha em dólar
nem em euros. Sendo assim, o preço alto do Intensivo seria conseqüência de uma
insensibilidade da Fundação Syda, que não levaria em consideração as diferenças
econômicas e sociais de outros países onde há Centros de Siddha Yoga.
Quando saiu o preço do Intensivo, no valor de R$ 380,00(trezentos e oitenta reais)
de apenas um dia, no segundo semestre de 2004 (assim que um foi marcado), várias
pessoas acharam o valor escandaloso (eu entre elas). Comentaram que era um valor
excludente para a maior parte da comunidade Siddha, mesmo sabendo que a comunidade é
composta basicamente pela classe média que mora na Zona Sul carioca. Ainda assim,
muitos ficariam de fora e teriam que concordar com quem diz que Siddha Yoga é elitista,

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ou com comentários maldosos do tipo “em Siddha Yoga, primeiro a gente enriquece,
depois se espiritualiza”.
Fui tentar entender o motivo desse valor, acreditando também que o problema era
exclusivamente da Fundação Syda. No entanto, descobri que a Fundação Syda negocia com
o Comitê Nacional de cada país, para chegar a um acordo que atenda as necessidades do
país envolvido, procurando estabelecer valores adequados. Isto é, o Comitê oferece alguns
referenciais, como valor do salário mínimo até a entrada do cinema e tenta negociar um
preço viável para o Intensivo e outros programas. Como o Intensivo é satelizado, sai muito
caro e a intenção é que a Fundação não precise subvencionar o Centro, como já aconteceu
antes.
Parece que o Comitê Nacional em atividade não se empenhou nessa questão ou não
foi bem-sucedido, nivelando o preço por cima. O Intensivo de um dia, sem Gurumayi, e o
Intensivo de dois dias com Gurumayi, passaram a ter o mesmo valor. Por isso, houve muita
reclamação no Centro.
O preço do Intensivo, a presença esporádica de swamis, as relações entre sevaítas e
a expectativa de um dia o Centro estar pronto para receber Gurumayi, tudo vai sendo
elaborado, reforçando a impressão de que uma “religião” está se “fazendo” sob os nossos
olhos.
No Centro existe o próprio questionamento sobre se Siddha Yoga é ou não uma
religião, e o que faria com que se tornasse religião, quais seriam as mudanças e medidas
necessárias nessa direção. Na verdade, antes disso, a pergunta é qual o modelo que está
sendo usado pra se falar em Religião?
No Centro de Siddha Yoga do Rio de Janeiro, o modelo é o cristão, especialmente o
da Igreja Católica. Esse modelo suscita considerações como a de B., uma entrevistada que
falou sobre a possibilidade de Gurumayi adotar rituais que ainda não existem em Siddha
Yoga. Bia estava especificamente se referindo ao casamento, pois a própria, devota há mais
de quinze anos, foi à Igreja Católica pedir uma benção para o seu casamento. Fez assim
porque em Siddha Yoga “não há nada parecido”, como me explicou, a não ser que ela
fosse ao ashram e pedisse para Gurumayi uma benção pessoalmente.
Comentou ainda, “as pessoas falam que Siddha Yoga é um caminho espiritual, mas
caminho espiritual é o quê? Religião. Alguma hora seria importante Gurumayi botar

54
casamento, batismo, não com esse nome, claro, mas é importante para as pessoas, a gente
sente falta”.

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Capítulo 3 – PRATICANDO A RELAÇÃO GURU-DISCÍPULO
“A minha relação direta com Gurumayi é a minha relação com Deus. Só mudei o
nome. Antes eu falava “Ah, Deus, Deus”, não tinha uma figura, hoje eu falo “Gurumayi,
Gurumayi”. Mas pra mim é a mesma coisa, não tem diferença. Ela é a personificação
daquela energia que pra mim é Deus. Identifiquei nela uma figura que é ao mesmo tempo o
pai, a mãe, a irmã, a amiga”.
(devota de Siddha Yoga)
3.1) Chegada ao Centro

Como você foi parar lá (leia-se no Centro de Meditação Siddha Yoga do Rio de
janeiro)? A pergunta, nem sempre formulada dessa forma e mesmo sem ser formulada,
suscitou respostas com um certo “ar comum”. Ou, melhor dizendo, “ares comuns”, porque
foi possível identificar pontos recorrentes, pontos de encontro.

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Entre os vários depoimentos de chegada, tanto os formais, quanto os informais,
obtidos nas conversas durante o suco com pastel integral e nos corredores do Centro, havia
indicações que se repetiam, características que apareciam em diferentes combinações,
fazendo cruzamentos entre uma história e outra.
Não que fosse sempre a mesma história. Seria também ir longe demais determinar
perfis de chegada com base nessas recorrências. No entanto, os pontos de encontro podem
servir de referências, para uma melhor compreensão, do momento de ingresso no Centro do
Rio de Janeiro.
Viviane, uma das entrevistadas, comentou: “Dizem, que a gente chega ao caminho
espiritual através do amor ou da dor. No meu caso foi através da dor, infelizmente. Estava
passando por uma crise e minha amiga falou ‘olha Valéria, tem o centro de Siddha Yoga
que agora está funcionando em Botafogo...’”. Esse foi um relato comum, a chegada em
momento de crise. Sabemos que não só em Siddha Yoga, é muito freqüente ouvir a mesma
história em outros grupos religiosos. Pessoas com problemas diferentes escutam de alguém
(amigo, amiga, irmã, primo, namorado etc), como a amiga da Viviane, “olha, tem a igreja,
ou o centro espírita, ou o budista...”.
Entre os dez entrevistados, quatro contaram sobre a sua chegada em momento de
crise. Um deles estava se separando da mulher. Enquanto estava casado, a mulher o tinha
convidado para ir ao Centro, mas ele não foi, “não por nada, mas porque não era o meu
momento...”. Contudo, durante o processo de separação, sentiu-se compelido a conhecer
Siddha Yoga que a ex-mulher não estava mais freqüentando.
Outro relato foi o de Paulo, jovem que começou a se interessar por Siddha Yoga na
adolescência, aos dezesseis anos. Contou que na época estava numa “fase difícil”, porque
era muito tímido e tinha dificuldade de se “enturmar”, mas que em Siddha Yoga foi se
“soltando”, descobrindo as suas habilidades, como a facilidade de falar em público. Ele
chegou a se tornar um dos Coordenadores do Grupo Jovem, inclusive dando palestras para
jovens recém-chegados.
Também Fabiano se encantou com Siddha Yoga num momento em que, de acordo
com seu depoimento, precisava de apoio e orientação. Foi justamente o que encontrou nas
práticas do Centro, porque estava perdido, desempregado e sem saber que rumo dar a vida
profissional.

57
Viviane conta um pouco da sua chegada: “Aí vim no Sábado, fui recepcionada e a
pessoa que me acolheu, como faz com todo mundo, me explicou o que era Siddha Yoga e eu
passei a freqüentar e a gostar. Aí houve um período que eu me afastei, acho que para
absorver um pouco, entender melhor da estrutura, da

58
Na Nova Era a experimentação parece conduzir a uma busca de sentido que não se
substancializa nunca (Luz, 1998:4). No entanto, os devotos contaram que estavam
procurando um caminho, muito conscientes do seu propósito e encontraram Siddha Yoga.
Não poderia afirmar se durante o período de busca a idéia era tão clara, “encontrar o
próprio caminho espiritual” conhecendo vários, o que nos soa como “pesquisa de
consumo”. Ou se o adepto, na ocasião, estava de alguma maneira impregnado deste
“espírito Nova Era” que supõe uma certa ausência de comprometimento com uma doutrina
em particular.
Segundo Leila Amaral Luz, a questão da experimentação se coloca como a idéia
matriz da cultura da Nova Era. Neste sentido, um primeiro contato com Siddha Yoga pode
se confundir com características identificadas com a Nova Era, como “o papel secundário
das idéias, a ênfase na experiência... tornando desnecessária a conversão ou afirmação de
crenças particulares para a participação nas diferentes experiências” (Luz 1998:8). Por essa
razão, Maria Barroso chega a comentar que a impressão de um grupo “aberto”, esotérico,
que propicia experiências individuais através da meditação é “um dos principais mal-
entendidos enfrentados por um certo tipo de adepto que chega ao grupo impregnado por
esta cultura da Nova Era”.
Apesar de todo discurso de abertura, as práticas do grupo estão referidas a um corpo
doutrinário específico, que será acionado a medida em que as experiências se aprofundam e
se freqüenta o grupo de forma sistemática. Barroso reforça essa idéia esclarecendo: “o
discurso que prega a abertura do grupo para adeptos de qualquer fé religiosa, inteiramente
de acordo com a postura universalista do hinduísmo como um todo, embora de fato permita
uma flexibilidade em relação às identidades religiosas particulares, não pode ser mantido,
contudo, se o adepto buscar um aprofundamento dentro das práticas do grupo; como
qualquer seita religiosa de origem hindu, o Siddha Yoga tem seus cânones, mesmo com
toda a imensa possibilidade combinatória que as tradições hindu propiciam, isto não
significa que cada seita não tenha uma forma específica de combiná-las, sendo este o
elemento, ao lado da figura do guru que confere a cada grupo uma identidade particular”12.

12
Discordo, porém, da afirmação de que os cânones, ao lado da figura do guru são os elementos que conferem
a identidade particular a cada grupo, pois venho tentando indicar que o guru é em si o cânone (e não mais um
elemento ao lado do cânone), portanto cada linhagem possui um cânone distinto composto por seus gurus e
textos sagrados escolhidos por seus gurus.

59
Um outro dado significativo é que além da “crise” como fator de chegada, ou da
“busca” em relação aos que se encontram voltados para a descoberta de um “caminho
espiritual”, outra motivação explicitada é o que Viviane chamou de “chegada através do
amor”. Quem convida para uma visita ao Centro, possibilitando o primeiro contato, faz a
diferença. Se quem convida é alguém em quem se confia, ou se respeita, ou com quem se
tem uma relação afetiva próxima, a “disponibilidade” parece maior.
Há também a identificação com o grupo, foi Fábio quem contou que a decisão de
ingressar em Siddha Yoga partiu muito de sua identificação com o grupo, além de ter
conhecido o Movimento Siddha através de um amigo próximo na época: “... o que eu
percebia era que naquele meu período de busca eu tinha uma certa dificuldade pelo fato de
não me identificar com o grupo que freqüentava os lugares, e dessa vez eu tive uma
identificação, bateu assim. Eu olhei para as pessoas e achei que elas tinham a ver comigo,
o que me atraiu imensamente, e também a imagem de Gurumayi, a maneira dela se
comportar, falar, isso me encantou muito”.
Bia, a minha vizinha, conheceu Siddha Yoga através de uma professora a quem
admirava muito, a sua “mestra”. Ela me disse que o fato de ser uma pessoa que ela
respeitava e que, em seu trabalho, era capaz de agregar tantas outras (era uma professora
popular e criadora de um Centro de Dança) fez com que o seu interesse aumentasse.
Marcos, por sua vez, foi levado pela namorada e, de acordo com ele, se fosse um
amigo ou qualquer outro ele não teria ido ou não teria “dado bola”. O seu movimento
inicial adveio da vontade de agradar a namorada. De acordo com ele, o seu “amor” fez com
que ele se interessasse por algo que era fundamental na vida da namorada e que ele
percebia, através da convivência, que fazia bem a ela.
Outro caso é o da Joana que chegou a Siddha Yoga através do filho, ela conta: “
Conheci Siddha Yoga através do meu filho, ele veio pra Siddha Yoga por convite de um
amigo de infância quando fez dezessete anos. Durante um ano e meio ele ficou
freqüentando e me convidando e eu fui adiando. Um belo dia ele mandou um convite pelo
correio pra nossa casa, para o lançamento de um livro de um devoto americano que vinha
lançar o livro no Brasil, do Peter Hayes, ‘A Aventura Suprema’. Fui no lançamento do
livro e no momento que entrei, naquela época Siddha Yoga funcionava naquele prédio da
RB1, no momento que eu entrei ali eu senti como se estivesse voltando para algum lugar.

60
Naquele momento eu entrei e era como se eu já pertencesse àquele lugar, àquele grupo e
eu fiquei. Na verdade, o que acontece em Siddha Yoga é que pra cada pessoa existe uma
experiência muito particular pra cada um, de acordo com a vida aí fora, de cada um, de
acordo como cada um chega e com quem. Dependendo de como está o estado de cada
pessoa no momento que ela chega”.

Primeira impressão: o diferente é familiar

O diferente é familiar. É isso que parece estar indicado quando se trata das primeiras
impressões no Centro de Meditação Siddha Yoga. Ou melhor, das primeiras impressões de
quem fica, caso das pessoas com quem conversei no Centro.
A despeito de uma “diferença” que se evidencia no Centro de Meditação Siddha
Yoga em comparação, por exemplo, aos meios católicos, a fala e atitude dos devotos parece
ser de “reconhecimento” e mesmo de familiaridade daquilo que encontram ali. Desde o
início, existe a sensação de reconhecimento do local e de suas práticas.
Os próprios devotos acreditam que deveriam ter estranhado Siddha Yoga por ser tão
“diferente” do que estavam acostumados, mas o previsível estranhamento tende a não se
concretizar. Algumas explicações são elaboradas pelos próprios entrevistados sobre essa
falta de estranhamento, como também pelo fato de não terem rejeitado aquilo que,
supostamente, deveriam.
Para Joana, a elaboração feita sobre o assunto é dita assim: “eu vejo que, de alguma
maneira, eu estava, ao longo da minha vida, me preparando para ter este encontro comigo.
Porque eu vejo assim, quando eu entrei na sala, na sala de meditação, com tudo muito
diferente pra mim, pra minha cultura, uma cadeira com a foto do guru, uma guru, uma
mulher viva, ela vive fisicamente, teoricamente eu estranharia isso, porque não fazia parte
do meu mundo, do meu universo, do meu cotidiano, mas era como se eu já conhecesse, no
momento que eu pisei na sala, algo veio de encontro, algo muito familiar pra mim. O
cheiro do incenso, lembro que a primeira coisa, quando a gente saía do elevador e entrava
direto no hall, era o cheiro do incenso. E o cheiro do incenso, sabe, era como se eu já
tivesse uma vivência, uma familiaridade com aquilo, todos os altares, os paninhos
indianos, as mínimas coisas, mínimos detalhes, passou direto para o meu coração. Eu

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imagino assim, eu tenho uma imagem que ultrapassou toda e qualquer barreira possível,
de conceito, de pensamento, sentimento, que pudesse impedir esta conexão direta. E foi
assim. Não sei te explicar mentalmente. Aconteceu de uma maneira muito clara, sabe?”.
De que maneira esse “diferente” e “desconhecido” pareceu familiar para essas
pessoas, já que a maioria afirma algum tipo de “reconhecimento”? Esse aspecto poderia
estar associado ao convívio mais estreito e corriqueiro, vivido no Brasil, de uma presença
do “Oriente”, em muitas de suas expressões, como gastronomia, estética e outras.
Essa vivência se encontra, em especial, entre as camadas médias, grupo que
freqüenta o Centro do Rio de Janeiro. Não necessariamente essa vivência corresponde a
todas as prerrogativas do que Campbell (1997) chamou de “orientalização do Ocidente” ao
descrever um processo de imanentização da divindade, entre outros fatores de
orientalização. No entanto, independente dos requisitos que serviriam para configurar um
quadro de orientalização, parece razoável dizer, como Campbell, que houve mesmo algo de
“novo no ar”.
Atualmente, porém, esse novo está se tornando comum e estabelecido. Em qualquer
academia da Zona Sul, de porte médio, são oferecidas aulas de yoga, em vár05851( )-12.3162(d)-54(e)-3.4806

62
Quando os entrevistados declaram que houve identificação, não estão falando de
uma identificação total, afinal as diferenças não deixaram de ser notadas. Ao elaborarem
explicações para o reconhecimento do local e suas práticas, estão afirmando, sobretudo, que
não houve oposição. Mas as diferenças estavam lá, foram apreciadas e sentidas, gerando
questionamentos, ainda que não tenham sido bastante fortes para gerar uma rejeição.
Enfim, eles estranharam sim, até mesmo o fato de não terem estranhado mais. A
combinação entre estranhamento e reconhecimento, as pequenas traições, levaram a
maioria dos entrevistados a considerar o Centro de meditação Siddha Yoga “estranhamente
familiar”.

3.2) Práticas

A relação Guru-discípulo não é uma relação entre dois indivíduos, uma díade, uma
relação a dois, mas uma prática espiritual que contém em si outras práticas. Relacionar-se
com o Guru é, portanto, realizar práticas constitutivas dessa mesma relação. Relacionar-se
com o Guru é, também, entrar numa rede de relações. Ou seja, uma rede de práticas e
relações. Sem essa rede, não há devoto e não há Guru.
Uma rede, tal como a proposta por Latour(2002), que consiste de humanos (outros
devotos, por exemplo) e não-humanos (objetos, mantras, lugares etc). Para se relacionar
com o Guru é preciso estar em relação com o serviço ao Guru, os demais devotos, o mantra,
a linhagem de Gurus Siddha, línguas como o sânscrito e o hindi e com espaços físicos,
como o próprio Centro do Rio de Janeiro.
As práticas são: meditação; seva ( serviço desinteressado); canto de mantras( a
chamada mantrayoga); contemplação(meditar sobre determinado tema ou questão);
darshan(reverência ao altar do guru ou ao próprio guru) e dakshina(doação em dinheiro).

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Seva, o serviço ao Guru
“... fui entendendo, fazendo as práticas, me identifiquei rapidamente com uma das
práticas, a prática do Seva, é o serviço ao Guru, que foi uma prática que comecei depois
de três meses. Eu li um trecho de um texto de Baba, este texto dizia que se você quer se
integrar em algum lugar, comece a trabalhar neste lugar. Assim inicialmente me sentia um
pouco sem graça nos programas, não conhecia as pessoas, e daí eu percebi que era uma
possibilidade, um caminho, quem sabe começando a fazer a prática junto com as pessoas,
eu não vou me sentir melhor. Foi assim que aconteceu, eu comecei a fazer o Seva na
livraria, isso no meio de 97 e aí o meu comprometimento foi ficando maior”. (depoimento
de um sevaíta)

Quem faz seva recebe mais do que dá. Quanto mais seva, mais se ganha. Vai ser
difícil encontrar um sevaíta que não diga algo parecido.
O seva é uma prática espiritual, significa serviço voluntário e desinteressado que se
faz para o guru. Não é, portanto, remunerado. E não é considerado trabalho, mas serviço
amoroso. Quando alguém está envolvido num serviço amoroso, mesmo que não seja
relacionado diretamente ao caminho espiritual, diz-se que está “fazendo seva”. Por
exemplo, se eu estiver cuidando do meu filho, estou fazendo “seva de mãe”.
Todos os que entrevistei alegaram que fazer seva é uma prática maravilhosa, porque
o aprendizado é ininterrupto e os frutos também. Ganha-se espiritualmente, mas ganha-se
também disciplina, melhor relação com as pessoas e até crescimento profissional e
financeiro, fora do Centro, é claro. Um dos entrevistados garantiu que, por mais que a
pessoa faça seva, não dá para se sentir com crédito, muito menos em posição de cobrança,
como ele próprio repetiu, “quanto mais se dá, mais se ganha”. E por isso mesmo, o seva
continua, por gratidão.
Uma entrevistada contou sobre a sua gratidão: “E eu encontrei também nesta
maneira, nesta forma de fazer o seva, uma forma de neste plano, mostrar ou demonstrar a
esse Ser, a Deus, ao guru, a esta energia que o guru representa, o meu amor, a minha
gratidão, a minha devoção, porque eu entendo que da mesma forma que um dia eu
encontrei, mas encontrei porque teve alguém que abriu esta porta, eu toquei a campainha e
teve alguém pra abrir, então eu acho que outras pessoas também que vão bater a porta,

64
também vão encontrar o caminho, e eu quero estar ali para abrir a porta como teve
alguém para abrir para mim. Então esta é a minha razão de fazer seva”.
Outro aspecto marcante no seva é que viabiliza o funcionamento do Centro,
a continuidade da “missão Siddha” no Rio de Janeiro (no caso dos sevaítas cariocas), e
permite que outras pessoas descubram Siddha Yoga. Isso traduzido como: “Fui criando a
consciência de que estava servindo a Siddha Yoga, ao que significa Siddha Yoga, a missão
de Siddha Yoga, isto aparecendo pra mim como uma coisa natural”. E em outro
depoimento se confirma essa característica de possibilitar o acesso a Siddha Yoga: “Assim,
eu faço muito seva, comecei a fazer seva desde o primeiro dia que entrei em Siddha yoga,
sem saber bem o que eu estava fazendo, então eu me sinto muito confortável fazendo seva,
fico muito feliz, sabe, fico alegre, eu me sinto um canal mesmo ali, porque no seva a gente
está oferecendo um serviço pra Deus, mas na verdade é nosso Ser, né, Deus é o nosso Ser,
está dentro da gente, então esta coisa de fazer seva, de dar Siddha Yoga pra outras pessoas
me deixa muito feliz, de viabilizar o Centro, né, eu faço muito seva e eu gosto muito”.
O seva é a prática mais diretamente relacional. Através dela as pessoas se
conhecem e estabelecem vínculos. Acredito que poderia dizer, genericamente, que o
trabalho em grupo traz questionamentos e lidar com pessoas diferentes num trabalho
comum envolve aprendizado. Como em qualquer grupo os desentendimentos acontecem e
são até comuns Como em qualquer grupo os desentendimentos acontecem e são até comuns
A relação com os outros devotos provoca comentários como os de L.: Eu nunca
imaginei na minha vida que pudesse existir vaidade espiritual, nunca, foi a maior decepção
que eu tive na minha vida espiritual foi essa. Como é um caminho de elevação, de amor, de
fraternidade, de devoção, de solidariedade, não pode existir. Aqui em Siddha Yoga, muitas
pessoas vem falar com você pra contar o que ela viu, o que ela sabe, que ela conhece,
percebe? Diz que está há muitos anos, então eu sei mais do que você. Outro dia uma
menina falou, tenho dez anos de Siddha Yoga, mas os melhores anos foram os dois
primeiros anos, então foi o quê, uma relação de paixão? Sabe aquela paixão de namorado,
e depois o que aconteceu ali, perdeu o entusiasmo? Outra coisa interessante é que todas as
pessoas que eu conheço não tem cinco anos, nem seis anos, tem dez. Todo mundo chegou
ao mesmo tempo, todo mundo tem dez anos. Qualquer um que você conheça tem dez anos,

65
eu com os meus dois anos, percebo vaidade, de dizer eu tenho mais tempo, então sei mais,
você não sabe nada”.
A diferença, pelo que pude observar, é que cada um procura interpretar os episódios
ocorridos durante o seva à luz de Siddha Yoga, a partir de algum princípio, afirmação ou
exemplo do guru. O que mais se ouve quando alguma situação desagradável acontece é que
isso faz parte da sadhana (lit., caminho espiritual, disciplina espiritual). Existe a noção de
que cada um deve fazer um auto-exame para entender o que a situação “disse” para ele,
qual foi o seu papel no episódio e o que aquilo lhe ensina sobre si mesmo, sobre as suas
relações e sobre a sua sadhana. Esse mesmo princípio procede quando a situação é boa, ou
muito “auspiciosa”( palavra cara à Gurumayi que a usa com freqüência).
Há também a questão da hierarquia e regras estabelecidas para o seva, ou qualquer
outra atividade no Centro. A fundação Syda estabelece as regras de acordo com a intenção
e decisões de Gurumayi. Contudo, vários problemas são discutidos caso a caso, advindos
de questionamentos como “quem manda em quem?”, “quem tem razão?”, “quem soluciona
o conflito?”, isto é, quem tem poder de decisão, além de “os mais antigos têm alguma
ascendência?” e “é importante obedecer a coordenadora do departamento de seva?”.
Um episódio, que pode ilustrar o tipo de questionamento, foi o seguinte. Durante
uma ocasião em que estava ajudando na cozinha, fazendo seva, os músicos, também
sevaítas, estavam ensaiando para o programa daquela noite.
Um dos músicos foi até a cozinha e pegou sanduíches para todos os outros músicos,
sem pedir autorização nem informar a coordenadora de seva do amrit, isto é, a responsável
pela cozinha e alimentos vendidos no Centro. Bem, a coordenadora reclamou com um dos
rapazes músicos (são todos jovens) e ele lhe explicou que a coordenadora de música havia
dito que poderiam se servir no amrit, de graça, porque o ensaio atrasou e eles não tiveram
tempo de sair para comer fora.
Houve um atrito por causa disso. A coordenadora do amrit disse que a responsável
era ela e que não aceitava “essa bagunça”. Ao que se iniciou uma discussão sobre qual
deveria ter sido o comportamento correto nesse caso. A sevaíta do comitê dirigente
interferiu e pediu desculpas afirmando que ela havia sido informada pela coordenadora de
música sobre o lanche dos rapazes, mas que havia esquecido de tratar desse assunto com a
responsável pelo amrit.

66
Para além desse problema momentâneo, começou uma conversa na cozinha sobre
qual deve ser a postura a ser adotada nos serviços do Centro. A coordenadora alegava que
não era por estarem num local “espiritualizado”, fazendo um serviço voluntário, que as
pessoas deveriam supor que seria diferente de qualquer lugar com regras onde se trabalha
em grupo. Já outra sevaíta antiga discordava desse ponto-de-vista, considerando que as
regras deveriam ser cumpridas, mas que a compreensão devia ser maior no Centro, e que
era sim diferente estarem ali com propósito espiritual e imbuídas da shakti (também
chamada de Kundalini shakti, a “energia espiritual”).

Meditação e Canto

Em Siddha Yoga, nenhuma prática ou processo é mais importante do que a


meditação. Analisada à luz da relação guru-discípulo e shaktipat, a meditação é um
processo virtualmente espontâneo e natural. O guru Siddha sugere que apesar da meditação
ser melhor realizada sob certas circunstâncias de pureza e silêncio, não é uma técnica tanto
quanto é uma forma de yoga espontânea, na qual a shakti, ou Kundalini shakti, começa o
seu processo de reconhecimento.
A meditação pode inclusive ocorrer espontaneamente e conduzir a diferentes
estados de consciência, da vigília até estados mais místicos. O ponto central é que a
consciência dita “inteligente, livre e plena” de Kundalini shakti está em seu próprio
processo de despertar, iniciada pela shaktipat do guru e propagada pela meditação e
repetição do mantra. Vista por este prisma, a meditação é mais uma forma de remover os
“indesejados e desnecessários impedimentos” ao progresso de kundalini shakti do que um
método, ou técnica.
O guru Siddha ensina vários métodos de controle de respiração(pranayama) e
posturas(asana), mas esses são apoios da meditação e não a meditação em si. Servem para
acalmar a mente, atingir o estado meditativo, mas mesmo isso é o resultado também da
Kundalini desperta através de Shaktipat. Portanto, o que costuma ser visto apenas como
uma questão de esforço pessoal, em Siddha Yoga é colocado em termos do efeito da graça
do guru.

67
Paradoxalmente, o guru afirma que a meditação exige disciplina, concentração total
e vigilância constante, assim como diz que através da graça do guru facilmente se atinge o
estado de meditação. Isto é, Siddha Yoga não abandona as rigorosas demandas da
meditação, especialmente a prática de posturas e respiração, ou a relação entre hatha yoga
(exercícios físicos que preparam o corpo para a meditação) e o despertar da Kundalini.
Contudo ensina que a meditação é, ao mesmo tempo, uma prática a ser aprendida e
cultivada e uma condição do corpo e mente, natural e espontânea, iniciada por shaktipat e
preenchida e sustentada pela graça do guru.
Em Siddha Yoga, tratar a meditação somente de uma maneira seria desconsiderar e
relação entre esforço e graça, ambos necessários para a meditação. Ambos, disciplina
pessoal (na forma de meditação) e a ajuda de Deus (na forma da graça do guru) são
decisivos para o crescimento espiritual.
Comenta-se, no Centro, que a indicação primeira do sucesso da meditação é a
presença da meditação em nossas vidas, quando “não” estamos meditando. Muktananda
afirma que a meditação não é algo separado da nossa vida diária, mas parte dela. Assim, a
meditação não seria limitada a nenhuma atividade particular, mas um estado que deveria
acompanhar toda e qualquer atividade. Como diz Mutananda “True meditation is
remembering the Self in the midst of all activities”.
Não tenho como prestar contas de como e porque alguém tem, ou se tem, uma
experiência em meditação. Alguns praticantes de Siddha Yoga relatam visões fantásticas e
estados alterados de consciência (obtive um relato desse tipo, gravado em entrevista),
enquanto outros falam apenas de sensações de tranqüilidade, e ainda outros passam longos
períodos sem que nada aconteça que seja digno de nota. No entanto, o conselho de Siddha
Yoga é a persistência na prática para prover uma fundação sólida como “um veículo forte
para o fluxo da shakti”(Muktananda 1985:40).
Os Gurus Siddha declaram que a meditação é o meio direto do auto-conhecimento,
guiada pela Kundalini que desencadeia um processo de purificação. Os efeitos dos
movimentos da Kundalini aparecem no corpo como tremores, reações, movimentos e uma
variedade de emoções. São tidos como formas visíveis do processo interno de purificação e
despertar. Siddha Yoga chama esses “atos espontâneos”, freqüentemente envolvendo várias
posturas e respostas emocionais e físicas, de kriyas ou “ações”. Shaktipat iniciaria os kriyas

68
e muitos deles são tidos como grandes prazeres, visões, sons e insights que emergem na
meditação. O que presenciei no Centro, mais de uma vez, foram crises de choro e algumas
mudanças de posturas que poderiam ser “lidas” como kriyas.
Já a yoga praticada com a repetição do mantra é chamada mantrayoga. O canto dos
mantras é uma prática chave em Siddha Yoga. Gurumayi disse, em palestra, que a repetição
do mantra é todo um caminho em si mesmo.
O mantra se torna divino porque é transmitido por um guru auto-realizado e cuja
autoridade está enraizada em sua linhagem. O mantra sem o poder do guru é incapaz de ser
usado com eficiência, pois estaria “inerte”, porque o mantra, como a Kundalini shakti do
discípulo, “dorme” até ser despertada pelo Guru. Os mantras que o discípulo recebe do
Guru são mantras “carregados de poder”.
Em Siddha Yoga um mantra “com poder” é descrito como caitanya, “preenchido
pela consciência desperta”. O mantra base de Siddha Yoga é Om Namah Shivaya, acredita-
se que esse mantra contém a graça dos gurus siddha em sua plenitude. Entendendo aqui que
o mantra é nada menos do que a própria Kundalini, ou o guru em forma de som, não é uma
representação. Nas palavras de Muktananda; “Entender o poder das palavras é atingir
tudo”.
No Centro, o momento do canto é muito marcante, as pessoas vão cantando cada
vez mais alto. Alguns cantos mais alegres deixam todos empolgados, os cantos mais suaves
são freqüentemente cantados de olhos fechados. Além do que, as pessoas, mesmo estando
sentadas no chão ou nas cadeiras, acompanham a música com movimentos repetitivos,
“dançam” com a cabeça e o tronco, com a cabeça para frente e para trás, por exemplo.

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3.3) “Despertar espiritual”: a experiência da Iniciação Shaktipat
“A figura dela, como a dos grandes mestres, está focada no olhar, então através do
olhar você encontra, quer dizer, é a primeira vez que eu tenho contato com uma linha que
tem um Ser iluminado, um Ser considerado perfeito, é a primeira vez. Mas é o olhar, é o
olhar dela que me diz quem ela é. Não é a figura dela, embore eu ache ela uma simpatia,
acho ela muito bonita, mas é o olhar. Por exemplo, se for uma imagem de Jesus, você olha
para os olhos dele, você vê a mesma coisa que você vê em Gurumayi. Todos os mestres têm
o olhar. E eu recebi Shaktipat, como dizem, através do olhar dela. Foi o olhar”.
(M. contando a sua experiência de Shaktipat)

A iniciação Shaktipat é tida como momento-chave, pontapé inicial no processo de


espiritualização do devoto. Os adeptos denominam a sua iniciação, de maneira recorrente,
como “despertar”. O despertar refere-se ao “despertar da shakti”, explicada nos textos e
programas de Siddha Yoga como a energia espiritual que é “acordada” pelo guru durante o
programa do Intensivo.
O Intensivo é um programa de dois dias inteiros, excepcionalmente de um dia
inteiro, criado por Swami Muktananda para oferecer Shaktipat. Ele costumava dizer que “O
Intensivo vale por muitos anos de práticas”.
Nesses dois dias, o “estudante siddha”(expressão continuamente repetida por Baba
que ganhou reforço nos últimos anos, com a ênfase dada aos estudos por Gurumayi), fica
“imerso” ou “mergulhado”nas práticas de Siddha Yoga, como dizem os mestres de
Cerimônia( é chamado de “Mestre de Cerimônia” ou “MC” o sevaíta que conduz o
programa de satsang e/ou Intensivo). Isto é, cantando, meditando, ouvindo palestras de
monges ou da própria Gurumayi, contemplando os ensinamentos, fazendo Hatha Yoga e de

70
preferência comendo de maneira leve e vegetariana (pelo menos nesses dias) na própria
lanchonete/restaurante do Centro.
O Intensivo é um programa pago que costuma custar caro para bolsos brasileiros de
classe média, como já foi discutido no capítulo anterior. Em todo caso, os Intensivos estão
sempre lotados por serem programas especiais e pouco oferecidos, numa freqüência de
duas a quatro vezes por ano, em média.
Dois momentos distintos participam de shaktipat: o despertar da shakti no Intensivo
e o movimento da shakti (movimento ascendente através da coluna). Isto é, o despertar
espiritual enquanto experiência e o processo desencadeado pela experiência. Siddha Yoga
avisa que a experiência de shaktipat, seja qual for, mesmo espetacular, não é tão importante
quanto o processo desencadeado a partir da experiência. Ouvi no Centro que: “a
experiência é só uma experiência, mas o despertar da shakti leva ao movimento da shakti
que é contínuo e certo”.
A experiência pode ser abrupta, traumática ou incrível, mas o que se segue é um
processo de transformação que ocorre, geralmente, de forma gradual e constante,
perceptível e lenta. Essa transformação é reconhecida como um processo.
O processo de “transformação” pode ser pensado como equivalente ao que Csordas
chama de a “construção de um self sagrado”(Csordas1994), que é uma prática permanente
entre os carismáticos e que se constitui de uma espécie de aperfeiçoamento espiritual de
sentido bastante amplo. A construção desse self sagrado, de acordo com o autor, não pode
nunca ser realizada de maneira isolada, devendo ser construído na interação, na relação
permanente com os outros selves.
Em Siddha Yoga, os devotos tomam Gurumayi como exemplo, existe um modelo,
um ideal concretizado na figura do Guru. O exercício permanente é se aproximar cada vez
mais desse ideal, através das práticas, da devoção ao Guru e também da relação com os
outros, devotos ou não. Através, portanto, da rede de relações e práticas de que tratamos
anteriormente.
P., um dos meus entrevistados, me explicou que, depois de algum tempo em Siddha
Yoga, ele entendeu que o objetivo não era, nem deveria ser, aspirar por uma “versão
melhorada de si mesmo”, um “super P.”, mais inteligente, mais virtuoso, mais “tudo de
bom”. Isso, esse desejo de se tornar, em algum nível, “admirável”, ainda que fosse por suas

71
boas qualidades, era ainda o “ego” falando. Não, não era isso, estar no caminho espiritual e
conseguir avançar nele seria “outra coisa”, de “outro tipo”, seria justamente liberar-se desse
desejo de ser o “super P.”.
Outros entrevistados me falaram da contínua transformação em suas vidas
cotidianas, mudanças essas que apareciam na prática, no trabalho ou em casa. Uma estava
se tornando menos “ansiosa”, que era o seu maior problema, a outra, uma “mãe melhor e
filha melhor”, e um terceiro, apenas para exemplificar alguns, estava aprendendo a ter mais
“confiança” em si e no próximo.
Assim uma entrevistada declarou que, graças a Siddha Yoga, tinha rompido com o
seu papel de “vítima” que vivia se lamentando e sofrendo, com medo de tudo: “E neste dia
que eu fui fazer o curso, que era um intensivo sobre o medo, um workshop de vários dias
sobre medo, ele falava assim, perguntava ‘Você tem medo, sente medo? Então esta é a
oportunidade pra você tirar o medo da sua vida’, uma coisa assim, e eu senti aquilo como
se fosse alguma coisa diretamente pra mim, porque eu era uma pessoa que tinha muito
medo, eu vivia regida por medo, com o pensamento que coisas muito ruins pudessem me
acontecer a qualquer momento e isso foi erradicado da minha vida, totalmente”.
A iniciação Shaktipat pode também ser compreendida como possibilidade ou meio
de adquirir uma nova habilidade ou skill (Ingold,2000). Essa nova habilidade abriria
caminho para a transformação, seria o ponto-de-partida da transformação.
Tive a oportunidade de fazer um Intensivo em 2003 e acredito que vale a pena
contar a experiência, no sentido de apontar o que quero dizer ao tratar o Intensivo como
possibilidade ou meio de ganhar habilidade ou skill.

***

No dia do Intensivo cheguei ao Centro às oito da manhã para fazer a minha


inscrição que pode ser feita na hora ou com antecedência. Paguei o valor determinado e
recebi o crachá com o meu nome, além de uma estrelinha que indicava a condição de
“marinheira de primeira viagem”, por ser o meu primeiro Intensivo. O lugar, em geral, é
marcado no momento da inscrição. Você olha a planta das salas com os lugares disponíveis
e escolhe qual será o seu até o final. Se não houver marcação de lugar, chega-se a uma das

72
salas preparadas com cadeiras e almofadinhas vermelhas e o anfitrião pergunta: “cadeira ou
chão?”.
O Centro estava completamente decorado com arranjos de flores, velas, incensos e
pétalas de rosa no chão. As mulheres anfitriãs usavam vestido longo ou saia comprida
(vestuário usual das sevaítas). A intenção, claro, é que o ambiente fique (e fica) bonito em
homenagem ao evento.
Os Intensivos são satelizados. O horário do início ou término de cada dia depende
do horário de transmissão do programa direto do ashram. Existe uma sala reservada para
quem prefere “sem tradução” e duas para a tradução simultânea.
O mestre de cerimônias que está no ashram inicia o programa dando as boas-vindas,
falando um pouco sobre a importância do Intensivo e contando a programação do dia: canto
primeiro, palestra depois, intervalo para almoço, mais canto etc. Nesse primeiro dia, como
parece ser costume nos Intensivos, uma meditação longa, com duração de uma hora ou
mais, encerrou a programação.
Durante a manhã participei das atividades como se estivesse num satsang mais
demorado, nada de muito especial me chamou a atenção, almocei em casa porque morava
perto, sem carne, e voltei para me concentrar na segunda parte. Após uma pausa no meio da
tarde nos preparamos com exercícios de Hatha Yoga para a parte final que constava de
palestra com Gurumayi e meditação, o “ponto alto” do Intensivo.
Quando Gurumayi entrou e sentou na sua cadeira grande e especialmente adornada,
a “qualidade” da sala onde eu estava parecia ter mudado, mais silêncio, mais reverência.
Soube mais tarde que os outros participantes tiveram a mesma impressão na minha sala e
nas outras também. Gurumayi falou sobre um trecho da mensagem do ano, ao mesmo
tempo que comentava outros assuntos, a lua da noite anterior, uma carta que recebeu, uma
notícia de jornal.
Essa parece ser uma estratégia discursiva de Gurumayi que sempre intercala
comentários sobre assuntos cotidianos e ensinamentos espirituais, na sua tentativa de
afirmar, como a própria já sublinhou várias vezes, que não há separação entre vida
mundana e espiritual. Até que ela começou a nos preparar para a meditação, conduzindo
uma espécie de relaxamento e dando instruções sobre a maneira correta de respirar, de
sentar com a coluna reta, de onde posicionar as mãos, do que fazer quando os pensamentos

73
vierem durante a meditação, dizendo “não lute contra eles, deixe-os passar. A mente
sempre ganha quando o embate é direto...” etc.
Durante essa preparação, eu que estava sentada no chão em posição-de-lótus, com
as pernas cruzadas, mesmo sem ter preparo físico para isso, fui sentindo o meu corpo
encontrar uma posição confortável, encaixar do jeito certo, inclusive a coluna. E, pela
primeira vez, meditei sem sentir nenhum incômodo e sem me dar conta do tempo que tinha
passado. Aquela uma hora pareceu durar poucos minutos. Passei por sensações conhecidas
por quem pratica meditação como “sonolência” no início, em seguida a sensação de não
sentir o corpo completamente e também de fazer movimentos semi-involuntários como, no
meu caso, pender a cabeça para baixo ou para trás, sendo conduzida pelo peso da cabeça.
A diferença dessa meditação em relação a todas as anteriores foi evidente.
As minhas tentativas de meditar não passavam de dores nas costas, câimbra no pé
e/ou uma certa impaciência de não conseguir seguir as recomendações dadas pelo MC para
a meditação. A verdade é que as instruções de Gurumayi não foram diferentes daquelas que
tinha ouvido em diferentes satsangs, mas pela primeira vez o resultado foi diferente. E
achei que, de fato, tinha meditado.
O principal é que a partir do Intensivo algo mudou na meditação, não apenas
naquela única vez, mas em todas as outras vezes que meditei depois disso. É como se
tivesse aprendido algo novo, como andar de bicicleta. Assim também tive a impressão que
aprendi a meditar. Ganhei uma nova habilidade ou skill. Como isso foi possível? Em
termos nativos, a shakti foi despertada. Ou poderia dizer, como Ingold, que ganhei skill.

74
Capítulo 4 – DIANTE DO GURU

4.1) A presença física

“É uma experiência única, diferente de tudo que já tinha experimentado ou já


experimentei. Tinha um ano que freqüentava Siddha Yoga, oferecia Seva, já estava muito
envolvida, desde o início eu estava muito envolvida, e a presença física dela pra mim, pra
minha experiência pessoal, foi a presença de despertar em mim o divino, mas eu não tinha
consciência disso na época. Então ela me deu atenção, ela veio conversar comigo. Era
tudo muito mágico, muito diferente, muito novo, misterioso e era um êxtase constante.”

75
Dos vários momentos na vida espiritual do estudante siddha, o mais acalentado por
virtualmente todos os relatos é o que acontece quando o discípulo e guru físico se
encontram cara-a-cara. É um momento descrito como de alta intensidade. Essa é a hora do
darshan, isto é, de estar na presença do guru. A palavra darshan vem do sânscrito darsana
que literalmente significa “vendo”.
No contexto da relação guru-discípulo isso é mais do que uma experiência ordinária
de ver e ser visto. Existe a noção de que o encontro com o guru é o momento de encontro
consigo mesmo, com a verdade interna, o eu espiritual, o ser. Para isso, é preciso adotar
uma postura disponível, o “coração aberto” e se apresentar diante dele, ou dela, sem
“máscaras”. Conta-se que se alguém mente para o guru, ele sabe, se dissimula ou omite, ele
também sabe, ou seja, o guru é capaz de “enxergar” tudo o que se passa com aquele que
está a sua frente, instantaneamente, no momento que o olha. Por essa razão, algumas
pessoas têm medo de encontrar o guru ou vergonha de encontrá-lo, já que estariam se
expondo a um olhar que veria todos os seus defeitos e fraquezas.
Contudo, a maioria espera com ansiedade esse momento, porque no darshan se
encontra a possibilidade de uma experiência, dentro do contexto de Siddha Yoga,
transformadora e cheia de shakti. Assim, um dos entrevistados me disse: “Todas as
pessoas que vão ao ashram, a gente conversa muito, compartilha muito, todas têm uma
expectativa enorme em relação a Gurumayi. Será que ela vai falar comigo, não vai, como é
que vai ser encontrar com Gurumayi, aquela coisa”.
Ter o darshan de homens santos, gurus, é uma prática muito difundida na Índia. Há
relatos informando que cinqüenta anos atrás, devotos andavam muitos quilômetros, dias
inteiros, para se sentar um momento na presença de Bagawan Nityananda. Freqüentemente
ele não dizia nada e/ou ficava de costas para os visitantes sem virar-se uma única vez.
Swami Muktananda implementou uma oportunidade mais estruturada para darshan
ao se sentar numa cadeira após os programas públicos, esperando que os devotos fossem
até ele, em fila. Gurumayi continuou essa prática por anos, mas em 1996 a interrompeu.13

13
Passou-se de uma realização da prática de darshan característica de Nityananda para uma formalização da
prática implementada por Muktananda e a interrupção da mesma por Gurumayi, esse é um bom exemplo de
como cada Guru contribui a seu modo para Siddha Yoga. Há práticas constantes, mas modificações se
mantêm em curso, como em relação aos rituais e na adoção de novos textos e mantras.

76
Alegou a respeito da interrupção que os devotos deveriam entender a importância de “ver o
Guru em seus corações”, de cultivar o contato interno. Como me disse um entrevistado:
“Gurumayi gosta de, de vez em quando, mudar as práticas em que as pessoas se

acomodam e geram expectativas. Ela parou de dar o darshan regular, formal, porque ela
disse que queria que as pessoas tomassem a consciência que aquela experiência que elas
tinham era, não porque viam Gurumayi e se inclinavam diante da cadeira, mas porque
naquele momento elas estavam abertas e disponíveis, e se elas estivessem abertas e
disponíveis em qualquer outro momento, em qualquer outro local, elas também teriam
aquela experiência”.
Apesar de se manter a possibilidade de darshan informal de Gurumayi, essa decisão
também confirma a formulação de Siddha Yoga de que o guru não precisa estar fisicamente
presente para que o darshan aconteça. Alguns devotos de Siddha Yoga contaram que
tiveram o darshan do Guru ao olhar para uma fotografia ou enquanto cantavam o mantra.
De certa forma, o guru está no puja (altar) e o puja está no guru. Explico. Um dos
aspectos mais criticados da religiosidade indiana, dos primeiros contatos dos agentes
coloniais britânicos com a Índia até hoje, é a adoração de imagens. Barroso comenta que
duas de suas companheiras de quarto no ashram, ambas européias, acreditavam que a
estátua de Nityananda, no templo a ele dedicado, era uma estátua viva, que precisava de
fato ser alimentada e vestida todos os dias. Uma delas chegou a dizer que vira a sua boca se
mexendo e a outra que o vira chorando.(Barroso, 99:147)
Um dos entrevistados relatou dessa maneira a sua experiência com o seu altar
doméstico: “Eu tenho o meu altar em casa, desde que entrei pra Siddha Yoga eu fiz o meu
puja, e daí quando a gente faz o puja, faz uma relação muito íntima com todo mundo, ali é
a nossa conversa. Eu converso com eles ali no puja, converso mesmo. ( Tem a foto dos
três? ) Tem a foto dos três, a gente monta o puja parecido com o puja daqui( do Centro),
da sala principal, só que pequenininho, e a gente vai botando as nossas coisinhas, o
incenso, flor, eu tenho a foto de Lakshmi que é a deusa da prosperidade, da beleza, e aí
vou fazendo, sempre fiz desde o início essa relação muito próxima. Eu converso com
Gurumayi sobre mil coisas, sabe, com Baba, com Nityananda”.
Ao mesmo tempo, outra questão amplamente admitida é a presença do guru na vida
dos adeptos, ainda que de forma sutil. Por exemplo, se viajamos sozinhos, sobretudo

77
quando o objetivo da viagem é espiritual, viajamos sempre na companhia do guru. A prova
disso seriam as seqüências de acontecimentos e coincidências favoráveis nesse tipo de
viagem. Essa seria mais uma das várias indicações da divindade do guru. Porém, uma das
principais críticas a religiosidades hindus está associada a uma dificuldade de aceitação da
divindade do guru, seja em nome de um princípio mais genérico, em que há recusa em
admitir-se que pessoas humanas possam atingir uma condição divina, seja pela adoção de
religiosidades em que o princípio da divinização de seres humanos não é reconhecido.
Ambos esses aspectos comentados acima, alvos de crítica da racionalidade
moderna, tanto pelo que pude observar em campo quanto pelas entrevistas, são praticados
com muita naturalidade pelos adeptos, sem qualquer conflito aparente ou tentativa de
explicação racional. Parece que encaram o guru e as imagens como se ambos fossem parte
de uma mesma operação, mais simples do que supomos.
De certa forma, parece que estamos diante dos fe(i)tiches do Latour, mas em que
condições operam os fe(i)tiches? Como nos superam? Latour diz que essa experiência é
banal, todos a conhecem, está no terreno da prática condenada ao oficioso pela teoria,
“tornada incompreensível pela dupla suspeita da crítica e remetida por esta razão ao
silêncio”.(Latour 2002: 78)
Em parte, é também como se os adeptos estivessem concordando com Vivekananda
em seu discurso no Parlamento das religiões: “Toda a religião dos hindus é centrada na
realização. O homem deve tornar-se divino e, assim, ídolos, templos, igrejas ou livros são
apoios, auxílios em sua trajetória espiritual”. E continua: “Se um homem pode compreender
a sua natureza divina com a ajuda de uma imagem, seria certo chamar a isto de pecado? E
mesmo quando tivesse ultrapassado aquele estágio, deveria ele ser considerado um erro?
Por que há tantas imagens? Meus irmãos, não podemos pensar em nada sem imagem
material assim como não podemos viver sem respirar”.
O guru parece ser justamente mais uma dessas imagens necessárias, a própria
imagem da realização, da iluminação acalentada pela religião hindu. A personificação do
que definem como o supremo êxtase e a suprema consciência. De que outro modo daria
para estabelecer uma relação com citi-sakti (“consciência universal”)? O Guru seria,
portanto, o lado personalizado de uma religião, lado esse necessário no sentido de abrir
espaço para as relações.

78
Certamente, não poderia perguntar como “os modernos” descritos por Latour,
“como você acreditam nisso?” De acordo com Latour, enquanto os adeptos designam algo
que não é nem inteiramente autônomo nem inteiramente construído, a noção de crença
quebra em duas partes esta operação delicada, essa ponte frágil lançada entre fetiche e fato,
e permite aos modernos ver em outros povos, crentes ingênuos, hábeis manipuladores ou
cínicos que iludem a si próprios. Os modernos acreditam na crença para compreender os
outros; os adeptos não acreditam na crença nem para compreender os outros nem a si
próprios. (Latour 2002:23)
Precisamos então, diz Latour, devolver à palavra fetiche o que ela tem de fato, e não
ficarmos só no que tem de feito, para podermos novamente falar da ação dos fetiches, “ao
juntar as duas fontes etimológicas, chamaremos fe(i)tiche a firme certeza que permite à
prática passar à ação, sem jamais acreditar na diferença entre construção e compilação,
imanência e transcendência”.
Não se trata nem de acreditar, nem de suspender a crença comum. Todas essas
divindades, estátuas, fotografias nos altares, e mesmo os gurus, agem sozinhos e existem
sem se amparar na escolha entre construção e realidade, cada um requer formas particulares
de existência das quais é preciso estabelecer com cuidado, o caderno de encargos. Assim,
“ainda que o fetiche não seja nada senão aquilo que o homem faz dele, ele acrescenta
alguma coisa: ele inverte a origem da ação, ele dissimula o trabalho humano de
manipulação, ele transforma o criador em criatura. Mas o fetiche faz ainda mais: ele
modifica a qualidade da ação e trabalho humanos”. (Latour 2002:86)
O ponto é que os fetiches são fe(i)tiches, as divindades são ação, as estátuas de
Nityananda e Gurumayi são um modus operandi com características especiais, um operador
analítico sim, mas fetichizável, porque não poderíamos tratar os fe(i)tiches como um modo
de pura ação, já que assim acabaríamos por tirar o fetiche dos fe(i)tiches.

***

79
Para quem está num dos ashrams de Siddha Yoga no mesmo período que
Gurumayi, darshan pode ocorrer a qualquer hora, quando ela caminha pelo jardim, na
cozinha ou num enorme salão de palestras. J. conta o seu encontro nessas palavras: “E eu
cheguei lá, ia ter um arati da tarde, rapidamente eu troquei de roupa, uma pessoa me
recebeu, me colocou num contorno onde ela ia passar, e eu estava completamente tonta
ainda, fuso horário e tal. Ela veio diretamente até mim, me deu as boas-vindas, segurando
a minha mão, disse Welcome várias vezes, segurando a minha mão, e eu não tinha a menor
noção do que significava o toque do Guru.
O toque do Guru é muito poderoso, limpa, renova a pessoa, cura, né?E ela sabia
que eu precisava de muita cura, de muita limpeza, o Guru sabe o que cada um precisa, ela
vai dar o que cada um precisa no momento que cada um precisa. Durante o mês que eu
tive lá, tive alguns encontros com Gurumayi, alguns toques, e ela me tocava na mão, me
tocava na barriga, tive uma limpeza física muito grande, de ir ao banheiro, e ter esta
limpeza física, de impurezas.
E eu não tinha a menor noção que quando eu voltasse ao Brasil, a partir daquele
ano de 95, eu ia ter uma grande estrada, de começar a trabalhar muita dificuldade, então
ela sabia. Sabia que eu precisava ali de muita estrutura, muita força, muita limpeza pra
começar o meu trabalho interno de reestruturação”.
As observações de R. a respeito das reações dos devotos ao encontrar Gurumayi,

assim como as observações da própria guru sobre isso foram bastante curiosas, porque o
comportamento do devoto indiano nem sempre é o mais adequado, como se poderia
imaginar. Ao contrário, em alguns casos o padrão desejável é o “ocidental”. Assim, R.
relatou: “A gente fez um curso no ashram que era sobre ‘como estar com o guru’, porque o
indiano em geral tem essa coisa da devoção, da cultura espiritual, mas ao mesmo tempo,
existe uma coisa, uma condição meio mecânica, no pedido de bênçãos, no ritual, a benção
é como se fosse uma coisa, vai lá e toca no pé do mestre ou toca no pé da estátua e você
obtém o seu bem. E tem uns exageros a partir daí, as damas, as senhoras indianas
mergulhavam aos pés dela, ela não conseguia nem andar pelo ashram, porque os indianos
mergulhavam e ela não queria isso. E ela falou muito sobre isso e de forma bem incisiva,
Gurumayi quando estava num lugar público no ashram, uma pessoa vinha e colocava uma
almofadinha nos pés dela para as pessoas tocarem os pés dela e ela queria que a gente

80
abordasse isso, que os jovens indianos aprendessem outra maneira de se comportar com o
guru ...”.

4.2) Sobre o ashram

“Passei uma semana no ashram, na primeira vez que eu fui, e foi aquela experiência
clássica da descoberta do serviço, do devoto que va

81
plenamente justificadas, haveria também uma “explicação” para o que, popularmente,
chamam de casas “mal-assombradas” (tema mais do que explorado em filmes de terror), ou
com “energia pesada” ou “ruim”, onde haveria identificação do local com moradores
violentos e ações violentas de seus habitantes, como assassinatos.

82
si, criando a percepção de uma unidade subjacente a tudo. Dessa forma o processo será
mediado pela, nos termos de Simmel, uniqueness de cada indivíduo.
Barroso registrou que a ressignificação do cotidiano seria desencadeada através de
processos reflexivos, então “a reflexividade – o pensamento crítico sobre instâncias de suas
próprias vidas – se apresenta como via de acesso privilegiada para a espiritualidade. Estes
recursos reflexivos serão acionados para a observação de si mesmos”(Barroso, 99: 124).
Em sua descrição tratou a ressignificação como sendo feita por “meio de homologias,
metáforas e da observação de coincidências que conectam acontecimentos aparentemente
díspares e em relação uns com os outros”. (99:126) A partir de observações de campo
identificou uma tipologia (três tipos) de processos reflexivos baseados em pensamento
homológico, consistindo basicamente em nova leitura de determinados acontecimentos à
luz de outros.
No que concerne a esses processos, defini-los como “reflexivos” talvez não seja o
mais adequado, no sentido que a autora colocou como o de um “pensamento crítico sobre a
própria vida” e mais adiante, “identificação das sincronicidades Junguianas”.
Digamos que esses processos tendem a se aproximar mais das interferências
abdutivas, tal como a abdução é descrita por Peirce: “a abdução, ‘único tipo de argumento
que inicia uma nova idéia’, é um instinto que confia na percepção inconsciente das relações
entre os aspectos do mundo, ou usando um outro conjunto de termos, é a comunicação
subliminar das mensagens” (Eco e Sebeok, 83:23). Segundo uma das formulações
posteriores de Peirce é também “um meio de comunicação entre o homem e o seu Criador,
um “privilégio divino”que deve ser cultivado”( Eisele, 1976:206).
A atuação da energia do guru deixaria pistas e o desafio do devoto seria o de
descobrir as pistas, de “modo detetivesco”, recolhendo indícios que ao final formariam um
sentido. Como no paradigma indiciário de Ginzburg, “trata-se de formas de saber
tendencialmente mudas – no sentido de que, como já dissemos, suas regras não se prestam
a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de
diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento entram em jogo ( diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe
de vista, intuição (Ginzburg, 1986:179).

83
Dessa forma, há várias histórias de devotos que diagnosticaram acontecimentos no
ashram como indicações do Guru. Procuraram, então, entender o que Gurumayi estava
tentando lhes dizer com aquelas pistas, fazendo associações, reunindo aquilo que
normalmente não reuniriam, os tais elementos imponderáveis, possibilitando uma nova
sugestão, um novo sentido.
Uma dessas histórias é a de L. que foi ao ashram e ao ver Gurumayi sentiu “inveja”
dela, vontade de ser como ela, pensou em como era incrível ser Gurumayi. Na hora do seva
lhe ofereceram o seva de tradução inglês-português e português-inglês. No entanto, alguns
computadores estavam com problemas e como ele era “metido a entender”, de acordo com
suas palavras, de informática, resolveu que ia fazer seva consertando os computadores.
Parece que a incursão no departamento de informática foi um desastre. Um dos
computadores que estava funcionando acabou entrando em pane, nas suas mãos. E os
outros ficaram sem solução. Ele ficou morrendo de vergonha, porque ao invés de resolver o
problema, como havia anunciado que faria, piorou o quadro geral. Não conseguiu encontrar
nenhuma solução depois de horas e outros foram chamados para ajudá-lo.
O importante é que, após esse constrangimento, chateado consigo mesmo, ele se deu
conta de que tinha recusado o seva de tradução que era o mesmo que Gurumayi fazia para o
seu Guru, o Baba.Gurumayi, como já foi dito, fazia tradução das palestras e textos de Baba.
Isto é, Gurumayi havia lhe dado a oportunidade de fazer o mesmo serviço que ela
fazia (e lembre-se, ele a tinha invejado, queria ser como ela), mas ele tinha preferido se
aventurar em outra tarefa, incapaz de perceber a generosidade de Gurumayi. Para L., o
problema no departamento de informática foi a “deixa” de Gurumayi, a forma dela lhe
mostrar que ele poderia ter as mesmas chances que ela, se soubesse reconhecê-las e aceita-
las.
Também V. disse que recebeu uma “lição” logo ao chegar no ashram.
V. economizou o ano inteiro para ir ao ashram com a filha de sete anos. Estava
animadíssima e disposta a fazer todos os cursos disponíveis, bem como ir a todos os
programas durante a sua estadia. Chegando lá, houve um contratempo.
Logo na entrada do ashram descobriram que a sua filha estava cheia de piolho.
Portanto as duas foram orientadas a ficar num alojamento distante, uma espécie de chalé
quase isolado. Ficou acertado com V. que, antes de qualquer coisa, o seu seva no ashram

84
seria cuidar da filha, tirar os piolhos da menina. Ao ouvir isso, a menina disse: “E agora,
mãe, você não vai conseguir nunca, você não olha pra mim”.
Nesse momento, V. conta que “desabou”. Foi catar os piolhos, passou remédio,
penteou a filha e aconteceu, a partir disso, uma aproximação, um reencontro. V. comentou:
“Aquele foi um momento muito importante para nós duas. Foi o melhor presente, a melhor
experiência que Gurumayi podia ter me dado, a minha filha”.
Outro que me contou de que maneira recebeu exatamente a mensagem que
precisava foi P., esclarecendo que os sinais aparecem na hora certa, há uma conexão precisa
entre o que se precisa entender e o que se entende.
P. ia participar de um programa no ashram em homenagem a Nityananda. Era um
dos muitos programas do ashram. Ele e uma amiga contariam, cada um, a sua experiência
envolvendo Nityananda. Estava nervoso, sabia que deveria escolher bem as palavras porque
a sua experiência era sutil e para transmiti-la deveria ter a habilidade de mostrar o que lhe
acontecera de importante.
Para aumentar o nervosismo, uma surpresa. Gurumayi entrou na sala onde o
programa estava prestes a começar e sentou-se para ouvir os depoimentos. Paulo ficou
muito surpreso, pois ninguém esperava ver Gurumayi ali, mas conseguiu falar quando
chegou a sua vez, com calma, tendo feito uma cuidadosa seleção de frases. No dia seguinte,
soube que Gurumayi havia comentado que ele falava bem.
Esse episódio foi significativo, não só por ter recebido um elogio de Gurumayi, mas
porque vinha passando por uma fase difícil. Estava fazendo uma série de serviços com os
quais tinha uma relação de sacrifício, já que eram justamente aqueles sevas que lhe traziam
dificuldade. Andava se sentindo incompetente, porém achava que devia insistir nos sevas
difíceis, porque aquele sofrimento lhe faria amadurecer. Era preciso se colocar desafios. Ou
era assim que pensava.
A partir do comentário de Gurumayi repensou essa idéia, considerando que era
possível crescer na alegria, fazendo aquilo que sabia, o que lhe dava prazer. Não eram
apenas as dificuldades que provocavam crescimento.

85
Disciplina e perspectiva sagrada

Residentes e visitantes de Gurudev Siddha Peeth e Shree Muktananda ashram falam


da paz que experimentam nos ashrams, ao mesmo tempo que descrevem a vida no ashram
em termos de uma “intensa queima” de algum tipo. Geralmente estão se referindo a
natureza de tapasya, das “austeridades”, que praticam quando se encontram lá. Tapasya
refere-se a disciplinas espirituais que criam tapas, um tipo de “calor” ou “fogo” que
queimaria impurezas espirituais e “limparia” o corpo, a mente e o coração. O ashram daria
ao seu visitante um contexto que possibilitaria essa queima de tendências enraizadas, uma
chance de “purificação” e de mudança de perspectiva.
Em Siddha Yoga limpar o chão e servir o guru podem ser resumidos numa mesma
ação, pois qualquer atividade deveria ser um ato de adoração e celebração do sagrado.
Porém as impurezas fazem com que ele ou ela veja o mundo de uma perspectiva profana.
Por isso, Siddha Yoga sustenta que tapasya é fundamental, para destruir as tendências
(chamadas de sanskaras) e impurezas que devem ser “queimadas”. Uma das conseqüências
dessa purificação seria alcançar uma mudança de perspectiva, passando de uma perspectiva
profana para uma sagrada. Diz-se que é para ganhar essa perspectiva e agir de acordo com
ela que os devotos devem permanecer por algum tempo no ashram.
Conciliar a vida dos adeptos, quando eles retornam a suas atividades fora do
ashram, a essa perspectiva religiosa é uma das principais propostas trabalhadas durante a
estadia. Esse propósito seria acionado a partir de determinados recursos, como o da
disciplina espiritual e o da própria shakti do lugar, também pelo tipo de apropriação que os
devotos fazem das práticas. Trabalha-se no sentido de se levar o ashram para casa.
Um entrevistado comentou a respeito dessa não-separação entre sagrado e profano,
contando a sua experiência: “Antigamente eu separava o que era vida espiritual e o que
não era vida espiritual, dentro deste centro era a vida espiritual e fora era a minha vida.
Só que, de alguns anos pra cá é tudo junto, juntou tudo. Eu venho, na verdade, trabalhando

86
dentro de mim a concretização desta unidade, do meu corpo físico, onde estou pisando
agora. Siddha Yoga me dá isso, me dá esta possibilidade de fazer esta junção com todas as
dimensões da minha vida. Não é separado, eu procuro viver inteiramente em todos os
lugares, em todos os momentos, em todas as áreas onde eu atuo e isto, pra mim, é uma
grande benção. É uma coisa que eu desejei, que eu venho desejando desde que eu sou
adolescente, não com esta clareza, mas eu sempre senti esta fragmentação, sempre senti
muito, sempre procurei juntar todas estas coisas, juntar o mental com o afetivo, com o
corpo, com o espiritual, com o emocional. Os ensinamentos e as práticas permeiam a
minha vida e a minha vida permeia Siddha Yoga. No sentido de que passeiam juntos,
caminham juntos, não é junto, é entrelaçado, é tudo muito entrelaçado. E eu consigo ter
clareza de situações, de processos em mim, dentro de mim, muito mais do que anos atrás,
eu não tinha clareza desta unidade. Então o que mudou depois que fui ao ashram e em
todos esses anos foi a maneira de eu me relacionar neste sentido de inteireza, totalidade, e
não separar o que é espiritual do que não é. O grande ensinamento de Siddha Yoga é viver
no mundo e não se recolher, porque na Índia a gente tem esta coisa dos sábios e dos
mestres se recolherem, bem aqui no Ocidente também tem esta coisa do recolhimento para
a purificação, a iluminação e tal. Em Siddha Yoga a gente pode perfeitamente ampliar a
nossa visão, independente do que a gente faz, entendeu? E é possível. Não existe o que é
sagrado e o que não é sagrado, tudo é sagrado e assim falam as escrituras, o Shivaísmo da
Caxemira fala muito nisso. E eu procuro ver isso no meu trabalho, nas pessoas que eu me
relaciono, é muito difícil isso, um desafio muito grande. Mas eu acho que o grande barato
é o grande ensinamento que Gurumayi é pra nós, é fazer com que a gente leve o que
aprende aqui para todas as áreas da nossa vida, aí é que eu acho que é o grande desafio, o
grande ensinamento”.
Para criar um ambiente propício para tapasya é preciso que haja disciplina. Os
gurus siddha defendem que num ashram a maior parte do tempo deve ser dedicada à
meditação e contemplação de Deus. Não deve se desperdiçar tempo num lugar tão precioso
comendo, bebendo, dormindo, fofocando, falando bobagens. Gurumayi enfatiza a
necessidade de firmeza nas práticas, perseverança, esforço prolongado, austeridade do
discípulo. Muktananda escreveu: “Se um homem rico não protege sua riqueza, ou um
homem bom, sua virtude, logo essas coisas estarão perdidas. Da mesma maneira, um

87
buscador que vive sem disciplina e regularidade enfraquece a sua shakti”(Swami
Chidvilasananda, 97:40).
O curioso é que apesar dos horários do ashram serem bastante rigorosos e as
práticas constantes, os entrevistados disseram que não é tão difícil manter a disciplina no
ashram. Um deles me contou que “aqui sim é duro, não suporto acordar cedo, mas lá todo
mundo acorda, a gente se acostuma a um novo ritmo, uma rotina que não cansa, flui muito
melhor, é uma rotina que fora do ashram não daria pra manter, mas lá dá”. Outro
depoimento foi assim: “Os 30 dias que fiquei no Ashram foram dias muito intensos, muito
ricos, fazia seva, intensivo, cursos, tudo que eu podia fazer naqueles horários, eu dormia
muito pouco, não sentia sono. Vivia intensamente todos aqueles minutos para apreender
aquilo tudo e trazer”.
A rotina e os horários foram estabelecidos em Gurudev Siddha Peeth em 1966. E o
mesmo ritmo tem sido mantido com variações. Os visitantes não são obrigados a cumprir a
rotina, nem a ir a todos os cantos, mas devem se esforçar no sentido de irem a pelo menos
um ou dois por dia, como me contaram sobre a orientação no ashram. Há também uma
variedade de cursos oferecidos que não existiam. Os monges e residentes costumam
respeitar a programação só deixando de comparecer aos programas quando estão ocupados
fazendo outro serviço no ashram.
O canto da Guru Gita, uma espécie de regulador da rotina, já que é considerado um
canto indispensável a ser feito preferencialmente todos os dias, começa às 5:30 da manhã.
No livro Ashram Dharma um monge descreve em detalhes o horário vigente em 1972. Os
residentes acordavam às 3:00 horas da manhã, tomavam banho frio, às 3:30 quase todo o
ashram já estava meditando na “cave”, como era chamado o quarto de meditação embaixo
da casa de Baba, às 4:15 faziam um arati para Bagawan Nityananda e cantavam mantras em
seu louvor. Então a Guru Gita começava às 5:30 (quando Baba cantava junto exigia postura
impecável durante o canto que dura uma hora e meia). Entre 7:00 e 8:00 o café da manhã
era servido. Após o café, cada um ia fazer o seu serviço específico, cuidar do jardim,
faxina, tradução de textos etc. Às 11:15 todo mundo é convidado a cantar o Rudram e às
11:50 o Siva Arati, dois cantos em homenagem a Siva. O almoço é servido entre 12:00 e
13:00. A tarde é dedicada a se fazer mais seva. Às 14:00 tem mais um canto,
Visnusahasranama (os mil nomes de Deus como sustentador do universo), às 18:00

88
novamente tem o Arati, com os mesmo mantras da manhã para Nityananda. O Siva
Mahimna Stotra é cantado às 19:45, após o jantar e o Siva Arati novamente às 21:00 horas.
Todos vão dormir em seguida.
Para uma das entrevistadas a sua idéia de como seria a vida o ashram foi colocada
dessa forma: “Eu particularmente me sinto muito confortável num ashram, num lugar
recolhido, pra mim é muito fácil me recolher, eu fico ótima, sabe, eu adoraria morar num
ashram, já pensei várias vezes em morar num ashram, sair fora de tudo que não é ashram
e tal. Só que eu tinha uma grande fantasia de que então eu não me depararia com nenhuma
dificuldade mais, estava tudo certo. E não é, porque as dificuldades que eu preciso romper
e ultrapassar estão dentro de mim e eu vou estar neste ashram, quer dizer eu vou me levar
junto, então não importa o lugar. Claro que o ashram tem toda uma proteção diferente, eu
me sinto muito protegida, é como eu vejo, eu me sinto muito protegida dentro de um
ashram e imagino que seria muito mais fácil, mas só imagino, é uma fantasia, eu não vivi o
cotidiano”.

89
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Nessas “Considerações Finais” não há intenção de fazer uma revisão do trabalho,


mas de apontar possibilidades de estudo e aprofundamento do tema.
Há questões que poderiam ter sido abordadas nesse mesmo grupo, mas que ficaram
de fora por insuficiência de dados ou pela própria limitação intrínseca a qualquer trabalho
como, por exemplo, a que seria suscitada pelo fato de Gurumayi ser uma guru mulher, isto
é, de que maneira o gênero influenciaria, se é que influencia, na relação com os devotos.
Outra possibilidade seria a de verificar, em pesquisa de campo, as diferenças de
comportamento e relação entre os adeptos indianos, de origem hindu, e os adeptos
ocidentais com outras formações religiosas.

90
Além disso, a prática dessa relação guru-discípulo não é exclusividade de Siddha
Yoga, porém não é possível fazer generalizações para outros casos sem mais estudos
etnográficos. Ou seja, outras relações que parecem similares, à primeira vista, deveriam ser
avaliadas à luz de outras etnografias.
Um exemplo, de outra proposta de estudo desse tipo de relação, é a que Fredrik
Barth trabalha em “o guru, o iniciador e outras variações antropológicas”. Inicialmente,
Barth explica em nota que “evidentemente, ‘guru’ é, etimológica e culturalmente, um
conceito indiano, mas está amplamente presente no sudeste da Ásia. A pequena minoria
muçulmana em Bali desenvolveu uma variante distintiva, altamente institucionalizada, que
de modo algum é representativa de toda a região ou mesmo da maioria de bali-hinduístas. A
forma que foi desenvolvida na comunidade muçulmana, no norte de Bali ilustra, contudo,
características básicas e gerais da figura fundamental do mestre, presente na maioria das
grandes tradições asiáticas”.
A partir do contraste entre dois tipos ideais, ou dois status contrastantes, o guru
balinês muçulmano (Ali Akbar) e o iniciador (que coordena rituais públicos e inicia
noviços) na Nova Guiné, Barth analisa demandas distintas quanto a forma de lidar com o
conhecimento. Assim, “o guru alcança a sua realização como tal ao reproduzir o
conhecimento, enquanto o iniciador, ao protegê-lo. O guru deve oferecê-lo continuamente:
deve explicar, instruir, saber e exemplificar; com isso, contribui para incutir nas mentes de
seus pupilos e de seu público elementos de uma tradição bastante prolífica. Já o iniciador
guarda tesouros secretos até o dia de clímax, em que deve criar uma performance, um
drama que ocasiona a transformação dos noviços” (Barth 2000:145).
Barth procura, por esse viés, trazer à tona “as fontes de duas economias
informacionais basicamente distintas, através da identificação das pressões que direcionam
os esforços intelectuais daqueles que assumem esses dois papéis muito diferentes”. (Barth
2000:146)
O guru siddha, por sua vez, pode transmitir o conhecimento através de seu exemplo
e mesmo de seu silêncio, caso de Nityananda, ou de ensinamentos escritos e orais como
Gurumayi e Baba Muktananda. Também passa o seu conhecimento através da iniciação
shaktipat, oferecendo um tipo de “conhecimento imediato’, a partir do “despertar da energia
de kundalini”.

91
O guru siddha orienta, ensina e oferece iniciação, porém há certos “tesouros
secretos” que ele também guarda para o dia propício (quando esse dia chega), para o
momento em que o discípulo seria capaz de recebê-los, após ter sido preparado pelas
práticas espirituais.
Um discípulo de Swami Muktananda que havia questionado, ao conversar com
outros devotos no ashram, o que ele poderia ganhar com todo aquele esforço, ouviu a
seguinte resposta do seu guru: “So, what are you going to get from coming to Baba?
Nothing! Right? That’s what you think? I have a whole ocean to give. Do you have the
capacity to take it? Could you hold it? Ihave so much to give. You have to do tapasya, you
have to do alot of seva, you have to become strong – how else could you hold what I have
to give? If I gave it to you know you wouldn’t be able to do anything tomorrow. And then
it wouldn’t stay with you.Only after you serve the guru are you prepared to take what the
guru can give; only then can you contain it”.(Venkappana, 1994:28-29)
O guru siddha não se encaixa perfeitamente em nenhum dos dois tipos descritos por
Barth, considerando a ótica de transmissão ou não de conhecimento, apesar de se aproximar
mais do guru balinês muçulmano, sendo uma variação, ou uma forma mista, no que
concerne a esses tipos ideais. Com esse exemplo, procurei somente apresentar as
possibilidades de outros trabalhos se relacionarem com a relação guru-discípulo em Siddha
Yoga, certamente há muito a ser feito.
No entanto, não poderia terminar o trabalho sem enfatizar, uma vez mais, que a
relação guru-discípulo é uma prática que contém em si uma rede de práticas e relações.
Relacionar-se com o guru, sendo discípulo, é realizar práticas constitutivas dessa relação e,
ao mesmo tempo, entrar numa rede de relações. Para se relacionar com o guru siddha, é
preciso estar disponível para os seus “attatchments’ (para usar a linguagem Latouriana),
estar, portanto, em relação com o serviço ao guru (o definidor mais efetivo de
pertencimento ao grupo), as demais práticas, os demais devotos, a linhagem de siddhas, o
sânscrito e o hindi, imagens, objetos e espaços físicos.

92
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