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Promoção da Saúde Mental – Tecnologias do Cuidado:
vínculo, acolhimento, co-responsabilização e autonomia
Abstract Healthcare relations serve as efficient Resumo As relações de cuidado funcionam como
devices for the promotion of mental health and dispositivos eficazes para a promoção da saúde
the development of comprehensive practices. This mental e para o desenvolvimento de práticas in-
study seeks to analyze the measures that make tegrais. Objetiva-se analisar os dispositivos que
mental healthcare possible in the daily operations possibilitam o cuidado em saúde mental no coti-
of a Psychosocial Healthcare Center (CAPS). It is diano do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
qualitative research adopting a critical and re- Trata-se de uma pesquisa qualitativa de aborda-
flexive approach conducted in CAPS in the mu- gem crítica e reflexiva realizada no CAPS do Mu-
nicipality of Sobral in the State of Ceará. Com- nicípio de Sobral-CE. O estudo foi submetido à
plying with regulations, the study was submitted análise do Comitê de Ética em Pesquisa adequan-
for analysis by the Committee for Ethics in Re- do-se às normas da pesquisa envolvendo seres
search adhering to norms for research involving humanos. Para a coleta de dados, realizada no
human beings. For data gathering, conducted período de maio a julho de 2008, foram utilizadas
between May and July 2008, semi-structured and as técnicas da entrevista semi-estruturada e ob-
systematic observation interview techniques were servação sistemática. Os sujeitos da pesquisa fo-
used. The research subjects involved 20 people, ram 20 pessoas, distribuídas em três grupos: gru-
distributed into three groups: group I (mental po I (trabalhadores de saúde mental–8); grupo II
health workers-8); group II (users-7) and group (usuários–7) e grupo III (familiares dos usuári-
III (relatives of users-5). The material was orga- os–5). Após coletado, o material foi organizado e
nized and analyzed using principles of critical analisado pelos pressupostos da hermenêutica crí-
hermeneutics. According to the results, in the daily tica. Conforme os resultados evidenciam, no coti-
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Programa de Pós- operations of CAPS, the relations of care and its diano do CAPS, as relações de cuidado e seus dis-
Graduação em Saúde
devices (reception, emotional involvement, co- positivos (acolhimento, vínculo, co-responsabi-
Coletiva, Centro de Ciências
da Saúde, Universidade responsibility and autonomy) make the trans- lização e autonomia) possibilitam a transversali-
Estadual do Ceará. Av. versal adaptation of psychosocial practices possi- zação da prática psicossocial, (re) construindo
Paranjana, 1700, Itaperi.
ble. The dialogues were derived from meetings of espaços de diálogo no encontro dos trabalhadores
60740-000 Fortaleza CE.
masabejo@bol.com.br mental health workers, users and relatives in their de saúde mental, usuários e familiares na busca
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Departamento de quest for healthcare solutions. da resolubilidade da atenção à saúde.
Enfermagem, Universidade
Key words Mental health, Promotion of health, Palavras-chave Saúde mental, Promoção da saú-
Estadual do Ceará.
3
Universidade Regional do Care de, Cuidado
Cariri.
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Jorge MSB et al.
belecer o tamanho final da amostra em estudo, sociais, dois terapeutas ocupacionais, dois auxi-
interrompeu a captação de novos participantes, liares de enfermagem, uma psicopedagoga e um
fundamentada na redundância e convergência de administrador, além da equipe de apoio, forma-
sentido e significado obtido durante a coleta e da por cinco auxiliares de escritório, três auxilia-
análise dos dados16. res de serviços gerais, três zeladores de patrimô-
Conforme definido, as 20 entrevistas e as nio público e um motorista. Num total de trinta
observações foram orientadas por roteiros pre- trabalhadores.
estabelecidos sobre os seguintes pontos: 1) fluxo Mensalmente o serviço atende uma média de
de atendimento do usuário no serviço de saúde; 470 pessoas, entre procedimentos intensivo,
2) relação comunicacional e afetiva entre traba- semi-intensivo e não-intensivo. Mencionados
lhador/usuário/família (fala – escuta – confian- procedimentos são determinados pelo tempo de
ça – respeito – co-responsabilização); 3) cons- permanência diário no CAPS, desde momentos
trução do projeto terapêutico; 4) vínculo e aco- semanais, intercalados ou não, até aqueles com
lhimento como instrumentos de organização das permanência de continuidade diária. A demanda
práticas de saúde. dos transtornos evidencia os casos moderados e
Como mencionado, a pesquisa é um recorte graves de psicose, transtornos do humor e a
do Projeto Organização das Práticas de Saúde esquizofrenia.
Mental no Ceará na Produção do Cuidado Inte- Como previsto, a dinâmica de funcionamen-
gral: dilemas e desafios, aprovado pelo Comitê to prioriza o trabalho em rede, ou seja, concebe a
de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual atenção integral em saúde mental, por meio de
do Ceará. uma gestão participativa. Esta é efetivada em reu-
Para o melhor entendimento do objeto de niões para discussão do processo de trabalho,
estudo, a análise do material empírico baseou-se comunicação ampla dos trabalhadores entre si e
na hermenêutica crítica, na qual o fundamento também a inserção do usuário com suas singu-
de análise é a práxis social na perspectiva crítico- laridades na construção do projeto terapêutico.
analítica. Os passos operacionais foram: orde- A organização do serviço está transversaliza-
nação dos dados; classificação dos dados; e, por da pelo acesso referenciado e o acolhimento.
fim, a análise final dos dados14. Consoante visto em todo o processo assisten-
Os resultados se conformam na configura- cial, os dispositivos potencializadores da prática
ção analítica da compreensão do objeto de estu- integral em saúde configuram-se no cotidiano
do, dispostos em discursos e observações, cons- diverso e múltiplo do serviço CAPS e na lógica de
tituindo o entendimento temático da categoria funcionamento, no fluxo e no cuidado prestado
Relações de cuidado como ferramentas da práti- aos usuários.
ca em saúde mental: acolhimento, vínculo, co- Consideram-se como tecnologias leves em
responsabilização e autonomia. saúde aquelas implicadas no ato de estabelecimen-
to das interações intersubjetivas na efetuação dos
cuidados em saúde. Por espaço das tecnologias
Resultados e discussão leves compreende-se aquele no qual nós, profissi-
onais de saúde, estamos mais imediatamente co-
Relações de cuidado como ferramentas da práti- locados perante o outro da relação terapêutica5.
ca em saúde mental: acolhimento, vínculo, co- Conforme exposto, os discursos convergem
responsabilização e autonomia. na seguinte perspectiva: o acolhimento é estabele-
Mediante suas novas estratégias, a saúde cido por meio de um atendimento de qualidade,
mental visa atingir um cuidado integral. Para tal, de um tratamento pautado no respeito, no diálo-
utiliza as relações de cuidado como ferramentas go, na escuta qualificada, no estabelecimento de
de sua prática. Neste estudo, o espaço contextual um elo de confiança e de amizade entre ambos
é o CAPS Geral. Trata-se de um serviço destina- (trabalhadores de saúde e usuários/família).
do à população com transtornos mentais do Muitas vezes, a gente nem conversava sobre
município, que se articula com todos os níveis de mim paciente, a gente conversava sobre trabalho,
complexidade assistencial (atenção básica, hos- sobre televisão, sobre o meu curso, sobre a minha
pitalar e de especialidades) e ainda com os ou- faculdade. (Grupo II)
tros setores sociais. É bom! Eu não tenho o que dizer. Eles me aten-
Neste espaço, os sujeitos interpenetram suas dem bem aqui, desde o auxiliar de serviço até o
atividades pela composição multidisciplinar, pois médico. (Grupo III)
conta-se com quatro médicos psiquiatras, três Então, assim, a questão do respeito é algo fun-
psicólogos, dois enfermeiros, dois assistentes damental, principalmente a escuta. Hoje em dia, os
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ele não tem isso lá fora. Ele é discriminado pela soci- sujeito. A condição de vida, o direito à singulari-
edade, pela escola e pela própria família. Então, aqui dade, o direito às tecnologias de melhoria da vida,
quando eles chegam, eles buscam isso no profissio- o acolhimento e o vínculo na construção da au-
nal, esse vínculo afetivo, ligado ao respeito, ao cui- tonomia são características, muitas vezes, mais
dado, ao olhar, na escuta. Então, eu faço isso e tento amplas do que os espaços de intervenção das re-
fazer esse vínculo tendo em pauta esses quesitos. (Gru- des de cuidado em saúde. Cabe, assim, conceber
po I) o ato de saúde como intersetorial, porquanto na
Já formei um laço, porque ele já sabe da história busca pela resolubilidade, o encontro de vida se
da minha família, do meu filho doente. Se eu mu- dá, às vezes, no mundo vivido.
dasse de profissional, eu acharia ruim porque eu No trabalho ora elaborado houve divergên-
teria que contar tudo de novo! (Grupo III) cias quanto ao efeito positivo do vínculo, pois
Conforme é possível observar, os discursos para determinados sujeitos da pesquisa este é
configuram uma direcionalidade de significado prejudicial ao tratamento por causar dependên-
dos encontros realizados em cada ato terapêuti- cia do usuário em relação ao trabalhador de saú-
co. Desse modo, caracterizam determinados de e vice-versa:
construtos relacionais entre os sujeitos na pró- Eu acho que esse vínculo causa muita dependên-
pria relação de cuidado. A necessidade oriunda cia minha em relação a ela, pode até prejudicar o
da vida de cada sujeito e das demandas apresen- trabalho e até me prejudicar também, quando uma
tadas transpõe a dinâmica social, política e ge- pessoa fica muito dependente da outra. (Grupo II)
rencial do serviço e refaz-se na conformação prá- Eu tô bem melhor agora, mas se a minha psicó-
tica e operacional pela utilização e evidenciação loga tivesse no passado esse afastamento, eu teria
de tecnologias e ferramentas subjetivas. sentido mais, porque eu tava mais vulnerável. Eu
Nesse sentido corrobora-se a concepção teó- tinha mais abertura com ela, foi a pessoa que me
rica da ferramenta relacional do vínculo resultan- atendeu na minha crise, no dia que eu vim pra cá.
te da disposição de acolher uns e da decisão de (Grupo II)
buscar apoio em outros. Portanto, o vínculo se Ela já entende tão bem o meu caso, que se eu
expressa pela circulação e por afetos entre as pes- fosse pra outra pessoa, que eu teria que explicar
soas10. No trabalho em saúde, a vinculação é uma tudo de novo, aí, talvez, ele não me entenderia tão
ferramenta eficaz na horizontalização e democra- bem como ela. Me compreenderia como ela, iria
tização das práticas em saúde mental, pois favore- me orientar como ela, aí eu ia ficar confusa e não
ce a negociação entre os sujeitos envolvidos nesse ia gostar muito não! (Grupo II)
processo, isto é, usuários e profissional ou equipe. Acho que o vínculo é ruim, porque meu pai
A equipe ou profissional de referência são não quer ser atendido por outro profissional a não
aqueles que têm a responsabilidade técnica pela ser a doutora [...] (Grupo III)
condução de um caso individual, familiar ou co- Então, se for estabelecer um vínculo muito for-
munitário. Cabe-lhes, de modo integral, ampliar te, de confiança e aquilo ali pode ser prejudicial, até
as possibilidades de construção de vínculo entre mesmo porque é algo forte [...] Então, a gente faz
eles e os usuários18. uma escuta acolhedora, mas não é aquele vínculo
Mas a construção do vínculo no cuidado em forte estabelecido no contato inicial. (Grupo I)
saúde mental depende ainda do modo como os Ao se vincular a alguém ou a alguma institui-
trabalhadores de saúde se responsabilizam pela ção (uma equipe, um centro de saúde) costuma-
saúde dos usuários e suas singularidades do pro- se transferir afetos para essas pessoas ou institui-
cesso de cuidar. ções. Afetos são sentimentos imaginários, apos-
Tal constatação na determinação para o es- tas que se faz com base na história pessoal de
tabelecimento do vínculo advém de uma exigên- cada um e na imagem produzida pelo serviço ou
cia, qual seja, é preciso existir negociações parci- pelo profissional. Esses afetos podem contribuir
alizadas na construção mútua de um consenso ou não para a eficácia da conduta terapêutica e
ao dar resolubilidade de cada necessidade e/ou para a manutenção da vida em cada pessoa afeta-
problema. Contudo, o ato terapêutico não deve da, seja o trabalhador, ou o próprio usuário10.
estar centrado no trabalhador; tampouco deve Por isso, o vínculo pode ganhar variados sen-
ser realizado puramente pela manifestação de tidos (confiança - respeito - amizade - depen-
desejo do usuário. O vínculo pode, pois, intera- dência - antipatia), de acordo com os laços de
gir com ambas as possibilidades na busca da afetividades construídos ao longo da terapêutica
conduta cuidadora resolutiva e humanizada12. entre trabalhador de saúde mental e usuários.
Inegavelmente, as necessidades de saúde es- Quanto à co-responsabilização, é uma par-
tão contextualizadas no modo de vida de cada ceria entre os sujeitos envolvidos no processo de
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MSB Jorge, DM Pinto, PHD Quinderé, AGA Pin- 1. Waidman MAP, Jouclas VMG, Stefanelli MC. Fa-
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