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Desenhando Palavras e

Construindo Geometrias
__________________________
ESPAÇO ESCRITO E
ESPAÇO PINTADO NO TEMPO BARROCO

Organização
Magno Moraes Mello

Belo Horizonte

2016
EDITORA: CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA
EDITORA EXECUTIVA:
Tânia Maria T. Melo Freitas
CONCEPÇÃO DA CAPA:
Ludmila Andrade Rennó
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Ludmila Andrade Rennó
REVISÃO:
Tânia Maria T. Melo Freitas
Valesca Andrade Rennó
REVISÃO GERAL:
Tânia Maria T. Melo Freitas
CONSELHO EDITORIAL DA CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA:
Profª. Drª. Adalgisa Arantes Campos - UFMG - Brasil
Prof. Dr. Alfredo Morales - USE - Espanha
Profª. Drª. Ângela Brandão – UNIFESP – Brasil
Prof. Dr. Antônio Emílio Morga - UFAM - Brasil
Pe. Mestre Carlos Fernando Russo - UP – Portugal
Eng.º Mestre Fernando Roberto de Castro Veado – UFMG/IEPHA - Brasil
Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire – UFBA - Brasil
Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta – UFMG - Brasil
Prof. Dr. Magno Moraes Mello – UFMG - Brasil
Profª. Drª. Mary del Priori - UNIVERSO - Brasil
Prof. Dr. Saul António Gomes – UC - Portugal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Luciana de Oliveira M. Cunha, CRB-6/2725)

D451 Desenhando palavras e construindo geometrias [recurso eletrônico] : espaço escrito


e espaço pintado no tempo barroco / organização, Magno Moraes Mello. –
Belo Horizonte : Clio Gestão Cultural e Editora, 2016.
1 recurso online (356 p. : il.)
Artigos de estudos concernentes ao Colóquio Internacional de História da Arte
“A construção da fantasia: arquitetura, escultura, talha e pintura na ordenação do
espaço sagrado tridentino”, realizado em Ouro Preto (MG), no período de 18 a 20 de
novembro de 2015.
Vários autores.
Modo de acesso: <http://cliogestaocultural.com.br>
Textos em português, italiano e espanhol.
ISBN 978-85-68158-09-8
1. Arte barroca. 2. Pintura. 3. Arquitetura. 4. Perspectiva. 5. Ótica. 6. Arte –
História. I. Mello, Magno Moraes.
CDD 709
CDU 7(091)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste


livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

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E-mail: cliogestaoculturaleditora@gmail.com
Site: http://cliogestaocultural.com.br
Agradecimentos

O livro que ora se apresenta à estampa é fruto do trabalho de


investigação de professores do Departamento de História da Universi-
dade Federal de Minas Gerais, como também de professores de diversas
universidades do Brasil como, em Salvador, São Paulo, Campinas, Bra-
sília, Belo Horizonte, Diamantina e Ouro Preto. Contamos ainda com
investigadores das universidades de Sevilla, Madrid, Florença e Braga. O
conteúdo deste volume agora apresentado ao público é fruto de uma ini-
ciativa de estudos especializados a partir da criação do grupo de pesquisa
Perspectiva Pictorum, criado no centro dos estudos dedicados à História da
Arte do Departamento de História da Universidade Federal de Minas
Gerais a partir de 2007. Nossa intenção foi a de investigar, discutir e
apresentar em eventos um pouco dos estudos sobre a pintura ilusionista
entre a Europa e o Brasil, a partir dos séculos XVII ao XIX. Paralelo a
estas questões do gênero quadratura, o tema sobre a tratadística desde
o Renascimento foi outro dos nossos objetivos e das nossas preocupa-
ções. A relação de abordagens entre a pintura, a arquitetura e a literatura
científica é a principal meta do nosso grupo de pesquisa. Desse modo, a
responsabilidade por mais esta edição é de todos nós.
Diante disso, deixo aqui o meu agradecimento aos professores
participantes do Departamento de História da Universidade Federal de
Minas Gerais por mais este apoio; aos professores e demais integrantes
do referido grupo de pesquisa; deixo também o meu muito obrigado ao
então coordenador do Programa de Pós Graduação em História, Prof.
Luiz Carlos Villalta e ainda quero igualmente agradecer aos secretários
da pós graduação, Maurício Mainart e Edilene Oliveira, que nos ajudou
com as questões burocráticas quando da vinda dos professores estran-
geiros. À Clio Gestão Cultural e Editora, responsável por esta edição,
agradeço o apoio recebido desde o início da formatação do nosso even-
to, até as etapas finais para a presente publicação. Seu interesse em dar
a luz às nossas pesquisas e em publicar nossos estudos foi fundamental
neste momento final da edição. Gostaria também de agradecer o apoio
recebido do reitor do Santuário de Nossa Senhora da Conceição em
Ouro Preto e presidente do Museu Aleijadinho, Cônego Luiz Carlos
César Ferreira Carneiro, ao Herinaldo Oliveira Alves, coordenador ad-
ministrativo do Museu Aleijadinho e professor do Colégio Arquidio-
cesano de Ouro Preto, à Ana Clara Gomes Pinto, do Departamento
Jurídico da Arquidiocese de Mariana, que de modo ímpar acolheu nosso
evento e proporcionou todas as possibilidades do seu pleno funciona-
mento, disponibilizando os meios necessários para a realização plena do
evento em epígrafe. Sem este apoio nosso Colóquio não seria possível
de ser apresentado. É importante agradecer o contributo da professora
Wanda Lacerda, presidente da Fundação de Apoio e de Desenvolvimen-
to da Educação, Ciência e Tecnologia do Estado de Minas Gerais por
apoiar-nos com a vinda de professores das Universidades de Madrid e
de Sevilla, um contributo internacional de grande peso para o Colóquio.
Gostaria ainda de agradecer o contributo do IPHAN, em relação ao
transporte dos professores entre Belo Horizonte e Ouro Preto.
Finalmente, deixo o meu mais sincero agradecimento à CAPES
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) que,
confiando no projeto inicial e no grupo de pesquisa (Perspectiva Pictorum),
apoiou de forma integral a publicação das respectivas comunicações em
forma de livro. É importante realçar que sem este patrocínio os estudos
desenvolvidos em nosso evento não poderiam vir à luz.
A todos os envolvidos o meu franco agradecimento.

Magno Mello, Dezembro 2016


Sumário
Agradecimentos..........................................................................................................5

Apresentação..............................................................................................................9

AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E


OFICINAS NO 1º QUARTEL DO SÉCULO XVIII EM
MINAS GERAIS
Alex Fernandes Bohrer...........................................................................................21

ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y


MIRADORES EN LA ARQUITECTURA SEVILLANA DE LOS
SIGLOS XVII Y XVIII
Alfredo J. Morales....................................................................................................33

O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA


EM SÃO FRANCISCO DE ASSIS DE OURO PRETO, ESTADO
DE MINAS GERAIS, BRASIL
André G.D. Dangelo...............................................................................................51

O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA


OFICINA: ARTISTAS, ARTÍFICES E SUA INFLUÊNCIA NA
TALHA SETECENTISTA EM MINAS GERAIS
Aziz José de Oliveira Pedrosa................................................................................67

FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS


MATEMÁTICOS E A PERCEPÇÃO
Carla Bromberg........................................................................................................81

ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR


DA GLÓRIA - ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIZAÇÃO
DO ARRAIAL DO TEJUCO, MINAS GERAIS
Celina Borges Lemos..............................................................................................95

JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A


PINTURA ILUSIONISTA EM IGREJAS DE SABARÁ, CAETÉ
E SANTA LUZIA
Célio Macedo Alves ............................................................................................. 109

OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES,


SÃO PAULO: SÉCULOS XVIII E XIX
Danielle Manoel dos Santos Pereira................................................................... 125

O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO:


ARQUITETURA E ARTE NUMA LIVRARIA EM VILA RICA
Danilo Matoso Macedo........................................................................................ 141

AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA E I


MODELLI DEL PRIMO QUADRATURISMO EUROPEO
Fauzia Farneti........................................................................................................ 159
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y
PADUA EN LAS CÚPULAS DE DOS IGLESIAS MADRILEÑAS
Javier Navarro de Zuvillaga................................................................................. 175

A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO


TESTAMENTO NO TETO DA NAVE DA IGREJA MATRIZ
DA CIDADE SERGIPANA DE N. SRA. DIVINA PASTORA
Luiz Alberto Ribeiro Freire................................................................................. 187

TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO


– ARQUITETURAS PINTADAS NA LISBOA JOANINA
Magno Moraes Mello............................................................................................ 209

JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE


MENDONÇA: DE BRAGA AO TIJUCO. REFLEXÕES SOBRE
UMA PINTURA PERDIDA
Eduardo Alberto Pires de Oliveira
Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani......................................................... 229

LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO


MARTELLI E LA TENDA DI PARRASIO
Maria Teresa Bartoli.............................................................................................. 243

ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA


AROUCA NO OFÍCIO DE ARQUITETO
Mônica Maria Lopes Lage................................................................................... 253

IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO


MARANHÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERVENÇÕES
OCORRIDAS ENTRE OS SÉCULOS XVIII E XX
Marília Martha França Sousa
Regiane Aparecida Caire Silva............................................................................. 265

FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO


SEISCENTOS PORTUGUÊS
Renata Nogueira Gomes de Morais................................................................... 285

ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ:


PITTURA O ARCHITETTURA?
Rita Binaghi............................................................................................................ 305

ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA:


A CONFIGURAÇÃO DO CENÁRIO BARROCO DA
CUZCO COLONIAL
Rodrigo Espinha Baeta........................................................................................ 317

PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE


ARCHITETTURE VIRTUALI
Silvio Van Riel........................................................................................................ 337

Sobre os Autores................................................................................................... 351


APRESENTAÇÃO

Apresentação

Magno Moraes Mello – Novembro 2016

Apresentamos nesta publicação os conhecimentos finais con-


cernentes ao Colóquio Internacional de História da Arte, A construção
da fantasia: arquitetura, escultura, talha e pintura na ordenação do espaço sagrado
tridentino, que se realizou em Ouro Preto, entre os dias 18 e 20 de novem-
bro de 2015. Foram três dias para debater e apresentar novas propostas
sobre o tema da pintura de falsa arquitetura, a percepção sobre alguns
tratados de pintura e arquitetura, entendimentos sobre a arquitetura bar-
roca (e também Rococó) no Brasil, e na Europa. Foram expostos alguns
novos estudos sobre a perspectiva, a óptica e sua relação com a história
da arte. Em função da diversidade de conhecimentos abordados neste
evento, pois temos cerca de mais de 20 capítulos com suas especificida-
des, mas sempre no campo da arte e da ciência, acreditamos que Dese-
9
nhando Palavras e Construindo Geometrias – Espaço Escrito e Espaço Pintado no
Tempo Barroco seria um título mais apropriado para destacar tal evento e
estimular novos projetos.
Mas antes de apresentar nossos convidados e suas respectivas
abordagens, é necessário algumas apreciações relativas a este tema, di-
versificado e inserido, tanto no campo da história da arte, quanto nos
estudos específicos da ciência. A produção das investigações no campo
da história da arte requer abordagens e uma problemática ampla comum
a toda investigação científica. Para além dos estudos específicos sobre
a pintura entre o Renascimento e o Barroco, as investigações sobre a
tratadística coeva é um momento de novas possibilidades de estudo e,
que a partir do ilusionismo perspéctico, abre novas conjecturas privile-
giadas no campo da relação estreita entre estas duas ciências. A partir
deste ponto, o tema da fictícia arquitetura e o estudo sobre os tratados
de pintura, arquitetura, perspectiva e, claro, as questões mais pontuais
sobre óptica, estariam sempre presentes em nossas preocupações. Este
é um aspecto essencial na investigação das decorações com “grandes
distâncias” instituídas nas pinturas entre os séculos XVI e XIX, seja na
Europa ou na América Portuguesa. Deste modo, era o momento de
MAGNO MORAES MELLO

melhor compreender e captar a divisão de espaços em profundidade e


compreender como tudo isso afetaria o fruidor.
A organização da imagem num suporte plano ou curvo e as
técnicas da perspectiva, questões sobre óptica e scenographia; projeções
principais; a perspectiva alla spina e as construções pompeanas na Anti-
guidade; a perspectiva paralela de grande espaço ou a inversa na Idade
Média e as projeções centrais a partir do século XV. Tudo isso é um
ponto de partida, um manancial de propostas a ser trabalhada de modo
que o tema da quadratura se tornava mais complexo do que parecia, ou
seja, era um estudo interdisciplinar e que envolvia especialistas de dife-
rentes áreas, mas que reunidos num mesmo propósito davam uma maior
amplitude ao assunto, que muitas vezes era estudado apenas do ponto de
vista filológico ou religioso. Entender o processo teórico é fundamen-
tal para convertê-lo nos procedimentos artificiais da construção destes
espaços fictícios que tanto iludem nossos olhos e que se multiplicaram
entre os séculos XV e XIX. Isso permitiu uma maior aproximação com
essa questão e nos obrigou a uma análise funcional com tais espaços
da arquitetura picta. A partir de então, buscamos aproximação com pes-
quisadores mais experientes neste assunto e que já se dedicavam a este
10
estudo. Estavam abertas algumas questões que se tornariam importantes
para nosso estudo: a analogia arte/ciência.
A historiografia da arte no Brasil sobre este conteúdo buscava
essencialmente identificar estes tetos e reuní-los num grande corpus ima-
gético sem aprofundar os componentes científicos da essência produtiva
destes espécimes. A identificação dos tetos era o ponto essencial com
inquirições pioneiras de identificação linguística, como por exemplo, os
estudos de Carlos del Negro, Myriam Ribeiro, Rodrigo Melo Franco
de Andrade e Clarival do Prado Valladares, Nair Batista, Carlos Ott e
Joaquim Cardoso. A partir das mais significativas abordagens, é que se
lançariam os estudos mais arrojados sobre a decoração dos tetos, não
apenas do ponto de vista classificatório, mas buscando algumas questões
a partir de modelos e fontes literárias, como a tratadística ou as gravu-
ras. Neste último caso, os textos de Hannah Levy e Luiz Jardim foram
fulcrais. Todos estes nomes nos ajudaram e nos entusiasmaram a ver a
quadratura com outros olhos e sugerindo novas propostas. Nossos estu-
dos atuais só foram possíveis graças a estes historiadores que tiveram o
papel de desbravadores deste gênero pictórico.
O passo seguinte, não menos complexo, foi a construção do
objeto de pesquisa, pois estudar a simulação perspéctica em paredes ou
APRESENTAÇÃO

tetos demandava entender a intensidade e a constância desse momento.


Para este estudo era preciso tomar em consideração toda a ornamen-
tação interna do edifício: a talha decorativa, as imagens nelas assentes,
as pinturas de painéis em paredes, e de tetos, os retábulos de altares,
os azulejos, enfim, um complexo artístico extremamente amplo, diverso
e condicionado por aquilo que a historiografia da arte chamou de bel
composto. Construir o objeto impunha a tarefa de recortar, no gênero
(categoria), no espaço e no tempo, o tema escolhido para que a pesquisa
se tornasse exequível. Esse recorte recaiu sobre a linguagem formal e
técnica usada para compor estes espaços, ora planimétricos, ora curvos
(daí a dificuldade técnica). É sempre importante ter em mente o objetivo
da disciplina história da arte antes mesmo de se proceder a um estudo
mais complexo. A busca por conceitos pode não ajudar num primei-
ro momento de estudo teórico e metodológico, mas definir objetivos e
identificar a relação de pesquisa pode nos proporcionar uma investiga-
ção mais clara e induzir a melhores conclusões. E, neste nosso volume,
estas questões são muito oportunas, pois permite uma visualização mais
vasta e singular do objeto investigado. Não podemos ver a História da
Arte como um capítulo de outras disciplinas, pois ela tem planos espe-
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cíficos, ou seja, uma estrutura particular inserida no universo artístico.
Temos que aprender a distinguir o objeto, seus objetivos, os respectivos
temas e sua metodologia.
O historiador da arte vive entre o conhecimento do objeto e a
sua análise, assim, o ponto de partida é a interpretação e a construção de
um método de investigação para atingir tais pressupostos. Em certo sen-
tido, teríamos duas estradas a seguir: uma descritiva e histórica e outra
analítica e, portanto, mais crítica. Mas isso significa que estamos perante
a duas histórias da arte? Ou um mesmo estudo confluindo narrativa his-
tória e decomposição analítica? Um objeto artístico tem uma presença
física constituída por matéria e forma, é a partir daí que partimos para
conceitos estéticos. A arte é diferente de um documento escrito ou da
tradição oral, que se pode perder com maior facilidade: uma pintura ou
uma escultura e mesmo uma arquitetura resistem mais à ação do tempo.
Esta arte ou este documento icônico permite uma catalogação que, por
sua vez, deriva de uma valorização morfológica, técnica, mas também
iconográfica. Portanto, nosso tema apresenta um contexto histórico,
origem, autoria, finalidade e estrutura cultural particular específica. A
partir daí avança-se para as investigações e os respectivos objetivos que
se fundamentam por fontes literárias e documentos específicos sobre a
MAGNO MORAES MELLO

obra e seu inventor. Tudo ao mesmo tempo: a história da arte, a crítica


de arte, a valorização estética e a valorização histórica, inseparável entre
forma e conteúdo, entre a biografia da obra e seus aspectos técnicos. No
caso específico da quadratura e/ou da simulação arquitetônica temos a
identificação de uma linguagem específica, um modelo ou formulário
imagético ali representado e as elaborações científicas que permitirão
que tais elementos se constituem num bloco único de interpretação. É
neste momento que os tratados de perspectiva e de arquitetura podem
ajudar não apenas identificando os seus modelos (formulários) linguís-
ticos, mas a sua componente operativa/executiva – seus vestígios ope-
racionais.
O contexto dos objetivos da História da Arte nos direciona ao
seu objeto. Qual seria este objeto? As diferenças morfológicas (estilísti-
cas); a biografia dos artistas; a documentação; a iconografia e as questões
técnicas? Ao longo da historiografia, cada um destes itens se constituiu
no objeto de estudo da História da Arte e aos estudiosos forneceram
milhares de imagens e centenas de bibliografias, o que causa muita po-
lêmica e desordem – pode complicar e não facilitar. Ora, o objeto de
estudo da História da Arte é a própria arte. A sua subjetividade e sua di-
12
versidade de linguagem nos diferentes momentos e disposições geográ-
ficas, são produtos da atividade humana. Ou poder-se-ia dizer que a arte
é um produto artificial feito pelo homem e com a intenção de comunicar
algo. A necessidade de criar imagens é diversa e oscila entre motivações
espirituais e materiais. A História da Arte como ciência social não só
estuda o homem, mas também os seus objetos em sua atividade cultural,
pois existem motivações históricas, técnicas, filosóficas e sociológicas
numa ampla gama de pluralidade. Este livro e seus temas é a prova in-
contestável desta noção múltipla dos estudos. Estas reflexões são frutos
de contatos específicos com uma bibliografia selecionada e que neste
volume nosso leitor poderá desfrutar ampliando seu leque de indicações.
Os primeiros pontos de partida vocacionaram-se para a Europa
e o Brasil entre os séculos XVI e XVII, no entanto, o foco imediato de-
veria ser absolutamente o universo luso. Esta era a nossa meta, ou seja,
estudar sistematicamente a quadratura em Portugal, com possibilidades
a partir das primeiras experiências de fim do século XVI; as noções de perspectiva
e quadratura; o ilusionismo espacial e o frontalismo pictórico; as discussões sobre o
quadro recolocado (ou quadro fictício);os métodos de pintar numa superfície curva e
a dinâmica da membrana arquitetônica foram outros pontos chamados por
nós de configuração de aspectos técnicos. Por fim, o ponto de grande
APRESENTAÇÃO

novidade nesta discussão é, a prática da perspectiva e o estudo da tra-


tadística. Era a formatação das nossas pesquisas e que a partir deste
momento, seriam ampliadas em futuras investigações com nossos par-
ceiros professores de diversas universidades do Brasil e do exterior, mas
também contando com a participação de nossos alunos de mestrado e
de doutorado a partir da criação, em 2007, do grupo Perspectiva Pictorum.
Nosso propósito estava sendo constituído, e este tomo corrobora nos-
sas preocupações.
O campo da representação perspéctica era mais visual e portan-
to mais óbvio, no entanto, associado ao estudo dos tratados determinava
uma nova janela de conhecimento. Iniciamos nosso foco com alguns
conhecimentos sobre a tratadística na Antiguidade com os estudos so-
bre Vitrúvio e os princípios da arquitetura antiga. O conhecimento da
Antiguidade ainda indicaria um estudo sobre as ordens arquitetônicas,
um manancial de conhecimentos que muito ajudaria.
Nesta etapa, era conveniente a integração dos termos técnicos
pertinentes aos tratados de perspectiva, os estudos sobre óptica e a al-
gumas questões sobre a geometria euclidiana, um enfoque amplo, mas
condensado entre os séculos XV e XVII. O ponto final estava condicio-
13
nado para as decorações pictóricas e o tratado de perspectiva do jesuíta
Andrea Pozzo no fim do século XVII e que conheceu um “sentido glo-
bal” espetacular. Outra mudança percebida no estudo das decorações
ilusionistas era a importância do pintor de figuras (figurista) e o pintor
de elementos arquitetônicos falsos (quadraturista). Essa disposição per-
mitia criar a seguinte equação para a forma quadratura: uma pintura que
continuava a arquitetura real; ampliar e/ou prolongar o espaço constru-
ído; melhor dizendo, separação ou modificação dos limites do ambiente
real e da sua realidade estrutural. Tudo isso num mesmo conjunto de
realidades e falsidades, não esquecendo o envolvimento emocional com
o espectador. A quadratura pode também ser interpretada ou concebida
como moldura da figuração, pode ser identificada como um dos temas
essenciais da pintura barroca que encontra seus antecedentes desde o
século XVI. Colunas, pilastras e arcos para fingir pórticos, logge e am-
bientes que dilatam ilusionisticamente o espaço real, abrindo-se na di-
reção interna ou para o espaço exterior. A arquitetura em perspectiva
vivaz com festões de frutos ou flores, conchas, rosas, puti e mascarões
animados as vezes com animais e pássaros, tudo com uma luz pontual
e bem direcionada usada para acentuar o arrombamento perspéctico.
Enfim, o termo é intimamente ligado ao conceito de espaço nas formas
MAGNO MORAES MELLO

simbólicas e à variabilidade na definição de um volume arquitetônico,


no caso de parede, de teto abobadado ou de cúpula pintada. Era agora
importante compor um exame dos principais tratados de perspectiva
entre os séculos XVI e XVII no contexto europeu, não esquecendo as
consequências deste universo teórico ao ambiente português e que se
estenderia ao Brasil Colonial.
A simulação arquitetônica – o trompe l’oeil atmosférico – a infinitu-
de espacial – tudo pode ser considerado como um modo de construção
racional de toda a visão divina (e não só), na intenção de estabelecer uma
espécie de ordem simbólica entre universo fictício e espaço mundano.
Assim, além da sistemática da construção, a arte barroca está vinculada
às diretrizes da Contrarreforma, período em que se inicia uma maior co-
municação motivadora entre o homem e os céus falsamente construídos,
num ousado sentido de fascínio, de engano e desengano. A configuração
de um ambiente que imitava a realidade era a forma mais rápida, objetiva
e sedutora de dar a mensagem pretendida. Estudar as leis da construção
espacial tornava-se um meio pedagógico fundamental da persuasão. Foi
o interesse pela imaginação que permitiu que a representação perspecti-
14 vada difundisse esse ideal: uma cena representada e organizada à distân-
cia entre o espectador no espaço terreno e as imagens no cenário fictício.
Nesse sentido, a quadratura cria uma harmonia entre ciência, tecnologia,
arte, fruidor e se formarmos uma ideia de aparição celestial com histó-
rias divinas, o culto da fé e da revelação, transforma-se no conhecimento
do absoluto através dos sentidos na percepção tridimensional do espaço.
Em relação a essas questões, este livro tenciona apresentar ao
estudioso da arte barroca uma investigação de grande porte sobre as
pinturas de elementos arquiteturais pictóricos de modo a constituir um
grande inventário imagético e poder estudar detalhadamente o maior
número possível de quadraturas entre os séculos XVIII e XIX. Foi com
esta intenção que criamos grupo de pesquisa intitulado Perspectiva Pic-
torum e que mais uma vez leva à estampa frutos de estudos específicos
no contexto da arte barroca. Essa reunião resultou na participação em
outros grupos, cujas publicações e a organização de eventos nacionais
e internacionais representaram uma importante ocasião para se debater
sobre a quadratura e dar à historiografia de arte brasileira uma nova
janela de possibilidades de investigação. Este livro é mais uma mostra
das nossas capacidades e possibilidades de debates sobre um tema que
consideramos especial.
APRESENTAÇÃO

No estudo da pintura decorativa no Brasil, apontamos Minas


Gerais, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Sergipe, Pará,
Goiás (há poucos tetos) e Paraíba como centros difusores da decoração
quadraturista de fonte europeia e em especial fruto de procedimentos
italianos e portugueses dinamizados num processo cultural e geográfico
de grande expressão.
Nos últimos anos, dedicamos pesquisas e congressos sobre as
questões da representação do espaço figurativo em paredes e em tetos
entre os séculos XVIII e XIX. Ainda não existe um estudo completo
sobre essas pinturas. Inevitavelmente, trata-se de uma investigação inter-
disciplinar conjugando a história da arte, o restauro arquitetônico como
também os textos científicos produzidos por artistas ou matemáticos.
Uma espécie de construção mental do trabalho do pintor em transferir o
desenho ao suporte pictórico. Inicialmente, procuramos organizar uma
catalogação imagética, outra documental e, posteriormente, uma análise
criteriosa bibliográfica e, por isso, decidimos criar o grupo de pesquisa
em 2007. É a oportunidade de poder concentrar todas as discussões so-
bre um tema amplamente difundido em centros universitários europeus
e que agora no Brasil inicia as primeiras pegadas, já com significativas
investigações fruto de dissertações e teses por todo o país. 15
Curiosamente a minha inspiração para estudar a pintura ilusio-
nista, as questões sobre perspectiva e óptica com premissas culturais,
valores simbólicos em que se constituiriam a arte figurativa na formação
de um mundo mais vasto sob o ponto de vista da representação ocorreu
na década de 80. Nesse período tive a oportunidade de ler alguns arti-
gos do Convegno Internacional di Studi sula prospetiva rinascimentale, ocorrido
em Milão no ano de 1977. Creio que posso dizer que este evento foi
o primeiro em reunir historiadores da arte para pensar sobre um tema
como este. Era o primeiro passo para os estudos sobre perspectiva, ar-
quiteturas fictícias, escorços figurativos, novas reflexões sobre um tema
tão instigante e com intelectuais tão renomados como, André Chastel,
Decio Gioseffi, Carlo Pedretti, Giulio Bora, e Rocco Sinisgalli, para citar
apenas alguns e que foram reunidos numa publicação organizada por
Marisa Emiliane Dalai, a quem tive a honra de conhecer em 2002, em
Roma, num congresso sobre o mesmo tema. Ainda no mesmo ano rea-
lizou-se um colóquio internacional sobre o tema do quadraturismo, orga-
nizado pela Università degli Studi de Florença, na cidade de Rimini.1 Foram

1
Cf. www.quadraturismo.it criado pela Firenze University Press, coordenado pela
Prof.ª Fauzia Farneti, e pelo Prof.º Stefano Bertocci.
MAGNO MORAES MELLO

discutidas questões sobre a decoração ilusionista do tempo do Barroco


europeu, reunindo novamente especialistas para trabalharem o tema;
em 2005 em Lucca, também patrocinado pela mesma universidade, foi
organizado novo encontro, porém agora com o contributo inédito de
estudos sobre a quadratura no Brasil. Em 2007, o grupo de pesquisa
Perspectiva Pictorum,2 realizou o primeiro congresso internacional no Bra-
sil dedicado exclusivamente ao estudo sobre o tema e sua dinâmica em
território brasiliense. Um evento de grande repercussão permitindo um
novo olhar para além das tradicionais análises de temáticas religiosas.
Em 2009 foi organizado na Faculdade de Filosofia e Ciências Huma-
nas da Universidade Federal de Minas Gerais, outro evento dedicado
ao tema do ilusionismo arquitetônico. Foi o momento de incluir quase
exclusivamente as manifestações pictóricas do Brasil Setecentista numa
rede de difusão do estudo da perspectiva, da cenografia e da tratadística
num contexto mais globalizado e fora dos conhecimentos do Mundo
Europeu. Em 2011 ocorreu em Florença outro congresso organizado
ainda pela Università degli Studi di Firenze, tendo como ponto central as
questões da pintura de falsa arquitetura, suas disposições cromáticas e
aspectos técnicos de luz e sombra e, em especial, um debate sobre o
16
restauro arquitetônico como ponto de partida para a conservação das
pinturas ilusionistas. Ainda em 2011 realizou-se em Belo Horizonte na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, novo colóquio consideran-
do, mais uma vez, os aspectos técnicos, artísticos e culturais da represen-
tação ilusionista. Em 2013 o colóquio intitulado A arquitetura do engano:
redes de difusão e o desafio da representação perspéctica no universo artístico barroco
possibilitou momentos para debater sobre a amplitude da decoração
quadraturística no Brasil, com novas perspectivas de inventariação e no-

2
Este grupo de pesquisa tem sua proposta voltada para o estudo e das pintu-
ras de falsa arquitetura desenhadas no Brasil durante o período colonial. Para tal
estudo importa concentrar atenções em dois polos. Um técnico/matemático/
geométrico e, portanto, científico e outro executivo/produtivo e, por isso,
operacional. É o vínculo com as práticas de ateliê e a renovação do concei-
to de artista-pintoro. Trata-se de um olhar fora dos padrões convencionais
no estudo da pintura ilusionista. É uma pesquisa documental, concentrando
atenção aos textos científicos, preocupando-se simultaneamente com a obra
em si. Nossa intenção é resgatar o universo dos tratados estudando ainda a
transmigração da pintura seiscentista desde a Europa, até a América Portu-
guesa. Este grupo pretende situar o estudo da cultura artística barroca/rococó
não apenas sob o ponto de vista dos seus temas religiosos, mas impor uma
visão iconológico-simbólica associada aos textos teóricos como os tratados de
arquitetura e de perspectiva, que quase nunca vêm associados às investigações
sobre a pintura deste tempo.
APRESENTAÇÃO

vos estudos a partir de novidades, fruto de algumas teses de mestrado


e doutorado em nosso departamento. Era um momento especial, pois
os centros de história da arte no Brasil apresentavam suas pesquisas. Foi
um evento com grande repercussão internacional, pois tivemos cerca de
dez participantes internacionais e outros tantos de universidades brasi-
leiras. Neste evento foi feito, pela primeira vez, a filmagem de todas as
apresentações, e que neste momento estamos realizando sua edição para
a produção de um e-book.
Em 2015 realizamos o quinto evento intitulado A construção da
fantasia: arquitetura, escultura, talha e pintura na ordenação do espaço sagrado tri-
dentino, com o apoio do Museu do Aleijadinho de Ouro Preto. Uma
oportunidade para debater sobre a pintura, a arquitetura, a escultura e a
talha, mas também para inserir em nossas discussões aspectos inéditos
sobre o mestre Antônio Francisco Lisboa. Nesse sentido, tivemos duas
brilhantes apresentações dos professores Doutores Adalgisa Arantes
Campos e André Dangelo sobre este tema. As discussões neste even-
to se pautaram por aprofundar análises atuais no campo da História
da Arte, da História da Ciência e da História da Cultura, desenvolver
novas metodologias de pesquisa, proporcionar condições de realização
17
de trabalhos conjuntos entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros,
organizar publicações no campo da História da Arte, e da ciência, pro-
movendo o intercâmbio entre pesquisadores nacionais e internacionais.
Este volume agora em publicação coroa nossos esforços com um tema
tão atrativo e que ao mesmo tempo conjulga especialistas e especialida-
des tão distintas e necessárias para compreender melhor o ilusionismo
arquitetônico, e que foram debatidas no evento ocorrido em 2015.
Toda esta investigação, estes estudos e suas discussões em nos-
sos eventos permitem uma diversidade cultural condicionada por es-
paços geográficos em que as pinturas estão situadas, mas também uma
dinâmica cultural/artística própria de um ambiente com particularidades
científicas que se complementam quando expostas em eventos desta na-
tureza. Encontramos esta mesma alteração em território brasileiro quan-
do estudamos o norte e o sudeste, por exemplo. Mas ao mesmo tempo
algumas disposições seguem um mesmo curso, não apenas na idealização
destas pinturas, mas na construção mental deste entendimento. Refiro-
-me aqui à primazia do desenho e suas disposições, o conhecimento da
metodologia representativa na Antiguidade e os aprofundamentos me-
dievais, não apenas em seus aspectos figurativos, mas também nas dis-
posições teóricas específicas. Há, também, o universo renascentista com
MAGNO MORAES MELLO

a teorização geométrica da perspectiva que tanto influenciaria os séculos


vindouros. A proposta se alarga ainda quando é necessário integrar esta
pesquisa com os estudos sobre os sistemas educacionais na colônia entre
os séculos XVIII e XIX, pois seria de grande ajuda o conhecimento do
tipo de ensino que se configurava no Brasil do tempo colonial. A ques-
tão que muito interessa é saber como se estudava geometria, matemática
e/ou aritmética, pois todos estes decoradores deveriam passar por estes
conhecimentos.
Nossa pesquisa avança para os setores da matemática, mas sem-
pre em conformidade com a disposição artística, e esta publicação é um
exemplo físico destas nossas inquirições. Não se trata de estudos essen-
cialmente no domínio do universo das ciências exatas. As análises sobre
os textos científicos têm suas abordagens históricas, mas tencionamos
igualmente ler e entender os textos sobre pintura e perspectiva e que
tiveram uma relação direta com a produção pictórica. Não se pode es-
quecer que, quando estudamos o espaço perspéctico, temos de afrontar
também os fenômenos visuais, o estudo da óptica, e não transcurar o
modo de como o olho vê os objetos.
Estamos perante à superação da tela e do grande painel de altar
18
para a exuberância das paredes e dos tetos numa real linguagem ceno-
gráfica. Defendemos esse engano pictórico lançado ao mundo externo
do espectador não apenas sob o leque da forma, mas com todos os
componentes culturais. Proponho sempre uma integração fulcral no es-
tudo da arte barroca: a escultura, a arquitetura, a pintura e o desenho.
Muitas vezes, em nossas publicações, tentamos mostrar aos alunos que
a unidade espacial do Barroco deve ser estudada e preservada como um
processo artístico uno e indivisível, apesar de estudarmos focos artísti-
cos separadamente. Ora, aqui nesta publicação nossos estudos e preo-
cupações passam pela História da Arte/História da Ciência/História da
Técnica, mas são discutidas também pelo viés da história da cultura/
história da arte.
Neste universo das decorações pictóricas com o efeito do ilu-
sionismo perspéctico, é importante referir as pesquisas de Martin Kemp
no estudo da perspectiva e da percepção visual. Em seus estudos sobre a
técnica artística e o seu desenvolvimento a partir do século XVI na Eu-
ropa nos desperta para uma componente de complementação cultural/
artística na América Portuguesa como reflexo basilar de continuidade
dos envolvimentos culturais do Barroco e também das evidências dos
métodos da representação artística, seja numa estrutura operativa (pro-
APRESENTAÇÃO

cedimentos) de ateliê ou a partir de sugestões advindas especificamente


do conhecimento aplicativo da literatura artística. Outro autor que foca
um desdobramento diverso dessas questões, apresentando novas abor-
dagens de estudos sobre essas demandas de visualidade e de constru-
ção tridimensional da imagem, é Hans Belting, quando estuda o que ele
chama de história do olhar entre Oriente e Ocidente. Por um lado, o papel
de Florença no invento ou na codificação da perspectiva e, por outro,
Bagdad, no contexto da ciência árabe que deixou marcas profundas no
Renascimento. Estamos perante à relação entre uma teoria dos raios
visuais e uma teoria geométrica da luz. Não se pode negar que nos estu-
dos sobre a história da perspectiva, encontram-se conceitos e direções
diferentes sob o ponto de vista da História da Arte. Na ciência ocidental,
o termo “perspectiva” era já corrente na Idade Média, antes que o Re-
nascimento o introduzisse na arte. Nesse período, a perspectiva era uma
teoria da visão de origem árabe, que só no século XV foi assimilada a
partir do conhecimento antigo de óptica. A perspectiva artística preten-
deu fazer da percepção a regra da representação: só se representa com
perspectiva. Contudo, não foi a perspectiva que inventou esse conceito –
mas essa concepção foi deixada ao ocidente por um famoso matemático 19
árabe conhecido por Alhacen (Alhazen Ibn Al haitham).
A par de tudo isso, nosso grupo de pesquisa pode perceber
novas contribuições e novas conjecturas na complementação deste uni-
verso cultural. Por conseguinte, é possível ver o amadurecimento da
perspectiva como um processo operativo muito mais que cânones pré-
-estabelecidos. O sistema perspéctico (ou a simulação arquitetônica) é,
então, visto como modo operante. De fato, os procedimentos perspéc-
ticos nascerão a partir de uma longa gestação na tradição artesanal e dos
códigos de representação. Sua origem encontra-se no seio de inumerá-
veis ensaios empíricos realizados por gerações de pintores, que tentaram
e sucessivamente aperfeiçoaram variadas formas gráficas de caráter in-
tuitivo para dar à sua composição pictórica efeitos espaciais convenien-
tes e, em definitivo, dar credibilidade visual às figuras. Nesse contexto,
pode se falar de uma dilatada gestação da perspectiva e suas implicações
formais e culturais. Por conseguinte, em vez de restringirmos a nossa
análise apenas à construção perspéctica propriamente dita, tal como era
defendida e desenvolvida na tradição científica, tomaremos em conta
também as múltiplas hibridações e versões interpretativas de modo a
criar um diálogo de modelos e formas com o ambiente cultural.
MAGNO MORAES MELLO

A diversidade de situação e o repertório de condutas espaciais


tornaram-se enormes, abarcando desde uma recepção lúcida e sensível
em relação às implicações teóricas do procedimento, até a mera adoção
de algum elemento isolado da operação gráfica, entendida e aplicada à
maneira de variadas receitas geométricas. Se a perspectiva, segundo Ar-
gan, pode ser considerada uma representação rigorosa do espaço, este
torna-se a sua própria forma simbólica ou a sua iconografia. O desenho
ilusionista instituiu a relação de distância entre a imagem e o espectador.
Neste caso, medir as distâncias se torna uma tarefa importante.
Assim, colocamos à disposição do leitor, do estudioso da histó-
ria da arte, do aluno investigador entre arte e ciência mais um exemplar
de nossas pesquisas. Especialmente neste caso apresentaremos aqui gru-
pos investigativos e não a especificidade de cada texto. Acreditamos que
assim fica mais fácil e estimulante para nosso público descobrir por si só
os diferentes campos de atuação de cada autor.
Os estudos sobre a produção artística em decorações retabu-
lísticas e trabalhos de talha podem ser visualizados pelos especialistas
Alex Fernandes Bohrer e Aziz José de Oliveira Pedrosa. Os estudos sobre a
arquitetura entre a Europa e o Brasil, entre os séculos XVII e XIX es-
20
tão assinados pelos especialistas Alfredo J. Morales, André Dangelo, Celina
Borges Lemos, Monica Maria Lopes Lage, Marília Martha França Sousa, Regiane
Aparecida Caire Silva e Rodrigo Espinha Baeta. As análises sobre a pintura de
painéis ou o ilusionismo arquitetônico entre o Barroco europeu e sua di-
fusão no Brasil litoral e na capitania de Minas podem ser contemplados
com os professores Carla Bromberg, Célio Macedo Alves, Danielle Manuel dos
Santos Pereira, Fauzia Farneti, Javier Navarro de Zuvillaga, Magno Moraes Mello,
Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani e Eduardo Pires de Oliveira, Maria
Teresa Bartoli e Rita Binaghi. Pesquisas sobre os tratados portugueses entre
os séculos XVII e XVIII podem ser vistos com as pesquisas inéditas de
Danilo Matoso Macedo e Renata Nogueira Gomes de Morais; ainda muito signi-
ficativo as pesquisas sobre iconografia/iconologia em especial na cidade
de Divina Pastora (Sergipe) com o texto de Luiz Alberto Ribeiro Freire. E,
por fim, uma significativa pesquisa sobre problemas de conservação das
arquiteturas virtuais com as investigações de Silvio Van Riel.
Finalmente, o organizador espera que este livro ofereça uma
contribuição expressiva aos estudos entre a arte e a ciência, estimulando
a abertura de novas trilhas e uma real renovação das abordagens habi-
tuais.
AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OFICINAS...

Capítulo 1

AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E


OFICINAS NO 1º QUARTEL DO SÉCULO XVIII EM
MINAS GERAIS

Alex Fernandes Bohrer

Os primórdios de Minas e as primeiras capelas

No que tange à arte colonial mineira, talvez haja mais origina-


lidade e invenção nas primitivas capelas e matrizes do que nas grandes
obras dos períodos subsequentes. Construídas dentro de um contexto
inicial de exploração aurífera, quando o aparelho burocrático estatal e
eclesiástico ainda não havia sido implantado, essas criações apresen-
tam, não por acaso, adaptações evidentes e, não raro, desenhos que, 21
apesar de singelos, são audaciosos. Elas precedem a pujança ornamen-
tal posterior do chamado estilo “Nacional Português”, o qual, em arti-
gos recentes, temos chamado somente de “Barroco Português”.
Torna-se assim imprescindível, para entender melhor a circu-
lação de motivos iconográficos e técnicas específicas, analisar de onde
vieram os incursionistas que primeiro colonizaram Minas. Esses ho-
mens são os mecenas iniciais, patrocinadores das primitivas capelas e
matrizes. Saber, por exemplo, suas rotas de ingresso nos fornece sub-
sídios para se compreender melhor as semelhanças e diferenças que
nossa arte apresenta em relação a Portugal e outras regiões do Brasil.
Sobre as ondas migratórias há bastante bibliografia disponível, e tal
quadro é hoje razoavelmente bem conhecido, contudo, tentativas de
cotejar esses dados com a produção artística coetânea é algo mais com-
plexo, do qual insinuaremos apenas algumas assertivas aqui.
Como se trata de produção criativa de inícios do século XVIII
é imperativo buscar modelos fora de Minas, já que não existiu ante-
riormente uma geração de artistas locais. Diferentemente do Joanino
e do Rococó - quando, além de modelos externos, havia exemplares
mais antigos acessíveis aos novos empreendedores - no Nacional Por-
ALEX FERNANDES BOHRER

tuguês (ou Barroco Português, conforme a nomenclatura que propo-


mos anteriormente) a produção fora feita sem precedentes regionais,
o que contribuiu para ligar morfologicamente nossos retábulos ao que
se fazia mormente em outros territórios (de onde podiam provir enta-
lhadores e comitentes). Por outro lado, essa ausência de padrões pré-
-estabelecidos propiciou o aparecimento de algumas soluções criativas
próprias, nascidas de um contexto localizado e rapidamente espalhadas
para outros templos do mesmo período, levadas por artistas e oficinas.
As rotas utilizadas pelos bandeirantes paulistas foram detida-
mente pesquisadas desde o século XIX. Apoiados nos relatos setecen-
tistas de Pedro Tacques, Rocha Pita e Cláudio Manoel da Costa, entre
outros, autores mais recentes, como Capistrano de Abreu e Diogo de
Vasconcelos, teceram narrativas ao gosto memorialista e engajado da
época. Sabemos por estes estudos que, desde os princípios da ocupa-
ção portuguesa, era desejo geral que se encontrassem riquezas minerais
no Brasil, como havia acontecido na América espanhola.1
Pressionada por constante endividamento, a recém estabele-
cida dinastia dos Bragança, triunfante após a Restauração, incentivou
22 a abertura de rotas para regiões distantes do litoral. Graças ao contato
íntimo com civilizações ameríndias, os paulistas eram os que melhor
conheciam os sertões (não é de se espantar, por isso, que alguns ban-
deirantes tenham recebido cartas do próprio rei, solicitando empenho
no descobrimento de riquezas minerais).2 Foi Fernão Dias, guiado por
rotas mais antigas, traçadas por aventureiros predecessores e por mi-
lhares de anos de conhecimento indígena, quem melhor acolheu a sú-
plica real.3 No último quartel do século XVII conseguiu, com relativo
sucesso, mapear o território do que viria a ser as comarcas de Sabará e
parte da de Vila Rica, estabelecendo arraiais ao longo da Bacia do Rio
das Velhas. De sua casa no Sumidouro (atual Fidalgo, lugarejo que,

1
PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portugeza. Lisboa: Oficina de
José Antônio da Silva, 1730; COSTA, Cláudio Manuel da. Vila Rica. Rio de
Janeiro: O Patriota, 1813; ABREU, José Capistrano de. Caminhos Antigos e Po-
voamento do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Briguiet, 1930; VASCONCELOS,
Diogo. História Antiga de Minas. vol. I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1948.
2
FIGUEIREDO, Lucas. Boa Ventura - a Corrida do Ouro no Brasil. Rio de Ja-
neiro: Record, 2011.
3
VENÂNCIO, Renato Pinto. Caminho Novo: a longa duração. Varia História,
Belo Horizonte, n. 21, p. 181-189, jul. 1999.
AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OFICINAS...

não por coincidência, também seria passagem do entalhador Manoel


de Matos), fez excursões até o norte de Minas, quase na divisa com a
Bahia, e ao sul, até as nascentes do Rio das Velhas, nos atuais distritos
ouro-pretanos de Cachoeira do Campo, Glaura e São Bartolomeu.4
Além desse caminho vindo de São Paulo, foi necessário ar-
quitetar outro, abreviando a distância das lavras com o mar. Coube ao
filho de Fernão Dias, Garcia Paes, a tarefa de construir a estrada entre
o Rio de Janeiro e as Minas. Na “disputa” entre Bahia, Espírito Santo
e Rio de Janeiro, o Rio teve a prerrogativa por ser a capital da antiga
capitania (que na época também englobava São Paulo). Salvador, então
a cidade mais importante da Colônia, estava longe demais e sua rota
terrestre, via São Francisco, se bem que muito utilizada, jamais teve a
fama ou a importância da carioca.5
Essas regiões ainda apresentam vestígios dos paulistas, espe-
cialmente em construções e raros objetos. Em Ouro Preto, a velha
“casa de pedra” de Amarantina e a do Manso, nas proximidades do
Itacolomni, são prováveis resquícios da presença bandeirante na arqui-
tetura civil. Não é sem motivo, cremos, que um dos retábulos preser-
vados na Igreja de São Gonçalo de Amarantina seja da tipologia em 23
estudo, concebido num desenho muito singelo. Entre as capelas cons-
truídas nesse momento inicial podemos citar a de Santa Quitéria da
Boa Vista e a de Botafogo (ambas na zona rural do município de Ouro
Preto). De partido arquitetônico muito antigo, preservam retábulos de
igual ancianidade. O de Botafogo apresenta as tradicionais arquivoltas
concêntricas, todavia lisas. Os de Boa Vista apresentam um traçado de
carapina, singelos, mas ainda ostentam o mesmo gosto fechado carac-
terístico da época, com um arremate em forma de arco simples.
Em Cachoeira do Campo, duas peças talvez representem essa
passagem dos bandeirantes: uma pequena bússola pertencente ao te-
souro de Nossa Senhora de Nazaré (confeccionado em marfim, com
desenho característico do século XVII, esse utilitário - que possui, in-
clusive, ponto para marcação de horas pela sombra solar - devia ser
artefato corriqueiro entre viajantes) e o altar atualmente inserido no

4
CALÓGERAS, Pandiá. As Minas do Brasil e sua legislação. Rio de Janeiro:
Companhia Editora Nacional, 1938.
5
SANTOS, Márcio. Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e dos
diamantes no Brasil. Belo Horizonte: Editora Estrada Real, 2001.
ALEX FERNANDES BOHRER

Santíssimo da Matriz (que remete aos velhos oratórios seiscentistas


paulistas que será analisado mais abaixo).
Em Matias Cardoso, povoado quase na divisa com a Bahia,
existe um edifício que se liga às rotas migratórias ainda pouco estu-
dadas pela historiografia (ao contrário daquelas meridionais). A Igreja
de Nossa Senhora da Conceição é marca evidente dos primeiros ca-
minhos que, saindo do Nordeste, varavam os sertões de Minas, tendo
como guia natural o Rio São Francisco. Com seu pesado frontispício,
marcado por alto frontão triangular e duas torres quadrangulares, tem
suas fachadas rompidas por longa cimalha, três portas de acesso fron-
tal e, sobretudo, pelas arcadas laterais, que abraçam externamente a
nave, ao modo dos claustros litorâneos - tudo lembra a arquitetura
seiscentista nordestina e nos faz repensar a tradicional visão de ocu-
pação do território aurífero, que em geral acentua as levas de aventu-
reiros vindos de São Paulo.6 Mesmo que Matias Cardoso, paulista que
deu nome ao lugar, tenha aí se estabelecido, acreditamos que se trata
de edificação ligada a outra tradição arquitetural, que não a jesuítica
sulista. De qualquer modo, este e outros monumentos desta região são
24 provas de colonização muito recuada, sendo certamente antecessores
das primeiras ermidas das comarcas de Vila Rica e Sabará.
Tendo isso em vista, o Rio das Velhas se erigiu como um local
privilegiado para as primeiras grandes construções de Minas, ponto
estratégico por excelência. As ondas de migração que vinham do sul
se estabeleceram pelo mesmo caminho de Fernão Dias, justamente às
suas margens (desde Fidalgo, Caeté e Sabará, até as cabeceiras em São
Bartolomeu). Para os portugueses açorianos e nordestinos que vinham
do nordeste da Colônia, o Rio das Velhas também era condutor na-
tural, já que é o braço mais importante do Rio São Francisco. Não é
acaso que os mais paradigmáticos exemplares do Nacional Português
em Minas se encontrem nessa bacia.

Retábulos seiscentistas

Minas possui dois retábulos que julgamos serem os mais anti-


gos ainda existentes (os quais talvez até mesmo procedam de outras re-

6
Para isso ver, por exemplo, a arquitetura da antiga Igreja Matriz de Santo
Amaro, de Ipitanga, Bahia, com as mesmas arcadas laterais de Matias Cardoso.
AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OFICINAS...

giões): ou eles têm origem seiscentista, ou pelo menos sua morfologia


é toda arcaizante. Analisemos primeiro uma pequena peça da Igreja de
Nossa Senhora da Conceição de Matias Cardoso, que hoje abriga um
São Vicente de Paulo.7 Trata-se de elemento entalhado, de dimensões
modestas, hoje desprovido de sotabanco e altar, restando somente o
tramo superior. Apresenta uma composição sui generis, não possuindo,
entre outras peculiaridades, uma arquitrave a separar os capitéis dos
arcos (há, por outro lado, uma espécie de aduela a fazer tal papel).
Duas colunas torsas externas dão origem ao arco único e, no lugar
que esperaríamos ver a segunda coluna, existe uma espécie de lambril
escultórico, desprovido de nichos, composto por folhas de acanto (esse
painel possui uma espécie de capitel e dá lugar, acima, a um apainelado
semicircular) - tal disposição faz com que as aduelas se conjuguem mal,
dando impressão que se desprendem dos arcos. Um grosso rendilhado
guarnece a boca do camarim. Abaixo estão um pequeno pseudo-sa-
crário e duas mísulas (essas têm desenho bem corriqueiro e são quase
idênticas às da Igreja do Rosário de Chapada do Norte).
Essa estrutura mineira é aparentada estilisticamente a uma ou-
tra da Igreja de Tomar de Geru, no Sergipe. Nesse templo nordestino 25
temos o mesmo arco com painel semicircular, as aduelas soltas e as
análogas colunas externas (agora, contudo, delimitadas do único arco
por arquitrave e, no lugar do lambril do exemplar anterior, vemos, aqui,
nichos). Geru está próxima do Rio São Francisco (que também passa
ao lado da Igreja de Matias Cardoso). Portanto, não é descabido pen-
sar num tráfego de formas, técnicas e peças por via fluvial, no sentido
norte/sul.
Já citamos acima o altar do Santíssimo da Matriz de Nazaré
de Cachoeira do Campo. Ao contrário do exemplar sertanejo acima,
este não tem as características arquivoltas. Seus grossos tramos nos
remetem ao tipo maneirista, tal como foi adaptado em São Paulo, no
século XVII afora. Apesar de seu tamanho, possui arquitrave dupla, o
que simula, em menor escala, a tipologia de dois andares seiscentistas.
A edícula é composta por volumosas folhas de acanto, algumas das
quais se convertem em frontões interrompidos. No centro do arre-
mate há uma espécie de rosácea (herança dos óculos seiscentistas -

7
Certamente é um orago posteriormente introduzido.
ALEX FERNANDES BOHRER

vazados, pintados ou em relevo - ao gosto de Gaspar Coelho?). No


sopé, nenhuma mísula, somente ornatos e delicados arranjos florais.
Guarnece o camarim uma parreira espessa que, na parte inferior, se
metamorfoseia em duas discretas cabeças de pássaros (sendo a única
ornamentação de caráter zoomórfico do conjunto). Outrora, a tribuna
era aberta, mas atualmente está vedada por uma pequena porta, já que
abriga o Santíssimo Sacramento. Não há dúvida que o desenho do os-
tensório nessa portinhola é do século XIX (não condizente, portanto,
com a antiguidade do resto do conjunto) e que o arcabouço externo e a
mesa do altar, feitos de madeira recortada, são uma inserção posterior.8

26

Figura 1: Retábulo do Santíssimo. Matriz de Nossa Senhora de Nazaré, Ca-


choeira do Campo.
Foto: Projeto “O Estilo Nacional Português em Minas Gerais” (PIBIC/
IFMG-OP).

Percival Tirapeli já havia percebido a possível origem ou mo-


delo formal dessa estrutura: pequenos altares paulistas seiscentistas,

8
Com vista a preencher da melhor forma possível a parede de fundo da Cape-
la do Santíssimo, muito ampla nessa Matriz. Há no batistério dessa igreja uma
pequena porta, feita para cobrir o nicho dos santos óleos, que possui fatura
muito semelhante à talha desse retábulo do Santíssimo - teria pertencido ori-
ginalmente a tal retábulo? Talvez tenha sido a primeira porta de sacrário desse
oratório móvel, colocada originalmente sobre um desaparecido altar.
AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OFICINAS...

como o da Fazenda do Piraí, tido como um típico padrão bandeirante


(a disposição da talha e a predominância de adornos fitomórficos lem-
bra o artefato cachoeirense). Teria essa peça mineira se originado em
São Paulo? Corre tradição no distrito que ela veio com os fundadores
do arraial, abrigando uma pequenina Nossa Senhora de Nazaré (subs-
tituída posteriormente pela atual).9 O interessante é que a imagem da
lenda existe, guardada no tesouro da igreja: uma pequena escultura,
talvez seiscentista, com tipologia semelhante ao que se fazia em São
Paulo e cujas dimensões se adequam ao camarim mencionado. É bem
provável que tanto o de Piraí, quanto o de Cachoeira, tenham sido
oratórios móveis, tal como observa Tirapelli: “A estes altares pode-se
denominar carinhosamente de retábulos ou altares peregrinos, tão em
moda, que foram até o século XX na cidade de São Paulo.”10

Retábulos vernáculos

Muitas primitivas capelas de Minas abrigam retábulos de ma-


deira recortada, típicos de carapinas e não de entalhadores. Esses arte- 27
fatos muitas vezes são interpretadas como obras posteriores, feitas em
época de menor riqueza. Contudo, analisando atentamente essa mor-
fologia, podemos aventar a hipótese de que algumas são muito antigas.
Em geral, esses conjuntos apresentam arremates em arcos
simples, que são continuações de pilastras inferiores. Se simplificarmos
o arcabouço complexo dos retábulos do Nacional e focarmos na arma-
ção que está por trás das colunas e arcadas entalhadas, teremos o mes-
mo ritmo encontrado nessas estruturas de carapinas, como demonstra
a ilustração abaixo.
Uma possível prova de antiguidade pode estar nos dois pe-
quenos altares laterais da pequena Igreja de Nossa Senhora dos Pra-
zeres de Lavras Novas, Ouro Preto. Apresentando desenho singelo,
com arremate fechado em arco simples, poderíamos tomá-los como

9
COSTA, João Baptista. Memória Histórica I [ca. 1930 - 1970]. s/p (manuscri-
to).
10
TIRAPELI, Percival. Retábulos Paulistas. In: ANAIS DO CONGRESSO
INTERNACIONAL DO BARROCO IBEROAMERICANO. Ouro Preto,
2006, p.276.
ALEX FERNANDES BOHRER

obra tardia, não fossem as duas mulheres que ladeiam o camarim, à


moda de cariátides - são análogas às já citadas figuras femininas típicas
do Nacional. Talvez sejam reaproveitamentos de peças anteriores, mas
também podem ser motivos escultóricos previstos em projeto, enco-
mendados por uma irmandade pobre ou destituída de mão de obra
mais especializada. Esses pequenos ornamentos, nesse caso, seriam
uma forma de obedecer ao modismo da época.
Outro pormenor que mostra a ancianidade dessas peças são
algumas janelas de prospecção em retábulos laterais da Capela de San-
tana, no Morro de Ouro Preto. Essas janelas revelam os característicos
dentículos e acantos sobre um fundo negro, típicos do Nacional Por-
tuguês, encontrados, por exemplo, na Capelinha do Ó ou na Matriz de
Cachoeira do Campo.
Há também afinidades morfológicas dessas estruturas de cara-
pinas com algumas peças paulistas seiscentistas, como o retábulo-mor
da Igreja de São Miguel, de São Paulo, onde pilastras e um arco simples
se comungam com um forro trifacetado. Talvez este plano fosse típico
de obras pré-Nacionais, de simples adaptações de composições portu-
28
guesas mais complexas.11
Entre os retábulos mineiros que possuem essa forma e que
se inserem em capelas do primeiro quartel do XVIII (ou em templos
posteriores dos quais temos notícia de traslado de trastes), podemos
citar: o da Capela de São João de Ouro Preto (muito semelhante ao de
São Miguel, em São Paulo), o retábulo-mor de Santa Quitéria da Boa
Vista (zona rural do município de Ouro Preto, com profunda descarac-
terização em uma reforma recente), o da ermida de Santo Antônio dos
Tabuões (nas proximidades de Cachoeira do Campo, possui, inclusive,
pintura fingindo colunas torsas), os laterais da Igreja de Nossa Senhora
dos Prazeres de Lavras Novas etc.

11
Entre as peças lusitanas desse momento, podemos citar o retábulo-mor da
antiga Capela do Paço Real de Salvaterra de Magos, Portugal, onde arcos con-
cêntricos simples se alinham com colunas de fuste liso cobertas de brutescos.
Como observam Lameira e Serrão: “A consciência da modernidade nas obras
de retabulística ensaiada nesses anos da restauração portuguesa comprova que
se está perante uma fase de abertura de estilo e de superação morfológica, que
é licito apelidar de estilo proto-barroco.” LAMEIRA, Francisco; SERRÂO,
Vítor. O retábulo protobarroco da capela do antigo Paço Real de Salvaterra de
Magos (c.1666) e os seus autores. In: ATAS DO II CONGRESSO INTER-
NACIONAL. Porto: Universidade do Porto, 2003, p.225 e 226.
AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OFICINAS...

Figura 2: Retábulo-mor. Capela de São João Batista, Morro de São João, Ouro
Preto.
Foto: Michelle Adriane de Lima Mendes (IFMG-OP).

29
Tais peças se preservaram na Matriz de Nossa Senhora da Con-
ceição de Raposos, em dois elementos da Matriz de Nossa Senhora da
Conceição de Sabará (Amparo e Carmo), na Capela do Botafogo, na
Matriz de Piedade do Paraopeba, na Igreja de Nossa Senhora do Ro-
sário de Acuruí, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Matias
Cardoso, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira do
Brumado, na Igreja de São José de Itapanhoacanga, na Matriz de São
Francisco de Costa Sena, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário de
Minas Novas e na Matriz de Santa Cruz e Igreja de Nossa Senhora do
Rosário de Chapada do Norte.

Duas capelas de Vila Rica: Santo Amaro de Botafogo e de Nossa


Senhora das Mercês de São Bartolomeu

A capelinha de Santo Amaro do Botafogo é uma pequena er-


mida construída aos pés da Serra da Cachoeira, a meio caminho entre
Cachoeira do Campo e Ouro Preto. Está num vale profundo, numa re-
gião praticamente esquecida já em meados do século XVIII, quando
novas estradas foram abertas no outro contraforte da serra, tornando o
ALEX FERNANDES BOHRER

caminho de Botafogo, sem reparos, inutilizável.12 Ainda existe, da época,


a capelinha, o pequeno adro e poucas casas esparsas, às margens do pe-
queno regato, afluente do Rio das Velhas. O templo apresenta o partido
característico dos primeiros erguidos em Minas: frontispício triangular
simples, duas sacadas de verga reta, uma porta única, sacristia lateral; a
sineira quartzítica pende em balanço da fachada, sob o frontão.
Internamente possui somente o retábulo-mor. Essa peça exibe
um par de colunas torsas, lisas, e um arco no arremate, preso por duas
aduelas. O teto facetado faz com que o ritmo se assemelhe a muitas
outras. Os nichos laterais devem ser posteriores. As espiras lisas ligam
morfologicamente essa estrutura às do norte citadas acima e a algumas
da região central, como a Matriz de Raposos, de Piedade do Paraopeba
e o Rosário de Acuruí.

30

Figura 3: Retábulo-mor. Capela de Santo Amaro, Botafogo, Rodrigo Silva.


Foto: Projeto “O Estilo Nacional Português em Minas Gerais” (PIBIC/
IFMG-OP).

Sabe-se que a construção da Capela das Mercês de São Barto-


lomeu foi iniciada em 1772. Segundo um documento produzido por
visitadores em 1822, ela estava por acabar, há 40 anos começada13, o
que confirma a data acima e mostra a letargia das obras em um povoado
que já estava engolfado em relativa estagnação. A paragem em que ela

12
Tal estrada nova é o famoso caminho de Dom Rodrigo, construído para
ligar os palácios de Cachoeira e o de Ouro Preto. Sobrevivem o chafariz origi-
nal, de 1782, e os longos muros de arrimo.
13
BOHRER, Alex Fernandes. Ouro Preto, um novo olhar. São Paulo: Scortecci,
2011. p.94.
AS CAPELAS DE VILA RICA: PRODUÇÃO ARTÍSTICA E OFICINAS...

se localiza é de belo efeito paisagístico. Íngreme ladeira, anteriormente


calçada, leva até uma velha escadaria de pedra. A fachada, em frontão
simples triangular, desprovida de torres, não possui ornatos. Tem, la-
teralmente, os puxados dos corredores que levam da nave à sacristia,
colocada transversalmente nos fundos. Possui pequeno, mas expressivo,
acervo imaginário, cabendo ressaltar o grande Senhor dos Passos, guar-
dado em armário próprio na sacristia.14
O altar-mor, muito desfigurado, revela um Nacional Português
com adaptações e colorido mais recente. Como a igreja é posterior ao
período de vigência de nosso estilo, cremos que esse exemplar veio de
outro lugar, sendo remontado aqui. Pelas proporções, talvez esse seja o
retábulo-mor original da matriz do distrito, desmontado para dar lugar
ao atual. Trata-se de uma estrutura bem maior que as da matriz, mas
repetidas vezes repintada e remontada, o que dificulta o diagnóstico.
Possui sinais visíveis de superposições, como os apainelados e lambris
que separam as duas colunas que, a cada lado, margeiam o profundo
camarim.
Ao contrário das outras que analisamos, as mísulas que susten-
tam tais colunas mostram um raro ornato floral (tão alterado que qua- 31
se não deixa ver o axadrezado característico dos girassóis). Margeiam
essas mísulas lambris decorados com os mesmos motivos. O sacrário
de risco trifacetado mostra ornamentação antropomórfica, com cabeças
de anjos (querubins ladeiam a porta do sacrário, a qual é decorada por
uma parreira com cachos de uvas e flores) e cariátides (com braços arre-
matados em volutas). As fênix, localizadas nas colunas, têm concepção
muito diversa das da igreja paroquial, estando representadas de frente
(como em Cachoeira, Caeté ou Mariana), sendo sem dúvida obras de
um mestre diferente. Há dois putti sentados nas colunas centrais, objeto
também não encontrado na matriz. A cimalha e arquitrave, apesar de
muito desgastadas, deixa entrever projeto parecido ao da capela-mor da
Nazaré de Cachoeira. Os dois arcos concêntricos têm o mesmo ritmo
das colunas abaixo e os apainelados que dividem essas arquivoltas são
de fatura posterior - o que é confirmado pela análise das duas aduelas

14
Apesar da restauração amadora que lhe desfigurou grandemente a face e as
mãos, esta imagem mostra detalhes interessantes: as volutas formadas pela
barba, desencontradas no queixo, e os bigodes, saindo quase da narina, além
dos olhos amendoados, nos fazem pensar numa obra ligada à ‘escola’ do Alei-
jadinho.
ALEX FERNANDES BOHRER

que prendem o conjunto, que mudam o desenho na parte central (flores


e caneluras), diferentes dos acantos que aparecem quando os raios pas-
sam sobre as arquivoltas. O camarim exibe painéis laterais e forro com
caixotões, todos com motivos fitomórficos muito antigos (os laterais
lembram vagamente os do camarim-mor de Cachoeira).
Outra coisa que confirma a readequação desse retábulo é o bra-
são central com o símbolo dos Mercedários, certamente posterior. Deve
ter sido feito na mesma época dos lambris e do oratório que abriga a
imagem.
Essas capelas são exemplos da primeira produção artística mi-
neira, ainda muito pouco estudada. Essa produção abriu caminho, pos-
teriormente, para um barroco mais maduro e tecnicamente inventivo,
como veremos na pequena Capela do Ó e Matriz de Sabará e na Matriz
de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do Campo. É, portanto, de
suma importância o estudo dessas antigas estruturas, relegadas por mui-
to tempo a papel secundário. Devem, forçosamente, figurar num alto
patamar, já que são os berços das ondas estilísticas que vieram depois.15

32

Figura 4: Retábulo-mor. Igreja de Nossa Senhora das Mercês, São Bartolo-


meu.
Foto: Projeto “O Estilo Nacional Português em Minas Gerais” (PIBIC/
IFMG-OP).

15
Para isso vide: BOHRER, Alex Fernandes. A Talha do Estilo Nacional Por-
tuguês em Minas Gerais: Contexto Sociocultural e Produção Artística. Tese
(Doutorado e História) – Programa de Pós Graduação em História, Faculda-
de de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte, 2015.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

Capítulo 2

ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y


MIRADORES EN LA ARQUITECTURA SEVILLANA DE LOS
SIGLOS XVII Y XVIII

Alfredo J. Morales

En el compacto caserío de la ciudad de Sevilla sobresalen como


hitos verticales una serie de elementos constructivos, de arquitecturas
aéreas, que fueron levantadas entre los siglos XVI y XVIII y que
configuran el perfil histórico de la ciudad. Ciertamente hablar del perfil
de una ciudad en un momento concreto de su historia puede resultar
equívoco, ya que pudiera interpretarse como el deseo de contemplarla
desde un solo punto de vista. No obstante, es evidente que existen vistas
de ciudades tomadas desde una privilegiada localización en las que se
recoge lo sustancial de las mismas, los elementos más representativos 33
y reconocibles de ellas. Por eso tales visiones terminan por convertirse
en la iconografía habitual de la ciudad. En el caso de Sevilla ese punto
geográfico se localiza a poniente de la ciudad y en la llamada Cuesta del
Caracol, en el ascendente camino que lleva a la comarca del Aljarafe.1
Desde allí fue representada en las primeras iconografías locales y por la
mayor parte de los artistas extranjeros que visitaron la ciudad a partir
del siglo XVI.2 Desde poniente aparece vista en 1548 en el paisaje
convencional y en el que se han introducido esbozos de elementos
reales por Pedro de Medina en su Libro de las Grandezas y cosas memorables
de España. También emplearon el mismo punto de vista Antón van
den Wyngaerde en su fiel representación urbana de la ciudad en 1567,
Ambrosio Brambilla en 1585 y especialmente Joris Hoefnagel en una
de las imágenes de la ciudad que Georg Braun y Frans Hogenberg

1
Su nombre deriva de la palabra árabe “as-saraf”, que se traduce por altura,
elevación, bien expresivo de su condición de privilegiada atalaya desde la que
se domina Sevilla.
2
Para más información sobre algunas de estas representaciones puede consul-
tarse MORALES, Alfredo J. Imágenes renacentistas de los paisajes andaluces.
In: VV.AA. Territorio y Patrimonio. Los Paisajes Andaluces. Granada, Junta de
Andalucia. Consejería de Cultura y Comares, 2003, pp. 154-163.
ALFREDO JOSÉ MOALES

insertaron en su magna obra Civitates Orbis Terrarum, publicada en tres


tomos entre 1574 y 1615. De ellas derivan otras muchas imágenes
grabadas de la ciudad, como las de Coriolanus, Florimi, Merian, Schut,
etc. No obstante, la vista de Sevilla más conocida corresponde a una
pintura anónima, realizada sobre lienzo, que es propiedad del Museo
del Prado y que se exhibe en el Museo de América de Madrid. También
tomada desde poniente y desde un punto elevado, la ciudad aparece
comprimida y ofreciendo los elementos urbanos y topográficos de
mayor significación, sin respetar las escalas. Fechable entre 1595 y 1611,
la pintura refleja la grandeza de la Sevilla puerta y puerto de América
en un paisaje urbano que centra la Flota de Indias y que abarca las dos
orillas del Guadalquivir.3
Ciertamente los perfiles que puede ofrecer cualquier urbe y
mucho más una ciudad con la riqueza visual de Sevilla son infinitos,
dependiendo esencialmente de la capacidad de observación del
espectador. Es cierto que desde ese punto elevado, que puede ser tanto
real como ficticio según el momento y los artistas, y teniendo como
referente el curso del Guadalquivir que casi la envuelve, la ciudad
34 ofrecía su mejor fachada y se manifestaba antaño en su esplendor y,
sobre todo, en el espectáculo fascinante de su puerto, donde todo
era actividad y bullicio, confusión y promiscuidad, donde Sevilla se
convertía en la “puerta indiana” a la que Lope de Vega retrata con
tanta viveza en El Arenal de Sevilla. Pero, con independencia del lugar
elegido para contemplarla, el espectador siempre advertiría la compacta
horizontalidad de su caserío que solo resultaría interrumpido por
la verticalidad de los campanarios y las espadañas de sus edificios
religiosos, por los sobresalientes volúmenes de los miradores y galerías
de las residencias de sus más pudientes moradores. Y dominándolo
todo la Giralda, cuyo perfil se enseñorea de la ciudad.
Ya he señalado en una ocasión anterior como la construcción
del campanario de la torre de la catedral por Hernán Ruiz el Joven
puso de manifiesto sus dotes magistrales para la composición y para la
resolución de problemas de estabilidad y resistencia. Asimismo, destaqué
el carácter excepcional de su diseño y la genialidad de combinar tres

3
Sobre estas representaciones, además de la obra citada en la nota anterior,
puede consultarse CABRA LOREDO, María Dolores. Iconografía de Sevilla.
1400-1650. Madrid: El Viso, 1988, p. 50-51, 76-78, 91-93, 96-101, 104-105 y
106-108.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

materiales constructivos, piedra, ladrillo y azulejo, para dar coherencia


y unidad visual a toda la torre. También recordé como la Giralda sirvió
de fuente de inspiración, tanto por su composición, como por el uso
complementario de los aludidos materiales, a numerosos campanarios
y espadañas levantados por toda el área de influencia sevillana.4 A ello
hay que sumar su repercusión en el énfasis ascensional que manifiestan
tales elementos de la arquitectura religiosa de la ciudad, lo que llega
a convertirlos en verdaderos hitos urbanos. De ese mismo anhelo
por elevarse y destacar sobre el resto de las construcciones participan
ciertas viviendas de las clases dirigentes al incorporar torres-miradores
y galerías en los pisos altos, o al situar monumentales buhardillas
sobre los faldones de los tejados. Tal afán por ganar los cielos puede
entenderse en el caso de la arquitectura religiosa en sentido literal,
mientras en el caso de la arquitectura doméstica debe interpretarse
como un testimonio del deseo de sus moradores por alcanzar la gloria,
pero no la eterna, sino la terrenal.
Ciertamente la ciudad moderna, con sus construcciones
masivas y fuera de escala respecto a la arquitectura tradicional, ha
35
ocasionado una alteración sustancial en la percepción de la mayoría
de esas estructuras aéreas, dejándolas aprisionadas y empequeñecidas,
llegando en muchos casos casi a ocultarlas. Lamentablemente son
también numerosas las que han desaparecido durante los procesos
de renovación y transformación que ha sufrido la ciudad en los dos
últimos siglos. Aún así, los ejemplos conservados son suficientes para
comprender su relevancia en el paisaje urbano de Sevilla.
De la importancia, variedad y número de las espadañas
sevillanas da testimonio el importante estudio de Calderón Quijano.5 En
el mismo se recoge un variado muestrario de campanarios de dispares
tamaños, materiales y colores. Además se incorpora información sobre
sus autores, fechas de edificación y localización. El propio autor fijaba
el origen de su estudio en el peligro que desde hacía años se cernía
sobre las espadañas sevillanas.

4
Véase MORALES, Alfredo J. Hernán Ruiz el Joven. Madrid: Akal, 1996, p.
25-27.
5
Véase CALDERÓN QUIJANO, José Antonio. Las espadañas de Sevilla. Se-
villa: Diputación, 1982.
ALFREDO JOSÉ MOALES

En la Sevilla de los siglos del Barroco la torre de una iglesia


o la espadaña de un convento o capilla contribuían a sacralizar
el espacio de la que fue considerada como “la gran Babilonia”. De
hecho, agujereando el cielo con sus chapiteles o aprisionándolo entre
sus arquerías señalaban la presencia de un lugar sagrado en medio
del espacio profano. El encadenamiento de torres y espadañas en
fragmentos de la trama urbana venía a crear como microciudades
sagradas, de igual manera que la multiplicación de las fundaciones
conventuales justifica sobradamente el calificativo de ciudad-convento
con el que en tiempos pasados fue definida Sevilla. Al respecto y como
ejemplo de lo señalado baste considerar el fragmento urbano integrado
por la parroquia de San Marcos, la capilla de los Siete Dolores de
Nuestra Señora, los conventos de Santa Isabel, Santa Paula, Santa
María del Socorro, de Nuestra Señora de la Paz y de Consolación y las
parroquias de Santa Catalina y San Román. Esa condición de ciudad
conventual se reafirmaba, y en parte aún se reafirma diariamente, gracias
al insistente repique de sus campanas. Desde antes del amanecer y en
determinados momentos del día las torres y espadañas se convierten
36 en verdaderas arquitecturas sonoras, que convocan a misa o que
pautan el ritmo vital de las clausuras conforme a la liturgia de las horas.
El horizonte sonoro de la ciudad, hoy desfigurado y convertido en
una insoportable y agresiva maraña de ruidos, venía expresado por
el lenguaje de sus campanas, perfectamente articulado para que su
mensaje fuera claramente entendible por los sevillanos, más allá de
la alegría o tristeza que en primera instancia pudieran transmitir sus
repiques y dobles. Buena prueba de ello es el reglamento que fijaba el
toque de las campanas de la Giralda, en una,
Disposición concertada de Música con vozes
acordadas de contrabajos, Tenores, Contra altos
y Tiples … (que) ostentan tanta grandeza, que
alientan con su sonido suave y concertado el
ánimo más divertido que pueda estar de las cosas
sagradas.6

6
El texto corresponde a las normas recogidas en 1633 por el licenciado Se-
bastián Vicente Villegas de los estatutos y reglas antiguas. El original de este
manuscrito junto con otro texto cien años anterior redactado por el presbí-
tero Mateo Fernández ha sido transcrito y estudiado por RUBIO MERINO,
Pedro. Reglas del tañido de las campanas de la Giralda de la Santa Iglesia Catedral de
Sevilla. Sevilla: Cabildo Catedral, 1995.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

Ciertamente la presencia de espadañas en edificios religiosos


de Sevilla es anterior al Seiscientos. Prueba de ello es la que de pequeño
tamaño y construida en ladrillo en limpio se alza sobre un muro lateral
de la Capilla de Santa María de Jesús, primitiva sede de la Universidad, o
la que con perfil escalonado en dos cuerpos y original remate se levanta
sobre la galería oriental del Claustro del Herbolario en el Convento
de Santa Inés.7 Aunque entre las dos fábricas existe una diferencia
cronológica que supera el centenar de años, ambas responden a la
estética mudéjar. A la misma correspondía la espadaña que remataba la
torre de la catedral hasta la edificación del campanario renacentista por
Hernán Ruiz. De esta desaparecida espadaña hay varios testimonios
gráficos.8 Otra espadaña edificada en el siglo XVI es la que remata la
Puerta del Perdón en la catedral, que debió ser trazada por el maestro
mayor Asensio de Maeda y cuya conclusión tuvo lugar en 1579.9
En su composición se utilizó la combinación de arco y dintel del
llamado vano serliano o palladiano, siendo posiblemente la primera
consecuencia simplificada de la solución concebida por Hernán Ruiz
en el campanario de la Giralda.10 Esta espadaña fue erigida para servir
de campanario al primitivo Sagrario de la catedral, una función que
siguió cumpliendo cuando se inauguró el nuevo templo y que aún 37
conserva.
A pesar del interés de esas obras, es indudable que resultan
más numerosos y atractivos por su mayor complejidad compositiva los
campanarios de posterior cronología. Algunos de ellos sirvieron para
coronar torres preexistentes de estética mudéjar, por lo que el resultado
final venía casi a repetir la combinación islámico-renacentista que con
tanta genialidad se da en la Giralda. Es el caso de la perteneciente
a la Iglesia parroquial de San Pedro, cuya esbelta caña mudéjar fue
coronada por un cuerpo de campanas en el que ciertas fórmulas
compositivas, su ímpetu ascensional y la combinación de materiales

7
Su fábrica aparece hoy descarnada, sin el revoco primitivo, dejando ver el
ladrillo basto con el que fue construida. Tal apariencia es producto de una
equivocada restauración llevada a cabo en la década de los setenta del pasado
siglo XX.
8
Muchas de ellas son recogidas por CABRA LOREDO. Iconografía de Sevilla.
1400-1650, op. cit., p. 44-45, 46-47, 54-55 y 56-57.
9
La datación precisa y la atribución se deben a RECIO MIR, Álvaro. La re-
forma y restauración de la Puerta del Perdón de la catedral de Sevilla de 1578-
1580. In: Laboratorio de Arte, nº 9, 1996, p. 73-87.
10
A ello me referí en MORALES, Alfredo J. Modelos de Serlio en el arte se-
villano. In: Archivo Hispalense, nº 200, 1982, p. 152.
ALFREDO JOSÉ MOALES

recuerdan fuertemente a la torre de la Catedral sevillana. Tal relación


permite incluso sospechar la existencia de una obra del propio Hernán
Ruiz el Joven, que se arruinaría a fines del siglo XVI. De hecho, en
1594 se inició la construcción del actual campanario con trazas de
Martín Infante, maestro mayor del Real Alcázar, obra que se concluyó
cuatro años más tarde y que debió ser reparada tras el terremoto de
1755 por el arquitecto Tomás Zambrano. Desde su finalización, la
torre de la parroquia de San Pedro se convirtió en un hito urbano, una
característica que sigue hoy manteniendo y que en tiempos pasados
debió ser mayor en razón de su localización geográfica en uno de los
puntos más elevados de la ciudad, lo que le permitía sobresalir entre
el comprimido caserío cuando aún no se habían abierto ni la plaza,
ni la amplia calle que hoy lo bordean, resultado de los derribos y de
las reformas urbanísticas a las que fue sometido este sector urbano
durante los siglos XIX y XX.11 Otro caso similar corresponde a la torre
de la parroquia de Santa Ana, cuyo campanario fue levantado conforme
a los diseños y condiciones elaboradas por Diego López Bueno en
1623, si bien su edificación, que dirigió Cristóbal Ortiz, fue concluida
seis años más tarde.12 También en este cuerpo de campanas se percibe
38 la huella de la Giralda, debiendo resaltarse la superposición de dos
cuerpos decrecientes ordenados mediante pilastras y el uso de azulejos
de diferentes colores. No obstante, las reformas introducidas por
Pedro de Silva para reparar los daños del terremoto de 1755, alteraron
algo la fisonomía del campanario que fue dotado de nuevos remates
y que unificó su cromatismo al emplearse piezas en azul para toda la
azulejería que revestía los antepechos y los órdenes arquitectónicos.13
También se levantaron nuevas torres-campanarios en algunos
conventos masculinos de la ciudad. En estos casos las referencias a la
Giralda se advierten en el empleo de azulejos que sirven para definir
o potenciar visualmente los órdenes arquitectónicos de los cuerpos de
campanas y para dotarlos de elementos o superficies refulgentes cuando
sobre ellos inciden los rayos del sol. Así ocurrió con la construida en el

11
Los datos corresponden al estudio de DABRIO GONZÁLEZ, Maria Te-
resa. Estudio histórico-artístico de la parroquia de San Pedro de Sevilla. Sevilla: Dipu-
tación, 1975, p. 35-40.
12
Véase HERRERA GARCÍA, Francisco J. Diego López Bueno: el proyecto
de campanario de Santa Ana de Sevilla. In: Laboratorio de Arte, nº 11, 1998, p.
461-473.
13
Los trabajos desarrollados por este maestro fueron recogidos por FALCÓN
MÁRQUEZ, Teodoro. Pedro de Silva. Arquitectao andaluz del siglo XVIII. Sevilla:
Diputación, 1979, p. 31.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

Convento Casa Grande del Carmen durante el proceso de renovación


que se desarrolló en el monasterio a partir de comienzos del Seiscientos
y que se ha sospechado pudiera haber diseñado Vermondo Resta.14
La torre se encuentra hoy casi oculta entre modernas construcciones
y desprovista de su remate, aunque en el arranque del cuerpo de
campanas aún conserva encintados en azulejería azul formando
recuadros. También se emplean azulejos en el inicio del campanario que
remata la torre del Convento de los Descalzos de la Santísima Trinidad,
obra documentada de Juan de Segarra y levantada entre 1625 y 1627.15
Labores de azulejería del mismo color cubren los fustes de las parejas de
pilastras toscanas que flanquean los huecos de las campanas, los frisos
y los tímpanos de los frontones que coronan el orden, empleándose
también en el remate bulboso. Tanto éste elemento, como los jarrones
colocados en los bancos sobre los que se asienta deben corresponder a
una reforma posterior, pero contribuyen a dotar de un original perfil al
campanario. Este se eleva sobre una torre de caña desornamentada en
una estrecha calle que lleva el nombre de Descalzos, convirtiéndose en
su principal protagonista.

39

Figura 1: Campanario de la Iglesia de los Descalzos de la Santísima Trinidad.


Juan de Segarra.
Foto: Alfredo J. Morales

14
Sobre los avatares históricos del conjunto conventual puede verse VV.AA.
El Carmen: El convento, el cuartel, el Conservatorio Superior de Música y la
Escuela de Arte Dramático. Sevilla: Junta de Andalucía y Diputación, 2001.
15
Véase ARENILLAS, Juan Antonio. Del Clasicismo al Barroco. Arquitectura
sevillana del siglo XVII. Sevilla, Diputación, 2005, p. 153-155.
ALFREDO JOSÉ MOALES

Otra torre conventual que también emplea azulejos es la de los


trinitarios calzados cuya fábrica que es anterior a 1640, fue trazada, junto al
desaparecido convento, por fray Miguel de Peñalosa con el asesoramiento
del maestro mayor de la Catedral sevillana Miguel de Zumárraga.16 Este
monasterio se situaba extramuros, en las proximidades de la Puerta del
Sol, por lo que su torre aunque no muy esbelta era un referente para
quienes accedían o salían de la ciudad a través de dicha puerta. Por el
contrario, hoy se trata de un elemento casi anulado entre modernas y
desafortunadas edificaciones fuera de escala.
Papel protagonista en el escenario urbano del sector norte de
la ciudad tienen también las dos torres que rematan la fachada de la
Iglesia de San Luis, antiguo noviciado de la Compañía de Jesús, sin
duda la obra maestra de Leonardo de Figueroa.17 En la construcción
de dichas torres, inspiradas en Andrea Pozzo y relacionables con obras
efímeras y con la arquitectura de retablos, intervino Matías de Figueroa,
concluyéndolas hacia 1733. A pesar de su limitada altura enmarcan y
dan mayor potencia volumétrica a la cúpula sobre tambor que corona el
espacio centralizado del templo. Tanto en ella como en la linterna de su
40 remate, así como en el diseño de las torres y de los huecos de la propia
fachada son evidentes los referentes a la obra de Pozzo y de Borromini,
así como los recuerdos de algunas iglesias romanas, especialmente de
Santa Agnese, sin duda, su principal fuente de inspiración.18 El exterior
del templo reproduce la misma combinación cromática –ocre y rojizo-
y de materiales –piedra, barro cocido y ladrillos- que se encuentra en
otras obras de Figueroa. Sin embargo, el uso de la cerámica polícroma
en las torres y cúpula las hace destacar en el conjunto. Se trata de placas
o cintas de color azul que aparecen en el tambor y en la linterna de la
cúpula y en el segundo cuerpo de las torrecillas. A ello hay que sumar
la alternancia de tejas blancas y azules en las cubiertas, que en el caso
de las torres se enriquecen con otras de color amarillo formando los
nervios, una solución que el arquitecto había empleado poco tiempo

16
Para mayor información sobre este convento puede verse ARENILLAS. Del
Clasicismo al Barroco. Arquitectura sevillana del siglo XVII, op. cit., p. 147-151.
17
Sobre este templo existe una importante monografía debida a RAVÉR
PRIETO, Juan Luis. San Luis de los Franceses. Sevilla: Diputación, 2010.
18
Véase al respecto MORALES, Alfredo J. Teatro Sagrado. A Igreja de Sâo
Luís da França em Sevilha. In: ROMEIRO, Adriana y MORAES MELLO,
Magno. Cultura, Arte e Historia. A contribuçao dos jesuitas entre os séculos
XVI e XIX. Belo Horizonte, Fino Traço, 2013, p. 27.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

antes en el sevillano Convento de San Pablo, actual parroquia de Santa


María Magdalena, de la posteriormente se tratará.19
Aunque sin alcanzar las alturas de las torres-campanarios,
resultan más transparentes y aéreas las espadañas erigidas en los
conjuntos conventuales desde comienzos del Seiscientos. Una de las
primeras en construirse fue la del Convento de Santa Isabel, cuya
iglesia se edificó según las trazas elaboradas por Alonso de Vandelvira
en 1602.20 Se levanta sobre el muro de los pies y está organizada en dos
cuerpos, resolviéndose el inferior a modo de un arco triunfal mediante
el empleo del vano serliano o palladiano. Tal solución remite de nuevo
a la Giralda, aunque son evidentes algunas novedades respecto a
ella. El más llamativo es el empleo del almohadillado en los huecos
y la conversión de los óculos de la torre de la catedral en registros
rectangulares y ciegos con azulejos, conforme al modelo difundido por
el tratado de Serlio.21 El empleo de pilastras y la presencia de las labores
en rústico hacen sospechar que la fuente de inspiración para diseñar
esta espadaña pudiera haber sido alguna de las estructuras que aparecen
en los folios VIII vto. y IX del Libro Quarto, que Serlio ofrece como
soluciones para puertas de ciudad.22 Tales coincidencias hacen que esta
41
espadaña y las que siguiendo una formulación semejante se levantaron
posteriormente en Sevilla podrían interpretarse como puertas del cielo,
a la manera de las estructuras clásicas que junto a otras figuraciones
de las Letanías Lauretanas suelen acompañar a las representaciones
pictóricas de la Inmaculada Concepción.

19
A la importancia de la policromía en la arquitectura de Leonardo de Figue-
roa y a su relación con las experiencias del empleo de la cerámica arquitectóni-
ca por parte de Hernán Ruiz el joven me referí en el trabajo: MORALES, Al-
fredo J. Leonardo de Figueroa y el barroco polícromo en Sevilla. In: VV. AA.
Figuras e imágenes del Barroco. Estudios sobre el barroco español y sobre la obra
de Alonso Cano. Madrid: Fundación Argentaria-Visor, 1999, p. 202 y 205-206.
20
La obra de este arquitecto ha sido estudiada por CRUZ ISIDORO, Fer-
nando. Alonso de Vandelvira (1544-ca. 1626/7). Tratadista y arquitecto andaluz.
Sevilla: Universidad de Sevilla, 2001. El texto relativo a este convento corres-
ponde a las páginas 109-129.
21
Este autor boloñés emplea tal composición en una ventana del edificio ve-
neciano que ocupa el folio XXXVI del Libro Quarto, ofreciendo variantes de
dicha composición en la ilustración precedente que corresponde a otro pala-
cio de Venecia SERLIO, Sebastián. Libro Quarto de Architectura. Toledo, 1552.
La primera edición italiana tuvo lugar en Venecia en 1537. La edición española
citada también incorporaba el Libro Tercero, dedicado a las Antigüedades.
22
Ya lo puse de manifiesto en MORALES. Modelos de Serlio en el arte sevilla-
no, op. cit., pp. 152-153.
ALFREDO JOSÉ MOALES

Por otra parte, la habitual recurrencia al vano serliano


empleado en la Giralda para resolver la composición de los primeros
cuerpos de las grandes espadañas sevillanas de los siglos XVII y XVIII
permitiría hablar de variaciones sobre un mismo tema. De hecho,
todas repiten el esquema dintel-arco-dintel, radicando las diferencias
en el tipo de soportes que ofrecen, en la configuración de los óculos o
registros dispuestos sobre los dinteles, en la forma del cuerpo superior
o ático y en el diseño de los remates. A pesar de ello, en todos los casos
se emplean labores de azulejería, especialmente reforzando las líneas
compositivas y enriqueciendo visual y cromáticamente los órdenes
arquitectónicos, como ocurría en la torre de la catedral. La que con
mayor fidelidad sigue el esquema original es la del Convento de Santa
Clara, pues ofrece sobre los huecos adintelados laterales unos poderosos
óculos. Además de encintados y piezas en cerámica azul presenta en
su remate paneles de azulejos polícromos representando a la santa
titular del convento. Fue levantada en los años finales del siglo XVI,
interviniendo en su fábrica los maestros Juan de Vandelvira y Diego
Coronado.23 Su construcción forma parte del proceso de reformas
efectuado en el templo conventual en las últimas décadas del siglo XVI
42
y primeras del XVII en el que se incluyen el monumental pórtico de
acceso y la decoración interior, obras cuyo diseño correspondió a los
arquitectos Juan de Oviedo y Miguel de Zumárraga.24
En las restantes espadañas erigidas a lo largo del primer
cuarto del siglo se ha optado por convertir los óculos en registros
rectangulares ciegos, como ocurría en la ya comentada de Santa Isabel.
Así sucede con la del exconvento de Nuestra Señora de la Paz, cuya
traza se atribuye a Vermondo Resta. Levantada sobre un alto podio
con tres huecos rectangulares, presenta dos cuerpos, siguiendo el
inferior el esquema serliano, mientras el superior ofrece un solo hueco
entre pilastras y frontón triangular. Además de por sus encintados en
cerámica azul, destaca por las anchas pilastras del cuerpo inferior y las
originales ménsulas en forma de triglifos. La del Convento de Santa

23
Véase VALDIVIESO CONZÁLEZ, Enrique; MORALES, Alfredo J. Se-
villa Oculta. Monasterios y conventos de clausura. Sevilla: Francisco Arenas Peñuela
Ed., 1980, p. 62.
24
La noticia de la actuación de ambos maestros se debe a SANCHO CORBA-
CHO, Heliodoro. Contribución documental al estudio del arte sevillano. VV.
AA. Documentos para Historia del Arte en Andalucía. Vol. II. Sevilla, Laboratorio
de Arte, 1930, p. 316.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

Paula fue diseñada por Diego López Bueno y edificada entre 1615 y
1622 a la par que se construía una de las galerías del patio, la escalera y
la decoración interior de la iglesia.25 De elegantes proporciones, consta
de dos cuerpos y ofrece una rica decoración cerámica, en la que se
combinan las piezas monocromas en azul con los paneles policromos
en los que figura el escudo de la orden jerónima, También siguen el
esquema serliano la del Convento de la Merced, trazada por Juan de
Oviedo dentro del proyecto de renovación del conjunto monástico
iniciado en los primeros años del Seiscientos, y la del Convento de
San Clemente, erigida en 1618 conforme a las trazas elaboradas por
los ya citados Miguel de Zumárraga y Diego López Bueno.26 En
ambas espadañas tienen especial protagonismo las labores cerámicas.
La primera, que resulta más monumental, ofrece paneles policromos,
mientras la segunda es más airosa y sólo emplea piezas en azul.

43

Figura 2: Espadaña del Convento de San Clemente. Miguel de Zumárraga y


Diego López Bueno.
Foto: Alfredo J. Morales.

25
Sobre estas obras puede verse PLEGUEZUELO, Alfonso. Diego López Bue-
no: ensamblador, escultor y arquitecto. Sevilla: Diputación, 1994, p. 55-56.
26
Para la obra de Oviedo véase PÉREZ ESCOLANO, Víctor. Juan de Oviedo y
de la Bandera (1565-1625). Escultor, arquitecto e ingeniero. Sevilla, Diputación,
1977, pp. 57-60. Las noticias sobre la espadaña de San Clemente correspon-
den a ARENILLAS, Juan Antonio. Nuevos datos sobre el arquitecto Diego
López Bueno. In: Boletín del Seminario de Estudios de Arte y Arqueología. Tomo
LVIII, 1992, p. 387-388.
ALFREDO JOSÉ MOALES

Del éxito de esta fórmula compositiva son testimonio otras


dos grandes espadañas de fecha posterior. La primera corresponde a la
diseñada por Pedro Sánchez Falconete para la Iglesia del Hospital de la
Santa Caridad que no llegó a edificarse, pero cuya fisonomía se conoce
gracias a un dibujo de 1654.27 La segunda es la erigida sobre el muro de
los pies de la Iglesia del antiguo Convento de San Pablo el Real, actual
parroquia de Santa María Magdalena por Leonardo de Figueroa en
1697. En aquella el lenguaje y los ornamentos empleados son de un
clasicismo algo evolucionado, pero todavía con evidente dependencia
de las creaciones del primer tercio del siglo. Ésta es buena muestra del
triunfo del barroco, tanto por el uso de las columnas salomónicas, como
por su variado colorido, advirtiéndose en ella una nueva valoración de
los materiales constructivos y de sus posibilidades expresivas, que en
buena medida dependen del conocimiento de la obra de Hernán Ruiz
el Joven.28 Se trata de una estructura triple que no llegó a finalizarse.
Son iguales y repiten el esquema del hueco serliano las de ambos
extremos, recordando la central las soluciones de las portadas. Esta
singular y artística espadaña repite la vibrante combinación cromática
que caracteriza todo el exterior del templo. No obstante, a las labores
44 en ladrillo, piedra, barro cocido y cerámica vidriada hay que añadir las
pinturas bícromas que cubren los fustes de las columnas salomónicas.
Otras espadañas menos complejas y monumentales, tanto
construidas como solo proyectadas a lo largo del siglo XVII, son también
testimonio del interés por superar la horizontalidad característica del
caserío sevillano para adentrarse en los espacios celestiales. Así ocurre
con la erigida sobre el muro de la epístola de la Iglesia conventual
de San Antonio de Padua, cuya traza se ha relacionado con el citado
Diego López Bueno, aunque cierta documentación sobre la presencia
de Juan de Oviedo en las obras del convento ha llevado a atribuirle el
diseño completo del inmueble.29 En su composición, algo alterada y
enriquecida en el siglo XVIII por unos paneles de azulejos con motivos
florales y la imagen del titular, se emplearon pilastras toscanas con el
fuste ocupado por encintados de azulejería en azul. La misma técnica

27
El proyecto y la documentación correspondiente los di a conocer en MO-
RALES, Alfredo J. La fachada de la Iglesia de la Caridad, según un dibujo de
1654. In: Revista de Arte Sevillano, nº 3, junio 1983, p. 9-15.
28
Véase al respecto MORALES. Leonardo de Figueroa y el barroco polícro-
mo en Sevilla, op. cit., p. 196-203.
29
Así lo indica ARENILLAS. Del clasicismo al Barroco. Arquitectura sevillana del
siglo XVII, op. cit., pp. 144-145.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

se empleó en la espadaña más pequeña que se edificó a su costado en


el siglo XVIII, lo que otorga un original perfil a la cubierta del templo.
Por otra parte es preciso destacar que la composición de
los cuerpos superiores de muchas de las espadañas construidas o
proyectadas en la primera mitad del Seiscientos guardan una evidente
relación con la forma que adoptan las hornacinas centrales y los áticos
de los retablos coetáneos. Tales coincidencias se explican fácilmente
por corresponder los diseños de unas y otros a los mismos maestros,
es decir, a los arquitectos-artistas cuya actividad resultó tan decisiva
en la definición de la arquitectura sevillana del momento.30 Tampoco
pueden olvidarse las similitudes de algunas de las espadañas menores
o los remates de las más monumentales ofrecen con ciertas piezas de
la platería coetánea, especialmente con los portapaces, resueltos a la
manera de estructuras clásicas vinculadas a modelos de la tratadística
arquitectónica.31
Como ya se dijo, del mismo anhelo por encaramarse a los cielos
y por destacar sobre el caserío circundante participan las viviendas de
las clases dirigentes al enriquecerse con torreones-miradores, galerías
y buhardillas. Tales estructuras fueron más numerosas de lo que hoy
podría estimarse atendiendo a las conservadas. En una ciudad como 45
Sevilla, cuya arquitectura residencial es un continuo proceso de
construcción-destrucción, la mayoría de las viviendas nobiliarias de los
siglos XVII y XVIII han desaparecido o han resultado profundamente
alteradas. Por desgracia su derribo no puede achacarse exclusivamente
a los cambios en los gustos estéticos, pues muchas cayeron víctimas de
la feroz especulación urbana del siglo XX. Baste con repasar la relación
de edificios recogidos en el libro Arquitectura civil sevillana, para advertir
el volumen de las construcciones desaparecidas y para tener una cierta
idea de las que fueron construidas durante los siglos del Barroco.32

30
Sobre este asunto son muy clarificadoras las reflexiones planteadas por
PLEGUEZUELO, Alfonso. Arquitectura y construcción en Sevilla (1590-1630).
Sevilla: Ayuntamiento, 2000, p.38 y ss.
31
Al respecto y aunque centrado en la relación entre portapaces y tratados de
arquitectura dentro de un marco cronológico más amplio, debe mencionarse
el estudio de VARAS RIVERO, Manuel. “El lenguaje arquitectónico en los
portapaces bajoandaluces del Manierismo: la influencia de los tratados”, en
RIVAS CARMONA, Jesús (Coord.). Estudios de platería, San Eloy 2007. Murcia:
2007, p. 561-577.
32
Véase COLLANTES DE TERÁN DELORME, Francisco; GÓMEZ ES-
TERN, Luis. Arquitectura civil sevillana. Sevilla: Ayuntamiento, 1976. En la pre-
sentación del libro el entonces alcalde de la ciudad Fernando de Parias Merry
se lamentaba del legado histórico que estaba desapareciendo.
ALFREDO JOSÉ MOALES

Entre las que han sobrevivido y que cuentan con torreones-


miradores cabe señalar la que fue residencia de los marqueses de
Montefuerte, cuyo escudo de armas figura sobre el dintel de la puerta.
Conocida por los sevillanos por haber alojado durante algún tiempo la
Farmacia Militar, está situada en la calle Jesús del Gran Poder y hoy es
ocupada por una organismo de la Junta de Andalucía. Su antaño airoso
mirador, constituido por doble arcada sobre columna y flanqueado
por pilastras, aparece hoy aprisionado entre modernas construcciones.
Mejor suerte ha corrido el torreón que en posición angular posee la
monumental casa que, con fachadas a las calles Segovias y Argote de
Molina habitó el comerciante y factor de la Casa de la Contratación
de las Indias, Francisco Pinelo, que ha sido recientemente rehabilitada
para acoger un establecimiento hotelero.33 Al haberse mantenido
la escala de las construcciones inmediatas, la estructura conserva su
carácter dominante y aéreo. El aspecto que hoy ofrece no corresponde
a la etapa inicial de la fábrica, sino que parece resultado de las reformas
efectuadas en la vivienda entre 1625 y 1633, cuando pasó a propiedad
de Pedro de la Farja.
46

Figura 3: Torre-mirador. Casa en calle Segovias.


Foto: Alfredo J. Morales.

33
Sobre este inmueble hay un estudio de FALCÓN, Teodoro M. La Casa de
Jerónimo Pinelo sede de las Reales Academias Sevillanas de Buenas Letras y de Bellas Ar-
tes. Sevilla: Fundación Aparejadores y Fundación Cruzcampo, 2006, p. 20-26.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

Muy original es el torreón-mirador de una casa de la calle Carlos


Cañal que ofrece como coronamiento una peculiar versión del vano
palladiano. Esta estructura consta de un arco central de medio punto
flanqueado por pilastras y dos módulos laterales con pilastras pareadas
en los extremos, en los que se superponen vanos rectangulares y óculos.
Ciertos detalles constructivos, así como los originales capiteles de las
pilastras del torreón, permiten fechar esta construcción en el segundo
tercio del siglo XVII. No obstante, el mirador de mayores dimensiones,
desproporcionado en relación con la altura de la vivienda que corona,
pertenece a una casa de la Plaza del Cristo de Burgos, que también cuenta
con tres prominentes buhardillas sobre el faldón de su tejado. Al tratarse
de un torreón de planta rectangular ofrece dos arcadas entre parejas de
pilastras en los frentes mayores y una en los menores. Originalmente
esta estructura era diáfana y sus arcos recortaban fragmentos del cielo
y enriquecían plásticamente la estructura al originar juegos de luces y
sombras. Hoy por el contrario, al transformarse la casa en un conjunto de
apartamentos, las arquerías han sido convertidas en ventanas, alterando
su fisonomía y carácter aéreo. El edificio cuenta con una portada
adintelada con frontón recto y roto en el que se sitúa un balcón de jambas 47
molduradas y frontón curvo. Sobre la fachada avitolada y organizada en
dos plantas destacan las buhardillas antes mencionadas, que presentan
pilastras y frontón curvo. El edificio se fecha en la segunda mitad del
siglo XVII y su traza ha sido atribuida al arquitecto Pedro Romero.34
Entre las casas levantadas en el siglo XVIII que ofrecen
torres miradores destaca la construida por el almirante Manuel López-
Almonacid Pintado frente a la Iglesia de Santiago. El inmueble ha
sido recientemente transformado para acoger un establecimiento
hotelero. Entre los títulos nobiliarios vinculados a la familia propietaria
destacan el de marqueses de Torreblanca del Aljarafe, de Casa Estrada
y de Villapanés, habiendo sido éste con el que habitualmente se ha
conocido la casa. El blasón familiar aparece sobre el dintel de la puerta
de ingreso que es adintelada y presenta grandes moldurones mixtilíneos
y altas orejetas. El edificio presenta amplia fachada de ladrillo avitolado
ordenada en dos plantas y rematada por azotea, ofreciendo en el
extremo frontero a la iglesia una torre-mirador con dobles arcos sobre

34
FALCÓN, Teodoro M. Casas sevillanas desde la Edad Media hasta el Barroco.
Sevilla: Maratania, 2012, pp. 121,
ALFREDO JOSÉ MOALES

columnas en cada frente. Sus características formales y las molduras


mixtilíneas de la portada y el balcón central permitieron datar su
construcción en el primer tercio del siglo Setecientos.35 En fecha
reciente se ha podido documentar que el edificio se encontraba en obras
en 1729 y debido a ciertos paralelismos formales se ha atribuido su
diseño al arquitecto Diego Antonio Díaz.36 Gran elegancia y cuidadas
proporciones, aunque menor tamaño presenta la casa también del siglo
XVIII situada en la Plaza de San Martín. Su fachada principal tiene dos
plantas rematadas en azotea y ofrece en los extremos dos miradores de
doble arcada sobre columna de mármol, de los cuales el de la derecha
se prolonga por la calle Morgado, en la que la vivienda tiene su fachada
lateral.
Las buhardillas sobre la crujía de fachada de las casas sevillanas
empiezan a generalizarse a comienzos del siglo XVII. Destinadas a
iluminar los sobrados y dependencias bajo cubiertas, fueron también
elementos propicios para manifestar la posición social y nobleza de los
propietarios de la vivienda. Por eso no debe extrañar el protagonismo
que poseen las grandes buhardillas existentes en la cubierta del Palacio de
48 Altamira, que perteneció al linaje de los marqueses de Villamanrique.37
Fueron levantadas posiblemente con diseño de Cristóbal Ortiz,
maestro mayor de obras del arzobispado, en torno a 1639.38
En relación con la presencia de galerías en la planta superior
de las viviendas cabe mencionar la que presenta una casa en la calle
Zaragoza integrada por siete huecos dispuestos entre pilastras, que
aparecen agrupadas en número de tres en los límites de la fachada.
Recientemente los arcos han sido transformados en ventanas perdiendo
su carácter diáfano. Tal solución se ha seguido en otras viviendas de
fecha posterior en las que existían amplias galerías en los remates de
las fachadas. Es el caso de la casa existente en la Alameda de Hércules

35
COLLANTES DE TERÁN DELORME, Francisco; GÓMEZ ESTERN,
Luis. Arquitectura civil sevillana, op. cit., p. 397.
36
El estudio y atribución se deben a FALCÓN. Casas sevillanas desde la Edad
Media hasta el Barroco, op. cit., p. 148-153.
37
En fecha reciente y para ennoblecer un establecimiento hotelero se ha le-
vantado una torre-mirador a imitación de las antiguas en una vivienda inme-
diata al Palacio de Altamira, que nada tiene que ver con la fábrica de dicha
residencia.
38
Véase ARENILLAS. Del clasicismo al Barroco. Arquitectura sevillana del siglo
XVII, op. cit., p. 104-105.
ARQUITECTURAS AÉREAS: CAMPANARIOS, ESPADAÑAS Y MIRADORES...

que aparece fechada en las pilastras que articulan los cinco huecos de
su galería en 1698 y la que, datada en 1725 sobre el dintel de la puerta,
se localiza en la calle Muñoz y Pabón y cuya galería está integrada por
ocho vanos de desiguales proporciones. La casa fue mandada edificar
por don Nicolás María Villa, personaje acaudalado y muy vinculado por
fundaciones y dotaciones a la cercana Iglesia parroquial de San Nicolás
y a su Hermandad Sacramental. El edificio ha sido reformado en
diferentes momentos históricos, destacando las obras realizadas entre
1938 y 1939 por el arquitecto Juan Talavera y Heredia cuando residió
en ella. Además debe indicarse que fueron segregadas del conjunto
diversas fincas a ambos lados y en la parte trasera39. Durante las obras
efectuadas en el inmueble en fecha reciente se eliminaron las pinturas
murales que cubrían la fachada que simulaban una labor de sillares. En
la actualidad el paramento aparece pintado en color ocre, habiéndose
resaltado con pintura rojiza algunos de los elementos arquitectónicos.

49

Figura 4: Galería. Casa en calle Muñoz y Pabón.


Foto: Alfredo J. Morales

Estos últimos ejemplos, junto a otros que por razones de


espacio no han podido ser reseñados, ponen de manifiesto el interés
de las clases dirigentes de la sociedad sevillana de los siglos del Barroco

39
La información corresponde a FALCÓN. Casas sevillanas desde la Edad Media
hasta el Barroco, op. cit. p. 146.
ALFREDO JOSÉ MOALES

por hacer sobresalir sus viviendas sobre la dominante horizontalidad del


caserío, a fin de demostrar su rango y superioridad. Tales estructuras,
unidas a las prominentes espadañas y esbeltos campanarios crearon unas
arquitecturas celestes que determinaron el perfil de la ciudad histórica,
en el que siempre destacó la inalcanzable altura de la Giralda.

50
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

Capítulo 3

O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA


EM SÃO FRANCISCO DE ASSIS DE OURO PRETO, ESTADO
DE MINAS GERAIS, BRASIL

André G.D. Dangelo

Antônio Francisco Lisboa nasceu provavelmente no ano de


1738 em Vila Rica. Mulato, era filho bastardo de um dos mais importan-
tes empreiteiros da primeira metade do século, Manoel Francisco Lis-
boa que, por formação era carpinteiro, mas em Minas também atuou
como arrematante de obras públicas e privadas, perito de construção e
arquiteto. Aleijadinho, como artista, foi o principal herdeiro da corren-
te mais criativa da arquitetura setecentista mineira, ligada, tanto à obra 51
arquitetônica de gosto italiano, idealizada pelo Dr. Antônio Pereira de
Souza Calheiros, como ao talento para a desenho assimétrico de gosto
francês, introduzido em Minas pelo o abridor de cunhos de Vila Rica,
João Gomes Baptista
Segundo os dados que constam no trabalho de 1858 de Rodrigo
Bretas – o primeiro biógrafo de Antônio Francisco Lisboa – Manoel
Francisco Lisboa, seu pai, desde cedo o encaminhou para o ofício de
entalhador, carpinteiro e arquiteto, tendo assim a oportunidade de vi-
venciar o mundo e as transformações do meio da arquitetura e da cons-
trução nas Minas setecentistas desde a mais tenra idade. Outras versões
de sua vida, como a do Vereador Segundo de Mariana, nos seus Fatos
Notáveis da Capitania, de 1790, apontam como partícipe da sua formação
dos trabalhos do abridor de cunhos de Vila Rica, João Gomes Baptista,
como seu mestre de risco e desenho, e de quem teria herdado o gosto
pela heráldica e pela assimetria do Rococó francês, presente em muitos
de seus trabalhos. Outros críticos apontam, ainda, a influência de Fran-
cisco Xavier de Brito e de José Coelho de Noronha, com quem segundo
ANDRÉ G. D. DANGELO

Bazin, iniciou-se na vida profissional de escultor e carpinteiro na Matriz


de Caeté1.
Na prática, entretanto, ainda que oficial competente e docu-
mentado profissionalmente, atuando ao lado dos mais brilhantes mes-
tres portugueses nas mais importantes obras da segunda metade do
século XVIII, como perito, arquiteto e escultor – Antônio Francisco
Lisboa não era um empreiteiro como seu pai. Seu perfil era, principal-
mente, o de um homem de criação, que combinava os dons do escultor
e do ornamentista com os princípios da composição e do desenho de
arquitetura. Dentro das condicionantes econômicas, culturais e sociais
do seu tempo, sofrendo a infâmia de mulato, trabalhava, em geral, para
os empreiteiros portugueses, que eram os principais arrematantes das
grandes obras de construção. Na sua carreira artística, nunca entrou em
concorrências abertas para empreitadas do seu ofício, como também
nunca apareceu registrado documentalmente como Juiz de Ofício, em-
bora para isso não lhe faltasse competência, como atesta a documen-
tação existente das importantes obras em que trabalhou ao longo da
sua carreira. Como já tinha indicado Rodrigo Bretas (1951), Antônio
Francisco Lisboa, atuava em geral por ajuste direto2 em obras ligadas ao
seu ofício de escultor e carpinteiro, ou sub-contratado em arrematações
52
feitas por terceiros.
Especificamente no meio da construção civil, esteve somente
ligado ao problema da criação, ou seja, da arquitetura, nunca exercendo
o ofício de pedreiro ou construtor. Exercia apenas a parte intelectual da
obra ligada ao “projeto” e que, por isso, dentro de uma cultura domi-
nada como vimos pela primazia da “fábrica”3, ou do fazer do dia a dia

1
De acordo com Germain Bazin, na sua obra clássica sobre o Aleijadinho,
deve-se, possivelmente, a Coelho de Noronha, a implantação do novo gosto
artístico na capitania. A relação entre José Coelho de Noronha e Antônio
Francisco Lisboa, pode ser evidenciada se pensarmos que ele inicia sua obra
de talha em Minas nas obras da Matriz de Caeté (riscada por Manoel Francisco
Lisboa), mais especificamente nos retábulos laterais, e de arquiteto em São
João Batista do Morro Grande, riscada por ele em 1763 em reforma ao risco
de Noronha. In: BAZIN, Germain, O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil,
Ed. Record, Rio de Janeiro, 1971.
2
Segundo Rodrigo Bretas no texto fundador do estudo sobre a obra do Alei-
jadinho intitulado: ‘Traços Biográficos relativos ao finado Antonio Francisco
Lisboa”, publicado em 1858: “Antônio Francisco trabalhava a jornal de meia
oitava de ouro por dia” In: BAZIN, Germain, O Aleijadinho e a Escultura Barro-
ca no Brasil, Ed. Record, Rio de Janeiro, 1971.
3
Termo português do século XVIII para designar quem tinha lastro econômi-
co para arrematar construções ou usado para designar a valorização do profis-
sional que faz a obra. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino:
aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
Jesu, 1712 - 1728. 8 v.
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

do canteiro, seria uma função secundária e pouco valorizada, por isso


sempre propensa a constantes modificações de ordem projetual. Essa
questão, entretanto, dentro da cultura artística do século XVIII mineiro,
não era só um problema da arquitetura, mas de qualquer oficial que
trabalhasse com qualquer tipo de projeto ligado à criação. Essa condi-
ção, entretanto, em nenhum momento, ao contrário do que propunham
alguns estudos modernistas, foi motivo de constrangimento para Antô-
nio Francisco Lisboa, pois era uma condição aceita como natural dentro
do meio cultural arquitetônico, que predominou durante todo o século
XVIII no mundo luso-brasileiro4.
Como arquiteto, a maioria dos estudos existentes concorda que
sua carreira inicia-se na Igreja Matriz do Morro Grande, em Barão de
Cocais, por volta de 1763, onde Antônio Francisco Lisboa prenuncia seu
talento como arquiteto, corrigindo o risco de seu provável mestre, José
Coelho de Noronha5, a partir na rotação das torres a 45o, colocando-as
em posição diagonal em relação ao corpo central6. Essa solução, entre-

4
Ele mesmo modificou, em 1777, os planos iniciais da fachada de São Fran-
cisco de Ouro Preto, introduzindo a portada atual em pedra-sabão e fechando
as duas portas laterais do frontispício. Nesta reforma também alterou o dese- 53
nho das sineiras, copiados do seu projeto feito para os Franciscanos de São
João del-Rei. Nessa última igreja, embora seus projetos tenham sido bastante
modificados por um risco posterior de Francisco de Lima Cerqueira, ele não
se negou a contribuir com novos riscos para a escultura da portada, para a
capela-mor e, pelo menos, para a execução dos dois altares do cruzeiro e dos
dois púlpitos.
5
Segundo documentos transcritos por Germain Bazin na sua obra dedicada
ao estudo do “Barroco no Brasil” , no Livro de Receita e Despesa da Irman-
dade do Santíssimo Sacramento de Morro Grande (atual Barão de Cocais) em
1762 aparece efetuado um pagamento a José Coelho de Noronha pelo projeto
inicial da igreja do Morro Grande: “P. Ouro que paguei a José Coelho de Noronha
pelo Risco que fez para Ig. Nova – 50/8/as”. A obra do entalhador José Coelho de
Noronha, ainda está para ser estudada mais detalhadamente, sendo que mais
recentemente a Prof. Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira têm pesquisado so-
bre o artista, tendendo a lhe atribuir a famosa talha Joanina da Capela-Mor da
Matriz do Pilar de São João del-Rei. Como arquiteto, só conhecemos essa do-
cumentação sobre a atuação de Coelho de Noronha. Acreditamos entretanto,
diante das novidades volumétricas empreendidas na sacristia e Capela-mor da
Matriz de Caeté onde tudo indica trabalhavam José Coelho de Noronha – res-
ponsável pela talha do Altar-mor e seu oficial Antônio Francisco Lisboa – que
o contato profissional dos dois artistas, pode ter sido bastante proveitoso para
o jovem arquiteto, que aproveitou as ideias empreendidas na matriz de Caeté
e na do Morro Grande em alguns dos seus projetos futuros.
6
“O aumento da arte se afigura de sorte que a matriz de Caethé feita por António Gon-
çalves Barcarena, debaixo do risco do sobredito Lisboa cede nas decorações e medidas à
matriz de Morro Grande, delineada por seu filho Antonio Francisco Lisboa, quanto este
homen se excede mesmo no desenho da indicada igreja do Rio das Mortes em que se reúnem
as maiores esperanças.” (SILVA, apud BAZIN, 1983, v.1, p.382) In: BAZIN, Ger-
main. O Barroco no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1983. 2v.
ANDRÉ G. D. DANGELO

tanto, ainda que criativa, ao contrário do que queriam ver os estudos


modernistas, não é algo extremamente original. Sabe-se hoje, que era
muito utilizada nos modelos planimétricos presentes na tratadística ar-
quitetônica do Tardo Barroco internacional, em voga no período, e por
isso presentes em soluções utilizadas na Bahia, em Portugal e na Repú-
blica Tcheca7. Essa intenção projetual, no entanto, demonstra que desde
jovem, Antônio Francisco Lisboa estava atualizado com o que se fazia
fora de Minas e demonstra claramente que o jovem arquiteto carregava
desde cedo consigo, o gosto pela experimentação e o descontentamen-
to com valores consolidados. Esses dois valores imporiam ao longo de
sua carreira, um estilo próprio, que seria imitado dentro da arquitetura,
da talha e da escultura da segunda metade do século XVIII em Minas
Gerais por uma “escola”8, chegando mesmo a formar um estilo como
sugeriu John Bury9.
Sobre as relações do Aleijadinho com José Coelho de Noro-
nha, na verdade, como já salientamos, até pouco tempo atrás, pouco se
sabia da carreira desse importante Mestre lisboeta, entalhador, riscador
54
e possivelmente também arquiteto, e menos ainda, sobre as influências
que esse contato, podem ter trazido no campo da arquitetura, ao jovem
Antônio Francisco Lisboa. Considerando que a crítica especializada tem
neste artífice, um dos introdutores da modernização do gosto na ca-
pitania10, talvez se explique que desde cedo, Antônio Francisco Lisboa
sempre tenha tido uma predileção pelas novas linguagens artísticas. A
utilização no projeto da Matriz do Morro Grande de alguns dos primei-

7
Ver também proximidade de soluções planimétricas de plantas e fachadas
das seguintes igrejas: Nossa Senhora da Conceição da Praia, Salvador (1733),
Santuário do Senhor Bom Jesus da Pedra, em Óbidos (1740) e Nossa Senhora
da Piedade, em Elvas (1753), ambos em Portugal, e Santa Margarida de Sonov
(1737) e São João das Rochas, em Praga (1730), ambas na República Tcheca.
8
A imitação ou utilização de modelos conhecidos e bem aceitos como corre-
tos e de boa fatura dentro dos princípios artísticos em voga era procedimento
comum na arte do século XVIII em Portugal, no Brasil e em Minas, como já
foi estudado por diversos especialistas da área.
9
Sobre essa classificação ver o já citado artigo de Jonh Bury: BURY, John. O
Estilo “Aleijadinho” e as Igrejas Setecentistas Brasileiras. In: Arquitetura e arte
no Brasil colonial. São Paulo: Nobel, 1991.
10
Segundo as palavras do manuscrito de 1790 do Vereador de Mariana: “O
gôsto gótico de alguns retábulos transferidos dos primeiros alpendres e nichos
da Piedade já tinham sido emendado pelo escultor José Coelho de Noronha…”
in: Revista SPHAN, nº15, 1951. Edições da Revista do SPHAN/MEC.
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

ros elementos escultórico-ornamentais aplicados sobre uma fachada em


Minas, somados à lembrança, que as primeiras torres chanfradas em Mi-
nas, aparecerem no projeto da Matriz de Caeté, apenas uma década após
serem utilizadas em Portugal11, reafirmam as nossas convicções sobre
a vitalidade e a rapidez da circularidade cultural de modelos artísticos e
arquitetônicos na região das Minas no início da segunda metade do sé-
culo XVIII. Coincidentemente, esses se vinculam onde trabalha o jovem
arquiteto que, poucos anos mais tarde, irá propor para os Franciscanos
de Ouro Preto um dos riscos mais revolucionários do Barroco luso-
-brasileiro. A vinculação de Antônio Francisco Lisboa com seu primeiro
projeto na Matriz do Morro Grande, nos faz pensar que realmente esse
projeto foi um marco importante na sua carreira profissional, pois jamais
foi abandonado pelo arquiteto. Sabemos, inclusive documentalmente,
que ele já mestre consagrado, ainda está presente para uma louvação na
Matriz do Morro Grande a 24 de julho de 1785, como representante do
arrematante Miguel Gonçalves de Oliveira.
Do ponto de vista da análise crítica, podemos ainda dizer sobre
o frontispicio ao qual interviu o Aleijadinho na juventude, que a relação 55
de proporção das torres e do entablamento frente ao corpo do frontis-
pício parece mais uma prova evidente do talento e do eruditismo do jo-
vem arquiteto. Infelizmente, o projeto foi bastante alterado na parte su-
perior do frontispício, construída lentamente ao longo do século XIX,
ao que parece, fora do espírito do risco original de 1763, que deveria
dar continuidade na parate superior das torres-sineiras, ao movimento
e dinâmica impostos no primeiro tramo. A capela-mor original também
foi demolida em 1789 e erguida em seu lugar outra provisória12, que
terminou por descaracterizar definitivamente a espacialidade da igreja
que hoje vive mais como um elo ligado ao estudo dos primeiros anos
do Aleijadinho como arquiteto.
Depois desse primeiro período de vida profissional, apenas três
anos vão se passar, para vermos novamente o nome de Antônio Fran-
cisco Lisboa como arquiteto, (ligado por atribuição), à fatura de um dos
mais emblemáticos edifícios tardo-barrocos do mundo luso-brasileiros,

Pesquisar igreja de Nossa Senhora da Lapa de 1756, em Extremoz.


11

Guia dos Bens Tombados: Minas Gerais/ coordenação e pesquisa prof.


12

Wladimir Alves de Souza. Rio de Janeiro: Ed. Expressão e Cultura, 1983, p.8.
ANDRÉ G. D. DANGELO

que é a igreja de São Francisco de Ouro Preto. Para o estudo mais crite-
rioso dessa atribuição, lembramos inicialmente, que a maioria dos estu-
dos referentes à produção da arquitetura e da arte religiosa setecentista
mineira historicamente tem tido como fonte primária os já comentados
manuscritos do Relato dos fatos notáveis da Capitania13, escrito em 1790 pelo
Vereador Segundo da Câmara de Mariana, Capitão Joaquim José da Sil-
va, e o estudo clássico de Rodrigo José Ferreira Bretas intitulado Traços
biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa14, publicado
pela primeira vez em 1858 na Revista do Instituto Histórico e Geográfi-
co Brasileiro. Esse último documento afirma categoricamente ser a au-
toria do projeto de São Francisco de Ouro Preto de Antônio Francisco
Lisboa. Diz Rodrigo Bretas sobre esse tema em 1858:
[...] Entrando-se agora na apreciação do mérito
do – Aleijadinho – como escultor e entalhador,
tanto quanto pode fazê-lo quem não é profissio-
nal na matéria, e somente à vista das obras que
deixou na capela de São Francisco de Assis desta
cidade, cuja planta é sua [...]15

56 Do ponto de vista da análise crítica sobre esse polêmico proje-


to, consideramos que o ponto de partida para a concepção desse edifício
certamente foi a influência exercida sobre Antônio Francisco Lisboa,
pelos valores da planimetria da arquitetura barroca, utilizados anterior-
mente, com excelente resultado, na Igreja do Rosário em Ouro Preto.
Se voltarmos ao projeto de São Francisco, podemos verificar que a ideia
das torres redondas e o bombeamento do frontispício frente à essas úl-
timas, já tinha sido experimentado neste mesmo edifício e em São Pedro
de Mariana desde 1753 pelo Dr. Antônio Pereira de Souza Calheiros.
Dentro deste contexto, no nosso modo de ver, é preciso compreender
a importância desses dois edifícios para a construção da segunda fase
da obra arquitetônica do Aleijadinho que aparece bastante influenciada
pelos cânones do repertório do Barroco Italiano, sob a influência inicial
dos modelos de Borromini e Pozzo ,sem contudo perder ainda o con-

13
BAZIN, Germain. O Barroco no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1983. 2v.
14
Ver Rodrigo José Ferreira Bretas: Traços Biográficos Relativos ao Finado Antônio
Francisco Lisboa, 1858.
15
Ver Rodrigo José Ferreira Bretas: Traços Biográficos Relativos ao Finado Antônio
Francisco Lisboa, 1858.
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

tado com grande parte da estrutura funcional herdada das tradições da


igreja ouropretana com programa estruturado com torres-laterais, nave
articulada com capela-mor através de arco do cruzeiro, corredores, tri-
bunas, sacristia e consistório ao fundo.

57

Figura 1: Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto,


Antônio Francisco Lisboa, 1766.
Foto: André Dangelo, 1997.

No entanto, existem no risco de São Francisco de Ouro Preto,


uma relação à ideia do Rosário de Ouro Preto, de quase 13 anos atrás.
Surgem nesse projeto, vários novos elementos aplicados, que vão apa-
recer com uma certa constância na obra de Antônio Francisco Lisboa a
partir desse período. Essas novidades estão diretamente ligadas ao nosso
ANDRÉ G. D. DANGELO

modo de entender do ponto de vista decorativo a influência das estam-


pas Rococó e arquitetônico ao estudo e conhecimento das regras de
perspectiva do tratado barroco do Jesuíta Andrea Pozzo, sem descon-
siderar, no entanto, as lições mais presentes nos tratados maneiristas de
Scamozzi, Serlio e Vignola. Essa influência “clássica” derivada desses
dois últimos tratados foi notada, inclusive, pelo próprio Germain Bazin
que, pelo que parece, não quis abrir essa possibilidade de influência em
suas análises em função de sua vinculação com os ideais modernos do
IPHAN. Segundo suas palavras:

Erguida de um só fôlego, São Francisco, de Ouro


Preto, surge-nos num estilo mais clássico que o
Carmo [da mesma Ouro Preto], tal como ficou
depois das modificações que lhe foram introdu-
zidas em 1770-1771[e também atribuídas ao pró-
prio Aleijadinho]. As fachadas laterais são bastan-
te sóbrias e dão muito o que pensar com relação
a essa revivescência do Renascimento português
que se manifestou em Braga sob o episcopado
de dom Rodrigo de Moura Teles (1704-1728): as
janelas retangulares profundamente alargadas da
58 nave, as gárgulas em forma de cano de canhão no
frontispício, as pilastras jônicas da sacristia, os ar-
cos em plena abóbada sobre simples imposta das
sacadas da capela-mor, estas mesmas sacadas que
nos fazem lembrar o Carmo, de Olinda, traçada
no final do século XVI.16

Esse conflito de um arquiteto, que por um lado adota, talvez


pela tradição da formação ao gosto português, a tratadística clássica
de Serlio, e que por outro parece encantado com a movimentação das
curvas e contra-curvas, bem ao estilo de Borromini, contidas nas pers-
pectivas do tratado de Pozzo, como podemos ver na análise do objeto
arquitetônico, está diretamente refletido no descompasso formal entre
“tradição e invenção”, que fragmenta de certa maneira a planimetria da
nave, capela-mor e sacristia (concebidas sobre uma linguagem mais por-
tuguesa) e a magnífica solução formal para o frontispício (concebido
sobre a influência italiana). Ou seja, segue-se de perto o esquema funcio-
nal da planimetria herdada da tradição ouropretana das matrizes – ainda

BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil. Rio de Janeiro:


16

Ed. Record, 1971, p. 142-143.


O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

que com modificações criativas, como o aparecimento dos terraços late-


rais em torno do segundo pavimento da capela-mor – mas concentra-se
magistralmente na fachada, em conseguir tirar partido dos princípios
compositivos do Barroco italiano, embora não tenha abandonado o gos-
to nacional do uso das torres nas laterais ao frontispício, desenvolvida
a partir dos modelos Jesuítas. Essa dicotomia também pode ser vista
na diferença estilística entre os desenhos elegantes e “modernos” das
janelas da capela-mor e o desenho conservador utilizado nas portas e
janelas do edifício, ao gosto da tradição do início da segunda metade do
século XVIII. Essas janelas ou ócolos da capella mor, como aparecem nas
condições da arrematação e dos quais felizmente ainda existem os dese-
nhos do projeto original17, demonstram bem a criatividade e momento
de transição de linguagem artística e arquitetônica que vive o arquiteto
de São Francisco. Temos nesse projeto os primeiros modelos de vidra-
ças ou óculos que rompem com o padrão “clássico”, em busca de uma
maior liberdade formal e talvez mais uma herança dos tempos de traba-
lho na Matriz de Caeté. Essa liberdade, aliás, terá grande êxito a partir
dessa data e será utilizada pela maioria dos arquitetos e construtores 59
atuando em Minas na segunda metade do século XVIII.

17
O projeto arquitetônico original de São Francisco de Ouro Preto, existiu
nos arquivos da Ordem até pelo menos até 1910. Joaquim Furtado de Mene-
ses, que escreveu em 1911 o Livro Bicentenário de Ouro Preto em carta oficial
em resposta ao Ofício do IPHAN que averiguava o desaparecimento desses
documentos em 1939 assim se pronunciou sobre o fato: “Tenho presente o
ofício de V. Ex. N. 20, de 12 do corrente, e demorei-me a responde-lo no in-
tento de dar tempo a minha memória para recordar-se de fatos passados há 14
anos e assim poder eu responder seu questionário com segurança maior. Nem
assim consegui lembrar-me bem da planta que apenas passou ligeiramente por
minhas mãos: A) Lembro-me que se tratava de um ou dois cortes traçados em
um papel grosso, de maior dimensão inferior a 50 cm e de forma retangular.
Data de todo não me recordo se tinha, porém certamente tinha assinatura,
porque, do contrário, não a terio aceito como do Aleijadinho. B) A planta foi
me mostrada não sei por quem em 1910, quando procurava apressadamente,
pois que só dispus de 17 dias, documentados para escrever a minha memória
para o Livro do Bicentenário de Ouro Preto. Em 1913, encarregado de ar-
ranjar objetos para a Exposição de Arte Sacra, a realizar-se no Rio de Janeiro,
pedi e me emprestaram a planta, que, com outros objetos, reneti a Frei Pedro
Sinzig, no Convento de Santo Antônio. Com a grande guerra não se realizou
a Exposição e Frei Pedro foi para a Europa. Em vão procurei os objetos que
enviara e dos mesmos não consegui mais ter notícias. Sei que chegaram a seu
destino, porque no folheto de propaganda da Exposição saiu a fotografia de
um quadro que foi juntamente com os outros objetos constituindo um só
volume...”
ANDRÉ G. D. DANGELO

O crítico Christian Norberg-Schulz faz uma análise do uso des-


te mesmo tipo de janela na produção da arquitetura religiosa da Euro-
pa Central durante o século XVIII, assim manifestando-se: “A forma
sinuosa foi introduzida por Guarini e utilizada esporadicamente por
Fischer von Erlach, Hildebrandt y Prandtauer”.18 Neste sentido, nova-
mente abrimos a possibilidade efetiva, frente à coincidência de formas
dessas janelas nas soluções mineiras e centro-européias, durante o século
XVIII, de ter de unir a semelhança dessas soluções a uma tratadística
comum. Dentre essas, Norberg-Schulz aponta como a mais provável o
uso do tratado Architettura Civile de Guarino Guarini, opinião com a qual
concordamos, primeiramente porque esse tratado foi localizado por Ni-
reu Cavalcanti (2004) como em uso no Rio de Janeiro19. Em segundo
lugar, pela frequência e influência que os perfis em forma de “besta”, tão
utilizados na planimetria das fachadas de Guarini, vão ser utilizados na
talha e na arquitetura religiosa de Minas a partir de 1770.

18
La forma de casulla habiá sido introducida por Guarini y fue utilizada es-
60 porádicamente por Fischer von Erlach , Hildebrandt y Prandtauer in: NOR-
BERG-SCHULZ, Christian. Kilian Ignaz Dientzenhofer y el barroco Bohemio. Bar-
celona: Ed. Oikos-tau, 1993. 390p. (Ttradução nossa).
19
Lista dos Tratados em Circulação no Rio de Janeiro durante o século XVIII,
segundo CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. A vida e a constru-
ção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Jorge Zahar Editor ,
Rio de Janeiro 2004 in CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. A
vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte.
Jorge Zahar Editor , Rio de Janeiro 2004.: ALBERTI, Leon Battista. De re
aedificatoria libri decem, ALPOIM, José Fernandes Pinto. Exame de Artilheiros
(1744), ALPOIM, José Fernandes Pinto. Exame de Bombeiro (1748), BLON-
DEL, Jacques-François. Cours d´Architecture, BORROMINI, Francesco. Opus
Architectonicum... cioè l´Oratorio e la Fabbrica per l´Abitazione dei PP. del Oratório di
San Filippo Neri, a cura di S. Giannini. Roma (1725), COSTA, Padre António da
Annunciaçam da. Estampas (1733), FORTES, Manuel de Azevedo. Engenheiro
Português (1728), GALLI BIBIENA, Ferdinando. L´Architettura Civile, preparata
su la Geometria e ridotta alle Prospettive. Parma, Paolo Monti (1711), GUARINI,
Guarino. De la Architettura Civile. Turim, F. Vittone (1737), PALLADIO, An-
drea. Quattro Libri dell´Architettura. Veneza, Domenico de Franceschi (1570),
PIMENTEL, Luís Serrão. Método Lusitano de Desenhar as Fortificações das Praças
Regulares e Irregulares (1680), POZZO, Andrea. Perspectivae Pictorum atque Archi-
tectorum. Roma, J. J. Komarek (1693-1702). 2v., SCAMOZZI, Vincenzo. L´Idea
dell´Architettura Universale. Divisa in X Libri. Veneza, Giorgio Valentin (1615),
SERLIO BOLOGNESE, Sebastiano. L´Architettura. Veneza, Marcolini da
Forli (1537-1551), VASCONCELLOS, Padre Inácio da Piedade. Artefactos
Symmetricos, e Geométricos, Advertidos, e Descobertos pela Industriosa Perfeição das Ar-
tes, Esculturária, Arquitectónica, e da Pintura. VIGNOLA, Giacomo Barozzi da.
Regola delli Cinque Ordine d´Architettura. Roma, G. B. de Rossi (1617), VITRU-
VIO, Marcus Lucius. Dez Livros de arquitetura. Tradução espanhola de 1680.
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

61

Figura 2: Hipótese de traçado regulador para o projeto da fachada da Igreja da


Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto, Antônio Francisco
Lisboa, 1766.
Autoria da imagem: André Dangelo.

Neste sentido, ainda que sendo verdade que a solução arquite-


tônica de São Francisco de Ouro Preto, foi elaborada sob a influência
de linguagens distintas, podendo ser considerada, como querem alguns
críticos, como um objeto arquitetônico de transição entre o Barroco e
o Rococó em Minas20. Essas características não invalidam do ponto de

20
Se voltarmos ao estudo da proposta original de 1766, podemos notar que
sem as intervenções ornamentais ligadas ao Rococó introduzidas em 1777
numa operação que selou as portas laterais e criou a portada monumental, o
projeto tinha bem mais afinidades com o Rosário de Ouro Preto e com suas
condicionantes arquitetônicas de um Barroco mais puro que faz a transição da
arquitetura maneirista para o novo estilo.
ANDRÉ G. D. DANGELO

vista da apreciação estética, nem o edifício e nem o talento do arquiteto,


que através das soluções de proporção e equilíbrio utilizadas para o edi-
fício, como notou Sylvio de Vasconcellos, confirmou nossos próprios
estudos. Sobre a maturidade da composição volumétrica, a relação cons-
truída entre as partes integrantes do programa formal (torres, nave e ca-
pela-mor e sacristia) demonstra também um conhecimento maduro na
busca da relação edifício-paisagem que tanto será trabalhada pela escola
dos arquitetos e construtores do Barroco Mineiro. Por outro lado, é im-
portante salientar que é exatamente a qualidade intelectual desse projeto,
expresso no tratamento dos mínimos detalhes desse edifício, que afasta
esse arquiteto da velha escola da “fábrica”, ligada à tradição da cultura
arquitetônica do mundo português, e o une a algo novo, que está sendo
gerado no ambiente híbrido das Minas. É algo que está em construção a
partir da segunda metade do século XVIII e que se alicerça na busca de
um caminho de maior invenção e criatividade sem, no entanto, romper
por inteiro com os pilares da matriz funcional da tradição arquitetônica
mineira. Ainda sobre a erudição do arquiteto de São Francisco de Ouro
62
Preto, o professor e pesquisador Rodrigo Baeta21 (2003) foi quem pri-
meiro salientou o fundamental conhecimento de perspectiva aplicado à
concepção da movimentação do frontispício dessa obra. Nota o pesqui-
sador, ao analisar o risco do frontispício em verdadeira grandeza, feito
por Paulo F. Santos (1951)22, como as torres parecem desproporcionais e
o frontispício perde a sua proporção e leveza, quando analisada no risco
elaborado da fachada. Nesse sentido, podemos deduzir o quanto o ar-
quiteto teve que se esforçar para buscar uma proporção irreal na planta,
mas que através do efeito ótico da perspectiva (ou seja, da maneira que
o olho veria o objeto arquitetônico) ficaria harmônico e proporcional.
As qualidades formais do projeto de São Francisco podem ser
notadas de maneira mais fácil para o leigo, principalmente quando olha-
mos a igreja de perfil. Nesse plano, vê-se mais ainda o esforço que o ar-

21
BAETA, Rodrigo E. O Barroco, a arquitetura e a cidade nos séculos XVII e XVIII.
Salvador: Ed. Edufba, 2003.
22
SANTOS, Paulo F. Subsídios para o estudo da arquitetura religiosa em Ouro Preto.
Rio de Janeiro: Kosmos, 1951.
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

quiteto teve para dispor de maneira diferenciada as partes volumétricas


do edifício de forma que elas tivessem identidade formal própria, mas
também um sentido de unidade. Para a construção desse efeito formal,
foi preciso, principalmente, tirar partido da utilização da inversão e dife-
renciação de leituras das linhas das cumeeiras, como também do estudo
cuidadoso da inserção volumétrica entre os telhados. A complexidade
dessa elaboração dos planos de telhado, preferindo o arquiteto trabalhar
com mais beirais e tacaniças, utilizando a empena tradicional somente
na frente do edifício e de maneira também inédita e complexa, torna
essa solução de cobertura definitivamente mais um elemento que rompe
tanto com a tradição portuguesa como com a brasileira. Certamente,
para o acerto geométrico dessas interseções de volumes, feitas entre os
telhados, conhecimentos eruditos de Estereometria e Geometria Des-
critiva demonstram mais uma vez o conhecimento pleno de Geometria
pelo arquiteto autor do projeto e talvez alguma informação sobre a Igre-
ja de Santo Estevão da Alfama, do arquiteto joanino Manoel da Costa
Negreiros (1702-1750). Esse tem muitas afinidades com esse projeto,
63
principalmente o púlpito colocado nas ilhargas do arco do cruzeiro, o
que dá muito o que pensar sobre o problema de uma criatividade isolada
neste período.
Bazin, em sua análise, salienta, principalmente e de maneira cor-
reta, a proporção linear das partes do edifício e a intenção ainda imatura
de desconstrução volumétrica do mesmo, a fim de valorizar a entrada de
luz na capela-mor e movimentar a volumetria do corpo da igreja, sacri-
ficando o mínimo possível o esquema funcional:
O modernismo do edifício traduz-se melhor na
planta, tornada mais elegante pela supressão dos
corredores da nave, por uma integração melhor
dos da capela-mor ao conjunto, pela incorpo-
ração das torres que, em projeção lateral muito
pronunciada,no Carmo, fecham-se para trás no
corpo da igreja de São Francisco, projetando-lhe
o frontispício [...].23

23
BAZIN. O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil, p. 143.
ANDRÉ G. D. DANGELO

Neste sentido, temos, pela primeira vez dentro da tradição da


cultura arquitetônica luso-brasileira, um monumento que aparece trata-
do por inteiro arquitetonicamente falando e não mais como uma edifi-
cação de volumetria tradicional, onde o frontispício era modernizado
com aplicações escultóricas de ordem apenas ornamental, como já tinha
intuído corretamente Bazin.
Vemos aqui o nascimento, em Minas, de uma cultura arquite-
tônica ligada ao “valor intelectual do projeto”. Esse conceito ligado à
busca do “moderno” aliás, pode ser visto em um dos termos que trata da
arrematação da varanda lateral, suprimida durante a construção:
Será mais obrigado afazer toda esta Obra de
pedra deSabão, tanto pilastras, como balaustres,
bazamentos, eCorrimoins, etudo fabricado como
aponta omesmo risco, fazendosse em sima das
ditas pilastras as suas pirámidas conresponden-
do as mesmas do d.o risco, estas Levando noleito
húa respiga quadrada, para Sefaser firme no So-
bre Leito dapilastra, nesta fasendo húa ranhura,
ou Caixa para seembatumar, eficando bem Se-
gura, emrasão dos tempos as não desconjunta-
64
rem, eque pareça pedra enteira, comdelarção, que
as ditas pilastras, tres serão abalaustradas, com
aponta omesmo risco, eSerão de quatro faceas,
emostrando osSeus faxeados pelas arestas, emais
baixos noámbito dentro, que mostrão aSer re-
fendido, mas he campo Lizo, eSomente comSua
Cabeça, ep.a aparte dedentro afará aneialada com
Seu Campo dentro lizo aplaino, para melhor vista
e estilo moderno, eSomente aque medea noSen-
tro do Meyo, pode esta diferensar na Sua obra,
Como tambem aponta omesmo risco.24

Se aquela varanda tivesse sido realizada, veríamos como já foi


colocado anteriormente - que a volumetria desse projeto deve muito às
experiências formais empreendidas na Matriz de Caeté, somadas àque-
las do frontispício de Matriz de São João Batista, em Barão de Cocais.
Ainda, salientamos do ponto de vista documental, que a presença de
Antônio Francisco Lisboa, nomeado pela Ordem de São Francisco, tra-

24
TRINDADE, Cônego Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro Preto - crônica
narrada pelos documentos da ordem. Rio de Janeiro: DPHAN, 1951. p. 352 (Grifos
nossos).
O ALEIJADINHO ARQUITETO E SUA OBRA REVELADA...

balhando ao lado de José Pereira Arouca, nomeado pelo arrematante, na


vistoria de 1794, pode ser mais uma evidência que ele era realmente o
autor do projeto.
Neste sentido, finalmente depois de mais de duzentos anos de
tradição portuguesa ditando as linhas gerais da arquitetura religiosa bra-
sileira, tinha se conseguido inaugurar um novo tempo para história da
arquitetura religiosa, que logo a seguir daria frutos na produção de uma
escola importante, da qual fariam parte alguns dos principais mestres
portugueses em atividade na segunda metade do século XVIII, dentre
eles, principalmente Francisco de Lima Cerqueira e Manuel Francisco de
Araújo, homens que, embora ligados e exercendo sua formação de ofí-
cio, tinham um espírito profundamente ligado à sensibilidade artística.
O êxito que teve e ainda tem, durante o século XX, a nível mun-
dial, a arquitetura de São Francisco de Ouro Preto, como um dos episó-
dios mais geniais da arquitetura Tardo-Barroca fora da Europa, parece
no entanto não ter tido o mesmo reflexo no tempo de sua construção.
O famoso manuscrito do Vereador Segundo de Mariana é só si-
65
lencio e lacuna sobre essa obra, como também sobre o Carmo de Ouro
Preto. Talvez isso se deva só ao fato da rivalidade política entre as duas
cidades-irmãs, embora lembramos, que uma série de igrejas e constru-
tores de Ouro Preto, foram citados no documento. Consideramos que
a causa mais provável desse esquecimento, num documento escrito em
1790, onde o Aleijadinho e sua obra Rococó são sempre exaltados, é que
essas manifestações do Barroco já fossem vistas como superadas, além
de serem vistas do ponto de vista de uma cultura arquitetônica ortodoxa,
tradicional e pouco letrada, principalmente na região das Minas, como
algo completamente estranho ao padrão mais comum da cultura arqui-
tetônica portuguesa.
Passado o período de glória da arquitetura barroca de influência
italiana em Minas, as pesquisas existentes não dão a entender que a par-
tir da segunda metade da década de 1760, apenas poucos anos depois
de iniciada a obra de São Francisco de Ouro Preto, o Rococó já estava
sendo rapidamente assimilado em Minas na escultura, talha e arquite-
tura, como resposta por uma cultura artística ávida, por novidades e
modismos internacionais, sendo que Antônio Francisco Lisboa, rapida-
ANDRÉ G. D. DANGELO

mente foi um dos principais convertidos para esse novo estilo e as suas
doutrinas formais de depuramento do Barroco que tantas possibilidades
geravam para o seu gênio, principalmente de entalhador.

66
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

Capítulo 4

O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA


OFICINA: ARTISTAS, ARTÍFICES E SUA INFLUÊNCIA NA
TALHA SETECENTISTA EM MINAS GERAIS

Aziz José de Oliveira Pedrosa

Notas Introdutórias

Sabe-se que a caudalosa produção artística ocorrida em Minas,


durante o século XVIII, aflorou no momento em que as vilas e arraiais
erguiam seus templos religiosos. Tais obras foram possíveis por inter-
médio do patrocínio das poderosas irmandades, que detinham grandes
riquezas e se empenhavam em erguer igrejas e capelas. A arquitetura
desses templos religiosos é destaque na paisagem das cidades onde se 67
encontram, mas foi em seus interiores que a arte se fez intensamente
presente por meio, principalmente, da pintura e da talha dourada.1 Esta
última foi utilizada como elemento de composição ornamental e, sobre-
tudo, como veículo de divulgação dos preceitos católicos contrarrefor-
mistas, delimitados pelo Concílio de Trento (1545-1563) e que em Minas
foram amplamente divulgados.
São muitas as considerações que se pode fazer sobre esse fér-
til ciclo de produção artística, contudo, tem como finalidade este texto
analisar algumas questões referentes às oficinas que estiveram a serviço
da produção da talha na Capitania de Minas, no correr do século XVIII.
Visto preexistirem alguns vazios a respeito do assunto, frutos da estag-
nação de pesquisas em arquivos históricos que impossibilitam germinar
novas discussões sobre a produção da arte local.
Referente ao tema, são conhecidas a vida e obra de alguns en-
talhadores ativos em Minas que obtiveram prestigio à época de sua atu-

1
Conforme Borges, a talha confere ao interior das igrejas o movimento, con-
traste e riqueza. Sua aplicação ocorria em retábulos, púlpitos e paredes cons-
tituindo elementos indispensáveis à arquitetura religiosa setecentista. BOR-
GES, Nelson Correia. Do Barroco ao Rococó. In: História da Arte em Portugal.
Lisboa: Publicações Alfa, v. 8, 1986, p. 47.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

ação, recaindo sobre eles, quase sempre, a autoria das principais obras
de talha existentes nas igrejas mineiras. Desses nomes, conhecessem-
-se Francisco Xavier de Brito, Francisco Vieira Servas, José Coelho de
Noronha e Antônio Francisco Lisboa. Poder-se-ia, ainda, citar alguns
outros nomes, o que se tornaria injusto diante do grande número de
artífices que contribuíram para efetivação da arte luso-mineira2 e que
permanecem anônimos.
A obra desses e de outros profissionais do ofício da talha, caso
que também se estende à pintura, torna-se objeto de estudo, geralmente,
a partir do momento que se constata, por meio de documentação primá-
ria, seus nomes arrolados em registros que formalizaram a contratação
dos trabalhos artísticos: contratos de arrematação, ordens de pagamen-
tos, dentre outros meios legais coevos dos quais se valiam os contrata-
dos e contratantes de tais serviços. Nesses casos, comumente, toma-se
como autor da obra o nome do entalhador citado, ignorando-se os ar-
ranjos realizados concretizados por meio de oficinas, onde profissionais
de diversos ofícios somavam esforços para efetivação dos trabalhos.
É sabido que os entalhadores não atuavam isolados na fábrica
68 dos retábulos, visto se tratarem de obras complexas que demandavam
certo número de profissionais para auxiliar nas diversas tarefas existen-
tes, exigindo, assim, o envolvimento de carapinas, carpinteiros e ensam-
bladores. Além disso, as esculturas dos retábulos apontam se tratarem de
peças esculpidas por diferentes entalhadores, visíveis tais aspectos pela
boa qualidade na execução de alguns entalhes em contraposição a ou-
tros, cuja fatura demonstra limitações técnicas por parte dos artistas que
os produziram. Essas dificuldades poderiam, entre outros fatores, ser
fruto da presença de aprendizes nesses ambientes, que eram iniciados no
universo artístico diante dos ensinamentos de um mestre.
Sobre essas dúvidas que cercam o tema, pode-se citar a desta-
cada produção artística do Aleijadinho, a quem se atribui uma grande
quantidade de obras que exigiriam do artista tempo de vida superior ao
que gozou para realizar todos os trabalhos, caso os executasse sozinho.
Nesse cenário, ficam ocultados os demais profissionais que, provavel-
mente, estiveram em atividade em sua oficina. Essas relações de trabalho
podem ter propiciado aos oficiais que laboravam com ele, assimilar e re-

2
Agradeço ao Professor Marcos Hill pela sugestão do termo “arte luso-minei-
ra”. Utilizada neste texto para se referir à arte setecentista existente em Minas
Gerais, produzida, sobretudo, durante a primeira metade do século XVIII.
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

petir seus marcantes traços escultóricos. Contribuindo para que lhe seja
atribuída a autoria de algumas obras, mas que podem ter sido realizadas
por outros artistas que compuseram sua oficina e que propagaram algu-
mas das caraterísticas e peculiaridades escultóricas do mestre.3
Mesmo diante de tais evidências, como acima citado, não são
conhecidas as oficinas que estiveram a serviço da arte da talha na Capita-
nia de Minas. São de conhecimento alguns casos de artistas que mantive-
ram vínculos profissionais com outros entalhadores, mas não se sabe, ao
certo, quais foram as relações profissionais por eles estabelecidas. Tudo
isso se mostra contraditório, pois a documentação existente permite ma-
pear alguns desses ateliês em atividade nas Minas do ouro.
Diante de tudo isso, novos subsídios para o estudo da arte luso-
-mineira vieram a público e trouxeram dados históricos sobre a oficina
de talha que contou com o comando do entalhador José Coelho de No-
ronha. Essa oficina foi composta por diversos profissionais das artes e
dos ofícios e esteve a serviço da produção da talha em Minas Gerais,
durante algumas décadas do século XVIII, atuando em diversos templos
religiosos da capitania. Nesse sentido, o presente texto tem como orien-
tação discutir a organização e atuação dessa oficina nas igrejas mineiras, 69
apresentar os artistas que a compuseram e demonstrar algumas influên-
cias que tiveram na construção dos códigos ornamentais estilísticos em
voga no universo artístico mineiro setecentista.

A oficina de José Coelho de Noronha

Pouco se sabia a respeito do renomado entalhador José Coelho


de Noronha, contudo, estudos recentes4 trouxeram a conhecimento im-

3
Deve-se pesquisar sobre esses homens que laboraram com o Aleijadinho, o
que seria grande contributo para se escrever mais um capítulo da vida e obra
do mestre. Pois, é sabido que com ele laboraram alguns oficiais, como consta
em documentos analisados por Zoroastro Passos Viana. Além disso, tal pes-
quisa possibilitaria estudar obras cuja autoria é atribuída ao Aleijadinho, mas
que podem ter sido realizadas por outros oficiais. Todavia, foge à proposta
dessa pequena contribuição aprofundar no fascínio que causa a obra do mes-
tre Aleijadinho. Ver: PASSOS, Zoroastro Viana. Em torno da história de Sabará.
Rio de Janeiro: Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1940,
p. 137.
4
Ver: PEDROSA, Aziz José de Oliveira. José Coelho de Noronha: artes e ofícios
nas Minas Gerais do Século XVIII, 2012, 313 f. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) – Escola de Arquitetura, UFMG, Belo Horizonte,
2012.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

portantes notas sobre sua vida e obra. As pesquisas de Pedrosa (2012)


demonstraram a sua destacada atuação em algumas igrejas de Minas
entre os anos de c.1744 até 1765. Dessas igrejas, onde laborou o dito
entalhador, pode-se citar: a Sé de Mariana, as matrizes de Santo Antônio
(Santa Bárbara), Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto), Nossa Senhora
da Conceição (Ouro Preto), Nossa Senhora do Pilar (São João del-Rei) e
Nossa Senhora do Bom Sucesso (Caeté). Muito se pode discorrer sobre
a notória carreira artística deste entalhador nas igrejas supracitadas, en-
tretanto, merece destaque a oficina de talha que esteve em atividade com
o entalhador diante dos serviços por ele arrematados.

70

Figura 1: Retábulo-mor da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Caeté,


Minas Gerais.
Foto: Aziz Pedrosa

Como discutido, é corrente na historiografia da arte religiosa


mineira atribuir a alguns poucos nomes a autoria das obras de pintura e
talha, tomando-se como referência os documentos de arrematação dos
serviços e outros registros onde constam nomes dos artistas envolvidos
nesses trabalhos. De fato, em muitos casos os nomes constantes na do-
cumentação designam aqueles que foram os responsáveis pelos ateliês.
Geralmente, o arrematante era quem fazia a gestão da oficina e conduzia
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

os trabalhos, de modo que na obra final sempre ficava em evidência


as marcas, preferências e características de sua personalidade artística,
possibilitando aos pesquisadores conhecer o glossário dos cacoetes do
mestre e, até mesmo, identificar por métodos comparativos outras obras
sem autoria determinada. Essa metodologia trouxe importantes con-
tribuições para o estudo da arte setecentista em Minas, principalmente
porque, em alguns casos, a inexistência de documentação primária im-
possibilita aprofundar pesquisas sobre o objeto artístico, fazendo com
que se busquem ferramentas alternativas na tentativa de se conhecer as
prováveis autorias das obras.
De toda forma, é possível localizar nas entrelinhas desses do-
cumentos testemunhos ocultos que permitem levantar a participação de
outros artífices na produção dos serviços artísticos. Pode-se constatar
isso quando se analisa os contratos de arrematação e demais registros
que formalizaram as questões que se sucederam no correr das obras,
onde são listados nomes de entalhadores e demais artífices que se envol-
viam na confecção da talha. Em alguns casos, assinavam esses oficiais
como testemunhas dos atos de registro dos documentos.
Essas minúcias encontradas na documentação das obras nas 71
quais se envolveu José Coelho de Noronha, possibilitaram mapear a
oficina de talha que esteve em atividade com o entalhador. Entretan-
to, sabe-se que algumas armadilhas podem coexistir em uma leitura su-
perficial das fontes primárias, induzindo o pesquisador a apontar como
executor da obra de talha o nome do arrematante dos serviços, o que
nem sempre pode ser considerado como uma afirmação legítima. Isso
acontece, por exemplo, quando se estudam alguns retábulos da Sé de
Mariana arrematados por Felix Ferreira Jardim, mas que não foram por
ele executados. Sabe-se que foi o referido Jardim arrematante da obra do
retábulo de São Miguel e Almas, da Sé de Mariana.5 No entanto, a docu-
mentação registra que ele arrematou os serviços e concedeu a Noronha
autorização para produzir a talha.
Felix Ferreira Jardim tem muito a informar sobre as questões
referentes ao universo da talha, principalmente por se saber de seu en-
volvimento em diversos contratos de serviços de talha que aconteceram

5
Ver: PEDROSA, Aziz José de Oliveira. Uma Oficina de talha na Sé de Ma-
riana: o fazer artístico e o contrato de trabalho. Varia História, Belo Horizonte,
v. 29, n. 50, p. 597-631, maio/agosto de 2013.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

simultaneamente, o que além de impossibilitar seu trabalho em todas


essas obras, acarretou-lhe processos judiciais por descumprimento de
cláusulas contratuais pré-estabelecidas. Esse exemplo demonstra que
nem sempre o arrematante dos serviços era seu executor. Vinculação
esta que pode, muitas vezes, ocultar o nome de outros artistas que foram
fundamentais para produção da talha. Acredita-se que muitos nomes
arrolados como arrematantes de serviços se tratavam de homens que
atuavam como empresários, angariando as obras e subcontratando, pos-
teriormente, os artistas que seriam de fato os executores da talha. Situ-
ação essa na qual, provavelmente, encontrava-se Felix Ferreira Jardim,
dentre tantos outros.

72

Figura 2: Retábulo de São Miguel e Almas da Sé de Mariana, Minas Gerais.


Foto: Aziz Pedrosa

Em meio a essas questões que permeiam a pesquisa sobre a arte


em Minas, notou-se que nas obras, cuja autoria é atribuída a José Coelho
de Noronha, coexistem marcas escultóricas que evidenciam a presença
de outros artífices envolvidos na confecção dos serviços. Nesses casos,
a qualidade técnica do entalhe de alguns ornamentos demonstra não
se tratarem de trabalhos executados por um artista experiente, como o
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

foi Noronha.6 Isso ocorre, por exemplo, no retábulo-mor da Matriz de


Caeté, onde ele arrematou os serviços de talha. Nesse retábulo é possível
visualizar esculturas que acusam a mão de outros artistas que, provavel-
mente, estavam sob sua coordenação.
Não se tinha, até o momento, notícias de um grupo fixo de
oficiais que acompanhou José Coelho de Noronha nas obras por ele
realizadas, compondo uma oficina de talha sob sua liderança. Da mesma
forma que são raros os estudos que conseguiram pontuar a existência
desses arranjos organizacionais, apesar de se saber que foram comuns
no meio artístico luso-brasileiro. Entretanto, as pesquisas em arquivos
apontaram a presença de alguns oficiais que mantiveram parceria com
esse arrematador a execução de serviços entre os anos de 1744 e 1765.
Esses nomes aparecem reiteradas vezes relacionados à sua figura, atu-
ando, sempre, nas mesmas obras em que esteve envolvido o entalhador.
As relações de trabalho por eles mantidas ficaram explicitas por meio do
estudo de documentação7 referente aos problemas que se sucederam nas
obras de alguns retábulos da Sé de Mariana, fornecendo, desse modo, as
informações necessárias para subsidiar o mapeamento da referida ofi-
cina. 73
Nesse sentido, sabe-se que Noronha lançou mão de uma ofi-
cina composta por artífices de diversos ofícios para realizar a talha do
retábulo de São Miguel e Almas, na Sé de Mariana. Compuseram o re-
ferido ateliê os entalhadores Amaro dos Santos, Manoel João e Antônio
Pereira, o mestre pedreiro Manoel Gomes, o carpinteiro Luiz Mendes
e o carapina Simão Franco Monteiro. Ainda na Sé de Mariana, ele foi o
responsável por efetuar a talha dos retábulos colaterais de Nossa Senho-
ra da Conceição8 e de São José.9 Pelo que foi possível averiguar por inter-

6
Grande parte da documentação referente às obras nas quais esteve envol-
vido José Coelho de Noronha, apontam o entalhador como “mestre”, o que
implica a ele ser o líder do ateliê de talha, uma vez que a figura do mestre era
aquela que conduzia os trabalhos, ditava ordens e realizava as peças de maior
dificuldade técnica, como figuras antropomórficas, rostos e mãos.
7
Ver: PEDROSA. Uma Oficina de talha na Sé de Mariana: o fazer artístico e
o contrato de trabalho, p. 597-631.
8
Arquivo Eclesiástico do Arcebispado de Mariana (AEAM), Livro de receitas e
despesas da Irmandade de Nossa Senhora da Conceição (1747-1832), fl. 5 v.
9
As proximidades formais e estéticas existentes entre os retábulos de São José
e de Nossa Senhora da Conceição, ambos na Sé de Mariana, permitem apon-
tar ser de José Coelho de Noronha a autoria do retábulo de São José, uma vez
comprovada sua atuação no retábulo de Nossa Senhora da Conceição.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

médio de registros coevos,10 ele esteve, também, envolvido na execução


de mais outros dois retábulos da Sé de Mariana, o de Santo Antônio e
de Nossa Senhora do Rosário. Todos esses trabalhos foram realizados
entre os anos de 1745 e 1749 e, certamente, foram frutos de uma grande
empreitada possível pelo trabalho em conjunto de uma oficina.
Minúcias desse ateliê, de sua formação e até mesmo do modo
como era direcionado o trabalho em prol da adequação da arte com
a estética corrente, podem ser conhecidos por intermédio dos dados
arrolados no documento em análise.11 Além disso, foi possível efetuar
o mapeamento desse ateliê e assim compreender quais eram os oficiais
que, de fato, participavam na produção dos serviços de talha, demons-
trando que o trabalho em equipe foi fundamental para esse tipo de arte,
reunindo-se nessas oficinas profissionais de variados ofícios. Acredita-se
que essa oficina esteve em atividade com Noronha em todas as obras,
nas quais se envolveu o entalhador, na Sé de Mariana.
Na sequência dos serviços de talha arrematados por Noro-
nha foi possível comprovar apenas a permanência de dois dos artífices
que com ele laborou na Sé: Amaro dos Santos e Manoel João Pereira,
74 desconhecendo-se o paradeiro dos demais. Isso sinaliza a possibilidade
de uma oficina de talha contar com membros fixos e outros que eram
contratados conforme as demandas dos trabalhos a serem feitos. Pela
permanente presença dos dois artistas trabalhando com José Coelho de
Noronha e, diante do fato de ainda serem esses artistas desconhecidos
da historiografia da arte luso-mineira, resolveu-se por empreender pe-
quena pesquisa em busca de se compreender quem foram esses homens
e qual papel desempenharam junto ao artista. Apesar das dificuldades
encontradas no levantamento de dados, segue abaixo pequeno relato
embasado em documentos, que esclarece um pouco sobre os entalha-
dores supracitados.
Amaro dos Santos, oficial entalhador, nasceu no ano de 1708.12
Trabalhou juntamente com Noronha a partir de c. 1744, na fatura do

10
Ver: PEDROSA. Uma Oficina de talha na Sé de Mariana: o fazer artístico e
o contrato de trabalho.
11
Ver: PEDROSA. Uma Oficina de talha na Sé de Mariana: o fazer artístico e
o contrato de trabalho.
12
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM), Ações cíveis,
Códice 251, Auto 6217, Cartório do 2º ofício. fl. 33 v.
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

retábulo-mor13 da Matriz de Santo Antônio, na cidade de Santa Bárba-


ra.14 Finalizados esses serviços, trabalharam juntos também na talha do
retábulo de São Miguel e Almas da Sé de Mariana,15 por volta de 1745
a 1749. Provavelmente, seus serviços na Sé se estenderam para outros
retábulos nos quais Noronha também realizou a talha. Após essas da-
tas, no ano de 1754, Amaro dos Santos assinou recibo pelos serviços
de limpeza da talha16 do retábulo-mor da Matriz de Nossa Senhora do
Pilar, da cidade de Ouro Preto. Sabe-se que Noronha também recebeu
pagamentos por trabalhos realizados no retábulo-mor do Pilar de Ouro
Preto. Mais tarde, também é citado como louvado17 no processo impe-
trado por Noronha para receber pagamentos, não efetuados, referentes
à obra do retábulo-mor da Matriz de Caeté. Por fim, Amaro dos Santos,
em dezembro de 1763, residindo em Vila Nova da Rainha, atual Cae-
té, assina como testemunha18 de que José Coelho de Noronha, naquela
data, registrara testamento em cartório.
A constante presença do entalhador Amaro dos Santos traba-
lhando com José Coelho de Noronha, desde suas obras em Santa Bár-
75
bara, passando por Mariana, Ouro Preto até Caeté, fornece novas pos-
sibilidades para o entendimento da oficina de talha que, provavelmente,
esteve em atuação direta com Noronha. Apesar de não ter sido explicita-
do o nome de Amaro dos Santos na confecção da talha do retábulo-mor
da Matriz de Caeté, certamente foi ele um dos entalhadores que nesse
retábulo-mor laborou, diante das evidências existentes entre as relações
de trabalho que por cerca de vinte anos mantiveram ele e o Noronha.

13
José Coelho de Noronha recebeu pagamentos pela obra de talha do retábu-
lo-mor da Matriz de Santa Bárbara, no ano de 1745. Ver: Arquivo Eclesiástico
do Arcebispado de Mariana (AEAM), Livro de Receitas e Despesas da Irmandade
Santíssimo Sacramento. Matriz de Santo Antônio de Santa Bárbara, Prateleira
X-12. Santa Bárbara 1741-1805.
14
AHCSM. Ações cíveis, Códice 251, Auto 6217, Cartório do 2º ofício. fl. 34 v.
15
AHCSM. Ações cíveis, Códice 251, Auto 6217, Cartório do 2º ofício. fl. 33 v.
16
Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar (AEPNSP), Livro de receitas
e despesas da Irmandade do Santíssimo Sacramento, 1749-1810, vol. 218, fl. 44 v.
17
MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro, Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, nº 27, 1974, p. 73.
18
Arquivo do Escritório Técnico II do Iphan - São João del-Rei (IPHAN-
-ETII), Inventário, 1765, Noronha, José Coelho de, Inventariante: Leitão, Se-
bastião Ferreira, Caixa: 345, fl. 11 v.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

Outro nome constantemente citado nas obras de talha em que


trabalhou Noronha é do entalhador Manoel João Pereira. Conforme ci-
tam os registros, ele, juntamente com Noronha, nos trabalhos de talha
da Matriz de Santa Bárbara19 e no retábulo de São Miguel e Almas da Sé
de Mariana,20 obras que aconteceram entre os anos de 1744 a 1749. De-
pois disso, Manoel João Pereira assinou pagamentos21 por serviços efe-
tuados na talha da capela-mor da Matriz do Pilar de Ouro Preto, cujos
documentos descrevem a situação de sociedade entre ele e Amaro dos
Santos. Após esses registros, Manoel João participou como testemunha
da entrega do testamento de Coelho de Noronha, no ano de 1763, em
Vila Nova da Rainha, tal qual o fez Amaro dos Santos. Demonstra-se,
desse modo, sua atividade juntamente com Coelho de Noronha. Não
foi localizada documentação referente à confecção da talha do retábulo-
-mor da Matriz de Caeté, na qual seja citado o nome de Manoel João
Pereira, mas, certamente, ele ali laborou por ser um dos membros fixos
que compuseram o ateliê de Noronha. Além disso, não estaria em Caeté,
juntamente com Noronha e Amaro dos Santos, se não fosse em função
do trabalho a ser realizado.
76 Assim, foi possível constatar, por meio do estudo de documen-
tação que, Amaro dos Santos e Manoel João Pereira trabalharam, por
longo período de tempo, como entalhadores nas mesmas obras em que
laborou Noronha, o que permite considerar serem esses oficiais mem-
bros do ateliê de talha que esteve sob a liderança do mestre lisboeta, uma
vez que foi ele a figura central nos trabalhos em que esteve ativo, pois foi
o arrematante de obras, e, certamente, o responsável por direcionar os
trabalhos na posição de líder - fato esse ocorrido na confecção de alguns
retábulos da Sé de Mariana.
Importante também foi avançar os estudos acerca da oficina
de talha que laborou na produção do retábulo-mor da Matriz de Nossa
Senhora do Bom Sucesso, em Caeté. Não se tinha conhecimento da
presença de outros oficiais na dita obra, salvo o nome de José Coelho
de Noronha que foi o arrematante dos serviços. Todavia, a escultura de
algumas peças do retábulo-mor da Matriz de Caeté demonstram traços

19
AHCSM. Ações cíveis, Códice 251, Auto 6217, Cartório do 2º ofício, fl. 32.
20
AHCSM. Ações cíveis, Códice 251, Auto 6217, Cartório do 2º ofício, fl. 32.
21
AEPNSP. Livro de receitas e despesas da Irmandade do Santíssimo Sacramento,
1749-1810, vol. 218, fl. 45-45v.
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

escultóricos que apontam envolvimento de outros artistas na fatura de


sua talha, que hoje se sabe se tratarem de Amaro dos Santos, Manoel
João Pereira e Manoel Antônio de Azevedo Peixoto.
O entalhador Manoel Antônio de Azevedo Peixoto foi citado
como louvado no ano de 1763, juntamente com Amaro dos Santos,22
no processo em que Noronha reclamava pagamentos, não efetuados,
referentes à obra do retábulo-mor da Matriz do Bom Sucesso, em Caeté.
Esse mesmo entalhador assinou documento como testemunha do regis-
tro do inventário de Noronha, na Vila Nova da Rainha, no ano de 1763.
Apesar de não terem sido encontrados registros a respeito da atuação
de Manoel de Azevedo Peixoto com Noronha, provavelmente, ele tam-
bém esteve envolvido na confecção da talha do retábulo-mor da Matriz
de Caeté, juntamente com os oficiais acima citados, o que lhe implicou
participar dos processos judiciais impetrados por Coelho de Noronha.
Ressalta-se que Manoel de Azevedo Peixoto é peça chave para
se compreender a obra de Noronha em Caeté, além de poder ser de sua
autoria a talha de alguns retábulos existentes em outras igrejas de Minas.
Esse entalhador, finalizados os serviços em Caeté, apareceu no ano de
1767 arrematando a talha do retábulo-mor da Capela de Nossa Senhora 77
da Conceição do Mosteiro das Macaúbas, em Santa Luzia.23 Obra essa,
erroneamente, apontada como sendo de autoria de José Coelho de No-
ronha, o que é pouco provável por ter ele falecido no ano de 1765.

22
MARTINS. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, p. 73.
23
Manoel Antônio de Azevedo Peixoto, morador no então arraial de Santa
Bárbara, foi ao mesmo tempo o entalhador e empreiteiro que a tomou (a obra
de talha do retábulo-mor da Capela do Mosteiro das Macaúbas, Santa Luzia) a
seu cargo. Pelo contracto feito a 8 de agosto de 1767, Azevedo Peixoto rece-
beria pagamento de um conto, cento e cincoenta mil réis, em duas prestações:
duzentos mil réis no meio da obra, e o restante quando lhe puzesse a ultima
demão. Seis mezes no máximo gastou Azevedo Peixoto desde que metteu
mãos á obra até o dia em que lhe pôs o remate, pois a dois de Fevereiro de
1768 passou recibo do ultimo pagamento, que fora pactuado para depois de
concluido o serviço. Cousa mui para notada é a segurança com que procurava
garantir-se o entalhador. Para a quantia de que se falou foi necessário que as
Recolhidas apresentassem abonador e principal pagador. (...) Do mesmo Aze-
vedo Peixoto, existe no Capitulo do Recolhimento um trabalho de completo
relevo, que bem lhe abona o nome de hábil estatuário. É uma bela Imagem
representando Santa Quitéria, obra de madeira, medindo setenta e um cen-
tímetros de altura, e com olhos de vidro. Custou a Madre Regente a somma
de vinte e cinco oitavas de ouro, como o declara um recibo assignado pelo
estatuário em 1765. Ver: SOUZA, Joaquim Silvério de. Sítios e personagens. Belo
Horizonte: Imprensa oficial de Minas Geraes, 1930, p. 284-287.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

Essas indicações são feitas diante das similaridades da talha do


retábulo-mor do Mosteiro das Macaúbas com a talha do retábulo-mor
da Matriz de Caeté, pois elas apresentam estrutura e preferências orna-
mentais muito próximas, demonstrando que um desses retábulos pode
ter exercido influência sobre o outro. Em busca de respostas para essas
questões, prosseguiu-se a análise dos registros documentais existentes
para que se pudessem averiguar as datas de arrematação dos serviços de
talha, o que indica que, naquele momento, já se encontravam finalizados
os riscos e demais apontamentos nos quais os entalhadores deveriam se
referenciar para produzir as obras. A documentação demonstra que a
talha do retábulo-mor da Matriz de Caeté foi arrematada por Noronha
no ano de 1758,24 data esta na qual, provavelmente, já tinha sido defi-
nido o risco do projeto que foi visto e analisado pelo entalhador, antes
da assinatura do termo de arrematação, o que lhe acarretou seguir esses
direcionamentos para efetuar a obra. Infelizmente não foi possível lo-
calizar o nome do responsável pelo projeto do retábulo-mor da Matriz
de Caeté, o que muito contribuiria para estudos sobre os elementos for-
78
mais, preferências estéticas que compõem a referida talha.
Por outro lado, a obra de talha da Capela do Mosteiro das Ma-
caúbas foi arrematada no ano de 1767, por Manoel de Azevedo Peixoto.
Nesse sentido, separa a confecção da talha dos retábulos-mores da Ma-
triz de Caeté e da Capela das Macaúbas um período de, aproximadamen-
te, nove anos o que possibilita apontar ter sido o retábulo-mor da Matriz
de Caeté o modelo para o das Macaúbas. Além disso, para a talha do
retábulo-mor da Matriz de Caeté, recorreu-se ao uso de elementos for-
mais e estilísticos que compuseram a talha do estilo Joanino, ainda que
coexistam, nesse retábulo, alguns adornos que demonstram o despontar
do Rococó na talha em Minas. Por sua vez, no retábulo-mor da Capela
das Macaúbas, a estrutura retabular e seus ornamentos indicam sintonia
com as formas e preferências estéticas do Rococó que, à época de sua
fatura, predominavam nos retábulos setecentistas de Minas. Essas refle-
xões permitem compreender que, por mais que a talha de Noronha em
Caeté demonstrasse afinidades com o nascente Rococó, não teria sido
ele um mestre a lidar com as novidades ornamentais que surgiam, pelo

24
Arquivo Público Mineiro (APM). Seção Colonial, Delegacia Fiscal, códice
1075, fls. 104, 127.
O ENTALHADOR JOSÉ COELHO DE NORONHA E SUA OFICINA...

fato de suas obras terem sofrido influência do estilo Joanino, propagado


por ele na talha de alguns retábulos da Sé de Mariana, no retábulo-mor
da Matriz do Pilar de São João del-Rei e em outras obras por ele realiza-
das. Esses fatos, dentre outros já mencionados, inviabilizam apontar ter
sido José Coelho de Noronha o entalhador responsável pela fatura do
retábulo-mor da Capela do Mosteiro das Macaúbas.
Em hipótese, a existência de elementos formais do Rococó no
retábulo-mor da Matriz de Caeté pode ter sido fruto de intervenções do
entalhador Manoel de Azevedo, visto que no retábulo-mor da Capela
de Nossa Senhora da Conceição, do Mosteiro das Macaúbas, o enta-
lhador trabalhou temas do Rococó na fatura da talha. Outras dúvidas
surgem a respeito da colaboração de Peixoto na talha do retábulo-mor
da Matriz de Caeté e, talvez, seja essa a maior evidência de que ele te-
nha desempenhado grande papel na produção da dita talha. Isso ocorre
pelas similaridades escultóricas existentes entre a alegoria do Deus Pai
presente no coroamento dos retábulos-mores da Capela das Macaúbas
e da Matriz de Caeté. Mantém essas esculturas estritas relações de seme-
lhança, demonstrando possibilidades dele ter laborado na fatura dessas
peças em Caeté ou, até mesmo, ter realizado por completo sua escultu- 79
ra, capacitando-o, posteriormente, a reproduzir o modelo no retábulo-
-mor das Macaúbas. Algumas figuras antropomórficas aladas, existentes
no retábulo-mor da Matriz de Caeté (cabecinhas de anjos que ladeiam
o Deus Pai), possuem a mesma escultura das cabecinhas de anjos do
retábulo-mor das Macaúbas, o que permite, conhecida a intervenção de
Manoel de Azevedo na talha desse último retábulo, apontar ser dele a
escultura dessas peças no retábulo-mor de Caeté.
Assim, demonstra-se que repostas para as dúvidas existentes
relacionadas à talha do retábulo-mor do Mosteiro das Macaúbas podem
ser encontradas diante da presença desse entalhador na oficina de talha
de Noronha, em Caeté, o que lhe permitiu perpetuar o estilo consagrado
pelo mestre. Além disso, o estudo da obra deste entalhador pode apontar
sua provável participação na talha de alguns retábulos laterais e colaterais
da Matriz de Caeté, cuja autoria ainda é desconhecida, mas que mantém
afinidades escultóricas e ornamentais com a talha do retábulo-mor da
Capela do Mosteiro das Macaúbas e, principalmente, com os retábulos
colaterais da mesma Capela, que, apesar da documentação não indicar
o nome do artista que os executou, provavelmente, são de sua autoria.
AZIZ JOSÉ DE OLIVEIRA PEDROSA

As exposições realizadas explicitam que, na busca por se iden-


tificar os artistas que assumiram a edificação da arte da talha em Minas,
muitas vezes, as atribuições de autorias consideram apenas algumas ca-
racterísticas que perpetuaram nas obras dos entalhadores de maior des-
taque no contexto artístico, desconsiderando-se a presença de artistas
que se encontravam imersos nas oficinas dos mestres mais renomados
e que exerceram significativa contribuição para concretização dos ser-
viços.
Nessas oficinas, faziam escola os demais entalhadores e assi-
milavam os cacoetes e traços escultóricos do mestre, reproduzindo-os
de tal forma que, em algumas situações, torna-se difícil dissociar quem
esculpiu as peças: se foi o mestre ou seus auxiliares, visto que esses úl-
timos realizavam grande parte dos serviços. Desse modo, justifica-se a
importância de se estudar esses núcleos de trabalho, aprendizagem e de
propagação de modos de esculpir que foram responsáveis por divulgar,
em Minas, estilos e preferências escultóricas em voga, influenciando ge-
rações de entalhadores.
Sobre os entalhadores Amaro dos Santos, Manoel João e Mano-
80 el de Azevedo Peixoto é necessário empreender pesquisas a respeito de
suas obras, uma vez que os resultados podem trazer preciosas informa-
ções para o estudo da talha setecentista, em Minas Gerais.
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

Capítulo 5

FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS


MATEMÁTICOS E A PERCEPÇÃO

Carla Bromberg

Uma das definições que se pode encontrar para falsa arquite-


tura é que ela seja um “tipo de decoração ilusionista na qual se pintam
elementos arquitetônicos sobre paredes ou tetos de modo a produ-
zir uma impressão de continuidade da arquitetura real em um espaço
imaginário”.1Apesar desta definição ter sido retirada de um dicionário
atual, ela provê elementos com os quais poder-se-á discutir alguns con-
ceitos da falsa arquitetura dos séculos XVI, XVII.
Os conceitos a serem discutidos estão inseridos numa arquite-
81
tura que era bastante ampla como área de conhecimento, e englobava,
não somente uma ciência da construção, mas do desenho e da pintura
(âmbitos teórico e prático), esta última, por sua vez, respondia não às
teorias estéticas, mas às teorias da visão.2
Apesar de boa parte da literatura da História da Arte apresentar
a arquitetura como uma dentre as belas-artes,3 ao analisarmos os do-
cumentos de época, ou seja, tratados de arquitetura dos séculos XV ao

1
ARTS4X - DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE ARTE Y ARQUI-
TECTURA. Quadratura. Disponível em: <http://www.arts4x.com/spa/d/
quadratura/quadratura.htm>. Acesso em abril de 2015.
2
SAITO, Fumikazu. Geometria e óptica no século XVI: a percepção do es-
paço na perspectiva euclidiana. Educação Matemática Pesquisa, vol.10, n. 2, p.
386-416, 2008; CABELEIRA, João. Optical Architecture: Interplay betwe-
en perspective and space design. In: IX Nexus Conference, Poster Session, p.1-
5, 2012. Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstre-
am/1822/20637/1/Optical%20architecture.pdf>. Acesso em abril de 2015.
3
“Arquitetura é antes de mais nada construção [...] concebida com o propó-
sito primordial de ordenar e organizar o espaço para determinada finalidade
e [...] intenção, [...] a intenção plástica que semelhante escolha subentende é
precisamente o que distingue a arquitetura da simples construção”. COSTA,
Lúcio. Considerações sobre arte contemporânea. In: Lúcio Costa, Registro de
uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.
CARLA BROMBERG

XVII, percebemos que a arquitetura foi defendida dentre as artes libe-


rais4 e classificada como uma ciência matemática. Tanto a arquitetura,
quanto a música conquistaram seus status matemáticos. 5 Na verdade, a
música já era classificada como ciência matemática, ligada ao quadrivium,6
desde a Idade Média.7 A arquitetura, por sua vez, tentava, assim como
a pintura e outras artes mecânicas, avançar na hierarquia classificatória
dos saberes.8 De acordo com a historiografia tradicional, o Trattato di
architettura de Francesco G. Martini (1439-1501) foi um dos primeiros
a resgatar à arquitetura sua teoria, fundamentando-a como arte liberal.9
Uma transmissão conjunta da arquitetura e da música como ciências
matemáticas aconteceu respectivamente a partir dos comentários10 da
obra Os Dez livros de Arquitetura de Vitrúvio feitos pelos italianos Cesare
Cesariano (1475-1543), publicado em 1521; e de Daniele Barbaro (1514-

4
MONGELLI, Lênia M. et al. Trivium e Quadrivium: As Artes Liberais na Ida-
de Média. Cotia: Íbis, 1999. Serão elencados vários tratados, na maior parte
comentários de Vitrúvio, mas a definição de arte liberal aparece em outros
82 como em VIGNOLA, Jacopo B. Gli ordini d’Architettura Civile. 2 ed. Milano:
Pietro e Giuseppe Vallardi, 1814.
5
É preciso lembrar que a música no Renascimento não era uma arte e não
tinha como seu objeto de estudo o som, como acontece hoje. BROMBERG,
Carla. Identificando parâmetros para a classificação das ciências liberais e me-
cânicas no Renascimento Italiano. In: Scientiarum Historia VIII. Disponível em:
<http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh4/trabalhos/CARLAB~1.pdf>.
Acesso em abril de 2015. A arquitetura também constituía-se de elementos
cuja definição a aproximava da arte da pintura, e esta por sua vez ligada à óp-
tica. SAITO, Fumikazu. Geometria e óptica no século XVI, op. cit.
6
MASI, Michael. Boethian number theory: A Translation of De Istitutione Arith-
metica. Amsterdam: Rodopi, 1983, p.71-2.
7
A sua fundamentação matemática foi transmitida para o Renascimento prin-
cipalmente através das obras do filósofo Sevério N. Boécio (480-525). Ver
MASI. Boethian number theory, op. cit.
8
BROMBERG. Identificando parâmetros para a classificação das ciências li-
berais e mecânicas no Renascimento Italiano, op. cit.
9
MERRILL, Elizabeth. The Trattato as Textbook: Francesco di Giorgio’s
Vision for the Renaissance Architect. Architectural Histories, v.1, n.1, art.20, p.
1-19, 2013.
10
A obra de Vitrúvio foi vastamente comentada entre os séculos XV e XVII.
Estes comentários foram extremamente divulgados e utilizados na época pe-
los estudiosos. Assim, é importante, ao dirigir-nos a estes séculos, não nos
referirmos a uma tradução direta do texto vitruviano, dado que os autores
que abordo, estavam falando dos comentários e não teriam lido a obra como
escrita diretamente pelas mãos de Vitrúvio. Como se sabe, cada comentarista
transformou não somente a ordem, mas muitas vezes o conteúdo da obra
vitruviana.
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

1570), publicado em 1556.11 De acordo com Long (1979), foram estes os


comentários mais relevantes na transmissão da arquitetura como ciência
matemática.12 Foi neles, também, que se utilizou de forma explícita o
conhecimento musical da teoria das proporções.13
Durante os séculos XV e XVI a maior parte dos comentários
de Vitrúvio já considerava a arquitetura uma ciência dentre as artes li-
berais. Podem-se citar os comentários do século XVI à obra vitruviana,
como os de Walter Ryff14 na qual o autor insistiu na certeza das artes
aritmética e geométrica e da necessidade do arquiteto em conhecê-las
(Ryff, fol.265r). Nos comentários feitos por Cesariano,15 ou na obra de
Barbaro.16
Para a música e a arquitetura tornarem-se ciências matemáti-
cas, significava tornarem-se ciências especulativas. Para estes autores, a
definição de ciência seguia a noção de ciência aristotélica, ou seja, uma
ciência que possuía um objeto, que estava fundamentada em primeiros
princípios, e de acordo com as quatro causas aristotélicas que regiam
suas demonstrações.17 Para que o caráter prático e material da arquitetu-
ra sobrevivesse a esta classificação, alguns comentaristas modificaram o
83
conceito de demonstração aristotélica, principalmente Cesariano.18

11
CESARIANO, Cesare. Di Lucio Vitruvio Pollione De architectura libri dece traducti
delatino in Vulgare affigurati: Comentati: & con mirando ordine insigniti. Como:
Gotardus de Ponte, 1521. BARBARO, Daniele. I dieci libri dell’architettura et
commentati. Veneza: Francesco Marcolini, 1556. São muitos os estudos sobre os
comentários da obra vitruviana. Ver: LONG, Pamela. The Vitruvian Commenta-
ry Tradition and Rational Architecture in the Sixteenth century: A study in the History
of Ideas. PhD thesis. Maryland: University of Maryland, 1979.
12
LONG. The Vitruvian Commentary Tradition and rational Architecture in the Six-
teenth century: A Study in the History of ideas, op. cit.
13
MITROVIC, Branko. The Theory of proportions in Daniele Barbaro’s commentary
on Vitruviu’s De Architettura. PhD thesis. Pennsylvania: University of Pennsyl-
vania, 1996.
14
Uma versão alemã com comentários e ilustrações aparece em 1548, feita por
Walter Ryff, um médico. VITRUVIUS. De Architectura Libri Decem... nuc in pri-
mum in Germania qua potuit diligentia excusi, atque hinc inde schemetibus non iniucundus
exornati 4to. Ed. de Walter Ryff. Strasburg: [s.ed.], 1543.
15
CESARIANO. Di Lucio Vitruvio Pollione De architectura libri dece traducti delatino
in Vulgare affigurati: Comentati: & con mirando ordine insigniti, op. cit., fol.3v.;
VITRUVIUS. De Architectura Libri Decem, op. cit. Livro I, 1, 3-4.
16
BARBARO. I dieci libri dell’architettura et commentate, op. cit., p.57.
17
A noção de ciência aristotélica utilizada foi aquela que Aristóteles descreve
em seus Analíticos Posteriores. Vide: ARISTÓTELES. Analíticos Posteriores. São
Paulo: Edipro, 2010.
18
LONG. The Vitruvian Commentary Tradition and Rational Architecture in the Six-
teenth century, op. cit.
CARLA BROMBERG

O tratadista acreditava que na arquitetura, a prática constitui-


ria a demonstração dos princípios teóricos. Segundo ele, o sucesso da
demonstração da arquitetura dependeria da capacidade de realização da
construção. Era construindo que o arquiteto conhecia as causas aristo-
télicas. A demonstração dos princípios se dava através de uma ação no
mundo físico, como o desenho ou a construção.
Cesariano estava lidando com uma das dificuldades encontra-
das com estas ciências que possuíam, apesar de estarem sendo compre-
endidas como teóricas a parte prática. Nesta época, debates e discussões
envolviam as ciências matemáticas, quanto a reconciliação da realidade
física de seu objeto (no mundo real) com os princípios elevados do ob-
jeto matemática (no abstrato). Enquanto na música, a realidade física do
objeto era o som, na arquitetura era a construção, ou seja, estas ciências
possuíam objetos de ordem matemática, que por sua vez possuíam uma
parte que se manifestava no mundo real- natural.
Deve-se lembrar que, ao definir-se a ciência no âmbito especu-
lativo, elege-se um corpo teórico que não necessariamente dará conta
de explicar coisas que aconteçam num âmbito não especulativo e não
84 matemático. No caso da música,19 intervalos musicais irracionais e ca-
racterísticas sonoras, como o timbre e a intensidade, tornaram-se irrele-
vantes ao conteúdo formal desta ciência, porque a matemática não podia
teorizá-los ou calculá-los e foram ignorados quanto à participação no
funcionamento e definição da ciência.
A música e a arquitetura, imersas nesta noção de ciência mate-
mática aristotélica, deveriam requerer que resultados de observação pu-
dessem ser apresentados de forma esquemática, como acontecia numa
proposição matemática e justificados através de princípios gerais previa-
mente aceitos e determinados. Neste contexto, tanto a música quanto
a arquitetura matemática apresentavam ainda um problemático estágio
posterior, dado que ambas precisavam relacionar a teoria não somente
com a prática, mas com a percepção de seus objetos. Os estudiosos
destas ciências preocupavam-se então com a sua definição teórica e a
adequação de sua prática, mas também com a percepção de seus objetos.

19
A definição dos entes musicais como elementos matemáticos aconteceu na
música até os finais do século XVIII. Vale lembrar que não existiu teoria do
som que pudesse definir ou calcular frequências (como no sistema musical a
partir do século XIX) e que a Música, como explicado, foi sempre uma ciên-
cia matemática. A sua operacionalidade era análoga à composição de razões
matemáticas.
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

Assim, o processo de tornar-se ciência deveria incluir todos os


níveis mencionados. De acordo com Aristóteles, a ciência deveria ser
definida de acordo com primeiros princípios e responder a quatro cau-
sas. Os primeiros princípios, por sua vez, obedeciam à ciência primeira.
No caso da música, a ciência primeira era a aritmética20 e assim seus
elementos como notas, intervalos, escalas e sistemas de afinação, deve-
riam ser definidos matematicamente. Na arquitetura, a ciência primeira
foi a geometria. Estes princípios apareceram definidos principalmente
na obra de Bárbaro, através da definição dos preceitos arquitetônicos.
Ele assim os definiu: ordenação (ordinatio ou táxis), disposição (dispositio
ou diáthesis), euritmia (eurythmia), comensurabilidade (symmetria), decoro
(décor) e distribuição (distributivo ou oikonomia).
A adequação destes princípios como elementos de uma ciência
matemática especulativa, se dava por relações, no sentido em que repre-
sentavam sempre, através de uma essência e linguagem matemática o seu
funcionamento como preceito arquitetônico.
Percebemos que, desta maneira, alguns preceitos claramente
demonstravam sua identidade matemática. O preceito da ordenação era
85
o cálculo e hierarquização das partes; a disposição era a efetivação do
cálculo e a elaboração do desenho (Orthographia, Ichonographia e Scaenogra-
phia); a euritmia era a adequação e a dinâmica do fazer manifestar-se a
symmetria; a comensurabilidade indicava a relação métrica entre os com-
ponentes de uma obra. Ao analisarmos os preceitos, percebemos que
representam conhecimentos matemáticos diferentes, ou seja, alguns são
de ordem aritmética e outros, gométrica.21 A ordenação era de caráter

20
Esta relação entre ciência primeira e posterior foi definida por Aristóteles
como subalternante (a ciência superior, no caso a aritmética ou a geometria),
com relação à subalternada (no caso a música ou a arquitetura) na qual havia
uma hierarquia. A ciência superior, que deveria ser anterior, definia o sujeito
da ciência, ou seja seu atributo essencial, enquanto este poderia possuir uma
parte imprópria, ou seja, derivada de um acréscimo de uma diferença aciden-
tal. No caso da música, era seu objeto, o número. Ele era atributo essencial
do sujeito desta ciência que, por sua vez, possuía uma parte imprópria, ou
qualidade, que era o sonoro. Vide: ARISTÓTELES. Metafísica. 2 ed., São Pau-
lo: Edipro, 2012, 987b27.
21
É preciso lembrar que na época a Aritmética e a Geometria eram áreas inde-
pendentes e que a “grande” matemática, como um guarda-chuva abrangente,
não existia. Para uma discussão dos papéis da aritmética e da geometria no
XVI ver: SAITO, Fumikazu; BROMBERG, Carla. Measuring the Invisible:
A Process among Arithmetic, geometry and Music. Circumscribere: International
Journal for the History of Science (no prelo).
CARLA BROMBERG

matemático e possuía, matematicamente falando, um registro aritmético;


a disposição era de caráter matemático, porém seu registro era geométri-
co. A comensurabilidade era de caráter matemático, e buscava a defini-
ção de uma medida mensurável racionalmente que pudesse mensurar o
todo e as partes. Já a euritmia era de caráter visual, dado que buscava a
coerência e organização dos ajustes ou correções necessárias feitas pelo
arquiteto para aprazer o olhar.
Um tópico comum a quase todos os preceitos e relevante no
processo diz respeito às relações entre partes ou entre partes e o todo
(fossem os preceitos de caráter matemático ou visual). Estas relações
eram desenvolvidas através das noções e utilização de medidas e propor-
ções. No caso da música, a própria definição dos intervalos e afinações
musicais eram expressas por razões de números inteiros e seus cálculos
análogos à composição de razões. Ficavam de fora, por exemplo, os
intervalos musicais considerados irracionais, ou seja, representados por
razões de números não inteiros, assim como afinações como o tempero
total, já utilizado em alaúdes, e intervalos como o semitom oriundo da
86
divisão igual do tom, que não possuíam expressão matemática válida.
No caso da arquitetura passavam pela geometria envolvida nos dese-
nhos e na construção.
A noção de desenho, a partir de Martini, tornara-se parte na
demonstração de ciência aristotélica.22 No prólogo, ao primeiro livro de
seu Trattati, Martini explicou que antes de tudo iria discorrer sobre os
primeiros princípios e normas a acomodar o escrito na forma aristotéli-
ca do conhecimento.23 Para ele, o desenho incorporava as proporções e
noções de medidas e mediava a construção.
Ao analisar os tratados, percebemos que ao desenho foram in-
corporadas tradições de proporção diferentes: as providas pela ciência
musical, e as proporções antropomórficas. Barbaro dizia em seu comen-
tário à obra vitruviana:

[...] E porque toda proporção nasce do número


[...] e porque largura, altura e comprimento de-

22
Esta abordagem é diversa daquela apresentada normalmente por uma histo-
riografia centrada no desenho e na arquitetura como parte da História da Arte.
23
MARTINI, Francesco. Trattati di architettura, ingegneria e arte militare (1475-
1490). 1 ed. 1502, Torino: Chirio e Mina, 1841, p.9-11.
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

vem ser prazerosas e isto não se consegue sem


proporção, onde há proporção, há número.24

Partidário da ciência musical, Barbaro substituiu nos seus co-


mentários as proporções antropomórficas pelas musicais. Ele dizia:

[sobre as coisas bem ordenadas] como se mani-


festam nas partes e membros do corpo e nas coi-
sas artificiais, onde existe Consonância e harmo-
nia”, [...] “Porém, apesar do olho ser mais nobre
do que o pé, [...] tanto o olho quanto o pé estarão
bem postos no corpo, de forma que nem o olho
será melhor que o pé, e nem o pé será melhor do
que o olho.25

Andrea Pozzo (1642-1709) explicava quanto o desenho depen-


dia da arquitetura para poder descrever as proporções perspécticas dos
edifícios. 26 Estes desenhos perspécticos baseavam-se numa proporção
oriunda da matemática-geométrica, mas deveriam, no caso dos tratados
de arquitetura, demonstrarem-se legítimos quanto a representação ar-
quitetônica.
A noção de proporção, proveniente da música, aparecia defen- 87

dida em tratados que também versavam o uso das medidas tradicional-


mente oriundas de uma outra prática, a da agrimensura.27 O agrimensu-
rista e arquiteto Girolamo Penna dizia sobre a medida:

[…] deve-se compreender o quanto de uma gran-


deza seja o minimo, o mínimo compõe o todo da
superfície, mas a grandeza desse mínimo deve ser
vista na superfície [escolhida], o nome das medi-
das pode ser: pés, onças, minutos e minimos”28

As medidas que aparecem nesta citação, providas nos desenhos,


vinham de uma prática de mensuração de distâncias no mundo real. O
arquiteto Sebastiano Serlio (1475-1554) forneceu estas medidas em seus
tratados. Ao contrário de hoje, quando as medidas se inserem num sis-

24
BARBARO. I dieci libri dell’architettura et commentati, op. cit., p.33.
25
BARBARO. I dieci libri dell’architettura et commentati, op. cit., p.33.
26
POZZO, Andrea. Perspectiva pictorum et architetorum. Romae: Typis Joannis J.
Kornarek Bohemi apud S. Angelum Custodem, 1693, pars prima.
27
Ciência responsável pela medição de terras.
28
PENNA, Girolamo. Elementi di Agrimensura, Bologna: s/editora, 1643. p.6.
CARLA BROMBERG

tema escalar padronizado, naquela época, cada grandeza podia receber


um tipo de medida diferente, ou seja, a distância linear era dada em pés;
a altura, em onças e etc. O arquiteto explicava então como manipulá-
-las de forma a possibilitar o cálculo de uma dada área.29 Ele defendia
que a arquitetura deveria basear-se na ciência das proporções e não da
perspectiva.30
O arquiteto Vincezo Scamozzi (1548-1616), com quem Serlio
debateu em seus tratados, definiu assim a medida:
[...] e de acordo com o módulo, palavra latina;
dos gregos dita metros [...] que quer dizer me-
dida, e muito utilizada por Vitrúvio e outros, e
que é própria da arquitetura, não é medida fixa
e determinada como é o palmo, os pés, o braço
e semelhantes, como afirmam alguns, mas uma
porção racional, regra homogênea com relação à
coisa medida, por vezes maior e outras menor, de
acordo com a vontade do arquiteto [...]31

Scamozzi explicava, que o módulo se dividiria em partes, e se


estas partes fossem em número de sessenta, seria o ideal. O número
88
sessenta era para ele o produto do número perfeito 6 (matemático/
musical)32 por 10. Essas sessenta partes iguais eram chamadas de mi-
nutos, a imitação dos geógrafos e astrólogos comparados às marcações
dos graus da Terra e do Céu, ou do relógio. 33As plantas e elevações
fornecidas por Scamozzi em seu tratado, proviam longitudes e latitudes
e foram interpretadas pela historiografia como sendo figuras de natureza
cartográfica.
Como se vê, coexistiam diferentes tradições de medidas e todas
elas tentavam mediar a concepção abstrata da arquitetura e sua realidade.
Barbaro era um arquiteto e humanista que havia escrito muitos tratados

29
SERLIO, Sebastiano. Libro Estraordinario di Sebastiano Serlio. Venetia: Fran-
cesco Senese, 1566, a2.
30
SERLIO. Libro Estraordinario di Sebastiano Serlio, op. cit., 4a.
31
SCAMOZZI, Vincenzo. L’Idea della Architettura Universale Divisa in X libri.
Venezia: Girogio Valentino, 1615, p.4.
32
Matematicamente o número perfeito é um número inteiro para o qual a
soma de todos os seus divisores positivos prórios é igual ao próprio número
(3+2+1=6). Na música renascentista o número 6 foi definido por número
senario.
33
SCAMOZZI. L’Idea della Architettura Universale Divisa in X libri, op. cit., p.7.
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

comentando as obras de Aristóteles e até um tratado sobre música. Se-


gundo Mitrovic (1996) a discussão da relação entre os entes abstratos
e reais vinha sendo constante nas obras de Barbaro e dois problemas
arquitêtonicos poderiam ser solucionados como decorrência desta dis-
cussão: o status da perspectiva na arquitetura,34 tema que apareceria em
muitos escritos de perspectiva, e a relevância das correções ópticas nos
desenhos, ou melhor, nas plantas e elevações.35
Para tentar entender estas relações, pensemos nas informações
contidas nos desenhos: eles traziam as marcações de medidas através
da indicação de proporção e não de medidas absolutas; segundo, as
proporções eram relações de quantidade e não expressões absolutas de
medidas, e representavam tradições diversas: musical, cartográfica, da
agrimensura. Um segundo ponto com relação aos desenhos era a sua
relação com a realidade da construção e assim seria necessário saber: se
as proporções indicadas estavam se referindo ao que seria construído,
ou seja, estariam propriamente nas edificações; ou se seriam assim per-
cebidas, ou seja, constituidoras do efeito.
Neste contexto, a falsa arquitetura apareceu como um exercício 89
de execução e percepção e não à toa, valeu-se em exuberância de ele-
mentos edificantes como as colunas. O resultado da percepção visual
seria o engano causado pela falsa arquitetura e assim, o resultado final
seria dado pela percepção. Para que o efeito visual acontecesse, deveria
haver, por parte dos autores, conhecimento sobre a visão, não necessa-
riamente através da anatomia descritiva do órgão, mas através do posi-
cionamento do olhar. Consequentemente, discorreram os autores sobre
os problemas de como ver, onde estariam os pontos espaciais como, o
do horizonte, o ponto de vista, ponto de fuga, em que número deveriam
ser, onde o indivíduo se colocaria para ver o efeito do engano, etc.
Bernard Lamy (1640-1715), matemático e teólogo francês dizia
em seu tratado de geometria: “Toda imagem é uma perspectiva […] por-
que é impossível ver precisamente a mesma coisa a partir de dois pontos

34
Ver, por exemplo, Paris: Anisson Imprimerie Royale, 1701. LAMY, Bernard.
Traité de Perspective. Paris: Anisson Imprimerie Royale, 1701, p. 28-32.
35
MITROVIC. The Theory of proportions in Daniele Barbaro’s Commentary on
Vitruviu’s De Architectura, op. cit. p.56.
CARLA BROMBERG

de vistas diferentes”,36 para ele, a perspectiva estava ligada à geometria,


dado que a geometria englobava todas as ciências que possuíam por ob-
jeto de estudo um corpo.37 O matemático Egnazio Danti (1536-1586),
que escreveu tratados sobre medida e sobre matemática, tornou-se bas-
tante presente no âmbito da discussão ao comentar a obra de Jacopo
B. Vignola (1507-1573). Sobre como colocar o ponto de distância ele
dizia: “[...] porque esta é uma das principais operações da perspectiva [...]
porque é preciso que a perspectiva seja vista de uma vez, numa olhada,
sem mesmo mover-se cabeça ou o olho [...]”.38 Ao explicar sobre como
pintar as áreas vistas de baixo para cima (di sotto su) fornecia uma solução
que fora utilizada por Vignola no quarto do Palazzo di Caprarola:

[...] se pinta uma perspectiva, escolhendo o ponto


de distância tão longe, quanto a altura do cômo-
do, que se sabe por relação a sua largura, e engana
de tal maneira o olho, que ao entrar no cômodo
se acredita que este é muito mais alto do que re-
almente é.39

Dentre os tratadistas, assim como não havia um consenso


90
quanto à utilização e definição de proporção e medida, também não
havia com relação às colocações sobre os pontos de vista, de fuga e do
horizonte. Andrea Pozzo (1642-1709), famoso teórico da falsa-arquite-
tura, defendia claramente a utilização de um só ponto de fuga. 40Martino
Bassi (1542-1591) em seu tratado Dispareri in Materia d’Architettura, 41dizia
que mentiam aqueles que diziam haver mais de um ponto no horizonte
e de mais de uma distância, dado que em nenhum tratado de perspectiva
ele soubesse terem defendido isto tipo [de absurdo]. Em Della Architet-

36
LAMY. Traité de Perspective, op. cit.
37
LAMY, Bernard. Les éléments de géometrie. [1 ed., 1684]. 2 ed. Paris: Jombert,
1758, preface xj.
38
DANTI, Egnazio. Le due regole della prospettiva pratica di M.Jacomo Barozzi da
Vignola. Roma: Camerale, 1611, p.51.
39
DANTI. Le due regole della prospettiva pratica di M.Jacomo Barozzi da Vignola,
p.51.
40
POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et architectorum. op. cit., Primo libro,
n.12. Fig. 88, Balaustrata della figura 87 messa in prospettiva di sotto in su con
distanza corta.
41
BASSI, Martino. Dispareri in Materia d’Architettura. Bressa: Francesco & Pie.
M.M.Fratelli, 1572.
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

tura de Giuseppe Viola Zanini (1575? - 1631), considerado cartógrafo,


arquiteto e pintor, apesar de ilustrar e apresentar vários pontos de fuga,
concluiu seu tratado defendendo uma unidade prospéctica.42
Pode-se dizer que os embates se davam quanto a defesa da
construção canônica da perspectiva vis-a-vis os que queriam desvincular
a prática de um só ponto de vista. Na França, este debate se deu com au-
tores como Abraham Bosse (1604-1676), Gregoire Huret (1606-1670)
e Girard Desargues (1591-1661). Bosse e Huret basicamente defendiam
vários pontos de fuga, que diziam evitar a distorção do sistema monofo-
cal. Na Espanha, Antonio Palomino Velasco (1655-1726), em seu Museo
Pictorico defendia uma construção prospética policêntrica43.
Mas a técnica do engano, ou seja, o uso da perspectiva e da
distorção incluía ainda discussões quanto à forma e os delineamentos
do desenho e a devida forma de eleger as figuras a serem modificadas.
Serlio, explicava:

Que o arquiteto deva ser grande entendedor da


matemática, isto é, [conhecedor] das medidas
e dos números, que se sirva da geometria para 91
escolher o espaço e os compartimentos, [...]
“Que saiba a perspectiva teórica para saber va-
riar a forma, tamanho e postura dos elementos
e desenhar as plantas, e [...] porque é seu ofício
também desenhar as cenas dos espetáculos, [...]
mesmo sabendo que os pintores irão pintá-las
posteriormente”44

Esta modificação podia ser uma diminuição proporcional. Za-


nini explicava no prefácio de sua obra citada anteriormente, da neces-
sidade dos diferentes delineamentos e da noção da projeção da sombra
no teto para ajudar a perceber o tipo de distorção. Zanini ao comentar a
obra de Vignola, dizia:

42
ZANINI, G. Viola. Della Architettura di G.V.Z, padovano, pittore et architetto.
Padova: Francesco Bolzetta, 1629.
43
VELASCO, Antonio P. El Museo Pictorico Y Escala Óptica. Madrid: La Impren-
ta de Sancha, 1795.
44
SERLIO, Sebastiano. Tutte le opere di Architetture e Prospettive. Veneza: Frances-
co de’ Franceschi, 1600, 25f9.
CARLA BROMBERG

[daqueles que mal interpretaram Vignola] porque


não compreendem o que seja o ponto de distân-
cia, porque usam uma perspectiva com dois pon-
tos, um alto e outro baixo, o que é contra qual-
quer regra e que se prova com a Gnomica, que
através da óptica mostra sua aparência, porque
não pode fazer o gnômo, sombra, senão na parte
horizontal [...] o uso das colunas na perspectiva
cria o aspecto vertical, ao qual se usa o gnômo,
que no teto fará parecer que as coisas estão em
pé.[...] e como mostra Tomaso Laureti, se esco-
lherá as partes que no teto serão verticais, e não
serão pela perspectiva mas pela quadratura e as
demais, [...]45

Barbaro, ao elencar os preceitos arquitetônicos, propôs uma


técnica de adocicar, termo também utilizado no tratado espanhol, os
arranjos nas proporções de forma a conseguir um resultado satisfatório:

Semelhantemente ao que acontece na citara (ins-


trumento musical), na qual todas as cordas po-
dem ser proporcionadas de maneira a soar bem
[...] e como no cantar, que ao ser um canto acom-
92 panhado necessita de um certo temperamento
que faça doce e suave toda a harmonia.[...] Esta
bela forma, tanto na Música quanto na Arquite-
tura se chama Euritmia, mãe da graça e do prazer,
tanto nas coisas móveis quanto nas imóveis [...]46

O temperamento era uma técnica utilizada na música, consistia


numa forma de distribuição das quantidades das partes para gerar uma
percepção aprazível do todo. Não obstante, lidava com o fato de se uti-
lizarem na música proporções irracionais, ou seja, diminuíam-se alguns
intervalos musicais, distorcendo suas proporções originais, que eram ra-
cionais, e montavam-se novas quantidades de partes visando um sistema
ordenado e principalmente de boa audição. A realização do tempero,
ou seja, sua inserção no instrumento musical era feita diretamente pelo
músico prático, enquanto que o teórico buscava um instrumento que
pudesse realizar o cálculo do tempero, dado que o embasamento teórico
vigente não fornecia meios para tal. No caso da música, o instrumento

45
ZANINI, Gioseffo V. Della Architettura, op. cit., pp.38-9.
46
BARBARO. I dieci libri dell’architettura et commentati, op. cit., p.33
FALSA ARQUITETURA E MÚSICA: SOBRE OS CONCEITOS...

discutido nos tratados foi o mesolábio,47 enquanto que nos tratados de


arquitetura instrumentos que mediavam o desenho e a pintura, foram
por vezes modificações dos maquinários de Brunelleschi, e por outras
o telaio.48 Assim como na música, onde havia uma diferença na prática
do medir, ou seja, a medição que faziam os teóricos que buscavam com-
preender a prática era diversa daquela exercida pelos que construíam os
instrumentos musicais, na arquitetura, a maior parte destes instrumen-
tos citados anteriormente caracterizavam uma medição diversa daqueles
que realmente construíam os efeitos.
O fato é que, como vimos, a passagem do âmbito teórico para
o prático se mostrou mais complexa do que a literatura costuma apre-
sentar, dado que não pode ser resumida a uma aplicação da teoria na
prática. Naquela época, não existia uma matemática aplicada. Os co-
nhecimentos matemáticos pertenciam à áreas diferentes (aritmética e
geometria), cujos embasamentos não eram comuns (não existia uma lin-
guagem matemática universal). Uma segunda questão relevante à noção
da falsa arquitetura é a tendência historiográfica a vinculá-la sempre à
93
pintura, resumindo-a a uma forma desta. Contudo, como vimos, ela está
diretamente relacionada a uma teoria e prática arquitetônicas, que, não
estava situada dentre as belas-artes e deveria responder às necessidades
de uma ciência matemática. De acordo com o objetivo do artigo, ten-
tou-se elencar, os embasamentos teóricos e as descrições práticas como
fornecidas nos próprios documentos pelos seus autores. A abordagem e
metodologias providas neste artigo,49 que analisa diretamente os tratados
de época, faz do documento um forte aliado na construção do contexto
e de suas relações. Na medida em que identificamos nos documentos as
teorias defendidas, as interfaces do conhecimento, as fontes que os au-
tores demonstram ter lido, citações de embates e diálogos entre autores

47
Em tratados de autores como Gioseffo Zarlino, Vincenzo Galilei, Francisco
Salinas etc.
48
CAMEROTA, Filippo. Perspectiva Mechanica. L’invenzione degli strumen-
ti tra teoria e pratica della rappresentazione prospettica. In: COJANNOT-LE
BLANC, Marianne; DALAI EMILIANI, Marisa; GLATIGNY, Pascal D.
(Eds.). L’Artiste et l’ouevre à l’épreuve de la Perspective. Roma: École Française de
Rome, 2006, p. 217-42.
49
CESIMA: Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência.
PUCSP.
CARLA BROMBERG

e seus respectivos tratados, assim como a identificação de outros docu-


mentos a eles relacionados, podemos entender o processo pelo qual o
conhecimento dos conceitos e das inovações se deram.

94
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

Capítulo 6

ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR


DA GLÓRIA - ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIZAÇÃO
DO ARRAIAL DO TEJUCO, MINAS GERAIS

Celina Borges Lemos

A arquitetura no contexto do arraial, da vila e da cidade e a cons-


tituição de uma tradição.

A descoberta de diamantes na região do então Arraial do Tijuco


data de 1714, tendo sido reconhecida pela Coroa portuguesa em 1730.
Nessa data o governo emitiu Carta Régia, declarando monopólio da
Coroa em relação à extração dos diamantes. Para a região, deslocaram-
95
-se principalmente paulistas, portugueses e negros, ao lado de outros
estrangeiros em número menor. A formação urbana deste arraial e as
características arquitetônicas das construções fundaram-se nesse sincre-
tismo cultural. Desse fato resultou uma estratificação étnica que, aliada
às questões sociopolíticas e às condições do meio ambiente físico, defi-
niu a originalidade da paisagem arquitetônica do século XVIII.1
O processo de ocupação urbana do referido arraial apresen-
tou duas ordens instituíntes: a Igreja e o Estado Monárquico. Coube
à Igreja a função de articulação com o poder econômico privado no
sentido de se ampliarem as construções temblarias, A responsabilidade
do Estado seria patrocinar, em grande parte, os acontecimentos religio-
sos e as construções civis e religiosas. Observa-se que o espaço urbano
encontrava-se condicionado pelas esferas do sagrado e do profano, as
quais se intercambiavam em termos estéticos no interior da vida pública
e privada.

1
COUTO, Soter. Vultos e fatos de Diamantina. Belo Horizonte: Instituto Histó-
rico e Geográfico de Minas Gerais (IHG-MG), 1954.
CELINA BORGES LEMOS

O desenho pouco comum deste arraial veio definir um aglome-


rado singular no contexto mineiro. Segundo Vasconcellos,2 essa adotou
a solução quadrangular concentrada e reticular, baseada nos princípios
urbanísticos portugueses. No entanto, a solução tijucana diferia-se da
portuguesa, uma vez que apresentava a ausência de praças e de cen-
tralidade do poder, indicada tradicionalmente pelas casas de Câmara e
Cadeia. Enquanto processo intrínseco às áreas propícias à mineração, a
extração iniciou-se ao longo do vale, nos leitos dos ribeirões e junto aos
tabuleiros marginais. Depois de concluída a parte das reservas desses
núcleos, as grupiaras foram exploradas nas encostas.
No Tijuco, a área aglomerada inicial estrutura-se pelas ruas do
Burgalhau e Espírito Santo, e pelo Beco das Beatas. Essa peculiar situa-
ção geográfica, segundo os historiadores, demonstra a provável desenho
urbano como resultado da confluência dos caminhos com as minerações
no seu entorno. O aglomerado representou a polarização dos núcleos
isolados e conforma-se como centro de serviços, o lugar da urbanidade.
Além de polarizar tais núcleos, como centro de gravidade e geométrico,
96
a região do Tijuco dispunha, de terrenos topograficamente mais favo-
ráveis, com possibilidades de arruamentos transversais à encosta, que
seguiam as curvas de nível naturais da encosta.3
O povoado que nasceu no Burgalhau e adjacências veio a es-
tabelecer-se mais ao centro, em uma região plana que estruturou a ur-
banização subsequente. O reticulado inicial subdividia-se à medida que
se aproximava das ruas Direita, Bonfim e Contrato. Na primeira dessas
ruas, estabeleceu-se o Largo Santo Antônio, contíguo à matriz de mes-
mo nome. A partir dela, situava-se a rua do Contrato, onde estavam a
Casa do Contrato e a Igreja São Francisco de Paula, da Ordem Terceira
do Carmo. Essas localizações, somadas às das ruas da Quitanda e do
Bonfim, corresponderam à ocupação urbana do Distrito Diamantino,
o qual veio a ser denominado Arraial do Tijuco. Comparada às dos de-
mais povoados, a população inicial do arraial era muito reduzida, pois

2
VASCONCELLOS, Sylvio de. Formação urbana do Arraial do Tejuco. Re-
vista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n.14, p. 121-134,
1953, p. 123.
3
VASCONCELLOS. Formação urbana do Arraial do Tejuco, op. cit., p. 129.
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

apenas um terço dela residia fora do reticulado. As causas vinculavam-se


às limitações impostas pela Metrópole e à distância em que se situavam
as lavras.4
O desenvolvimento do arraial deu-se em três etapas: a primeira,
de 1700 a 1720, baseada em uma ocupação esparsa; a segunda, de 1720
a 1750, quando o reticulado se estabeleceu; e a terceira, de 1750 em
diante, quando houve a sua consolidação e crescimento urbano. Cumpre
notar, no entanto, que a grande expansão só viria a ocorrer no século
subsequente, quando o Arraial foi elevado à categoria de Vila e, poste-
riormente, de Cidade.5
Na arquitetura residencial identifica-se que na primeira fase o
espaço era dotado de ampla rusticidade. Ainda que não seja possível a
divisão das arquiteturas civil e religiosa, devido à ausência de informa-
ções, é possível indicar as formas pilares de abrigo. Os primeiros ran-
chos construídos com peças vegetais apresentam um sistema construti-
vo formado por: “quatro esteios de paus roliços, quatro frechais e uma
cumeeira ao alto; roliços também eram os caibros que recebiam as fibras
vegetais de cobertura: sapé, folhas de palmeiras etc.”.6 97
Identifica-se também nas primeiras residências a influência da
arquitetura rural paulista, através das proporções, bem como da adoção
da taipa de pilão. Esta e o pau-a-pique conformavam a vedação típica
da arquitetura do arraial. Como alternativa construtiva há a presença do
embasamento e da alvenaria em pedra, muito utilizado devido às amplas
reservas desses materiais no Distrito Diamantino. O período de cres-
cimento situado entre 1720 e 1750 é caracterizado pela polarização do
arraial através da triangulação das ruas Direita, do Contrato e do Bon-
fim. Nestas fases as residências tiveram suas áreas multiplicadas através
da ampliação das atribuições, utilidades e devido o aumento das famí-
lias. Sendo assim, surgiram novos partidos em que adotou-se uma altura
maior nas alturas das vedações e dos embasamentos. Os acabamentos
melhoraram, ao mesmo tempo em que ocorreu uma modificação nas

4
VASCONCELLOS. Formação urbana do Arraial do Tejuco, op. cit., p. 132.
5
MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco, Cidade de Diamantina.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1944.
6
VASCONCELLOS, Sylvio de. Arquitetura, dois estudos. Goiânia: MEC/
SESU/PIMEG/ARQUGE, 1983, p. 40.
CELINA BORGES LEMOS

proporcionalidades volumétricas, caracterizada por um prolongamento


transversal.7
A horizontalidade da residência prevaleceu e definiu uma equi-
valência entre os vãos e as vedações. A influência da residência rural era
marcante, uma vez que ainda havia abundância de terrenos. A planta
também diversificou- se, no sentido de atender a uma diferenciação de
atribuições. Para o autor surge o corredor de entrada ou o saguão, o
quarto de hospedes, a grande sala de receber e a varanda de trás, de
serviço. As cozinhas ainda são inseridas nos conhecidos puxados pos-
teriores, que muitas vezes geram insinuando pátios internos. Os forros
em madeira foram melhorados, e adotou-se a treliça como elemento de
revestimento das áreas molhadas. Já o saia e camisa, ao lado de forros
lisos ou emoldurados, foi valorizado por pinturas e entalhes. Os beirais
estreitos possuíam cachorros e cimalha, decorada ou não e estavam ar-
ticulados às folhas das janelas, guilhotinas e portas em almofadas per-
filadas. Surgiram também a vedação da janela treliçada e a gelosia que
definia uma nova luminosidade interna.
98
A pedra representou, a cada transformação, uma função mais
relevante: integrada como alvenaria, piso ou escadas, intercalava-se com
a madeira dos guarda-corpos e cunhais, sofisticando a herança rural.
Com base nessas referências, pode-se indicar um acervo de exemplares
tipológicos existentes no centro principal. Houve a inclusão dos anexos
compostos por: banheiros, cozinhas ou outro tipo de área de serviço,
que se localizam nos fundos da casa. O terceiro período, a partir de
1750, definiu-se como a fase de consolidação do Arraial do Tijuco. Na
medida em que a população do povoado aumentava, disponibilizava-se
um número cada vez menor de terrenos localizados no centro do aglo-
merado. Ao lado disso, as áreas disponíveis na região mais concentrada
foram em grande parte desmembradas e conformaram terrenos meno-
res. Nesta fase contrastavam-se indicativos de aumento populacional
e uma sistêmica de produção econômica como monopólio de poucos
grupos.
A riqueza assim concentrada é que determinou
então uma estratificação social acentuada, agru-

7
VASCONCELLOS. Arquitetura, dois estudos, op. cit., p. 41.
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

pando, de um lado, os beneficiários do favor real


– intendentes, contratadores, servidores públi-
cos, senhores de grande cópia de escravos, ataca-
distas etc. – e, de outro, dependentes dos primei-
ros faiscadores independentes, tropeiros, lojistas,
pretos, mulatos forros etc.8

Além dessa aristocracia, os aventureiros, atravessadores e co-


merciantes locais, juntamente com os excluídos mencionados acima,
representavam uma conjuntura econômica oscilante que se distanciava
da opulência. As construções religiosas, muito mais simples que as dos
outros centros mineradores, dependeram, mesmo com a ajuda do poder
instituído, do patrocínio do poder privado. A partir de 1750 o arraial
consolidou-se, mas, no entanto, não houve registro de um crescimento
expressivo. Apenas por volta de 1831, com a elevação do Arraial à ca-
tegoria de Vila, o aglomerado inauguraria uma nova dinâmica de desen-
volvimento urbano.
A arquitetura produzida nesse período oscilou entre os partidos
inscritos em lotes de frente estreita e aqueles ainda próprios dos amplos
terrenos. Prolongadas e reduzidas fachadas localizavam-se em todos os 99
pontos da malha central e houve uma maior incidência das segundas
na retícula urbana inicial. Os partidos, nesse sentido, incidiam de forma
paralela ou longitudinal às ruas e definiam ocupações em profundida-
de. Através de corredor lateral de comprimento variável, a circulação
articulava-se com as áreas íntimas, sociais e de serviço, onde os cômodos
estavam dispostos sucessivamente.
Juntamente com as transformações programáticas e distribu-
tivas das plantas residenciais, o final do século XVIII e início do sécu-
lo XX foi também marcado pelo surgimento do sobrado. A ocupação
do solo passou a traduzir um melhor aproveitamento dos terrenos, ao
mesmo tempo em que houve uma redução da sua horizontalidade de
fachada. Essa postura conformou tipologias de residências dotadas de
varandas laterais, ao lado dos sobrados de dois ou três pavimentos. Se-
gundo Vasconcellos,9 o surgimento dessa arquitetura nem sempre visou
a “atender à ampliação da moradia propriamente dita, mas a abrigar de-
pendências anexas indispensáveis à vida ou ao trabalho de seus morado-

8
VASCONCELLOS. Formação urbana do Arraial do Tejuco, op. cit., p. 133.
9
VASCONCELLOS. Arquitetura, dois estudos, op. cit., p. 42.
CELINA BORGES LEMOS

res”. A implantação do imóvel podia também explorar o declive natural


do terreno, criando o andar térreo e os porões. O pé-direito foi amplia-
do, e os vãos esticaram-se para cima e para baixo em janelas rasgadas por
inteiro, providas de sacadas ou de parapeitos entalhados, com balaústres,
que multiplicavam as linhas verticais das construções. “Estreitas e altas,
abrem-se as fachadas quase por inteiro em janelas e portas, aproveitando
ao máximo as faces livres da construção, enriquecidas pelo ondular das
vergas curvas quase contínuas”.10
No caso de Diamantina havia a prevalência de balcões com
guarda-corpo em madeira e, posteriormente, em ferro. No século XVIII,
essas aberturas possuíam guarda-corpos seccionados que, posteriormen-
te, se tornou corrido. Neste último caso, o ferro acompanhava o modo
de produção, que ia do artesanal ao industrializado, estando integrado à
sofisticação também da carpintaria de portas e janelas. Observa-se uma
expansão da construção assobradada de uso misto ou exclusivamente
residencial, que preponderou na paisagem diamantinense na passagem
do século XVIII para o XIX.
O sobrado vinculou-se à consolidação do arraial e ao seu de-
100 senvolvimento ao longo do século XIX. Por outro lado, cumpre indi-
car que, numericamente, tal tipologia expandiu-se na malha urbana de
forma mais expressiva na segunda metade desse século. Tais evidências
inseriram-se numa nova realidade da economia urbana, cuja opulência
mineradora se encontrava em declínio. Ao mesmo tempo, surgiram no-
vas ações econômicas e políticas, instituídas ao lado de técnicas, mate-
riais e sistemas construtivos inovadores no âmbito da arquitetura. Ao se
analisar o cenário arquitetônico diamantinense da primeira metade do
século XIX, conclui-se que tanto a arquitetura religiosa quanto a civil
foram notórias. Nesse passo, as inúmeras igrejas distribuídas na malha
articulavam-se com o casario de usos comercial/residencial, residencial
e residencial/administrativo dos senhores contratadores e intendentes
da Coroa.
Em 1817 o viajante Saint-Hilaire esteve no arraial e assim des-
creveu a paisagem local:
O Tijuco está edificado no declive de um monte,
cujos altos se acham profundamente escavados
pelos mineiros. [...] Do outro lado do vale, ser-

10
VASCONCELLOS. Arquitetura, dois estudos, op. cit., p. 42.
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

ras extremamente áridas fronteiam o arraial [...].


A verdura dos jardins do arraial contrasta, como
logo direi, com essas cores sombrias.11

Com relação aos detalhes do caminhar, afirmou que:

As ruas do Tijuco são muito largas, muito asse-


adas, mas muito mal calçadas; quase todas são
declives, em razão da situação do Arraial. [...] As
casa s edificadas, umas de terra e madeira, ou-
tras com adobes, são cobertas de telhas caiadas
por fora e, em geral, bem limpas. As portas e ja-
nelas são pintadas de diferentes cores, conforme
o gosto dos proprietários”.12

Como mostra o viajante, no início do século XIX, o Arraial do


Tijuco caracterizava-se pela instigante paisagem que circundava as vias
e o casario setecentistas. Esse quadro manteve-se até por volta de 1838,
época de grandes dificuldades socioeconômicas:

“Por essa época o diamante já escasseara, e o


ouro desaparecera quase por completo. Persistiu
apenas a riqueza advinda do comércio regional, 101
favorecido depois pela estrada de ferro, que con-
solidaria a cidade como ‘boca do sertão’ e entre-
posto do nordeste mineiro”.13

Assim, conclui-se que houve certa estagnação com relação à


expansão urbana e à renovação arquitetônica durante a primeira metade
do século XIX.

O conjunto arquitetônico do solar Casa da Glória como um lega-


do entre a tradição e a modernização.

A história da Casa da Glória acompanha os desdobramentos


nos tempos do Arraial do Tejuco, da Vila e Cidade de Diamantina. A
construção da residência de um pavimento ocorrera entre 1775 e 1800

11
SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas
Gerais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, p. 197.
12
SAINT-HILAIRE. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, op.
cit., p. 224-226.
13
VASCONCELLOS. Arquitetura, dois estudos, op. cit., p.42.
CELINA BORGES LEMOS

essa pertenceu inicialmente à Coroa portuguesa. Apesar da ausência de


detalhes sobre o responsável pela obra, a casa fora adquirida por D. Jo-
sefa Maria da Glória, viúva do Sr. Manuel Viana, que lá residiu com os
filhos até 1813. Nesta data, a residência já denominada Casa da Glória em
homenagem à sua ilustre moradora, foi comprada pela Real Fazenda por
2:000$000. O local se tornou a residência oficial dos intendentes do Dis-
trito Diamantino o que a promoveu a uma condição de status referencial
enquanto arquitetura civil. Como sede dos intendentes da comarca a
casa ficou ainda mais famosa, e pelas festas, recepções e comemorações.
É provável que o primeiro intendente Modesto Antônio Mayer ocupou
a residência entre os anos de 1801 e 1807. O segundo morador foi Dr.
Manoel Ferreira Bittencourt Aguiar Sá que permaneceu na casa de 1807
a 1822. Por seus espaços passaram grandes estudiosos como Auguste
de Saint Hilaire, John Mawe, Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege, J.B.
Von Spix, Von Martius e muitos outros.14

102

Figura 1: Conjunto Solar Casa da Glória com o passadiço em Diamantina, MG.


Foto: Luiza Grassi, 2010.

De acordo com os relatos de Joaquim Felício dos Santos15 em


1818, as comemorações relativas à aclamação de D. João VI e o casa-
mento de D. Pedro tiveram destaque no solar: “A casa residência do in-
tendente no alto da rua da Glória, representando um rico palacete, foi a

14
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Espaço cultural Casa
da Glória. Projeto de implantação. Belo Horizonte: Mimeo, 1999.
15
SANTOS, Joaquim Felício. Memórias do Distrito Diamantino. São Paulo:
EDUSP/Itatiaia, 1976, p. 235.
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

que mais se distinguiu.” Segundo os registros do historiador, a casa nesse


período chamava a atenção pelos seus moradores ilustres, bem como
pela qualidade construtiva e fachada imponente. Além disso, devido ao
amplo terreno, os proprietários implantaram jardins com modalidades
diversas de paisagismo, que completavam a graciosidade da construção
e ampliavam as modalidades de uso social das espacialidades. Santos ao
relatar um dos festejos lá ocorridos assim o descreve:

Era então um rico, lindo e majestoso edifício [...],


com amenos jardins, chafarizes tanques, bosques
artificiais, alamedados com graça, labirintos ro-
seiras entrelaçadas: um dos melhores edifícios do
Tijuco.16

A valorização da casa como residência oficial dos intendentes


perdura até 1822, que com a independência do país propiciou uma mu-
dança no modus vivendi tejucano. Estes conferiam ao majestoso casarão
um novo momento. Em 1831, o então Príncipe Regente elevou a fre-
guesia de Santo Antônio do Arraial do Tijuco à categoria de vila. Já no
ano de 1838, Vila Diamantina foi promovida à categoria de cidade, fato
103
que, ao lado dos fatores socioeconômicos, propiciou uma redefinição
da paisagem urbana que a dotou de inovadora representação cultural.17
Nesta fase de expressivas transformações políticas e econômi-
cas o solar permaneceu como propriedade estatal até 02 de fevereiro
de 1864, quando o local se tornou residência oficial do segundo arce-
bispado de Minas Gerais. D. João Antônio dos Santos, o primeiro bis-
po de Diamantina, ao tomar posse na Diocese, além de criar inúmeras
pastorais, atuou nos sistemas educacional e econômico da região. As
características urbanas da época foram descritas por Sir Richard Burton
como prósperas e dotadas de originalidade. Sua imponência vinculava-
-se especialmente à tipologia da aglomeração, valorizada pelo casario e
pelas igrejas.

Abaixo de nós está uma infinidade de casas pin-


tadas de rosa, amarelo e branco, com grandes
jardins que as isolam das ruas largas e amplas
praças, onde se distinguem edifícios públicos de
tamanho superior e uma confusão de igrejas com

16
SANTOS. Memórias do Distrito Diamantino, op. cit., p. 327.
17
MACHADO FILHO. Arraial do Tijuco, Cidade de Diamantina, op. cit.
CELINA BORGES LEMOS

uma ou duas torres que testemunham a piedade


local”.18

No ano de 1866, o então Colégio de Nossa Senhora das Dores


foi fundado pelo Bispo D. João Antônio dos Santos e entregue às irmãs
de São Vicente de Paulo que teve como sede o Casa da Glória. Na época
da criação do colégio, o Sr. Bispo D. João Antônio dos Santos deixa a
casa e se transfere para a rua do Contrato. Este propiciou a criação do
colégio, como também patrocinou sua reforma e a compra de outro
imóvel. Localizado em frente à Casa da Glória, esse segundo imóvel
pertencera ao Sr. Coronel Rodrigo de Souza Reis.

104

Figura 2: Sobrados do conjunto Casa da Glória com o passadiço.


Foto: Luiza Grassi.

As iniciativas em torno da arquitetura do edifício coincidem


com uma conjuntura de mudanças relatada por Reis Filho19 em torno da
arquitetura do século XIX e os elementos de inovação dos espaços. Para
Vasconcellos, essas renovações ocorreram a partir de 1750 ao analisar a
uma arquitetura residencial. Demonstra que essa adquire uma setoriza-
ção que define as primeiras inovações:
Na frente, a sala; no meio, as alcovas; atrás, o
serviço. O corredor é a peça vital: dá acesso à

18
BURTON, Richard. Viagens aos planaltos do Brasil. Tomo II: Minas e os mi-
neiros. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1983, p. 281.
19
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo:
Perspectiva, 1970.
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

vivenda, atende à circulação interna, permite o


trânsito da rua aos quintais e, por isso mesmo,
recebe tratamento variado. Por ele entram as vi-
sitas, mas entra também o cavalo arreado ou o
burro carregado. Por ele atinge-se o porão, quan-
do existente, usando-se o alçapão disfarçado de
soalho, e o sótão, o vazio da cobertura, buscado
por escadas discretamente agenciadas. 20

Apesar dos poucos registros ainda disponíveis, tudo indica que


a adaptação do colégio é considerada a primeira obra do arquiteto bri-
tânico John Rose.21 O convite veio de D. João Antônio dos Santos que
atribuiu ao arquiteto a missão de contribuir com as inovações técnicas e
estéticas da engenharia e arquitetura tão necessárias naquela conjuntura
de mudanças. A nova atribuição, o solar, ocorrera de maneiras diversas,
uma vez que a área não era suficiente para o funcionamento do colégio
e orfanato. A construção do segundo andar, datada por volta de 1867
e 1868 e no primeiro ano, compreendeu apenas a ampliação e refor-
ma da conhecida residência. “Várias paredes da Casa da Glória foram
demolidas; o prédio foi adaptado e aparelhado para receber as órfãs e
educandas”.22 Segundo relato de Sir Richard Burton: 105

Dentro dela os carpinteiros estão em atividade,


cortando em pedaços madeiras ainda em bom
estado após um século de uso; possui ao fundo
uma larga varanda à moda antiga, olhando para
um jardim [...] com o melhor solo e servido com
a mais pura água. 23

Ao demonstrar suas amplas habilidades, o arquiteto John Rose


pôde adotar as inovações construtivas e simultaneamente respeitar as
tradições construtivas e estéticas do passado colonial. A taipa de pilão

20
VASCONCELLOS. Arquitetura, dois estudos, op. cit., p. 42.
21
O arquiteto, artífice e engenheiro mecânico John Rose nasceu na região da
Cornualha, Inglaterra, na primeira metade do século XIX. Em busca de uma
nova vida, emigrou para Minas Gerais, no final dos anos quarenta daquele
século, para trabalhar na Mineração Morro Velho, em Nova Lima. No início
da década de sessenta, desligou-se da empresa e mudou-se para a região de
Diamantina, quando se casou com Dona Manuela Rodrigues da Paixão. Ver:
TIBÃES, M. da Conceição Duarte. O Artífice John Rose, um inglês em Diamantina.
Belo Horizonte: GC, 2001.
22
ALMEIDA, Lúcia Machado. Passeio a Diamantina. São Paulo: Martins Edi-
tora, 1956, p. 208.
23
BURTON. Viagens aos planaltos do Brasil, op. cit., p.281.
CELINA BORGES LEMOS

foi substituída por adobe e argamassa, sendo o edifício estruturado em


madeira, com embasamento em pedra. As fachadas apresentam vãos
com dois tipos de acabamento: adota a verga alteada como guarnição, as
janelas do andar inferior foram compostas de guilhotinas e gelosias; já as
superiores, dotadas de guilhotinas sem gelosias, foram integradas com
a cimalha e os cachorros em madeira. Nota-se que o arquiteto, a partir
de um gosto neoclássico, respeitou a paisagem colonial, citando-a sem
romper com a sua imponência enquanto cenário.
Algumas das portas internas são formadas por vergas altea-
das, estando articuladas por guilhotinas simples. Observam-se também
portas almofadadas cravadas com calhas. Os forros são formados prin-
cipalmente de saia-e-camisa, valendo destaque o piramidal, localizado
na parte superior do imóvel. O trabalho de carpintaria competente de
John Rose revela-se nas escadas, guarda-corpos, guarnições e oratório. O
grande oratório da sala principal indica também habilidade artística em
relação ao entalhe e à pintura. O detalhe do confessionário, em madeira
laqueada, apresenta elementos que remetem à gelosia com falsa cornija
dotada de frisos e dentilhos. Estes viriam a ser adotados posteriormente
106 pelo arquiteto na recuperação das fachadas de algumas igrejas. No sen-
tido de ampliar a ventilação e iluminação, o desenho – ainda setecentista
– cria abertura interna, a qual foi preservada.

Figura 3: Interior da Casa da Glória, Segundo pavimento.


Foto: Kamila Brant.

Na extremidade do edifício, como citado por Sir Richard Bur-


ton, tem-se a grande varanda. Esta foi vedada posteriormente, estando
articulada por fechamento de treliças no andar inferior. O seixo rolado e
ARQUITETURA E DETALHES ARTÍSTICOS DO SOLAR DA GLÓRIA...

o embasamento em pedra recompõem a tradição setecentista da região.


Esse processo resulta em um conjunto setorizado conforme relata Ávila:

Apesar da unidade construtiva do sobrado, pode-


-se, para efeito de análise do partido arquitetôni-
co, dividi-lo em três partes. Duas delas se desen-
volvem dentro de uma forma retangular simples,
com amplo pátio interno central, diferenciadas
principalmente na cobertura pelo contraste de al-
tura das cumeeiras. Na terceira parte, a planta se
resolve em L, correspondendo ao prolongamen-
to da fachada principal e mais a lateral esquerda.24

Com a aquisição do edifício fronteiriço, supostamente propos-


to pelo arquiteto John Rose, o passadiço como elemento integrador fora
construído todo em madeira, inclusive com estrutura portante, inverte o
sistema estrutural usualmente adotado em pontes e pequenos viadutos
da época. Em termos estéticos, a fachada é organizada simetricamente,
estando modulada por pilares. O arremate superior é formado por cor-
nija simples e por singelo pedimento em arco abatido. Os vãos do passa-
diço são em arco pleno, os quais remontam às aberturas do campanário
da Igreja Nossa Senhora das Mercês. Ao mesmo tempo, recuperam a 107

linguagem oitocentista da casa inglesa, que reúnem, nesse sentido, dois


passados em um presente.

Figura 4: Detalhe do oratório na Casa da Glória, segundo pavimento.


Foto: Kamila Brant.

24
ÁVILA Affonso. V. Diamantina. In: FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO.
Minas Gerais: Monumentos históricos e artísticos — circuito do diamante.
Barroco, Belo Horizonte: Coleção Mineiriana, 1994, n. 16, p. 342.
CELINA BORGES LEMOS

Na parte interior do segundo edifício há evidências de moder-


nização técnica e estética, embora observa-se a salvaguarda a tradição,
como nos casos do guarda-corpo treliçado, do pedestal com madeira
trabalhada, do forro de saia-e-camisa estilizado e da porta com detalha-
mento fino de carpintaria. Os vãos das portas são dotados de guarnições
delicadas, incorporando a bandeira em vidro com detalhe floral. Essa re-
ferência remete-se à arquitetura de outras capitais brasileiras, como Reci-
fe, São Paulo e Rio de Janeiro, cujas formações urbanas ocorreram antes
de Diamantina. Além da bandeira dos portais, as guilhotinas também
incorporam o detalhe floral, muito típico da arquitetura inglesa do início
do século XIX. Na fachada principal têm-se as janelas com guilhotinas
decoradas, verga reta e balcão de ferro fundido e base de madeira. A
composição evidencia leveza, demarcada especialmente pelo acabamen-
to dos vãos. A cimalha, os beirais com cachorros e os cunhais são em
madeira e acompanham a tradição local. 25
Como conclusão, pode-se apontar que os detalhes constritivos,
estéticos da arquitetura acompanharam em grande parte as transforma-
ções do arraial que se fez vila e cidade. De forma inusitada, as inova-
108 ções da arquitetura têm no solar e depois conjunto Casa da Glória uma
síntese no sentido de inovar para preservar. Assim falam a tradução e a
modernidade na cultura urbana e arquitetônica diamantinense.

25
Os edifícios interligados pelo passadiço ainda funcionaram como escola.
Em 1979, o conjunto foi adquirido pelo Ministério da Educação e Cultura
para sediar o Instituto Eschwege, mais tarde denominado Centro de Geologia
Eschwege – CGE da Universidade Federal de Minas Gerais.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

Capítulo 7

JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A


PINTURA ILUSIONISTA EM IGREJAS DE SABARÁ,
CAETÉ E SANTA LUZIA

Célio Macedo Alves

O texto que se segue reflete o estágio atual de um estudo mais


abrangente sobre o ofício da pintura na região que antigamente veio a
abranger a extensa Comarca do Rio das Velhas, cuja sede foi a Vila de
Sabará, criada em 1711, juntamente com Vila Rica (atual Ouro Preto) e
a Vila do Carmo (atual Mariana).
No caso do nosso estudo, no entanto, procurou-se restringir a
extensa Comarca do Rio das Velhas tão somente à região metropolitana 109
de Belo Horizonte, aqui entendida pela reunião das cidades de herança
colonial como Sabará, Caeté e Santa Luzia, e que apresentam um grupo
de igrejas setecentistas com um acervo razoável de pinturas em perspec-
tiva ilusionista. São pinturas que, se não atingem um nível glamoroso de
outras regiões mineiras, como Ouro Preto, Congonhas, São João Del Rei
e mesmo Santa Bárbara, nem por isso estão destituídas de importância
histórica e artística.
Para o caso exclusivamente sabarense, por exemplo, conhecem-
-se apenas considerações parciais, focalizando especificamente a Igreja
do Carmo e especulações em torno das chamadas chinesises da Capela de
Nossa Senhora do Ó e da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição.
Não obstante, o esforço de levantamento e interpretação de aspectos de
estilo, temas, fontes e análise comparativa levado a cabo por pesquisa-
dores e especialistas como Afonso Ávila, Rodrigo Mello Franco, Carlos
Del Negro, Luis Jardim e Myriam Ribeiro, quase absolutamente nada se
CÉLIO MACEDO ALVES

sabe ainda sobre os artistas que criaram a maior parte destas pinturas.1
Esta situação é decorrente especialmente pela exiguidade da do-
cumentação arquivística (livros de registros das irmandades) no que se
refere às obras de pintura realizadas ao longo do século XVIII e início
do XIX nas igrejas e capelas da região de Sabará, Santa Luzia e Caeté.
Com exceção feita às pinturas da Igreja do Carmo de Sabará, realizadas
pelo pintor Joaquim Gonçalves da Rocha, e cuja documentação é conhe-
cida, ainda que de segunda mão.2 Deste pintor, aliás, ainda temos outras
duas referências documentais (uma, diz respeito apenas a uma carnação
de imagem3), que vem demonstrar a sua forte presença e atuação na
região sabarense e vizinhança.
Outro aspecto que prejudica, e muito, a análise e interpretação
desse importante foco de pinturas são as inúmeras intervenções que
muitas delas vêm sofrendo ao longo dos anos de existência. Diga-se
que algumas delas foram inclusive “recriadas” de maneira grosseira por
artistas plásticos que se “passavam” por restauradores.
Neste cenário de total desconhecimento dos artistas que aturam
na região entre os séculos XVIII e XIX, o pintor Joaquim Gonçalves
110 da Rocha apresenta-se como um caso à parte. Lamentavelmente, até o
momento, não foi localizada nenhuma informação precisa sobre o ano e
local de nascimento e batismo; sobre onde e com quem se iniciou na arte
da pintura; e nem tão pouco sobre o ano e local de sua morte.

1
ÁVILA, Affonso. Igrejas e capelas de Sabará. Revista Barroco, Belo Horizonte:
UFMG, n. 8, 1976, p. 25-65; ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. A pintu-
ra colonial em Minas Gerais. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
Rio de Janeiro: MEC, n. 18, 1978, p. 11-74; DEL NEGRO, Carlos. Contribuição
ao estudo da pintura mineira. Rio de Janeiro: Publicações da Diretoria do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional/MEC, n. 20, 1958; JARDIM, Luís. A
pintura decorativa em algumas igrejas de Minas. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, n. 3, 1939;
OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. A pintura de Perspectiva em Minas Colonial.
Revista Barroco. Belo Horizonte: UFMG, n. 10, 1978/79, p. 27-37, e ______.
A pintura de perspectiva em Minas Gerais - ciclo rococó. Revista Barroco, Belo
Horizonte: UFMG, n. 12, 1982/83, p. 171-184.
2
Documentação publicada em PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da histó-
ria de Sabará. A Ordem 3ª do Carmo e a sua igreja. Obras do Aleijadinho no
templo. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde (Publicações da Dire-
toria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/MEC), n. 5, vol. 1, 1940.
3
Trata-se da carnação de uma imagem de São Jorge que hoje se encontra no
Museu do Ouro, em Sabará/MG, e refere-se ao pagamento efetuado pela Câ-
mara de Sabará em 31 de maio de 1816 pelo serviço. Fonte: Arquivo Público
Mineiro (APM). Contas da Receita e Despesa da Câmara (1815-1820), CMS-155,
rolo 21.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

No entanto, graças ao prestimoso dicionário de artistas e artí-


fices da senhora Judith Martins, temos uma curta informação que nos
possibilita inferir algumas considerações importantes sobre a vida deste
pintor.4
Registra Martins no verbete relativo ao pintor a seguinte nota:

1801 – homem pardo, natural da Vila de Sabará,


morador neste arraial de Curral del Rei, onde vive
de sua arte de Pintor, de edade de 46 annos”. In-
formação esta, segundo indicação da autora, re-
tirada de um livro de Devassas, pertencente ao
arquivo da Cúria de Mariana.5

De onde se pode inferir, portanto, que Gonçalves da Rocha


era natural da Vila de Sabará, onde teria nascido no ano de 1755, já que
contava com 46 anos em 1801. Trata-se, então, de um pintor da mesma
geração dos pintores Manoel da Costa Ataíde, Manoel Ribeiro Rosa,
João Batista de Figueiredo e Francisco Xavier Carneiro, pintores nasci-
dos em fins da década de 1750 e início da década de 1760. Pintores estes,
como todos sabem, que nos legou obras picturais da mais alta qualidade
técnica e inventiva. 111
Em qual oficina teria Joaquim Gonçalves da Rocha se iniciado
na arte da pintura? É uma questão de difícil resposta, visto que até hoje
nem sabemos, por exemplo, quem foi o mestre de Manoel da Costa
Ataíde, artista cuja documentação já foi esmiuçada centenas de vezes.
Não obstante, já ser de conhecimento os professores do excelente pin-
tor João Batista de Figueiredo, o pintor português Manoel Rabelo de
Souza,6 e do pintor Joaquim José da Natividade, aprendiz do marianense
João Nepomuceno Correia e Castro.
No estudo da pintura colonial movemo-nos quase sempre no
campo labiríntico das conjecturas, e não será então desproposito levan-
tar aqui mais uma: porventura não seria Joaquim Gonçalves da Rocha

4
MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional/MEC, n. 27, 1974, 2 vols.
5
MARTINS. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, op. cit., vol. II, p. 170.
6
A este respeito ver ALVES, Célio Macedo. Minas colonial: pintura e apren-
dizado. O caso exemplar do pintor João Batista de Figueiredo. Revista Tela &
Artes, Belo Horizonte, Ano III, n. 15, novembro/dezembro de 1999.
CÉLIO MACEDO ALVES

parente próximo – filho talvez? – de um pintor por nome João Gonçal-


ves da Rocha, que em 1770 encontrava-se na Vila de Sabará dourando na
igreja matriz o retábulo da Irmandade do Amparo? Os sobrenomes são
os mesmos e também o ofício; nesta data, em 1770, Joaquim estaria com
15 anos, uma boa idade para ser iniciado no ofício da pintura, e nada
melhor do que ser feito justamente com o pai ou um parente próximo.
Em sendo pardo, como declarado no documento citado por Martins, Jo-
aquim seria forçosamente um filho ilegítimo de João Gonçalves da Ro-
cha ou de outro indivíduo com uma mulher negra escrava ou alforriada.
Como ocorre no caso dos pintores Francisco Xavier Carneiro e Manoel
Ribeiro Rosa, filhos de uma escrava e de uma preta forra, respectiva-
mente. E nesta situação o rapaz encontraria um bom motivo para seguir
o prestigioso ofício do pai na arte da pintura e assim ganhar a sua vida.
Outro dado que se pode inferir deste registro é que: estando
com 46 anos em 1801, Gonçalves da Rocha ao ajustar em 1818 a gran-
diosa pintura do forro da Igreja do Carmo de Sabará, estaria, portan-
to, com 63 anos de idade. O que, convenha-se, tratar-se de uma idade
avançada que não permite certas peripécias como, por exemplo, subir e
112 descer andaimes montados em alturas bem elevadas. O que justifica a
presença de outros oficiais na empreitada, como se deduz da obrigação
da Ordem inserida no ajuste de fornecer durante o período da obra “as
cazas desta Ordem com seos pertences para guarda das tintas e reziden-
cia dos officiaes”.7
A partir desta citação, podemos presumir ser Gonçalves da Ro-
cha um pintor bastante experiente e respeitado na região, “chefe” de
uma equipe de pintores – alguns poderiam ser inclusive seus aprendizes
– e o que explicaria, em certa parte, a presença na região de Sabará e
adjacências de um grupo de pinturas de forro cujas estruturas “arquite-
tônicas” e temáticas apresentam características bem semelhantes.
O topos dos forros pintados por Joaquim Gonçalves da Rocha
pode ser inferido basicamente a partir das recomendações que se encon-
tram no ajuste para a pintura da Igreja do Carmo, do ano de 1818:
O teto seria todo pintado com um banco de ar-
quitetura com quartelas de três faces nos seus
pedestais, nos quais se pintarão vários anjos com
emblemas de Nossa Senhora nas mãos;

7
PASSOS. Em torno da história de Sabará, op. cit., p. 119.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

Que no mesmo teto seriam pintados ou os doze


Apóstolos ou doze Santos da Ordem.
Que ao meio teria um Painel da Coroação da
mesma Senhora e a Trindade em um globo de
nuvens guarnecido de vários Coros, Anjos e
Querubins.8

Destas três condições se resume, praticamente, toda a compo-


sição pictural apresentada por Gonçalves da Rocha e sua Escola. Refere-
-se aqui a uma Escola no sentido em que há continuadores de seu esque-
ma pictórico, talvez reproduzido até meados do século XIX nas cidades
apontadas acima e até em outras da região, mas que carecem ainda de
análises mais criteriosas.
Assim, os forros pintados por Rocha e seus seguidores trazem
um “banco de arquitetura” – que os especialistas de hoje preferem de
chamar de “muro-parapeito” – com seus pedestais em forma de quar-
telas de três faces, que sustentam vasos de flores e/ou anjos com em-
blemas e instrumentos musicais, como ocorre com o a pintura da Igreja
do Carmo. Por trás do “banco de arquitetura” o pintor insere então as
figuras sacras, atendendo certamente o desejo dos clientes: ora os evan- 113
gelistas, ora os quatro grandes Doutores da Igreja, sendo estes os mais
frequentes, e ora os “santos da Ordem”, como no Carmo de Sabará.
Ao meio do forro, pinta-se a “Visão” principal com Nossas
Senhoras em suas diversas devoções, com a Trindade coroando Nossa
Senhora, como em Macaúbas; com cenas de passagens bíblicas, como
Elias deixando cair o manto para Eliseu, no forro do Carmo; ou de san-
tos, como Santa Luzia na Matriz de Santa Luzia. E todos eles envolvidos
por nuvens com coros de anjos e querubins.
Outra característica marcante deste esquema é a presença de-
tectada em algumas igrejas (matrizes de Santa Luzia e Caeté, Macaúbas,
Carmo de Sabará) de uma pintura temática arrematando a parede acima
do arco-cruzeiro. Como, aliás, consta também de uma das recomenda-
ções para a pintura do Carmo de Sabará (mas que não foi executada
assim, como se verá mais adiante):
Que levaria na frente por cima da Cimalha um
painel da figura da Santa Madre Igreja, que cons-
ta de um Pontífice com custódia do Santíssimo

8
PASSOS. Em torno da história de Sabará, op. cit., p. 118.
CÉLIO MACEDO ALVES

Sacramento e Nossa Senhora com a Cruz, e por


baixo da mesma custódia as tábuas da lei e de-
baixo desta o novo e velho Testamentos. (Grifo
nosso)9

Neste caso, trata-se de uma cena alegórica baseada em uma gra-


vura tirada da página de rosto de um Missal português do século XVIII.
Este é, portanto, o topos apresentado pelas pinturas de Gonçal-
ves da Rocha e seus seguidores, ainda que individualizado as caracterís-
ticas principais, fato este percebido pelas variações de estilo e qualidade
pictórica.
Diga-se, no entanto, que esse topos de forro não se aplicou so-
mente nesta região: o pintor marianense Francisco Xavier Carneiro se
valeu de estrutura semelhante em forros pintados na região de Mariana,
notadamente na nave da Igreja de São Francisco de Assis; na região do
Campo Vertentes, também, o pintor Manoel Victor de Jesus executou
forros com essas características, como se pode ver nas naves das igrejas
das Mercês, em Tiradentes, e de Nossa Senhora da Penha no distrito de
114 Vitoriano Veloso – conhecido como Bichinho.

Análise e uma tentativa de cronologia das pinturas do Mosteiro de


Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas em Santa Luzia

A pintura mais remota e documentada de Joaquim Gonçalves


da Rocha refere-se aos forros da Capela do Mosteiro de Nossa Senhora
da Conceição de Macaúbas, e cuja data do ajuste é de 1800.10 O Mosteiro
situa-se na região rural de Santa Luzia, margeando o Rio das Velhas e a
estrada que segue para o município vizinho de Jaboticatubas.
O antigo Recolhimento de Macaúbas teve sua construção ini-
ciada em 1714 por iniciativa de Félix da Costa e, nos seus 300 anos de
existência, passou por modificações, acréscimos e restaurações, até che-
gar à estrutura que hoje lá se apresenta. O grosso das obras da capela

9
PASSOS. Em torno da história de Sabará, op. cit., p. 118.
10
Para uma cronologia da construção do mosteiro ver MELLO, Cleyr Maria
Vaz de. Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas. Santa Luzia: Mosteiro
de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, 2014.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

ocorre em meados do século XVIII, inclusive sendo de 1767 a execução


do conjunto de seus notáveis retábulos (o principal e os dois coletarais),
nos quais se pode perceber a mão do entalhador José Coelho de Noro-
nha. Os forros da nave e capela-mor estão arrematados por uma larga
cimalha marmorizada e a partir dela eleva-se uma pintura fingida com-
posta de um muro-parapeito – o banco de arquitetura citado no contrato
do Carmo de Sabará – que circunda retilineamente todo o cumprimento
dos respectivos recintos.
Na capela-mor temos, então, o muro-parapeito com as mísulas
(quartelas) onde se assentam anjos segurando buquês de flores, e entre
eles cartelas com inscrições arrematadas por vasos com flores. Tudo em
um colorido bem intenso.
Na visão central, encontra-se Nossa Senhora vestida de túnica
branca e manto azul, ladeada por dois querubins, sendo coroada pela
Santíssima Trindade (como recomenda o ajuste da Igreja do Carmo de
Sabará, 18 anos depois), sendo representada por Deus Pai segurando um
cetro, Jesus Cristo levando a cruz da Redenção e, pairando sobre eles,
115
o Divino Espírito Santo em forma de pomba. A cena é circundada por
tufos de nuvens onde se vê cabeça de anjos.
Cena idêntica encontra-se pintada por Manoel da Costa Ataíde
na capela-mor da Igreja Matriz de Itaverava/MG, certamente em época
próxima à pintura de Macaúbas, talvez entre 1801 e 1812. Também, Ma-
noel Victor de Jesus, cujos forros pintados, repito, apresenta um esque-
ma parecido aos adotados nos forros de Sabará e região, deixa pintado
na nave da Igreja de Nossa Senhora da Penha de Bichinho, em Tiraden-
tes, uma coroação da Virgem pela Trindade de cunho semelhante.
O tema será ainda figurado de maneira quase idêntica na parede
acima do arco-cruzeiro da Igreja de Nossa Senhora da Assunção em
Ravena, talvez já no avançar do século XIX (ver adiante).
Na nave temos outro muro-parapeito, mais despojado do que o
da capela-mor, colorido em rosa, azul e verde, com suas mísulas e socos
arrematados por vasos de flores. Dentro do muro as figuras dos quatro
Evangelistas e dos quatro Doutores da Igreja Ocidental; sendo que, do
lado direito encontram-se os santos João, Ambrósio, Agostinho e Mar-
cos; do lado esquerdo, Mateus, Gregório, Jerônimo e Lucas.
CÉLIO MACEDO ALVES

Figura 1: Forro da nave da capela do Mosteiro de Macaúbas.


Foto: IEPHA/MG

Acima do arco-cruzeiro aparece a figura de um papa: seria São


116
Bonifácio VIII, que promoveu, em 1298, estes quatro santos à condi-
ção de Doutores da Igreja. Na visão central a figura de Nossa Senhora
vestida de túnica branca e manto azul indicando ao peito seu sagrado
coração. Cena rodeada por nuvens com cabeças de anjos.

Atual igreja basílica de Santa Luzia em Santa Luzia

No mesmo município de Santa Luzia, em sua sede, existe a an-


tiga Matriz dedicada a Santa Luzia, cujas pinturas dos forros da nave
e capela-mor mantêm as mesmas estruturas picturais apresentadas nas
pinturas documentadas e realizadas por Joaquim Gonçalves da Rocha.
É possível que a pintura da Matriz de Santa Luzia seja coetânea a de
Macaúbas. Talvez tenha até sido realizada primeiro, e como o pintor se
encontrava trabalhando ali no arraial, foi chamado pela madre regente
do Recolhimento para fazer a decoração pictural da capela interna, en-
tão, desprovida de pintura.
Na capela-mor da matriz repete-se também a estrutura do mu-
ro-parapeito, bem decorado e colorido, tendo ao meio, de cada lado,
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

um balcão-púlpito arrematado por concheado e compoteira que se liga


às nuvens da visão central; ladeando o balcão-púlpito dois socos sus-
tentando vasos de flores; nas partes acima do altar-mor e arco-cruzeiro
concheados e vasos de flores.

117
Figura 2: Forro da capela-mor da matriz de Santa Luzia.
Foto do arquivo do autor

Na visão central estampa-se a figura da Virgem Santa Luzia,


vestida de túnica verde e manto vermelho, segurando uma palma e com
raionado despontando da cabeça. Figura circundada por tufos de nu-
vens, com três cabeças de anjos na parte inferior.
O forro da nave é circundado por outro muro-parapeito abun-
dantemente decorado e colorido, com balcões-púlpitos ao meio, de cada
lado, decorados com tarjas e concheados arrematados por flores; nos
cantos junto ao arco-cruzeiro e coro decoração em cartelas e vasos com
flores.
Dentro do muro-parapeito representam-se as figuras dos qua-
tro santos Doutores da Igreja Ocidental: Jerônimo e Agostinho, no lado
direito, e Ambrósio e Gregório Papa, no lado esquerdo. Temática esta,
como se viu, já figurada no forro de Macaúbas.
A visão central apresenta uma cena mais complexa: trata-se da
assunção de Nossa Senhora, vestida de túnica branca e manto azul, la-
deada por três anjos e envolvida por raios e tufos de nuvens onde se vê
CÉLIO MACEDO ALVES

cabeças de anjos. Na parte inferior, separada da cena de cima, aparece


um túmulo aberto com um lençol dobrado ao lado, com envolvimento
de nuvens.
Esta cena reproduz o tema identicamente pintado no forro da
nave da Igreja do Rosário de Santa Rita Durão. Pode ter havido aí, então,
uma inspiração direta daquela pintura ou do modelo (estampa) utilizado,
o que é o mais provável. No espaço acima do arco-cruzeiro desenvolve-
-se pintado um tema que contava das condições da pintura do Carmo de
Sabará, mas que não foi executado ali. Diz o documento:

Que levaria na frente por cima da Cimalha um


painel da figura da Santa Madre Igreja, que cons-
ta de um Pontífice com custódia do Santíssimo
Sacramento e Nossa Senhora com a Cruz, e por
baixo da mesma custódia as tábuas da lei e debai-
xo desta o novo e velho Testamentos.11

E quase exatamente desta forma o tema aparece pintado em


Santa Luzia, com a figura do Papa levando um báculo e um livro, com
a figura de uma mulher levando uma cruz, que não se trata de Nossa
118 Senhora, mas da alegoria da Fé. E entre eles há uma custódia sobre as
tábuas da lei, porém, sem a representação dos livros do Antigo e Novo
Testamentos recomendados.
Abaixo desta pintura, nas laterais do arco-cruzeiro, encontram-
-se representados os quatro Evangelistas: João e Marcos, do lado direito,
e Lucas e Mateus, do lado esquerdo. Trata-se, aliás, de uma composição
que lembra a Matriz de Catas Altas do Mato Dentro, em cuja situação se
representa os quatro Doutores da igreja.

Igreja da ordem terceira de Nossa Senhora do Carmo em Sabará

Deve-se a Joaquim Gonçalves da Rocha e seus “oficiais”, como


aparece registrado em uma das condições do ajuste de 1818, a pintura
e douramento de quase toda a igreja. Em 1812 ajusta o douramento e
pintura do altar-mor;12 em 1813, a pintura da sacristia e consistório,13 e
em 1818 a pintura e douramento da nave.

11
PASSOS. Em torno da história de Sabará, op. cit., p. 118.
12
PASSOS. Em torno da história de Sabará, op. cit., p. 116-117.
13
MARTINS. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, op. cit., vol. II, p. 170.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

No entanto, vamos nos deter aqui somente no que diz respeito


às pinturas dos forros da capela-mor e nave. Deve-se ressaltar que não
há documentação no que se refere à pintura da capela-mor, que deve
ter sido contratada e executada pela mesma época, 1818. No entanto, o
curioso é que alguns elementos de pintura, solicitados no contrato para
a nave, não foram, ali, executados, mas sim na capela-mor. Um desses
elementos, por exemplo, diz respeito a um painel imitando azulejo, a
maneira de São Francisco de Ouro Preto, que deveria ser feito nas paredes
de todo Corpo da Igreja, em altura competente com vários painéis da Escritura,
sendo tudo envernizado para sua conservação.14 Painel este que hoje se encontra
pintado nas paredes da capela-mor, junto ao presbitério, representando
os dez mandamentos.
Pintura da capela-mor com muro-parapeito em azul, com púl-
pitos-balcões amarelos, intercalados por mísulas onde se assentam an-
jos segurando emblemas relativos à Nossa Senhora. No contrato para a
pintura da nave, assinala-se banco de arquitetura com quartelas de três faces nos
seus pedestais nos quais se pintarão vários anjos com emblemas de Nossa Senhora
nas mãos. No entanto, como se vê, essa temática foi então deslocada para 119
a capela-mor.
Estes emblemas, referentes à Ladainha de Nossa Senhora, são
representados aos pares: uma estrela e um ramo de lírio com flores; uma
casa e uma porta; uma torre e uma rosa; uma lua crescente e um sol.
Nos balcões-púlpitos figuram quatro importantes santos liga-
dos à Ordem: os bispos Alberto Patriarca e André Corsino, do lado do
altar-mor, e Luís Rei de França e Eduardo Rei de Inglaterra, do lado do
arco-cruzeiro.
Na visão central, formada a partir de uma grande tarja contor-
nada por rocalhas coloridas e flores, a cena na qual Nossa Senhora do
Carmo, carregando o Menino Jesus, entrega o escapulário a São Simão
Stock, tido por fundador da Ordem. Na mesma cena aparecem ainda as
almas sendo resgatadas do purgatório por um anjo.
A pintura da nave se desenvolve a partir de um longo muro-
-parapeito envolvendo toda a sua dimensão, decorado em rocalhas mar-
rons, com púlpitos-balcões ao meio e nos cantos, decorados com tarjas

14
PASSOS. Em torno da história de Sabará, op. cit., p. 119.
CÉLIO MACEDO ALVES

e vasos de flores; intercalados entre eles doze mísulas, onde se assentam


anjos tocando instrumentos musicais, ao invés dos anjos com emblemas de
Nossa Senhora as mãos estipulado no contrato que, como se frisou, foram
deslocados para a capela-mor.
De pé, por dentro do muro-parapeito são representados santas
e santos ligados á Ordem Carmelita, em cujo hábito aparecem vestidos.
São quatro do lado do arco-cruzeiro: Ozias, Sacarias, Abadias e Amos;
quatro do lado do coro: Tecla, Isabel, Maria F. G. e Leocadia. Ao meio
da composição aparecem dois bispos, S. Geraldo B. e São Serapião B. G.;
e dois papas: S. Telesforo P.M. e S. Dionísio P.C.

120

Figura 3: Forro da nave da Igreja do Carmo.


Foto do Arquivo do Autor

Na visão central representa-se a cena bíblica na qual o profeta


Elias, elevado ao céu em uma carruagem de fogo, deixa cair seu manto a
seu discípulo Eliseu – episódio que os Carmelitas tomam simbolicamen-
te como o nascimento de sua Ordem.
Completando a pintura da nave, aparece na parede acima do
arco-cruzeiro e abaixo do muro-peito uma cena em que Nossa Senhora
entrega a Bula Sabatina a um papa, ajoelhado à sua frente, com a cruz
papal e a tiara depositada ao chão. Do outro lado, de joelhos, um anjo
carregando um ramo florido de lírios.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

Nas condições iniciais para a pintura da nave, recomendava-se


que o tema a ser ali representado deveria ser o da Alegoria da Igreja e da
Fé, baseada em uma estampa setecentista. Cena que foi pintada, como
se registrou antes, na Igreja Matriz de Santa Luzia.

Igreja de São Francisco de Assis em Sabará

Apresenta somente pintura na capela-mor com um muro-para-


peito simples, em azul, com púlpitos-balcões ao meio, intercalados por
mísulas, onde se vê anjos sustentando buquê e guirlandas de flores que
se unem sobre em trajas localizadas acima dos púlpitos-balcões. Nos
cantos são representados os quatro Evangelistas: João e Mateus, junto
ao altar-mor, e Lucas e Marcos, junto ao arco-cruzeiro.
Visão central representando Nossa Senhora dos Anjos, vestida
de túnica branca e manto azul, tendo sobre a cabeça uma grande coroa;
leva na mão esquerda um ramo florido de lírio e tem dois anjos junto aos
pés. Toda envolvida por raios amarelos e tufos de nuvens com cabeças
de anjos.
121

Figura 4: Forro da capela-mor da Igreja de São Francisco de Sabará.


Foto do arquivo do autor.
CÉLIO MACEDO ALVES

Uma dissertação recente, defendida na UFSJ/MG, sobre a Igre-


ja de Santo Antônio na cidade de Itapecerica,15 expõe a foto de uma
pintura da capela-mor que apresenta uma trama idêntica à pintura de
São Francisco de Sabará, que a liga, portanto, a tradição dos forros de
Joaquim Gonçalves da Rocha na região de Sabará. Inclusive com temá-
tica dos quatro Evangelistas, mas distribuídos de maneira diferente de
Sabará (Mateus e Marcos, junto ao altar-mor, e Lucas e João, junto ao
arco-cruzeiro) e a repetição do motivo iconográfico na visão central,
com Nossa Senhora dos Anjos na mesma pose, nas mesmas vestes, com
o ramo florido à mão esquerda, com a coroa grande sobre a cabeça e
envolvido por nuvens com cabeças de anjos.
A diferença, talvez, nesta pintura, deve-se à trama mais elabora-
da do muro-parapeito da igreja de Itapecerica, que se aproxima bastante
da estrutura pintada no forro da nave da igreja do Carmo em Sabará,
com púlpitos-balcões e mísulas decoradas em concheados e vasos de
flores, e inclusive, na identidade das cores utilizadas, com predomínio
do azul e vermelho.

122 Igreja de Nossa Senhora da Assunção em Ravena, distrito de Sa-


bará

A pintura da capela-mor compõe-se de um muro-parapeito de


estrutura simples, delineado em curvas e contra-curvas, em azul e ama-
relo, decorado em concheados e algumas flores ao meio.
Na visão central, desenvolve-se o tema da Assunção de Nossa
Senhora, elaborado em dois grupos de pintura, que não se comunicam
pictoricamente: em um, representa-se Nossa Senhora elevada aos céus
por anjos. Essa tem os braços abertos e está vestida de túnica branca e
manto azul; envolvida por tufos de nuvens. De certa forma, lembra a
pose de Nossa Senhora na pintura da nave de Santa Luzia e de Morro
Vermelho (ver adiante), embora tenha sido inspirada em fonte gravada
diferente. Em outra parte, representa-se o túmulo aberto rodeado pelos
doze Apóstolos, vestidos em túnicas e mantos coloridos.

15
FONSECA, Gustavo Oliveira. Produção artística no Centro-Oeste Mineiro nos
séculos XVIII e XIX. Estudo sobre a Igreja de Santo Antônio da Arquiconfraria de São
Francisco em Itapecerica. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de
Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas (DECIS), Programa de Pós-Graduação
em História (PGHIS), UFSJ, São João del Rei, 2014.
JOAQUIM GONÇALVES DA ROCHA, SUA OFICINA E A PINTURA...

A pintura do forro da nave, de execução bem posterior e cer-


tamente por um pintor não ligado ao grupo de Gonçalves Rocha traz,
no entanto, um esquema próximo aos estudados até o momento, tanto
no aspecto “arquitetônico” da pintura, quanto ao aspecto iconográfico.
Trata-se de um muro-parapeito retilíneo, vazado em arcos de inspiração
gótica, decorado em mísulas com vasos de flores e tarjas centrais. Por
trás do muro, nos extremos de cada lado, a presença, mais uma vez,
dos quatro Doutores da igreja. E ao centro quatro profetas do Antigo
Testamento, nomeados por inscrição inferior: Jeremias, Daniel, Isaias e
Ezequiel.
Entretanto, na mesma nave, na parede acima do arco-cruzeiro
há uma pintura que bem pode ser imputada ao grupo do Joaquim da
Rocha, tanto no que diz respeito à temática e quanto à necessidade de
ocupar este espaço importante da parede com uma pintura, como ocor-
re, por exemplo, no Carmo, em Sabará, e na Matriz de Santa Luzia.
A pintura em questão representa a coroação de Nossa Senhora
pela Santíssima Trindade: Nossa Senhora encontra-se abaixo da cena, de
mãos postas, recebendo uma grande coroa das mãos de Jesus Cristo, à
123
esquerda, carregando a cruz da redenção, e de Deus Pai, à direita, com
o tradicional aureola triangular sobre a cabeça e com o braço esquerdo
apoiado sobre um globo terrestre. Acima deles, paira o Divino Espírito
Santo em forma de pomba, envolvida por raios amarelos. Toda a cena
está circundada por tufos de nuvens onde se vê cabeças de anjos.
Esta cena já é representada, como se viu antes, no forro da
capela-mor do Mosteiro de Macaúbas, com ligeiros nuance, e também
sugerido, mas não executado, como uma das condições para a pintura da
nave na Igreja do Carmo em Sabará.

Matriz de Nossa Senhora de Nazaré de Morro Vermelho, distrito


de Caeté

Pintura da capela-mor com muro-parapeito tendo ao meio, em


cada lado, púlpitos-balcões com vasos de flores, entre mísulas; o mesmo
motivo aparece pintado nos cantos e nos lados. Dentro do muro, pró-
ximas aos cantos, aparecem as figuras dos quatro santos Doutores da
Igreja: Jerônimo e Gregório papa, do lado direito, e Ambrósio e Agosti-
nho, do lado esquerdo.
CÉLIO MACEDO ALVES

A representação dos doutores em Morro Vermelho lembra a


retratação dos mesmos no forro da nave da igreja do Mosteiro de Ma-
caúbas. Na visão central aparece representado o tema da assunção da
Virgem Maria, vestida de túnica branca e manto azul, com raionado na
cabeça, acompanhada de anjos na parte inferior, e envolvida por tufos
nuvens com cabeças de anjos. Na nave repete-se o muro-parapeito com
mísulas ostentando vasos de flores no centro e nos lados. Dentro do
muro desenvolve o tema dos quatro Evangelistas: Lucas e João, do lado
esquerdo, e Mateus e Marcos, do lado direito.
Na visão ao centro insere-se o famoso milagre de Nossa Se-
nhora de Nazaré, que surge ao lado do quadro, envolvida por tufos de
nuvens; e mais embaixo a cena onde o cavaleiro Diego Fuas Roupinho,
em perseguição a sua caça, quase despenca em um penhasco, porém, por
milagre de Nossa Senhora a quem pede auxílio, o cavalo fica paralisado
no ar. A cena se completa embaixo com uma marinha onde se vê uma
pequena embarcação.
Para finalizar, gostaria de incluir ainda neste estudo o forro da
124
nave da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso em Caeté, cuja
estrutura pictórica certamente segue o modelo proposto para as pinturas
de Joaquim Gonçalves da Rocha, mas sem a visão central.
A pintura se desenvolve a partir de um muro-parapeito à ma-
neira de uma balaustrada, decorado em concheados e vasos com flores;
ao meio, em cada lado, púlpitos-balcões com as figuras das três virtudes
teologais e uma cardinal; e mais ao canto as figuras dos quatro evan-
gelistas. Há, acima do arco-cruzeiro, uma pintura de uma perspectiva
arquitetônica com arqueados ladeada por figuras de profetas do Antigo
Testamento.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

Capítulo 8

OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO:


SÉCULOS XVIII E XIX

Danielle Manoel dos Santos Pereira

As igrejas de Nossa Senhora do Carmo de Mogi das Cruzes e os


documentos

A cidade de Mogi das Cruzes no Estado de São Paulo concen-


tra belíssimas obras pictóricas do período colonial. Nas igrejas contíguas
da Ordem Primeira e Terceira de Nossa Senhora do Carmo há um total
de quatro forros pintados de grandes dimensões, são obras de grande
valor artístico e cultural.
Na Igreja da Ordem Primeira há um único forro pintado, na 125
capela-mor; enquanto na igreja contígua dos Terceiros carmelitas há
três forros pintados, o forro da nave de grandes dimensões, o forro da
capela-mor e o forro do vestíbulo da sacristia. As edificações datam do
século XVIII, embora a construção primitiva seja do século XVII, con-
tudo, deste último período sabe-se pouco, a exemplo dos documentos
existentes da irmandade dos terceiros carmelitas com datação a partir
de 1765. Não há, praticamente, nada anterior. A Ordem Terceira pos-
sui, ainda, uma documentação importante sobre o período colonial, isso
possibilitou o resgate dos nomes dos pintores que executaram as diver-
sas pinturas.
Cada obra fora realizada por um pintor diferente, sendo as da
nave e capela-mor em períodos muito próximos, do início do século
XIX, enquanto a do forro do vestíbulo da sacristia, de fatura marcada-
mente anterior fora executada cerca de 50 ou 60 anos antes, por volta da
segunda metade do século XVIII. Esta datação nos remete para uma das
pinturas mais antigas da antiga Capitania de São Paulo. Estamos tratan-
do dos idos de 1750; deste período quase nada restou.
Embora a Igreja da Ordem Primeira seja mais antiga, com os
primeiros frades povoando a região desde a fundação do povoado pri-
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

mitivo, a documentação existente é incipiente. Quase nada se consegue


apurar baseado em documentos destes religiosos. Há uma infinidade de
cópias do Livro Tombo, outros tantos papéis que comprovam as posses
da terra, suas demarcações e doações, contudo, no tocante ao patrimô-
nio artístico edificado, restaram paupérrimas páginas, tornando quase
impossível a compreensão ou reconstrução do histórico construtivo da
igreja.
Contudo, dentre as quatro obras pictóricas, duas eram alvo de
intensas querelas e questionamentos, mas poucas as hipóteses que res-
pondessem minimamente as indagações.1 A pintura do forro do vestí-
bulo da sacristia e a pintura do forro da capela-mor da Igreja da Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo se configuraram como dois obje-
tos envoltos num arcabouço de teorias e ceticismo.
Para compreender melhor as técnicas pictóricas e a linguagem
da obra seria importante averiguar outras obras dos artífices que as exe-
cutaram. Após os levantamentos realizados, concluiu-se que era também
parco o conhecimento sobre outras pinturas desses artistas. Percebemos
então que, somente identificar a autoria dos trabalhos não responderia
126 ao proposto, uma vez que após a identificação dos mesmos descobrimos
serem personagens incógnitos de nosso passado colonial.
Diante do cenário de exíguas informações documentais sobre
outras obras dos artistas, empreendemos um aprofundamento nas pró-
prias pinturas por meio de técnicas não destrutivas – fotografias em
ultravioleta, infravermelho, luz rasante, visível, etc. – espectroscopia e
prospecção – esta técnica somente fora aplicada na pintura do forro da
capela-mor, objetivando como se verá a seguir compreender aquilo que
os olhos não veem, assim como fez Mário de Andrade com sua crença
no invisível.2 Na pintura do forro do vestíbulo da sacristia e do forro da

1
O presente artigo é fruto das pesquisas acadêmicas para o doutorado em
Artes que está sendo desenvolvido junto ao Programa de Pós-graduação em
Artes do Instituto de Artes da UNESP. Com bolsa FAPESP.
2
Mário de Andrade quando pesquisava as pinturas existentes na igreja da Or-
dem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de São Paulo, formulou a hipótese
de que a pintura que se via no forro da nave da igreja não era a pintura do
padre mulato, e que esta estava debaixo da pintura atual. Com base nos relató-
rios do pesquisador, a pintura que fora tombada não foi a que era vista e sim a
pintura invisível. Após o restauro da igreja encontrou-se a obra que Mário de
Andrade afiançava estar encoberta, de qualidade técnica superior ao trabalho
que era visto em meados dos anos 40. ANDRADE, Mario de. Padre Jesuíno do
Monte Carmelo. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1963.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

capela-mor tentaremos ver além do que nossos olhos permitem.

O forro pintado do vestíbulo da sacristia – século XVIII

A pintura (Fig. 1) encontra-se no forro do vestíbulo da sacris-


tia e, suspeitava-se que não teria sido pintada para esse cômodo. Ao
incorporar tal obra pictórica no estudo,3 fez-se necessário analisar mi-
nuciosamente a pequena documentação, ainda existente, para com um
novo olhar tentar encontrar algum dado que fosse elementar para essa
empreitada.
O forro com taboado plano possui o total de 40 pranchas, des-
tas, 8 possuem pintura total de um tom de cinza bastante espesso, outras
4 mais estreitas (mesma espessura das demais pranchas que possuem
camada pictórica) possuem repintura parcial, sendo duas de cada lado.

127

Figura 1: Nossa Senhora com o Menino entrega o manto à São Simão Stock.
Autor: Lourenço da Costa, ca. 1750. Forro do vestíbulo da sacristia. Igreja da
Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Mogi das Cruzes.
Foto: Luciara Bruno, 2015.

3
Em pesquisa pregressa optou-se por não incluir a pintura do forro do vestí-
bulo porque suas características tipológicas são distintas das demais pinturas
existentes na igreja da Ordem Terceira dos Carmelitas de Mogi das Cruzes,
como se pode apurar em PEREIRA, Danielle Manoel dos Santos. A pintura
ilusionista no meio norte de Minas Gerais – Diamantina e Serro – e em São Pau-
lo – Mogi das Cruzes (Brasil). Dissertação (Mestrado) - Instituto de Artes,
UNESP, São Paulo, 2012. Contudo, a pesquisa atual incorpora diferentes
pinturas independente da linguagem formal, cujos critérios para inclusão ou
exclusão nas análises foram modificados de acordo com as novas proposições.
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

Dos questionamentos existentes acerca desta pintura, primeiro


buscávamos saber se essa pintura fora executada para essa igreja. Pois,
ao olhar detidamente tal obra, nota-se nas extremidades do forro so-
bra de tábua sem pintura. Logo, se crê num rearranjo do taboado para
encaixá-lo no espaço disponível.
Segundo, não há relação estilística com as duas outras obras
pictóricas existentes na mesma igreja, ou ainda com a pintura da igreja
conventual contígua a dos terceiros.
Terceiro, há ainda, a observação aventada por Myriam Salomão
e Percival Tirapeli (2005),4 que alegam que as características e elementos
constituintes da obra a aproximam muito das pinturas de sacristias colo-
niais, embora esteja ocupando o forro do vestíbulo.
Perscrutamos então os Livros de Receitas e Despesas da Or-
dem Terceira do Carmo de 1768 a 1818, 5 a fim de se obter informações.
Ciente de que as demais pinturas datam de 1801 a 1814/15, tal pintura,
forro do vestíbulo, ou teria sido executada antes de 1768 ou após 1818,
uma vez que esse livro não possui nenhuma indicação dessa obra.
128
Encontramos, no Arquivo da Província Carmelitana de Santo
Elias,6 numa cópia de um livro que se encontra datilografado intitulado:
A Ordem Terceira do Carmo e sua Igreja, escrito por Frei Timotheo Van den
Broek baseado nos relatórios do Prior Francisco Pinheiro Franco (que
em 1900 teve acesso à documentação dos Terceiros), a informação que

4
SALOMÃO, Myriam; TIRAPELI, Percival. Pintura colonial paulista. In:
Arte Sacra Colonial: barroco memória viva. São Paulo: UNESP, 2005.
5
Campos (2004) informa que este Livro de Receitas e Despesas estende-se
até meados do ano de 1824, porém ao estudar o material notamos que várias
páginas não existem mais, tanto no final do livro quanto no início e está sem
capa. Logo é cabível que Campos (2004) tenha tido contato com os anos fi-
nais do livro, sobretudo porque o próximo livro é iniciado ao término do ano
anterior, ou seja, o ano de 1824. Entretanto, adotaremos a datação de 1818
como período final, por ser o que resta do documento, a fim de evitar afir-
mações equivocadas. CAMPOS, Jurandyr Ferraz de. Suma histórica da venerável
Ordem Terceira do Carmo de Mogi. Mogi das Cruzes: Murc Editora Gráfica, 2004.
6
BELO HORIZONTE. Arquivo da Província Carmelitana de Santo Elias.
Cidade: Mogi das Cruzes. Monumento: Igreja da Ordem Terceira do Carmo.
Livro: Receita e despesa, 1768-1818, 1824-1859; Documentos avulsos s/ data;
Livro: Entrada de irmãos, 1754; Livro: Atas, 1762.
BELO HORIZONTE. Arquivo da Província Carmelitana de Santo Elias. Ci-
dade: Mogi das Cruzes. Monumento: Igreja e Convento do Carmo. Dados
históricos e notas diversas, 1611-1935; Bens Urbanos; Desenhos do Terreno;
Livro: Tombo, 1629; Livro: Receita e despesa, 1749-1768; Documentos avul-
sos: maço irmandades. Seção: Mogi das Cruzes.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

responderia a um só tempo todos os questionamentos feitos logo acima,


como se pode constatar na página 12 do relatório que transcrevo abaixo:
Nota: De 1769 data a tentativa de salvar o tem-
plo antigo da ordem Terceira. O mestre Pedreiro,
Paulo Gomes reformou a Capela com novo re-
boque e retelha e levou só 15.000. O carpinteiro
André da Costa concertou as janelas e a escada
do Noviciado, como também as “sepulturas”e
banqueta. Fez o serviço quasi de graça por 4$600.
José Francisco dos Santos forneceu os pregos
e José Alvares Viana fez a encarnação nova da
imagem do Senhor para o altar por apenas dez
patacas ou seja 5$200. Os negros para a factu-
ra do trabalho foram pagos com 8$400. Assim
estava remediada a Capela, mas não resistiu não
ser até o anno de 1776, em que ruiu o tecto da
igreja. O Consistório ficou salvo, e a pintura feita
em maios ou menos 1750 por Lourenço da Costa
ficou preservada da ruína. Só mais tarde levou
concerto a taboada.7

Ou seja, não resta dúvida de que a pintura indicada como sendo


realizada em meados de 1750 por Lourenço da Costa é a que se encontra
129
hoje no forro do vestíbulo da sacristia. Embora se possa apontar esse
documento como lacônico, encontramos diversos outros documentos e
evidências que corroboram com nossa indicação de autoria desta obra
pictórica ao pintor Lourenço da Costa.
Sendo assim, podemos afirmar que essa pintura sempre per-
tenceu aos Terceiros Carmelitas de Mogi das Cruzes, contudo ou ela
mudou de espaço ou o espaço mudou de nome, quando da elaboração e
reconstrução da nova igreja
Com base em diversos documentos consultados podemos
afiançar a circulação do pintor Lourenço da Costa em Mogi das Cruzes
no período indicado, ou seja, em meados do ano de 1750. Há evidências
que indicam ser Lourenço da Costa pintor santista e mestre de outro
pintor atuante em São Paulo, José Patrício da Silva Manso.
Quanto às dúvidas que o estado da pintura suscita nos pesquisa-
dores, destacamos a ideia de que esta não seja desse cômodo por conta
dos acréscimos nas taboas. Ora, sabemos que algum tipo de dano essa

7
BELO HORIZONTE. Arquivo da Província Carmelitana de Santo Elias.
Cidade: Mogi das Cruzes. Monumento: Igreja da Ordem Terceira do Carmo.
Documentos avulsos s/ data, op. cit., p. 12.
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

pintura sofreu quando o teto da igreja primitiva ruiu, talvez isso explique
os “supostos” acréscimos de madeira e os recortes feitos nas pranchas.
Como não há projetos para restauro dessa pintura, não é possível des-
montar a cimalha que arremata o encontro entre as pranchas e a parede.
Logo, não se pode precisar os consertos exatos que essas tabo-
as tiveram quando da queda da primitiva igreja em 1769. Assim como
não se pode afirmar ou negar que as extremidades próximas às portas
foram cortadas ou não. Mesmo entre habilidosos restauradores não há
um consenso quanto a este ponto,8 pois nada podem afirmar diante so-
mente do que se vê.
A obra fora submetida às análises científicas,9 com técnicas não
destrutivas, para que pudéssemos verificar a existência de desenho sub-
jacente nas taboas com tonalidade cinza e ainda espectroscopia para ob-
tenção dos pigmentos e materiais empregados pelo artista.
Na utilização da técnica de luz visível, destacamos a melhor vi-
sibilidade dos frutos e flores presentes na representação, assim como a
cena da Virgem entregando o escapulário à São Simão.
Da paleta de cores empregada pelo artista, há predominância de
130 azul, vermelho, amarelo e marrom com gradação destas mesmas cores
e alguns tons ocres. A técnica empregada para a fatura da obra foi a
tempera a cola. Há perdas de policromia e diversas manchas provocadas
por oxidação da camada de verniz. Com a “Reflectografia de Infraver-
melho” (IR), foi possível identificar que o artista utilizou a técnica do
Spolvero, muito recorrente no período colonial.
Por meio das imagens obtidas compreendemos os elementos
internos constituintes dos medalhões presentes na obra, que se asse-
melham a chinesices, tal como no forro da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário na cidade do Embu das Artes em São Paulo.
Nas bordas da pintura onde as tabuas foram pintadas, há con-
tinuidade da pintura. Mesmo debaixo dessa camada espessa aplicada foi
possível perceber os contornos do desenho subjacente (Fig. 2). Além da
continuidade da pintura, por meio das imagens identificamos que nas
taboas mais distantes também há vestígios de traços subjacentes.

8
MORAES, Julio. Relatório Técnico: elementos artísticos integrados e comple-
mentos arquitetônicos da Igreja da Ordem Terceira. São Paulo: JULIO MO-
RAES CONSERVAÇÃO E RESTAURO SCL, 2008.
9
KAJIYA, Elizabeth. Relatório Técnico: análise científica da pintura do forro do
vestíbulo da Igreja da Ordem Terceira de Mogi das Cruzes. São Paulo, 2015.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

Figura 2: Detalhe geral da área onde tem vestígio do desenho subjacente. Autor:
Lourenço da Costa, ca. 1750. Forro do vestíbulo da sacristia. Igreja da Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Mogi das Cruzes.
Foto: Elizabeth Kajiya, 2015.

Com a técnica de “Fluorescência Visível com radiação de Ul-


travioleta” (UV) pudemos confirmar algumas suspeitas. Essa pintura
nunca havia sofrido nenhum tipo de restauro, se muito, intervenções
131
podem ter sido feitas nas tabuas para ajustá-la ao cômodo, de modo a
sustentá-la após a queda de grande parte da primitiva igreja, mas, conclu-
sivamente, restauros não ocorreram.
E, por fim, para uma análise mais abrangente, empregou-se a
técnica da “espectroscopia”; dos materiais analisados no laboratório e
identificou-se que o verniz empregado na pintura é “uma resina alquídi-
ca, sintética, e comumente usada em pinturas à óleo”.10 O emprego des-
se verniz, bem como seu surgimento se deu após a II Grande Guerra.
Nas demais amostras identificamos que o pintor utilizou têmpera a cola,
e um dos vermelhos empregados trata-se do pigmento pau-brasil, este,
largamente utilizado nas pinturas do período colonial.
Os resultados encontrados e apresentados acima não deixam
dúvidas de que essa pintura tenha sido executada no período setecen-
tista, uma vez que os pigmentos que a constituem, a presença de chi-
nesices, elementos fitomórficos e ainda a tipologia da pintura, foram os
meios e as técnicas amplamente empregadas pelos pintores nos forros
das igrejas setecentistas.

10
KAJIYA, Elizabeth. Relatório Técnico: análise científica da pintura do forro
do vestíbulo da Igreja da Ordem Terceira de Mogi das Cruzes, op. cit., p. 25.
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

Quanto à iconografia da representação de Lourenço da Costa,


o quadro central apresenta uma das visões mais recorrentes nas igrejas
Carmelitas – Nossa Senhora entregando o escapulário a São Simão Sto-
ck. Dessa cena não resta dúvida quanto ao caráter iconográfico, pois ela
congrega em si todos os atributos reconhecíveis na hagiografia de São
Simão Stock, responsável por iniciar uma das maiores devoções da dou-
trina carmelita: o escapulário.
Nossa Senhora do Carmo aparece sentada no trono colocado
sobre um balcão duplo em pedra, e ao colo segura o Menino Jesus, tra-
jando o hábito dos Carmelitas que cai por sobre suas pernas numa movi-
mentação suave, formando um grande volume de panejamento próximo
a seus pés que estão apoiados sobre um almofada vermelha.
São Simão Stock, por sua vez, aparece como se estivesse em pé
diante à Nossa Senhora, porém há uma intenção de movimento provo-
cado pela inclinação do santo em direção à Virgem no momento em que
recebe da mão desta o escapulário do Carmelo. Seus olhos admiram a
visão que tem diante de si – a Virgem com o Menino Jesus no colo, suas
mãos se elevam na direção do sagrado manto que lhe é depositado em
132 socorro às aflições dos Carmelitas.
Além do quadro central o artista estabeleceu uma simetria, por-
tanto, esses elementos foram reproduzidos em ambos os lados, exceto
os animais, que não foram repetidos. Há somente um exemplar de cada,
posicionados simetricamente, exceto pela parte inferior lateral direita,
onde não há a repetição de um animal, tal qual o lado esquerdo.
Lourenço da Costa conseguiu inserir diversos motivos e relacio-
nar todos eles, formando uma moldura dentro da outra sucessivamente
até alcançar o momento mais importante de sua obra, onde direciona
o olhar à visão celeste da Virgem em uma das cenas mais significativas
para o Carmelo.
A combinação da pesquisa documental com as análises das ima-
gens obtidas com lentes especiais possibilitou que a pintura do forro do
vestíbulo tivesse seus caminhos descortinados, tornando-a mais clara.

A pintura do forro da capela-mor – século XIX

A obra (Fig. 3) de Antônio dos Santos, de meados dos idos de


1814/1815, consiste num medalhão central com a visão celeste de Nos-
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

sa Senhora do Carmo entregando o escapulário a São Simão Stock. Tal


qual a pintura do forro do vestíbulo da sacristia.
O referido pintor, após receber para raspar tabuas que certa-
mente pertenceram à igreja primitiva cujo teto desabou, foi pago para
elaborar a pintura do forro da capela-mor da Igreja da Ordem Terceira
de Nossa Senhora do Carmo.
O forro da capela-mor em abobada de berço é composto por
um total de 50 pranchas, ocupando o espaço de 11,30 m. X 4,30 m. As
pranchas apresentam-se bastante danificadas e deformadas.
A pintura fora bastante prejudicada porque havia infiltração de
água das chuvas, ocasionando muitos danos na estrutura do taboado.
Reparos mais urgentes foram realizados a fim de salvaguardar a obra,
mas é deflagrante a necessidade de restauro da qual padece a obra pictó-
rica de Antonio dos Santos.

133

Figura 3: Nossa Senhora com o Menino entrega o manto à São Simão Stock.
Autor: Antonio dos Santos, ca. 1814. Forro da capela-mor. Igreja da Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Mogi das Cruzes.
Foto: Danielle Manoel dos Santos Pereira.
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

Acreditava-se haver nesse forro até três camadas de pintura,11


uma delas provavelmente a primeira, para a qual Antonio dos Santos
recebera e onde fora representado o medalhão central e, a segunda, uma
camada de tinta amarela e, a terceira ao redor do medalhão na extensão
das tabuas, com a tonalidade azul atual.
Das inúmeras lacunas que cercam essa pintura, uma das mais
relevantes é a admissão de Santos Evangelistas nas extremidades do
forro, pois é notória a presença de seus atributos e os contornos dos
corpos, porém, não se sabia se era migração da obra ou transparência
da pintura.12
Na pintura “invisível”, portanto, temos: lado da Epístola, junto
ao arco São Marcos e junto ao altar São Mateus; ao lado do Evangelho,
junto ao arco São Lucas e respectivamente São João Evangelista. A obra
que pode ser vista e apreciada por todos é uma tarja central com a cerca-
dura ricamente ornamentada por concheamentos e festões de flores que
pendem e se entrelaçam em volutas por toda a moldura. Esta paleta de
cores tem predominância de azul, amarelo e vermelho nas mais variadas
gradações.
134
Ao centro temos a mesma visão do forro do vestíbulo, Nossa
Senhora entregando o escapulário a São Simão Stock. Na cena, a Virgem
traz o Menino Jesus ao colo, segurando-o com a mão esquerda e na des-
tra entrega delicadamente o manto a Simão. Nossa Senhora traja o hábi-
to dos Carmelitas e está sentada, não se sabe se em nuvens ou no trono.
São Simão Stock trajando o hábito da Ordem aparece ajoelhado
próximo à Virgem e recebe com a mão esquerda o escapulário e a mão
direita mantém apoiada sobre o peito, os olhos baixos como sinal de
respeito por Nossa Senhora.
A visão se passa por entre nuvens que sustêm todos os persona-
gens, com exceção da área onde está o espaldar de Nossa Senhora, pois

11
MORAES, Julio. Relatório Técnico: elementos artísticos integrados e comple-
mentos arquitetônicos da Igreja da Ordem Terceira, op. cit.
12
Em entrevista condida à autora no ano de 2012 o restaurador Júlio Eduardo
Correa de Moraes acreditava haver outros elementos da pintura de Antonio
dos Santos cobertos por camadas de tinta homogênea, tal qual o fundo azula-
do que vemos atualmente. Contudo, nada se podia afirmar neste sentido, uma
vez que o levantamento por meio de imagens Ultravioleta, Infravermelho e
Luz Visível só haviam sido recentemente realizados para o forro do vestíbulo
da igreja.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

de sua cabeça emanam raios dourados, assim como do Menino Jesus,


que faz a cena brilhar.
O quadro é adornado por uma moldura ao gosto das igrejas
oitocentistas, sem a inserção de elementos arquitetônicos; aqui o des-
taque é das formas curvilíneas e do pigmento branco como sensação
volumétrica, tanto que é empregado em todas as curvas e contracurvas,
nos preenchimentos acânticos das formas conchóides.
Na cartela, em cujo topo há uma profusão de flores está a se-
guinte inscrição em latim: DECOR CARMELI, ET CARMELITA-
RUM MATER, ou seja, em português temos: beleza do Carmelo, e Mãe
dos Carmelitas.
Retomando a pintura invisível, após o emprego de análises cien-
tíficas recém realizadas, é possível, no presente estudo, solucionar alguns
questionamentos que permeavam a história da obra. Primeiramente,
quantas camadas de pintura haviam realmente no forro? A obra de An-
tonio dos Santos está restrita ao medalhão central? Tal qual o forro da
igreja contígua?
Os santos Evangelistas que vemos nos contornos na camada
135
azul da pintura é um fenômeno de migração de pintura? Ou, ainda,
quando da raspagem das pranchas executada por Antonio dos Santos,
antes da pintura executada por ele em 1814, ele teria danificado a fibra
da madeira, a tal ponto, ocasionando a absorção da tinta pela madeira
machucada? Embora essa última hipótese nos pareça a mais imprová-
vel? Se os Evangelistas faziam parte do forro de Antonio dos Santos,
porque foram em algum momento encobertos por duas camadas de
tinta posteriores? Seria escorrimento de água das chuvas que os teria
deformado a ponto de a Irmandade desejar encobrí-los? Ou seria so-
mente um gosto do período para igualar os forros das capelas-mor das
igrejas contíguas, encobrindo assim os Evangelistas e a balaustrada na
qual estão inseridos?
Como se pode perceber, haviam muitas perguntas e poucas res-
postas. Mas as respostas eram essenciais para os desdobramentos de
amplo estudo.13 Para tanto, uma equipe composta por profissionais in-

13
Junto ao Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Artes da
UNESP (com bolsa FAPESP) encontra-se em desenvolvimento o doutorado
em Artes, para o qual se pretende rever atribuições e autorias das pinturas
coloniais nos forros de algumas igrejas em São Paulo, Mogi das Cruzes e Itu.
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

terdisciplinares e a junção das diversas técnicas científicas seria a forma


de solver grande parte dos questionamentos,14 haja vista que os docu-
mentos, embora satisfatórios quanto à autoria da pintura e a datação da
mesma, não davam conta das camadas de pintura que aos poucos sobre-
puseram o desenho que acreditávamos ter sido removido ou encoberto.

Os resultados alcançados no primeiro mapeamento empreendido

Quanto às camadas de pintura, apuramos tratarem-se de três


camadas, a primeira é a pintura de Antonio dos Santos do século XIX; a
segunda camada, uma tinta amarela que encobriu os santos Evangelistas
(não se sabe, ainda, quando fora executada); a terceira e última camada,
uma tinta azul, que remete ao céu. Na aplicação das duas camadas adi-
cionais de tinta, somente o medalhão com a visão central fora preser-
vado. Contudo, é no medalhão que se pode observar a cor original do
fundo, é um bege pálido, que pode ser observado por entre os festões
pintados pelo artista na cercadura do quadro.
A camada azul de tinta está descascando e muita purulenta, nas
136
partes com perda de material pictórico azul o amarelo vai se tornando
visível. Dentre as técnicas não destrutivas foi utilizado o infraverme-
lho para buscar os traços subjacentes, tal qual na pintura do forro do
vestíbulo.Porém, a espessura das duas camadas aplicadas (a amarela e a
azul) não permitiram que a pigmentação empregada pelo pintor fosse
capturada.
Ao subir no andaime, diante dos contornos dos Evangelistas,
quase a tocar o forro, era ainda mais nítido o desenho que se pode ob-
servar debaixo das camadas ulteriores, até mesmo a marca da pincelada
era perceptível da distância em que estávamos dos santos.
A fotografia com luz rasante tornou alguns traços mais nítidos,
mas nada que revelasse algo muito diferente do que nossos olhos eram

14
Em 29 de outubro de 2015, uma equipe de profissionais reunida pela autora
(formada por: Elizabeth Alfredi de Mattos Kajiya, perita em análises com téc-
nicas não destrutivas; Júlio Eduardo Correa de Moraes, restaurador; Marcelo
Pereira de Souza, auxiliar de restauro; Rodrigo Polverino, assistente adminis-
trativo; Danielle Manoel dos Santos Pereira, mestre em artes com enfoque
nas pinturas mogianas), sob a supervisão direta do IPHAN ( na presença do
historiador Carlos Gutierrez Cerqueira) dirigiu-se para a igreja dos terceiros
do Carmo de Mogi afim de realizar o primeiro levantamento/mapeamento da
pintura existente no forro da capela-mor.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

capazes de perceber, para esta técnica, a espessura das camadas aplicadas


sobre os santos doutores dificultavam sua visibilidade.
Foi então que optou-se por uma prospecção (Fig. 4) em área de-
limitada de um dos Evangelistas, como as fotografias especiais estavam
sendo realizadas no contorno de São Marcos a prospecção também fora
executada no mesmo.
Para nossa grata surpresa, o que as lentes tecnológicas e espe-
ciais não vislumbraram, mas nossos olhos nos faziam crer, é que fora
confirmado, os santos Evangelistas da pintura do forro da capela-mor
adormecem sob duas espessas camadas de tinta. Eles ainda estão lá,
somente esperando que o bisturi cuidadoso do restaurador lhes insufle
novamente a vida, e, assim, possam novamente compor uma das mais
ricas pinturas da antiga Capitania de São Paulo.

137

Figura 4: Detalhe São Marcos. Autor: Antônio dos Santos, 1814/1815. Forro
da capela-mor. Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Mogi
das Cruzes.
Foto: Elizabeth Kajiya, 2015.

As cores vivas e alegres de Antônio dos Santos aguardam para


serem novamente vistas e apreciadas. A beleza do gesto interrompido de
São Marcos, que foi libertado de seu sono e agora a pena pode voltar a
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

escrever a página que restou branca do livro, que por alguma razão An-
tônio dos Santos apagou no século XIX, talvez profetizando que deveria
haver espaço para um outro momento, em que os Evangelistas seriam
uma vez mais conclamados a escrever uma nova história.
A graciosidade deste pequeno quadro com o qual nossos olhos
puderam se deleitar nos trouxe a certeza da urgência do restauro desta
pintura, a qual ao mais leve toque, na área da balaustrada que circunda
o forro e liga as duplas de evangelistas, se desfaz. A pintura está se des-
manchando. Os Evangelistas a migrar através de duas camadas de tinta
clamam por socorro.
Quanto a esta parte invisível do forro ser de outro pintor que
não Antonio dos Santos, fica descartada a possibilidade, uma vez que
na comparação das vestes, do caimento do tecido, e sobretudo da ana-
tomia da mão de São Marcos, em relação ao conjunto da visão central
não deixa margem à dúvidas, os Evangelistas pertencem originalmente
à pintura de 1814.
O muro parapeito/balaustrada que acompanha a cimalha está
em pior estado de conservação, no encontro entre o arco cruzeiro e o
138 forro, muito do material pictórico se perdeu, embora os restauradores,
responsáveis pela prospecção,15 afirmaram que ainda é possível impedir
que o desenho se desfaça.
Os santos Doutores estão em melhor estado de conservação
e praticamente intactos. As extremidades do forro é que apresentam
maiores perdas. Entretanto, ainda não se conseguiu apurar a razão pela
qual esta parte da pintura tenha sido encoberta. Contudo, a proximidade
com o forro nos leva a crer (todos os envolvidos na análise/mapeamen-
to da obra) que a água das chuvas tenha danificado e lavado as tabuas,
ocasionando danos à pintura (na área envoltória aos Evangelistas) que a
Irmandade não soube ou não teve recursos para restaurar. Neste caso,
optaram pelo encobrimento de tais áreas, culminando no desapareci-
mento dos santos por no mínimo cem anos.
Após todo o mapeamento acerca desta obra, se pode afirmar
que a pintura do forro da capela-mor da Igreja dos Terceiros do Carmo

15
Os restauradores Elizabeth Alfredi de Mattos Kajiya e Júlio Eduardo Cor-
rea de Moraes que realizaram prospecções na obra em 29/10/2015, afirma-
ram ser possível salvar a camada pictórica e realizar a reintegração cromática
dos pigmentos sem perdas significativas na representação.
OS FORROS PINTADOS EM MOGI DAS CRUZES, SÃO PAULO...

de Mogi das Cruzes é ainda mais rica do que os olhos podem ver em seu
estado atual.16

Considerações finais

Por fim, esperamos que a pintura integral de Antonio dos San-


tos possa ser resgatada, pois trata-se de uma grandiosa obra pictórica,
do início do século XIX, de um artista que sequer temos qualquer outro
dado ou referência, mas não há dúvidas de sua qualidade técnica, habili-
doso pintor de gosto Rococó.
Enquanto no forro do vestíbulo, temos uma pintura tão barro-
ca com Lourenço da Costa, que anseia também por melhor visibilidade
em suas pranchas escurecidas pelo cinza repintado, ocultando flores e
folhas. Quem sabe o que a retirada da cimalha poderá nos revelar?
Notamos que o uso de outras técnicas agregadas à pesquisa do-
cumental possibilitam o conhecimento por ângulos e detalhes que nem
sempre os documentos sozinhos são capazes de revelar. Muito embora,
no caso do forro do vestíbulo, foram os documentos que nos levaram às
139
indagações e soluções essenciais para a compreensão da obra, especial-
mente de sua linguagem formal.
Quanto à capela-mor, foram os Evangelistas e seus contornos
tão nítidos ao observador que nos despertaram à este profundo e profí-
cuo mapeamento.Tais hipóteses não poderiam ter sido dirimidas sem a
união das diversas análises científicas da arte. Conquanto, estudos como
os que foram empreendidos tenham ainda custos elevados, há sempre
que acreditar, buscar e em algum momento alcançar as análises que pu-
deram ser feitas na Igreja dos Terceiros do Carmo de Mogi das Cruzes.
A espera e a persistência foram recompensadas ao vislumbrar
São Marcos retomando seu gesto, dando liberdade à pena; ou os peque-
nos pontilhados do spolvero de Lourenço da Costa tracejando os elemen-
tos de sua obra.
Pesarosos por Mário de Andrade, que não viveu para ver sua
“pintura invisível” ganhar vida através das mãos hábeis dos restaura-

16
A área prospectada, na ocasião do mapeamento, foi encoberta novamente
até a consolidação do material pictórico, garantindo que os pigmentos empre-
gados pelo artista não sejam destruídos pela entrada da luz após tantos anos
de escuridão.
DANIELLE MANOEL DOS SANTOS PEREIRA

dores, ansiamos ir além deste primeiro mapeamento e presentearmos


futuramente nossos olhos com a sublime visão do conjunto, onde os
santos Evangelistas a escreverem seus livros, sob um muro parapeito,
convivem harmoniosamente com a delicada e rica cercadura do quadro
que guarda a imagem de Nossa Senhora, o Menino e São Simão Stock.

140
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

Capítulo 9

O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO: ARQUITE-


TURA E ARTE NUMA LIVRARIA EM VILA RICA

Danilo Matoso Macedo

Manuel Ribeiro dos Santos1 era Caixa e administrador dos


Contratos dos Dízimos na Capitania de Minas Gerais entre 1741 e 1750,
tendo solicitado entre 1747 e 1753 a seus prepostos em Lisboa mais
de duzentos livros, listados em treze cartas e Receytas – hoje disponíveis
no Arquivo Público Mineiro.2 Tal comprovação de circulação de

1
Segundo Sílvio Gabriel Diniz (DINIZ, Silvio Gabriel. Um livreiro em Vila
Rica no meado do século XVIII. Kriterion n.47–48, pp.180–198, jan.-jun.
1959), o Capitão Manuel Ribeiro dos Santos era “filho de Manuel Ribeiro de 141
Carvalho e sua mulher Mariana Duarte, nascido na Comarca de Guimarães,
Arcebispado de Braga, Conselho de Santa Cruz de Cima, Fámega, Freguesia
de S. Salvador de Travanca”. Em 1783, já havia falecido, pois encontra-se
no Arquivo Público Mineiro (Secretaria de Governo da Capitania, Seção Co-
lonial, SG-CX.13-DOC.53) um Requerimento do administrador da casa do falecido
capitão Manuel Ribeiro dos Santos sobre o recolhimento aos cofres da Casa da quantia
paga pelo Capitão Antônio de Sousa Mesquita ao juiz do Tribunal, datado de 2 de
novembro daquele ano.
2
Arquivo Público Mineiro (APM), Fundo Casa dos Contos, CC-2030: “Com-
pilação de Anotações e correspondência particulares do arrematante do con-
trato de dizimos Manuel Ribeiro dos Santos”. Consultamos as transcrições de
Sílvio Gabriel Diniz (DINIZ. Um livreiro em Vila Rica), contendo os seguin-
tes pedidos: Carta a Jerônimo Roiz Ayraõ, s.d. p.75; Receita a Jeronimo Roiz
Ayraõ, s.d. p.215; Receita de tudo o q’. agora se pede, s.d., p.381.v.; Receita
Jeronimo Roiz Ayraõ de 6 out. 1747, p.15; Carta a Jerônimo Roiz Airão, 5 mar.
1749, pp.219.v./221; Receita a Jeronimo Roiz Ayraõ, 1750, p.171.v.; Carta a
Luís Salgado dos Santos, auzente o S.r Miguel Roiz Batalha, na de ambos o sr.
Franc.o Roiz Rego, 4 jul 1750, p.41; Carta a Jerônimo Roiz Airão, 6 maio 1751,
pp.297.v./299; Receita de L.os, 6 maio 1751, pp. 398.v.-399; Carta a Antonio
Ribeiro das Neves, 24 de Junho de 1751, pp.402-403; Carta a Antônio Ribeiro
Neves, 25 ago. 1752, pp.312/314; Receita a Jeronimo Roiz Ayraõ, 27 ago.
1752, p.317; Carta a Jeronimo Roiz Ayraõ, 1 set. 1752, pp.318-319; Carta a
Domingos Ribeiro Neves, 12 abr. 1753, pp.407-408. As listagens constam ain-
da no trabalho de ALVARENGA, Thábata Araújo de. Homens e livros em Vila
Rica: 1750-1800. Dissertação (Mestrado em História Social) - Departamento
de História da Faculdade de Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2003;
bem como em: ARAUJO, Jorge de Souza. Perfil do leitor colonial. Ilhéus, Bahia:
Editus, Editora da UESC, 1999.
DANILO MATOSO MACEDO

impressos em Minas Gerais revela alguns valores de interesse para o


estudo da arte, da arquitetura e da urbanização daquela capitania, aqui
exemplificados em alguns títulos e ilustrados por um breve olhar sobre
o ali presente Divertimento Erudito de João Pacheco.
O conjunto dos pedidos de Manuel Ribeiro dos Santos é tão
diversificado quanto numeroso – o que conota uma possível atividade
como livreiro em Vila Rica.3 Embora dominado por livros jurídicos,
continha também dicionários, gramáticas, manuais militares, livros
de medicina, história, geografia, literatura (clássica e coeva), filosofia,
religião, moral, e alguns tratados “enciclopédicos”. A arquitetura,
a escultura ou a pintura não estão presentes nos títulos, mas seus
valores trafegam de diversas maneiras no interior daqueles impressos.
Tal circulação cultural nem sempre é explícita, caso das conhecidas
semelhanças entre as pinturas de Mestre Ataíde (1762-1830) e as
gravuras de um missal de Antuérpia (1747) – provavelmente um dos
muitos encomendados pelo livreiro.4
Há casos, porém, em que os textos tratam diretamente de
arquitetura: na legislação afeita à edificação na literatura jurídica, ou
142 nos capítulos sobre arquitetura, artes e ofícios constantes em obras de
caráter moralista e “enciclopédico”.
Como se sabe, as Ordenações e leis do do Reino de Portugal – ou
Ordenações filipinas – constituíam a espinha dorsal do ordenamento
jurídico português. O código fora publicado pela primeira vez em
1603,5 e tivera sua edição Vicentina, aquela até então mais completa

3
“Não há dúvida de que revendia livros. Incluía na relação das obras pedidas
tanto aquelas de encomendas dos amigos como as que esperava negociar com
lucros. São numerosos os pedidos de dois ou mais exemplares de uma mes-
ma obra, e de algumas são os pedidos repetidos em ocasiões diferentes”. In:
DINIZ. Um livreiro em Vila Rica no meado do século XVIII, pp. 180-198,
jan.-jun. 1959, p.181.
4
Cf. JARDIM, Luiz. A pintura decorativa em algumas igrejas antigas de Mi-
nas. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.3, pp. 63-102,
1939; LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 8, pp.7-66, 1944; SANTIAGO,
Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de impressos europeus na configuração
do universo pictórico mineiro - 1777-1830. Tese (Doutorado em História Social da
Cultura) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizon-
te, 2009.
5
PORTUGAL. Ordenações (sic), e leis do Reino de Portugal Recopiladas per mandado
do mvito alto catholico, & poderoso Rei Dom Philippe o Pri.º Com licença dos superiores.
Impressas em Lisboa no mostrº de S. Vicente Camara Real de S. Mag.de. da ordem dos
Conegos Regulares por Pedro Crasbeeck. Lisboa: Pedro Crasbeeck, 1603. 5l.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

e luxuosa, dada aos prelos em 1747 – acrescida de repertórios e de


Legislação extravagante –6 a que Manuel Ribeiro dos Santos faz questão
de encomendar repetidas vezes.7 Em diversos títulos, dedicam-se as
Ordenações à regulamentação da construção da cidade. Notadamente, no
Título 68 do Livro Primeiro, cujos quarenta e dois parágrafos tratam
do Almotacé – e cujos vinte últimos tratam dos Edifícios e servidões. No
campo do direito eclesiástico, a obra de maior destaque – também
encomendada pelo livreiro em duas cartas – são as Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia,8 elaboradas por Sebastião Monteiro da Vide
e publicadas em 1719, que tratam, por exemplo, no Título 17 de seu
Livro Quarto, Da edificação, e reparação das Igrejas Paroquiais.
Os livros religiosos eram os best-sellers do Brasil colônia – fato
atestado não apenas por diversos estudiosos de história do livro,9 como
também pelos pedidos de Manuel Ribeiro dos Santos. Sua capacidade
formativa em diversos campos das artes e ofícios não deve ser

6
PORTUGAL. Ordenações, e leys do Reyno de Portugal Confirmadas, e estabeleci-
das pelo Senhor Rey D. Joaõ IV. Novamente impressas, E accrescentadas com
tres Collecções; a primeira, de Leys Extravagantes; a segunda, de Decretos, e 143
Cartas; e a terceira, de Assentos da Casa da Supplicaçaõ, e Relaçaõ do Porto.
Por Mandado do muito alto e poderoso Rey D. Joaõ V. Nosso Senhor. Lisboa:
No Mosteiro de S. Vicente de Fóra, Camara Real de Sua Magestade, 1747. 5v.
7
Solicita: Receita de 6 de outubro de 1747: “3 tom. Manoel Glz. da S.a a or-
denaçaõ”. Receita P.a Caza de 1750: “1 Jogo de ordenaçoinz novas, naõ tendo
vindo na prez.te Frota; 2 tom. repertorio ou Index das mesmas ordenaçoins
novas, q’. me dizem se estava acabando de Compôr”. Receita de 6 de maio
de 1751: “1 ou 2 tom. de Repertorios das novas ordenaçoes o que for de H
para diente q’. o tom. até ahi me mandou já o Auraõ; 1 jogo de mais inteiro
do d.o Repertorio das novas ord. se ja estiver acabada todas as Letras do
Abc” ; “ql.q.r dos da Pegaz a ordenaçaó”. Receita s.d. a Jeronimo Roiz Ayrão:
“2 Jogos das novas ordenaçoens q’. sahiraõ agora novamente impressos”; “1
tom. Reportorio ou Index a ordenaçaõ addicionado impreçaõ mais moderna
[$]480”. Receita de 27 de agosto de 1752: “1 Tom. se já Se imprimio do A para
diente repertorio novo das ordenaçoins 7$620 agora impreças o pr.o tomo
imprimiosse em 749.”
8
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituiçoens primeyras do Arcebispado da Bahia
feytas, & ordenadas pelo Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Sebastiaõ Monteyro
da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, & do Conselho de Sua Magestade, propostas,
e aceytas em o sinodo Diecesano que o dito Senhor celebrou em 12. de Junho do anno de
1707. Lisboa Occidental: na Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua
Magestade, 1719. Consta em: “Receita” s.d. : “1 Constituiçaõ da Bahia 1720
2.500 rs.”. Receita de 6 de maio de 1751, “P.a O Rd.o Fran.co da Costa”: “2
tom. Constituiçoens da Bahia”.
9
Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura:
usos do livro na América portuguesa. Tese (Doutorado em História) - Fa-
culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 1999; e
ARAÚJO. Perfil do leitor colonial.
DANILO MATOSO MACEDO

menosprezada. Dentro de um livro, a princípio, sobre moral religiosa,


encontram-se desde princípios de lógica formal, passando por valores
estéticos até detalhes técnicos de produção de materiais de construção.
Mesmo o ressurgimento de tratados enciclopédicos próprios do
iluminismo ocorre no mundo luso dentro de antigas estruturas textuais
moralistas ou de certa maneira devocionais. Este formato que hoje
consideraríamos híbrido não apenas refletia a mentalidade de seus
autores – muitos deles membros do clero – como também os tornava
mais aceitáveis pelos órgãos censores da Coroa e da Igreja, e portanto
mais vendáveis.
Neste campo, nas encomendas do livreiro de Vila Rica, saltam
à vista três pedidos reiterados pelas obras do ensaísta espanhol Benito
Jerónimo Feijoo (1676-1764), incluindo, numa carta de 1751, “todas as
mais obras q’. tiverem sahido do d[ito].o Feijó ou contra elle”. Seu Teatro
crítico universal10 – para tomar sua publicação de mais vulto – traz alguns
interessantes ensaios diretamente relacionados à ciência, à arquitetura
e à arte, como “Peso del aire” [t.2]; “Paradojas físicas” [t.2]; “Paradojas
matemáticas” [t.3]; “Lámparas inextinguibles” [t.4]; “Resurrección de
144 las Artes, y Apología de los Antiguos” [t.4]; “Nuevas propiedades de
la luz” [t.5]; “Razón del gusto” [t.6]; “Lo Máximo en lo Mínimo” [t.7];
“Importancia de la ciencia física para la moral” [t.8].
Uma obra que se aprofunda em temas na arquitetura artes e
ofícios – dentre outras matérias – é o Divertimento Erudito para os curiosos
de noticias historicas, escolasticas, politicas, e naturaes, sagradas, e profanas,
publicado em 4 volumes in-folio entre 1734 e 1744 pelo frei agostiniano
português João Pacheco (1677- ainda vivo em 1747).11 “1 Jogo [de]
4 tom. Devertimento Erudito” foi encomendado “P[ar].a Caza” por
Manuel Ribeiro dos Santos numa “receita” a Jeronimo Roiz Ayraõ em
1750. Os exemplares não foram os únicos de presença comprovada
na América Portuguesa, ocorrendo também: no inventário post-mortem

10
FEIJOO, Benito Jeronimo. Theatro critico universal, o Discursos varios en todo gene-
ro de materias para desengaño de errores comunes. Madrid en la Imprenta de la Viuda
de Francisco del Hierro; Herederos de Francisco del Hierro, 1726-1739. 8 v.
11
PACHECO, João. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Esco-
lasticas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas. Descobertas em todas as Idades,
e Estados do Mundo até o presente. E extrahida de varios authores. t.I, Lisboa
Oriental: na Officina Augustiniana, 1734. t.II, Lisboa Occidental: na Officina
de Antonio de Sousa da Silva, 1738. t. III, Lisboa Occidental: na Officina de
Pedro Ferreira, 1741. t.IV, Lisboa: na Officina de Domingos Gonçalves, 1744.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

de Manoel Dantas Barreto, feito na Bahia em 1768;12 no “Auto de


inventário e avaliação dos livros achados no Colégio dos jesuítas do
Rio de Janeiro e sequestrados em 1775”;13 e por fim no inventário post-
mortem de Manoel Ribeiro Soares feito em Vila Rica em 1788.14
Pacheco, nascido em 1677 em Aldegallega [hoje Montijo], no
Ribatejo, era agostiniano desde os dezessete anos, e fora “Superior do
Convento de Nossa Senhora da Penha de França, Mestre dos Noviços
do Convento da Graça de Lisboa, Prior dos Conventos de Lamego em
o anno de 1706, de Villaviçosa em 1709 e de Lisboa em 1740”.15
Explicando o título, o autor dá o teor da obra:
Li muito, e ouvi muito, e quanto mais ouvia, e
lia, tanto mais me dezafiava o dezejo a saber,
lendo, e ouvindo muito mais. Por este motivo
continuei sempre com a mesma curiosidade até
o presente, em que, vendo-me com annos já
maduros, considerei que para repetir a memoria,
o que tinha lido, e ouvido em varias, e deversas
materias, naõ seria fóra de proposito idear
hum compendio, aonde podesse aproveitarme,
quando me fosse necessario, ou cultivar o genio,
ou divertir os achaques, ou finalmente passar
o tempo em proveitoza conservaçaõ [sic] com 145
os amigos, e familiares. Puz esta idea em praxe,
trasladando só para mim, o que varios Authores
me suministraraõ. Mas porque seria especie de
avareza conservar só em mim, o que podia,
repartir com os que fazem profissaõ de curiosos,
tomei a resoluçaõ de commeter ao Prélo
esta diligencia. Parecerá temeridade grande,
e desvanecimento mal fundado semelhante
empreza. Eu o confesso. Desculpará porém o

12
Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Inventário post mortem de Manoel
Dantas Barreto (1768). Judiciária, 02/972/1441/01. In: ARAÚJO. Perfil do leitor
colonial, p.262-263, 348-350, 387.
13
Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Auto de
inventário e avaliação dos livros achados no Colégio dos jesuitas do Rio de Janeiro e seques-
trados em 1775 (22/7/1775-28/8/1777), manuscrito L.58. In: Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 301, pp. 212-259, out./dez. 1973.
14
Arquivo da Casa do Pilar, Ouro Preto (ACPOP). Inventário post mortem de Ma-
noel Ribeiro Soares (1788) 1º Ofício, códice 102, auto 1274, 1785. In: ARAÚJO,
Perfil do leitor colonial, p. 274, 361; ALVARENGA, Homens e livros em Vila Rica,
p. 242.
15
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana, historica, critica, e cronologica.
Na qual se comprehende a noticia dos authores portuguezes, e das Obras,
que compuseraõ desde o tempo da promulgação da Ley da Graça até o tem-
po prezente. Coimbra: Atlântida, 1965. 4v. [1.ed. Lisboa: Antonio Isidoro da
Fonseca, 1741-1759], t.2, p.715.
DANILO MATOSO MACEDO

meu arrojo, quem examindo [sic] sinceramente


o motivo desta obra, reconhecer que para ella
concorreo sómente o desejo de divertir aos
curiosos, e poupar trabalho, aos que costumão
revolver muitos livros; como tambem excitar
nos menos estudiosos huma inclinaçaõ a lerem,
e saberem succintamente, o que não saberiaõ,
nem lerião, talvez por se não cançarem em
saber de tudo, ou solicitarem, o que muitos
naturalmente aborrecem.16

Entre intelectuais, a obra deve ter sido recebida com alguma


reserva, pois dela se desviou até mesmo o espírito encomiástico
contumaz do bibliógrafo Diogo Barbosa Machado (1682-1772), o qual
se limitou atribuí-la à “vastissima liçaõ que [Pacheco] tem da Historia
secular e sagrada como da natural e politica”.17 Considerando-se a sua
circulação efetiva em três províncias do praticamente iletrado Brasil
oitocentista, é de se imaginar que, em todo caso, o Divertimento Erudito
tenha sido popular, constando em 1799 no Catalogo dos Livros, que se haõ
de ler para a continuaçaõ do Diccionario da Lingua Portugueza mandado publicar
pela Academia Real das Sciencias de Lisboa, elaborado por Agostinho
146 José da Costa de Macedo (1745-1822).18 Em meados do século XIX,
Inocêncio Francisco da Silva (1810-1876) assim resumiria seu percurso:
Incomparavelmente mais erudito e noticioso
que a Escola Decurial de Fr. Fradique Spinola,
com a qual offerece aliás alguma similhança
nos assumptos, o Divertimento conserva ainda
entre muita farragem de inutilidades e doutrinas
hoje reprovadas pela sciencia, cópia de artigos
curiosos, e que pódem ser consultados com
mais ou menos proveito, já para recreação, já
para estudo; sendo alem d’isso escripto com
linguagem correcta, e adequada ao genero da
obra. Comptudo, é hoje pouco menos que
desconhecido, e talvez a maior parte dos que
entre nós se acclamam litteratos, nem d’elle
ouvissem falar.19

16
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolas-
ticas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.I, s.n. [Antiloquio aos curiosos]
17
MACHADO. Bibliotheca Lusitana, historica, critica, e cronologica, t. 2, p. 715.
18
MACEDO. Agostinho José da Costa de. Catalogo dos livros, que se haõ de ler
para a continuaçaõ do diccionario da lingua Portugueza: mandado publicar pela Aca-
demia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa: Na Typographia da Mesma Aca-
demia, 1799.
19
SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionario bibliographico portuguez: estudos
de Innocencio Francisco da Silva applicaveis a Portugal e ao Brasil. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1858-1923. 22v., v.3, p.430.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

A espinha dorsal do livro é a narrativa histórica, apoiada


sobretudo no Antigo Testamento. A partir da simbologia evocada por
um acontecimento arquetípico bíblico mencionado no início de cada
capítulo, Pacheco descreve o mundo, o homem e seus ofícios:
He a Historia muito util, porque nella se regulão
pelas acçoens passadas as cousas presentes; as
Artes, e Sciencias fazem aos homens agudos,
e engenhozos; as Politicas os manifestão
estadistas, e urbanos; em fim a expeculaçaõ
das cousas naturaes os inculcaõ capazes de
comprehenderem em toda a materia as cousas,
que se praticão propoem, e questionaõ.
[…]
Aqui achará o curioso, e amante de noticias a
Historia desde o principio do Mundo até o
presente, e entre ella enxeridas a invençaõ,
methodo, e regras de varias Artes, e Sciencias,
a especulaçaõ de cousas naturaes, o estilo de
observaçoens politicas, e outras curiosidades,
de que se tratta por respeito, e incidencia da
mesma historia, donde se tira o fundamento
para se repetirem, e notarem os seus dictames;
porque aqui se tocaõ Theologias, Filosofias,
Chronologias; geografias, Astrologias, 147
Aritmeticas, Fisonomias, Genealogias, e outras
materias, que hoje se praticão, por gosto, por
conveniencia, e por honra.20

Cita então 327 autores que teriam servido de base para a sua
obra – o que o exime de fazê-lo no texto. Dos oito tomos originalmente
previstos, apenas quatro foram impressos.21 O primeiro tomo trata de
Deus e dos sete dias da criação, servindo de pretexto para uma espécie
de “História Natural”. O segundo tomo, que aqui veremos em maior
detalhe, trata da criação do homem, da anatomia, da agricultura e de
diversas artes e ofícios essenciais, incluindo os Artículos: “Da Pintura,
e Illuminação”, “Da Esculptura, e entalhe […]”, “Da Arquitectura”
[…],” “Da Mathematica em geral“,”Da Geometria“,”Da Optica ou

20
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolas-
ticas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.I, s.n. [Antiloquio aos curiosos]
21
Diz Inocêncio: “Além d’estes quatro grossos volumes, ha ainda na Bibl.
Nacional outro manuscripto, de grandeza correspondente, que o auctor não
chegou a imprimir. A obra devia comprehender ao todo oito tomos, de que
já existia acabado o sexto, e principiado o septimo. E ao oitavo devia seguir-
-se a Historia Universal de todas as series das monarchias, etc.”. In: SILVA,
Diccionario bibliographico portuguez, v.3, p.430.
DANILO MATOSO MACEDO

Perspectiva” e por fim “Das Moedas, Pezos, e Medidas”. O terceiro


tomo dá seguimento à história bíblica até o dilúvio, tratando das artes
e ofícios, incluindo: “Dos Edificios mais celebres”, “Da musica” […],
“Da Poesia, e Poetas”, “Dos Fundidores”, “Dos Mineiros, e Metaleiros”
além da tecelagem, tipografia, gramática, magia e medicina. O quarto
tomo prossegue, a partir do dilúvio, até os netos de Noé, tratando da
cozinha, da moral, da nobreza e heráldica, das vinhas e da educação.
O livro não possui estampas. Apenas algumas tabelas e
interessantes composições de tipografia no artigo dedicado à poesia
– no terceiro tomo. O texto alterna trechos da lavra do próprio autor
a transcrições ou traduções literais extensas de outras obras. As
referências a outros tratados no corpo do trabalho ocorrem via de regra
somente quando feitas pelo autor que ele transcreve. Tomemos por
amostra do labor de Pacheco os trechos nominalmente relacionados à
pintura, escultura e arquitetura, constantes no segundo tomo.

148

Figura 1: Frontispício do Divertimento Erudito


Fonte: Acervo pessoal do autor.

Os três Artículos seguem estruturas paralelas: Iniciam-se por


um panorama histórico do ofício na antiguidade, relacionada à história
bíblica, e exemplos de artistas modernos; desdobrando-se nas subdivisões
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

do ofício e em alguns detalhes técnicos selecionados entremeados por


apreciações críticas de Pacheco, complementados por um vocabulário
de Termos daquela arte. Nos três casos, o panorama histórico é uma
tradução não assumida de trechos da obra La piazza vniversale di tutte
le professioni del mondo, publicada por Tommaso Garzoni (1549-1589)
em Veneza em 1585,22 cujas sucessivas reedições comprovam tratar-
se de livro de ampla circulação.23 A julgar pela transcrição de listas de
artistas espanhóis modernos ausentes no original, Pacheco parece ter
se servido da tradução castelhana – feita em 1615 por Cristóbal Suarez
de Figueroa (1571-1644).24
As explicações são complementadas pelos vocabulários de
termos próprios de cada ofício, dispostos em ordem alfabética ao
final de cada capítulo. Talvez, no que concerne às artes e à arquitetura,
constituam os primeiros léxicos especializados impressos em língua
portuguesa. Alguns verbetes são transcrições diretas do dicionário de
Raphael Bluteau (1638-1734).25 Outros parecem ser elaborados pelo
próprio Pacheco. Seja qual for a origem, a circunscrição de um universo
temático é trabalho que não pode ser menosprezado: ele não apenas
149
contribui diretamente para a compreensão da semântica vigente, mas
também para a delimitação dos campos profissionais tratados.

22
GARZONI, Tommaso. La Piazza universale de tutte le Professioni del Mondo e
nobili et ignobili. Venetia: Apresso Gio. Battista Somascho, 1585.
23
Diz-nos Brunet: “La piaza universale di tutte le professioni del mondo par le même
Garzoni. Ce dernier ouvrage eut beaucoup de succès, car ils s’ent fit en peu de
temps plusieurs éditions. Nous avons vu celles de Venise, 1585, 1687, 1588,
1596, 1616 (en mar. r. 23 fr. 50 c. Libri), 1638, etc., toutes de format in-4., qui,
au reste, n’ont qu’une vleur très médiocre, et il en est de même de la traduction
lar., sous le titre d’Emporium universale, par Nic. Belli, Francf. 1614, in-4.”. In:
BRUNET, Jacques-Charles. Manuel du libraire et de l’amateur de livres. 5.ed. Paris:
Firmin-Didot Frères, Fils et cie., 1860-1865. 6v., 3/1496. Schlosser afirma que
esta obra foi “molto imitata anche nel titolo”. In: SCHLOSSER Magnino,
Julius von. La letteratura artistica: manuale della fonti della storica dell’arte mo-
derna. Trad. Filippo Rossi. 3.ed. Firenze: La Nuova Italia; Wien: Kunstverlag
Anton Schroll & Co., [1964]. (Il Pensiero Storico, 12)
24
[GARZONI, Tommaso]. Plaza vniversal de todas ciencias y artes, parte tradvcida
de Toscano, y parte compuesta por el doctor Christobal Suarez de Figueroa
[…]. Madrid: Por Luiz Sanchez, 1615.
25
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, ar-
chitectonico, bellico, botanico… zoologico: autorizado com exemplos dos
melhores escritores portuguezes e latinos, e offerecido a elrey de Portugual D.
João V. Coimbra: No Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728.
8v. Disponível em: < http://clp.dlc.ua.pt/DICIweb/default.asp?url=Home>.
Acesso em: 20 de maio de 2016.
DANILO MATOSO MACEDO

Traduzindo Garzoni, Pacheco nos dá uma bela definição de


pintura, feita na esteira de Simônides de Ceos (ca.556 a.C.-468 a.C.):
He a Pintura Arte Liberal, imitadora das
proporçoens da natureza, e naõ só muda
representaçaõ, mas escrittura, ou expressaõ,
que falla, e com as cores, e o pincel faz fallar
muitas cousas naturalmente mudas. Tanto assim
que o mais antigo, e natural modo de escrever
foi pintar objectos, ou materias, em que se
queria falar; donde veio a palavra Pingere, e a
composiçaõ dos Jeroglificos, que representados
significavaõ, o que se queria dizer. Com ella
tem grande parentesco a Poesia, pois disse della
Simonides, que era huma Poesia Callada; e a
Poesia huma Pintura, que falla.26

Traz então uma sinopse histórica, que vai desde relatos de


Plínio, sobre Giges da Lídia – Grécia antiga –, passando por vasto
anedotário sobre a importância da pintura em Roma e sua estima pelos
imperadores e estudiosos, chegando a uma lista de mais de trinta pintores
modernos, como Albrecht Dürer (1471-1528), Tintoretto (1518-1594),
150 Paolo Veronese (1528-1588), Caravaggio (1571-1610) ou El Greco
(1541-1614), tratando ainda brevemente da Iluminação de manuscritos,
classificando pintores como práticos ou teóricos, concluindo com uma
lista dos principais tipos de pintura, classificadas de acordo com sua
técnica: afrescos, têmpera, água de goma, de penejado (ou a bico de
pena), em mosaico, encáustica, dentre outras.
Trata brevemente da “Illuminação”, que define como:
Especie de Pintura, se estende commummente
em taboasinhas, e laminas pequenas,
em pergaminho, em Agnus Dei, e cousas
semelhantes, aonde suttilmente se pintaõ varias
effigies, e retratos, com purissimas cores de azul
ultramarino, ouro, e prata moida.27

Em seguida, e aqui indo além de Garzoni, menciona os artistas


Paisistas distingue os pintores entre practicos e theoricos, e define que:

26
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.126.
27
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas., t.II, p.130.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

A sua perfeiçaõ consiste na boa proporçaõ, e


boas luzes; intervem no seu ministerio còlas,
mordente, vernizes, pedras de moer, pinceis
grossos, e finos; as suas acçoens sao moer tintas,
compollas, temperallas, ou à tempera, ou a oleo,
ou a fresco; dar còla, dar huma maõ, ou maes
de gesso, imprimar, pintar a claro, ou a escuro,
lustrar, envernizar, illuminar, retratar ao natural,
e outras cousas semelhantes.28

Pacheco lista ainda alguns dos principais tipos de pintura


segundo seu suporte, tratando em seguida:
Da Esculptura, e entalhe em pedra, prata, ouro,
madeira, bronze, cobre, e marfim, em que
entrão naõ só Estatuarios, e Entalhadores, mas
tambem Sinceladores, serradores de marmores,
formadores de Imagens de gesso, cera, e terra.
&c..29

O fio condutor é novamente a narrativa da história da


escultura antiga via Garzoni/Figueroa. Trata-se aqui porém também
da divisão do trabalho nos ofícios da pedra copiados de Plínio que
Pacheco traduz como canteiros ou pedreiros, serradores de mármores
e estatuários. Após mencionar os mármores mais estimados na Itália, 151

conclui tratando dos “Abridores de sellos”. Embora por vezes fazendo


menção a termos de sua língua pátria, o autor até aqui prescinde
completamente de tratar de obras ou artistas portugueses.
Inicia então um novo Articulo, agrupando os dois anteriores,
tratando “Dos requisitos necessarios para o exercicio da Pintura, e
Esculptura, &c.”,30 os quais consistem no domínio das proporções do
corpo humano, copiadas do tratado de Juan de Arfe (1535-1603),31
após o que dedica-se a explicar detalhes sobre a escultura em madeira,
“pasta” (barro) e bronze. Abandonando Garzoni e Arfe, Pacheco
trata, por fim, detalhadamente da confecção de vernizes, tintas a óleo,
goma e esmaltes, bem como da obtenção de cores diretamente de suas

28
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas., t.II, p.130.
29
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas., t.II, p.131.
30
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.132.
31
Villafañe, Ioan de Arphe y. De varia commensvracion para la escvlptura, y Architec-
tura. Dirigida al Excelentissimo Señor Don Pedro Giron, Duque de Ossuna,
Conde de Vrueña, y Marques de Peñafiel, Virei de Napoles. Sevilla: en la Im-
prenta de Andrea Pescioni, y Iuan de Leon, 1585.
DANILO MATOSO MACEDO

matérias primas, explicando a origem geográfica de cada material e


seu preparo, incluindo o processamento de minerais. Tais descrições,
acompanhadas de 249 Termos de Pintor, Esculptor; e Tintureiro constituem
um verdadeiro manual técnico. Tomemos por exemplo o verbete:
Carmim - He tinta artificial composta de páo
do Brasil, moido em almofariz com paens
de ouro, tudo lançado de molho em vinagre
branco, e depois de ferver, se poem a escuma
a seccar. Tambem se faz de outro modo, com
Cochonilha, e Pedra Hume de Roma, tirante a
vermelho. Tem o Carmim a cor muito viva.32

Tais diretivas práticas não o eximem de apresentar ainda


algumas definições conceituais, como:
Historiado - diz-se Bem Historiado, de hum
painel, quando está ajustado com a historia;
e a composiçaõ das figuras está confórme às
acçoens, e ao tempo, em que viviaõ as pessoas,
que na pintura se representaõ.33

No mesmo segundo tomo, João Pacheco trata, num longo


artigo:
152 Da Arquitectura, e varios engenhos, e maquinas,
com os Officios, e Artes conducentes a ella, que
saõ os dos Pedreiros, Alvaneos, Carpinteiros,
Marceneiros, Torneiros, Entalhadores,
Sembladores, e outros taes. Tratta-se dos
Vidraceiros, Oleiros, Moleiros, Atafoneiros, e
do que a Este respeito lhes pertence.34

Sua principal fonte em Arquitetura é Vitrúvio (séc.I a.c.), quer


por citação direta, quer via Garzoni, trazendo também diretamente as
referências de Leon Batista Alberti (1404-1472), Luca Pacioli (1445-
1517), Albrecht Dürer, Marino Bassi Milanese, Andrea Palladio (1508-
1580) e Sebastiano Serlio (1475-1554).35
Convém lembrar que traduções de Vitrúvio e de Alberti para o
português tardariam até as portas do século XXI para serem dadas aos

32
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.163.
33
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.168.
34
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, pp. 265-363.
35
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.265.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

prelos. Não é marco de pouca importância, portanto, uma transcrição


e publicação – em vernáculo do século XVIII – de valores vitruvianos,
como a célebre passagem:
Em summa seis partes se fazem da Arquitectura,
que saõ Ordem: Disposiçaõ: Euritmia:
Symmetria: Decoro: Destribuiçaõ. A Ordem não
he mais, que humma summaria comprehensaõ
das cousas, que se haõ de fazer. A Disposiçaõ
he huma distinçaõ accomodada às partes das
cousas, que se devem obrar; e he como huma
idéa, e figura do edificio, sendo esta de tres
sortes, Cenographia, que he hum pequeno debuxo
da cousa; Orthographia, que he huma Imagem
direta da frente, e da obra, isto he, um modèlo
imperfeito; Cenographia, que he o completo
modelo de todos os lados, e partes da fabrica. A
Euritmia he a graça, e policia da obra. A Symmetria
he a conveniencia, e proporçaõ das partes entre
si. O Decoro he o aspecto emendado do edificio.
A Distribuiçaõ he huma conveniente despensaçaõ
à cerca, do que se lavra, e à possibilidade, do
que edifica; porque de hum modo se fazem os
edificios das Cidades, e de outro os dos campos;
de huma sorte as casas dos pobres, e de outra
sorte os palacios dos ricos.36
153

36
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Es-
colasticas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.266. No origi-
nal: “Architectura autem constat ex ordinatione, quae graece taxis dici-
tur, et ex dispositione, hanc autem Graeci diathesin vocitant, et eurythmia
et symmetria et decore et distributione quae graece oeconomia dicitur.
Ordinatio est modica membrorum operis commoditas separatim universque
proportionis. […] Dispositio autem est rerum apta conlocatio elegansque
conpositionibus effectus operis cum qualitate. Species dispositionis, quae
graece dicuntur ideae, sunt hae: ichnographia, orthographia, scaenographia.
Ichnographia est circini regulaeque modique continens usus, e qua capiuntur
formarum in solis continens usus, e qua capiuntur formarum in solis area-
rum descriptiones. Orthographia autem est erecta frontis imago modiceque
picta rationibus operis futuri figura. item scaenographia est frontis et laterum
abscedentium adumbratio ad circinique centrum omnium linearum reponsus.
[…] Eurythmia est venusta species commodusque in conpositionibus mem-
brorum aspectus. […] Item symmetria est ex ipsius operis membris conve-
niens consensus ex partibusque separatis ad universae figurae speciem ratae
parti responsus. […] Decor autem est emendatus operis aspectus probatis
rebus conpositi cum auctoritate. […] Distributio autem est copiarum locique
commoda dispensatio parcaque in operibus sumptus ratione temperatio. […]
Alter gradus erit distributionis, cum ad usum patrum familiarum et ad pecu-
niae copiam aut ad eloquentiae dignitatem aedificia alte disponentur. Namque
aliter urbanas domos oportere constitui videtur, aliter quibus ex possessioni-
bus rusticis influunt fructus; non idem feneratoribus, aliter beatis et delicatis.
[…]” In: VITRUVIUS, (Marcus V. Pollio). De Architectura = on Architecture:
books I-V. Trad. Frank Granger. Loeb Classical Library 251. Cambridge: Har-
vard University Press, 1931. l.1, cap.II, §§.1-9.
DANILO MATOSO MACEDO

Pacheco menciona então as ordens toscana, dórica, coríntia,


compósita, e, indo além de Vitrúvio, Garzoni ou Figueroa, inclui as
ordens:
Ordem Caryatica he, a que em lugar de colunnas
tem escravos à persiana. Ordem Franceza he
composta de lyrios, ou açucenas, cabeças de
gallos, e outras cousas proprias da Naçaõ; tem
proporçoens Corinthias. Ordem Attica he huma
certa fabrica pouco alta, que se faz debaixo de
outras. Ordem Gothica he hum antigo modo de
edificio, que se usava na construcçaõ da maior
parte das Igrejas Cathedraes; tem colunnas,
ou muito mociças, ou muito delgadas, com
capiteis sem medida, e totalmente differente dos
antigos.37

Mais adiante, ao tratar de colunas, o autor detalharia, em


módulos, as proporções toscanas e dóricas, deixando de dar maior
explicação das demais, embora recomendando diretamente, para tais
elementos, a consulta de: Vitrúvio, Giacomo Barozzi da Vignola,
154 Sebastiano Serlio, Andrea Palladio Giuseppe Viola Zanini, Pietro
Cataneo, Juan de Arfe, Giovani Antonio Rusconi e Vicenzo Scamozzi.38
Após tratar brevemente “Dos Carpinteiros, e maes Officiaes,
que trabalhaõ em madeira”, ocupa-se Pacheco “Dos Alvanéus,
Pedreiros, e coisas que lhes pertencem”.39 À história antiga de Garzoni,
Pacheco acrescenta aqui: detalhes do processo de fabricação da cal e do
gesso, bem como da construção de alicerces e da fabricação de tijolos
(“ladrilhos”). Explica também do ofício dos Pedreiros, ou Canteiros,
e aqui volta a tratar de questões de projeto, pois faz uma descrição
completa da composição das partes de uma igreja em planta e em
elevação:
Sendo a planta de huma igreja, que tem fórma de
cruz, se reparte em quatro partes principaes, que

37
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasticas,
Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.268.
38
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasticas,
Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.280.
39
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.271.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

saõ, corpo, dous braços, que fazem o cruzeiro; e


a quarta parte he a Capella mòr. O comprimento
desde a porta da Igreja atè ò cruzeiro terá dous
tantos e meio da largura. O comprimento do
cruzeiro terá dous tantos da largura do corpo; e
a largura será de sette partes, de que se compoem
a largura do corpo toda, isto, he, menos uma
parte de toda a largura, dividindo-se em outo
partes. As mesmas sette partes terá a Capella
mòr até os presbiterios, assim de comprimento,
como de largura, ficando em quatro a conta de
lados iguaes. Todo o presbiterio atè o espaldar,
q fica por detraz do Altar mòr terá sómente
de comprimento, naõ de largura, menos duas
partes, que os que tem o cruzeiro, mas a largura
sempre terá as mesmas sette partes; porque
haõ de ir as paredes atè o fim iguaes com a
mesma largura, sem divisaõ. As Capellas do
corpo da Igreja teràõ para dentro metade de
largura do corpo da igreja. Se a abobeda for de
pedra, serào de cantaria as paredes com a sua
grossura competente; e entam haõ de ficar estas
Capellas mais afastadas humas das outras, para
que tenhaõ as paredes mais fortaleza. Sendo de
tijolo a abobeda, nao estarao tao afastadas, mas
sempre as divisoens haõ de ser de cantaria. O 155
numero das Capellas de cada banda naõ devem
passar de cinco, e se forem menos, elegerá o
Arquitecto a largura, confórme a proporçaõ;
mas a altura hade chegar ao meio da altura, que
tiver por toda a parede da Igreja; e por isso se ha
de proporcionar a largura.40

Prossegue o autor em proporções, como alturas das capelas e


do coro, e detalhes como a porta. Explica ainda as “igrejas de colunas”,
dando abertura para a delineação plantas “de cinco lados; outras
sextavadas, outras outavadas”.41
Como se pode advertir, no que concerne ao estilo
arquitetônico, Pacheco é bastante permissivo – embora sempre atendo
aos cânones clássicos – como atestam os adjetivos escolhidos para esta
bela passagem:

40
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.275.
41
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.276.
DANILO MATOSO MACEDO

Figura 2: Descrição de organização da planta de uma igreja, segundo Pacheco.


Fonte: Desenho do autor.

Nos frontispicios, para mais bizarria, e fachada,


sendo a sua elevação de muita altura, se poderá
seguir com todas as colunas das cinco ordens;
que para mostrar mais luzimento, e fermosura,
nao será defeito, ou dezacerto fazer destas
partes hu todo em semelhante obra; porque a
156 variedade, bem ajustada, causa à mesma arte
mais fermosura; e he approvado dos melhores
Mestres. O que supposto se devem advertir
primeiro a fortaleza, que tem cada huma das
colunnas, confórme a sua ordem, e as que se
avantajão mais em dilicadezas; e como a Toscana
he mais forte, sempre esta será a primeira
ordem, que embaixo se assente; às quaes
colunnas seguiràõ logo por cima as Doricas,
dahi as Jonicas, e mais para cima as Corinthias;
e por cima destas as Compostas; assim ficaráõ
com propriedade; porque se sobre as Doricas se
pozerem as Toscanas; ou sobre as Compostas
as Corinthias, seria hum defeito com grande
impropriedade. E dado, que o edificio ficasse
forte, não teria tanta fermosura, nem ficaria tão
airoso.42

A escolha de palavras, aliás, é o cerne do vocabulário de


441 termos de arquitetura ao final do Articulo. Como já foi dito, a
própria delimitação do tema, é uma valiosa porta de entrada para as
circunscrições dos campos profissionais da época – se avaliada com

42
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.279.
O DIVERTIMENTO ERUDITO DE JOÃO PACHECO...

o devido espírito crítico. Vejamos alguns agentes da área de projeto e


construção, seguidos de seus produtos:
Architecto - he o que faz plantas, e desenhos dos
edificios; ou o mestre das obras; e o que sabe, e
expoem a Arte de edificar.
Artifice - he obreiro.
Artista - he destro em alguma arte.
Mestre - he artifice, que sabe bem o seu officio;
o que examina as obras do seu officio. Mestre das
obras, he o director de qualquer obra de pedra,
e cal.
Official - he todo o artifice de obras mecanicas, e
dos que trabalhaõ.
Delinear - he lançar riscos, ou linhas, para
representar uma cousa, que se quer fabricar, ou
tomar: lançar a planta de hum edificio. Daqui
Delineação : Delineado.
Desenhar - no papel he idear, e formar hum risco
para alguma Arquitectura.
Debuxar - He riscar com lapis, ou penna, o que
se obra na pintura, sem dar cor, nem sombras.
A’s vezes he pintar.
Debuxado, Debuxo - Delineaçaõ, primeiras
figuras, e tudo, o de que consta o papel riscado
sómente. 157
Desenho - [pintura:] He a idea, que o Pintor fórma
para representar alguma imagem; ou tomar
as justas medidas, proporçoens, &c. fórmas
exteriores, que devem ter objectos, que se
fazem à imitaçaõ da natureza. [arquitetura:] he o
formar, e tomar as justas medidas, proporçoens,
e fórmas exteriores, que devem ter os objectos,
que se fazem à imitação da natureza.
Edificio - he obra de pedra, e cal. Daqui Edificar.
Fabrica - he composiçaõ de edificio; ou a casa,
artificio, lavor, feitio.
Fabricador - he o Author do edificio, o Arquitecto.
Daqui Fabricante.
Risco - he a delineaçaõ da obra, que se quer fazer.
Daqui Riscar.43

Conforme aqui demonstrado, o Divertimento Erudito de João


Pacheco esteve presente no Brasil, e especificamente em Vila Rica,
durante a segunda metade do século XVIII. Seu caráter quase religioso
facilitava sua circulação entre a elite letrada da época que se envolvia,
mesmo que indiretamente, na concepção ou execução das edificações

43
PACHECO. Divertimento Erudito para os curiosos de noticias Historicas, Escolasti-
cas, Politicas, e Naturaes, Sagradas, e Profanas, t.II, p.290-312.
DANILO MATOSO MACEDO

e obras de arte. Eram os bispos, padres, cônegos, desembargadores,


ouvidores, juízes, advogados que as encomendavam, licitavam,
fiscalizavam e avaliavam. O conteúdo da obra de Pacheco era carente da
sistematização racional e hierarquizada dos enciclopedistas franceses.
Em sua erudição, algo apartada da prática real dos ofícios, era em muitos
sentidos incompleto.
Porém, impressos como o Divertimento Erudito traziam para
a América Portuguesa, traduzida em vernáculo, as ideias e valores
de tratadistas europeus da área de arquitetura e arte que talvez aqui
pouco circulassem de outra forma. De fato, têm sido escassas as
comprovações materiais de circulação de alguns autores regularmente
mencionados nas análises das obras construídas: os livros de Alberti,
Palladio, Cataneo, e mesmo Vitrúvio, parecem ter sido raros nestas
terras, fazendo-se presentes em João Pacheco e tantos outros autores
que, por serem “leigos”, talvez sejam pouco visitados pelos estudiosos
da história da arte e da arquitetura. Assim como nossos artífices, tais
intérpretes acrescentavam algo de si ao traduzir o que liam, e por tal
contribuição devem ser creditados.
158
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

Capítulo 10

AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA E I


MODELLI DEL PRIMO QUADRATURISMO EUROPEO

Fauzia Farneti

L’illusionismo spaziale di Agostino Mitelli e di Angelo Michele


Colonna gioca un ruolo fondamentale nell’ambito della grande
decorazione del secolo XVII. Prezioso collaboratore di Angelo Michele
Colonna, Mitelli rappresenta la figura-chiave per comprendere lo
sviluppo del quadraturismo e dei generi affini. Nella sperimentazione di
innovative e scenografiche tipologie architettoniche l’obiettivo primario
è la costruzione di uno spazio virtuale plausibile che, nella volontà di
ricreare un mondo esperibile attraverso l’inganno dei sensi, implica il
ruolo attivo dello spettatore e la consapevolezza, acquisita dal pittore 159
nella pratica pittorica, della discrasia tra regola matematica e percezione
sensoriale. Ciò apre la via alla differenziazione delle sperimentazioni da
parte del quadraturista bolognese sulle quali si inserisce poi la diversa
concezione che contrapporrà gli illusionismi di Andrea Pozzo e dei
Bibiena. Questa diversità, a Bologna e non solo, si traduce nell’adozione
di sistemi prospettici plurifocali e, soprattutto, nel precoce abbandono
delle grandi macchine quadraturistiche a favore di più leggere soluzioni1
o della loro ‘riduzione’ nella pittura a tempera di architettura.
Il Mitelli esordisce nella pratica del cantiere architettonico
reale vicino a Giovan Battista Aleotti,2 secondo quel principio espresso
da Sebastiano Serlio che il pittore doveva essere necessariamente anche
architetto; la sua preparazione si basa sui trattati di architettura, una
prassi che accomuna tutti i quadraturisti, optando poi per un’architettura
senza cantiere; l’architettura dipinta gli imponeva comunque un diretto
confronto con l’architettura reale e le sue regole. Lo stesso Andrea

1
Una significativa testimonianza nella chiesa romana dei santi Sisto e Dome-
nico.
2
Si cita il castello di Scandiano.
FAUZIA FARNETI

Pozzo nel suo trattato dirà che «la prospettiva degli edifici, di cui
trattiamo, non può haver bellezza, e proportione, se non le prende
dall’architettura».3
Mitelli produsse straordinari esempi per le generazioni
successive di architetti e scenografi, esercitando una influenza
non limitata alla citazione di dettagli ma alla definizione di nuove e
complesse tipologie architettoniche come “la grande scala, anche a
rampe ricurve” o “il salone con sfondato con diversi affacciamenti
lungo le pareti”, analogo a quello di villa Albergati a Zola Predosa,
realizzato da Giangiacomo Monti negli anni settanta del Seicento,
definito da Anna Maria Matteucci “trasferimento in muratura delle
quadrature affrescate da Mitelli nella grande sala della residenza estense
di Sassuolo”. 4 Anche il motivo della copertura a calotta traforata adottata
da Ferdinando Bibiena e da suo figlio Antonio in chiese del parmense
e del mantovano trova anticipazioni nei disegni e nella produzione del
Mitelli e del Colonna. Agostino costruì attraverso disegni che, come
riferisce Malvasia, sembrano eseguiti con una “pennina tanto gentile” e
precisa che “pare quella di Parmigianino”, e incisioni,5 un repertorio di
160
modelli fondamentale per le generazioni successive. I primi costrutti
dell’inganno dei due bolognesi propongono colonnati trabeati che
si aprono al centro in un’alta arcata che trova i suoi presupposti in
ambito dentonesco, nella decorazione eseguita da Domenico Curti
detto il Dentone nella controloggia di villa La Paleotta a S. Martino di
Bentivoglio, datata intorno al 1619-1621 a cui partecipò per l’apparato
figurativo il giovane Colonna. Questa soluzione, che può essere
considerata una pseudo serliana, troverà seguito nelle proposte più
articolate dei lati brevi delle ingannevoli macchine architettoniche di
Andrea Pozzo dal corridoio delle camere nella Casa Professa del Gesù
a Roma al Sant’Ignazio e si diffonderà in Italia e in Europa, vedi il
soffitto dello scalone del palazzo del Liechtenstein, realizzato nel 1706-
1708 da J.M. Rottmayr.

3
POZZO, Andrea. Perspectiva pictorum et architectorum, vol. I, p. 12, Avvisi a i
principianti.
4
MATTEUCCI, Anna Maria. L’architettura del Settecento. Torino: Utet, 1988,
p. 84.
5
A proposito delle incisioni conosciamo l’opuscolo Fregi d’architettura, dedica-
to nel 1645 al conte Ettore Ghisilieri.
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

I due bolognesi impiegano moduli compositivi da tempo


dibattuti anche dai teorici, basta pensare alla quadratura della sala
Bologna nel palazzo Vaticano, realizzata da Ottaviano Mascherini e
pubblicata da E. Danti nel Disegno della quadratura eseguita da Ottaviano
Mascherini nel palazzo Vaticano della sala Bologna del 1588, e al disegno del
frisone Johanne Vredeman de Vries, pittore e disegnatore, pubblicato
nel 1604 nel Perspective.6 Questo costrutto ampliato verrà riproposto
dal Colonna, nel 1625, sulla volta dell’aula di Sant’Alessandro a Parma,
prima opera interamente autografa a lui commissionata dalla badessa
Margherita Farnese grazie ad Alessandro Tiarini;7 il pittore dipinse
sia l’apparato figurativo che quello architettonico seguendo i criteri
dentoneschi della Paleotta e del Trebbo di Reno,8 una “soda” e “vera”
architettura prospettica, come riferisce Anna Maria Matteucci, ispirata
alle opere di Pellegrino Tibaldi e di Tommaso Laureti.
Assieme al suo maestro Girolamo Curti dipinse nel convento
di San Michele in Bosco la Prospettiva in capo allo stradone di San Michele
in Bosco, raffigurante fughe di porticati e terrazze. Questo modulo
compositivo che vede la campata centrale archivoltata ad inquadrare
quinte prospettiche che costruiscono la profondità, viene proposto 161

anche da Giovanni Ghisolfi, di origine lacuale comasca, come si


vede nella sala dei Fasti romani in palazzo Arese Borromeo a Cesano
Maderno ma anche nel refettorio romano di Trinità dei Monti in cui
furono attivi Andrea Pozzo e Antonio Colli e nel salone di palazzo
Contucci a Montepulciano. Va ricordato che il Ghisolfi potrebbe essere
uno dei maestri o un punto di riferimento per il Pozzo. La soluzione
troverà una continuità citazionistica anche in ambienti periferici come
Lucca, in palazzo Buonvisi d’Estate, e Pontremoli, nella sala della villa
ai Chiosi della famiglia Dosi, nell’apparato ad illusionismi architettonici
di Francesco Natali mentre le figure sono del fiorentino Alessandro
Gherardini.

6
Cf. fig. 37 del testo.
7
Alessandro Tiarini dipinse la cupola. Secondo Malvasia e l’Oretti, Curti re-
alizzò la quadratura e Colonna ebbe il ruolo di figurista. MALVASIA, Carlo
Cesare. Felsina Pittrice. Vite de’ Pittiri Bolognesi. Bologna 1678, ( II edizione con
aggiunte, correzioni e note inedite di G. Zannotti e altri scrittori, Bologna: Tip.
Guidi, 1841, 2 voll.), p. 346; Bologna, Biblioteca Comunale dell’Archiginnasio
(=BCABo), ms. B. 128, ORETTI, Marcello, Notizie de professori del dissegno cioè
pittori scultori e architetti bolognesi e de forestieri di sua scuola, 1760-1780, c. 317.
8
Il casino Malvasia.
FAUZIA FARNETI

E’ nota l’attività prestigiosa del Mitelli e del Colonna9 per i


Medici sia nell’appartamento estivo di Palazzo Pitti, dove operarono
con “quel solito meraviglioso concerto” tanto che i loro esiti sembrano
“di una mano sola”, come riferisce Malvasia, sia nel casino degli Orti
Oricellari del cardinale Giovan Carlo, suscitando l’ammirazione dei
committenti. Un successo che trova conferma nell’opera di Jacopo
Chiavistelli, figura di riferimento per i giovani quadraturisti fiorentini.
Nelle sale di Palazzo Pitti dipinte dai due bolognesi l’illusionismo
pittorico, interpretato da Francesco Algarotti come inganno dell’occhio
per “appagar l’intelletto e muovere il cuore”, si univa al clima gradevole
e al ‘mormorio’ dell’acqua delle fonti in un completo appagamento dei
sensi per coloro che vivevano le sale.10
La struttura della forma architettonica costruita dalla
sovrapposizione degli ordini con la balaustra a diaframma fra l’uno e
l’altro è un sintagma dell’architettura barocca, impiegato ad esempio
nello scalone del Collegio dei Nobili a Torino. Le balconate della loggia
superiore della seconda sala mostrano evidenti analogie con i moduli
del costrutto ingannevole di villa Malvezzi a Bagnarola di Budrio
162 (Bologna) mentre la loggia trova affinità col soffitto della Sala Urbana
dell’appartamento del Legato Bernardino Spada nel palazzo Comunale di
Bologna, realizzato nel 1630. L’ultimo livello prospettico di quest’ultimo
costrutto è caratterizzato da una copertura articolata da tre balaustre
segmentate, di cui quelle laterali articolate dall’aggetto molto evidente
di un balcone che troverà seguito nella produzione illusionistica, vedi
ad esempio il Trattato di Andrea Pozzo11 e l’architettura dipinta nel San
Francesco Saverio a Mondovì; a Coimbra nella biblioteca Joaninha,
dipinta nel 1723 dai lisboneti António Simões Ribeiro e Vicente
Nunes, allievi del fiorentino Vincenzo Bacherelli e, la decorazione della
cappella principale del collegio gesuita di Santarém dipinta da Luís
Gonçalves Sena nel 1754.12

9
La prima collaborazione certa fra Colonna e il giovane Agostino Mitelli è la
decorazione della sala di Pompeo in palazzo Spada a Roma nel 1635.
10
Per il sistema di raffrescamento delle sale terrene del quartiere di Ferdinan-
do II, si veda BALOCCO, Carla, FARNETI, Fauzia, MINUTOLI, Giovanni.
I sistemi di ventilazione naturale negli edifici storici. Palazzo Pitti a Firenze e palazzo
Marchese a Palermo. Firenze: Alinea Editrice, 2009.
11
Trattato, 2 vol., fig. 59.
12
L’apparato decorativo è stato studiato da MELLO. MORAES, Magno. A
pintura de tectos em perspectiva no Portugal de D. João V. Lisboa: Estampa, 1998.
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

Nelle sale terrene del quartiere granducale trovano traduzione


una straordinaria varietà di soluzioni prospettiche, sperimentate in
palazzo Spada a Roma, con moduli compositivi e strutturali elaborati
anche in precedenza dal quadraturismo bolognese e non solo,13 basti
pensare a Paolo Veronese e agli esempi romani di Agostino Tassi in
palazzo Lancellotti (1617-1623) dove nell’ordine superiore, logge
aperte balaustrate sono elegantemente drappeggiate da tende, o la sala
de’ Corazzieri nel palazzo del Quirinale.14
Queste tipologie architettoniche e figurative verranno da loro
riproposte in altri cantieri; infatti, la soluzione della parete di fondo
della terza sala, che troverà molte citazioni nel quadraturismo toscano,
connoterà una delle pareti del salone delle Guardie nel palazzo Ducale di
Sassuolo15 da loro dipinta (1646-1647) e l’impaginazione architettonica
dell’inganno dipinta nella chiesa palatina dedicata a San Francesco
in Rocca nello stesso borgo, dai bolognesi Gian Giacomo Monti e
Baldassarre Bianchi,16 eredi e continuatori del Mitelli e del Colonna (fig.
1). Le stesse troveranno traduzione negli apparati decorativi da loro
realizzati a Madrid, come si evince dal disegno della facciata del salone
dell’Eremo di San Pablo, di autore anonimo, conservato presso la 163
Biblioteca Nazionale di Madrid, copia dell’apparato di Angelo Michele
Colonna e Agostino Mitelli.17 La brillante carriera del Colonna,18 che
“aveva acquistato gran credito in quest’arte per le soddisfazioni date al
Re di Spagna, et a quello di Francia, et altri Principi nelle pitture fattegli
e per le comuni approvazioni che havevano ricevuto le operazioni fatte
dal medesimo”, valse al pittore l’incarico per la tribuna di Santa Maria
Corteorlandini a Lucca.

13
Le citazioni sono molteplici e, non ultima, quella veronesiana delle compar-
se che si affacciano dalle balaustre.
14
I robusti telamoni che partecipano all’articolazione delle pareti della prima
sala trovano riferimenti nel fregio della galleria Farnese.
15
Va ricordata anche la sovrapposizione delle finte logge realizzate dai due
bolognesi sulla facciata, la «gran Corte», dello stesso palazzo, di cui rimangono
deboli tracce.
16
Con i due quadraturisti collaborò il figurista Jean Boulanger di Troyes.
17
Il disegno è stato pubblicato da ATERIDO, Ángel. Il Salone dell’Eremo di San
Paolo nel Buen Retiro, in FARNETI, Fauzia, LENZI, Deanna (a cura di). Realtà
e illusione nell’architettura dipinta, (atti del convegno Lucca 2005). Firenze: Alinea
Editrice, 2006, p. 41 .
18
Il Mitelli trova la morte a Madrid.
FAUZIA FARNETI

Figura 1: Sassuolo, chiesa di San Francesco in Rocca, Gian Giacomo Monti


e Baldassarre Bianchi
Foto: Fauzia Farneti

Questi costrutti dei due bolognesi trovano diffusione in Euro-


pa attraverso l’attività di pittori italiani; in Spagna il bolognese Dionisio
Mantovano, considerato il migliore discepolo del Mitelli a Madrid e che,
alla morte di quest’ultimo, “ne hebbe ancora (disegni del Mitelli) Dioni-
164 sio Mantuani Pittore in Madrid che gli rubbò”.19 A questo proposito è
significativa la decorazione dello scalone del monastero de las Descal-
zas Reales di Madrid, realizzata dal Mantovano assieme a Francesco
Rizzi molti anni dopo la morte del Mitelli seguendo forse l’esempio
della copertura di San Paolo dipinta dal Mitelli e dal Colonna. Manto-
vano e Rizzi mostrano di seguire i modelli dei due famosi bolognesi
come decoratori, senza avere piena coscienza della spazialità costruita
attraverso la prospettiva; il costrutto dipinto sullo scalone manca di
coordinazione tra i diversi ambienti virtuali pur essendoci una logi-
ca strutturale nella continuità degli elementi architettonici virtuali che
articolano le pareti reali. I due pittori condussero anche l’apparato de-
corativo della cappella e dell’anticappella del Milagro nello stesso mo-
nastero intorno al 1681. E’ ben noto che i lavori realizzati dal Mitelli e
dal Colonna alla fine degli anni cinquanta del Seicento presso la corte
spagnola contribuirono in modo decisivo a gettare le basi dell’illusioni-
smo architettonico in Spagna e, per primo, di Antonio Palomino.

19
BCABo, ms. B.148, fasc. 1, ORETTI, Marcello, Cronica con molte notizie pit-
toresche ricavata dalla originale scritta dal Padre Giovanni Mitelli C. R…., fol. 19; La
cupola della Madonna del Fuoco nella cattedrale di Forlì. Bologna: Alfa, 1979, p. 20.
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

Sono i pittori bolognesi Mitelli, Colonna, Pizzoli e Tommaso


Aldovrandini a lasciare le prime testimonianze del genere quadraturista
a Forlì. Il Colonna, attivo tra il 1646 e il 1647 nella cattedrale, dipinse
la cupola della Madonna del Fuoco, andata perduta. In una data
compresa tra il 1650 e il 1655, anno in cui i due celebri pittori bolognesi
si trovavano a Genova in palazzo Balbi prima di partire per la Spagna,
presumibilmente intorno al 1653, affrescarono la cappella dedicata alla
SS. Annunziata20 nella chiesa di San Filippo Neri, su commissione di
Polissena Aleotti, madre di Francesco Corbici.21 (fig. 2) Il costrutto
architettonico dipinto sulla parete d’altare ripropone gli elementi
dell’architettura reale dell’edicola di completamento dell’altare; sugli alti
piedistalli decorati da tarsie marmoree si impostano colonne dal fusto
liscio concluse da capitelli corinzi su cui si imposta una trabeazione
decorata con teste di cherubino a bassorilievo, vasi, volute e festoni
in analogia con la soluzione adottata nel sovrapporta della parete
corta del salone di Sassuolo. La finta finestra, aperta sull’asse centrale
della lunetta, viene evidenziata da un apparato decorativo raccordato
mediante ampie volute alla trabeazione che conclude l’illusionistica
apparecchiatura architettonica della parete. L’ingannevole macchina 165
architettonica coinvolge anche la copertura voltata della cappella; una
finta balaustra ottagonale impostata su grandi mensole, proprie del
repertorio dei due bolognesi, visibile solo in parte a causa della visione
prospettica, si apre sull’immagine dell’Assunzione della Vergine raffigurata
di scorcio. Il costrutto realizzato sulla copertura voltata è costruito
seguendo i canoni ‘del sotto in su’, con il punto di vista centrale;
Andrea Pozzo nella Visione di santa Maria Maddalena de’ Pazzi 22 impiega
elementi compositivi analoghi23 ma un punto di vista eccentrico. La
soluzione decorativa della copertura si diffonderà e troverà seguito
anche nell’Italia settentrionale, come ad esempio a Racconigi nella

20
La seconda cappella alla sinistra dell’entrata; CASALI, Giovanni. Guida per
la città di Forlì. Forlì: Tipografia Casali, 1863, p. 38.
21
Forlì, Archivio di Stato (=ASFo), Fondo Brandolini dall’Aste, Breve Notizia
delle cose più memorabili della Congregazione di S. Filippo Neri di Forlì, ms., b. 36,
c.. 119
22
Affresco San Luigi Gonzaga in gloria contemplato da Santa Maria Maddalena
de’ Pazzi sulla volta del transetto destro della chiesa di S. Ignazio a Roma; il
bozzetto preparatorio per l’affresco si trova nella sagrestia, olio su tela, cm
53,5x84.
23
Si fa riferimento all’uso delle unghie e della cornice architettonica.
FAUZIA FARNETI

chiesa di Santa Maria della Porta, decorata da Giovanni Battista Pozzo


nel 1708.

Figura 2: Forlì, chiesa di San Filippo Neri, cappella della SS. Annunziata,
Agostino Mitelli e Angelo Michele Colonna, 1650-1655.
Foto: Nada Sotgia

166 Sui lati brevi della cappella il passaggio al primo livello


prospettico è segnato dalle volute che concludono le arcate delle unghie
che, come a Sassuolo, si aprono su un piccolo spazio virtuale delimitato
anteriormente da una balaustrata. L’unghia costituisce un elemento
architettonico molto apprezzato dal Mitelli che lo inserisce spesso anche
nei disegni: si veda il disegno preparatorio per la copertura della sala di
Bacco nella casa di Huerta de Sora, conservato presso la Kunstbiblioteck
di Berlino. Due finti medaglioni raffiguranti episodi della vita della
Vergine, raccordano la soluzione di copertura con quella dipinta sulle
pareti laterali, un sintagma che il Colonna assieme a Giacomo Alboresi
adotterà in palazzo Albergati a Zola Predosa dopo circa vent’anni, anche
se in una nuova combinazione.
Anche i putti gioiosi che giacciono sulle arcate dei monumenti
sepolcrali e che sembrano giocare con i festoni di pomi e verzure
costituiscono un elemento del lessico del Mitelli, ritrovabile nella sua
produzione fiorentina.24 Nel 1657 il costrutto pittorico dell’ordine
inferiore è stato strappato e collocato in palazzo Corbici Reggiani e,

24
Si rimanda ai sovrapporta di palazzo Niccolini.
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

oggi, risulta perduto. 25 Nel 1677 Angelo Michele Colonna ritorna a


Forlì, “da se solo […]”, chiamato a dipingere tutta “[…] la Cappella a
fresco, e gli si diede 350 scudi”;26 si tratta della cappella di San Giovanni
di proprietà della famiglia Solombrini,27 la prima cappella posta a destra
dell’entrata, che, come quella della SS. Annunziata, versa in uno stato
di grave degrado.
Nello stessa anno il Colonna condusse per Silvestro Arnolfini
la decorazione di una sala terrena della villa di Gragnano e, a Lucca, la
tribuna di Santa Maria Corteorlandini, in cui fu attivo con Gioacchino
Pizzoli,28 suo allievo, dal momento che il Mitelli era morto a Madrid nel
1660. (fig. 3)

167

Figura 3: Lucca, Santa Maria Corteorlandini, parete absidale, Angelo Michele


Colonna e Gioacchino Pizzoli, 1677.
Foto: Nada Sotgia

25
VIROLI, Giordano. Chiese di Forlì. Forlì: Nuova Alfa Editoriale, 1994, p. 118.
26
ASFo, Fondo Brandolini dall’Aste. Breve Notizia delle cose più memorabili della
Congregazione di S. Filippo Neri di Forlì, ms., b. 36, p. 124.
27
ASFo, Fondo Brandolini dall’Aste, Breve Notizia delle cose più memorabili della
Congregazione di S. Filippo Neri di Forlì, op. cit., p. 124.
28
Il Pizzoli inizia la sua collaborazione con il Colonna in seguito alla morte di
Giacomo Alboresi nel 1677.
FAUZIA FARNETI

Le fonti letterarie locali29 e Marcello Oretti30 riferiscono la


presenza del Pizzoli anche nel cantiere forlivese; citando le parole
di Carlo Cignani: “fecero parimenti tutto il fregio della Cappella de
Signori Solumbrini, cioè le figure del detto Colonna, e la Quadratura
di Gioacchino di Lui Scolare su disegni del Maestro”.31 (fig. 4) Una
semplice arcata dipinta sulle pareti laterali della cappella definisce il
superamento dello spazio reale; sulle colonne lisce, che replicano quelle
reali, si impostano gli imbotti cassettonati decorati da motivi a rosette.
Numerose sono le affinità con gli esempi bolognesi; precisi riferimenti
si colgono con la cappella della compagnia dei Gargiolari nella chiesa
di San Giacomo Maggiore32 (1674) o con la prospettiva dipinta in San
Paolo Maggiore a Bologna. Lo sfondato architettonico, che risulta più
ricco e articolato di quello della chiesa forlivese, propone lo stesso
scorcio prospettico e analoghi elementi decorativi quali ghirlande di
foglie e fiori sorrette da putti e gli imbotti cassettonati ornati da rosette.

168

Figura 4: Forlì, chiesa di San Filippo Neri, cappella di San Giovanni, Angelo
Michele Colonna e Gioacchino Pizzoli, 1677.
Foto: Nada Sotgia

29
CASALI, Giovanni. Guida per la città di Forlì. op. cit.; CASALI, Giovanni. La
città di Forlì e i suoi dintorni. Forlì: Società tipografica Forlìvese, 1928; CALZINI,
Egidio, MAZZATINTI, Giuseppe. Guida di Forlì. Forlì: Bordandini, 1893.
30
BCABo, ms. B. 128, ORETTI, Marcello, Notizie de professori del dissegno cioè
pittori scultori e architetti bolognesi e de forestieri di sua scuola, 1760-1780, c. 318.
31
Forlì, Biblioteca Comunale, Raccolta Piancastelli, C. Cignani, Pitture più cele-
bri, e cospicue di Forlì, ms. III/73, 1691, p. 11.
32
Dipinta dal Colonna e dall’Alboresi.
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

Il costrutto, realizzato con la prospettiva per angolo, si


complica con lo sviluppo di un ambiente curvilineo nel secondo piano
prospettico, che si intravvede al di là del proscenio costituito dall’arcata
in primo piano, reso visibile dall’apertura scenografica della tenda.
La stessa apparecchiatura viene replicata sulla cantoria che costruisce
ribaltando presumibilmente lo stesso cartone e adattandolo al nuovo
spazio; una soluzione analoga verrà adottata anche da Jacopo Chiavistelli
nel transetto della chiesa dei Santi Michele e Gaetano.
Al centro della parete di fondo del costrutto virtuale della
cappella, sopra un alto basamento, sono raffigurati entro finti medaglioni
dorati sorretti da putti, a fingere elementi plastici, i busti di Bartolomeo
e Livio Solombrini, rispettivamente a sinistra e a destra della parete
d’altare. L’apparecchiatura architettonica dell’inganno che conclude le
due scene laterali è vivacizzata cromaticamente dai festoni di fiori e dai
putti che reggono un grande drappo rosso.33
Nello 1653 i due bolognesi a Rimini avevano decorato
l’oratorio di San Girolamo e, contemporaneamente, erano impegnati
per il marchese Filippo Niccolini34 nel palazzo fiorentino di via de’ Servi 169
e per il cardinal Giovan Carlo de’ Medici nel casino di via della Scala;35
le quadrature dipinte “in testate ai viali” del giardino di quest’ultimo
edificio furono “dipinte tanto bene che ànno dato squola a tutti gli altri
professori che ànno seguitato l’architettura”.36

33
La chiesa fu danneggiata dal terremoto del 1778; il restauro pittorico della
cappella di san Giovanni venne affidato al quadraturista Giuseppe Alberi e al
figurista Giuseppe Marchetti. ASFo, Congregazioni religiose soppresse, vol. 1825,
sec. XVIII, p. 94. Un altro intervento di restauro all’apparato decorativo è
stato effettuato nel 1837, cf. CASALI, Giovanni. Guida per la città di Forlì. op.
cit, p. 38 «gli affreschi furono in alcuni luoghi ritoccati da un non troppo felice
pittore da stanze nel preteso restauro del 1837».
34
Per il Niccolini, segretario del cardinal Govanni de’ Medici, al termine del
cantiere decorativo di palazzo Pitti avevano dipinto il salone della villa di Ca-
mugliano acquistata nel 1637. Nel 1649 si dedicarono alla decorazione parie-
tale di un salotto della stessa villa e, l’anno seguente, alla facciata del palazzo di
famiglia a Ponsacco, realizzata da Colonna.
35
Quello del casino fu un cantiere che si protrasse a lungo, a partire dal 1641
fino al 1657; cf. MATTEUCCI, Anna Maria, RAGGI, Giuseppina. Angelo Mi-
chele Colonna e Agostino Mitelli al casino di via della Scala a Firenze, in «Scritti per
l’Istituto Germanico di Storia dell’Arte di Firenze». Firenze, 1997, p. 396.
36
Firenze, Bibioteca Medicea Laurenziana, ms. Antinori 248, Vite e notizie di
uomini chiari, c. 7.
FAUZIA FARNETI

Nel giugno del 1652 i confratelli di San Girolamo di Rimini


avevano deciso di portare avanti la decorazione dell’oratorio ricostruito
a partire dal 1620,37 affidandola ai “celebri Bolognesi Dipintori a fresco
Michele Colonna ed Agostino Metelli”, interpellati dal confratello,
il conte Cesare Bianchetti. L’edificio è andato distrutto nell’ultimo
evento bellico mondiale e la documentazione fotografica storica38
relativa all’interno e all’apparato decorativo mostra la soluzione
del soffitto definito da una cornice mistilinea che funge anche da
struttura portante. Contribuivano a dare credibilità all’intero costrutto,
considerato dal Marcheselli una “delle più belle opere a fresco di quei
due gran Professori, ed indivisibili Compagni”, i colori “verissimi, e
freschissimi” e la luce, attentamente studiata e individuata nelle sue
fonti; le dorature davano preziosità all’insieme e creavano un “effetto
meraviglioso” che ben si connetteva con la sensibilità barocca.
L’importante documentazione, letteraria e icnografica, e
l’analogia con altre opere realizzate dagli stessi hanno reso possibile
la ricostruzione informatica del costrutto architettonico integrale
170
dipinto dal Colonna e dal Mitelli che, per contratto stipulato con la
confraternita di S. Girolamo, erano “tenuti personalmente a dipingere
detto oratorio et soffitto, pilastrate e corniciamenti”, a fornire colori
“et oro à loro spese, e detto oro abondare, in modo che riesce il
lavoro ricco d’oro, e nobile, lucente ne ornamenti, così del soffitto,
come in altra cosa di rilievo”.39 (fig. 5) I due bolognesi realizzarono una
macchina architettonica virtuale “per la quale vedi ingrandirsi l’ambito
delle pareti, anzi queste scomparti d’avanti, ed apparirti invece esterne
gallerie, e prospettive elegantissime, e fin l’aperto cielo, solo restandoti
doppie e bene intese colonne d’ordine jonico a sostegno della superior

37
FARNETI, Fauzia. Un apparato decorativo recuperato: l’oratorio di San
Girolamo a Rimini, in FARNETI, Fauzia, LENZI, Deanna (a cura di). L’ar-
chitettura dell’inganno. Quadraturismo e grande decorazione nella pittura di età barocca,
(atti del convegno Rimini 2002). Firenze: Alinea Editrice, 2004, pp. 300-317.
38
Le fotografie sono state realizzate nel 1920 per documentare lo stato di
grave degrado delle decorazioni.
39
Rimini, Archivio della confraternita di S. Girolamo, Libro delle parti D, p. 96.
I documenti sono stati pubblicati per la prima volta da FARNETI, Fauzia.
Un apparato decorativo recuperato: l’oratorio di San Girolamo a Rimini, op.
cit., pp. 300-317
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

parte dello edifizio, il quale pure ti sembra scoperto nel mezzo, ove ti si
apre una soprendentissima scena, l’apoteosi del santo”.40 (fig. 6)

Figura 5: Rimini, oratorio di San Girolamo, Agostino Mitelli e Angelo


Michele Colonna, 1653.
Fonte: Responsabile scientifico della ricostruzione informatica Fauzia Farneti

171

Figura 6: Rimini, oratorio di San Girolamo, ricostruzione della decorazione


pittorica di copertura con il bozzetto figurativo conservato presso la
Compagnia di S. Girolamo, Agostino Mitelli e Angelo Michele Colonna, 1653.
Fonte: Responsabile scientifico della ricostruzione informatica Fauzia Farneti

40
TONINI, Luigi. Alcune memorie storiche della ven. confraternita che è in Rimini col
titolo di S. Girolamo e della SS. Trinità. Rimini: Tipografia Marsoner e Grandi,
1842, p. 27.
FAUZIA FARNETI

Da queste parole, scritte da Luigi Tonini, si evince lo stupore e


la meraviglia che suscitava l’ingannevole architettura del San Girolamo,
dove i colori “verissimi, e freschissimi” e la luce contribuivano a dare
credibilità. Figure di putti aprivano scenograficamente “di tratto in tratto
nobilissimi panni”, i tendaggi verdi della galleria, “assai bellamente”,
animando e dando forza all’illusione, in analogia con altre soluzioni dei
due bolognesi o di pittori a loro vicini, come nei due apparati decorativi
dipinti sopra le cantorie opposte all’organo, in San Paolo Maggiore o de’
Carbonesi sempre a Bologna o nel San Francesco di Sassuolo (fig. 7).
L’angioletto in volo che avvolge il drappeggio intorno alla colonna fu
ripetuto testualmente dal Colonna molti anni dopo, nel 1677, sulla volta
della sala del Consiglio nel palazzo Comunale a Bologna e costituisce
un modello legato alla ‘spettacolarità’ barocca. Il motivo ha significativi
precedenti nella produzione di Agostino Tassi in palazzo Lancellotti e
di Alessandro Tiarini nel Martirio di Sant’Alessandro (1627) nella chiesa
omonima a Parma. Una soluzione scenografica che ritroveremo in
alcuni costrutti di Jacopo Chiavistelli, vedi nella chiesa dei Santi Michele
e Gaetano, e di Giuseppe Natali nella chiesa di San Sigismondo a
172
Cremona. Il poco noto e tuttavia interessante nel suo anacronismo
apparato decorativo dello scalone di palazzo Bianconcini a Bologna,
dipinto dal bibienesco Pietro Scandellari, attivo fino agli anni settanta
del Settecento senza mai abbandonare i modelli tardo barocchi ai quali
si era formato, mette in luce la natura varia e talora contraddittoria
degli orientamenti di gusto degli artisti e dei committenti. I colonnati
che costituiscono uno dei principali sintagmi del repertorio mitelliano
troveranno significativi seguiti nel lessico italiano ed europeo, con esempi
quali il salone di palazzo Cerretani a Firenze, fino ad arrivare ai complessi
più articolati elaborati da Andrea Pozzo che andranno a sostituire quelli
bolognesi. Esempi significati a Bologna nella chiesa del Sant’Ignazio,
decorata da Giuseppe Barbieri, attivo a Bologna e nei collegi gesuitici
dei territori piemontesi, lombardi ed emiliani. (fig. 8) L’intervento nel
San Girolamo è significativo per l’ambiente riminese, perché diede avvio
al genere del quadraturismo con significativi interventi nelle residenze
della città, andati purtroppo perduti durante l’ultimo conflitto mondiale.
Cito l’esempio della macchina architettonica dell’inganno41 realizzata

41
Una fotografia storica documenta l’apparato decorativo.
AGOSTINO MITELLI, ANGELO MICHELE COLONNA...

nel salone di palazzo Maschi-Marcheselli Lettimi da un pittore ancora


da identificare che si muove comunque nell’ambito del Mitelli e del
Colonna. Come nel San Girolamo le pareti sono scandite da coppie di
colonne ioniche su alti piedistalli che articolano lo spazio illusionistico
in campate, con molteplici spazi che vivono in profondità, una
modalità che trova analogie anche nella villa di Silvestro Arnolfini a
Gragnano, dipinta dal Colonna prima dell’estate del 1678 affiancato
dal Pizzoli, in cui la sala è delimitata da colonnati che si raddoppiano,
anzi quadruplicano nelle zone angolari. Gli interspazi si aprono su
giardini e su lontane architetture, una soluzione che tornerà nella sua
ultima opera, la cappella di villa Sampieri (1680) e, in parte già proposta
nella sala di palazzo Cospi (1675). Un motivo analogo viene impiegato
anche da Giovanni Zanardi nella controfacciata dell’oratorio di San
Girolamo a Cremona.

173

Figura 7: Sassuolo , chiesa di San Francesco in Rocca, particolare decorativo,


Gian Giacomo Monti e Baldassarre Bianchi.
Foto: Fauzia Farneti
FAUZIA FARNETI

174

Figura 8: Bologna, Pinacoteca Nazionale, Giuseppe Barbieri,1675.


Foto: Marinella Pigozzi

Colonnati, arcate balaustrate, tende scenograficamente aperte


ripropongono il repertorio dei due bolognesi, sintagmi che verranno a
comporre le ingannevoli apparecchiature architettoniche in numerosi
ambiti culturali anche fuori dell’Italia attraverso l’attività di Ferdinando
Galli Bibbiena e di numerosi altri pittori italiani aiutati dalla traduzione
in numerose lingue e diffusione del trattato di Andrea Pozzo; si
diffonderanno, anche se in ritardo, in Russia, con l’opera del Valeriani
e del Quarenghi a San Pietroburgo fino a raggiungere la Turchia in una
semplificazione compositiva.
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA...

Capítulo 11

FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA


EN LAS CÚPULAS DE DOS IGLESIAS MADRILEÑAS

Javier Navarro de Zuvillaga




Hospital e Iglesia de San Antonio de los Portugueses

En 1648 Velázquez fue enviado por el rey Felipe IV a Italia


como embajador extraordinario ante el Papa Inocencio X para comprar
pinturas originales y estatuas antiguas, así como para vaciar algunas de
las más celebradas, que en diversos lugares de Roma se hallaban.
En este viaje viose en Bolonia con Miguel Colona, y Agustin
Miteli, excelentes fresquistas boloñeses, para tratar con ellos de traerlos
175
a España, pues Felipe IV deseaba ver pintados al fresco los techos o
bóvedas de algunas piezas de su palacio1.
Jusepe Martínez, pintor y tratadista del siglo XVII español,
nos cuenta que a Velázquez no le gustaba pintar al fresco y por ello
trajo a Mitelli y Colonna:

Vinieron los pintores; se dio luego orden que se


pintase el salón grande, que sale a la plaza, el cual
está hecho con grande arte. […] ellos pidieron
a S. M. fuese servido de darles ayudantes para
concluirla, y así se valieron de dos pintores
famosos, que a poca práctica que tomaron los
igualaron en bondad y en dibujo y colorido, y
después acá se han introducido de tal manera
este modo de obrar que hace emulación [… ]
estos dos pintores se llamaron los Colonas y el
uno murió en España y el otro se volvió a Italia
con muchos medros[…]2.

1
VELASCO, Antonio Acisclo Palomino de Castro y. El Museo pictórico y la
escala Óptica. Madrid: Ed. Aguilar, 1947, pp. 94, 552 y 614.
2
MARTÍNEZ, Jusepe. Discursos practicables del nobilísimo arte de la pintura. Real
Academia de San Fernando, Madrid 1800, pág. 120.
JAVIER NAVARRO DE ZUVILLAGA

Los pintores boloñeses llegaron a Madrid en 1658 y les


asignaron como ayudantes a Francisco Ricci y Juan Carreño que con
lo que aprendieron de aquéllos pintaron los muros de algunos templos,
como el camarín de la Iglesia de Nuestra Señora de Atocha, y en otros
lugares reales, además de en la Iglesia de San Antonio de los Portugueses,
casi todo ya desaparecido a excepción de esta última.
Las obras de esta iglesia comenzaron en 1606 y el Hospital anexo
un año después por orden de Felipe III a instancias del Consejo Supremo
del Reino de Portugal ya que en Madrid vivían muchos portugueses
pobres y enfermos al ser Portugal parte de la corona española. El Rey
encargó este cometido a la Hermandad de San Antonio, por haber
nacido este santo en Lisboa y ser tenido en gran devoción en Madrid.
Al crecer la fama del Hospital se decidió erigir una nueva iglesia abierta
al público. En 1624 el Rey pidió al arquitecto Juan Gómez de Mora
que realizara su traza. Intervino también el arquitecto y jesuita Pedro
Sánchez que ya había realizado otras dos iglesias, una en Sevilla y otra en
Málaga. Posiblemente se inspirase en la Iglesia de las Bernardas de Alcalá
176
de Henares, obra del arquitecto Juan Gómez de Mora, también de planta
oval, aunque de mayor tamaño. La obra se terminó en 1633. En 1690
hubo de reformarse, ya que la armadura amenazaba ruina.
Hacia el final del siglo XVII, la reina D. Mariana de Austria,
madre de Carlos II, al haberse independizado Portugal en 1640, decidió
ceder el uso del Hospital a los alemanes enfermos que pertenecían al
séquito que acompañó a la reina D. Mariana de Neoburgo, segunda
esposa de Carlos II, cuando llegó a Madrid en 1689 y también para
recibir a los peregrinos alemanes. Así cambió su denominación por la de
San Antonio de los Alemanes que es la que hoy perdura.
La fachada de ladrillo visto, es obra de Juan Gómez de Mora.
Fue restaurada en 1886 por Antonio Ruiz de Salces, dándole un aire
neogótico en los recercados de los huecos. Una espléndida escultura
en piedra de San Antonio en una hornacina, obra del también
portugués Manuel Pereira, remata la sencilla portada de granito.
En 1974, recién declarada la iglesia Monumento Histórico
Artístico Nacional, fue restaurada, devolviéndole su primitivo aspecto
según las trazas de Gómez de Mora y el plano de Madrid realizado por
otro portugués, Teixeira, en 1656.
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA...

El espacio interior presenta con un carácter escenográfico muy


propio del Barroco todo un programa iconográfico en distintos niveles
dedicado mayormente a San Antonio, que culmina en la bóveda donde
se representa la gloria del santo.
Las pinturas que primero se realizaron hacia 1660 fueron los
frescos de la cúpula, obra, como queda dicho del madrileño Francisco de
Rizzi (1608-1685) y del asturiano Juan Carreño de Miranda (1614-1685).
El primero pinta una arquitectura fingida que prolonga hacia arriba la
arquitectura real de la iglesia aprovechando los lunetos reales y lo hace
con la técnica aprendida de los italianos Mitelli y Colonna (Fig. 1). En los
espacios que hay entre las columnas fingidas están representados ocho
santos portugueses. Esta arquitectura fingida remata en una balaustrada
que se abre al cielo pintado por Juan Carreño de Miranda con La Apoteosis
Celestial de San Antonio, que es el ascenso a los cielos del santo portugués,
flanqueado por ángeles (Fig. 2). Estas pinturas de la cúpula se basaron en
bocetos de Mitelli y Colonna y se terminaron en 1662.

177

Figura 1: Vista de la arquitectura fingida pintada por Francisco Ricci, San


Antonio de los Alemanes, Madrid.
Fonte: Foptografía del autor.
JAVIER NAVARRO DE ZUVILLAGA

Figura 2: Vista de la cúpula pintada por Juan Carreño de Miranda, San Antonio
de los Alemanes, Madrid.
Fonte: Foptografía del autor.

Ricci y Carreño seguirán practicando las enseñanzas de los


178 italianos aportando así una nueva forma de pintar en España a finales
del siglo XVII, influyendo en otros pintores como Coello o Ximénez
Donoso, quienes realizarán también obras de arquitecturas fingidas
emparentadas con la escenografía teatral y los retablos3.
A finales del siglo XVII el napolitano Luca Giordano (1634-
1705), el pintor más solicitado en la Europa del momento, restaura
las pinturas de la bóveda, dañadas por la humedad, haciendo  alguna
modificación como situar a San Antonio sobre una nube y convertir los
fustes lisos de Ricci en salomónicos4. También decora los muros curvos
con escenas de los populares milagros del santo, simulando grandes
tapices sujetos por ángeles y putti y en la parte inferior representa a reyes
que fueron canonizados, como el emperador Enrique de Alemania,
San Luis de Francia o San Esteban de Hungría.

3
Para conocer mejor la influencia de Colonna y Mitelli en España véase mi
artículo “Applicazioni di quadraturismo in Spagna alla fine del Seicento dopo
Colonna e Mitelli” en Rocco Sinisgalle (ed.), L’Arte Della Matematica nella Pros-
pettiva, Cartei e Bianchi Edizioni, Perugia 2009.
4
Palomino y Velasco, op. di., edic. 1947, pp. 1111-1112.
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA...

El retablo mayor es de mediados del XVIII del arquitecto


Miguel Fernández y el escultor Francisco Gutiérrez. La escultura central
de San Antonio en madera policromada es obra también de Manuel
Pereira.
El espacio interior se completa con seis altares laterales en
hornacinas retranqueadas cuyos retablos son lienzos pintados por
Eugenio Cajés y el propio Lucas Jordán. Sobre la clave de las hornacinas
hay pequeños retratos ovales de los reyes desde Felipe III hasta Felipe V
y alguna de las reinas consortes, obras de Nicolás de La Cuadra.
Aparte el aprendizaje directo que Rizzi y Carreño tuvieron con
Colonna y Mitelli como ayudantes suyos en varios techos de los palacios
y algunas iglesias como la que nos ocupa, cabe pensar que ambos
conocían el tratado de Vignola, del que había numerosos ejemplares
en España de las ediciones italianas5. En éste libro Danti, en sus
comentarios a la segunda regla de Vignola, en la página 89 y bajo el
título “el modo de pintar la perspectiva en las bóvedas”, establece las
bases de la cuadratura en los siguientes términos:
179
Ésta es absolutamente la operación más difícil
que puede hacer un Perspectivo, no pudiendo
conseguirla enteramente con la regla por la
variedad y la irregularidad de las bóvedas,
tampoco hasta ahora (que yo sepa) se ha escrito
sobre esto ni poco ni mucho. (…) Acordémonos
de (…) cómo la pared corta la pirámide visual que
va (…) al ojo6 e imaginemos que la bóveda en la
que se ha de pintar la Perspectiva ha de hacer el
efecto de la pared. Allí donde nos será propuesta
la bóveda para hacer la Perspectiva, es necesario
primeramente tomar la circunferencia de su
arco con una cimbra y señalarla en el cartón y
después poner al lado las medidas exactas de
las cosas que “queramos dibujar” en la bóveda y

5
Le due regole della prospettiva pratica di M. Iacomo Barozzi da Vignola con i comentarij
del R.P.M. Egnatio Danti, (Roma, 1583). Véanse: Javier Navarro de Zuvillaga,
“El tratado de Vignola en España” en Boletín de la Real Academia de Bellas Artes
de San Fernando, Primer semestre de 1998. Número 86, págs. 193-229 e “Il
trattato di prospettiva di Vignola in Spagna”, en R. Sinisgalli (ed.), La prospettiva.
Fondamenti teorici ed esperienze figurative dall’antichita ad mondo moderno, Edizioni Cad-
mo, Florencia 1998.
6
Se refiere la figura del tercer capítulo del Vignola de la que dice “he tomado
la presente regla, la cual ayudada de la práctica, servirá a nuestro intento”.
JAVIER NAVARRO DE ZUVILLAGA

trazando desde ellas líneas rectas hasta el punto


de la distancia7, se señalarán en el arco de la
bóveda las intersecciones que las dichas líneas
dan (…) y en el resto se operará con las reglas
ordinarias que se han puesto más arriba. Ahora
si la concavidad de la bóveda fuese continua, con
esta regla podríamos dibujar cualquier cosa del
mismo modo que se hace en la pared. Pero como
no van del mismo modo será necesario operar
con la regla en la práctica de esta manera. Una
vez hecho el cartón del modo que se ha dicho, lo
llevaremos a la bóveda, y después pondremos en
el medio un hilo con un plomo fijado al punto
principal de la perspectiva y poniendo el ojo en
su lugar miraremos por el hilo todas las líneas
perpendiculares y aquellas que no respondan
justamente se irán componiendo, hasta que
coincidan justo con el hilo. Luego tiraremos
otros dos hilos a través de la estancia (…), que
estén a nivel y se crucen. Y estando también con
el ojo en el punto de la distancia, miraremos a
través todas las líneas planas por aquellos hilos
alzándolos, y bajándolos cuanto sea preciso,
aquéllos que no correspondan los iremos
corrigiendo. Porque si bien en la obra las líneas
180 perpendiculares y las planas vienen deformadas a
causa de la concavidad de la bóveda, como éstas
responden a la línea del plomo, y a aquéllas del
nivel, parecerán al ojo siempre estar a plomo y
en plano. No hay otra manera de hacer esta clase
de perspectivas, sino con la práctica, poniendo
el ojo en el punto de vista ir componiendo las
cosas hasta que parezcan estar bien al ojo”.8

Luego se refiere a la sala Bologna del Palacio Vaticano pintada


por Lorenzo Sabatini “que hizo un modelo en relieve de un cuarto de
la bóveda (…) y con éste observó las sombras y las luces y las hizo en la
perspectiva conforme a aquello que naturalmente se veía en el modelo,
lo que hace que aquella logia pintada en perspectiva aparezca al ojo
como verdadera y engañe especialmente en la altura de quien la mira”.
Termina Danti afirmando que “esta parte de la Perspectiva se
aprenderá mucho mejor en la práctica que de cualquier discurso que
sobre ella se pueda decir”.

7
Téngase en cuenta que Danti y Vignola denominaban “punto de la distancia”
lo que nosotros llamamos hoy punto de vista.
8
Le due regole della prospettiva pratica di M. Iacomo Barozzi da Vignola con i comentarij
del R.P.M. Egnatio Danti, (Roma, 1583), pág. 89.
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA...

Se conserva el dibujo de Mitelli para la arquitectura fingida de


la cúpula de San Antonio de los Alemanes9, en el que se basó Ricci
para hacer el boceto sobre el que finalmente hizo la pintura10. Como
ya queda dicho los fustes lisos de Mitelli y Ricci fueron sustituidos por
otros salomónicos que pintó Jordán cuando restauró estas pinturas.
Hay una diferencia entre ambos dibujos. En el de Mitelli las
verticales no concurren todas en un mismo punto, mientras que sí lo
hacen en el de Ricci11.

Ermita de San Antonio de la Florida

El origen de esta ermita fue “una pobre y pequeña Capilla de


tierra dedicada a María Santísima” que se edificó en el siglo XVI12.
En 1720 se hizo una Capilla más grande y vistosa, obra que fue
encargada al arquitecto José de Churriguera y se dedicó a San Antonio
de Padua, de quien el pueblo de Madrid era muy devoto.
El trazado del camino de San Vicente obligó a derruir esta
capilla en 1768 y se construyó una nueva con el patrocinio de Carlos 181
III sobre planos de Francisco Sabatini. Se inauguró en 1770 y su culto
se siguió dedicando a San Antonio.
También esta capilla duró poco, ya que una nueva remodelación
urbanística de la zona obligó a su derribo en 1790 y otra nueva fue
mandada construir por Carlos IV, con las trazas del arquitecto Felipe
Fontana (Bolonia 1744 - Madrid 1800), iniciándose la obra en 1792.
El mismo Carlos IV asistió al acto de colocación de la primera piedra,

9
Biblioteca del Palacio Real.
10
Rizi, Francisco, Estudio para la decoración de la cúpula de San Antonio de los Por-
tugueses, h.1662, aguada agrisada; Pluma; Preparado a lápiz; Tinta parda sobre
papel, 457 mm x 291 mm., Museo del Prado, num. de catálogo D06384.
11
Sobre este tema véase mi capítulo citado en la nota 3.
12
Noticia del motivo, o causa de la fundación y dedicación de la capilla de San Antonio de
Padua, llamada de la Florida, y mudanzas, que ha habido de ella hasta el presente año des-
de su primera fundación. Con un elogio a la nueva Estatua del Santo, hecha por el profesor
Don Josef Ginés. Añádese un resumen de la vida de este Glorioso Confesor y sus Gozos.
Dedicada a los Fieles Ministros del Resguardo de Rentas de Madrid y de todo el Reyno.
La saca a luz, con motivo de la nueva Capilla, que la piedad de nuestro Católico Monarca
(que Dios guarde) ha mandado erigir a este Gran Santo, un devoto suyo, Madrid, José
Herrera, 1798. Contiene estampa de san Antonio reproduciendo la escultura
de José Ginés.
JAVIER NAVARRO DE ZUVILLAGA

operación a la que ayudó con sus propias manos. Esta capilla se abrió
al culto y empezó a denominarse San Antonio de la Florida.
Concluyóse esta nueva capilla el año de 1798 y es la que hoy
día permanece en pie. La ermita actual es pues la cuarta que se edificó
y la tercera dedicada a San Antonio, ya que la primera lo fue a Nuestra
Señora de Gracia. Es de composición sencilla y estilo neoclásico, con
planta de cruz latina casi griega rodeada de dependencias incluso en
la parte del ábside. Su tamaño es reducido: la cúpula, asentada sobre
pechinas, mide en su interior 6 m. de diámetro solamente.
En 1798 se le hace a Goya el encargo de pintar la capilla, quizá
por mediación de Jovellanos, Saavedra y Ceán que por entonces, aunque
por breve tiempo, ocuparon puestos de importancia en el Gobierno.
Goya termina los frescos en unos pocos meses ese mismo año.
No sabemos si Goya tuvo libertad para desarrollar por sí
mismo el proyecto iconográfico, pero parece más que probable, como
le había ocurrido con el encargo de la pintura de San Bernardino de
Siena en San Francisco el Grande13.
182
Goya se plantea dos temas para pintar la capilla: los ángeles y
uno de los milagros más conocidos de san Antonio.
El primero lo desarrolla sobre las bóvedas del crucero así
como en la cúpula del ábside y en las pechinas de la cúpula del crucero.
En ésta es donde representa el milagro del santo. De esta forma Goya
consigue que el milagro, aunque realizado en la tierra, pase a estar en
un nivel superior, no sólo por su situación física más elevada, sino
también por el sustrato angélico sobre el que se sustenta. Hay en esto
un eco de lo que Luca Giordano hizo en los muros de San Antonio de
los Alemanes, que acabamos de ver.
Goya pintó dos clases diferentes de ángeles: algunos
querubines y otros, la mayoría, que dentro de la ambigüedad sexual
que les es propia son más bien femeninos. De hecho existe la creencia
de que retrató en ellos a varias de las bellezas más señaladas de la corte
de Carlos IV.
Centrándonos en la cúpula y el milagro que representa -el caso
del joven resucitado (Fig. 3)- creo que Goya, que no era creyente, lo

13
LAFUENTE FERRARI, Enrique. Antecedentes, coincidencias e influencias del arte
de Goya, Madrid, 1947, pág. 321.
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA...

eligió por ser el más increíble, por fantasioso, de los que le achacan al
santo. Atentos al relato.

183
Figura 3: Milagro de San Antonio, obra pictórica de Francisco de Goya. San
Antonio de la Florida, Madrid.
Fonte: Wikimedia.org.

Hallándose el santo en Padua supo que su padre


había sido acusado injustamente en Lisboa de
un asesinato y podía ser condenado a muerte.
Pidió permiso al prior para ir a Portugal, y se vio
trasladado milagrosamente en un instante a Lisboa.
Allí, intentó convencer a los jueces de la inocencia
de su padre sin conseguirlo, por lo que rogó que
llevasen el cuerpo del asesinado al juzgado. La
noticia atrajo a toda la ciudad, y en medio de la
multitud, el Santo, en nombre de Jesucristo, pidió
al muerto declarase en voz alta y clara si su padre
había sido el asesino. El cadáver se incorporó y
proclamó públicamente la inocencia del acusado.
Tal suceso despertó la admiración y el entusiasmo
de quienes lo presenciaron y Antonio dirigió
una ferviente plática a la familia del muerto
amonestándoles a la virtud. Un instante después,
viose transportado de nuevo a su convento de
Padua.14

14
Tomado del relato de Bartolomeo da Pisa, 4. 19-32.
JAVIER NAVARRO DE ZUVILLAGA

Goya traslada la acción al aire libre. El artista representa al santo


sobre una pequeña elevación del terreno dirigiéndose al muerto, recién
resucitado, sostenido por otro personaje. Además el artista sitúa la escena
en la España de finales del siglo XVIII, ya que, salvo los protagonistas del
milagro, todos los personajes que representa son del Madrid de entonces
por su aspecto físico, su actitud y su indumentaria. En definitiva: majos
y manolas y otra gente del pueblo madrileño.
Goya estructura magistralmente el espacio pintando una
barandilla que figura estar situada encima de la cornisa de la que
arranca la cúpula con todos sus barrotes dirigidos hacia el centro de
la misma de acuerdo con las leyes de la perspectiva, lo que le permite
situar la audiencia del hecho milagroso alrededor de la cúpula. El pintor
pudo tener como referentes el techo de la Cámara de los Esposos de
Mantegna en el Palacio Ducal de Mantua (aunque no estuvo allí pudieron
describírselo con palabras) y quizá también el cuadro de Murillo Dos
mujeres a la ventana, teniendo en cuenta que él mismo pintó, más de diez
años después de la cúpula de San Antonio, un tema similar y otros dos
cuadros más con mujeres apoyadas en la barandilla de un balcón que
184
bien podrían ser cada uno de ellos un fragmento de lo representado en
dicha cúpula.
La utilización de la perspectiva se completa con el conseguido
escorzo de las figuras, especialmente algunas, como la del hombre
de pie con las piernas abiertas y los brazos extendidos que sobresale
más que ningún otro de la barandilla y que está situado en posición
diametralmente opuesta a la del santo.
Hay quien sugiere que algunos de los personajes que contemplan
el milagro asomados a la barandilla hacen referencia a otros milagros del
santo15. Así Goya habría hecho una síntesis del haber milagroso de San
Antonio.
Entre las figuras que presencian el milagro se dice que la mujer
sentada y vestida de claro con un velo blanco situada debajo del árbol
más grande es la Duquesa de Alba – la famosa maja que el artista pintó
tanto vestida como desnuda – y que el hombre a su derecha, con capa
negra y la mano apoyada en la barandilla, que está contemplándola es
el mismísimo Goya.

15
GLENDINNING, Nigel. Francisco de Goya, Madrid, 1993, pág. 73.
FRESCOS DEDICADOS A SAN ANTONIO DE LISBOA Y PADUA...

El pintor acentuó la sensación de trampantojo colocando


sobre el pasamanos de la barandilla las manos o brazos de algunos
personajes o haciendo salir por delante de ella alguna manga, el gran
paño blanco o las piernas de los chiquillos, una de las cuales sobresale
también entre los barrotes de la barandilla.
Goya hizo dos bocetos para esta cúpula. En uno de ellos
representa el auditorio de la prédica del santo que se distribuye
alrededor de la barandilla16 y está realizado sobre un soporte rectangular
que corresponde al desarrollo en un plano de lo que sería el cilindro
del que los barrotes de la barandilla serían sus generatrices verticales,
hablando grosso modo. Lo que en él se representa es lo que el espectador
debería ver situado de pie en el suelo de la capilla. Goya sólo tenía que
trasladarlo a la superficie esférica de la cúpula siguiendo el método que
Danti expone en el tratado de Vignola, libro que Goya pudo consultar
en la biblioteca de la Real Academia de Bellas Artes de San Fernando
de Madrid en la que había ingresado como académico de número en
1780 por su cuadro Cristo crucificado, método que hemos visto más
arriba en relación con la Iglesia de San Antonio de los Alemanes17. Sin 185
duda Goya utilizó este trazado para pintar la barandilla y es interesante
observar que la cadena que sujeta la lámpara que pende del centro de
la linterna coincide con la plomada a la que hace referencia Danti, que
es el eje principal de la perspectiva. Así todos los planos que pasan
por él cortan a la superficie de la cúpula dando la perspectiva de las
rectas verticales, que serían el eje de cada barrote de la barandilla.
También utilizaría este método para pintar todas las figuras, no sólo las
que circundan la barandilla, incluidos el santo y los dos personajes que
como él están algo más altos que el resto.
El otro boceto18 (Fig. 4) presenta un alzado encajado en
un semicírculo y representa el grupo principal del milagro con San
Antonio y el resucitado y los personajes más próximos, es decir, la

16
Arte Español, revista de la sociedad española de amigos del arte, año XLIV.
XLX de la 3ª época ~ tomo XXIII - 1.er cuatrimestre de 1961, págs. 133-138.
17
Véase la nota 5.
18
Éste boceto pertenece a una colección particular y de él existe una copia de
dudosa atribución a Asensio Juliá y fechado en 1798, que se encuentra en el
Museo Lázaro Galdiano de Madrid (mide 26,5x39 cm.). En el catálogo on-li-
ne de la Fundación Goya en Aragón se pueden ver imágenes de éstos bocetos.
JAVIER NAVARRO DE ZUVILLAGA

mitad del fresco (de ahí el semicírculo). Los fundamentos perspectivos


de este boceto son los mismos que los del anteriormente citado.

Figura 4: Boceto de Goya para la cúpula: alzado en forma de semicírculo


186 (colección particular de María Luisa Maldonado de Madrid).
Fonte: Página web de la Fundación Goya en Aragón.

Los restos de Goya se trasladaron a la ermita en 1919 desde


el cementerio de San Isidro, donde reposaban desde 1900, y ahora
descansan bajo la misma lápida que tuvo en el cementerio de Burdeos el
año de su muerte, 182819.
Para su mejor conservación se suspendió el culto en la capilla
en 1926 y se construyó una réplica que se inauguró en 1928 y a la que
se trasladaron el culto y la parroquia. Así la ermita original ha quedado
como museo.

19
PARRONDO, Juan Carrete. Francisco de Goya. San Antonio de la Florida. In-
fortunio crítico de una obra genia. Bruselas: Musea Nostra. Colección Europea de
Museos y Monumentos, 1999.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Capítulo 12

A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO


TESTAMENTO NO TETO DA NAVE DA IGREJA MATRIZ DA
CIDADE SERGIPANA DE N. SRA. DIVINA PASTORA

Luiz Alberto Ribeiro Freire

A Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora apresenta-nos par-


ticularidades no contexto do patrimônio cultural brasileiro, a primeira é
a dedicação de um templo inteiro a essa invocação de Nossa Senhora,
que não sendo estranha ao Brasil, não foi tão difundida. A segunda
está no seu programa iconográfico do teto da nave, em que se incluiu e
enfatizou as mulheres do Antigo Testamento na pintura de falsa arqui-
tetura do forro da nave. Programa iconográfico especial na arte antiga
brasileira, e que nos impõe a explicação do sentido dessa presença e de
187
suas relações com a padroeira do templo.
A povoação primitiva que originou a cidade sergipana de Nossa
Senhora Divina Pastora, denominava-se “Ladeira” e desenvolveu-se a
partir de um curral implantado na zona canavieira, não se sabe quando
tornou-se freguesia. Contudo, em 18 de fevereiro de 1700 o Vigário
Manuel Carneiro de Sá, tomou posse da paróquia de Siriri sediada na
Capela de São Gonçalo1.
Por Lei Provincial de 31 de maio de 1833, o povoado Ladeira
tornou-se Distrito Administrativo e sua paróquia foi instituída dois anos
depois. Tornou-se Vila, desmembrando-se do município de Maruim
através da lei de 12 de março de 1836, quando recebeu a designação de
Nossa Senhora Divina Pastora. Pela Lei Provincial 1.239, de 1882 foi in-
corporada à Comarca de Riachuelo, sendo elevada a categoria de Cidade
pelo Decreto-Lei nº 150, de 15 de dezembro de 1938, emancipando-se
politicamente de Maruim.2

1
CARDOSO, Flor-de-Lis Dantas e. Uma análise estética e iconográfica dos forros
da igreja matriz Nossa Senhora Divina Pastora. Monografia apresentada ao Curso
Lato Sensu em Artes Visuais da Universidade Federal de Sergipe. São Cristó-
vão, Sergipe, 2008, 110 p. il. p. 17.
2
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 17-18.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

A cidade de Divina Pastora dista 39 km de Aracaju, capital do


Estado de Sergipe, situa-se a 70 m de altitude, na microrregião do Rio
Cotinguiba (Leste Sergipano) e faz divisa com os municípios de Santa
Rosa de Lima, Riachuelo, Nossa Senhora das Dores, Rosário do Catete e
Maruim3. Dados do IBGE assinalam que em 2010 o município contava
com uma população de 4.326 indivíduos, concentrando-se 2099 na área
urbana e 2.227 na área rural.4
Dos poucos documentos relativos à igreja, Flor de Lis alcançou
uma série de documentos relacionados às demandas, o mais antigo deles
datado de 1816, trata-se de um requerimento:

Do Coronel José Bernardino de Sá Souto Maior


enviado à Mesa da Consciência e Ordens solici-
tando que os bens por ele doados à Capela da Di-
vina Pastora, no caso de sua morte, se conservas-
sem em nome da mesma. “Cita ainda que, teria
edificado a Capela e doado propriedades com o
intuito de financiar suas atividades, e que, como é
do desejo dos fiéis que seja erigida uma irmanda-
de nessa capela, teme que suas propriedades se-
jam desencaminhadas após a sua morte. Solicita
188 desta forma que as mesmas fiquem sob a guarda
de um superintendente até que seja aprovado o
Estatuto da Irmandade da Divina Pastora, sendo
a mesma detentora dos referidos bens.5

As demandas do Coronel continuam conforme documento da-


tado de:

10 de dezembro de 1817 no qual requer que


as Irmandades do Santíssimo Sacramento e da
Divina Pastora fossem reunidas em uma única
confraria, passando a serem regidas pelo com-
promisso aprovado pela Mesa de Consciência e
Ordens para a irmandade da Divina Pastora.6

3
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 18.
4
IBGE. Censo 2010. Sergipe. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/
home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/total_populacao_ser-
gipe.pdf>. Acesso em: 3 de novembro de 2013.
5
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 20.
6
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 20.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Em reação as demandas do Coronel, quatro meses depois:

O Padre Manuel Rodrigues Vieira de Melo re-


presentando a Confraria do Santíssimo Sacra-
mento da Divina Pastora, solicitou ao rei que o
requerimento do Coronel de unir esta confraria à
Irmandade da Divina Pastora não seja atendido,
pois tal união não era do desejo da maioria dos
irmãos, informou que a solicitação do tenente
coronel teria sido motivada por desavenças pes-
soais com o pároco da Capela da Divina Pastora,
segundo ele, após sua elevação à categoria de pa-
róquia e com a união das duas confrarias, o coro-
nel poderia manter sua influência sem ter que se
submeter ao pároco.7

Flor de Lis8 constatou não ter localizado documentos que in-


formassem o desfecho da questão, mas que eles serviram para balizar
a data da existência do templo, pois em 1816 este já estava edificado
conforme declarado no referido documento, desfazendo a atribuição
feita por Germain Bazin de que foi construído no segundo terço do
século XIX.
Flor de Lis9 observa as balizas cronológicas conhecidas: data 189

constante acima da porta de entrada do templo (1782); (1816) – existên-


cia da capela registrada no requerimento do Coronel José Bernardino e
(1835) - ano da elevação da Igreja a sede paroquial.
O curso regular das obras das igrejas no Brasil antigo era o se-
guinte: a obra iniciava pela capela-mor, a fachada mais elaborada era o
último elemento a ser edificado. A igreja podia ficar algum tempo com
uma fachada cega, simples, destituída de elementos ornamentais. A data
de 1782 marca o término do frontispício.
A ornamentação da igreja em talha e pintura podia ser confec-
cionada antes da fachada definitiva, pelo menos o retábulo-mor e talha
da capela-mor e dos retábulos colaterais. A pintura do forro da nave era
realizada por último, depois das conclusões das obras de edificação do
templo, inclusive da fachada definitiva.

7
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 20-21.
8
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 21.
9
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 21.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

A talha dos retábulos e demais ornatos representa um momen-


to de transição entre o Barroco e o Rococó e pode ter sido realizada
pouco antes ou pouco depois de 1782. Já a pintura do teto da nave
pode ser obra posterior a 1782. Flor-de-Lis analisou as datações atribu-
ídas à pintura do forro da nave presentes nos documentos do IPHAN
que atribui a pintura a José Theófilo de Jesus, pintor baiano nascido em
1770, e a data de 1836. O pintor teria portanto 66 anos quando prova-
velmente realizou a pintura. Por outro lado, sua morte ocorre em 1847
e o anedotário registra que teria morrido em decorrência da queda dos
andaimes da referida obra, se assim ocorreu, a pintura é obra de 1847,
ou do ano anterior, conforme concluiu Flor-de-Lis10 e se as atribuições
se confirmarem.
Em 20 de março de 1943, a Igreja de Nossa Senhora Divina
Pastora foi tombada ao nível federal pelo IPHAN, sendo inscrita no
Livro de Belas Artes e no Livro Histórico11. Já a peregrinação anual
que é feita no terceiro domingo do mês de outubro ao santuário recua a
1956, sendo oficializada em 1970 e iniciada pelos estudantes de filosofia
da Universidade Federal de Sergipe e o Padre Raimundo Cruz e Dom
190 Luciano Cabral Duarte. O dia da santa é comemorado festivamente no
segundo domingo de novembro12.
A invocação de Nossa Senhora Divina Pastora, segundo as in-
formações de Frei Henrique de Pirassununga:

Foi iniciada em 1703, em Sevilha pelo capuchi-


nho Frei Isidoro. Devido ao alegre espírito re-
ligioso pastoril da época, esta devoção propa-
gou-se na Espanha e suas colônias da América
Latina. O principal santuário da Divina Pastora é
o da ilha de Trindade nas Antilhas.13

A iconografia dessa invocação de Nossa Senhora foi indicada


pelo introdutor do seu culto Frei Isidoro de Sevilha quando descreveu

10
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 66.
11
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 22.
12
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 22.
13
SILVA, Ana Maria Villar Augusto da et al. Relatório da Intervenção de Restauro
dos forros da capela-mor, nave e nártex da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora, em
Sergipe. s/l, s/d. 111 p. il. p. 17.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

no seu livro La Pastora Coronada uma visão que teve na noite de 15 de


agosto de 1703. Estando em oração, a Virgem lhe apareceu com traje e
aspecto de pastora, mandando-lhe predicar a devoção sob esse título. No
dia seguinte, o frei Isidoro encomendou uma pintura ao famoso pintor
Alonso Miguel de Tobar14 descrevendo tudo que viu assim publicado:

Un rostro lo más bello que pudiera pintar, sen-


tada en una piedra sobre un montecillo, rodeada
de árboles y blancas ovejas que portaban en la
boca una rosa cada una, que le ofrecían como
tributo de veneración y cariño. Tendría la mano
derecha sobre la cabeza de un cordero, que re-
presenta a su Divino Hijo, según lo vio San Juan
en el Apocalipsis.  La Virgen vestiría una túnica
talar ceñida a la cintura y sobre la misma una za-
marra como acostumbraban a llevar los pastores,
el manto recogido en el brazo derecho, un som-
brero caído hacia la espalda y cubriendo su cabe-
za un finísimo velo. Separada de la imagen, una
oveja portaría en su boca un cartel que diría AVE
MARIA y tras una roca un dragón acechándola,
mientras un ángel, vendría volando raudo espada
en mano.15
191
Em 8 de setembro de 1703, o Padre Isidoro apresentou a pin-
tura em uma procissão pelas ruas de Sevilha, predicando um sermão em
que glosou a frase do Cântico dos Cânticos: “Oh, Tu, a mais formosa
entre as mulheres, saía e segue as ovelhas do rebanho e apascenta os
cabritos junto aos campos dos pastores”16.
O culto à Divina Pastora foi difundido a partir de 1750 por todo
o território espanhol pelo também capuchinho Beato Padre Diego José
de Cádiz. Posteriormente o Papa Pio VI aprovou para os capuchinhos
a devoção e o culto, assinalando para a reza e festa, o segundo domingo
depois da Páscoa. Em 1863, muitos cardeais, bispos e superiores de ou-
tras ordens religiosas pediram a Pio IX autorização para celebrar a festa
da Divina Pastora em todas as dioceses que o desejassem.

14
A pintura compõe hoje o acervo do Museu Carmen Thyssen de Málaga.
15
FRANCISCANAS MISIONERAS DE LA MADRE DEL DIVINO PAS-
TOR. María, Divina Pastora. Advocación de la Divina Pastora. Disponível em:
<http://www.anamogas.net/divina%20pastora.htm>. Acesso em: 20 de
maio de 2016.
16
FRANCISCANAS MISIONERAS DE LA MADRE DEL DIVINO PAS-
TOR. María, Divina pastora. Advocación de la Divina Pastora. Disponível
em: <http://www.anamogas.net/divina%20pastora.htm>. Acesso em: 20 de
maio de 2016.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

Uma estampa portuguesa da Divina Pastora traz uma legenda


que situa no tempo a propagação do ícone:
Esta estampa foi impressa necessariamente de-
pois do Terramoto de 1755, por causa da expres-
são nos livre do tremor. Enfim, como todos podem
calcular, os lisboetas da segunda metade do Sé-
culo XVIII, viviam apavorados com a perspec-
tiva da ocorrência de um novo e terrível sismo
e claro, recorriam à religião para os livrar dessa
sinistra possibilidade. Por outro lado, o Cristo e a
Virgem são representados respectivamente com
o Sagrado Coração de Jesus e de Maria, devoções
que se tornaram comuns em Portugal durante o
reinado de D. Maria I (1777-1816). Portanto esta
estampa, tinha que ser coisa datada para os finais
do século XVIII.17

A penetração desse culto em Sergipe ocorreu segundo Carmem


Barreto com a “chegada da imagem de Nossa Senhora Divina Pastora
trazida por missionários capuchinhos vindos da Itália, que nesta região
se instalaram para missionarem nas aldeias indígenas em 1782”18, ou
pode ter ocorrido por uma devoção familiar do patrocinador da edifica-
192 ção do templo, o Coronel José Bernardino de Sá Souto Maior.
O templo sergipano é muito especial por ser inteiramente de-
dicado à invocação pastoril da Virgem, por ter se constituído em centro
de peregrinação, por ter um programa iconográfico mariano específico,
diferenciando-se dos demais templos dedicados à Nossa Senhora no
território brasileiro.
Destinou-se à pintura a óleo19 às narrativas sacras do Nasci-
mento de Jesus, cujo protagonismo da Virgem fica enfatizado, assim
como as insígnias marianas e demais ícones que dão sentido ao culto da
Mãe de Jesus tão discutido na Idade Média e tão consolidado na época
tridentina.

17
VELHARIAS. Divina Pastora: uma elegante simplicidade. Disponível em: <
http://velhariasdoluis.blogspot.com.br/2013/10/divina-pastora-uma-ele-
gante-simplicidade.html>. Acesso em: 9 de novembro de 2013.
18
LIMA, Carmem B. Divina Pastora Sergipe: uma alternativa de intervenção. Dis-
sertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal da
Bahia, Salvador, Bahia, 1997. p. 39. Citada por CARDOSO. Uma análise estética
e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 21.
19
SILVA, Ana Maria Villar Augusto da et al. Relatório da Intervenção de Restauro
dos forros da capela-mor, nave e nártex da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora, em
Sergipe, p. 7.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Abordaremos esse programa iconográfico a partir do teto da


capela-mor, uma abóbada de berço medindo 43,40 m² 20de tábuas corri-
das. A pintura a óleo exibe um quadro recolocado com a “Assunção de
Nossa Senhora”. A Divina Senhora apresenta-se sobre o globo terrestre
carregado por anjos, ladeada por outros e pares de querubins entre nu-
vens.
Nas laterais do quadro recolocado há pintura fingindo quatro
arcos, sendo dois menores e dois maiores, todos com cúpulas represen-
tados em perspectiva. O arco do lado do Evangelho apresenta balcão
gradeado com medalhão oval expondo a imagem do Sagrado Coração
de Jesus. Na lateral direita do medalhão, a alegoria da “Fé católica”, figu-
ra feminina sentada, com os olhos vendados, que segura na mão direita
um cálice, alusivo a Eucaristia e na mão esquerda, uma cruz latina. À
direita do medalhão apresenta-se a alegoria da “Esperança”, figura femi-
nina sentada portando na mão esquerda uma âncora. Trata-se, portanto,
de duas das três virtudes teologais.
No lado da Epístola, a composição se repete, apresentando o
medalhão. A representação do “Sagrado Coração de Maria”, ladeado à
direita, pela alegoria da virtude teologal da “Caridade”, representada por 193
uma mulher com duas crianças, uma delas no colo; e à esquerda pela ale-
goria de uma das quatro virtudes cardeais, “A Justiça”, representada por
uma mulher sentada, com olhos vendados, portando à mão direita uma
espada, e à mão direita, uma balança. Alegoria alusiva à justiça divina e
ao papel do Arcanjo Miguel na luta contra o demônio.
O forro da nave, de maiores dimensões, com 157, 83m², exibe
um programa iconográfico mais complexo e diversificado. A pintura se
estrutura por uma arquitetura fingida em perspectiva ocupada no centro
por um quadro recolocado ovalado em que figura o ícone da Divina
Pastora à semelhança da narrativa do Frei Isidoro de Sevilha.
Em uma paisagem campestre com uma árvore esguia à direita,
a Virgem Maria está sentada com seu filho Jesus assente na sua perna
esquerda. Ambos estão com chapéus campesinos ornados com fitas e
flores e tem suas cabeças raiadas; a mão direita do menino sustenta um
cajado e a esquerda uma rosa. A Virgem está sendo coroada por dois

20
SILVA, Ana Maria Villar Augusto da et al. Relatório da Intervenção de Restauro
dos forros da capela-mor, nave e nártex da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora, em
Sergipe, p. 16.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

anjos que seguram a coroa real acima da cabeça da Senhora e está ar-
rodeada por quatro ovelhas, duas em pé mais próximas e duas deitadas
mais distantes, a que está em pé, à direita, tem o pescoço acariciado pela
Virgem.
Todas as ovelhas trazem na boca uma rosa e na coxa frontal
a marca do monograma AM - Ave Maria, como se fosse um ferro. À
esquerda da composição, no segundo plano, está uma ovelha desgarrada
com o ferro da Virgem sendo atacada pelo dragão representando o de-
mônio e o mal, esse aparece em meio corpo e muitas chamas. Da boca
dessa ovelha desenrola um listel com a inscrição “Ave Maria”. Antes que
o dragão atinja a ovelha com o seu fogo, é alvejado pelo raio do Arcanjo
Miguel, que se apresenta acima e à esquerda com destaque, portando na
mão esquerda um escudo e na mão direita um feixe de fogo que lança
em forma de raio no dragão. No extremo superior da composição há
uma glória com um grupo de querubins que circunda o triângulo raiado
da Santíssima Trindade.
Nos extremos laterais e longitudinal do quadro recolocado em
que figura a Nossa Senhora Divina Pastora, há duas cúpulas, uma em
194 cada lado, pintadas em perspectiva, com tonalidade rósea, em cujos tam-
bores há janelas arqueadas envidraçadas e abóbadas de nervuras com
óculos.
Todo o programa iconográfico se configura em um sistema
quaternário formado por quatro painéis narrativos, quatro figuras femi-
ninas, quatro insígnias da Virgem Maria e os quatro Evangelistas.
Os quatro grandes painéis narrativos, com cenas do Novo Tes-
tamento, que narram o ciclo do nascimento de Jesus, marcam, cada um
deles, o centro de cada lateral. Do lado do evangelho: “A anunciação”;
do lado da Epístola: “Maria visita sua prima Isabel e, no segundo plano,
a esquerda, fora da porta da casa, São José conversa com Zacarias, espo-
so de Isabel”; no lado do arco cruzeiro: “A adoração dos pastores” e do
lado do coro: “A adoração dos reis magos”. Notando-se aqui o privilégio
dado à cena da “Adoração dos pastores” que se localiza próximo ao arco
cruzeiro e à capela-mor, espaço mais sagrado da Igreja.
A arquitetura fingida é constituída de colunas isoladas sobre mí-
sulas, que sustentam entablamento e ladeiam cada um dos painéis narra-
tivos. Estão próximas as arcadas nas quais estão assentadas as heroínas
do Antigo Testamento e uma “Pastora (Raquel)”, totalizando quatro
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

figuras femininas, assim dispostas: Lado do Evangelho: Judite e Ester;


Lado da Epístola: Jahel e Raquel; Próximo dos cantos há parelhas de
colunas, duas em cada lado, também sobre mísulas e que sustentam en-
tablamentos, totalizando quatro parelhas. Sobre as pilastras dessas colu-
nas, assentam-se anjos com cartelas exibindo as insígnias dos predicados
de Nossa Senhora constantes de sua Ladainha. No lado do Evangelho:
“Fonte da nossa alegria”, “Espelho da perfeição”; do lado da Epístola:
“Rosa mística”, “Estrela da manhã”.

195

Figura 1: Nossa Senhora Divina Pastora – Medalhão do teto da nave da Igreja


Matriz de N. Sra. Divina Pastora, Sergipe
Foto: Luiz Freire.

Nos quatro cantos há medalhões ovais em grisailles azuis com a


esfinge dos quatro Evangelistas distribuídos, um em cada canto, do arco
cruzeiro para o coro: Lado do Evangelho: “São João” e “São Marcos”;
Lado da Epístola: “São Lucas” e “São Mateus”.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

A história dos feitos das bravas e decididas mulheres que se tor-


naram heroínas encontra-se no Antigo Testamento que sintetizaremos
a seguir. Judite, cujo nome significa “A Judia”, filha de Merari, viúva de
Manassés, era bonita e encantadora, herdara de Manassés ouro, prata,
servos e servas, rebanhos e campos, que ela administrava. Era muito te-
mente a Deus e reconhecida pelo seu povo como prudente e bondosa.21
Diante dos anciãos de Betúlia, Cabris e Carmis, Judite os re-
preendeu pelo juramento que fizeram de entregar a cidade aos inimigos
assírios caso o Senhor não os socorressem no prazo estipulado. Após
advertência sobre a natureza do socorro de Deus e a blasfêmia do ju-
ramento, Judite avisou-os que naquela noite eles deveriam ficar junto à
porta da cidade e que ela sairia com sua serva e que o Senhor viria em
socorro de Israel por seu intermédio.22
Judite após orar e clamar a Deus, levantou-se da sua prostra-
ção, despiu-se das roupas de viúva, banhou-se, ungiu-se com abundantes
perfumes, penteou os cabelos, colocou um turbante na cabeça e vestiu
os trajes de festa, que usava quando Manassés, seu marido, estava vivo.
196
Calçou os pés com sandálias, pôs os colares, pulseiras, anéis, brincos e
todas as joias, enfeitou-se com esmero para cativar os olhos de todos
os homens que a vissem. Trespassou assim com sua serva a porta da
cidade, penetrando no vale, quando é interceptada por um posto dos
assírios, interrogada sobre seus propósitos declarou que iria ao encon-
tro de Holofernes, chefe supremo do exército dos assírios, para dar-lhe
informações seguras sobre o caminho por onde poderia avançar e apo-
derar-se de toda a montanha, sem que perdesse um só de seus homens.23
Judite e sua serva foi conduzida por cem homens à tenda de
Holofernes, que repousava em seu leito, sob um cortinado de púrpura
bordado a ouro, com esmeraldas e pedras preciosas. O General recebeu
muito bem a visitante, que, diante dele, teceu elogios ao rei Nabucodo-
nosor e o seu chefe militar – elogios retribuídos por Holofernes diante
de tão encantadora beleza e sabedoria.24

21
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. Português. São Paulo: Paulus, 2002.
V. 8. P. 682-700. p. 689.
22
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. V. 8. P. 682-700. p. 690-691.
23
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. V. 1-16. p. 682-700. p. 691-692.
24
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. V. 1-16. p. 682-700. p. 693.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

No quarto dia hospedada no acampamento, Holofernes con-


vidou-a para um banquete, lá o General sentiu-se arrebatado por ela,
ficando perturbado. Na alta madrugada, todos saíram, ficando apenas
Judite e o General, esse prostrado no leito de tanto que bebeu, dirigiu-se,
então à coluna do leito, à cabeceira de Holofernes, e dali retirou o alfanje
dele. Aproximou-se do leito, agarrou-lhe a cabeça pelos cabelos e disse:
“Dá-me vigor neste dia, ó Senhor Deus de Israel!” Por duas vezes com
toda a sua força, golpeou-lhe o pescoço, decepando-lhe a cabeça. Em
seguida, fez o corpo rolar para fora da cama e arrancou das colunas o
cortinado. Saiu pouco depois, e entregou a cabeça de Holofernes à sua
serva, que a colocou dentro da sacola de provisões. Ambas saíram juntas
para a oração, conforme seu costume.

197

Figura 2: Judite com a cabeça de Holofernes – Teto da nave da Igreja de Nossa


Senhora Divina Pastora, Sergipe.
Foto: Luiz Freire.

Atravessaram o acampamento, contornaram o vale, subiram a


montanha de Betúlia e aproximaram-se de suas portas espantando a to-
dos com o seu retorno. Então, tirando da sacola a cabeça, mostrou-a e
disse-lhes:

Eis a cabeça de Holofernes, general do exército


da Assíria. Eis o mosquiteiro sob o qual se deitava
em sua embriaguez. O Senhor o feriu pela mão
de uma mulher. Viva o Senhor que me guardou
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

no caminho por onde andei, pois o meu rosto o


seduziu para sua perdição; mas não fez comigo
pecado algum para minha vergonha e desonra”.25

Judite continuou dizendo:

Escutai-me, irmãos. Tomai esta cabeça e suspen-


dei-a no parapeito de vossa muralha. Logo que
raiar a aurora e o sol se levantar sobre a terra, to-
dos vós tomareis as vossas armas e saireis, todos
os homens aptos, para fora da cidade. Estabele-
cei um chefe para eles, como se fossem descer
à planície, em direção às sentinelas dos assírios.
Mas não descereis”. Eles, tomando suas armas,
irão para o acampamento e acordarão os chefes
do exército assírio. Correrão, então, à tenda de
Holofernes, e não o encontrarão. O medo cairá
sobre eles, e fugirão de vossa presença. Persegui-
-vos, vós e todos os que habitam no território de
Israel, e abatei-vos em sua fuga.26

As previsões de Judite se confirmaram e ao constatarem a mor-


te de Holofernes os soldados debandaram, fugindo por todos os cami-
198 nhos, inclusive os que estavam acampados nas proximidades de Betúlia
Os israelitas atacaram os desertores e os habitantes de Betúlia saquearam
o acampamento assírio e todos se apossaram da imensa riqueza.27
Judite aparece nesse teto pintado com biótipo caucasiano, sen-
tada sobre as cornijas do arco, com o corpo inclinado para a esquerda,
portando trajes da nobreza, que inclui manto vermelho com o verso em
arminho, mangas brancas arrematadas por rendas, toucado elaborado e
adornado por fios de pérolas, arrematado por penacho de plumas em
azul e vermelho. A mão direita sustenta uma espada erguida e a mão
esquerda segura pelos cabelos a cabeça de Holofernes pendente.
A forma como apresenta seus atributos nesse teto coincide com
determinadas pinturas e gravuras europeias do Renascimento, a exemplo
das produzidas por Lucas Granach e Maerten de Vos e Jan Colaert II,
que difundiu o ícone criado por Maerten de Vos por volta de 1590-95.28

25
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. V. 1-16. p. 682-700. p. 696.
26
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. V. 1-16. p. 682-700. p. 697.
27
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III Judite. V. 1-16. p. 682-700. p. 698.
28
SPAIGHTWOOD GALLERIES, INC. Maarten de Vos: Women of the
New Testament. Disponível em: <http://spaightwoodgalleries.com/Pages/
DeVos_OT_Women2.html> Acesso em: 18 de março de 2015.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Ester foi glorificada como uma heroína nacional dos judeus que
celebram ainda hoje a festa dos Purim em comemoração da libertação
de seu povo graças a sua intercessão ante ao rei Asuero.29
Assuero repudia a sua sultana favorita, a rainha Vasti, que deso-
bedeceu ao rei negando-se a mostrar-se ao povo e a nobreza. Será então
substituída pela judia Ester. Mardoqueo, tutor da jovem, suplica a esta
que interceda junto ao rei em favor dos judeus, ameaçados de extermí-
nio por um edito do grão vizir Aman.30

199

Figura 3: Ester – Teto da nave da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora,


Sergipe.
Foto: Luiz Freire.

Ela vai deslumbrante ao encontro do rei, arriscando-se a morte,


pois não tinha o direito de apresentar-se a ele sem que a chamasse. Des-
maia em sua presença. Assuero, enternecido, lhe estende o cetro em sinal
de perdão e aceita escutar sua petição. Ela replica com tanta eficácia que
Assuero revoga o edito de morte contra os judeus e faz pendurar Aman
no patíbulo preparado para Mardoqueo.

29
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano - Iconografía de la Biblia, Antiguo
testamento. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1995. p. 387.
30
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano, p. 388; BÍBLIA DE JERUSALÉM.
Ester. Português. São Paulo: Paulus, 2002. V. 1-10. p. 701-715.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

Para os judeus, Ester é como Judite, uma heroína nacional, a


“libertadora de sua nação”.
Ester, “Estrela da Pérsia”, tem sido interpretada a duplo títu-
lo como uma das prefigurações da Stela Maris das Litanias. Anuncia a
Virgem coroada e mediadora. Assim como sua coroação por Assuero
é a imagem da “Coroação da Virgem”, sua intervenção ante o rei é o
emblema da intercessão de Maria frente a seu filho no dia do Juízo Fi-
nal: ela conseguiu o perdão dos judeus; a Virgem obtém o perdão para
o gênero humano.31
Assimilada à Virgem, Ester se converteu, por derivação, à
“Sulamita” dos Cânticos dos Cânticos, na imagem da Igreja. Assuero
casando-se com Ester evoca no espírito dos teólogos a Cristo Sponsus
Ecclesiae:32
A iconografia de Ester tornou-se muito popular
na Idade Média. Em finais do reinado de Luis
XIV, o êxito da tragédia escrita por Racine para
as senhoritas de Saint Cyr, fez com que a história
de Ester renovasse a popularidade.33
200
No teto da Divina Pastora a Ester é iconografada, sentada, com
tez caucasiana, com os atributos de rainha: o cetro, a coroa e vestes
régias constantes de arminho, brincos de ouro e plumas na cabeça, em
conformidade com a referência presente na imagem desenhada por Ma-
arten de Vos, em cerca de1581, gravada por Johannes Baptista Collaert
I e Karel van Mallery (grabado), editada em Amberes, Ed. de Philips
Galle, hacia 1590.34
Sisara, general de Jabín, rei de Canaã, que oprimia os israelitas,
depois da derrota de seu exército, havia suplicado hospitalidade a Jahel.
Ela o protegeu na sua tenda, lhe ofereceu leite e lhe cobriu com uma
manta. Contudo aproveitando o sono de seu hóspede, retirou uma das

31
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano, p. 389.
32
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano, p. 389.
33
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano, p. 389.
34
[...] Mujeres célebres del Antiguo Testamento Amberes, Ed. de Philips Gal-
le, hacia 1590 Maarten de Vos (dibujo) h.1581 / Johannes Baptista Collaert I
(grabado) / Karel van Mallery (grabado). Citado em: FUNDACIÓN MUSEO
DE LAS FÉRIAS. Estampas de Flandes. Disponível em: < http://www.museo-
ferias.net/estampas-de-flandes/>. Acesso em: 25 de março de 2015.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

estacas da tenda e introduziu em sua cabeça com um golpe de martelo.


Em outra versão, lhe atravessou a testa com um cravo:35
Assim, Deus humilhou naquele dia Jabín, rei de
Canaã, diante dos israelitas. A mão dos israelitas
pesava cada vez mais duramente sobre Jabin, rei
de Canaã, até que exterminaram Jabin.36

Apesar de ter violado e traído as leis sagradas da hospitalidade,


os judeus glorificaram Jahel como uma heroína. Os teólogos da Idade
Média viram nela o símbolo da Virgem vitoriosa do Demônio ou da
Igreja dos Gentios que com a cruz crava a seu inimigo no chão. No
Renascimento compartilha com Judite a honra de simbolizar uma das
quatro virtudes cardiais: “a Força”.
Judite, Ester e Jahel são as heroínas do Antigo Testamento que
na teologia medieval se transformaram nas prefigurações da Virgem Ma-
ria, justificando-se assim, a figuração delas nesse teto dedicado a Nossa
Senhora sob a invocação da Divina Pastora. As três valorosas judias ri-
valizam com Josué, David e Judas Macabeu.
201

Figura 4: Jahel – Teto da nave da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora,


Sergipe.
Foto: Luiz Freire.

35
RÉAU, Louis. Iconografía del arte cristiano, p. 379; BÍBLIA DE JERUSA-
LÉM. História dos Juízes. Morte de Sísara. Português. São Paulo: Paulus, 2002,
v. 4., p. 354-355.
36
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ester. V. 4., p. 355.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

Resta-nos entender a pastora que complementa o ciclo qua-


ternário das prefigurações da Virgem Maria, pois outras mulheres do
Antigo Testamento são tidas, também, como prefigurações da Virgem
Maria, a exemplo de Sara, Raquel, Debora, entre outras. Entretanto, a
que mais se identifica com a iconografia da pastora é Raquel, conforme
identificou Ana Maria Villar37, restauradora chefa da AM Restauro, que
restaurou esse forro em 2005.
Raquel, cujo nome significa “rosa amorosa” em hebraico co-
nheceu Jacó a beira do poço em que os pastores davam água ao rebanho
e Raquel se aproximava para fazer o mesmo. Jacó perguntou aos pasto-
res sobre o pai de Raquel, Labão e contou à Raquel que era parente de
seu pai e filho de Rebeca. Labão o recebeu muito bem, acolhendo-o e
questionou sobre o que queria receber em troca do seu trabalho.38
Jacó declarou que trabalharia sete anos para ele em troca de sua
filha mais nova Raquel. O trato foi feito e ao final dos sete anos Jacó re-
clamou esposar Raquel, mas Labão entregou sua filha Lia, a mais velha,
conforme o costume de casar primeiro a filha mais velha. Acordaram
então que Jacó trabalharia mais sete anos em troca de ter Raquel como
202
segunda esposa, e assim se cumpriu, mas Jacó amava mais a Raquel do
que a Lia. Iahwe viu que Lia não era amada, e ele a tornou fecunda, en-
quanto Raquel permanecia estéril. Lia deu quatro filhos a Jacó: Rúben,
Simeão, Levi e Judá.
Raquel, com inveja da irmã, cedeu sua serva Bala para que ti-
vesse filho com Jacó, nasceram então dois filhos, Dã e Neftali. Lia que
não mais concebia, ofereceu sua serva Zelfa como mulher para Jacó,
gerando dois filhos, Gad e Aser.
Rúben trouxe mandrágoras para sua mãe. Raquel pediu à Lia
as mandrágoras, mas Lia recusou lembrando a irmã que ela já tinha lhe
tirado o marido e queria agora lhe tirar as mandrágoras de seu filho.
Raquel concorda com Lia deixando-a dormir com Jacó em troca das
mandrágoras. Deus ouviu Lia e fê-la conceber o quinto filho para Jacó e
ainda o sexto e a sétima nomeados de Issacar, Zabulon e Dina.

37
SILVA, Ana Maria Villar Augusto da et al. Relatório da Intervenção de Restauro
dos forros da capela-mor, nave e nártex da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora, em
Sergipe, p. 14.
38
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ciclo de Isaac e Jacó. Português. São Paulo: Paulus,
2002. V. 29-32. .p. 71-75.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Deus lembrou de Raquel tornando-a fecunda, que deu José a


Jacó. Por essa época Jacó disse a Labão do seu desejo de partir para a
sua terra, pedindo as mulheres e os filhos, lembrando a Labão o quanto
tinha feito multiplicar seus bens. Labão pergunta a Jacó qual é a sua dívi-
da e Jacó propõe que o seu salário seja constituído dos cordeiros pretos e
das cabras malhadas e salpicadas de todo o rebanho e observou que esse
seria seu salário e sua honestidade, e no futuro, quando fosse verifica-lo
em sua casa e caso fosse encontrado algum animal que não fosse preto
ou malhado, seria então produto de roubo. E Labão separou os bodes e
as cabras como propôs Jacó.
Jacó usou de estratégia para manter separado o seu rebanho de
caprinos e ovinos dos de Labão, garantindo o acasalamento do rebanho
malhado, garantindo crias listradas, salpicadas e malhadas. Cada vez que
acasalava animais robustos, Jacó colocava a vara diante dos olhos dos
animais nos tanques, para que se acasalassem diante das varas. Quando
os animais eram fracos, ele não as colocava, e assim o que era fraco ficava
para Labão e o que era robusto ficava para Jacó, que se enriqueceu muito
e teve rebanhos em quantidade, servas e servos, camelos e jumentos. 203

Figura 5: Jahel – Teto da nave da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora,


Sergipe.
Foto: Luiz Freire.

Os filhos de Labão começaram a dizer para o pai que Jacó tinha


enriquecido às suas custas, e Labão começou a dar tratamento diferente
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

ao genro. Jacó chamou Raquel e Lia nos campos onde estavam seus
rebanhos e disse-lhes da alteração de tratamento de Labão, afirmando
que Deus o beneficiou, quando Labão por diversas vezes mudou o seu
salário, de modo que cada vez que Labão dizia seu salário será salpicado,
todos os animais pariam crias salpicadas e assim sucessivamente. Jacó
então narrou:
O Anjo de Deus me disse em sonho: Ergue os
olhos e vê: todos os bodes que cobrem as fêmeas
são listrados, malhados ou mosqueados, pois eu
vi tudo o que te fez Labão. Eu sou o Deus que te
apareceu em Betel, onde ungiste uma estrela e me
fizeste um voto. Agora levanta-te, sai desta terra e
retorna à tua pátria.39

Jacó reuniu Raquel, Lia, seus filhos, seu rebanho, seus camelos
e seus bens para ir a Isaac, seu pai, em Canaã. Ao sair, Raquel roubou
os ídolos de seu pai. Labão os perseguiu reclamando seus deuses, que
Jacó ignorava terem vindo com Raquel. Labão os procurou em todas as
tendas, mas não achou, pois Raquel tinha sentado sobre eles no camelo.
204
Entendia Labão que tudo que pertencia a Jacó era seu, mas terminou
por estabelecer um tratado com Jacó, em que exigia o bom trato com
suas filhas e nenhum dos lados avançarem os territórios demarcados.40
Jacó prepara o encontro com seu irmão Esaú com muita in-
certeza sobre a natureza desse encontro e procura se precaver de uma
reação belicosa de seu irmão. Separou sua caravana em vários blocos, e
constituiu presentes para serem dados por seus servos a Esaú. Acampa-
do, Jacó ficou só e começou a lutar com alguém até o surgir da aurora:
Vendo que não o dominava, tocou-lhe na arti-
culação da coxa, e a coxa de Jacó se deslocou
enquanto lutava com ele. Ele disse: Deixe-me ir,
pois já rompeu o dia. Mas Jacó respondeu: Eu
não te deixarei se não me abençoares. Ele lhe
perguntou – Qual é o teu nome? – Jacó. Respon-
deu ele. Ele retomou: “Não te chamarás mais
Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus
e contra os homens, e tu prevaleceste.41

39
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ciclo de Isaac e Jacó. V. 31. .p. 74.
40
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ciclo de Isaac e Jacó. V. 31. .p. 74-75.
41
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ciclo de Isaac e Jacó. V. 32. .p. 77.
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Esaú recebeu muito bem o irmão e sua família. Depois do en-


contro, os irmãos se separam e Jacó segue para a cidade de Siquém, na
terra de Canaã, onde ergueu um altar dedicado ao Deus de Israel. Em
Siquém sua filha Dina foi molestada, causando uma reação violenta de
seus irmãos, apesar de Hermor, pai de Siquém ter prometido dádivas
para que o casal se unisse e houvesse paz entre as famílias e ter conven-
cido os homens de Siquém para que se circuncidassem. O ataque dos
irmãos de Dina conduz Jacó ao desespero e esse ouvindo a Deus segue
para Betel, onde construiu um altar. Partiram então de Betel em direção
a Éfrata. No caminho Raquel deu a luz a Benjamim e morreu de parto,
sendo enterrada ali mesmo, lugar em que Jacó ergueu uma estela.42
Jacó com Raquel, Lia e suas servas tiveram 12 filhos: Rúben,
Simeão, Levi, Judá, Dã, Neftali, Gad, Aser, Issacar, Zabulon, José e Ben-
jamim que deram origem as doze tribos de Israel, são pois, patriarcas de
Israel. Essas 12 tribos estão representadas nas doze estrelas ou pedras
preciosas que compõem a aureola ou coroa da Virgem Maria. Represen-
tam o povo eleito pelo Senhor para preparar a vinda ao mundo do filho
de Deus e do redentor e salvador da humanidade.
A pastora da pintura do teto poderia ser Lia, a irmã mais velha 205
de Raquel, com quem Jacó teve alguns de seus filhos e que também era
pastora, mas Raquel tinha uma importância maior por ser a mulher que
Jacó mais amava e por ter gerado o filho preferido de Jacó, José. José foi
vendido como escravo, tornando-se o homem mais prestigiado de Pu-
tifar e alto funcionário do Egito, administrador dos silos reais. Quando
a fome grassou o Egito por causa das secas prolongadas, os irmãos de
Jacó vieram até o Egito buscar provisões e foram recebidos por José,
que não guardara rancor, perdoou e possibilitou vida longa e prosperida-
de aos seus irmãos e sua prole, pois sua administração salvou o Egito da
fome. Favoreceu com seu poder e bondade o crescimento e perpetuação
do povo de Israel, viveu o bastante para ver a terceira geração dos filhos
de Efraim e os israelitas encheram o Egito com seu povo.43
Raquel é representada nesse teto com a mesma postura das de-
mais mulheres, sentada sobre as cornijas do arco, inclinada e vestida
como as pastoras das fêtes champêtres do Rococó, ou seja com vestes da

42
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Ciclo de Isaac e Jacó. V. 35. .p. 79-80.
43
BÍBLIA DE JERUSALÉM. III.História de José. Português. São Paulo: Paulus,
2002. V. 37-50. .p. 82-102.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

corte e brincos, chapéu de campesina com abas largas ornado com flo-
res, cajado que se apoia no ombro esquerdo e braço direito que se ergue
sustentando um cesto de flores. A mão direita repousa sobre o peito e
os olhos se voltam para o alto. Abordagem bastante diferente do ícone
da Divina Pastora do quadro central.
Há, sem dúvidas, uma identidade de gênero na iconografia des-
se teto. As mulheres do Antigo Testamento encarnam a antecipação da
Virgem Maria, virtudes como pureza estão presentes em algumas delas
como Judite, elas garantiram sobretudo a descendência do povo de Isra-
el, com seus feitos e fecundidade, possibilitando assim o nascimento de
Jesus através da Virgem Maria.
No teto do nártex, apresenta-se ao fiel, no quadro central com
pintura fingindo moldura de talha dourada, uma glória de anjos músicos
com seus instrumentos musicais intercalados aos anjos cantores com
suas partituras na mão a cantarem entre nuvens, logo acima outra glória,
desta feita de querubins entre nuvens cercam o Monograma AM - Ave
Maria, que surge entre raios de luzes resplandecentes. É a glorificação do
206
santo nome da Virgem Maria, sua saudação “Salve Maria”.
Em cada extremo lateral há uma arquitetura fingida pela pintura
constituída de arco sobre mísulas com abóbada de aresta em amarelo,
balcão curvo movimentado sobre pilastras encurvadas, gradil em for-
ma de volutas fitomórficas entrelaçadas delgadas e esgarçadas. O balcão
assenta-se sobre base em formato de leque de plumas. No centro do pa-
rapeito encurvado do balcão há uma cartela pintada em azul, sustentada
por dois anjos, um em cada lado, sentados nos extremos do parapeito
do balcão. O centro da cartela em grisailles cor de rosa exibe um ramo
com três lírios ou açucenas, insígnia que se repete na outra lateral e alude
a pureza da Virgem constante na sua Ladainha: “Mãe puríssima, Mãe
castíssima, Mãe sempre virgem, Mãe imaculada”.
O programa iconográfico pictórico dos tetos dessa igreja com-
pleta-se na sacristia, em cujo teto apresenta-se o tema da coroação de
Nossa Senhora pela Santíssima Trindade, pai, filho e Espírito Santo
cercada por anjos e querubins em meio de nuvens. Essa composição
confirma os títulos da Ladainha: “Rainha dos Anjos, Rainha dos Patriar-
cas, Rainha dos Profetas, Rainha dos Apóstolos, Rainha dos Mártires,
Rainha dos confessores da fé, Rainha das Virgens, Rainha de todos os
A DIVINA PASTORA E AS HEROÍNAS DO ANTIGO TESTAMENTO...

Santos, Rainha concebida sem pecado original, Rainha assunta ao céu,


Rainha do santo Rosário, Rainha da paz”.
O tema da coroação da Virgem Maria no céu, pela Santíssima
Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) no céu foi destinado ao forro da
sacristia da igreja que possui uma área de 86,29m².44 O arranjo compo-
sitivo da cena é dividido em três níveis, o nível inferior é ocupado por
dois serafins, um em posição frontal e o outro segurando um bloco de
nuvens onde se encontra querubins e Nossa Senhora que ocupa o nível
médio. A Virgem está ajoelhada com as mãos cruzadas, ladeada por dois
serafins, um em cada lateral. Está sendo coroada pelo filho representa-
do a sua direita e distingue-se por portar uma cruz latina e a esquerda
pelo Deus pai, ambos seguram a coroa real sobre a cabeça da Virgem e
ocupam o terceiro nível. Entre o Pai e o Filho e acima, a pomba raiada
representando “O Divino Espírito Santo”. Querubins povoam o entor-
no superior. Corresponde a uma doutrina muito antiga que diz ter sido
Nossa Senhora coroada “Rainha do Céu” assim justificada:
Certamente, no pleno e rigoroso sentido do ter-
mo, somente Jesus Cristo, o Deus-Homem, é Rei, 207
mas Maria, também, como Mãe do divino Cristo,
(...) tem uma participação, embora de forma limi-
tada e de modo análogo, em sua dignidade real.
A união radiante (...) que ela atingiu com Cristo
transcende o de qualquer outra criatura; de sua
união com Cristo ela recebe o real direito de dis-
por dos tesouros do Divino Redentor do Reino,
de sua união com Cristo finalmente é derivada
a inesgotável eficácia de sua materna intercessão
do Filho e do seu pai.45

Nos quatro forros há a importância e sacralidade de Nossa Se-


nhora sob a invocação da Divina Pastora, aquela que salva o seu re-
banho do descaminho, do mal e do pecado; aquela que “Apascenta o
seu rebanho” (Pasce Haedos Tuos)46, conforme está inscrito na cartela que
arremata o arco cruzeiro, é perfeitamente dimensionada conforme a te-

44
SILVA, Ana Maria Villar Augusto da et al. Relatório da Intervenção de Restauro
dos forros da capela-mor, nave e nártex da Igreja de Nossa Senhora Divina Pastora, em
Sergipe, p. 16.
45
Ad Caeli reginam (Rainha do Céu) 39.
46
CARDOSO. Uma análise estética e iconográfica dos forros da igreja matriz Nossa
Senhora Divina Pastora, op. cit., p. 33.
LUIZ ALBERTO RIBEIRO FREIRE

ologia da época e a filosofia que valorizava o trabalho e a vida do campo


em voga na segunda metade do século XVIII. Nada mais próprio para
uma região em que há muito a sociedade tirava o seu sustento e produzia
riqueza da agricultura e do pastoreio.

208
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

Capítulo 13

TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO – ARQUITE-


TURAS PINTADAS NA LISBOA JOANINA

Magno Moraes Mello

Este texto, ora apresentado ao leitor, faz parte de algumas


reflexões sobre a “grande decoração barroca” luso brasileira no
século XVIII. Aqui, neste momento, três pontos são indispensáveis:
reconhecer Vitorino Manuel da Serra como um hábil quadraturista; ter
sempre em mente que a quadratura chega em Portugal pelas mãos do
florentino Vincenzo Bacherelli; e perceber a complexidade da execução
do trabalho do perspéctico, suas especificidades em relação à arquitetura
virtual, como também a dinâmica cenográfica envolvendo a simulação
e a unidade entre finito e infinito. O tema da decoração perspectivada 209
alcança desde a arquitetura, à literatura científica, passa pela cenografia
e abrange a pintura e a escultura. As publicações a partir do século XXI
deram ênfase a estudos gerais e específicos para o tema da arquitetura
virtual: livros com textos gerais, mas com belas fotografias ou mesmo
livros frutos de congressos divulgando as últimas pesquisas sobre o
assunto, capítulos de livros, monografias, dissertações e teses por todo
o Brasil nos diferentes ambientes universitários de graduação, mas de
modo mais aprofundado, os de pós graduação. Ainda hoje a decoração
perspéctica, tanto no Brasil, como em Portugal suscita pesquisas e causa
sempre assombramento ao historiador da arte. Estamos perante a uma
representação que caminha pela história desde a Antiguidade, até aos
estudos mais complexos sobre óptica, cartografia/gnomônica, catóptrica,
dióptrica e esciagrafia. Tudo para tornar as imagens mais próximas da
natureza e capturar o olho do fruidor. Ao longo do texto veremos como
o desenho, uma das partes mais significativas da representação pictórica
do espaço, tornou-se instrumento de estudo e de comunicação.
O engano aqui conferido estará tacitamente determinado
pelo domínio da tradição mimética. Os rasgamentos atmosféricos
servirão não apenas para o mundo de glórias celestes, mas ainda para
MAGNO MORAES MELLO

os temas históricos e heroicos elaborados em paredes ou em tetos


que arrombam e perfuram ilusoriamente a materialidade do suporte e
convida o espectador a transgredir o espaço matérico. Com tudo isso,
o quadraturismo – uma espécie de forma pictórica ou forma decorativa
– poderá também ser estudado como exercício ou prática de uma
determinada época artística. Ora, seus elementos transitam desde a
codificação normativa do espaço, até rasgamentos celestiais a grandes
distâncias num trompe l’oeil atmosférico em constante unidade entre as
artes. Esse imenso universo persuasório vem pensado tanto pela história
da arte, quanto pela psicologia da percepção.
Importa referir que o universo do século XVII e XVIII nas
investigações pertinentes ao estudo sistemático da decoração de tetos no
universo luso brasileiro apresenta ainda entre os seus múltiplos aspectos,
arestas insuficientemente averiguadas. Estudos ligados à literatura
científica, às construções cenográficas, ao arrombamento atmosférico e
às arquiteturas falsamente representadas, podem ser consideradas uma
forma pictórica específica e que hoje é um dos fenômenos da percepção
visual mais atraente da história da arte. Essas questões de produção
210
técnica/cultural são visíveis a partir do século XVI num sistema de
globalização que passa pela Europa, América (Portugal/Espanha) e
Oriente. A difusão da perspectiva fora da Europa é uma questão cultural
e religiosa, mas também matemática/geométrica/tecnológica. Não se
pode esquecer que estamos perante um largo processo de circuito de
difusão do conhecimento e que configura um substrato para a produção
pictórica e cenográfica. Assim, o nosso leitor irá constituir-se de um
leque de probabilidades para uma melhor performance no estudo da
pintura decorativa.
É neste universo cultural que a pintura de falsa arquitetura
em Portugal durante a primeira metade do século XVIII permitiu
significativas mudanças no ambiente artístico do país. Novas funções
que se iam estruturando a partir da escolha pessoal de cada artista,
mas também condicionadas à necessidade dum momento específico
na produção de um determinado trabalho, exigindo uma crescente
diversificação de tarefas. Tem-se pela primeira vez a especificação entre
o figurista e o quadraturista. Uma situação que se repetia um pouco por
toda a Europa. Aos poucos, surge a figura do “preparador de cenas”
com novos modelos a serem aplicados, conduzindo a pintura decorativa
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

a um moderno e diverso cenário. É bem verdade que muitos especialistas


em falsa arquitetura trabalhavam também na execução de grupos de
cenas figurativas. Com esta nova tipologia verificam-se composições
extremamente complexas sob o ponto de vista da execução, mas
também no que diz respeito à própria visualidade das cenas. É bem
verdade que a pintura em paredes e em tetos, antes da intervenção da
quadratura, era condicionada pela planimetria do brutesco, pelas simples
cartelas figurativas e/ou pela composição historiada como espécies de
pinacoteca no teto (os caixotões) para usar uma expressão de Argan.
Estas tipologias permaneceram em Portugal e alastraram-se para as
diversas colônias e conviveram plenamente com a simulação perspética,
a quadratura. Esta especialidade ao longo do século XVIII irá passar
por diversas transformações morfológicas, acompanhadas de um novo
ordenamento social transformando por completo a atividade do pintor-
decorador. Esta nova página da História da Arte portuguesa seria
escrita por Vitorino Manuel da Serra (c.1692-1747): pintor de ornatos,
frutos e flores, mas também pintor de falsa arquitetura.1 Considerado
por nós, um dos melhores preparadores de perspectiva. Seguidor do
211
florentino Vincenzo Bacherelli, este conhecedor das normas inerentes
ao conceito de espaço perspético que apenas iniciava o seu percurso,
pode ser considerado como o melhor representante de uma espécie
de pensamento pictórico que teve na sua época o momento de maior
êxito. Vitorino Manuel da Serra foi, na opinião dos coevos, o mais
qualificado artista para idealizar localmente este novo ciclo da grande
decoração barroca em Portugal. Um tempo de múltiplas exigências,
sobretudo em função das espaçosas superfícies a decorar. Era a época
de maturidade dos novos entendimentos que desde os primeiros
anos do século XVIII iniciavam a sua formação, na expressão da
grandiosidade, coerência e equilíbrio entre a especulação teórica e a
práxis. Já precisava Jerônimo de Andrade que “não era só especulativo
mas também prático, pois, que importava saber como se debuxava uma
flor, se eu, aplicando-lhe o pincel não dou graça no artifício?”2

1
MACHADO, Cirilo Volkmar. Collecção de Memórias Relativas á Vidas dos Pinto-
res, e Escultores, Arquitectos, e Gravadores Portugezes, e dos Estrangeiros, Que estiveram
em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922, p. 147.
2
ANDRADE, Jerônimo de. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da
Serra, Lisboa, 1748, p. 12.
MAGNO MORAES MELLO

Em 1748 saía da oficina de Pero Alvares da Silva, em Lisboa, o


opúsculo dedicado a Vitorino Manuel da Serra, da autoria do decorador
Jerônimo de Andrade3 (1715-1801) “Um excelente pintor de ornatos e
arquitectura: achou-se sempre entre os que executavão no seu tempo
as melhores obras da Côrte; desenhou, executou e dirigiu [...].”4 Este
decorador era amigo de Cirilo Volkmar Machado, e considerado como
pintor responsável pelo desenho preparatório das falsas arquiteturas a
serem aplicadas no teto forrado com tela da nave da Igreja de São Paulo,
em Lisboa. Outra passagem do mesmo Elogio vale a pena recordar para
melhor explicar a importância da quadratura em Portugal na primeira
metade do século XVIII:
Para ter estes conhecimentos práticos, e
especulativos lia (Vitorino Manuel da Serra) os
melhores autores castelhanos, em cuja língua
não parecia hospede. Grande foi a lição que
teve das comédias, pelas quais se capacitava do
primor do teatro cómico, em cujo desempenho
foi excelente, agudo e sentencioso5

212 Para a decoração na Igreja de São Paulo, Jerônimo de Andrade


contou com a ajuda de José Tomás Gomes (1713-1783), Vicente Paulo
da Rocha, artista natural de Alhandra e Gaspar José Raposo (1762-1803):
Sugeito de grande merito, porque não só executa
bem qualquer desenho de ornato, ou quadratura,
mas tem o dom de alegrar a companhia,
arremedando com propriedade alguns homens,
e animais;6

3
Aqui apresentamos exclusivamente as observações sobre a arte e a vida
do pintor Vitorino Manuel da Serra escritas pelo quadraturista Jerônimo de
Andrade, autor do opúsculo, publicado em Lisboa, em 1748. Não será feita
qualquer crítica em relação à produção artística do referido decorador. Deixa-
remos estas observações para outra oportunidade.
4
MACHADO. Collecção de Memórias Relativas á Vidas dos Pintores, e Escultores,
Arquitectos, e Gravadores Portugezes, e dos Estrangeiros, Que estiveram em Portugal, op.
cit. p. 165.
5
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 13.
6
MACHADO. Collecção de Memórias Relativas á Vidas dos Pintores, e Escultores,
Arquitectos, e Gravadores Portugezes, e dos Estrangeiros, Que estiveram em Portugal, op.
cit., p. 173: este artista é citado por Cirilo como discípulo de Jerônimo Gomes
Teixeira.
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

Gaspar José Raposo, artista este com grande experiência e


capacidade de execução, pois executa em 17847 a decoração do teto da
capela-mor da Igreja da Encarnação em Lisboa, a partir de desenhos
preliminares assinados por Cirilo Volkmar Machado.8 Um homem
do meio, certamente amigo e admirador, senão aluno, do “herói”
biografado.
Torna-se significativo recordar que este opúsculo de 1748
é a primeira obra dedicada a um quadraturista, escrita em Portugal.
A importância deste Elogio faz com que seja valorizada a figura
do preparador de cenas com ilusão arquitetônica que planeja
geometricamente o espaço a preencher, separando-se da atividade do
figurista. Este precioso texto apresenta obras esquecidas ou quase nunca
analisadas, praticamente destruídas ou repintadas sob outra vertente
decorativa, abrindo a possibilidade a uma melhor compreensão da
habilidade pictórica de Vitorino Manuel da Serra.
Segundo o seu panegirista:
Deu-lhe o ser da natureza António Serra e
Vicencia de Almeida, pessoas tão cristianizadas 213
nos empenhos da virtude (...) participou-lhe o
ser da graça a água do baptismo na Freguesia de
Santa Justa.9

Nas primeiras lições, Vitorino Manuel da Serra foi buscar ao


seu pai, Antônio da Serra, artista da passagem do século XVII para o
período setecentista. Antônio da Serra, chamado “o Velho”, especializou-
se também na pintura de ornatos e de arquitetura, sendo uma figura
conceituada em Lisboa e no meio artístico. Seu nome é referido na
Irmandade de São Lucas desde 18 de outubro de 1688 como mordomo;
e é citado ainda em 1690, em 1720 e em 1727. Por fim, registra-se seu
óbito em novembro de 1728, período em que a sua esposa, Vicencia
de Almeida, é admitida na mesma confraria. As suas obras individuais
ainda não foram identificadas e nem estudadas. O seu nome vem

7
Igreja de Nossa Senhora da Encarnação. Folhas Avulsas de Despesas. Lisboa:
recibo assinado pelo artista em 29 de Outubro de 1784.
8
Desenhos conservados atualmente no Museu Nacional de Arte Antiga
(MNAA), Lisboa, Portugal.
9
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 8.
MAGNO MORAES MELLO

sempre referido como pintor de ornatos e de perspetiva, sendo mestre e


companheiro do filho em diversas empresas.10 O mecenas que financiou
(e decerto encomendou) o livro (este Elogio Fúnebre) em memória
deste artista lisboeta foi seu tio, como refere Jerônimo de Andrade na
Dedicatória que lhe faz, o também pintor régio, Antônio Pereira da Silva,
militar “Capitão dos Auxiliares.”
A formação de Vitorino Manuel da Serra pode ser vista em
duas etapas muito específicas e distintas. Os seus primeiros passos
foram dados junto com seu pai e sua especialidade conquistada no
estrito relacionamento que ele teve com o mestre Bacherelli, para
o qual executou as festonadas de flores, que são primorosas,11 no teto da
Portaria de São Vicente de Fora, concluído em 1710 (estes festões
decerto podem ter sido executados por Antônio da Serra (c.1660 –
1728), pois, quando o teto foi executado, Vitorino estaria com cerca
18 anos e poderia ter participado como ajudante do pai, quem sabe
seu primeiro contato com uma obra de grosso calibre). O contato com
Vincenzo Bacherelli foi crucial para Antônio e Vitorino da Serra. Este
214 último amadureceria sua aprendizagem, primeiro com o pai e ainda
com o florentino no próprio canteiro de obras. Provavelmente, iniciou
a sua especialidade de pintor de ornatos como ajudante na decoração
do teto de São Vicente de Fora e só mais tarde revelou-se preparador
de perspetivas seguindo os ensinamentos ali apreendidos. Jerônimo de
Andrade reforça suas atividades dizendo que:
Nos paizes em que foi selecto, no Groteco, em que
foi perito, no Brutesco em que foi sábio e enfim

10
Cf. MACHADO. Collecção de Memórias Relativas á Vidas dos Pintores, e Esculto-
res, Arquitectos, e Gravadores Portugezes, e dos Estrangeiros, Que estiveram em Portugal,
p. 147; RACZYNSKI, Athanase. Dictionnaire historico-artistique du Portugal pour
faire suite à l’ouvrage ayant pour titre: Les arts en Portugal. Paris: Jules Renouard,
1847; TABORDA, José da Cunha. Regras da arte da pintura. Coimbra: Impren-
sa da Universidade, 1922, p. 245; TEIXEIRA, Francisco Augusto Garcez.
A irmandade de São Lucas: estudo do seu arquivo, Lisboa, 1931, p. 72, 80 e
127; COSTA, Luiz Xavier da. As Belas-Artes Plásticas em Portugal durante o século
XVIII, Lisboa, 1935, p. 57, 116 e 138; PAMPLONA, Fernando de. Dicionário
de Pintores e Escultores Portugueses. Porto: Livraria Civilização Editora, Vol. V,
2000, p.176; SILVA, Francisco Liberato de Castro da. Pintura Simples. Lisboa:
Typographia do Commercio, 1898, p. 216.
11
MACHADO. Collecção de Memórias Relativas á Vidas dos Pintores, e Escultores,
Arquitectos, e Gravadores Portugezes, e dos Estrangeiros, Que estiveram em Portugal, p.
144.
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

nas figuras, em que foi elequente, desempenhou


a suavidade, a natureza e a imortalidade da arte12

Entra na Confraria de São Lucas em 23 de janeiro de 1718,


portanto posteriormente ao trabalho no Mosteiro dos Agostinhos.
Podemos concluir que a empreitada em São Vicente fora fundamental para
este pintor, que se transformou num dos melhores e mais conceituados
decoradores e preparadores de elementos de falsa arquitetura. A sua
carreira de decorador estava apenas principiando como jovem aprendiz
do mestre Bacherelli e consolidando o seu percurso num gênero
artístico recém-inaugurado e diverso do que então se fazia em Portugal
naquelas primeiras décadas do século XVIII. O contato com a pintura
ornamental do tipo festonada, as grinaldas, as flores e os frutos foram
a especialidade de Antônio Serra e, naturalmente, Vitorino participava
nestas composições, como bem observou Jerônimo de Andrade. Mas
não deixou de estar atento às novidades de outros cantos, como as
palmetas e plumas da nova linguagem Rococó trazidas por gravuras
e livros franceses do estilo “Regência”, entre Luís XIV e Luís XV, de
215
que foi introdutor pioneiro nos círculos de vanguarda da corte cerca de
1730-35:
Elle foy o primeiro, que em Lisboa entrodusio
o primoroso ornato Francez, como se observa
elegantemente desempenhado no Palacio do
Marquez de Cascaes, em que ao presente assiste
o Excellentissimo Duque de Souto Mayor,
Embaixador de Castella. Deste novo estillo
pintou muito nas cazas de Custodio Vieyra, e lhe
deu os riscos para os azulejos, empreza da sua
idea, e novo primor do seu discursso.13

12
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748.
13
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lis-
boa, 1748, p. 15 e TABORDA. Regras da arte da pintura, p. 245. O Palácio do
Marquês de Cascais (embaixador em paris desde 1695, m. 1720), ao Paço do
Borratém, por detrás do Hospital de Todos-os-Santos, teve campanhas de
redecoração ao “novo estilo” em pinturas murais com o 4º Marquês, D. Luís
de Castro e Sousa, talvez pelo seu casamento em 1738 com a duquesa D. Joana
de Bragança. A quinta do arquiteto Custódio Vieira (1734-44) seria no Paço
do Lumiar nos arredores de Lisboa.
MAGNO MORAES MELLO

Era o ápice da futura especialização através de saberes


adquiridos, em que se tornaria cada vez mais expedito, pois:
Con estes princípios tão gloriosos, e de tanta
fama já era procurado, atendido, e respeitado...
todos queriam lucrar da sua lição os documentos.
Aqui me lembro agora das suas doutrinas, assim
eu as chegasse a aprender, como as desejei imitar!
Não havia em toda a dilatada circunferência
da Pintura, perfeição, que ele belamente não
desempenhasse.14

A importância deste decorador universal está na medida em


que a sua atividade pode ser captada como um artista mediador entre a
própria obra e a sua realização. Concentrou toda a sua criatividade não
na direção ou na total responsabilidade duma determinada empreitada,
apesar de sempre vinculado a qualquer boa realização devido às suas
capacidades inventivas; mas foi prestigiado menos como autor, que
como inventor ou preparador de cenas.
A sua capacidade de intervenção e vivência na pintura estava
presente em todos os gêneros possíveis:
216
Finalmente estimou a pintura de suave engano.
Que admirações não teve Vitorino Manuel da
Serra nesta parte. O que pintava parecia mais
natural, que artificioso (...).15

Talvez não um artista completo, mas sem dúvida uma figura


presente em todo o universo da decoração, ou seja, desde o brutesco,
que bem conhecia, até o ilusionismo arquitetônico, que dominava com
maestria e tentou renovar. A primeira metade do século XVIII era a
consagração máxima da quadratura na presença de Bacherelli e da Aula
da Esfera, protagonizada pelos jesuítas em Santo Antão. Assim, vale a
pena referir que:
Esta Aula era independente, pública e com um
curriculum mais alargado em comparação com
outras no país, pois deveria atingir também
os homens do mar e suas necessidades de

14
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 10.
15
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 11.
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

conhecimento marítimo. Neste sentido, era


fundamental que esta Aula continuasse. Lembro ao
leitor que esta Aula de Matemática/Cosmografia
foi iniciada em 1590 e, ininterruptamente, existiu
até 1759, quando a Companhia de Jesus foi
expulsa de Portugal; portanto, quase trezentos
anos de ensino e preocupação com questões
científicas, refletindo-se num universo artístico
de grande significado como foi a primeira metade
do século XVIII português.16

Apesar de Vitorino Manuel da Serra ter morrido com 55 anos,


a sua atividade como pintor se estendeu a muitas obras. Ressaltamos
aqui as intervenções como quadraturista em diversos tetos pintados,
como, por exemplo, na Igreja de São Sebastião da Pedreira; na Ermida
de Nossa Senhora do Monte do Carmo, na rua Formosa; nas ermidas
de Nossa Senhora da Graça e de Nossa Senhora da Apresentação,
dentro do Hospital de Todos-os-Santos e por cima da porta principal
da Igreja de Nossa Senhora da Pena.17 Segundo o seu panegirista, foi
o responsável pela idealização da membrana arquitetônica do teto da
Igreja do Menino-Deus em Lisboa, onde também teria trabalhado
como pintor e, naturalmente, como um dos responsáveis pela projeção 217

perspética do modelo preparatório decorativo para aplicá-lo na


abóbada da mesma igreja. Aqui se pode pensar em dois planos:

O circundante da balaustrada, povoada por puti e


figuras alegóricas e a projeção em alçado por trás
dela a criar verticalidade ao centro. A invenção
desta quadratura reflecte os ideais formais
e estéticos presentes na obra de Vincenzo
Bacherelli e que foram promotores de duas
gerações de pintores decoradores.18

16
Para um estudo mais aprofundado entre textos sobre perspectiva e a Aula
da Esfera, veja: MELLO, Magno Moraes. O universo científico dos jesuítas
no Colégio de Santo Antão em Lisboa: o estudo da perspectiva e a cenografia
nas aulas de Inácio Vieira S.J., entre 1709 e 1720. In: ________. (Org.). Cultura
Arte e História – a contribuição dos jesuítas entre os séculos XVI e XIX. Belo
Horizonte: Fino Traço Editora, 2014, p. 81-123.
17
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 13.
18
Para um estudo específico do teto da Igreja do Menino-Deus, veja: MELLO,
Magno Moraes. O tecto da Igreja do Menino-Deus: um processo operativo
na construção do espaço perspéctico. In: Revista de História da Arte, Faculdade
de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, n. 5,
2008, p. 255.
MAGNO MORAES MELLO

É significativo recordar que nos tetos pintados com formas


arquitetônicas virtuais observam-se duas funções essenciais: o modo
em que a figura se mantém integrada à falsa arquitetura, às vezes
inserida nos próprios elementos arquitetônicos, e o modo em que os
mesmos elementos figurativos flutuam e não se inscrevem na membrana
arquitetônica. Numa terceira possibilidade diz respeito às figurações
dispostas no quadro fictício, como denomina Omar Calabrese em
alguns de seus estudos. Estas figuras aparecem numa disposição oblíqua
ou frontal organizadas num eixo perpendicular ao campo de visão do
espectador no centro do espaço e em visão zenital. Neste caso, a figura só
aparece no quadro central, em que a quadratura apresenta-se como uma
pesada moldura, ou seja, um eficiente separador entre duas realidades.
Mas, retomando o nosso objeto central deste texto, isto é, o
Elogio Fúnebre escrito por Jerônimo de Andrade, além destas obras
citadas em epígrafe, Vitorino Manuel da Serra também decorou a Igreja
de Nossa Senhora da Boa-Hora. Jerônimo de Andrade só faz menção
às igrejas em que Vitorino trabalhou, não dando maiores informações
218
sobre seu trabalho, nem faz comentários sobre qualquer metodologia
utilizada nesta ou em outra pintura. Mas na publicação das Memórias
Paroquiais de algumas igrejas de Lisboa, encontramos a descrição de
como era o Convento de Nossa Senhora dos Eremitas Agostinhos
Descalços, na Boa-Hora, (atual Tribunal) antes e depois do Terramoto
de 1755.
Sabe-se que este Convento foi construído em 1677 e pertenceu
aos frades “Grilos”, cuja congregação fora muito protegida pela rainha
de Portugal, D. Luísa de Gusmão:
A igreja no interior ja acabada, era de hum so
corpo, e sem naves; coberta de abobada, pintada
de elegante architectura em perspectiva, no meio
da qual sobre a capella mor aparecia em huma
tarje a may de Deus em elevação pêra o Ceo, e
sobre o corpo da igreja, outra formoza tarje
em que se via N. P. S.to. Agostinho (...) o chôro
era coberto de abobada pintada de architectura
em perspectiva, como a igreja tudo obra do
celebrado N. e no meio remeatava com huma
tarje, em que se via N.P. S.to Agostinho lavando
os pés a Christo, quando lhe aparesseo em trage
de pelegrino intitulando o grande Pe. Agostinho,
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

e encomendando lhe a sua Igreja. Era apainelado


com dois grandes painéis guarnecidos de talha
doirada, que o vestião de hum, e outro lado; o
da parte da Epistola reprezentava o mistério da
Anunciação da S.ra; o da parte do Evangelho o
mistério do nascimento do Minino Deus ambos
de primoroza pintura, e obra do egrégio Bento
Coelho (...) na sachristia, que era espaçoza à
proporção do sitio, tinha o teto pintado também
de architectura, em perspectiva, sobre que
aparescia huma grande tarje, em que estava
pintada huma espacioza imagem da Conceição
(...) havia no claustro do Convento huma capella
(...) tinha o tecto de madeira apainelada, e ornada
de pintura (...)19

Nestas memórias de Fernando Portugal o nome do pintor não


é mencionado, mas apenas referido com a inicial N, diferentemente
do texto de Jerônimo de Andrade que nos trabalhos da igreja da Boa-
Hora refere apenas ao nome de Vitorino. Dos biógrafos mais antigos e
que tratam dos pintores do século XVI/XVII, somente José da Cunha
Taborda20 cita com precisão as obras associadas à mão de Vitorino
Manuel da Serra, inclusive a pintura do teto da Igreja de Nossa 219

Senhora da Oliveira, que ruiu em 1755. Por outro lado, Cirilo Volkmar
Machado21 não fala muito deste pintor e não refere as suas obras, a não
ser a polêmica que se formou em torno da pintura do teto do Menino-
Deus, acrescentando ainda que ele teve mais “crédito” que seu pai.
Diante destes fatos, estamos convencidos de que a pintura
na Igreja da Boa-Hora foi mesmo decorada por Vitorino Manuel da
Serra. Como este artista nunca era citado como direto responsável das
diversas obras em que participou, parece claro que também nesta igreja
teria contribuído de alguma forma, talvez como preparador tanto das
cenas figurativas como dos elementos de falsa arquitetura. Não se pode
esquecer que todo o trabalho pictórico neste templo deve ter durado um

19
PORTUGAL, Fernando. Lisboa em 1758 – Memórias Paroquiais. Lisboa:
Coimbra Editora, 1974, p. 347, 350-352. Um total, portanto, de 5 tectos em
perspectiva, caídos em 1755.
20
TABORDA. Regras da arte da pintura, p. 245.
21
MACHADO. Collecção de Memórias Relativas á Vidas dos Pintores, e Escultores,
Arquitectos, e Gravadores Portugezes, e dos Estrangeiros, Que estiveram em Portugal, p.
147.
MAGNO MORAES MELLO

período muito longo, pois além da nave, tanto o coro, a sacristia e a capela
do claustro receberam intervenção pictórica. Sabe-se que estes trabalhos
de falsa arquitetura contavam com especializações, como anteriormente
discutimos. Vitorino deveria ser um programador de falsa arquitetura,
isto é, uma espécie de arquiteto virtual para o ilusionismo perspéctico
e, portanto, trabalharia em muitas obras, não como executor, mas como
consultor para a dinâmica das arquiteturas fingidas e/ou para ainda a
projeção destas no cimo do suporte. A Lisboa joanina estava repleta de
tetos ilusionistas e esta especialidade, a quadratura, deveria ser bastante
cobiçada. Assim, entendemos, a partir do Opúsculo aqui analisado, que
os estudos e os conhecimentos de Vitorino Manuel da Serra deveriam
ser procurados com frequência.
No seu Elogio percebe-se que Vitorino Manuel da Serra era
muito requisitado para realizar esboços e preparações perspécticas pois:
A quantos (confessou a verdade) deu os riscos,
e os debuxos. Seus foram os riscos do tecto da
Igreja das Trinas no Sitio do Rato, e de algumas
Selas de architectura, e da Senhora da Oliveira
220
da Confeitaria, e finalmente em outras muitas
cazas de Cavalheiros, e Títulos, dos quais não
faço enumeração, por não abusar da paciência
dos leitores. Poucos são os Mosteiros Religiosos,
em que se não devissem obras suas. Nenhuma
se fazia no seu tempo, em que ele não assistisse,
ou para a direcção, ou para o exercício. A sua
pintura imitou muito, senão excedeu a de Vicente
Bacarelli (...) ele foi o primeiro, que em Lisboa
introduziu o ornato franzes (...) deste novo estilo
pintou muito nas casas de Custódio Vieira e lhe
deu os riscos para azulejos, empresa da sua ideia
e novo primor do seu discusso.22

Sem dúvida um artista que dominava a prática e o exercício da


perspectiva e da preparação de projetos decorativos diversos, mas que
também procurou dominar as práticas teóricas da época, pois, como
dissemos anteriormente, estudava em textos não apenas portugueses.
Não se pode transcurar que na pintura de tetos com simulação de
elementos construtivos a concepção teórica era um fato primordial. Aliás,

22
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 15.
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

o biógrafo refere com admiração que ele era especulativo incansável, que
lia os melhores Autores Castelhanos no original23. Não se pode transcurar
que na pintura de tetos com fingimento de arquiteturas a concepção
teórica era um fator essencial. Sendo Vitorino um exímio preparador
de cenas, naturalmente, conhecia e tinha contato no meio artístico para
satisfazer as suas curiosidades e responder a questões que por ventura
não dominasse completamente. Admitindo-se que este decorador
conhecia as práticas usuais da quadratura e as dificuldades que tal tipo
de pintura implicava, não admira que essa fundamentação tratadística
rigorosa aliada à experiência, e à sua natural generosidade, fizeram dele
um artista popular entre os colegas.
Apenas como menção, é significativo lembrar que mesmo
no painel retabular ou nas grandes telas de caráter cenográfico que
em momentos de festa eram encomendados pela Igreja, exigia uma
cuidadosa e direta atenção por parte do pintor, muitas vezes com três
ou quatro colaboradores que seriam naturalmente os seus discípulos.
Ainda mais, a uma pintura decorativa seja no teto ou nas paredes,
221
além do figurista e do quadraturista eram necessários mais quatro
ou cinco assistentes, sem pensar no carpinteiro para o andaime, os
preparadores de cenas trabalhando diretamente com o quadraturista,
os douradores e os aprendizes diversos. Não se pode olvidar que a
quadratura seja ela disposta em tetos planos, curvos ou cupulados
e mesmo as decorações parietais criando ambientes fictícios, eram
tarefas complexas e exigiam cuidado, pois envolviam muito tempo
(e isto muitas vezes os decoradores não tinham, pois os tetos eram
encomendados para festas específicas e deveriam estar prontos para
tal comemoração) e eram demasiados dispendiosos. Tudo deveria
ser pensado com atenção, desde as proporções do risco, a escolha da
ossatura arquitetônica, com seus fustes, colunas, entablamento, balcões
e balaustradas, que receberiam o núcleo figurativo (figuras compostas
em grupos historiados, ou então figuras isoladas com seus atributos

23
Decerto alusão às obras de Antônio Palomino (1715) e, sobretudo, do tra-
tadista valenciano padre Vicente Tosca (Compendio Mathematico, 9 tomos, 1707-
1715), matemático oratoriano que divulgava as construções teóricas dos pa-
dres Dubreiul e Dechales, um dos maiores perspécticos franceses.
MAGNO MORAES MELLO

envolvidas em histórias ou narrativas entre o cimo do suporte no tema


central, com outras de segundo plano dispostas sistematicamente nos
ângulos da membrana arquitetônica), até elementos mais simples da
decoração como, por exemplo, flores, festões, vasos de flores, pedestais,
cartelas, enfim, tudo bem montado até a etapa final como refinamento
pictórico para então desmontagem do andaime.
Eram tarefas complexas, a exigir cuidado além de serem muito
custosas.24 O seu círculo de contatos era amplo e muito variado, pois:
Até para armadores (de programas de decorações
efêmeras para festas, sem dúvida) dava os riscos.
Seria agravo da fama não ser atendido como oráculo
o mesmo que se respeitava único mestre. Manifestem
os Pintores do azulejo quantas vezes o atenderam, e
receberam da sua própria mão os riscos, sem que nisso
interessasse alguma conveniência (...) da sua escola saíam
grandes discípulos. Eles sejam oculares testemunhas do seu
génio, e da sua brandura.25

O fato de Vitorino Manuel da Serra elaborar e fornecer desenhos


para aplicação nas cenas da pintura do azulejo azul-e-branco, é uma
222
prova da grande capacidade inventiva e da carência que alguns artistas
experimentavam diante das dificuldades da pintura decorativa (queremos
dizer simulação espacial): seja no teto ou nas paredes. Poderíamos
pensar em Vitorino como um decorador capaz de se inserir não só no
campo da pintura a óleo ou a têmpera, mas também de participar como
preparador ou debuxador de cenas, especialmente concebidas para a
pintura de azulejo, adaptando gravuras ou dimensionando-as à escala.
Uma questão a se pensar seria a relação deste preparador de cenas e
Antônio de Oliveira Bernardes, artista de alta reputação na pintura de
grandes painéis a óleo, mas também afamado como pintor e mestre na
decoração do azulejo historiado. É possível conjecturar que este artista
recebesse riscos de Vitorino? Uma especulação interessante, mas muito
complexa de se responder. Fica aqui uma provocação para futuras
deduções. Estes fatores provam a relação íntima e preciosa que existia

24
SASSETTI, Carlo. Il Cantiere di Francesco Natali e Alessandro Gherardini.
In: Arditezze Prospettiche e spazio d’illusine. Livorno: Sillabe, 2001, p. 21.
25
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 17.
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

entre pintores e decoradores, sendo esta última uma categoria com


grande procura nesta primeira metade do século XVIII. A atividade de
Vitorino Manuel da Serra não esteve, pois, limitada apenas à execução de
esquiços, na pintura de painéis ou grandes decorações, mas estendeu-se
também à azulejaria, um fato que julgamos inédito e importante referir.
Segundo o seu panegirista, também pintou carruagens, foi exímio
retratista e pintor de paisagem, e inventor de detalhes arquitetônicos:
Não só aos Pintores dava os seus, quero-
lhe chamar, científicos riscos, mas até aos
Arquitectos, sujeitos, que por si mesmos querem
fazer figura, comunicava as suas doutrinas, e
participava os seus documentos.26

Estas informações nos fazem entender Vitorino Manuel da Serra


como um artista muito conceituado e versátil, por todos consultado,
desde pintores e decoradores até arquitetos e armadores, como vimos
anteriormente. Este contexto singular na cultura artística portuguesa se
forma nos anos 20, do século XVIII, e tem toda a primeira metade
do mesmo período para evoluir, tornando-se um dos momentos mais 223
dinâmicos de toda a história da arte em Portugal.
Assim, é significativo saber que o leque de intervenções
praticadas por Vitorino era tão amplo, alargando do azulejo aos coches,
como ficou claro nos comentários feitos pelo seu panegirista, pois, de
acordo com ele:
As muitas carruagens, que pintou, que em pouco
campo compendiou excelente ideia (...) as mais
primorosas, são ou as que ele pintou, ou as que
lograram os seus riscos.27

Quantas das atribuídas ao francês Quillard (c. 1730) não terão


saído de seus pincéis? Outro questionamento que merce ser pensado
com mais rigor. Aqui lança-se apenas um ruido de um universo mais
amplo.

26
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 18.
27
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 18.
MAGNO MORAES MELLO

Jerônimo de Andrade afirma que Vitorino fornecia científicos


riscos não só a pintores como a arquitetos. Podemos interpretar aqui
“riscos científicos” como sendo uma estrutura perspetivada de
falsos elementos arquitetônicos para serem aplicados por um pintor;
mas também a preencher as necessidades de um arquiteto, seja no
revestimento principal da construção ou no equilíbrio da estrutura real
com a estrutura pictórica. É a confirmação de que a cultura artística
deste período permitia tal situação a nível teórico e que Vitorino era
capaz de integrar-se a este momento, e aí encontrar o seu lugar pessoal
ligando à prática pictórica com o evoluir da ciência e do conhecimento
intelectual do que naquela época se fazia no ambiente da corte. Estamos
diante de um pintor que representou o melhor conhecimento da
perspetiva e da sua múltipla aplicação em Portugal durante o período
joanino. Se olharmos bem a lista de todas as igrejas onde o seu olhar foi
determinante, compreenderemos facilmente que praticamente nenhum
224 teto era pintado, seja de brutesco ou de falsas arquiteturas, sem que
Vitorino Manuel da Serra não tivesse uma participação efetiva. Não
importa se somente dirigiu ou apenas forneceu o seu esquiço: o mais
significativo é que a sua presença era praticamente obrigatória.
Infelizmente, com a catástrofe de 1755, não conhecemos
dessas intervenções senão o teto da nave da Igreja do Menino-Deus.
Fica, porém, aberto o caminho para futuras atribuições. Entretanto, não
é suficiente para um real conhecimento dos seus modelos e preceitos
ou da sua real capacidade como quadraturista, já que as informações
acerca da execução da pintura deste e de tantos outros templos ainda
estão cobertas por uma série de interrogações. De acordo com o seu
elogiador, sabemos que também era capaz de criar cenas figurativas,
pois, descontado o excesso, a sua cultura estética não deixa dúvidas:

Quem com reflexão visse, e admirasse a Vitorino


Manuel da Serra pondo na taboa o pincel para o
desempenho do Racional nas figuras humanas,
não repararia nos quadros de Lanfranco, e
de Urbino, e se olhassem para a empresa do
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

sensitivo, em que se debuxavam aves, feras, e


animais de toda a espécie, não se lembraria dos
discípulos de Rubens, de Roza, e Martin de Voz,
e Azneira (sic).28

Estas observações confirmam a forte tendência de Vitorino


Manuel da Serra para dominar a prática do desenho de figura humana e
de estruturas de falsa arquitetura. Uma prática que podia ser aplicada na
elaboração de pinturas de painéis onde o tema poderia ser a representação
de paisagens arquitetônicas (não necessariamente pintura de ruínas) ou a
elaboração de cenas perspetivadas não só para a aplicação em tetos, mas
também à construção de espaços cenográficos.
Apesar do seu panegirista não referir intervenções como
preparador de cenas para o teatro, é possível que tenha realizado algumas
cenografias (por exemplo, no “Pátio das Comédias” anexo ao Convento
da Boa Hora); não se deve esquecer que a posição do quadraturista
encontra eco na do cenógrafo, sem contar que durante esta primeira
metade do século XVIII a cenografia em Portugal apresentava uma
expressão muito significativa, principalmente junto à corte de Lisboa. 225
Quando se fala em preparações cenográficas, incluem-se, além
do tradicional teatro, as pequenas cenografias para festas particulares
em casa de alguns nobres, as festas religiosas nos dias santos em ocasião
especial, os tradicionais fogos de artifício que frequentemente se
realizavam em Lisboa, numa complexidade típica da arquitetura efêmera.
Naturalmente são especulações nossas com base na real capacidade
produtiva de Vitorino.
Vitorino Manuel da Serra em sua curta existência deixou
seguidores diretos que trabalharam com ele em tantas igrejas lisboetas,
como anteriormente foi referido. Em especial, a nave do Menino-Deus,
onde trabalhou com Jerônimo da Silva e João Nunes do Abreu, o
primeiro grande figurista desta fase joanina, o segundo considerado por
muitos como um dos melhores perspéticos da época.

28
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 16. Não conseguimos identificar este pintor Azneira (Asniére?), mas
é de notar que todos os modelos citados – Lanfranco, “Urbino” (Rafael ou
Barocci?), Rubens, Salvatore Rosa, de Vos – foram muito divulgados pela gra-
vura.
MAGNO MORAES MELLO

São de mencionar os trabalhos de decoração que Vitorino


Manuel da Serra realizou juntamente com Vicente Nunes, o fiel
colaborador de Antônio Simões Ribeiro, para a Igreja da Misericórdia
de Abrantes entre os anos de 1727 e 1728, orçados em 140.000 réis, mas
que infelizmente foram todos perdidos.29 Coincidindo com trabalhos de
Simões Ribeiro em Santarém, cidade próxima de Abrantes, denunciam
a estreita relação entre esses pintores e um mesmo modelo decorativo.
A novidade instituída em Lisboa passa-se rapidamente para Santarém, e
atinge a Vila de Abrantes.
A sua influência parece não ter ficado presa à época em que viveu,
pois Vitorino Manuel da Serra, além de influenciar artistas com quem
trabalhava, influenciaria igualmente uma segunda geração de decoradores
de tetos e perspéticos, onde o seu panegirista pode ser considerado o
nosso melhor exemplo. Artista que conheceu Vitorino, Jerônimo de
Andrade foi também seu seguidor e discípulo. Lembre-se aqui que
Vitorino foi mestre pintor não somente de espaços perspetivados, mas
226 trabalhou de forma competente também na decoração de brutesco e de
até no tradicional grotesco, dando prova da convivência destes gêneros
com a novidade da quadratura.
Com a morte de Vitorino Manuel da Serra ocorrida ainda
na década de 40 do século XVIII, o formulário baquereliano pouco
ultrapassaria a primeira metade do século. Sendo ele, um pintor
fulcral para o período em questão, não só como decorador mas
também como debuxador, a gramática decorativa deste período fora
impedida de avançar já que Vitorino morre muito cedo: com 55 anos
incompletos. Acreditamos que esta linguagem poderia perdurar por
mais tempo e, quem sabe, permitir que na segunda metade do século
XVIII se conhecesse um pouco mais da antiga gramática baquereliana,

29
Cf. Documentos do Arquivo Histórico Municipal de Abrantes, Santa Casa da
Misericórdia de Abrantes, Caixa 1, doc. nºs. 36 e 39. Esta informação foi primei-
ramente citada em SERRÃO, Vítor Serrão; MELLO, Magno Moraes. A pin-
tura de tectos de perspectiva arquitectónica no Portugal Joanino (1706-1750).
In: A Pintura em Portugal ao Tempo de D. João V – 1706-1750 – Joanni V Magnifi-
co. Lisboa: Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico
(IPPAR), 1994, p. 94 e ainda MELLO, Magno Moraes. Os Tectos Pintados em
Santarém durante a Fase Barroca, Santarém, Câmara Municipal, 2001, p. 145.
TREINAR A MENTE E A PRÁTICA DO DESENHO...

responsável pela grande ruptura com a planimetria das cenas decorativas.


Entretanto, não se pode esquecer que outra importante figura desta fase
e que também poderia levar este modelo para além do meio do século
XVIII, desapareceria alguns anos mais tarde. Trata-se de outro grande
preparador de cenas perspectivadas: Antônio Pimenta Rolim – a quem
falta, no entanto, a ânsia de teoria que parece mover Serra.
Naturalmente, outras linguagens e outros modos desviaram
o cenário da pintura decorativa de tetos em Portugal para uma nova
postura. Todos os artistas que tiveram um contato direto com Vincenzo
Bacherelli, ou foram discípulos daqueles, morreriam até o Terramoto de
1755. Isso fez com que não se permitisse uma direta continuidade, mas
uma espécie de fusão entre os modelos interpretativos e desagregação do
sistema baquereliano na preparação de cenas perspectivadas desta fase
inicial com uma nova geração, num novo formulário de que Jerônimo de
Andrade e outros souberam dar testemunho.
Segundo as palavras do seu panegirista, Vitorino Manuel da
Serra morreu pobremente aos 9 de abril de 1747: 227

Assim continuou, e continuava, até, que cheios


dos dias da sua vida, o acometeram umas dores
no peito, a que os Médicos deram o nome de
asma, mal, a que a Medicina ainda não soube
descobrir eficaz remédio; porém à custa de
vários lenitivos; aplicados às ofendidas partes,
foi convalescendo; mas pouco tempo durou a
melhoria, porque repetindo-se-lhe as dores com
maior força (...) Portugal perdeu da Pintura o
maior herói, que não será fácil descobrir-se nos
tempos futuros (...) como estava necessitado,
por causa das moléstias continuadas, e não tinha
com que se pudesse formar a pompa do enterro,
não faltou um animo piedoso (...) para restituir o
corpo à sepultura, o qual foi acompanhado com
os artífices da excelente Arte da pintura até a
Freguesia de N. S. Do Socorro, em que descansa
sem mais lembranças que a sua fama, sem mais
epitáfio que a sua memória.30

30
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 21-22.
MAGNO MORAES MELLO

Jerônimo de Andrade dá-nos uma pequena descrição física de


Vitorino Manuel da Serra:

Era de estatura proporcionada, simetria grossa,


os olhos, grandes, nariz, e beiços grossos, e a cor
trigueira. Este é o varão que lastimamos defunto,
e que tem causado tanto sentimento.31

228

31
ANDRADE. Elogio Fúnebre do Insigne Pintor Vitorino Manuel da Serra, Lisboa,
1748, p. 23.
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

Capítulo 14

JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE


MENDONÇA: DE BRAGA AO TIJUCO. REFLEXÕES SOBRE
UMA PINTURA PERDIDA

Eduardo Alberto Pires de Oliveira


Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani

No Arraial do Tijuco, nas Minas Gerais do século XVIII, se fi-


xou um artista bracarense que veio a ser uma das figuras mais instigantes
da pintura colonial. Um pintor ilusionista requintado emergiu das recen-
tes pesquisas como um artista completo, hábil em diferentes linguagens
e um homem influente no seu tempo. Com uma suposta formação eru-
dita trazida da sua terra natal, exerceu na colônia muitos papéis. Guarda-
-mor, pintor, arquiteto, administrador de trabalhos artísticos, professor 229

de pintura. De família de poucos recursos em Braga, tornou-se abastado,


atuante e com uma especial mobilidade nas esferas sociais, algumas de-
las habitualmente intransponíveis. Trouxe para o Tijuco uma pintura de
quadratura, sem igual na região das Minas. Esta pintura refinada traz a
interrogação sobre a sua formação em Braga, sobre suas influências e
sobre os fatores que poderiam ter determinado as suas escolhas artísti-
cas. O que ele teria vivido e visto em Portugal e como teria se formado
seu gosto e seu olhar? Há a possibilidade de que esse gosto e esse olhar
tenham se educado e se apurado a partir de vivências específicas em
Braga, especialmente com os jesuítas.
Apesar dos esforços empetrados para se conseguir informações
sobre a vida de José Soares de Araújo em sua cidade natal, pouco se
pode inferir. Ali, as informações sobre esse artista são escassas. Nada foi
encontrado relativo a uma possível formação artística ou a qualquer do-
cumento que o vinculasse à pintura ou qualquer outra linguagem artís-
tica, tampouco qualquer documento relativo ao seu deslocamento para
o Brasil foi identificado. Não há registros de datas precisas para esses
eventos. A pressuposição da sua formação artística antes de chegar à
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

Colônia é cabível, uma vez que o requinte da sua pintura assim o sugere.
Não só o requinte, como a exclusividade de determinadas características
extremamente eruditas, sem igual nas Minas Gerais. Tendo em vista o
fato de ter-se ele dedicado à pintura pouco tempo após sua chegada
à Colônia, ou pelo menos, pouco tempo depois da data do primeiro
registro da sua presença no Arraial do Tijuco, atual cidade de Diaman-
tina, levanta-se a hipótese de que este pintor tenha se formado antes da
grande viagem.
É sabido que, em Braga, no século XVIII, ao lado de um forte
comércio e indústria, havia também oficinas nas quais se podem supor
que o pintor bracarense pudesse ter-se instruído, quiçá como um artis-
ta completo: pintor, dourador, entalhador e arquiteto. A existência de
artistas que trabalhavam em distintas atividades como desenho, talha,
arquitetura não eram incomuns. No entanto, nada se pode encontrar
que comprovasse que José Soares tivesse frequentado alguma dessas ofi-
cinas, ou que tivesse se instruído nas artes de alguma maneira formal.
Mesmo ali na sua cidade natal em Portugal, o único documento encon-
trado foi a sua certidão de batismo na Igreja de São Victor, constante do
230
arquivo distrital.1
A despeito da carência de documentos e de informações pre-
cisas, a compreensão da sociedade bracarense do século XVIII, pode
nos dar pistas sobre o que o artista teria vivido em sua terra. A cidade
de Braga foi sede da mais antiga diocese portuguesa. Os arcebispos dali,
até o século XVIII, ocuparam lugar da maior importância. Foi ainda o
centro da região mais populosa de Portugal. Neste contexto, a arte nas
suas distintas linguagens teve uma importância considerável.
A respeito da sua saída de Portugal, ou ainda de uma possível
concessão de autorização para viagem, não foram encontrados quais-
quer registros. Na sua certidão de batismo tem-se a informação de onde
morava a famíla Soares de Araújo em Braga no momento do nascimen-
to de José Soares. Conquanto não exista uma definição do tipo social do

1
Esse documento fora já identificado e transcrito por Antônio Fernando B.
Santos em sua dissertação de mestrado intitulada A Igreja de Nossa Senhora do
Carmo em Diamantina e as Pinturas Ilusionistas de Jozé Soares de Araújo: identificação
e caracterização, que foi apresentada no Departamento de Artes Plásticas da
Escola de Belas Artes da UFMG em 2002. Em Investigação recente in loco
verificamos a inexistência de outros documentos quaisquer naquela cidade
referentes a José Soares de Araújo.
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

comerciante bracarense, é possível imaginar como teria sido exterior-


mente a casa que os abrigava. A rua onde moravam então não possuía
casas condizentes com aquelas de comerciantes mais abastados – com
varandas e coberturas de gelosias. Essa informação é definitivamente su-
gestiva da situação socioeconômica da sua família. A referida rua, segun-
do consta no documento de batismo, é a rua Nova do Bico. No século
XVIII, essa era uma rua periférica na cidade de Braga: uma via de acesso
à estrada que dava para o norte. De uma maneira geral, as casas ali eram
baixas e pequenas, do tipo porta/janela. Dentre as casas do período, esse
tipo era sem dúvida o mais simples. Ali só habitariam pessoas pobres.
Tratava-se realmente da periferia da cidade. A rua com a qual ela se en-
tronca e que dá acesso ao centro da cidade, chama-se rua das Palhotas,
um nome bem sugestivo, que ainda hoje é considerada uma rua pobre.
No que concerne à sua vida na Colônia, o primeiro registro
encontrado data de 15 de abril de 1759. Aqui, referimo-nos à apresen-
tação da sua patente de irmão na Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Carmo2. Alguns anos mais tarde, em 19 de agosto de 1766, ele recebeu a
patente de guarda-mor substituto3. Ser guarda-mor nas Minas, não exigia
231
como condição sine qua non uma situação de privilégio social ou econô-
mica anterior. Desta forma, uma pessoa de poucas posses poderia as-
sumir este cargo, que pelas suas atribuições significava um considerável
poder. Guarda-mor das minas e Águas Minerais foi um cargo criado em
1679 cuja nomeação se dava pelo Provedor das Minas. O cargo acumula-
va várias funções, dentre as quais a concessão de licença a quem quisesse
se dedicar a descobrir minas4.
Ao lado da pressuposição de que José Soares não fosse um ho-
mem rico em Portugal, tem-se a informação documentada de que no Ti-
juco ele se tornou um homem influente e acumulou apreciável número
de posses. O seu testamento, que traz a data de 20 de abril de 1789, é um
documento que afiança uma situação socioeconômica nada ordinária no

2
Cf. Arquivo da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Diamantina.
Livro dos Irmãos Professos desta Venerável Ordem 3ª de Nossa Senhora do Monte do
Carmo deste Arraial do Tijuco (1759). fls 5v.
3
Cf. Arquivo Público Mineiro (APM), Códice nº 147 (1766). Registro de Provisão
e Nombramentos, Carta Patente passada em Vila Rica e registrada às folhas 82.
83 v.
4
SALGADO, Graça et ali. Fiscais e Meirinhos: administração no Brasil colonial. Rio
de Janeiro: Editora Nova Fronteira/INL, 1985.
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

Tijuco. No referido testamento, que se encontra na Biblioteca Antônio


Torres em Diamantina, após declarar que é natural da cidade de Braga,
filho legítimo de Bento Soares e de Tereza de Araújo já falecidos e ainda,
que nunca fora casado nem tivera filhos, ele informa que possui bens
como casas, uma chácara, uma lavra e uma roça. Igualmente ilustrativo
de sua riqueza, e de grande interesse para a temática aqui abordada, é a
posse de 22 escravos (dentre os quais se destacam João Camundongo
com princípio de pintar e Vidal Mulato, pintor e dourador) e ainda ou-
tros objetos de ouro e prata. A documentação é bastante eloquente no
sentido de comprovar a sua boa situação socioeconômica na Colônia, ao
contrário do que se pode supor sobre sua família em Portugal.
Se abordarmos especificamente a pintura, temos poucos ele-
mentos que nos apontem características claramente ou especificamente
bracarenses no seu trabalho. É exatamente sobre um desses elementos,
poucos, mas eloquentes, que trataremos aqui. A dificuldade vai além da
lacuna documental. Por ter sido Braga uma cidade bastante rica e sede
de um arcebispado de grande importância – há entre os arcebispos de
Braga membros da Família Real (informações constantes no site da dio-
232
cese de Braga5, como D. Fernando da Guerra (1416-1467), Cardeal-Rei
D. Henrique (1533-1540), D. José de Bragança (1741-1756) e D. Gaspar
de Bragança (1758-1789) – a renovação artística se fez notar. Assim,
as igrejas em sua maioria não mantiveram suas pinturas do período do
Barroco ou do Rococó. Com isso, fica restrita a possibilidade de inte-
lecção a respeito dos tipos de pinturas que existiam ali. Que pinturas ele
teria visto em Portugal? Que outras imagens poderiam ter influenciado
suas pinturas? Fato é que ele escolheu a pintura de falsa arquitetura, ou
quadratura. É esta pintura, com o consequente e deliberado engano do
olho que o pintor bracarense leva para o Tijuco. Os efeitos monumen-
tais e impressionantes da quadratura estão relacionados à afirmação e
imposição de um determinado poder6. Atravessando o Atlântico, levada
para a Colônia portuguesa na América, esteve sempre associada à busca

5
ARQUIDIOCESE DE BRAGA. Disponível em: <http://www.diocese-
-braga.pt/historia>. Acesso em: 14 de outubro de 2014.
6
RAGGI, Giuseppina. Italia & Portogallo: un incrocio di sguardi sull’arte
della quadratura. In: G. Sabatini, M.G. Russo, A. Viola, N. Alessandrini (org).
Di buon affetto e commerzio: relações luso-italianas nos séculos XV-XVIII. Lis-
boa: 2012.
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

do apreço público por parte das ordens religiosas e da sua intenção de


afirmação de superioridade de umas sobre as outras. Destarte, pode-se
pensar que a sua escolha tenha como um dos fatores determinantes a
rivalidade entre as ordens religiosas terceiras. Na figura abaixo se pode
ver a comparação entre o detalhe de pintura feita por ele no Tijuco, uma
pintura que ele teria visto em Braga (da qual se falará mais adiante) e
uma imagem do Tratado de Pintura e Arquitetura de Andrea Pozzo:

233

Figura 1: Comparativo entre Forro da nave central do Carmo de Diamantina,


pintado por José Soares de Araújo;
Fonte: Fotografia de Eduardo Orlando.
Pozzo, Andrea. Prospettiva de Pittori e Architetti. Parte Prima;
Fonte: POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum Andreae Pu-
tei e Societate Jesu. Pars Prima. In quâ docetur modus expeditissimus delineandi
opticè omnia que pertinent ad Architecturam. Romae. MDCXCIII. Typis Joan-
nis Jacobi Komarek Bohemi apud S. Angelum Custodem
Coro alto da Sé de Braga pintado por Manuel Furtado.
Fonte: Fotografria de Manuel Carneiro do Coro alto da Sé de Braga pintado por
Manuel Furtado. Arquivo Manoel Carneiro ASPA/Museu Nogueira da Silva.

Em Braga, como foi dito, a renovação foi possível pela impor-


tância e riqueza da sua arquidiocese. Neste sentido, pouco sobrou do
que havia como pinturas de tetos nas igrejas em se tratando do período
em que ali habitou José Soares de Araújo. Existe uma fotografia, feita
por Manuel Carneiro, em 1903 c., constante no seu arquivo no Museu
Nogueira da Silva em Braga, que retrata o forro do coro alto da Sé desta
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

cidade. Esta pintura, feita por Manoel Furtado de Mendonça entre 1737
e 1738, veio abaixo por volta de 1960, sendo impossível a sua recupera-
ção. Apesar da má qualidade da imagem, pode-se notar uma pintura de
falsa arquitetura, com elementos que também se encontram na pintura
do bracarense, e, remetem inegavelmente ao trabalho do jesuíta Andrea
Pozzo. É notável a grande semelhança entre o desenho e a volumetria
do falso entablamento da pintura da Sé de Braga, da pintura setecentista
da nave central da Igreja de Nossa Senhora do Carmo e do desenho do
Tratado de Pintura e Arquitetura do jesuíta e ainda do seu desenho que se
encontra The National Gallery, em Washington. Trata-se da Illusionis-
tic Architecture for the Vault of San Ignazio, 1685/1690. (Cf. Figura nº02.)
Outras semelhanças também podem ser citadas, como a utilização das
falsas colunas aos pares, presente tanto na obra de um quanto de outro.

234

Figura 2: Comparativo entre Andrea Pozzo, llusionistic Architecture for the


Vault of San Ignazio, 1685/1690.
Fontes: Pen and gray and brown ink with gray wash on two joined sheets of
heavy laid paper overall, in The National Gallery, Washingtone a Fotografria
de Manuel Carneiro do Coro alto da Sé de Braga pintado por Manuel Furtado.

Não é de admirar que só em data relativamente recente tenha


sido identificada esta pintura imensa que era o motivo de uma fotogra-
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

fia. É certo que se conheciam vários exemplares dessa fotografia, uns


em mau estado e uma em razoável condição de conservação; também se
sabia que o seu autor era um comerciante de Braga, Manuel Carneiro. E
com alguma especulação poder-se-ia localizá-la algures, talvez como um
dos tetos da Sé Catedral de Braga.
Tudo, porém, ficaria resolvido quando fizemos uma inves-
tigação na Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, no
decorrer de obras de intervenção. As dúvidas ficaram todas resolvidas
quando pudemos compulsar o enorme dossiê da Catedral, um restauro
iniciado em 1931 e que se estenderia por algumas dezenas de anos, tal a
complexidade da intervenção e a extensão dos trabalhos.
É importante aqui balizar-se, muito rapidamente, a filosofia dos
restauros que, naquela data, começaram a ser levados a cabo, de forma
sistemática, em Portugal.
A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais foi
criada e desenvolvida em pleno período de ascensão do chamado Esta-
do Novo. Com uma filosofia que entroncava noutras que remontavam
vários séculos atrás, os monumentos mais importantes do país eram ou 235
os mais antigos ou, então, os que estavam ligados aos períodos ou per-
sonagens que tinham tido a maior relevância na história de Portugal.
Num país profundamente católico – quase se pode dizer, pese o exage-
ro, governado pela Igreja Católica – em que o todo-poderoso primeiro-
-ministro Salazar tinha sido seminarista, a Sé Catedral de Braga era, por
essa razão, considerada um dos monumentos mais relevantes do país.
Não será, portanto, de admirar, que o restauro da mais antiga
Catedral de Portugal tenha sido um dos primeiros da recém-criada Dire-
ção-Geral, e que tenha ido no sentido de lhe devolver todas a aparência
pétrea e, mais ainda, uma enorme verosimilhança medieval, sobretudo
românica. Daí que se estranhe que neste restauro se tenha preservado o
extraordinário conjunto do coro alto, do período Barroco. Esse restauro
deu ao edifício a aparência que ainda hoje mantém, a de um edifício
sobretudo românico.
O coro alto foi desenvolvido em pleno período de Sé Vacante,
isto é, num momento em que já há alguns anos em que a Sé não estava
sendo governada por um arcebispo. Esse período foi muito longo, de 13
anos, entre 1728 a 1741. Nos anos em que governou o arcebispo ante-
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

cessor, D. Rodrigo de Moura Teles (1704-1728) e nestes de Sé Vacante, a


Sé transformou-se interiormente: as pedras, isto é, as paredes exteriores
mantinham a estrutura medieval e renascentista, o interior foi profunda-
mente alterado, recebeu um sem fim de retábulos, as paredes laterais fo-
ram parcialmente cobertas com altos alizares de azulejos e todos os tetos
foram pintados. Uma nova reforma operada na década de 1780 destruiu
grande parte desta obra barroca, mas não tocou em nada do coro alto,
talvez pela excepcional qualidade das obras que o compunham.
Não é, portanto, de admirar que mais tarde, no restauro dos
Monumentos Nacionais também não se tenha mexido nesta parte do
templo. Mas, se não mexeu, se não alterou, também não se fizeram obras
de beneficiação. Por essa razão não é de admirar que um dia, em março
de 1960, o grande teto do coro-alto tenha desabado, perdendo-se com
ele a enorme pintura de perspectiva que Manuel Furtado de Mendonça
tinha executado no final da década de 1730 e que a fotografia que agora
se apresenta desvenda.
Valeu para a preservação da sua memória as fotografias que no
236
início do século XX Manoel Carneiro tinha feito e, na década de 1930, o
inventário fotográfico que Domingos Alvão fizera para os Monumentos
Nacionais, como natural trabalho prévio antes da sua intervenção. Veja-
-se abaixo na figura número três:

Figura 3: Fotografria de Manuel Carneiro do Coro alto da Sé de Braga pintado


por Manuel Furtado.
Fonte: Arquivo Manoel Carneiro ASPA/Museu Nogueira da Silva.
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

Valeram apenas as fotografias porque desta pintura não ficaram


nenhuma memória escrita. O Álbum da Sé de Braga, editado por Manoel
Carneiro7, era apenas fotográfico, não mostrava nenhuma foto do coro
alto. A monografia A Cathedral Santa Maria de Braga, editada em 1922, da
autoria do Padre Manuel Aguiar Barreiros, então o responsável pela Sé,
apenas referia as pinturas muito superficialmente:

Tal é a exeburância das talhas, dos dourados, das


pinturas decorativas e da riqueza de madeiras que
enchem nada menos do que os dois tramos mais
próximos da entrada principal8.

Mais tarde, já em 1970, Robert Smith apenas se referiu muito


levemente “à pintura em perspectiva da abóbada” do lanternim, acres-
centando depois em nota que não se conhecia o seu autor9. Além disso,
reproduziu parcialmente a pintura dos Esponsais da Virgem.
A única publicação que refere explicitamente à pintura perdida
é um recentíssimo Guia em que se lamenta a sua perda:

No teto, como que a tudo presidindo, e conti- 237


nuando a arquitetura, está uma pintura a fresco,
de arquiteturas em perspetiva, tendo no centro
uma representação dos “Esponsais da Virgem”
(1737?), da autoria de Manuel Furtado de Men-
donça. Pena é que se tenha perdido em 1960 o
grande teto que existia sobre o cadeiral, em que
continuando a usar a técnica do trompe l’oeil o
pintor usava do artifício do quadro recolocado,
no que deveria ter sido um dos mais belos e com-
plexos tetos portugueses deste estilo10.

Após a queda, o teto foi consolidado e recoberto por uma


pintura simplesmente branca. Lamentavelmente, no final da década de

7
CARNEIRO, Manoel. Álbum da Sé de Braga. Braga: Manuel Carneiro &
Irmão, s/d (cª 1903).
8
BARREIROS, Manuel Aguiar. A Cathedral Santa Maria de Braga.Estudos críticos
Archeologico-artisticos. Porto: Marques de Abreu, 1922, p. 48.
9
SMITH, Robert C. Marceliano de Araújo. Escultor bracarense. Porto: Nelita
Editora, 1970, p. 42 e p. 83, nota 6, em que diz: A pintura, representando as Bodas
da Virgem, é anónima.
10
OLIVEIRA, Eduardo Pires de; SILVA, Libório Manuel. Guia da Sé de Braga/
Guide to Braga cathedral. Vila Nova de Famalicão, Centro Atlântico, 2015, p. 114.
Na página 115 reproduz-se a pintura dos Esponsais da Virgem.
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

1990, recebeu a pintura atual sem qualquer paralelo com a pintura de


Manuel Furtado de Mendonça.
Cabem aqui algumas palavras sobre este pintor. É um daque-
les artistas de qualidades multifacetadas, que continuamente se adaptou
ao gosto do encomendador. Tanto fazia obra de douramento, como de
pintura de telas, ou de forros. E, aqui, ainda temos que distinguir entre
aqueles de caixotões de madeira, em que se pedia que se executasse uma
espécie de quadro em cada um dos espaços; os de carácter eminente-
mente decorativos como, por exemplo, os que poderiam ter feito em
Braga na capela-mor da Igreja do Convento Beneditino feminino do
Salvador, ou no Salão Nobre do Palácio dos Biscainhos; e os de arqui-
teturas de perspectiva, como o que ainda existe no lanternim sobre os
órgãos da Sé de Braga e, sobretudo, o que cobria o coro alto da mesma
Sé, infelizmente destruído em 1960.
Na Capela de Nossa Senhora da Boa Morte (Correlhã, Ponte de
Lima) pintou em 1732-1733 os caixotões do teto da capela-mor – hoje
perdidos – com um tema possivelmente mariano, no que poderá ter re-
petido a receita que utilizara no Convento Beneditino de Barcelos alguns
238 anos antes. Não excluímos que tenha sido autor de outras telas ou, muito
possivelmente, de várias tábuas mandadas fazer para ali naquele mesmo
ano; mas a documentação é pouco clara. Infelizmente não resta nenhum
dos trabalhos que ali executou11.
A sua obra é conhecida desde o ano de 1722, data em que, em
parceria com outros mestres da sua cidade do Porto, arrematou o doura-
mento da renovada Capela do Santíssimo Sacramento, na Sé de Braga12,
obra que viria a abandonar no ano seguinte13. No mesmo dia em que
largou a obra da Catedral, foi-lhe entregue o douramento do retábulo
de Santo António14, na Igreja de São Vicente, também em Braga, onde
realizou mais outro trabalho menor.

11
Sobre esta capela veja-se: OLIVEIRA, Eduardo Pires. O Santuário de Nossa
Senhora da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima (no prelo).
12
29 de Agosto de 1722 – Contrato de obra de douramento do retábulo da capela do
Santíssimo Sacramento da Santa Sé desta cidade da mesa da confraria da dita capela com
Francisco de Mesquita e outros da cidade do Porto. Arquivo Distrital de Braga (ADB).
Tabelião Público de Braga, 2ª Série, vol. 77, fls. 96v-98.
13
4 de Julho de 1723 – Distrate de escritura do douramento do retábulo do Santíssimo
Sacramento da Santa Sé Primaz dos juízes e oficiais da dita confraria.... ADB. Tabelião
Público de Braga, 2ª Série, vol. 78, fls. 102v-103.
14
IGREJA DE SÃO VICENTE. Livro 4º dos termos (1720-1736), Irmandade
de São Vicente, v. 3357. fól. 65.
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

Figura 4: Comparativo entre detalhe da Fotografria de Manuel Carneiro do


Coro alto da Sé de Braga pintado por Manuel Furtado e Andrea Pozzo, Tratado
de Pintura e Arquitetura, imagem XCIX.
Fonte: POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum Andreae Pu-
tei e Societate Jesu. Pars Prima. In quâ docetur modus expeditissimus delineandi
opticè omnia que pertinent ad Architecturam. Romae. MDCXCIII. Typis Joan-
nis Jacobi Komarek Bohemi apud S. Angelum Custodem
Fotografria de Manuel Carneiro do Coro alto da Sé de Braga pintado por Ma- 239
nuel Furtado. Arquivo Manoel Carneiro ASPA/Museu Nogueira da Silva.

Em 1725 pintou a tribuna da Igreja do Bom Jesus da Cruz, em


Barcelos15. E, no ano seguinte, esteve envolvido com obras de enorme
vulto no Mosteiro de Santa Maria de Bouro (Amares), na pintura e dou-
ramento de “quatro retábulos, frontais e forros das capelas da igreja e ca-
torze imagens das mesmas capelas e forros da igreja e cúpula, estante da
capela maior e dos altares de baixo”.16 Não sabemos, contudo, se esteve
só nesta intervenção ou se contou com a colaboração de outros colegas.
Em julho de 1728 voltou a trabalhar em Barcelos, envolvendo-
-se, de novo, em obra de caixotões, os do teto do corpo do templo do
Convento Beneditino, atual Igreja do Terço, onde também executou al-
gumas outras obras na sacristia e templo17. No ano de 1732 continuou

15
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira. Barcelos. Lisboa: Ed. Presença, 1990,
p. 67.
16
ADB. Monástico Conventual. Mosteiro de Bouro (Amares). CI 47, fól. 11v.
17
ADB. Nota Barcelos, vol. 180, fls. 134-135v. Publicado por VINHAS, Joa-
quim Alves. A igreja de Nossa Senhora do Terço de Barcelos, na história e na
arte nos inícios do século XVIII – Iconografia dos seus emblemas. Barcellos
Revista. Barcelos, 2ª série, 7, 1996, p.p. 74-75.
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

com este tipo de trabalho, mas desta vez no outro lado do rio Cávado,
na Igreja Matriz da Freguesia de Barcelinhos18. O gosto pelos caixotões
fora há muito, cerca de seis décadas, abandonado em Braga. Mas se é
certo que Braga não era um mercado que nas artes da pintura se pudesse
considerar muito sólido, em Barcelos e Barcelinhos, povoações situadas
a apenas 20 quilómetros, estava-se perante outro mercado, ainda menos
consistente, de fortíssimo cariz regional, embora a povoação de Barcelos
tivesse certa expressão numérica, podendo mesmo ser considerada uma
das maiores do Minho. Mas de um Minho profundamente rural.
Nos anos de 1730 e 1735 trabalhou em Fão (Esposende), pri-
meiro para dourar o retábulo e a tribuna do altar-mor da Igreja do San-
tuário do Bom Jesus19, depois para pintar a tribuna do altar das Almas
de outra igreja, a matriz20. Neste último ano pintou várias telas para a
sacristia do Convento da Costa (Guimarães), dos Cónegos Regrantes de
Santo Agostinho, e um retrato da rainha D. Mafalda, mulher do primeiro
rei português, D. Afonso Henriques21.
E foi no final desta década que executou a sua obra mais co-
nhecida, o douramento dos órgãos da Sé Catedral de Braga e a pintura
240 dos tetos do lanternim e coro alto, trabalho em que recebia a fabulosa
quantia de 1$000 réis por dia22, e lhe era permitido estar acolitado por
uma grande quantidade de ajudantes, que também eram pagos pelo Ca-
bido23. Entretanto, no ano de 1733 deve ter dourado, juntamente com
seu irmão Luís, um dos retábulos da Igreja da Ordem Terceira de São
Francisco, também da cidade de Braga24.

18
ADB. Nota Barcelos, vol. 850, fls. 119-120.
19
ADB. Nota Esposende, vol. 238, fls. 93-94.
20
ADB. Nota Esposende, vol. 245, fls. 101v-102v.
21
SERRÃO, Vítor. As oficinas de Guimarães nos séculos XVI-XVIII e as co-
lecções de Pintura do Museu Alberto Sampaio. In: A colecção de pintura do Museu
Alberto Sampaio: séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português de Museus,
1996, p. 106.
22
Nesta data um pintor/dourador de grande qualidade poderia receber um
valor máximo de $240 réis. A paga que recebia na Sé Catedral de Braga era,
portanto, quatro vezes superior ao máximo que se poderia pagar. Mas deve
dizer-se que estava em consonância com os valores recebidos pelos outros
dois interventores nesta obra, o escultor/entalhador Marceliano de Araújo e
o organeiro galego Simão Fontanes.
23
DODERER, Gerhard. Os órgãos da Sé Catedral de Braga. Lisboa: Barklays
Bank, 1992, p. 12.
24
Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco, Braga (AOTB). Igreja dos
Terceiros. Livro de recibo e despesa (1708-1739). fls. 70v-73.
JOSÉ SOARES DE ARAÚJO E MANUEL FURTADO DE MENDONÇA...

Pelo caminho ficaram outras duas obras maiores, estas atribuí-


das, pois ainda não se encontrou qualquer documentação sobre elas, as
dos tetos da capela-mor do Convento do Salvador e do Salão Nobre do
Palácio dos Biscainhos, ambas em Braga.
Sobre a sua vida pessoal conhece-se muito pouco. Sabe-se que
era casado com Josefa Maria, que com ele assinou no ano de 1733 uma
doação, dote e património feita a seu irmão, António da Silva Furtado de
Mendonça25. E em 1739 pediu autorização para erguer uma capela junto
à sua casa da Minhoteira, em Fragoso, Barcelos. Não resta nenhuma
memória desta capela; a casa anexa é extremamente simples26.
Ao contrário da esmagadora maioria dos demais artistas, Ma-
nuel Furtado de Mendonça já teve alguma atenção da História da Arte
portuguesa, nomeadamente de Magno Morais Melo27 e, sobretudo de
Vítor Serrão que nos dá dois apontamentos preciosos, embora curtos,
sobre a globalidade da sua obra. Num, relativo à grande pintura sobre
tela da rainha D. Mafalda, datada (1735) e assinada, diz-nos que esta
obra:
Atesta no seu desenho, caracterização minucio-
sa dos adereços aristocráticos, na paisagem e no
241
sentido quente da cor, as qualidades plásticas, in-
génuas mas de forte sabor decorativo28.

Noutro local29, destaca-o no contexto do Norte português e


assinala possíveis origens da sua pintura de perspectiva, em que natural-
mente se incluem estas duas do coro alto da Catedral – de que, porém,
não conheceu a que agora se apresenta – que remete aos modelos de
gravura francesa (tetos da Capela do Convento do Salvador e do Salão

25
11 de Setembro de 1733. Doação, dote e património que faz Manuel Furtado de
Mendonça e sua mulher Josefa Maria da freguesia de Fragoso a seu irmão e cunhado Antó-
nio da Silva Furtado Mendonça. ADB. Nota Barcelos, vol. 858, fls. 135-136v.
26
14 de Junho de 1739. Registo de papeis para a fábrica da capela que de novo quer
erigir Manuel Furtado Mendonça, mestre das pinturas da Sé Primaz, na freguesia de S.
Pedro de Fragoso com a invocação de Sta Luzia e de Jesus, Maria e José na sua quinta.
ADB. Registo Geral, vol. 98, fls. 200v-214v.
27
MELLO, Magno Moraes. Manuel Furtado e a pintura de tetos joaninos em
Braga. Minia. Braga, 3ª série, 3, 1995, pp. 157-188.
28
De Vítor Serrão vejam-se: SERRÃO, Vítor. As oficinas de Guimarães nos
séculos XVI-XVIII e as colecções de Pintura do Museu Alberto Sampaio.
In: A colecção de pintura do Museu Alberto Sampaio: séculos XVI-XVIII. Lisboa:
Instituto Português de Museus, 1996, p. 106.
29
História de arte em Portugal: o Barroco. Lisboa: Editora Presença, 2003, p.
259-260.
EDUARDO ALBERTO PIRES DE OLIVEIRA
MARIA CLÁUDIA ALMEIDA ORLANDO MAGNANI

Nobre do Palácio dos Biscainhos, ambos em Braga) e reveladores de


uma “cultura pozzesca” que se sente nas arquitecturas fingidas... em que
explora, caso raro entre nós, a “dupla perspectiva ilusória” do quadro
dentro do quadro, no painel dos Esponsais da Virgem, da Sé Catedral
de Braga, que uma corte angelical desenhada em escorço apresenta aos
assistentes.
A globalidade e variedade da sua obra mostram-nos bem qual
era o estado da pintura na mais importante metrópole religiosa portu-
guesa, o Arcebispado de Braga, situado no extremo norte do país, bem
longe da capital, Lisboa.
A fotografia de Manuel Carneiro resgata o elo entre a pintura de
Manuel Furtado de Mendonça em Braga e a de José Soares de Araújo na
Colônia portuguesa da América. Ligando-os está a presença do Jesuíta
Andrea Pozzo30 que alinhava os elementos pictóricos entre os dois pin-
tores que se manifestaram em universos tão distintos.

242

Figura 5: Comparativo entre Andrea Pozzo, llusionistic Architecture for the


Vault of San Ignazio, 1685/1690.
Fontes: Pen and gray and brown ink with gray wash on two joined sheets of
heavy laid paper overall, in The National Gallery, Washingtone a Fotografria
de Manuel Carneiro do Coro alto da Sé de Braga pintado por Manuel Furtado.

30
POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architetorum, Andreae Putei e Societate
Jesu. Pars Secunda. Ex Typographya Jo: Jacobi Komarek Boeemi, propè SS.
Vicentinum, & Anastasium in Trivio.
LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO MARTELLI...

Capítulo 15

LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO


MARTELLI E LA TENDA DI PARRASIO

Maria Teresa Bartoli

Alcune case di via della Forca, a Firenze, acquisite nel tempo


da membri della famiglia Martelli a partire dal Quattrocento, furono tra-
sformate in un nobile palazzo di famiglia nel corso del XVII secolo,
quando un matrimonio tra cugini (Marco e Maria Martelli) riunificò un
patrimonio suddiviso tra più eredi, con abitazioni diverse, ma limitrofe.
Nel Quattrocento, la strada di riferimento delle case di questa impor-
tante famiglia di mercanti era stata la via Larga (nel tratto che oggi si
chiama appunto Martelli), a pochi passi dal Palazzo dei Medici, dei quali
i Martelli erano stati stretti sodali fin dai tempi di Cosimo il Vecchio. Da
questa famiglia era provenuta Camilla, sposata con nozze morganatiche 243

dal Granduca Cosimo I, dopo la morte della prima moglie Eleonora


di Toledo1. Nel corso dei secolo XVII, XVIII e XIX il palazzo venne
trasformato e arricchito di decorazioni, per renderlo degno di accogliere
l’ingente patrimonio artistico acquisito dalla famiglia a partire dal XIV
secolo. Molti pittori furono chiamati a decorarne le stanze, tra questi
alcuni pittori di prospettiva: il Chiavistelli, la cui opera però sparì nel
corso delle trasformazioni, Vincenzo Meucci e Ferdinando Melani, negli
anni 30 del XVIII secolo. Forse a quest’ultimo si deve una singolare ed
elegante pittura dell’inganno (Fig. 1), attribuibile quel secolo, ma di igno-
to autore, situata nell’atrio del palazzo, sul muro opposto alla porta di
ingresso2 Danneggiata dall’alluvione del 1966 nella zona in basso, è stata
oggetto di un modesto restauro nella parte rovinata.

1
Per le notizie sul palazzo vedi: Francesca Fiorelli Malesci, Una casa che diventa
museo, una famiglia e la sua storia, edito da Ministero Beni Culturali, Soprinten-
denza Speciale per il Patrimonio Storico Artistico e Antropologico della Città
di Firenze, Sezione Didattica, Museo di Casa Martelli, Polistampa, 2013.
2
Vedi Fauzia Farneti, Il superamento dello spazio reale: illusionismo architettonico e
boschereccia in palazzo Martelli, in M.Teresa Bartoli Monica Lusoli (a cura), Le
teorie, le tecniche, e i repertori architettonici figurativi nella Prospettiva tra il ‘400 e il ‘700.
Dall’acquisizione alla lettura del dato, Firenze, F.U.P. 2105(?)
MARIA TERESA BARTOLI

Figura 1: L’affresco sulla parete di fondo dell’atrio di Palazzo Martelli.


Fonte: Maria Teresa Bartoli

Nella prospettiva è dipinta la prosecuzione dell’ architettu-


244
ra dell’atrio, affacciato a L su una corte scoperta, con arcate una volta
aperte, poi chiuse da vetrate. Sulla parete di fondo, ritmata da due archi
frontali che simulano di tagliare l’atrio, aprendone la prosecuzione in
profondità, quattro arcate laterali dipinte proseguono verso un’ulteriore
fondale, sul quale sono rappresentate due porte, identiche a quella esi-
stente nell’atrio reale. L’interno rappresentato sembra coperto, in manie-
ra analoga a quella esistente, da una volta a schifo lunettata. Stranamente,
lo spazio è attraversato da catene uscenti dalle imposte della volta poco
sopra i pilastri (e i peducci sulla parte di fronte). L’architettura dipin-
ta non è la scenografica ambientazione che fa da sfondo ad un evento
commemorativo o mitologico, come spesso avviene nelle architetture
prospettiche di questo periodo: protagonista del loggiato evocato è solo
il panneggio attorto di una tenda a quadri oro e nero, di cui penzola nel
vuoto, in alto, la catenaria di una fune non più in trazione. Il suo vivo re-
alismo induce ad attribuire al tema un significato pregnante, e vien fatto
di metterlo in collegamento, trattandosi di una testimonianza della città
da cui prese avvio il culto umanistico della letteratura classica, al celebre
racconto di Plinio il Vecchio, che narra che la palma del primato nella
LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO MARTELLI...

pittura fu data dal sommo Zeusi a Parrasio che aveva dipinto una tenda
così verosimile, che lo stesso Zeusi aveva tentato di alzarla.
L’immagine prospettica è molto convincente e si è deciso di
studiarla, nella convinzione di poterne rilevare la puntuale corrispon-
denza alla regola, essendo gli anni probabili del dipinto posteriori alla
trattatistica più matura.
Una volta che il dato sia stato acquisito con un fotopiano con-
forme all’originale, messo in rapporto metrico esatto con esso, si può
passare all’analisi geometrica del suo costrutto3.
Lo studio di una prospettiva d’architettura ha dei passaggi ob-
bligati: il primo è individuazione del punto principale, fuga delle oriz-
zontali ortogonali al quadro. Esso determina l’altezza dell’orizzonte.
Questa pone la prima sorpresa: in genere a Firenze essa vale circa 3
braccia (1,75 m), secondo la norma stabilita dall’Alberti nel De Pictura.
Nel nostro dipinto è invece alto circa 1,45 m (2 braccia e mezzo), altezza
poco verosimile per un uomo in piedi.
Seguendo il percorso di lettura messo a punto con buon esito
nell’analisi di molte altre opere a partire dal ‘400 è stata poi cercata la 245
griglia metrica alla quale è appoggiata la costruzione geometrica della
prospettiva. Questa è in genere offerta da elementi architettonici pre-
senti nel disegno e che vanno riconosciuti. In questo caso la ricerca è
stata abbastanza semplice, offerta dal pilastro presente sul quadro in vera
grandezza, simile ma non identico ai pilastri reali delle arcate sulla corte.
Esso è largo poco più di 48 cm, e tale misura ha un esplicito rimando al
braccio fiorentino di 58,36 cm. Il braccio ammetteva due sottomultipli:
l’oncia = 1/12 (= 4,863 cm) e il soldo = 1/20 (= 2,918 cm). 10 once
erano lunghe 58,36/12 x 10 = 48,63 cm. Una griglia con maglia di 5
once (24,32 cm) è stata quindi stesa sul fotopiano del dipinto, portato

3
Ringrazio il dottorando Nicola Velluzzi, responsabile dell’acquisizione del
dato con CANON 600D e ottica 18-55mm. In totale sono state eseguite 45
fotografie con una risoluzione di 3456 x 5184 pixel, lunghezza focale 18mm e
tempo di esposizione di 1/60 di secondo; Gli scatti sono stati presi da quattro
punti di posa a distanza di circa un metro, più uno scatto d’insieme da una di-
stanza di circa 6 metri, al fine di ridurre al minino alcune zone d’ombra. Il suo
studio geometrico sul dipinto in Prospettiva scenografica: un esempio a Firenze, in Le
teorie, le tecniche, e i repertori architettonici figurativi nella Prospettiva tra il ‘400 e il ‘700.
Dall’acquisizione alla lettura del dato, Firenze, F.U.P. 2105 anticipa la descrizione
delle caratteristiche della prospettiva dipinta, le cui implicazioni geometriche e
progettuali e i cui significati sono oggetto di questo contributo.
MARIA TERESA BARTOLI

in Autocad nelle misure reali (Fig. 2): l’immagine mostra che il disegno
dell’architettura in primo piano si appoggia in maniera persuasiva su di
essa, tra la linea del pavimento e il colmo degli archi, tra la lesena di sini-
stra e quella di destra: l’elemento frontale del pilastro cruciforme è largo
due moduli, le arcate sono ampie 9 moduli e quindi 20 moduli misurano
il campo tra la lesena dipinta del muro interno e quella del pilastro verso
il cortile. A destra, le altezze sono molto nette: 15 moduli l’altezza della
lesena, di cui 1 è dato al capitello, 4 moduli la freccia dell’arco, il cui sesto
è ribassato; l’orizzonte divide i 19 moduli dell’ordine in 6 e 13 (= 9 + 4).

246

Figura 2: La griglia metrica di progetto della prospettiva architettonca; il lato


della maglia misura 5 once di braccio fiorentino.
Fonte: Maria Teresa Bartoli

Se osserviamo le posizioni reciproche di peducci a destra e capi-


telli a sinistra, si nota che quest’ultimi, riferiti alle orizzontali della griglia
passanti per i peducci, sono tutti un po’ più alti. Una differenza di quota
nell’imposta delle volte a destra e a sinistra è presente già nel vano archi-
tettonico, e non può essere ignorata dal dipinto, che parte dagli elementi
LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO MARTELLI...

esistenti ai suoi lati. Dei due lati, quello sul quale la griglia è meglio rico-
noscibile è quello del muro continuo a destra.
Abbiamo individuato alcuni elementi in vera grandezza sul
quadro e la linea dell’orizzonte. Il procedimento classico di ricerca degli
elementi di riferimento della prospettiva chiede che si cerchi ora una
probabile distanza del punto di vista. Questa richiesta è soddisfatta se
si può individuare una figura quadrata su un piano orizzontale , con i
lati paralleli e ortogonali al quadro. Nell’impianto architettonico della
prospettiva, che non pone dubbi circa la regola compositiva del vano
dipinto (Fig. 3) si possono riconoscere i quadrati sul piano dei peducci
(supposto orizzontale) su cui si imposta la volta. Disegnando i quadrati
sul quadro, con i vertici appoggiati ai punti delle figure presenti, ne pos-
siamo tracciare le diagonali prolungandole verso l’orizzonte. Le conse-
guenze dell’operazione sono sconcertanti: le diagonali non convergono
verso l’orizzonte e lo incontrano ciascuna in un punto diverso.

247

Figura 3: Pianta dell’atrio e dell’ampliamento figurato; posizione dei punti di


vista in sequenza.
Fonte: Maria Teresa Bartoli
MARIA TERESA BARTOLI

Nelle conoscenze teoriche di prospettiva del tempo, non solo


il punto di distanza (già descritto dal Vignola e in uso da sempre), ma
anche il concorso delle rette orizzontali parallele sullo stesso punto
dell’orizzonte erano concetti ben definiti da più di un secolo a Firenze:
il secondo era chiaramente descritto nel Trattato del Cigoli, testo raccol-
to e integrato dal nipote entro i primi due decenni del XVII secolo. Il
congegno architettonico rappresentato nell’affresco di palazzo Martelli
è elegante e sapiente e denota un pittore esperto e armato di disciplina.
Dunque, come si spiega ciò che è stato rilevato?
Le immagini delle diagonali di cui ci stiamo occupando hanno
un altro notevole requisito: appaiono tra loro parallele. Quindi il punto
d’incontro sull’orizzonte non è qualsiasi, ma scaturisce dalla condizione
di parallelismo, ovvero la proporzione tra i segmenti che esse staccano
sull’orizzonte è la stessa dei segmenti che staccano sulla retta di fuga
appoggiata ai peducci. Dal punto di vista della proiezione prospettica,
tutto questo suggerisce una precisa intenzione: ognuna delle campate
248 è vista come quadrata da un diverso punto di vista, progressivamente
più vicino alla parete dipinta; rimane costante il rapporto metrico tra
la distanza e le proporzioni della campata vista. Questo significa che
avanzando dall’ingresso verso la parete, quattro punti di vista privilegiati
vedono una delle campate dipinte come quadrata sempre entro lo stesso
cono ottico.
Le distanze che ottengono in sequenza questo risultato sono di
(circa) 12m, 9,80m, 8,70m, 6,60m.
Come si progetta una sequenza di questo tipo? Stabilita la prima
profondità, disegnata la diagonale del primo campo, vanno poi tracciate
le parallele ad essa e in tal modo si determinano gli spazi dei campi suc-
cessivi. Questo procedimento, allontanandosi dalla regola prospettica,
aumenta la superficie del quadro compresa tra il lato frontale del primo
quadrato e il lato posteriore del quarto. La parete di fondo è molto ridot-
ta e il suo profilo superiore si avvicina all’orizzonte (Fig.4). Supponiamo
che fosse stata seguita la regola e che l’orizzonte fosse stato posto all’al-
tezza ragionevole di 7 moduli (1,72 m): la distanza tra questo e il profilo
superiore del dipinto sarebbe stata circa pari all’attuale. Dato l’anomalo
LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO MARTELLI...

percorso seguito, per conservare la distanza del profilo superiore dall’o-


rizzonte questo deve scendere di un modulo.

249

Figura 4:
A. Schema della prospettiva con i tracciati delle diagonali delle campate.
B. Schema della prospettiva con punto di vista unico e orizzonte ad altezza
d’uomo.
Fonte: Maria Teresa Bartoli

Il pittore ha deciso che se il primo peduccio aveva lo spigolo an-


teriore sul filo della griglia alto 9 moduli sull’orizzonte, l’ultimo doveva
avere lo stesso spigolo sul filo della griglia alto 4 moduli sull’orizzonte, a
sua volta alto 6 moduli da terra. Nello spazio di 5 moduli dovevano esse-
re sistemati 4 intervalli. Come si realizza questa operazione geometrica,
che non ha più niente a che vedere con le operazioni proiettive?
L’algoritmo che esprime il risultato da raggiungere è il seguente:
se m è la distanza del filo anteriore del primo campo dal corrisponden-
MARIA TERESA BARTOLI

te del secondo, questo disterà dal filo anteriore del corrispondente del
terzo campo m/a (dove a è un numero), il terzo disterà dal quarto m/
a2, il quarto disterà dal quinto m/a3. La somma m + m/a + m/a2 + m/
a3 deve essere = 5. Si tratta di una equazione in 2 incognite, quindi è ne-
cessario avere una ulteriore condizione. Questa la cerchiamo sul dipinto,
sul quale è evidente la relazione m + m/a = 3. Ora possiamo risolvere
il sistema e otteniamo che m = 1,63, m/a = 1,37, m/a2= 1,08, m/a3 =
0,887. Queste distanze sono verificate dal dipinto
Queste sono state le scelte fatte e questo il percorso che il pit-
tore ha compiuto per arrivare al risultato. Una spia della sostanza ge-
ometrica delle scelte è rappresentata proprio dalle catene di ferro che
attraversano la scena: esse offrono con il loro disegno le sequenze dei
lati frontali dei quattro quadrati e rendono, se non materialmente visi-
bile, ben riconoscibile il parallelismo tra le diagonali che le attraversano.
Esse furono probabilmente il dato di appoggio necessario non alla scena
rappresentata, ma ad una descrizione di scienza, per rendere noto ad altri
l’espediente usato.
250
Ora, non si può negare che procedere per la strada maestra del
punto di vista unico sarebbe stato molto più semplice: ma il pittore non
lo ha voluto, e dunque questa anomalia deve nascondere una intenzione
particolare, ha una valenza simbolica che deve essere resa esplicita.
Se andiamo alla sostanza delle operazioni geometriche condotte
e ne descriviamo in estrema sintesi le conseguenze nella fruizione del
dipinto, possiamo fare le seguenti osservazioni: il dipinto è fruibile in
maniera accettabile da osservatori il cui occhio è posto all’altezza di 1,45
m (meno di un uomo in piedi, più di un uomo seduto) e lo osservano da
distanze diverse: siano essi in movimento lungo una traiettoria parallela
alla parete finestrata o stiano fermi lungo essa. La prima situazione è
quella normale degli abitanti del palazzo o del visitatore (che percorrono
l’atrio per andare verso le porte distribuite lungo di esso), più di quella
dell’occhio immobile a circa 1,00 m dall’ingresso (la distanza del primo
quadrato è di 12 m e la porta è alla distanza di 13 m circa). La seconda si-
tuazione potrebbe essere quella degli spettatori di una rappresentazione
scenica, disposti lungo le arcate laterali in più file, a ciascuna delle quali è
dedicata una ragionevole immagine prospettica, corretta entro uno stes-
LO SFONDATO PROSPETTICO DELL’ATRIO DI PALAZZO MARTELLI...

so cono ottico. Bisogna riconoscere che l’affresco è straordinariamente


convincente, come è testimoniato dalle reazioni di taluni visitatori4.
Di Ferdinando Melani sappiamo che per il committente Martel-
li realizzò anche prospettive di scene da teatro per la villa di Gricigliano
(Vedi Farneti, nota 2)5: e ciò testimonia l’interesse di entrambi, commit-
tente e pittore, per le applicazioni scenografiche della prospettiva e per
l’intrattenimento teatrale entro le mura domestiche. Il Barocco prevede
molte forme della rappresentazione scenica: oltre che nei luoghi specifi-
camente dedicati, anche nelle occasioni delle feste religiose nelle chiese
e nelle sale dei palazzi dell’aristocrazia in occasione delle feste. Nella
accezione millenaria della trattatistica, la scenografia è una applicazione
tridimensionale della prospettiva nella scena dei teatri , che simula in una
profondità reale modesta la visione di profondità di gran lunga superiori.
Nei teatri l’accorgimento è studiato per un punto di vista baricentrico
rispetto al complesso degli spettatori. Nel nostro caso, la scena è priva
di profondità e deve solo alludere allo spazio scenico. Essa sarà vista a
distanza ravvicinata da osservatori disposti lungo le arcate della loggia.
251
La distribuzione del pubblico può aver suggerito l’accorgimento pro-
spettico. La maestosa pesante tenda avvolta intorno al pilastro centrale
della prospettiva potrebbe contenere l’allusione al sipario, né presente
né assente. L’azione scenica si svolgeva comunque tutta nel proscenio.
La rinuncia al requisito assiomatico della prospettiva (il punto
di vista unico) va visto come l’esito finale di una ricerca progettuale, che
confronta una astratta nozione della disciplina con la richiesta partico-
lare di una committenza colta, il cui obbiettivo offre un fuoco speciale
all’applicazione disciplinare. L’abbandono della regola non tradisce la
teoria, ma, rendendola specifica di una situazione, la rafforza e la con-
ferma. Non si tratta dell’applicazione tecnica di una scienza nota, ma
della messa in opera di un percorso di ideazione che cerca di rispondere

4
I custodi riferiscono l’aneddoto della bambina di una coppia di visitatori
che all’ingresso ha spiccato una corsa verso il fondo attirata dall’immagine
ed è andata a sbattere contro il muro con tale violenza da aver dovuto essere
portata al pronto soccorso.
5
Vedi Farneti, citato in nota 2. Anche se nessuna certezza è data sul nome
dell’autore della quadratura, ciò che il committente chiese al Milani rientrava
nelle consuetudini dei pittori di quadrature del tempo.
MARIA TERESA BARTOLI

ad una richiesta non banale. La prospettiva dimostra una volta di più la


sua natura non di tecnica proiettiva deduttiva a senso unico come viene
spesso raccontata, ma di strumento di ricerca induttivo, consapevole del-
la difficoltà della corretta interpretazione dell’esperienza sensibile, delle
ambiguità del vedere e delle responsabilità di chi si offre come interme-
diario per la trasmissione della conoscenza che dagli occhi deriva.

252
ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROUCA...

Capítulo 16

ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROU-


CA NO OFÍCIO DE ARQUITETO

Mônica Maria Lopes Lage

De acordo com a historiografia colonial mineira, José Pereira


Arouca foi um mestre-de-obras dos ofícios de pedreiro e de carpinteiro
que viveu na cidade de Mariana, Minas Gerais, ao longo da segunda
metade do século XVIII. Há, ainda, autores que se referem a ele como
um empreiteiro que vivia de administrar obras públicas e religiosas con-
tratadas pelo Senado da Câmara e pelas Irmandades.
Estas definições são verdadeiras, mas podem parecer simplistas
se comparadas às muitas outras profissões que este homem exerceu nas
minas e ao que ele representou para a sociedade marianense. Além das
atividades acima mencionadas, descobrimos que Arouca foi minerador1, 253
canteiro2, ocupou cargos importantes na esfera político-administrativa
e religiosa de Mariana3, tendo também trabalhado como “louvado4” em
várias obras nesta mesma cidade como também em Ouro Preto. Há in-
dícios que ele foi entalhador5 e ainda mestre-de-riscos6, ofício pelo qual
eram chamados os arquitetos do período colonial.

1
MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artificies dos séculos XVIII e XIX em
Minas Gerais. Rio de Janeiro: Revista do IPHAN, n. 27, t. I e II, 1974, p.75.
2
PEREIRA, Carlos Alberto; LICCARDO Antônio; SILVA Fabiano Gomes
da. et al. (Org.) A arte da cantaria. Belo Horizonte: C/Arte, 2007, p 23.
3
MARTINS. Dicionário de artistas e artificies dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, p 72.
4
VEIGA, Afonso Costa. José Pereira Arouca: mestre, pedreiro e carpinteiro –
Mariana, Minas Gerais, séc. XVIII. Coleção Figuras e Fatos de Arouca. Vila de
Arouca, Portugal: Real Irmandade da Rainha Santa Mafalda. Secção Editorial,
2ª ed. 1999. p 69.
5
Os vestígios que temos sobre a atuação de José Pereira Arouca no oficio de
entalhador, são baseados no que publicou o historiador português Afonso
Costa Veiga, o qual sugeriu que José Pereira Arouca estudou em uma escola
de entalhadores e que sua família possuía tradição em trabalhos em pedra e
madeira. VEIGA. José Pereira Arouca: mestre, pedreiro e carpinteiro – Mariana,
Minas Gerais, séc. XVIII, p. 12 e 24.
6
VEIGA. José Pereira Arouca: mestre, pedreiro e carpinteiro – Mariana, Minas
Gerais, séc. XVIII, p 25.
MONICA MARIA LOPES LAGE

Por terem os historiadores da arquitetura colonial mineira foca-


do seus estudos na carreira de pedreiro, carpinteiro e de mestre-de-obras
de Arouca, as outras atividades praticadas por ele ficaram à margem da
história e, por isso, não foram investigadas como deveriam.
Associada a esta questão, o historiador francês Germain Bazin7,
considerado seu primeiro biógrafo, não mencionou em sua pesquisa que
ele foi um arquiteto. Outros autores porém, como André Guilherme
Dornelles Dangelo e Ivo Porto de Menezes pontuaram sobre o assunto,
mas, provavelmente, o fato dele não representar o objeto central dos
seus estudos, eles não se aprofundaram nesta questão. Como mostra os
dois fragmentos extraídos da tese de doutorado do arquiteto e historia-
dor André Guilherme Dornelles.
Do ponto de vista da cultura arquitetônica, a
obra de José Pereira Arouca contribui de maneira
diferencial, já que a arquitetura não era a sua prin-
cipal atividade, embora tenha feito modificações
em projetos por ele arrematados.8

E ainda:
254
Ainda hoje é difícil avaliar a real competência de
Arouca como arquiteto, já que as únicas obras
que temos para a avaliação são intervenções ar-
quitetônicas compostas de fragmentos, o que nos
impede de avaliar com mais precisão o seu talen-
to para a arquitetura.9

Algumas hipóteses podem explicar porque os historiadores


da arquitetura colonial mineira encontraram dificuldades em avaliar o
desempenho de Arouca enquanto arquiteto, assim como o seu talento
para este ofício. A primeira delas é que, até o momento, nenhum risco

7
BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa no Brasil. Rio de Janeiro: Record,
1983, v. 1, p. 212.
8
DANGELO, André Guilherme Dornelles. A cultura arquitetônica em Minas
Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos, mestres-de-obras e
construtores e o transito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas
Minas Gerais setecentistas. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Fi-
losofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte, 2006. p 354.
9
DANGELO. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal
e na Europa: arquitetos, mestres-de-obras e construtores e o transito de cultura
na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas, p 358.
ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROUCA...

de grande proporção, digamos assim, atribuído ou assinado por ele foi


encontrado. Os que encontram-se à disposição dos investigadores nos
arquivos mineiros são pequenos fragmentos de suas obras. E depois
porque as maiores obras arrematadas e construídas por ele foram proje-
tadas por outros arquitetos. A Igreja da Ordem terceira de São Francisco
de Assis e a Casa de Câmara e Cadeia de Mariana foram projetadas por
José Pereira dos Santos, e o autor do risco da antiga, Casa Capitular e
atual Museu Arquidiocesano é ainda desconhecido.
Até o momento, constatamos que existem nos arquivos minei-
ros os seguintes projetos que lhe são atribuídos: capela-mor da Matriz de
Nossa Senhora de Nazaré10, em Santa Rita Durão, antigo Inficcionado,
e pequenos riscos, como de pias batismais, arco cruzeiro, arco do coro
e sepulturas.
O seu talento e capacidade técnica para o ofício da arquitetura
não podem ser avaliados considerando apenas os seus riscos, é preciso
avaliar além os riscos projetados por ele, as constantes alterações que
ele efetuou em riscos projetados por outros arquitetos e, ainda, as vezes
255
que ele atuou na condição de louvado. Neste oficio, ele examinava os
projetos e verificava se as obras, depois de erguidas, estavam em con-
formidade com os mesmos. Estando tudo de acordo com o exigido nos
contratos e nas “condições”, ele emitia laudos técnicos.
Para ser um “louvado” era indispensável conhecimento em ar-
quitetura, dominar a matemática, a geometria, a aritmética, a geografia
e ainda ter noção de espaço. Este conhecimento técnico era adquirido,
ou pela prática conquistada através do contato com outros mestres-de-
-riscos (o que era muito corriqueiro nos canteiros das obras), ou ainda,
nas escolas militares lugar destinado ao ensino dos preceitos básicos de
arquitetura e engenharia.
A documentação aponta que Arouca foi constantemente solici-
tado para louvar obras, tanto em Mariana quanto em Ouro Preto. Nesta
última cidade, por exemplo, foi nomeado louvado na Igreja de Nossa Se-
nhora do Carmo, onde trabalhou ao lado de Antônio Francisco Lisboa,

MENEZES, Ivo Porto de. José Pereira Arouca. In: Revista do Anuário do
10

Museu da inconfidência, v. 5, 1978, p 76-77.


MONICA MARIA LOPES LAGE

o pai de Manoel Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Nesta igreja, examinou


os riscos do pórtico, dos arcos do coro e do lavatório da sacristia, tendo
emitido laudo técnico destas obras. Conforme aponta o documento pu-
blicado pela investigadora do IPHAN, Judith Martins:
1771 – Março- Nomeado louvado nas obras da
igreja, juntamente com Henrique Gomes de Bri-
to e Antônio Francisco Lisboa (L 1 de Termos da
Ordem 3ª, fls.163) A de 17 de junho do mesmo
ano, examinou os riscos do pórtico, dos arcos do
coro e do lavatório da sacristia, tendo dado seu
parecer a respeito (Doc. Avulso da Ordem 3ª).11

Quadro 01 – Obras louvadas por José Pereira Arouca

Lugar Data Serviço


Igreja de Nossa Senhora 1771 Foi nomeado louvado nas obras da
do Carmo de Ouro Preto igreja. No mesmo ano, examinou os
riscos do pórtico, dos arcos e do lava-
tório da sacristia, tendo dado parecer
a respeito
Igreja de Nossa Senhora 1780 Foi nomeado louvado nas obras de
256 do Carmo de Ouro Preto cantaria
Igreja de Nossa Senhora 1785 Foi Nomeado louvado nas obras da
do Carmo de Ouro Preto Igreja
Igreja de São Francisco de 1771 Foi nomeado louvado por três anos
Assis de Ouro Preto consecutivos para emitir parecer geral
1772 de todos os trabalhos realizados e para
ver se a obra suportava os barretes.
1774
Calçada da rua dos 1771 Foi nomeado louvado para avaliar as
Monsús – Mariana condições gerais da obra
Igreja de Nossa Senhora 1777 Foi nomeado louvado para avaliar as
das Mercês de Mariana condições gerais da obra
Fazenda da D. Antônia 1779 Foi nomeado louvado para avaliar as
Constância da Rocha – condições gerais da fazenda
Mariana
Casa de Câmara e Cadeia - 1779 Foi nomeado louvado para avaliar as
Vila Rica condições gerais da obra, tendo apre-
sentado laudo.

Fonte: MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artificies dos séculos XVIII e XIX
em Minas Gerais. Revista do IPHAN. Rio de Janeiro, n.27, t.I e II, 1974.

11
MARTINS. Dicionário de artistas e artificies dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, p 73.
ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROUCA...

Muito significativas foram as modificações que Arouca efetuou


no risco da Igreja de São Francisco de Assis12 em Mariana. Nesta obra,
ele alterou estruturas, tanto na parte externa, quanto interna e ao longo
da construção do frontispício da capela dos terceiros, percebeu que na
empena e nas duas torres haviam defeitos graves e, por isso propôs que
fossem efetuadas mudanças. No Livro de Termo desta venerável Or-
dem, do ano de 1783, constamos:
[...] Pelo irmão José Pereira Arouca mestre da
capela foi proposto, que a empena constante
do risco, com que arrematou a dita obra, e mais
frontispício e torres [tinham] bastante defeitos,
os quais [se pediam] agora emendar o que [...] foi
uniformemente aprovado.13

Assim, o imponente frontispício da Igreja de São Francisco de


Assis de Mariana, é resultante do seu trabalho do arquiteto, e não do
autor original do risco, José Pereira dos Santos.

257

Figura 1: Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis da cidade de


Mariana.
Fonte: Acervo da autora

12
SALVADOR, Natália Casagrande. A venerável Ordem Terceira de São Francisco
de Assis de Mariana: a construção de sua capela, os irmãos terceiros e as repre-
sentações iconográficas. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, São Paulo, 2015.
13
Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana (AHCSM). Livro de Ter-
mos da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis da cidade de Mariana, fl 94v.
MONICA MARIA LOPES LAGE

Ainda nesta capela, Arouca percebeu que o arco do coro, da


forma como havia sido projetado, poderia comprometer a estrutura de
todo o coro, pois a largura do vão onde ele deveria ser assentado era
grande demais para suportar um arco com apenas uma arcada. Assim,
o mestre-de-riscos sugeriu que o mesmo fosse dividido em três arcadas:

Foi proposto que o arco do coro por ser difícil a


sua segurança em razão da muita largura da cape-
la, se devia dividir em três o que ouvido e ponde-
rado pelo mesmo definitório se assentou que se
fizessem uniformemente os três arcos com suas
colunas, tudo em pedra da passagem, metendo-se
nas mesmas colunas duas pias de água benta.14

258

Figura 2: Vista do arco do coro da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco


de Assis – Mariana/MG
Foto: Acervo da autora

14
AHCSM. Livro de Termos da Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis da
cidade de Mariana, fls 102, 102v.
ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROUCA...

José Pereira Arouca praticou intervenções semelhantes a estas


em outras obras e, em todas demonstrou possuir conhecimento técnico,
não apenas para detectar possíveis falhas dos projetos, mas também para
propor soluções. As mudanças efetuadas na Capela dos Terceiros de
Mariana revelaram sua capacidade para fazer alterações nas obras sem
que as mesmas fossem descaracterizadas. Suas alterações nos mostraram
ainda que o mestre-de-risco estava familiarizado com as tendências ar-
quitetônicas de seu tempo, uma vez que a composição do arco do coro e
das torres desta igreja é semelhante ao que se vê em outras igrejas.
Vale ressaltar que a maior intervenção arquitetônica deste mes-
tre-de-risco ocorreu na Matriz de Nossa Senhora de Nazaré, em Santa
Rita Durão. Nesta obra, Arouca foi contratado para projetar uma nova
capela-mor, já que a antiga encontrava-se comprometida. Ela havia sido
construída na primeira década do século XVIII e, com o passar dos
anos, já se mostrava bastante danificada, chegando até mesmo a com-
prometer as celebrações e a segurança dos membros.
No ano de 1780, ele juntamente com Manoel José Belas, foram
259
contratados para apresentar um novo risco e as condições necessárias
para a construção da capela-mor. De acordo com as exigências do comi-
tente, os arquitetos deveriam apresentar uma proposta em que fossem
evitadas despesas desnecessárias, mas que contemplasse a beleza e a de-
cência com que a obra deveria ser edificada:
[...] logo o mesmo Ministro ordenou aos ditos
oficiais que se fizessem a planta e risco da dita
capela-mor e calculassem a importância de sua
despesa, proporcionando a dita obra com o cor-
po da igreja, evitando despesas desnecessárias e
não faltando a decência com que a mesma cape-
la-mor deve ser edificada.15

Constam nos documentos condições e risco desta capela-mor,


de maneira que sua construção deveria ser de pedra e cal. Além disso,
sua medida em palmos seria: 63 de comprimento, 28,5 de largura e 33,5

15
MENEZES. José Pereira Arouca, p 76-77.
MONICA MARIA LOPES LAGE

de altura16, sendo que suas paredes deveriam ser da grossura de quatro


palmos.
Ficou estabelecido pelos mesmos documentos que o arrema-
tante José Pereira Arouca deveria entregar a obra totalmente acabada,
incluindo ainda a feitura dos retábulos, lavatórios, além da pintura17 das
paredes, janelas, cimalhas, e portas assim como a que deveria ser feita em
perspectiva no teto da capela. Todos os custos deste trabalho deveriam
correr por sua conta, conforme mostramos abaixo:

[...] e será mais obrigado a mandar pintar o teto


da capela-mor com pintura que emite e corres-
ponda a do corpo da igreja, metendo para isso
perspectiva necessária, conforme as do mesmo
corpo e no meio do dito teto metera uma tarja
bem feita, com o retrato da padroeira da mesma
igreja e ficando tudo o mais em campo branco.
[...] enfim será obrigado a dar toda esta obra fei-
ta e acabada, na forma do risco e condições, fi-
cando tudo completo com toda a perfeição feito
tudo a custa dele, arrematante, sem que lhe dê
para isso mais do preço por que se arrematar e ao
260 depois de feita será vista e examinada na forma
que se costuma18.

16
Segundo a historiadora Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno a medida de um
palmo, de acordo com o valor de medida antigo era equivalente a 22cm do
sistema métrico decimal.
17
De acordo com o texto extraído do Inventario dos Bens Móveis do IEPHA,
as características da pintura que constam na nave da Igreja de Nossa Senhora
de Nazaré em Santa Rita Durão/MG são: o teto da igreja manifesta pintura
de gosto rococó, em perspectiva ilusionista, convergindo para o painel central,
onde se encontra representado o milagre de Nazaré: a Virgem nos céus prote-
gendo o cavaleiro Dom Fuas Roupinho, à beira do penhasco, enquanto o vea-
do caçado voa para o abismo. A qualidade da pintura é ingênua, apresentando,
entretanto, traçado elegante dos concheados e da rocaille. Margeando o quadro
central no sentido longitudinal, vemos as figuras dos apóstolos São Pedro,
com as chaves (arco-cruzeiro) e São Paulo, com a espada (coro) e no sentido
transverso, as figuras do dominicano São Tomás de Aquino e do franciscano
São Boaventura. Nos quatro cantos, em balcões, estão os quatro grandes dou-
tores da Igreja. Esta pintura é atribuída a João Batista de Figueiredo, pintor
dos mais conceituados nas Minas Gerais do século XVIII e reconhecido, hoje,
como um dos mais importantes daquele período. VITAE/IPHAN. IEPHA/
MG. Santa Rita Durão. Matriz de Nossa Senhora de Nazaré. Projeto de res-
tauração da pintura do forro da nave,1983.
18
MENEZES. José Pereira Arouca, p. 59-60.
ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROUCA...

De acordo com o inventario dos bens móveis do IEPHA, a


capela-mor da Matriz de Nossa Senhora de Nazaré possui teto curvo,
altar e retábulo em talha suntuosa. O retábulo central compõe-se de qua-
tro colunas torsas, com ornamentação floral entalhada, arco no nicho
central, com sanefa, figura de anjos e ornatos no estilo D. João V. No
trono central, encontra-se a imagem da padroeira. O sacrário é ladeado
por figuras de anjos, sendo os retábulos laterais e o arco-cruzeiro em
estilo semelhante.

261

Figura 3: Vista da capela-mor da Matriz de Nossa Senhora de Nazaré – Santa


Rita Durão/MG
Foto: Acervo da autora

Outra capela-mor construída por José Pereira Arouca foi a da


Matriz do Senhor do Bom Jesus do Monte Furquim. Ainda não sabemos
se ele foi autor do risco desta capela, mas sua composição arquitetônica
é semelhante a da Capela de Matriz de Nossa Senhora de Nazaré, discu-
tida anteriormente. A arrematação da capela-mor da Matriz de Furquim
ocorreu no ano de 1782, como mostra o documento:
MONICA MARIA LOPES LAGE

Em 1872 - Foi ordenado o pagamento a José Pe-


reira Arouca, da importância por que arrematou
a obra da capela- mor e sacristia da freguesia de
Bom Jesus de Furquim (Códice nº207, fls.187,
Registro de ordens do real Erário, Seção colonial,
DF Arquivo Público Mineiro)19.

De acordo com o historiador Paulo Kruger Corrêa Mourão,


esta capela-mor apresenta a seguinte composição arquitetônica: a planta
é retangular para acompanhar a estrutura da nave, as paredes laterais são
compostas de janelas e painéis. Os altares colaterais possuem arquivolta
e dossel, o teto é de madeira, e arqueado e sem pinturas. O nível da
capela-mor é mais elevado em relação ao da nave e menos elevado em
relação ao altar-mor. Entre a capela-mor e o altar-mor há cinco degraus
fazendo a separação dos ambientes.
Para o historiador português Paulo Varela Gomes20, a separação
por níveis diferentes entre nave, capela-mor e altar-mor foi proposta
por Palladio e derivou de ideias medievais baseadas na Contrarreforma,
262
que tinham por intenção separar os espaços destinados aos fiéis dos
que eram usados pelo Clero. Em todas as capelas-mores21 projetadas ou
construídas por Arouca, percebe-se essa composição.
Ainda, sobre a capela-mor da Matriz de Furquim, o retábulo-
-mor é largo e ocupa toda a extensão do presbitério, a talha é dourada
e nela contemplam-se elementos da flora estilizados e colunas torsas,
recobertas de folha de parra. Sobre o dossel há esculturas representando
anjos em várias posições. O arco cruzeiro é também recoberto de talha
dourada, onde se veem anjos. Sobre o arco, há ornamentação com atlan-
tes e cornija elevada.

19
MARTINS. Dicionário de artistas e artificies dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais, p. 69.
20
VAREALA GOMES, Paulo. Arquitetura, religião e política em Portugal no século
XVIII: a planta centralizada. Porto: Editora da Faculdade de Arquitetura do
Porto, 2001, p. 33.
21
Capela-mor da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, Capela-
-mor da matriz do Senhor do Bom Jesus do Monte Furquim, Capela-mor
da Matriz de Nossa Senhora de Nazaré, e Igreja da Gloria do Seminário de
Mariana.
ENTRE TRAÇAS, DIBUJOS E RISCOS: JOSÉ PEREIRA AROUCA...

263
Figura 4: Fonte: Vista da Capela-mor da Matriz do Senhor do Bom Jesus do
Monte de Furquim/MG
Foto: Acervo da autora

Ao constituir-se como um arquiteto nas Minas, José Pereira


Arouca projetou pequenos riscos encomendados por seus comitentes,
alterou outros que não eram de sua autoria e avaliou outros para consta-
tar a fidedignidade da construção em relação ao documento.
O fato de ele não ter projetado uma obra completa e sim frag-
mentos de suas arrematações, não lhe retira a capacidade técnica para
exercer o ofício de arquiteto, fato também que não impede que seu tra-
balho seja avaliado. Por mais que a historiografia da arquitetura colonial
mineira encontre dificuldade em avaliar seu desempenho neste oficio, há
fontes documentais suficientes nos arquivos mineiros que podem dire-
cionar as investigações acerca deste arquiteto/construtor. O que estas
fontes nos indicam é que ele atuou com frequência no ofício de arqui-
teto e que seus projetos, ou pareceres técnicos, eram coerentes com a
arquitetura que se expandia velozmente nas vilas e cidades mineiras da
segunda metade do século XVIII. O fato dele ter sido constantemente
MONICA MARIA LOPES LAGE

solicitado para trabalhar neste oficio pelo Senado da Câmara e pelas


irmandades, principais comitentes deste período, comprova o reconhe-
cimento da sua capacidade técnica para riscar, traçar ou desenhar.

264
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

Capítulo 17

IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO


MARANHÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INTERVENÇÕES
OCORRIDAS ENTRE OS SÉCULOS XVIII E XX

Marília Martha França Sousa


Regiane Aparecida Caire Silva

A cidade de São Luís do Maranhão e a Companhia de Jesus

No século XVI, algumas regiões do Nordeste já apresentavam


centros urbanos mais estruturados. O mesmo não aconteceu com a
região Norte, onde a demarcação do território ainda estava incipiente, o
que atraia e facilitava a presença de corsários - principalmente holandeses
265
e franceses – praticando o escambo com os índios.
Dentro deste cenário encontrava-se o Maranhão, dividido pelos
portugueses em duas capitanias hereditárias pelo Tratado de Tordesilhas
(1534). Apesar do objetivo de ocupação e colonização da Coroa
portuguesa, com tentativas fracassadas, foram os franceses com Daniel
de La Touche que fundaram, em 1612, a cidade. De início, construíram
o forte de Saint Louis com a ajuda dos índios para a defesa, e trocaram
o nome da Ilha de Upaon Açu para São Luís em homenagem ao rei Luís
XIII da França. A ideia da França Equinocial, cobiçada desde 1604 por
Henrique IV, parecia alcançada com Daniel de La Touche, senhor de La
Ravardière.1
No curto período de três anos que os franceses permaneceram
como colonos obtiveram relação amistosa com os índios Tupinambás
e foram auxiliados nas questões religiosas pelos padres franciscanos
capuchinhos, no entanto, sob pressão da Espanha, foram expulsos

1
BETTENDORFF, João Filipe. Crônica da Missão dos padres da Companhia e Jesus
no Estado do Maranhão. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010, p.
LXVIII.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

pelos portugueses em 1615.2 Nesta época, Portugal estava sobre o


domínio da Coroa espanhola, que preocupada em resguardar suas minas
de ouro e prata no Peru, forçou Portugal a colonizar efetivamente o
Maranhão, alegando que a proximidade dos franceses poderia facilitar,
devido o traçado dos rios, a exploração por uma rota da extensa bacia
hidrográfica partindo do Maranhão, Pará ou Amazonas, chegando até
as minas espanholas.3
Reconquistada a província pelos portugueses, na Batalha de
Guaxenduba, em 1615, sob o comando de Jerônimo de Albuquerque,
a Colônia lusitana é efetivada e “com uma forma mais estável de
ocupação, surgem, no mesmo sítio em que aportaram os franceses,
as primeiras manifestações lusitanas de caráter urbano”4. Somado
aos primeiros colonos, vieram diversas ordens religiosas como os
Carmelitas, Franciscanos, Mercedários, Irmandade do Rosário dos
Pretos e os Jesuítas, que já estavam no continente desde 1549 atuando
da Amazônia até o Rio da Prata edificando colégios e templos5.
No recém território conquistado criou-se, em 1621, o Estado
266
do Maranhão e Grão Pará, com o intuito de proteger o que compunha
a única rota de entrada na Amazônia, assim, sua administração tornou-
se independente do restante do Estado do Brasil, sendo efetivada a
separação completa somente em 1626.
Mesmo com a ocupação portuguesa existiam problemas,
como a dificuldade de encontrar colonos para assentamentos, a mão
de obra escrava era escassa e a agricultura ainda bem modesta. Com
esse quadro, a recém fundada colônia foi novamente invadida em 1641
pelos holandeses. De maneira contrária dos franceses os flamengos

2
Sobre a colonização francesa ler os religiosos Claude d’Abbeville que esteve
no Maranhão nos primeiros quatro meses e Yves d’Évreux que permaneceu
por volta de dois anos e escreverem respectivamente: História da Missão dos
Padres Capuchinos na Ilha do Maranhão e Ação e Presença dos Portugueses na costa norte
do Brasil no séc. XVII ambos da Editora do Senado Federal, Brasília.
3
BRITO, Stella Regina Soares de. et al. Inventário Nacional de Bens Móveis e Inte-
grados: a Experiência do Maranhão. São Luís: Instituto do Patrimônio Históri-
co e Artístico Nacional (IPHAN)/3ªSR, 2000, p.15.
4
SILVA FILHO, Olavo Pereira da. Arquitetura Luso-Brasileira no Maranhão. Pro-
jeto Documenta Maranhão 97. Belo Horizonte: Formato, 1998, 2ª ed., p.17.
5
SILVA FILHO. Arquitetura Luso-Brasileira no Maranhão, op. cit., p. 139.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

destruíram a pequena cidade e, segundo Olavo Pereira, não deixaram


nenhum imóvel de sua autoria reconhecido até os nossos dias - com
reforço português, foram expulsos em 1644.6
Após as invasões, os habitantes do Maranhão procuraram
administrar e reestruturar a economia que estava alicerçada,
principalmente, na mão de obra indígena, os quais detinham
conhecimento e extração dos produtos naturais que eram enviados para
Portugal. Assim, quem detivesse a confiança e domínio dos silvícolas
teriam o controle da economia, que era disputada entre governo e
ordens religiosas, no caso mais específico, a Companhia de Jesus, árdua
defensora da liberdade dos indígenas.
A Companhia de Jesus chegou a São Luís após expulsão dos
franceses, na expedição do português Jerônimo de Albuquerque em
1615. Anterior a esta data, em 1607, houve tentativa da entrada dos
Jesuítas no Maranhão, “D. Diogo Botelho governador-geral do Brasil
decide colocar missionários a frente da empresa de conquistas do
Maranhão destacando Francisco Pinto e Luís Figueira.” 7 A missão foi
267
atacada pelos índios, o Padre Francisco Pinto morreu e o Padre Luís
Figueira conseguiu retornar para a Paraíba.
Segundo D. Francisco de Paula e Silva8 o Padre Moraes está
correto na informação sobre os primeiros jesuítas que vieram para São
Luís:
com a esquadra de Alexandre de Moura vieram
não os Padres Amodei e Figueira, Lopo do Couto
e um irmão leigo; mas, sim, os Padres Manuel
Gomes e Diogo Nunes, ambos versadíssimos
na língua brazileira, os quaes, depois da retirada
dos francezes ficaram os únicos Religiosos na
ilha, visto como voltaram para Pernambuco os
dois Religiosos Franciscanos, que tinham vindo
na esquadra de Jeronymo d’Albuquerque como
capelães dos soldados. E aos Jesuítas que ficaram

6
Para maiores informações sobre a invasão e expulsão holandesa ver: BET-
TENDORFF. Crônicas da Missão dos padres da Companhia e Jesus no Estado do
Maranhão, op. cit., p. 69-72.
7
BRITO. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados: a Experiência do Mara-
nhão, op. cit., p.25.
8
PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a História Eclesiástica do
Maranhão. Bahia: Typographia de São Francisco, 1922, p. 18.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

foi feita a doação do hospício e capela dos


Capuchinhos francezes, pelo Capitão-mór, em
nome de sua majestade.9

D. Francisco coloca que os Jesuítas fundaram sua primeira


Missão em Uçagoába, hoje um bairro de São Luís chamado Vinhaes,
dedicando-se aos indígenas e portugueses no Apostolado. E que os
padres inacianos Manuel Gomes e Diogo Nunes chegaram a São Luís em
1615 saindo de Recife por oceano, sendo recebidos pelos Capuchinhos
franceses e trabalharam sozinhos até 1619, ano que voltaram para Madri.
Somente em 1622 vieram os padres Luiz Figueira e Benedicto Amodei,
e em 1624 chegou o Padre Lopo Couto com um irmão coadjutor:
Com estes missionários e alguns outros,
sucessivamente mandados para esta missão,
continuou a Companhia no Maranhão até
1649, data em que os índios Tapajoz, armados,
mataram no Rio Itapicuru os Padres Francisco
Pires, Manuel Moniz e João d’Almeida,
coadjutor. Ficou sem religiosos dessa Ordem o
Maranhão até 1652, quando vieram os Padres
268 Francisco Velloso e João de Souto-Maior com
mais 8, mandados adeante pelo Padre Vieira,
que de Lisboa vinha como Superior da Missão.
A 17 de janeiro de 1652 chegava o grande Jesuíta
com mais 3 Padres. Dali em deante sempre
continuaram no Maranhão, embora expulsos
pelo povo em 1661 e em 1684.10

A relação da Ordem dos Jesuítas com o governo local e com


os colonos portugueses no Maranhão não foi muito tranquila. Nessa
conjuntura chega a São Luís em 1653 o Padre Antônio Vieira, famoso
por suas pregações e defesa dos índios. Depois de cumprir com suas
atividades, não só de catequese como também os interesses materiais
da Ordem, retorna à Lisboa e concretiza textos legais em 14 de abril de
1655, cujo teor interferia diretamente questões políticas e econômicas,
segue:

9
Cita: MORAES, Padre José de. História da Companhia de Jesus na extinta Provín-
cia do Pará e Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, de
Brito & Braga, 1860, p. 110-111.
10
PAULA E SILVA. Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão, op.
cit., p. 25.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

Que as aldeias e os índios de todo o Estado


sejam governados e estejam sob a disciplina
dos religiosos da Companhia de Jesus; e que o
padre Antônio Vieira, como superior de todos,
determine as missões, ordene as entradas ao
sertão e disponha os índios convertidos à fé
pelos lugares que julgar mais conveniente.11

Muitos fatores contribuíram para a prisão e expulsão do Padre


Antônio Viera e seus companheiros em 8 de setembro de 1661. Enviados
para Lisboa, Padre Vieira nunca mais pisou em terras maranhenses.
Apesar de sua lei de 1655 ter sido contestada em 1663, tirando o poder
dos jesuítas e excluindo o Padre Vieira de qualquer ingerência religiosa
no governo temporal dos índios. Em 1680, é promulgada a lei que
“abolia de modo completo a escravidão dos indígenas no Brasil”.12
O fato dos inacianos defenderem os índios contra os maus
tratos e lutarem pela sua liberdade, geraram opositores e manifestantes
sempre a favor da expulsão da Companhia de Jesus. Uma prova dessa
insatisfação foi a Revolta de Beckman, em 1684, a qual os colonos
criticavam a relação da Companhia de Comércio com os jesuítas 269
que impediam a escravização dos índios, bem como algumas ordens
religiosas apoiaram a revolta por acharem que os inacianos detinham
muito poder. O resultado gerou o fechamento no ano seguinte da
Companhia Geral do Comércio e os jesuítas restituídos de suas
posses.13 Em 1759 a Companhia de Jesus foi expulsa do Brasil tendo
seus bens confiscados.
Os assentamos dos missionários jesuítas em São Luís
tiveram relevante importância na construção das vilas, na educação,
na catequese dos índios e colonos, como também na construção do
Colégio e Igreja da Nossa Senhora da Luz - projeto e desenho do Padre
Jesuíta João Filipe Bettendorff.

11
BETTENDORFF. Crônica da Missão dos padres da Companhia e Jesus no Estado
do Maranhão, op. cit., p. XLIII – XLIV.
12
BETTENDORFF. Crônica da Missão dos padres da Companhia e Jesus no Estado
do Maranhão, op. cit., p. L.
13
BRITO. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados: a Experiência do Mara-
nhão, op. cit., p.36.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

Catedral da Sé: Igreja Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora


da Luz

A primeira Igreja Matriz de São Luís foi a Nossa Senhora


da Vitória, erguida em 1621, que estava localizada onde era o antigo
Hotel Central14, onde atualmente, funciona o Palácio do Comércio.
Não encontramos dados concretos que indiquem a data e nem as
circunstâncias em que esta igreja foi destruída. O nome do templo está
diretamente ligado à vitória dos portugueses em relação aos franceses
na Batalha de Guaxenduba, a qual foi concebida pela ajuda da Nossa
Senhora que, segundo relatos, lhes conferiu a vitória na batalha. A
respeito deste episódio, o Padre Bettendorff relata que o “Céu fez
justiça à Portugal contra a injusta agressão com que a França acometia
o Maranhão, fez vazasse a maré mais do costumado deixando as canoas
dos franceses em seco”. Além do recuo da maré descreve uma senhora
– a própria Virgem Nossa Senhora - que aparece no meio da batalha
animando-os a lutar bravamente, distribuindo pólvora e balas, “de
270
trezentos franceses não sobraram mais de cinquenta com vida ficando
só três mortos da parte dos portugueses por milagre manifesto”.15
Em 1626 coube ao Padre Jesuíta Luís Figueira a missão de, além
da fundação do Colégio da Luz, construir uma nova igreja. “Em 1626,
o Pe. Luís Figueira construiu também a primeira capela do Colégio
dedicada a Nossa Senhora da Luz”.16 No ano de sua construção, a
Igreja dos Jesuítas ainda não se configurava como Catedral, mas sim,
como uma pequena capela construída de pedra e cal e constituída de
capela-mor, nave e sacristia. A igreja erguida pelo Padre Luís Figueira
não resistiu ao tempo, vários pedidos para reformas foram solicitados,
no entanto as reformas não foram realizadas o que veio a ocasionar sua
demolição em 1693.
Em 1690, estando à frente da Missão no Maranhão, o Padre
João Filipe Bettendorff realiza o início das obras para a construção da

14
PACHECO, D. Felipe Conduru. História Eclesiástica do Maranhão. São Luís:
Departamento de Cultura do Estado, 1969, p.11.
15
BETTENDORFF. Crônica da Missão dos padres da Companhia e Jesus no Estado
do Maranhão, op. cit., Livro I, Cap. III, p.9.
16
PACHECO. História Eclesiástica do Maranhão, op. cit., p.12.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

nova igreja dos Jesuítas com ajuda dos índios Guajajaras, localizada
próximo à ala do corredor sul do Colégio, com inauguração solene em
1699. O próprio padre realizou o debuxo para a fachada e retábulo do
altar-mor. Em suas Crônicas, Bettendorff apresenta detalhes sobre as
obras da nova igreja:
Muitos anos haviam que me acompanhavam
grandes desejos de fabricar um belo templo
novo à Virgem Senhora Nossa da Luz, padroeira
do Colégio e de toda à Missão do Maranhão,
para esse fim, sendo Superior da primeira vez,
mandei ajuntar, pedras, cal, madeira em grande
quantidade [...], deputei também os índios
Guajajaras da aldeia de Mareú, que sua Majestade
tinha concedido ao Colégio. 17

Características estilísticas que indiquem a fachada da igreja nesse


período são escassas, porém, a obra realizada pelo padre em colaboração
com os índios nos dá indícios de ser esta uma autêntica construção do
período colonial baseada no risco dos jesuítas. A Igreja Nossa Senhora
da Luz foi elevada a Sé Catedral após a última expulsão da Companhia
271
de Jesus no Maranhão, ocorrida no ano de 1759. A catedral estava em
ruínas, e com a desapropriação por decreto dos imóveis dos jesuítas, a
igreja dos inacianos passa a ser a Catedral da Sé, com mudança de seu
nome para Nossa Senhora da Vitória.
Há discordância entre alguns estudiosos da história do
Maranhão acerca da data exata de quando a Igreja da Luz foi elevada a
condição de Sé. Para o historiador Carlos de Lima, “em 17 de agosto de
1762 fez-se a mudança da antiga Sé para a atual, a Catedral do Maranhão,
sob o orago de Nossa Senhora da Vitória”,18 já para a historiadora Kátia
Bogéa, no ano de 1768, a Igreja de Nossa Senhora da Luz passa por
reformas significativas, pois visava adaptá-la a Sé Catedral,19 outra data
aparece no texto de D. Francisco de Paula e Silva que relata ter sido

17
BETTENDORFF. Crônica dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão, op. cit., p.501-502.
18
LIMA, Carlos de; MEIRELES, Mário; BOGÉA, Kátia Santos. Palácio arquie-
piscopal: 100 anos de história. op. cit., p.62.
19
BOGÉA, Kátia Santos; RIBEIRO, Emanuela Sousa; BRITO, Stella Regina
Soares de. Arquitetura e arte religiosa no Maranhão. São Luís: 3ª Superintendência
regional - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
2008, p. 82.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

em 11 de junho de 1761, através de alvará régio designando a Igreja de


Nossa Senhora da Luz para Catedral e o Colégio dos Jesuítas para o
Palácio dos Bispos.20

O Colégio de Nossa Senhora da Luz e o retábulo produzido na


oficina de entalhe

Com a chegada das primeiras missões da Companhia de


Jesus em terras brasileiras no ano de 1549, fez-se necessário para o
estabelecimento da Ordem a construção de escolas, igrejas, seminários,
colégios e fazendas para aldeamentos. No Maranhão, o Colégio de
Nossa Senhora da Luz foi instituído pelo Padre Luís Figueira entre os
anos de 1626 e 1627. “Foi o Pe. Luís Figueira o fundador do colégio
dos jesuítas e quem organizou o governo, dito espiritual das aldeias.”21.
Sabemos, ainda, através do autor Carlos de Lima, que o Colégio neste
período destinava-se a ensinar letras aos filhos dos portugueses, e que
tiveram suas atividades suspensas com a morte dos padres no massacre
272
ocorrido na cidade de Itapecuru em 164922.
O Colégio de Nossa Senhora da Luz passou três anos sem
exercer nenhum tipo de atividade em decorrência da morte dos padres,
apenas em 1652 com a chegada de uma missão trazida pelos padres
Francisco Veloso e João de Souto Maior, e em 1653 com o Padre
Antônio Vieira, o Colégio foi aos poucos retornando suas atividades.
No ínterim entre o ano de fundação do Colégio até a morte
dos padres, não há indícios da existência de oficinas. Porém, no período
em que o Padre Antônio Vieira esteve à frente da Missão no Maranhão
entre os anos de 1653 e 1661 surgem os primeiros relatos em 1659 do
que viria a ser oficialmente a oficina de escultura, pintura e entalhe do
Colégio da Luz.23

20
PAULA E SILVA. Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão, op.
cit., p. 135.
21
LIMA, Carlos de; MEIRELES, Mário; BOGÉA, Kátia Santos. Palácio arquie-
piscopal: 100 anos de história, op. cit., p. 20.
22
LIMA, Carlos de; MEIRELES, Mário; BOGÉA, Kátia Santos. Palácio arquie-
piscopal: 100 anos de história, op. cit., p. 22.
23
BÓGEA, Kátia; BRITO, Stela; RIBEIRO, Emanuela. Olhos da alma: Escola
maranhense de imaginária. São Luís do Maranhão: s.e., 2002, p.26
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

Após o estabelecimento da Ordem com as oficinas sendo


construídas nas dependências do Colégio, houve a necessidade de trazer
os primeiros mestres jesuítas artífices que viriam trabalhar na construção
e ornamentação das igrejas. Estes trouxeram habilidades e técnicas
aprendidas no Reino que iriam ser aglutinadas às habilidades já presentes
nos silvícolas que habitavam no Maranhão. No entanto, a necessidade
de artífices para as oficinas ocorreu não só no Maranhão, mas em vários
lugares do país, como comenta Serafim Leite:
Isto nos começos e dentro do Estado do Brasil.
E o mesmo sucede-se no do Maranhão, quase um
século depois, ao proceder-se à sua evangelização,
em que se sentia a mesma necessidade de
artífices. Vieira pedia e insistia em 1660, com o P.
Geral, que enviasse ‘irmãos coadjutores oficiais,
principalmente pintores, alfaiates, sapateiros,
carpinteiros, pedreiros 24.

Com o término dos trabalhos realizados pelo Padre Antônio


Vieira e a Missão nas mãos do Padre Bettendorff 25, o Colégio de Nossa
Senhora da Luz e, consequentemente suas oficinas, atingem um elevado
273
nível de produção artística e intelectual, chegando a ser comparado aos
colégios de Coimbra e da Bahia:

O Colégio da Luz desenvolveu após seu ensino,


ao ponto de equiparar-se ao de Coimbra e ao
da Bahia, conferindo graus, em letras, ciências,
artes, filosofia e teologia. Alunos gratuitos, sem
nenhuma distinção racial ou de classe. Suas
oficinas produziram apreciáveis obras de pintura
e estatuária. Suas obras de talha ainda ornam a
nossa Catedral.26

Durante a permanência de Bettendorff frente à Missão e na


condição de reitor do Colégio dos jesuítas, empreendeu o que viria a ser
uma das maiores reformas na Igreja de Nossa Senhora da Luz - anexo

24
LEITE, Serafim. Artes e Ofícios dos Jesuítas no Brasil: 1549-1760. Lisboa/Rio
de Janeiro: Broteria Livros de Portugal, 1953, p.20.
25
O padre João Filipe Bettendorff era natural de Luxemburgo, chegou ao
Maranhão no ano de 1661. Viveu entre o Maranhão e o Pará durante trinta e
sete anos.
26
PACHECO. História Eclesiástica do Maranhão, op. cit., p.12.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

às dependências do Colégio. Durante o período da reforma, entre os


anos de 1690 e 1699, esteve à frente das oficinas e realizou junto aos
outros mestres artífices e indígenas grandes trabalhos de estatuária e
talha com destaque para a construção do retábulo para o altar-mor. Para
as atividades que seriam realizadas na reforma da Igreja da Luz e para
construção do retábulo, solicitou que chegassem ao Maranhão em:

1688, no dia 20 de Outubro, dia das 11 mil


virgens, chegaram: Antônio Gonçalves e Diogo
da Costa, padres, Manoel Rodrigues, Manoel
da Silva e João Geraldo Ribeiro, irmãos, vindos
de Pernambuco; mais os padres João Ângelo e
Francisco Soares e os irmãos Tomás Carneiro,
Tomás de Couto, José da Fonseca, Cláudio
Gomes, Miguel e José Carvalho. Nesta mesma
comitiva veio o marceneiro Francisco. 27

Filipe Bettendorff exercia o ofício de desenhista e pintor, tendo


feito por suas próprias mãos o debuxo para o retábulo da Igreja da Luz.
Com sua equipe já formada, inicia os trabalhos de entalhe do retábulo
274 para o altar-mor, realizado entre os anos de 1693 a 1699. Contou com a
participação do entalhador Manoel Mansos vindo de Portugal e outros
mestres artífices, em suas Crônicas nos dá detalhes sobre a construção do
retábulo:
[...], é feito um retábulo de cedro que podia
aparecer com as melhores igrejas da cidade, dando
ela a traça e sendo os entalhadores Francisco,
filho de Alonso, feitor da ilha, e Mandú com
Miguel, carapinas da fazenda. Tinha eu posto
Francisco com Diogo de Souza, entalhador [...],
e lhe tinha posto em mão a pena para aprender a
debuxar, tendo visto nele grande habilidade para
obras de entalhador e para sair destro de tudo o
tinha posto com Manuel Mansos, entalhador do
Reino.28

Filipe Bettendorff, os mestres artífices jesuítas e os indígenas


que aqui habitaram, nos deixaram como herança a expressão máxima

27
LIMA, Carlos de; MEIRELES, Mário; BOGÉA, Kátia Santos. Palácio arquie-
piscopal: 100 anos de história. op. cit., p.52.
28
BETTENDORFF. Crônica dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Mara-
nhão, op. cit., p.507.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

de uma época traduzida em forma de arte, transformaram madeira com


o uso da talha em linguagem. O retábulo da Igreja de Nossa Senhora
da Vitória possui características singulares. Para o pesquisador Benedito
Lima de Toledo,29 em seus estudos sobre a morfologia dos retábulos, o
exemplar presente na Catedral da Sé de São Luís está classificado num
estilo denominado “Nacional Português”, que caracteriza-se por:

Composições que lembram as portadas


românicas das capelas existentes particularmente
no norte do país. De cada lado, colunas de
fuste espiralado tendo como arremate superior
arcos concêntricos tratados da mesma forma.
Ao centro uma tribuna destinada a receber a
imagem do santo. É a composição que vemos,
por exemplo, na igreja matriz de Bravães.”30

O conjunto que configura o retábulo da Igreja da Vitória revela


muitas características presentes neste estilo, a saber: conjunto com oito
colunas ricamente ornamentadas com motivos fitomórficos - cachos
de uvas, folhas de palma e acanto; arcos concêntricos, um sobreposto
ao outro, ambos rendilhados, com a mesma ornamentação - folhas de 275
parreiras e pombos da paz; colunas com dinamismo alcançado pela
forma helicoidal que possuem. Segundo Toledo, este estilo pode ser
encontrado em diversas igrejas do Brasil, e destaca a importância do
exemplar da Igreja da Vitória “Em São Luís do Maranhão, no altar-mor
da igreja do colégio dos jesuítas, há um exemplar monumental, talvez o
melhor do gênero31.
Para reforçar ainda mais a importância do retábulo, citamos o
arquiteto Lucio Costa, diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos do
DPHAN32, no processo de tombamento em 1954, que destaca apenas
o retábulo como elemento principal a ser reconhecido, e não a Catedral

29
Benedito Lima de Toledo é arquiteto e historiador. Professor da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU.
30
TOLEDO, Benedito Lima de. Do século XVI ao início do século XIX: ma-
neirismo, barroco e rococó. In: ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no
Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Sales, 1983, p.177.
31
TOLEDO. Do século XVI ao início do século XIX: maneirismo, barroco e
rococó, op. cit., p.180.
32
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sigla utilizada de
1946 à 1970.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

de Nossa Senhora da Vitória no seu todo, já bem comprometida com


as intervenções:
A edificação não apresenta interesse suficiente
para o tombamento. Justifica-se, entretanto, a
inclusão, no Livro de Tombo de Belas Artes, o
retábulo do altar-mor, peça jesuítica que deve
provir de fins do século XVII ou do primeiro
quartel do século XVIII, embora o camarim date
do século XIX.33

Intervenções: a “modernização” ao gosto da época

Entre o final do século XIX e início do século XX, a cidade de


São Luís passa por um intenso processo de modernização. Construções
de novas pontes para ligarem o centro histórico aos novos espaços
que emergem na cidade e verticalização acelerada, são algumas das
características apresentadas na “nova São Luís”. Este surto e desejo em
modernizá-la também reflete dentro do espaço do atual centro histórico,
local em que se insere a Catedral da Sé - Igreja Nossa Senhora da Vitória.
276 A necessidade de atualização alia-se a uma nova adequação de
algumas construções históricas, incluindo casarões, prédios públicos e
igrejas do período colonial. O caso que nos chamou atenção do nível
das intervenções foi observado na Igreja de Nossa Senhora da Vitória e
na fachada do Palácio Episcopal localizado ao lado do templo. Hoje, o
prédio abriga o Museu de Arte Sacra. Para ilustrar este caso específico
trouxemos algumas imagens que demonstram estas transformações:

A. B.

33
PESSÔA, José. (Org.). Lucio Costa: Documentos de trabalho. Rio de Janeiro:
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1999, p.142.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

C. D.

Figura 1:
A – Catedral de São Luís do Maranhão. Litografia de 1856, de Friederich
Hagerdorn . Impressa em Paris por Bernard Lemercier.
Fonte: Arquivo Digital da Biblioteca de Portugal.
B e C – Palácio Episcopal e Catedral da Sé. Foto de Gaudêncio Cunha, 1908.
Reprodução a partir do original feito pelas autoras.
Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão – MHAM.
D – Vista da Catedral da Sé e Palácio Episcopal. Início do séc.XX.
Fonte: Biblioteca Digital do IBGE, s.d.

Encontramos no arquivo digital da Biblioteca Nacional de


Portugal uma litografia de 1856 (Fig.1 – Imagem A), que mostra
a antiga Igreja dos Jesuítas sob o orago de Igreja Nossa Senhora da 277

Vitória. Em termos de registro de imagem, esta foi a mais antiga que


encontramos. Analisando-a, observa-se a presença do Brasão da Coroa
Imperial Portuguesa no frontispício do templo, possivelmente no lugar
do famoso Brasão da Ordem da Companhia de Jesus retirado após a
última expulsão34. Pode-se observar que a imagem retrata a celebração
de uma missa. Supomos ser a litografia um trabalho de registro da
celebração da entrega da igreja aos fiéis após o término de prováveis
reformas, pois, no ano de 1854 foi realizada solenidade de entrega do
templo que havia sido atingido por descargas elétricas:

O majestoso templo consagrado a Nossa


Senhora da Vitória, que serve de Catedral, e fora
ereto pelos jesuítas, tinha sido muito danificado
por um raio, e achava-se em reparos, quando

34
Em Arte e arquitetura religiosa no Maranhão, as autoras apresentam a informa-
ção da retirada do provável lugar onde estava o Brasão da Ordem em subs-
tituição ao Brasão da Coroa Imperial a partir de informações presentes em
LEMERCIER, J. M. Apontamentos históricos sobre a criação, administração,
melhoramentos materiais da Sé, Catedral do Maranhão. Revista de Geografia e
História, n. 1, Ano II, nov. de 1948.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

chegou o Exmº Prelado à diocese; um outro raio


ainda no dia 20 de Abril desse ano veio completar
a obra da destruição! [...] e o templo restaurado
foi aberto, e havendo-o benzido solenemente, já
pode nele celebrar as solenidades da quaresma de
1854.35

Analisando as fachadas das Imagens A e C (Fig.1),


respectivamente, não encontramos mudanças significativas apesar dos
52 anos que as separam. A única diferença está no Brasão da Coroa
Imperial Portuguesa, que na fotografia de 1908 não aparece sobre o
óculo, devido, com certeza, à Proclamação da República do Brasil, que
ocorreu em 1899.
Observando a Imagem D (Fig.1), vemos a fotografia da igreja
em meados do século XX, já com duas torres, frontão completamente
modificado, desaparecimento do óculo, inserção de vitrais, e a
“modernização” de estilo, do Colonial (Fig.1 – Imagem A e C) para o
Neoclássico, observamos a total descaracterização do templo original. A
segunda torre foi construída por volta de 1922, para “ligar” o Palácio,
278 antigo Colégio da Luz, à igreja. A reforma de 1922 se deu “por conta
das comemorações do centenário da independência do Brasil, quando
realizaram-se grandes obras públicas no Maranhão”36. As obras
constituídas neste ano certamente contribuíram para as intervenções
mais graves do ponto de vista técnico, histórico e estético.
A razão para tais intervenções indica a necessidade de
acompanhar as alterações que ocorreram em outras cidades brasileiras,
como “vitrines” ao crescimento industrial e, consequentemente, o
registro do progresso marcado no início do século XX.
O gosto da época por um estilo arquitetônico eclético, com
elementos do Neoclássico é claramente notado na decoração da
fachada, como, por exemplo, as pseudo colunas e frontões triangulares.
Conforme D. Francisco de Paula e Silva, o Palácio Episcopal já
configurava-se com fachada neoclássica em decorrência da reforma
realizada na gestão entre os anos de 1901 a 1905 do Bispo D.
Antônio Xisto Albano, o que lhe custou várias críticas forçando-o a

35
Jornal O Eclesiástico, de 04 de Junho de 1862, ano X, n. 233.
36
BOGÉA; RIBEIRO; BRITO. Arquitetura e arte religiosa no Maranhão, op. cit.,
p.84.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

pedir renuncia em 1905.37 Portanto, podemos acreditar que a igreja


acompanhou a “modernização” que o palácio obteve anteriormente
dando uma unidade de conjunto, o que confirma a fotografia de
Gaudêncio Cunha em 1908. (Fig.1 – Imagem B e C).
A “modernização” de estilo não se limitou apenas à fachada da
igreja e palácio, propagou-se também para o interior do templo (Fig.2
– Imagem E). Observou-se durante a pesquisa diversas intervenções
em muitos elementos decorativos, porém, nos detivemos ao retábulo e
ao forro da capela-mor.

279

E. F.

Figura 2:
E – Interior da Catedral da Sé atualmente, com vista parcial da nave central e
capela-mor.
Foto das autoras.
F – Interior da Catedral da Sé em 1908, com vista parcial da nave central e
capela-mor. Reprodução fotográfica do original de Gaudêncio Cunha feita
pelas autoras.
Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão – MHAM.

São escassas as referências a respeito das intervenções no


interior da igreja, no entanto, no livro de D. Francisco de Paula e Silva
que narra a trajetória da Arquidiocese do Maranhão, próximo ao final
das suas 483 páginas, um laudo sobre o restauro ocorrido de 1883 a
1886 é preciso e revelador. Uma comissão nomeada pelo Bispo D.
Antônio Candido de Alvarenga, que atuou no bispado no período de

37
PAULA E SILVA. Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão, op.
cit., p.408-409.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

1876 a 1899, apresenta um laudo que revela e descreve problemas de


várias ordens, o que demonstra a necessidade urgente de intervenções.
Segundo o relatório, a situação geral da igreja era muito precária.
[...] procurou esta comissão operários peritos
para fazê-las, procedendo logo a um exame e
vistoria de todo o edifício da Egreja Cathedral e
suas muitas dependências. Desse exame resultou
verificar-se que todo o tecto da nave da capella-
mór do templo e da capela de N.S. da Boa
Morte e da grande sacristia dos Pontíficaes, sala
da lavanda, do alpendre, latrinas e consistórios
estavam completamente apodrecidos e em tal
estado que, só a Divina Providencia obstou que
sobre os fiéis e Corporação Capitular abatessem
os arcos do templo.38

Por esse trecho, nota-se os cuidados emergenciais que a igreja


necessitava, sobre o retábulo e outras peças de madeira que diz “estavam
em grande parte deteriorados, carecendo alguns de novas peças”.
Continua logo abaixo, explicando que recebeu mais verba e o restauro
pode continuar, “os retábulos do altar-mor e o trono da Boa Morte e
280 os 6 da nave, além de estarem pintados com gosto, acham-se quase na
sua totalidade redourados, aproveitando-se apenas o ouro antigo nas
peças que não foram substituídas e nas em que se conservava perfeito”.
Sobre as pinturas do forro da Capela da Nossa Senhora da Boa Morte
“poude felizmente ser bem restaurada”. Essa pintura não existe mais,
e não temos nenhum registro de como era, no entanto nos faz uma
revelação importante:
O forro da nave que é abobadado e tem 135
palmos de comprimento é todo novo, tendo
soffrido grandes reparos os da capela-mor,
cujas novas cambotas foram collocadas junto ás
antigas, afim de serem aproveitadas, como o foi a
magnífica pintura que o orna, original do tempo
dos Revmos. Padres da Companhia de Jesus. 39

Esta citação esclarece que o forro da nave central foi totalmente


trocado, por isso não encontramos nenhuma pintura, como mostra a

38
PAULA E SILVA. Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão, op.
cit. p.332.
39
PAULA E SILVA. Apontamentos para a História Eclesiástica do Maranhão, op.
cit. p.333.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

fotografia do interior da igreja registrada por Gaudêncio Cunha em 1908


(Fig.2 – Imagem F). Por outro lado, revela a existência de uma pintura no
forro da capela-mor pertencente aos jesuítas, uma “magnífica pintura”.
Observando atentamente a foto de Gaudêncio (Fig.2 – Imagem F),
percebemos a existência de uma pintura, conforme detalhe ampliado à
direita da (Fig.3 – Imagem H).
À esquerda (Fig.3 – Imagem G), refere-se à pintura que existe
atualmente na capela-mor feita pelo pintor João de Deus (1896-?). Este,
registra sobre o arco da capela duas datas para realização da pintura, a
primeira de 1927 na capela-mor e uma segunda em 1956, na nave central
onde acrescenta outros elementos ornamentais.

281

G.

H.

Figura 3:
G – Detalhe da pintura do forro da capela-mor realizada pelo artista João de
Deus em 1927.
Foto das autoras.
H – Reprodução fotográfica de original feita pelas autoras a partir de fotos de
Gaudêncio Cunha, 1908. Detalhe que mostra a pintura original realizada pelos
jesuítas.
Fonte: Museu Histórico e Artístico do Maranhão - MHAM.
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

A imagem registrada por Gaudêncio Cunha (Fig.3 – Imagem


H) nos fez levantar a hipótese da existência de uma pintura jesuítica sob
a pintura de João de Deus. Caso tal hipótese fosse confirmada, seria,
talvez, a única pintura jesuítica em São Luís. No entanto, no Inventário
Nacional de Bens Móveis e Integrados do Maranhão40 relata que o
forro da nave central bem como o da capela-mor “após passarem por
intervenções no século XVIII e XIX, foram totalmente retirados em
reforma ocorrida no início do XX”, e ainda completa que receberam
uma nova pintura em 1927 por artista maranhense, João Batista de
Deus. O registro de Gaudêncio é prova que até 1908 a pintura jesuítica
ainda existia.
Observando a Fig.2 – Imagem E nota-se um descompasso,
considerável, de estilos entre a pintura do forro da capela-mor e o
retábulo dourado ao fundo, que traz sobriedade, imponência e riqueza,
características tão bem conquistadas pelos trabalhos realizados pelos
jesuítas.
Quanto ao retábulo, segundo o laudo da empresa de restauro
282
feito em 1993 a 199441, houve uma intervenção de conservação física
e reintegração cromática anterior feita pelo restaurador Edson Motta
em 1959. Neste, o diagnóstico descrito aponta duas alterações “as
reversíveis foram às alterações cromáticas como o recobrimento de
várias áreas douradas por pintura azul; e as irreversíveis foram as
inserções físicas de substituição, como entablamento e mesa rococós,
e o nicho Neoclássico do camarim”. Quanto ao tom azul aplicado
sobre o douramento os restauradores decidiram em removê-lo (Fig.4
– Imagem J) “pois intervia de maneira incisiva na leitura estilística
do retábulo, inclusive por cobrir a talha maneirista, tradicionalmente
dourada, falseando a sua compreensão e enquadramento artístico”.
Como é notado na Imagem I (Fig.4) o retábulo retornou, no século
XX, ao seu dourado quase pleno:

40
BRITO. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados: a Experiência do Mara-
nhão, op. cit., p.56.
41
Consultado no IPHAN do Maranhão.
IGREJA NOSSA SENHORA DA VITÓRIA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO...

I. J.

Figura 4:
I – Retábulo atualmente após sucessivos processos de restauro.
Foto das autoras.
J – Retábulo em processo de remoção de tinta azul entre os anos de 1993 e
1996.
Fonte: Museu da Memória Áudio Visual do Maranhão - MAVAM.
283
Retornando a questão do tombamento do retábulo, Lúcio
Costa afirma que essa ação, poderia retratar o dano causado à memória
dos jesuítas. Com essa consideração, podemos inferir que talvez o
arquiteto tenha feito uma crítica a pintura feita por João de Deus em
1927 na capela-mor, ou que o mesmo, na mesma época, tenha feito
as intervenções em azul no retábulo. “A limitação do tombamento ao
retábulo com as respectivas imagens – peças jesuítas contemporânea do
antigo colégio – pareceu-me desejável como desagravo à memória dos
padres cuja obra foi profanada, em 1927”.42

Considerações finais

A Companhia de Jesus esteve presente em várias regiões do


Brasil, contribuindo de maneira significativa no ensino, bem como
na arquitetura e na produção de obras artísticas. No Maranhão, mais
especificamente em São Luís, não foi diferente, entretanto, o legado

42
PESSÔA, José. (Org.). Lucio Costa: Documentos de trabalho, p.142
MARÍLIA MARTHA FRANÇA SOUSA
REGIANE APARECIDA CAIRE SILVA

deixado pelos inacianos foi ao longo dos anos desaparecendo ou


descaracterizado. As intervenções ocorridas na Catedral da Sé e no
Palácio Episcopal, outrora, Igreja Nossa Senhora da Luz e Colégio da
Luz, respectivamente - heranças dos jesuítas - reforçam a necessidade de
discussões e ações sobre a importância da preservação do patrimônio,
principalmente, em complexos tombados como é o Centro Histórico de
São Luís.
O retábulo do século XVII da Catedral da Sé, apesar das várias
intervenções, pode retornar, em boa parte, ao estado original no restauro
realizado em 1993/94. É o mais relevante legado preservado deixado
pelos inacianos, escolhido por Lúcio Costa em 1954 para ser o primeiro
bem a ser tombado. No entanto, a pintura jesuítica que sobreviveu até
1908, como mostrou a fotografia de Gaudêncio Cunha, foi destruída.
Apesar da pouca definição do registro, mesmo assim, pode-se notar a
harmonia que possuía a capela-mor com seus dois elementos elaborados
pelas práticas artísticas jesuíticas: o retábulo e a pintura do forro.
Soturnamente, a mesma harmonia não ocorre na atualidade com a
284
pintura feita em 1927 por João de Deus no forro da capela-mor.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

Capítulo 18

FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO


SEISCENTOS PORTUGUÊS

Renata Nogueira Gomes de Morais

Introdução1

Para refletir sobre o interesse que o português Filipe Nunes


demonstrou em relação ao estudo da perspectiva, é necessário indagar
sobre quem ele teria sido, o que produziu, por quais motivos se
interessou pelos elementos técnicos da pintura e o porquê inseriu-se
em um movimento maior, no qual englobava a produção de tratados.
Nesse sentido, torna-se imprescindível selecionar alguns tratados do
período para que se compreenda como o Arte da Pintura. Symmetria e 285

Perspectiva dialoga com outros tratados espanhóis, italianos e portugueses


do Seiscentos.
Em dissertação defendida recentemente,2 foram apontados
os dilemas que ainda existem sobre a vida e os escritos atribuídos
ao português Filipe Nunes. Diante disso, surge uma indagação:
Afinal, quem teria sido Filipe Nunes? Um filósofo? Um teórico? Um
pintor? Um religioso? Um estudioso da perspectiva? Interessa-nos
compreender neste texto Nunes como um estudioso da perspectiva,
um curioso pela técnica que permitiria a ilusão de “olhar através de
uma janela”; ou melhor: a inserção de um objeto tridimensional no
plano pictórico. Para uma melhor compreensão sobre quem teria sido
Filipe Nunes, é fulcral pontuar alguns dados sobre sua trajetória.

1
Artigo produzido a partir da comunicação apresentada no congresso, A cons-
trução da fantasia: Arquitetura, escultura, talha e pintura na ordenação do espaço sagrado
tridentino, realizado em novembro de 2015, em Ouro Preto, Minas Gerais.
2
Ver mais em: MORAIS, Renata Nogueira Gomes de. A compreensão de Filipe
Nunes acerca da pintura e dos seus elementos “técnico-científicos” no tratado Arte da Pintu-
ra, Symmetria e Perspectiva, Lisboa, 1615. 2014. 226 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

Afinal, quem foi Filipe Nunes?

Como foi dito, observa-se que ainda existem muitas dúvidas


e imprecisões a respeito de seus dados biográficos, todavia, é possível
saber algumas informações sobre sua trajetória religiosa, e até mesmo
sobre sua vida pessoal. De acordo com a historiadora Leontina Ventura,3
Filipe Nunes teria nascido na segunda metade do século XVI, em Vila
Real (província de Trás-os-Montes), região norte de Portugal, sendo
filho de Belchior Martins e Guiomar Nunes. É curioso o fato de ter
o sobrenome de sua mãe, em uma época na qual os filhos herdavam
comumente apenas o sobrenome do pai.4
Ainda discutindo sobre seus dados biográficos, não há
informações sobre sua infância e adolescência, no entanto, sabe-se que
por volta de 1591,5 durante sua juventude, deslocou-se até Lisboa para
ingressar na Ordem dos Pregadores Dominicanos. Por conseguinte,
a documentação comprova sua participação no Convento de São
Domingos de Lisboa, pois é possível ver o registro de sua entrada no
Livro das Profissões do Convento de São Domingos de Lisboa [1516-
286 1591].6 Infelizmente, não foi possível ter acesso a esse documento,
contudo, ao analisar as colocações de Leontina Ventura e aqueles de
Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes, infere-se que se trata de um texto
importante para um estudo mais aprofundado sobre a sua biografia.
O desconhecimento dos motivos que levaram esse Dominicano
a professar no Convento de São Domingos de Lisboa, gerou a
construção de hipóteses que tentam compreender a sua entrada na
Ordem dos Pregadores de Lisboa. Ventura7 aponta quatro justificativas

3
VENTURA. Leontina. Estudo Introdutório. In: NUNES, Philippe. Arte da
Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Editorial Paisagem, 1982, p. 11. Pela
citação existente no livro de Ventura, observa-se claramente que ela retirou
essa informação do livro de José da Cunha Taborda, Regras da Pintura, de
1815. TABORDA, José da Cunha. Regras da Pintura. Lisboa: Impressão Régia,
1815. p. 183.
4
VENTURA. Estudo Introdutório, p. 11. loc.cit.
5
GOMES, Paulo Jorge Pedrosa Santos. Arte Poética: um tratado maneirista
de métrica. 1996. 203f. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Faculdade de
Letras, UC, Coimbra, Portugal, p. 7.
6
Livro das Profissões do Convento de São Domingos de Lisboa [1516-1599].
In: Cartório Dominicano Português, Século XVI. Porto, Arquivo Histórico Domi-
nicano, fasc. 5., 1974, pp. 69B-70A.
7
VENTURA. Estudo Introdutório, p. 12.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

para essa decisão. Em primeiro lugar, afirma-se que ele, seguindo uma
atitude comum em sua época, teria deixado sua vida para encontrar
a felicidade e se purificar; em segundo, para fugir do preconceito das
profissões mecânicas e do trabalho manual – que ainda eram vistos
negativamente naquela sociedade. Em terceiro lugar, está no fato de ser
pintor e a arte no seu tempo ser pouco valorizada, o que o levou a
preferir a vida monástica. A quarta e última hipótese8 coloca Nunes na
esteira dos homens de sua época, os quais rejeitaram o mundo secular
em razão das angústias geradas pelas crises econômica e social do fim
do século XVI, em outras palavras: o claustro poderia ser uma solução
para a busca de melhores condições de vida e de estudo.
Além das possibilidades que o levaram a ingressar na vida
monástica, é importante destacar as posições ocupadas por ele dentro
da Ordem Dominicana nos primeiros anos, demonstrando sua atuação
religiosa e dedicação. Embora alguns detalhes sobre sua trajetória
como religioso sejam uma incógnita para os estudiosos, é possível
ter informação sobre as posições ocupadas pelo tratadista português
na Ordem Dominicana. Ao longo de sua trajetória como professor,
Filipe Nunes estará presente em algumas funções como: Subdiácono, 287
Diácono, Presbítero ou Sacerdote9.
Dadas as referidas dificuldades documentais, não é possível
ter precisão em relação à sua data de nascimento e morte. Por essa
razão, observa-se a existência de versões que discutem o assunto.
Considerando isso, Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes10 apresenta
a possibilidade de ter nascido por volta de 1571, afirmativa feita em
função de o mesmo historiador considerar que Nunes teria ingressado
na Ordem dos Pregadores Dominicanos por volta de seus vinte anos
de idade, isto é, no ano de 1591. Corroborando a hipótese de Pedrosa
Santos Gomes, o estudioso francês Emmanuel Bénezit11, em seu
Dictionnaire Critique et Documentaire des Peintres, Sculpteurs (1960),
registra que Nunes nasceu antes de 1575. De qualquer forma, pode-se

8
Cf. BENASSAR, Bartolomé. Valladolid au Siécle d’or. Paris: Mouton, 1967.
9
VILLALTA, Luiz Carlos. A Igreja, a sociedade e o clero In: História de Mi-
nas Gerais: As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica/Companhia do
Tempo, 2007, 2º ed., v.2, p. 25-57.
10
GOMES. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica, p. 6.
11
BÉNEZIT, Emmanuel. Dictionnaire Critique et Documentaire des Peintres, Sculp-
teures. Paris: Grund, 1960, v. 6., p. 393b.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

dizer que o tratadista vivenciou a transição do século XVI para o XVII,


uma informação importante quando consideramos que a escrita do
tratado Arte da Pintura ocorreu no final do Seiscentos.
Assim como existem incertezas com relação às datas de seu
nascimento e morte, a sua formação cultural/artística também se
mostra uma incógnita aos historiadores. Dentre as diversas indagações
sobre a vida de Filipe Nunes, existe uma que é comum a todos: seria ele
um pintor? É difícil afirmar, pois não há documentação que comprove
essa dúvida.12 Nesse sentido, um fragmento do texto de Leontina
Ventura corrobora o desconhecimento sobre a formação do tratadista
português, pois, de acordo com ela:
[...] sobre seus estudos, os seus mestres, os seus
discípulos, as escolas que frequentou e onde
terá bebido sua cultura literária artística – Em
Portugal? No estrangeiro? – Nada sabemos [...].13

O mesmo desconhecimento sobre a formação deste teórico é


compartilhado por Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes, o qual comenta
288 que: “Da formação de Filipe Nunes, como vimos, nada sabemos.” 14
Diante das dificuldades, o pesquisador busca nas entrelinhas do tratado
Arte Poética15 - parte integrante do tratado Arte da Pintura – alguns
aspectos que revelem a atuação do tratadista e os seus antecedentes
culturais e intelectuais. Será a partir do seu estudo que Santos Pedrosa
concluirá que ele não era erudito, pois certamente não teria consultado
as diversas fontes que citou no Arte Poética, uma vez que apenas as

12
Diferentemente de Nunes, Holanda é visto como autor de uma pintura,
pois o historiador Joaquim de Vasconcelos aventa que a tabuinh1a Nossa Se-
nhora de Belém, presente no Museu Nacional de Arte Antiga, é de sua autoria.
SERRÃO, Vítor. A pintura Maneirista em Portugal. Lisboa: Presença, 1991, 2º
ed., p. 23.
13
VENTURA. Estudo Introdutório, p. 12.
14
GOMES. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica, p. 12.
15
CHAGAS, Filipe das. Arte Poética, e da pintura, e symmetria, com princípios da pers-
pectiva. Composta por Philippe Nunes. Lisboa: Pedro Craesbeek, 1615. Nesta
referência encontra-se anexada a versão do Arte Poética, o que não ocorre com
a segunda edição do tratado, publicado em 1767. Infelizmente não tivemos
acesso à edição completa de 1615, pois a versão disponível daquele período é
o fac-símile reproduzido por Leontina Ventura. Até é possível termos acesso
ao documento na Biblioteca Nacional de Portugal, porém, este ainda não se
encontra digitalizado, diferentemente da versão de 1767 que está disponível
em:< http://purl.pt/777>. Acesso em: 20 Abr 2011.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

compilou de uma única fonte: o texto de Ad verbum Quadragesimaquinta


consideratio do Catalogus Gloriae Mundi, de Bartholomaneus Cassanaeus,
publicado em 1575.16 Ademais, Gomes17 defende que a ideia de Filipe
Nunes produziu suas obras em regime de clausura no Convento de São
Domingos de Lisboa é equivocada, uma vez que não haveria respaldo
documental para essa afirmação. Aliás, ao contrário de Leontina
Ventura, desde o início do seu estudo Gomes vem apontando a falta
de conhecimento do tratadista em relação às suas fontes, porquanto ele
não se preocupou “[...] em ser exaustivo, ou de alardear muita erudição,
que provavelmente não deveria ir além do que expôs [...]”.18
Diferentemente de Paulo Jorge Pedrosa Santos Gomes,
Leontina Ventura procurou também investigar a erudição deste
tratadista, com o fim de suprir as lacunas existentes sobre a sua
formação. Com efeito, Ventura19 defende a ideia de que sua educação
intelectual ocorreria, de fato, somente após a entrada no Convento de
São Domingos de Lisboa, em 1591. Para comprovar suas afirmativas,
a pesquisadora portuguesa utiliza-se de fontes que revelaram a relação
289
que a Ordem Dominicana mantinha para com a arte e a literatura,
como, por exemplo, a obra Memorie dei piu illustri architetti, pittori ed scultori
domenicani (1878), cuja autoria é atribuída ao religioso italiano Marchese.
É interessante destacar que aquela obra comprova a valorização das
artes, em geral, pelos Dominicanos, pois em um trecho se diz que:
“Em nenhuma ordem religiosa floresceram tantos artistas, pintores,
escultores, arquitetos, miniaturistas como na ordem dominicana.”20
Sendo assim, a partir dessas colocações Leontina Ventura21 afirmou
que Filipe Nunes adquiriu toda a sua formação intelectual no claustro,

16
GOMES. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica, loc.cit.
17
GOMES. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica, p. 9.
18
GOMES. Arte Poética: um tratado maneirista de métrica, p. 16.
19
VENTURA. Estudo Introdutório, p. 16.
20
MARCHESE. Memorie dei piu illustri architetti, pittori ed scultori domenicani. Bo-
lonia, 4ª ed, 1878. Observa-se que Ventura não traz mais informações sobre
quem teria sido Marchese, no entanto, a historiadora portuguesa traz fontes
que subsidiam nosso entendimento sobre o olhar dos dominicanos para a
arte e para o conhecimento. Ver em: VENTURA. Estudo Introdutório, p. 16.
MARCHESE. Memorie dei piu illustri architetti, pittori ed scultori domenicani.
21
VENTURA. Estudo Introdutório, p. 15.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

uma vez que teria sido no ingresso com a Ordem Dominicana que e o
mesmo produziu as suas outras obras religiosas22.
Sendo assim, nas linhas anteriores procurou-se referenciar
seus dados biográficos, bem como sua trajetória monástica. Além do
mais, discutiu-se sobre a formação, item essencial para compreender
sua relação com a perspectiva.

O Arte da Pintura no ambiente artístico/científico do Seiscentos

Publicado em 1615 na cidade de Lisboa, por Pedro Craeesbeck,


português simpático à Inquisição, o tratado Arte da Pintura, Symmetria
e Perspectiva (FIG I) chama a atenção por seu conteúdo e pelo fato de
Portugal não ter uma grande publicação de tratados, como ocorria
comumente em lugares como a Itália. Em relação ao conteúdo do Arte
da Pintura, observa-se que este é dividido em quatro partes: 1) Prólogo aos
Pintores, 2) Louvores da Pintura, 3) Princípios Necessários a Pintura: perspectiva e
simetria 4) Arte da Pintura. Com efeito, na primeira parte, Nunes23 expõe
290
seus objetivos, isto é, ensinar a arte da pintura a todos àqueles que
queriam aprendê-la. Prosseguindo, na segunda parte24 dedica-se a
defender a pintura como uma arte liberal e nobre – contrapondo àquela
visão que a via como uma prática artesanal – e, para isso, o religioso
sedimenta sua argumentação nos discursos dos tratadistas ibéricos e
italianos. Já na terceira parte,25 ele apresenta a pretensão de ensinar
os elementos como a perspectiva e a simetria, os quais concediam
intelectualidade à prática pictórica. Na última parte,26 reservada ao final
do texto, o tratadista cuida de demonstrar aos seus leitores a mistura

22
Ver: CHAGAS, Fillipe das. Um Modo Breve de Meditação da Paixão, re-
partidas pelos dias da semana. In: CALVO, Pedro. Paraphrasis do Psalmo Beati
Immaculati in Via 118. Lisboa: João Rodrigues, 1633. Disponível em: <http://
catalogo.bnportugal.pt/ipac20/ipac.jsp?session=1J735V2386625.704132&p
rofile=bn&source=~!bnp &view=subscriptionsummary&uri=full=3100024
~!439106~!6&ri=1&aspect=subtab96&menu=tab20&ipp=20&spp =20&st
affonly=&term=Filipe+das+Chagas&index=.AW&uindex=&aspect=subta
b96&menu=search&ri=1>. Acesso em: 12 de dezembro de 2012.
23
NUNES. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva, 1982, p. 69.
24
NUNES. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva, p. 69-77.
25
NUNES. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva, p.77-100.
26
NUNES. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva, p. 101-139.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

de pigmentos e das tintas, a aplicação destas em determinadas peças


e a maneira pela qual se poderia obter certas tintas e polimentos,
orientando aos pintores para a formação de um verdadeiro receituário
técnico.

291

Figura 1: Portada do tratado Arte Poética e da Pintura, Symmetria e Perspectiva, 1615,


Lisboa.
Fonte: NUNES, Filipe. A arte da pintura: symmetria e perspectiva. Porto: Editorial
Paisagem, 1982.

É interessante notar também que a edição de 1615 tinha contida


o Arte Poética, um tratado cujo objetivo foi o de ensinar a métrica. Vê-
se que como ocorria com outros tratados escritos no século XVI, era
comum a publicação de tratados de pintura e de poesia em uma mesma
edição, uma vez que a ideia do Ut Pictura Poesis, isto é, de que a pintura era
tão importante quanto à poesia, deveria ser defendida e propagada. Nos
Setecentos, por volta de 1767 (FIG II), o tratado é publicado novamente
e, diferentemente da edição anterior, o Arte Poética não apareceria, pois
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

se acredita que nesse período os tratadistas afirmariam a pintura por seu


caráter “científico”, e não mais pela comparação com a poesia.

292

Figura 2: Portada da 2º edição do Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva,


1767, Lisboa.
Fonte: NUNES, Filippe. Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva. Officina
João Baptista Alvares, 1767.

Antes de situar o tratado de Nunes no universo dos tratados


seiscentistas, é interessante compreender o que se entende por tratados.
Afinal, o que seria um tratado de arte? Pode-se dizer que a resposta
a essa indagação é marcada por diversos pontos de vista. Observa-se
que o historiador alemão Julius Von Schlosser compreende o termo
“tratado” por meio do conceito de literatura artística ou Kunstkuteratur,
o qual abarcaria: os relatos e guias de viagens, as descrições de edifícios,
reais ou imaginados, as biografias de artistas e mecenas, as monografias
sobre obras concretas, os receituários técnicos a reflexões estéticas,
os catálogos de museus, os pensamentos ou desenhos e projetos, os
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

romances, poesias ou coletâneas de observações. Além de Sholosser,


o historiador José Fernandes Pereira27 definiu os tratados de arte
como uma fonte de conceitos e de sugestões visuais – os quais
foram apropriadas e interpretadas pelos artistas –, porquanto aqueles
desempenharia a função de um código normativo na formação dos
artistas e nos gostos dos encomendadores. Será a partir das definições
de Sholosser e José Fernandes Pereira que se compreende o tratado
Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva.
Ao fazer uma leitura meticulosa do Arte da Pintura, Symmetria
e Perspectiva, nota-se que o autor trouxe à luz discussões que também
estariam presentes nos tratados científicos/ artísticos. Nesse sentido,
vê-se que a ideia de defender a pintura do estigma manual, já havia
sido abordada em outros tratados, como o Da Pintura Antiga (1548),28
do português Francisco de Holanda. Embora ocorra semelhança
entre os textos de Holanda e Nunes no que se refere à defesa da
pintura, é interessante dizer que o Arte da Pintura destacar-se-á pelo
fato de imprimir um novo discurso à pintura, o qual se valorizou os
293
elementos “científicos” da pintura, tais como a perspectiva e a simetria.
Com efeito, compreende-se como “tratados científicos” aqueles que
abordaram o conhecimento “científico”, como a matemática, por
exemplo. É importante lembrar que durante o século XVI arte e ciência
eram campos interligados, o que justifica o fato de muitos tratados de
pintura tratarem dos elementos do campo da matemática, como se
verá nos exemplos seguintes.
Observa-se que o texto de Nunes pode ser compreendido
dentro de um movimento maior, já que durante o século XVI
surgiriam tratados destinados a chamarem atenção aos elementos
científicos presentes na pintura e na arquitetura.29 Dentre esses

27
PEREIRA, José Fernandes; PEREIRA, Paulo. (Org.). Dicionário de Arte Bar-
roca. Lisboa: Presença, 1989.
28
HOLANDA, Francisco. Da Pintura Antiga. Porto: Renascença Portuguesa,
1918.
29
LEITÃO, Henrique; MELLO, Magno Moraes. A pintura barroca e a cul-
tura matemática dos Jesuítas: O Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S.J
(1715). Revista de História de Arte, Lisboa, v. 1, 2005. p. 97-96. Disponível em:
<http://iha.fcsh.unl.pt/uploads/RHA_1_4.pdf>. Acesso em: 3 set. 2011.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

tratados, encontra-se o Le due regole della prospectiva, publicado em


1583, pelo arquiteto italiano Jacopo Barrozi Vignola (1507-1573). De
acordo com o pesquisador Pierro Rocasseca,30 Vignola apresentou
a perspectiva como uma linguagem e um instrumento, que, por sua
vez, foi usada para resgatar o conhecimento geométrico contido no
tratado do matemático grego Ptolomeu (90-168 a.C). Nesse processo
de produção de textos científicos, encontra-se também o tratado De
Artificiali Perspectiva, publicado em torno de 1505, pelo Cônego francês
Jean Pèlerin (1435-1524): o Viator, conhecido por este nome no século
XVI.31 Conforme afirmou o historiador Luís Alberto Casimiro, 32 o
tratado do cônego francês discutiu algumas questões da representação
perspéctica, o que justifica sua circulação em solo luso, tendo em vista
a escassa produção desses tipos de tratados no início dos Quinhentos
em Portugal.
A produção de textos científicos em Portugal durante o
século XVI foi débil, porém, à medida que se avançava ao final do
século XVI, é possível perceber o surgimento de uma preocupação
294
em se escrever tratados científicos. O pesquisador José Manoel
Simões Ferreira33 comprova esse cuidado ao elencar alguns tratados
de arquitetura portugueses, produzidos no fim do século XVI. Tendo
em vista nossos objetivos, demonstrar-se-á apenas dois: presume-se
que o arquiteto português Antônio Rodrigues (1525-90) tenha escrito
um manuscrito (não publicado) entre os anos de 1576 e 1579, com o
título de Tratado de Arquitetura. O arquiteto português Afonso Álvares

30
ROCASSECA, Pierro. Della Prospettiva Pratica Alla Prospettiva Matemati-
ca. In: MELLO, Magno Moraes (Org.). Ars, Techné, Technica: a fundamentação
da teórica e cultural da perspectiva. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, p.
130.
31
Sobre o tratado de Viator em Portugal, ver mais em: CASIMIRO, Luis Al-
berto. A mobilidade dos pintores como factor de desenvolvimento do saber
científico e artístico. In: COLÓQUIO DE HISTÓRIA DA ARTE, 7, 2006,
Porto. Artistas e Artífices e sua mobilidade no mundo de expressão portuguesa. Porto:
Faculdade de Letras do Porto, 2007. p. 265-277. Disponível em: < http://ler.
letras.up.pt/uploads/ficheiros/6150.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2012.
32
CASIMIRO, Luís Alberto. A mobilidade dos pintores como factor de de-
senvolvimento do saber científico e artístico, p. 267.
33
FERREIRA. José Manoel Simões. História da teoria da arquitectura no Ocidente:
de forma resumida e como guião para o seu estudo mais aprofundado. Lisboa:
Vega, 2010, p. 52.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

(?-1580) também publicou tratados de arquitetura, tais como Instruções


das fortificações do reino do Alvargues, escrito em 1571. Ademais, acredita-se
que o fato de José Manoel Simões referenciar Arte da pintura, Symmetria,
e Perspectiva juntamente aos tratados de arquitetura justifica-se pelo
fato de o texto de Filipe Nunes tratar dos elementos científicos da
arquitetura, como a perspectiva e a proporção. Corroborando essa
afirmação, os historiadores Magno Mello e Henrique Leitão34 destacam
a relevância do seu tratado de pintura para a perspectiva ao colocarem
este juntamente aos tratados de perspectiva portugueses que foram
produzidos antes do século XVIII.
Acredita-se que o tratado Arte da Pintura estivesse inserido
na produção de tratados científicos, não somente por abordar a
perspectiva, mas por trazer de outros tratados discussões científicas,
visto que se utilizou das referências existentes sobre a representação
perspéctica para compor os Princípios da Perspectiva em seu tratado.
Nesse sentido, Nunes recorre a: La pratica Della Perspecttiva, de Daniel
Bárbaro (1514-1570),35 publicado em 1569, e a tradução castelhana do
295
texto de geometria do matemático grego Euclides (330 a.C. - 260 a.C.),
publicado em 1585.36 Em outra seção, o autor informa claramente (o
que não ocorre com o estudo da perspectiva) às fontes que se baseou
para construir sua concepção sobre as proporções humanas. Com
efeito, as quatro referências utilizadas por ele são: Della Simmetria Delli
Corpi Humani37 (tradução do título original em alemão para a língua

34
LEITÃO, Henrique; MELLO, Magno Moraes. A pintura barroca e a cul-
tura matemática dos Jesuítas: O Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S.J
(1715), p. 108-109.
35
BÁRBARO. Daniel. La pratica Della Perspecttiva [...]. Veneza: Camillo & Ruti-
lio Borgominieri Fratelli, 1569. p. 6. Esse tratado versaria sobre a perspectiva
e definiria questões referentes à sua aplicação. Daniel Bárbaro foi um italiano
interessado na cultura humanista e preocupado com as questões da perspec-
tiva e também defenderia a ideia da ciência da pintura, assim como Leonardo
da Vinci.
36
EUCLIDES. La perspectiva e especularia de Euclides. Tradução: Pedro Ambrósio
Orderiz. Madrid: Alonso Gomes, 1585.
37
A tradução utilizada neste trabalho foi esta: DURERO, Alberto. Della sim-
metria delli corpi humani: Tradução: Paolo Galucci Salodiano. Veneza: Roberto
Meietti, 1594. Durer foi um pintor, teórico da arte, ilustrador. Suas gravuras
circulariam em toda Europa e seu posicionamento era aquele que viria a pin-
tura como ciência, tanto que abordou a perspectiva e a simetria.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

italiana) escrita por volta de 1528 pelo pintor alemão Albrecht Durer
(1471-1528); De Varia Commensuración para la Esculptura y Architectura,38
publicada em 1585, pelo escultor espanhol Juan D’Arfe (1535-1603);
Il Dieci livri dell’ architetura [...],39 tradução italiana com comentários
de Daniel Bárbaro do texto do arquiteto romano Vitrúvio (90 a.C. -
20 a.C.); e, por fim, o La pratica Della Perspecitiva40 (Veneza, 1569), do
tratadista Daniel Bárbaro, cujo texto foi usado por Nunes em seu tratado
tanto no entendimento da perspectiva como da simetria. Embora
o Dominicano não os tenha citado, observa-se que outros textos
trataram sobre as proporções humanas, como aquele do matemático
italiano Luca Paciolli (1445-1517),41 que escreveu em torno de 1495-
1496, o Da Divina Proportione,42 ou o do espanhol Diego de Sagredo
(1490-1528), o qual escreveu Medidas Del Romano,43 em 1526. Assim,
o vulto de circulação de livros e manuscritos ocorridos em Portugal
no fim do século XVI e apontados no estudo do historiador Gomes
de Brito,44 pode justificar o acesso das fontes referenciadas em Arte da
Pintura.
296
Além do interesse de Filipe Nunes pela perspectiva, justificar-
se grande produção de tratados científicos/artístico do Seiscentos,
é relevante destacar o ambiente científico em que o português

38
D’ARFE, Juan. De Varia Commensuración para la Esculptura y Architectura. Se-
vilha: Andrea Pescioni Y Juan Leon, 1585. D’Arfe foi famoso por escrever
obras sobre esculturas e defender as técnicas destas.
39
VITRUVIO. Il Dieci livri dell’ architetura. Tradução: Monsenhor Daniel Bár-
baro. Veneza: Francesco De Francischi Scenefe e Giovanno Chrieger, 1567.
Aventa-se que tenha sido este exemplar que Filipe Nunes tenha tido contato,
pois, conforme Rafael Moreira, ele teria sido bastante difundido em Portu-
gal. MOREIRA, Rafael. A mais antiga tradução europeia de Vitrúvio Pedro
Nunes 1537-1541. In: MOREIRA, Rafael; RODRIGUES, Ana Duarte (og.)
Tratados de arte em Portugal. Lisboa: Scribe. 2011. p. 53.
40
BÁRBARO. Daniel. La pratica Della Perspecttiva [...] Veneza: Camillo & Ruti-
lio Borgominieri Fratelli, 1569.
41
Luca Paciolli teria sido um religioso preocupado em estudar questões mate-
máticas e sistematizá-las no tratado.
42
PACIOLI, Luca. La divina proporción. Madrid: Ediciones Akal, 1991.
43
SAGREDO, Diego de. Medidas del Romano: necessarias a los oficiales que
quieren seguir las formaciones de la Basas, Colunas, Capiteles y otras piecas de
los edificios antiguos. Toledos: En casa de Ramon de Petras, 1526.
44
BRITO, Gomes. Notícias de impressos e livreiros em Lisboa na segunda metade do
século XVI. Lisboa: Imprensa Libanio da Silva, 1911.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

provavelmente desenvolveu-se. Antes de avançar na discussão sobre


a possível relação que o Arte da Pintura estabeleceu nesse período,
é imprescindível compreender o conceito de ciência em que está
trabalhando. Baseando-se nas colocações de Pierre Thuiller, 45 entende-
se que as experiências anteriores às formulações teóricas, provenientes
da “Revolução Científica”, podem ser consideradas também como
científicas, ao invés de primitivas. Vê-se que essa afirmação comprova-
se quando se defende a ideia de que não haveria uma separação
entre história da técnica e história da ciência nesse período, pois os
saberes compartilhados (empíricos e teóricos) produzidos por artistas,
pintores, arquitetos, engenheiros, pedreiros e escultores entrelaçavam-
se no século XVI.
Entende-se que compreender o universo de saberes científicos
compartilhados é muito importante, uma vez que se acredita que a
matemática integrou a escrita de Arte da Pintura. Logo, considera-
se que a perspectiva (elemento da pintura) é matemática, sobretudo
porque suas bases encontravam-se na aritmética, na geometria e na
trigonometria. Nota-se que a ideia da pintura como científica já teria sido
defendida por Leonardo da Vinci, cujas proposições afirmavam que o 297
pintor participaria do desenvolvimento de outras ciências relacionadas
ao seu ofício, como a geometria, a perspectiva e a anatomia. Tendo em
vista a importância da matemática para a escrita do tratado de Nunes,
abordar-se-ão abaixo dois aspectos que consideramos primordiais: a
importância da Companhia de Jesus para o desenvolvimento do ensino
da matemática e a relação entre a ciência e os Dominicanos.
Por volta de 1540, a Companhia de Jesus instalou-se em
Portugal trazendo grandes contribuições para o ensino da matemática,
pois sua missão foi para além da religiosa. Acredita-se que sua presença
contribuiu para a divulgação do conhecimento matemático científico
em Portugal, dado que o objetivo dos Jesuítas foi o de formar
especialistas em Náutica e Cosmografia em função da carência de
um quadro técnico no país. Além do mais, acredita-se que a origem
dos cursos de matemática, trazidos pelos Jesuítas, foi um pedido de
D. Sebastião (1557-1578), sendo a solicitação também reforçada por
Filipe I de Portugal. Com efeito, as aulas de matemática ou “Aula da

45
THUILLIER, Pierre de. Arquimedes a Einstein – a fase oculta da invenção
científica. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

Esfera,” como era conhecidas, eram frequentadas também por alunos


não Jesuítas, os quais eram caracterizados por homens técnicos ou
artistas interessados em aprender ou aprimorar seus conhecimentos
matemáticos e científicos.46
Assim, nota-se que a relevância dos Jesuítas em Portugal situa-se
no campo do ensino. Essa preposição é confirmada pelos historiadores
Henrique Leitão e Magno Mello,47 os quais salientaram a atuação
da Companhia de Jesus na administração de várias instituições de
ensino em Portugal, tais como: a administração do Colégio das Artes
de Coimbra (1555), a fundação da Universidade de Évora (1559), o
Colégio de Santo Antão (1553), cujo nome mudaria para Santo-Antão-
o-Novo em virtude da inauguração da nova sede, em 1593. De acordo
com Ugo Baldini,48 a instituição de ensino Jesuíta que mais se destacou
foi o Colégio Santo-Antão-o-Novo, uma vez que este teria sido
pioneiro a oferecer, em Lisboa, a partir de 1590, cursos regulares de
matemática. Dessa forma, acredita-se que o Colégio Santo-Antão-o-
Novo desempenhou um papel importante, pois de acordo com Rafael
298 Moreira,49 anteriormente isso não ocorreria, salvo o pequeno grupo que
o matemático Pedro Nunes fundou – uma espécie de academia – onde
ocorreriam discussões científicas e a produção de um conhecimento,
porém, divulgado para poucas pessoas.
A partir das informações contidas nas entrelinhas do Arte
da Pintura. Symmetria e Perspectiva, pode-se deduzir que Filipe Nunes é
contemporâneo às discussões científicas que ocorreram em Portugal
no final do século XVI, pois conforme Henrique Leitão,50 a partir de

46
LEITÃO, Henrique; MELLO, Magno Moraes. A pintura barroca e a cul-
tura matemática dos Jesuítas: O Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S.J
(1715), p.114-115.
47
LEITÃO, Henrique; MELLO, Magno Moraes. A pintura barroca e a cul-
tura matemática dos Jesuítas: O Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S.J
(1715), p.114.
48
BALDINI, Ugo. L’Insegnamento della Matemática nell Collegio di S. Antão
a Lisbona 1590-1640. In: GONÇALVES, Nuno da Silva. (Org). A Companhia
de Jesus e a Missionação no Oriente. Lisboa: Fundação Oriente, 2000, p 234-310.
49
MOREIRA. A mais antiga tradução europeia de Vitrúvio Pedro Nunes em 1537-
1541, p. 60.
50
LEITÃO, Henrique. Sphaera Mundi: A Ciência na Aula Esfera. Lisboa: Catá-
logo da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), 2008.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

1590 professores estrangeiros dirigiram-se a Portugal para lecionarem


aulas públicas de matemáticas, oferecidas pelos Jesuítas no Colégio de
Santo Antão. Tendo isso em vista, é possível supor que ele tenha tido
contato com esses professores estrangeiros, uma vez que seu tratado
abordou a perspectiva e a simetria, elementos regidos pela matemática.
Ademais, o fato da matemática, representada também na preposição
do Trivium e do Quadrivium integrar o aprendizado do homem erudito
do século XVI pode ter impulsionado-o a aprender a matemática.51
Nas colocações anteriores, percebeu-se que o conhecimento
estava nas mãos do grupo dominante, seja dos filhos de nobres,
seja das ordens religiosas,52 como os Jesuítas. Essa característica é
comprovada pelo pesquisador Antônio Augusto Marques Almeida,53
o qual defendeu que ter o domínio do conhecimento científico
significava poder. Outro exemplo que demonstra como o domínio do
conhecimento encontrava-se nas mãos da Igreja é relembrado pelo
pesquisador Pedro Vilas Boas Tavares,54 o qual afirmou que no século
XVI o professor de matemática Domingos Peres aparece ligado às
299
casas religiosas dos Franciscanos, de São Frutuoso, e dos Jesuítas e do
Colégio de São Paulo (Braga). Ademais, sabe-se que, em seu testamento,
Peres destinou a esses jesuítas os seus livros de matemática, artes e seus
respectivos instrumentos.
Não é possível obter-se esclarecimentos sobre o posicionamento
da Ordem Dominicana em relação aos conhecimentos científicos,

51
Lembramos que a pesquisadora Marília Azambuja de Ribeiro publicou no
ano de 2013 um artigo sobre a literatura artística nos colégios jesuíticos de
Lisboa. Ver em: RIBEIRO, Marília Azambuja de. Literatura artística nos co-
légios jesuíticos de Lisboa Santo Antão e São Roque. In: Varia História, Belo
Horizonte, v. 29, n. 50, p.421-433, maio/agosto de 2013.
52
CARVALHO, Rômulo de. O uso da língua latina na redação dos textos
científicos portugueses. In: Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa:
Academia das Ciências de Lisboa, 1988.
53
ALMEIDA, Antônio Marque de. Saberes e práticas de Ciência no Portugal
dos descobrimentos. In: TENGARRINHA. João (Org.). História de Portugal.
Bauru: Edusc, 2000, p. 81.
54
TAVARES, Pedro Vilas Boas. Domingos Peres: professor de matemática
da Princesa Maria de Portugal, na fundação de um beatério bracarense. In:
D. MARIA DE PORTUGAL, Princesa de Parma (1565-1577) e seu tempo: As
relações entre Portugal e Itália na segunda metade dos Quinhentos. Porto:
Edições Afrontamento, 1999, p. 24.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

contudo, existem pontos que nos levam a algumas inferências. Entende-


se que a dificuldade para encontrar informações sobre a relação que os
Dominicanos mantiveram com a arte e também com a ciência, pode
ser justificada pelo incêndio da biblioteca da Ordem em 1755, ocorrido
em função do terremoto de Lisboa. Corroborando essa questão, o
pesquisador Luís Fernando de Carvalho55 afirma por meio das cartas
sobre as livrarias de Portugal, elencadas pelo escritor Antônio Ribeiro
dos Santos, a importância da biblioteca do Convento de São Domingos
de Lisboa (no qual Filipe Nunes professou) – considerada uma das
melhores, porquanto essa abrigava mais de 5.000 mil manuscritos.
Embora não tenhamos acesso a alguma informação que
elucide a respeito da relação da Ordem Dominicana com a produção
do conhecimento científico, tal como aconteceu com os jesuítas, é
importante destacar duas informações que respaldaram as conclusões
sobre a relação dos Dominicanos com o conhecimento. Em primeiro
lugar, é possível dizer que os Dominicanos possuíam uma intenção
semelhante àquelas dos Jesuítas, visto que colocaram os conhecimentos
300
científicos e artísticos a favor dos preceitos da Igreja. Uma colocação do
pesquisador Pidal confirma essa possibilidade, ao dizer que:

[...] os dominicanos foram fundados para


converter a ciência em verdade, transfigurando-a
pela caridade e preparando-a pela pureza para
colocá-la ao serviço do apostolado.56

Outra informação que pode ser relevante, é o ingresso do


humanista André de Rezende (conhecido por sua projeção intelectual
na cidade de Évora) em um Convento Dominicano em 1533, após sua
peregrinação nas Universidades de Salamanca e Marselha.57 É curioso
essa última informação, pois o fato de um homem erudito como

55
DIAS, Luís Fernando de Carvalho. Algumas cartas do Doutor Antônio
Ribeiros dos Santos. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v.14, 1974, p. 455.
56
Apesar da citação acima ser importante, a historiadora Leontina Ventura
não fornece informação da referência completa, pois apenas coloca o nome
“Pidal”. Esta citação encontra-se na: VENTURA, Leontina. Estudo Introdu-
tório, p. 17.
57
PEREIRA, José Fernandes. De artesão a Artista. In: MOREIRA; RODRI-
GUES (Org.). Tratados de arte em Portugal, p. 89.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

André de Resende ingressar em um Convento Dominicano, após uma


temporada em grandes universidades, leva a deduzir que, de alguma
forma, aquela instituição fomentava outros tipos de conhecimento,
além do teológico. Confirmando a dimensão intelectual desta Ordem,
o pesquisador Richard Sennet58 comenta que a Ordem Dominicana foi
fundada no ano século XIII, sendo marcada pelo rigor intelectual, uma
vez que os Dominicanos foram responsáveis pela exegese de alguns
textos.

Razões que justificam o interesse de Filipe Nunes pelo estudo da


perspectiva

Pela leitura do tratado Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva,


é possível dizer que Filipe Nunes reconheceu o valor da pintura por
diversas formas, no entanto, cabe ressaltar que o estudo da perspectiva
foi uma das maneiras de defender a pintura. Observa-se que o período
em que ele escreveu seu tratado, isto é, no final do século XVI, a defesa
da pintura sairia do campo da comparação entre poesia para entrar no 301
âmbito do reconhecimento das regras da pintura. Desse modo, o uso da
retórica de Aristóteles continuaria a vigorar, porém, o que mudou foi
apenas o modo de persuadir: da comparação para a demonstração. Com
efeito, nota-se que a ideia de que as regras poderiam ser “provadas”
não são exclusivamente da ciência, visto que adquire também o seu
fundamento em preceitos da retórica: evidentia, probatio e a demonstrativo.
Sendo assim, acredita-se que o tratadista teve a intenção de valorizar
a pintura por meio da demonstração de tais regras, “[...] pois tudo vai
por demonstração, e estas não se podem fazer sem debuxo e pintura.”
Isso explica a razão pela qual ele coloca desenhos em seus tratados de
pintura.
Portanto, compreende-se que a intenção dele ao abordar a
perspectiva e a simetria não foi apenas uma maneira demonstrar as
regras da pintura, mas de afirmar que a pintura era científica, pois esta
exigiria operações mentais, tal como as outras artes. Com efeito, as
relações de identidade estabelecidas entre a pintura e a perspectiva, a

58
SENNET, Richard. O Artífice. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro:
Record, 2009, p. 99.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

anatomia, a geometria e a matemática conferia um estatuto de ciência à


prática pictórica.59 Observa-se que Nunes segue o mesmo percurso de
outros tratadistas que quiseram dar um caráter científico à pintura, caso
de Alberti,60 o qual considerou a matemática como um requisito da
pintura. Nota-se que o tratadista italiano demonstra essa afirmação ao
analisar por semelhanças de triângulos e de proporções a relação entre
a pirâmide visual e a superfície pintada. Leonardo da Vinci também
comentou que a prática pictórica deveria ter sua base na perspectiva
e em demonstrações matemáticas, por isso defende que a perspectiva
é o leme da pintura.61 Incorporando os discursos dos italianos de Da
Vinci e Alberti, Filipe Nunes ressalta que a aritmética, a geometria
e a perspectiva seriam “rudimentos e princípios para conseguir
perfeitamente o fim da pintura”.62
Refletir sobre os motivos que levaram um religioso português
a interessar-se pela perspectiva é elucidar sobre o peso que a Igreja
teria nesse período. Nesse sentido, acredita-se que a relevância do
estudo da perspectiva na sociedade da época pode ser justificada
302
pelas funções que foram atribuídas pela Igreja às imagens: excitar a
contemplação e ensinar/edificar os fiéis. Considerando a função das
imagens, vê-se que a ideia de verdade nas pinturas no fim do século
XVI ganhou um sentido moralizante, ou seja, as imagens deveriam ser
fidedignas ao tema representado e à história. Por conseguinte, acredita-
se que a perspectiva e a simetria, instrumentos e técnicas (ferramentas
e veículos), foram responsáveis por subsidiarem a imitação fiel à
natureza e, por isso, foram elementos valorizados no tratado Arte da
pintura, Symmetria e perspectiva. Pela presença do discurso Tridentino em
seu tratado, entende-se que Filipe Nunes encontra-se incluído entre os
teóricos da Contrarreforma, os quais defenderam a imitação literal e a
o caráter moralizante da verdade.

59
Cf. SALDANHA, Nuno (Org.). Poéticas da imagem. Lisboa: Editorial Cami-
nho, 1995, p. 95.
60
GRAYSON, Cecil. Introdução. In: ALBERTI, Leon Battista. Da Pintura,
1436. Edição traduzida por Antônio da Silveira Mendonça. Campinas: UNI-
CAMP, 2009, p. 14.
61
DA VINCI, Leonardo. In: Anotações de Leonardo de Da Vinci por ele mesmo.
Tradução Marcos Malvezzi Leal e Martha Malvezzi Leal. São Paulo: Mandras,
2004, 107p.
62
NUNES. Arte da pintura, Symmetria e perspectiva, p. 76.
FILIPE NUNES: UM ESTUDIOSO DA PERSPECTIVA NO SEISCENTOS PORTUGUÊS

Além da valorização da imitação literal da realidade, existiram


outros aspectos também consideráveis como, por exemplo, a
importância do pintor e das regras da pintura. Acredita-se que essas
o motivaram a escrever um tratado que abordasse os elementos
científicos. Considerando essas questões, percebe-se que a chave
para entender o tratado se encontra no reconhecimento de regras e
preceitos para a pintura, defendidos pelo aristotelismo e apropriados
pela Contrarreforma. Nesse sentido, a téchne ou o saber-fazer passa a
permear as preocupações de tratadistas como Filipe Nunes, porquanto
era necessário demonstrar que a pintura deveria ser respaldada por
regras e conceitos operacionais.63 Para exemplificar o valor das regras
para a pintura e isentá-la de imperfeições, ele diz que:

Para os mestres podem servir os princípios da


Perspectiva, por serem tão importante para o
bom uso dela, juntamente a Simetria de que há
tanta falta nos lineamentos. [...]

Compreende-se que o fato de a pintura ter regras e preceitos era


uma forma de afirmar a pintura como ciência, dado que essa postura é 303

uma forma de corroborar os aspectos epistemológicos da primeira que,


tal como a segunda, exige regras e conceitos. Portanto, ele encontrava-se
inserido naqueles movimentos que entendiam a pintura como ciência, o
que explica a sua preocupação em discorrer sobre a perspectiva no texto
Arte da Pintura.

Conclusão

Nas linhas anteriores, pretendeu-se abordar Filipe Nunes como


um estudioso da perspectiva. Infelizmente não existe documentação
que comprove se, de fato, o português teria sido um pintor, no entanto,
o ambiente artístico/científico em que viveu e os tratados com os
quais dialogou infere-nos a dizer que o Dominicano compreendeu a
perspectiva como um item importante para a pintura. Ademais, quisemos
acima apresentar ao leitor quem ele teria sido, qual sua formação e o

63
Este diz respeito por tudo aquilo que absorve sendo como plágio, obras de
arte.
RENATA NOGUEIRA GOMES DE MORAIS

que o levou a escrever um tratado de pintura, cujo tema principal era


representação perspéctica. Para isso, foi necessário apresentar o lugar
que a matemática ocupou em Portugal, uma vez que a perspectiva tinha
seus preceitos firmados naquele conhecimento, e o diálogo que o Arte da
Pintura estabeleceu com produção de tratados no século XVI.

304
ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ: PITTURA O ARCHITETTURA?

Capítulo 19

ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ:


PITTURA O ARCHITETTURA?

Rita Binaghi

Il decoro del Corridoio (1683-1685), che conduce alle stanze in


cui abitò Ignazio di Loyola nella Casa Professa del Gesù a Roma, costituì
per Andrea Pozzo una splendida occasione, per mostrare agli occhi del
mondo romano le sue incredibili capacità professionali. Si trattava, in-
fatti, di un ambiente non facile su cui intervenire, perché coperto da una
volta a botte ribassata e con forti dissimetrie delle quattro pareti che ne
delimitano il perimetro.1 La sfida fu quella di portare quell’invaso sghem-
bo, dalla pianta di forma trapezoidale, ad offrire il massimo di godibilità,
presentando alla vista una regolarità frutto di una realtà contraffatta, gra- 305
zie allo strumento della matematica posta al servizio dell’arte.
Il punto di partenza non fu la sola fantasia artistica, ma il Fra-
tello gesuita si appoggiò saldamente sulle potenzialità offerte dalla ge-
ometria euclidea e dall’ottica, le uniche in grado di intervenire su una
situazione di fatto immutabile. Il primo atto operativo richiese, infatti,
conoscenze di natura scientifica: rilevare le esatte misure dell’insieme,
riportandole su carta, in scala, creando cioè un “modello” quotato2 in
cui vi fossero i pieni (muri), i vuoti (porte e finestre) e i risalti eventuali

1
Si tratta di un ambiente <<trapezoidale largo circa quattro metri, lungo sul
lato minore quindici e cinquanta e su quello maggiore diciotto metri, l’altezza
all’imposta della volta circa tre metri e cinquanta>> (FASOLO. Marco. La pa-
rete di fondo della Galleria di Sant’Ignazio alla Casa professa del Gesù, in La costruzione
dell’Architettura illusoria. Roma: Gangemi, 1999, p. 83; FASOLO. Marco. La
Galleria di Sant’Ignazio alla Casa Professa del Gesù. Problema teorico circa la prospettiva
della parete di fondo. In: FARNETI, Fauzia; LENZI, Deanna (a cura di). L’Ar-
chitettura dell’Inganno. Quadraturismo e grande decorazione nella pittura di età barocca.
Firenze: Alinea, 2004, pp. 149-154.
2
E’ Pozzo stesso che consiglia ai suoi lettori di operare sempre attraverso un
modello grafico in cui siano riportate tutte le misure necessarie (POZZO,
Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum, Pars secunda. Romae: Ex Typo-
graphia Jo. Jacobi Komarek Boemi prope SS. Vincentium et Anastasium in
Trivio, 1700, fig. 59).
RITA BINAGHI

(cornici o altro). Le misure ottenute costituirono la base dell’operare.


Data la complessità del progetto, queste dovevano essere “giuste a ca-
pello” come precisa Pozzo stesso.3 La difficoltà risiedeva nel fatto che
non si trattava di applicare le regole della prospettiva lineare per ottenere
uno spazio illusorio che annullasse la continuità delle pareti o del sistema
di copertura, trasformandoli in aperture su paesaggi o su cieli inesisten-
ti, ma di mutare la forma dell’ambiente, in senso architettonico stretto,
senza spostare muri4 o rifare coperture; ciò poteva avvenire attraverso
una percezione ingannevole del costruito in tutto il suo insieme, che ri-
chiedeva l’intervento dell’occhio e della mente nello spettatore e presup-
poneva da parte del progettista saperi e sensibilità da architetto. Infatti,
l’oggetto dell’operare era lo spazio, o meglio la percezione dello stesso.
Muri, pareti e copertura, che non si potevano alterare nella loro
tettonicità, furono trasformati solo alla vista, ma non annullati. E l’ope-
razione presentava problematicità maggiori anche rispetto a quanto già
realizzato in precedenza, in particolare a Mondovì, dove, pur avendo
aumentato la godibilità della chiesa attraverso un ricco decoro - contra-
riamente a quanto comunemente ritenuto - di fatto, l’unico vero inter-
306 vento leggibile come architettonico in senso stretto fu la resa illusoria di
una cupola aperta su un cielo animato da figure.5 Nel Corridoio, invece,

3
BINAGHI, Rita. Istruire la mente e la mano secondo i precetti della Geometria: An-
drea Pozzo tra Trento, Milano e Mondovì, in SPIRITI, Andrea (a cura di), Andrea
Pozzo Atti del Convegno Internationale 17-19 Settembre 2009, Varese: Comu-
nità Montana Valli del Lario e del Ceresio, 2011, pp. 52-54.
4
Il maestro Maurizio De Luca, che ha operato il restauro dell’ambiente, ha
ipotizzato che Pozzo possa aver fatto aggiungere una nuova parete di ingres-
so, che ha portato all’esclusione della quinta finestra dall’ambiente origina-
rio, proprio per ottenere un invaso più favorevole per la quantificazione delle
misure nella redazione del Progetto (DE LUCA, Maurizio. Gli affreschi della
Galleria del Gesù a Roma. In: BATTISTI, Alberta (a cura di). Andrea Pozzo, Mi-
lano-Trento: Electa, 1996, p. 152; DE LUCA, Maurizio, Un Pozzo di sorprese,
in SALVIUCCI INSOLERA, Lydia. Andrea Pozzo e il Corridoio di S. Ignazio.
Roma: Artemide, 20014, pp. 155-158). Si veda anche FABRE, Pierre Antoine,
Un sanctuaire romain à l’âge baroque. Recherches sur le système du corridor d’entrée aux
“Stanzette” d’Ignace de Loyola, peint par Jacques Courtois et Andrea Pozzo (1640-
1688), in SCHÜTZE, Sebastian (a cura di). Estetica barocca. Roma: Campisano,
2004, pp. 361-377.
5
E’ erroneo pensare che Pozzo sia intervenuto in modo sostanziale sulla
struttura architettonica della chiesa, perfettamente portata a termine dall’ar-
chitetto Giovenale Boetto, in base a precise esigenze tecniche. La sua abilità fu
quella di rivestire i membri architettonici, senza però metterli in discussione,
con un decoro funzionale all’effetto cercato: muovere gli animi attraverso lo
strumento dello stupore. Si veda PFEIFFER, Heinrich W. S.J. (a cura di). An-
drea Pozzo a Mondovì. Milano: Jaca Book, 2010.
ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ: PITTURA O ARCHITETTURA?

fu proprio tutta l’architettura ad essere stravolta nella sua leggibilità e


fruizione complessiva.6 Agendo sulla percezione globale dell’invaso Poz-
zo definì un intervento architettonico vero e proprio ed in ciò risiede
la grandezza e l’importanza di questa opera che si situa ad un livello di
complessità più alto di quanto da lui realizzato anche in seguito.7
Alla base dell’operare vi era la conoscenza dell’ottica, cioè di
come l’occhio vede, cui si accompagnava la consapevolezza che il puro
vedere è un’astrazione, perché tra l’immagine reale e quanto noi effet-
tivamente “vediamo” si frappongono le esperienze di vita, che sono
anche figlie della nostra cultura. In altre parole noi completiamo o sot-
traiamo particolari alle immagini, trasformandole, attraverso elaborati
mentali inconsci che soggiacciono al nostro vissuto. Per semplificare: se
vediamo un oggetto piccolo, o che ci appare dai contorni sfumati, pen-
siamo sia molto lontano da noi, perché così ci ha insegnato l’esperienza.
Allo stesso modo il nostro occhio si allea alla mente in circostanze ben
più complesse che, se controllate ad arte, rendono possibile l’inganno.

6
Anche la successiva cupola, dipinta su tela ed inserita nella romana chiesa del
Gesù, pur essendo un intervento prettamente architettonico, perché simula 307
una cupola reale, priva di decori fantastici, non muta tuttavia il percepito di
tutta l’architettura nel suo insieme.
7
Risale al 1996, ad opera di Daniela Gallavotti Cavallero, il riconoscimento
dell’importanza del Corridoio nello studio del passaggio dal quadraturismo
di matrice rinascimentale agli affreschi in quadratura, realizzati con tecnica
anamorfica, tipicamente barocchi. La studiosa sottolinea l’avvenuto supera-
mento del quadraturismo di matrice bolognese e suggerisce la nascita di un
nuovo spazio pittorico che molto deve alla anamorfosi ed agli studi, su tale
argomento, dei minimi F. Niceron ed E. Maignan e del gesuita A. Kircher
(GALLAVOTTI CAVALLERO, Daniela. Gli esordi pittorici a Roma: il corridoio
del Gesù e la cappella della Vigna. In: DE FEO, Vittorio, MARTINELLI, Vin-
cenzo (a cura di). Andrea Pozzo. Milano: Electa, 1996, pp. 42-53). In tempi
più recenti il discorso è stato ripreso ed ampliato da Filippo Camerota (CA-
MEROTA, Filippo. Il teatro delle Idee: prospettiva e scienze matematiche nel Seicento.
In: BOESEL, Richard, SALVIUCCI INSOLERA, Lydia (cura di). Mirabili
Disinganni. Andrea Pozzo (Trento 1642-Vienna 1709). Pittore e Architetto Gesuita.
Roma: Artemide, 2010, pp. 26-36. Per un’analisi scientifica, che ricostruisce i
metodi grafici utilizzati nel costrutto pittorico, si veda il fondamentale studio
di Riccardo Migliari (MIGLIARI, Riccardo. Geometria e mistero nelle prospettive di
Fratel Pozzo, in La costruzione dell’architettura illusoria, op. cit., pp. 71-81) con gli
approfondimenti geometrici di Marco Fasolo (cf. supra nota 1) ed infine la tesi
di laurea di TOMA, Marcello. La rappresentazione anamorfotica. Dai divertimenti
prospettici di Jean François Niceron agli affreschi di Andrea Pozzo nella casa Professa del
Gesù in Roma, Facoltà di Architettura di Firenze, anno accademico 1985-1986,
relatore Prof. ATERINI, Aterino, correlatori Prof. MORELLI, Gianfranco,
Arch. SINISGALLI, Rocco. Per un approfondimento del solo discorso sto-
rico-artistico SALVIUCCI INSOLERA, Lydia. Andrea Pozzo ed il Corridoio di
S. Ignazio, op. cit..
RITA BINAGHI

La psicologia della visione, all’epoca di Pozzo, pur non essendo


ancora una scienza codificata, era nota ed applicata dagli artisti.8 Nel
Corridoio Pozzo va oltre al già realizzato e dimostra che si può aumen-
tare la sensazione spaziale e, addirittura, che è possibile “correggere” la
definizione geometrica complessiva di un invaso, attraverso i modi della
sua decorazione. Tutti noi sappiamo che un soffitto troppo alto apparirà
ribassato se dipinto con un colore scuro; se vogliamo invece aumentare
lo sviluppo longitudinale, nel caso di un corridoio, lo dobbiamo deco-
rare con elementi ripetitivi cadenzati, ad esempio travi rettilinee che si
pongano trasversalmente rispetto la percorribilità (Fig. 1). Frazionando
la superficie e la continuità, si muta il ritmo della visione; diminuendo
il ritmo, perché cadenzato, si rallenta la velocità dell’osservazione: cioè
si interviene sul tempo. Ed è proprio attraverso l’introduzione del pa-
rametro tempo che può avvenire l’inganno, passando dalla visione alla
percezione.

308

FIGURA 1: Andrea Pozzo, Corridoio di Sant’Ignazio nella Casa Professa al


Gesù in Roma e parete di fondo obliqua (da Alberta Battisti (a cura di), Andrea
Pozzo, Milano-Trento: Luni, 1996).

Nel caso del Corridoio al Gesù, dato che le travi, nel reale, ri-
chiedono necessariamente supporti strutturali a sostegno, anche le pareti
sono ritmicamente suddivise da pilastri-lesene, che offrono alla decora-

8
CAMEROTA, Filippo. La prospettiva del Rinascimento. Arte, Architettura e Scien-
za. Milano: Electa, 2006, pp. 249-252.
ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ: PITTURA O ARCHITETTURA?

zione superfici inquadrate e distinte, oggetto di interventi illusivi anche


contrastanti, ad esempio chiusure ed aperture contrapposte che, attiran-
do l’attenzione, contribuiscono a creare un ulteriore tempo rallentato
della visione (Fig. 2).
Se poi una parete corta è obliqua, ovvero non ortogonale allo
sviluppo in lunghezza, l’intervento “correttivo” sulla parete stessa sarà
uno “sfondamento”, cioè la creazione di un ambiente al di là, illusorio,
che muti la percezione spaziale. E, per suggerire la continuità, Pozzo di-
pinse in quello spazio irreale un pavimento in cotto rosa assolutamente
identico a quello dell’intero Corridoio (oggi modificato).9 Ma soprattut-
to il Fratello gesuita, con un costrutto pittorico inatteso, è riuscito a far si
che si perda il riferimento effettivo alle coordinate spaziali ed ad indurre
il completamento della visione della parete stessa come congiungentesi
a quelle laterali con angoli a 90 gradi, nonostante nella realtà, data l’obli-
quità, i valori siano assolutamente diversi dall’angolo retto.

309

FIGURA 2: Andrea Pozzo, Parete laterale sinistra del Corridoio di Sant’Ignazio


con il quadro che rappresenta la Madonna, realizzato ad affresco, ma fingendo
una riproduzione su tela. I due angeli sulla destra sono invece dipinti secondo
le regole dell’anamorfosi (da Alberta Battisti (a cura di), Andrea Pozzo, Mila-
no-Trento: Luni, 1996).

9
Il maestro Maurizio de Luca ci informa che le fasce marmoree perimetrali
in bardiglio furono inserite in un intervento attuato nel corso del XIX secolo
che <<taglia e preclude l’effetto voluto da Pozzo>> (DE LUCA, Maurizio.
Tecniche di trasposizione nei dipinti murali, in La costruzione dell’architettura illusoria,
op. cit., p. 51).
RITA BINAGHI

Gli strumenti per la costruzione dell’inganno sono: la geome-


tria euclidea, le leggi dell’ottica e quelle della prospettiva lineare, cui si
aggiunge il concetto di proiezione di un’immagine su una superficie, lo
stesso usato dai cartografi.10 Il difficile è controllare il risultato visivo
durante la realizzazione, sia che si tratti di una superficie piana sia che
questa si presenti curva sia, ancora, che si tratti di più superfici contigue
su cui si proietta un’unica immagine. Ed è proprio questa proiezione di
un elemento architettonico fittizio (arco), parcellizzata su più elemen-
ti architettonici reali, che permette a Pozzo di ottenere l’annullamento
dell’obliquità della parete corta, insieme all’uso ed alla composizione di
due diversi punti di fuga: uno per l’invaso reale ed uno per l’ambiente
illusorio creato con la pittura.
Le difficoltà sono davvero molte; intanto perché il cambio di
scala tra il bozzetto ed il realizzato crea l’aumento delle dimensioni cui
è soggetta l’immagine proiettata, aumento che risulta direttamente pro-
porzionale alla distanza della superficie su cui si proietta dal punto da cui
avviene la proiezione; ciò produce anche distorsioni delle forme, se non
ci si pone nel punto esatto di proiezione, dove invece la visione è ottima-
310 le (veduta vincolata). E’ evidente che divenga estremamente difficile, ma
nello stesso tempo strettamente necessario il controllo in corso d’opera
di quanto si va facendo.
Per comprendere la complessità dell’operare bisogna pensare
che, partendo dal percorso mentale ed operativo proprio del disegno
prospettico, si invertono il processo e le geometrie formali. In altre paro-
le, se, ad esempio, si vuole che chi guarda pensi di trovarsi di fronte ad un
tavolo con il pianale d’appoggio rotondo, visto in lontananza, si dovrà
disegnare il pianale non come un cerchio, ma come una ellisse, secondo
quanto ci insegnano le leggi della prospettiva lineare e della geometria
proiettiva. Invertendo concettualmente il ragionamento, cioè partendo
dalla deformazione (l’ellisse nel caso del tavolo), è possibile, infatti, in-
durre la visione “voluta” (del cerchio), ovviamente illusoria. Lo stesso

10
CAMEROTA, Filippo. La Prospettiva del Rinascimento, op. cit., pp. 196-209;
BINAGHI, Rita, <<E quadratura trovasi esser detto all’Arte di dipingere prospettive,
cioè di dipingere quadratura, che par voce non molto propria>> Filippo Baldinucci. In:
BERTOCCI, Stefano; FARNETI, Fauzia (a cura di). Prospettiva, Colore e Luce
nell’illusionismo architettonico: Quadraturismo e grande decorazione nella pittura
di età barocca. In: Atti del Convegno Internazionale Firenze-Montepulciano
9-11 Giugno 2011, Firenze: Alinea, 2015, pp. 195-203.
ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ: PITTURA O ARCHITETTURA?

processo si può applicare alla creazione di uno spazio irreale al di là del


perimetro murario. Componendo l’asse di inclinazione della parete con
l’asse di percorrenza longitudinale del Corridoio, è possibile dipingere
un ambiente sulla parete obliqua con quelle distorsioni che inducano la
visione di uno spazio allineato.
Per restituire all’occhio una regolarità inesistente, il decoro re-
alizzato non seguì la campitura ovvia; nella parete di fondo, agli angoli,
Pozzo non ha distinto le pareti reali tra loro e queste dal soffitto, ma ha
dipinto un elemento formato da parti che si situano su queste diverse
componenti dell’architettura, contemporaneamente. Infatti, l’arco, che
incornicia la serliana sulla parete di fondo obliqua, risulta realizzato per
una sua porzione sulla parete verticale destra, per un’altra sulla volta e
solo per una ulteriore parte sulla parete di fondo.
Attraverso questo “inganno” e l’utilizzo di due punti di fuga
diversi (uno per l’invaso ed il secondo per l’immagine costruita sulla pa-
rete sghemba, che viene alterata “ad arte” per far si che la distorsione,
assommata all’obliquità effettiva della parete, restituisca alla visione uno
spazio regolare ), ma non rilevabili nella loro duplicità lungo l’asse di
percorrenza, come sapientemente messo in evidenza da Riccardo Mi- 311
gliari e Marco Fasolo (cui si rimanda per approfondimenti geometrici
e grafici),11 Pozzo annulla l’insieme architettonico effettivo ed ottiene la
percezione illusoria di un ambiente ulteriore, inquadrato dall’arco, che
prosegue in modo regolare lo spazio.
Per un contemporaneo può essere di aiuto nella comprensio-
ne del complesso iter operativo il pensare ad un’immagine di una dia-
positiva proiettata su una superfice che, in realtà, appartenga a queste
tre componenti dell’architettura (parete verticale laterale, volta, parete
di fondo). L’esempio della diapositiva chiarisce anche un altro elemento
fondamentale dell’operare: quello del concetto di centro di proiezione,
che è unico e definito, tant’è che Pozzo situa sul pavimento del corridoio
un segno evidente della posizione ottimale da cui osservare l’ambiente, si
pone cioè nelle logiche della veduta vincolata. Al di fuori di quel punto,
l’inganno si rivela e la maggior parte delle forme dipinte si presentano
all’occhio con forti deformazioni. Si tratta dello stesso costrutto utiliz-

11
MIGLIARI. Geometria e mistero nelle prospettive di Fratel Pozzo, op. cit, p. 76;
FASOLO. La parete di fondo della Galleria di Sant’Ignazio alla Casa Professa del
Gesù, op. cit., pp. 86-90.
RITA BINAGHI

zato nelle anamorfosi: immagini talmente deformate da essere assolu-


tamente irriconoscibili, ma che, da un punto preciso, oppure attraverso
l’ausilio di uno strumento meccanico, ad esempio uno specchio, restitu-
iscono una forma perfetta.12
Supponiamo di osservare di prospetto lo stesso pianale da tavo-
lo, prima citato ad esempio, di forma reale sia rotonda che ellittica, ciò
che gli occhi vedono è - in ambedue i casi - un elemento rettilineo. Ed
è quanto ha fatto Pozzo intervenendo artificiosamente sulle immagini
delle travi della copertura. Volendo presentare, attraverso la pittura, la
presenza di un soffitto piano retto da travi, egli dipinse sulla volta a botte
(superficie cilindrica a direttrice curva) una sequenza di ellissi sempre più
allungate, in modo tale che, se osservate dal centro di proiezione prescel-
to, apparissero rettilinee.
Come avviene il controllo di tutto ciò? E’ Pozzo stesso a porci
sulla strada corretta; egli illustra nella sua “Perspectiva” il principio ottico
applicato con una metafora, così come abbiamo fatto noi, riferendoci
alla proiezione di una diapositiva. E, per meglio porre in evidenza che
si tratta di un trasposto concettuale, egli cambia addirittura i caratteri
312 tipografici.
Nella sua opera letteraria fa riferimento all’uso di tre griglie,13
una sovrapposta al bozzetto, che quindi risulta suddiviso in piccoli qua-
drati, una nel reale formata da corde, ed una terza creata sulla superficie
da dipingere attraverso la proiezione dell’ombra della seconda griglia tra-
mite il lume di una candela. Le variazioni che subisce la terza griglia nella
proiezione, forniscono la traccia per individuare anche le deformazioni
indotte nel disegno delle parti dell’affresco rispetto alle stesse nel boz-
zetto. E’ una metafora, come si è detto che, infatti, Pozzo chiarisce come
tale, ricordando le difficoltà ad operare in tal senso, soprattutto per le
volte, in presenza di un ponteggio. Allora il gesuita suggerisce il metodo
realmente utilizzato, cioè l’uso di fili che, partendo dall’occhio (cioè dal
centro di proiezione), materializzino i fasci di luce e gli permettano di
costruire la terza griglia (è lo stesso principio della diapositiva in cui i

12
Cf. DE ROSA, Agostino (a cura di). Jean Françoise Niceron: Prospettiva, catottri-
ca e magia artificiale. Roma: Aracne, 2013 e la bibliografia ivi riportata.
13
POZZO, Andrea. Perspectiva pictorum et architectorum. Roma: G.G. Komarek,
1693, Pars Prima, Tav. 100. Nella seconda edizione (1702), dopo questa spie-
gazione sui modi operativi utilizzati, è riportato un riferimento diretto al Cor-
ridoio.
ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ: PITTURA O ARCHITETTURA?

raggi di luce attraversano la pellicola fotografica e proiettano il soggetto


della fotografia su una od anche più superfici contigue); l’uso dei fili
consigliato da Pozzo è possibile anche dall’impalcato del cantiere, se si
tiene conto del valore numerico, in termini dimensionali, dello scarto tra
la posizione di chi osserverà l’opera finita dal pavimento e la posizione
del pittore sul ponteggio. Attraverso questo espediente ed all’ausilio di
ulteriori fili a piombo appesi al soffitto tramite chiodi,14 che riportino
costantemente il riferimento alla verticale (e rendano possibile sia la va-
riazione degli angoli rispetto alla linea orizzontale, definita a sua volta
in base alla verticale, sia il controllo dell’inclinazione dei fili che, parten-
do “dall’occhio”, traguardano la rete per punti e vanno ad individuare i
punti corrispettivi omologhi sulla superfice curva della volta), è possibile
realizzare l’immagine deformata, prima della rete e poi dell’intera opera
in modo tale che dal punto di visione ottimale risulti perfetta. Sappiamo
poi che esistevano ausili meccanici, come il congegno che presenta Ci-
goli,15 che aiutavano molto i pittori in questa fase operativa.
Era ovviamente necessaria una notevole bravura individuale di
natura artistica, per completare l’immagine e correggere eventuali piccoli
errori dovuti ai congegni utilizzati, ma ancor più era necessaria un’ottima 313
preparazione scientifica che, partendo da misure esatte, ovvero <<giuste
a capello>>, come scrive Pozzo, attuasse il controllo assoluto dell’intera
realizzazione. Dallo posizione di lavoro di un pittore spesso non era faci-
le avere la visione corretta dell’immagine che si stava creando, deformata
ad arte: la distanza dalla superficie da affrescare, definita dalla lunghez-
za del braccio che opera, fa apparire all’occhio solo macchie di colore
prive di una forma riconoscibile. Il controllo, che deve essere costante
ed assoluto, non poteva nemmeno avvenire scendendo continuamente
dall’impalcato per essere attuato nel reale; ecco perché era fondamentale

14
L’utilizzo di chiodi nella superficie da decorare è confermata anche nella
chiesa della Missione in Mondovì, dove sono stati ritrovati gli originali, nel
corso degli ultimi restauri (MORO, Laura; CANAVESIO, Walter. I Restauri.
In: PFEIFFER, Andrea Pozzo a Mondovì, op. cit., p. 216.
15
Cigoli mette in guardia dall’uso di fili, soprattutto per distanze ampie, perché
questi tendono a spanciare e suggerisce l’intervento di congegni meccanici
come quello da lui inventato. CAMEROTA, La prospettiva del Rinascimento, op.
cit., pp. 190-195; CAMEROTA, Filippo. Il Teatro delle idee: prospettiva e scienze
matematiche nel Seicento, e Scheda 04.04. In: BOESEL, Richard, SALVIUCCI
INSOLERA, Lydia (a cura di). Mirabili Disinganni, op. cit., p. 32; p. 151; CA-
SALE, Andrea. Strumenti prospettici in La costruzione dell’architettura illusoria, op.
cit., pp. 93-104.
RITA BINAGHI

la conoscenza di quei saperi matematici in grado di fornire sicurezza


all’operare attraverso lo strumento del Progetto ovvero del Disegno o
modello come lo chiama Pozzo.
E’ importante però sottolineare che si trattava di un bagaglio
culturale scientifico tutto sommato ristretto e finalizzato all’uso, quin-
di nel caso di Pozzo o dei quadraturisti non si tratta di matematici di
professione, ma sempre e solo di figure di artisti, però dotati di una
forma mentis scientifica, oltre che di buone conoscenze in quel campo,
detto della matematica mista, frutto di una scolarizzazione attenta16 che
esclude in modo categorico l’autodidattismo; spesso si trattava di figure
dalla doppia professionalità - pittore ed architetto - come era il caso di
Andrea Pozzo. Il gesuita sottolinea, infatti, la necessità per il pittore di
essere architetto, proprio per la comune base formativa riferentesi alla
geometria euclidea. Ed anche se il pittore può eludere le leggi della fisica,
non di meno deve conoscere i rapporti nei dimensionamenti delle parti
componenti un’architettura (leggi delle proporzioni espresse in termini
geometrici), ed il conoscere non significava avere memorizzato quantità
numeriche dedotte da esempi, ma saper ricreare i corretti rapporti caso
314 per caso, anche se si operava in una realtà a sole due dimensioni. Pen-
siamo, infatti, proprio al Corridoio, in cui le travi rettilinee del soffitto si
appoggiano correttamente a mensole sorrette da pilastri-lesene.
In questo scambio tra illusione e realtà Pozzo situa poi il tratta-
mento delle pareti lunghe con scelte che meritano piena attenzione. Per
mantenere la piacevolezza della visione alla veduta frontale, che ha un
visitatore che si giri di 90 gradi rispetto alla percorrenza dell’invaso, il
pittore contrappone figure non alterate a quelle deformate, perché ana-
morficamente pensate secondo il punto di vista deciso come ottimale.
Ovviamente, queste ultime, ad una veduta frontale, non appagano la
vista; per questo il gesuita introduce, a trompe d’oeil, effettivi quadri “nor-
mali” (ma realizzati ad affresco),17 in grado di attirare l’attenzione dell’os-

16
Sulla formazione scolastica e professionale di Pozzo e per un primo accen-
no sulle due personalità più incisive negli anni di scuola, cioè il pittore-qua-
draturista J. Bartenschlager ed il docente di matematica W. Weilhamer si veda
BINAGHI. Istruire la mente e la mano secondo i precetti della geometria: Andrea Pozzo
tra Trento Milano e Mondovì, op. cit., pp. 61-65.
17
SALVIUCCI INSOLERA, Lydia. La “colorita prospettiva”: nuovi contributi su
Andrea Pozzo pittore ad affresco a Roma alla luce della “Perspectiva Pictorum
et Architectorum” e di altre fonti. In: BOESEL, SALVIUCCI INSOLER (a
cura di). Mirabili disinganni, op. cit. p. 81
ANDREA POZZO S.J. ED IL CORRIDOIO AL GESÙ: PITTURA O ARCHITETTURA?

servatore, distogliendola dalle anamorfosi ed offrendo così un secondo


registro di fruizione. La loro resa utilizza le leggi della prospettiva lineare;
infatti, la visione non presenta problemi.
Diverso è invece il caso della tela sull’altare di fondo che ritrae
Sant’Ignazio. Si tratta di una vera tempera su tela, con cornice dorata,
inserita sul finto altare realizzato ad affresco. Indubbiamente singolare la
scelta di un inserimento di una pala reale in un muro decorato a trompe
d’oeil ed anche nell’iconografia che non è quella che ci si aspetterebbe,
perché la figura del Santo richiama alla mente una statua che si staglia in
tutta la sua tridimensionalità su un fondo giallo-oro di grande effetto.18
Visto da lontano, il colore giallo contribuisce ad aumentare il senso di
sfondamento spaziale, perché annulla nello sfumato e nella rifrazione
della luce i riferimenti in grado di restituire l’esatto volume dell’invaso
suggerito.
Frutto di calcoli geometrici precisi, sono tutte le parti architetto-
niche rappresentate, che costituiscono il costrutto “solido” dell’inganno
complessivo, così come l’utilizzo della luce - reale e pittorica - è figlio de-
gli studi in campo catottrico.19 Non sorprende, infatti, ritrovare proprio
in questa parte dell’apparato decorativo tracce dell’uso di strumenti quali 315
righe rigide, righe flessibili e compassi20 che denunciano la scientificità
dell’operare. La freddezza dell’insieme, che ne deriverebbe, è alleggerita
dalla presenza di figure fantastiche.
In particolare, catturano l’attenzione di chi osservi gli incredibili
angioletti del soffitto, che giocano con il visitatore e contrappuntano il
ritmo della visione. Proprio là dove il decoro si fa più “scientifico”, cioè
sulla copertura dell’invaso, Pozzo eccita il movimento psichico di chi
osserva, suscitando emozioni e sorpresa. I paffuti angioletti, vere e pro-
prie apparizioni celesti, sembrano prendersi gioco degli umani. Uno poi
sembra seguire gli spostamenti, sino ad arrivare a compiere acrobatiche
capriole aree. Con questo accorgimento viene distolta l’attenzione dalle
deformazioni anamorfiche, cui sono soggette le forme architettoniche,
quando si attui uno spostamento fisico lungo l’asse di percorrenza del

18
SALVIUCCI INSOLERA, Lydia. Il dipinto ritrovato dell’altare di S. Ignazio.
Nuovi contributi su Andrea Pozzo pittore di pale d’altare a Roma. In: BOESEL, Ri-
chard; SALVIUCCI INSOLERA, Lydia (a cura di). Artifizi della Metafora. Saggi
su Andrea Pozzo. Roma: Artemide, 2011, pp. 112-114.
19
CAMEROTA, La prospettiva del Rinascimento, op. cit., pp. 193-195.
20
MIGLIARI, Geometria e mistero nelle prospettive di Fratel Pozzo, op. cit., p. 77.
RITA BINAGHI

Corridoio e si va ulteriormente ad incrementare il ritmo della visione,


eccitando il pathos psicologico di chi sente di entrare a far parte di un
vero e proprio colpo di teatro: lo scambio tra illusione e realtà è piena-
mente raggiunto.

316
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

Capítulo 20

ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA:


A CONFIGURAÇÃO DO CENÁRIO BARROCO DA
CUZCO COLONIAL

Rodrigo Espinha Baeta

Quando se analisa a conformação dos núcleos urbanos hispa-


no-americanos, fica claro o processo de desenvolvimento de uma tipo-
logia regular de cidade fruto de um projeto de urbanização territorial,
aparentemente inédito, especialmente ao se considerar a monumental
extensão das terras ocupadas e conquistadas nas Américas por súditos
da Coroa espanhola, bem como o inigualável número de assentamentos
levantados em um período tão curto de tempo. O delineamento regular
317
aspiraria a um esquema cada vez mais rigoroso, culminando na realiza-
ção de um modelo de cidade que apresentaria uma organização cartesia-
na. Seria possível a urbanística perpetrada pelo projeto de colonização
espanhol ter contribuído para a construção do espaço urbano barroco,
já que os planos regulares seriam iniciativas que estariam muito aparta-
das dos princípios essenciais da sua poética, assim como não se aproxi-
mariam da própria urbanística praticada no período?
Não seria ao acaso que se escolheria a cidade de Cuzco para a
experimentação dos artifícios desenvolvidos no Barroco com o escopo
de promover a teatralização do espaço urbano. A conformação física da
cidade – fruto de um complicado processo de sobreposição do assenta-
mento espanhol acima das ruínas do centro nobiliário pré-colombiano
– revelaria que os assentamentos coloniais poderiam constituir-se como
cidades barrocas se a composição de sua paisagem agisse contra a qua-
drícula, contra o modelo rígido de estruturação viária consagrado nas
Índias Ocidentais.
RODRIGO ESPINHA BAETA

A Cuzco pré-hispânica

A cidade pré-colombiana de Cuzco teria nascido por volta do


ano 1200 da era cristã, fundada, segundo a lenda, pelo primeiro chefe
de estado inca, Manco Cápac. Na próxima centúria, se tornaria a capital
de Tawantinsuyu – como era conhecido o poderoso império –, sendo
levantada a 3400 metros de altitude, nos Andes Centrais, no ponto de
encontro dos quatro grandes suyus (regiões) que dividiriam a longa ex-
tensão do domínio inca, cada um se desdobrando em direção a um dos
pontos cardeais.
Pela tradição, Pachacútec, o governante que teria ampliado as
parcas possessões incas para o monumental império andino de mais de
4000 quilômetros de extensão linear, seria o responsável pela recons-
trução do centro da cidade através de um eficiente plano racional1, área
urbana que contaria com as funções religiosas e administrativas da ca-
pital e que acolheria as residências dos nobres. A cidade ganharia um
desenho que, mesmo considerando adequadamente a topografia e os
cursos d’água do vale dos Rios Huatanay e Tullumayo, apresentaria um
318 ordenado traçado de caráter semirregular.
No centro da cidade se abriria a monumental Plaza de Hua-
caypata, com uma dimensão de aproximadamente 150 por 450 metros,
distribuída em um espaço que tenderia à forma de um retângulo. Este
amplo vazio urbano, cercado de construções rarefeitas e de pequena
estatura, seria cruzado pelo Rio Huatanay determinando diferenciações
simbólicas e de uso entre os dois grandes ambientes resultantes: a por-
ção nordeste seria destinada a cerimônias religiosas e atos políticos; a
face sudoeste estaria voltada ao lazer. Por outro lado, do mesmo modo
que ocorreria na divisão política do imenso território inca, Cuzco se-
ria repartida em quatro setores principais que representariam os quatro
suyus do império, bairros alcançados desde Huacaypata por importantes
vias – estradas que, ao fim do núcleo urbano, seguiriam, simbolicamente,
para as regiões de Tawantinsuyu através de quatro caminhos imperiais2.

1
HARDOY, Jorge enrique. Ciudades precolombinas. Buenos Aires: Ediciones
Infinito, 1999, p. 380.
2
VIÑUALES, Graciela María. El espacio urbano en el Cusco colonial: uso e orga-
nización de las estructuras simbólicas. Lima: Epígrafe Editores S.A., CEDO-
DAL, 2004, p. 16.
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

A fundação da Cuzco espanhola sobre os alicerces do núcleo pré-


-hispânico

Esta imponente e bem desenhada cidade, cabeça do Império


inca, seria conquistada por Pizarro em novembro de 1533; em 23 de
março do próximo ano, por iniciativa do conquistador espanhol, con-
taria com uma nova fundação: desta vez uma povoação levantada sob
o signo da cruz e da espada; sob o domínio da Igreja católica e do rei
da Espanha. Apesar do desejo incondicional dos invasores europeus de
apagarem as marcas do passado indígena impressas na cidade preexis-
tente – desígnio que teria levado Pizarro a levantar o novo assentamento
acima dos vestígios da antiga cultura –, os espanhóis acabariam reconhe-
cendo a qualidade urbanística do núcleo nativo, já que, após a destruição
da cidade, aproveitariam grande parte do sistema viário e da infraestru-
tura preexistentes.
Ou seja, mesmo sendo redelineada de modo parcialmente re-
gular, ainda hoje seria possível perceber inúmeras vias de traçado pré-
-hispânico nas proximidades da Plaza de Armas – onde se encontraria o
319
núcleo cerimonial, administrativo e aristocrático da cidade configurada
por Pachacútec. Na verdade, as grossas paredes de alvenaria inca – com-
postas por pedras de diversas dimensões, regularmente aparelhadas e
sem argamassa – acomodariam longos muros que alcançariam até os
dois metros de altura: muros que estariam distribuídos por toda a cidade
colonial, revelando parte do traçado remanescente da antiga capital de
Tawantinsuyu – situação que não deixaria de expor trágicos e dramáti-
cos panoramas perspectivos nas ruas coloniais. Na verdade, inúmeras
construções hispânicas seriam edificadas, aproveitando os alicerces e as
paredes exteriores das casas incas; sobrados que, alinhados nas testadas
dos logradouros preexistentes, apontariam – mesmo entre as artérias
virreinales de caráter mais significativo – a ocupação de muitas vias aber-
tas no período pré-colombiano.
Portanto, na Cuzco colonial, o elemento central da nova cidade
viria a ser, como era usual na planificação e desenvolvimento dos as-
sentamentos hispânicos, a Plaza de Armas, imenso espaço vazio com o
formato de um retângulo quase regular, desenvolvido, longitudinalmen-
te, no sentido noroeste – sudeste. Apesar de sua dimensão grandiosa, o
RODRIGO ESPINHA BAETA

mais importante recinto público do núcleo hispânico nasceria da frag-


mentação do ambiente precedente ocupado pela Plaza de Huacaypata.
Seria o principal espaço religioso e cerimonial da cidade colonial, sepa-
rado da outra face, remanescente do extenso vazio da antiga praça inca,
por construções porticadas levantadas acima do Rio Huatanay.
O lado sudoeste de Huacaypata, por sua vez, seria preenchido
por outras duas praças e pelas construções que as separariam. El Rego-
cijo seria a praça na qual se estabeleceria o Cabildo e onde aconteceriam
a maioria dos eventos e festas: tais como representações teatrais, corrida
de toros, celebrações civis – ambiente que também seria conhecido pela
remota alcunha quechua de Cusipata, denominação dada a este setor na
antiga esplanada inca. A Plaza de San Francisco, por sua vez, seria o átrio
contíguo ao imponente Convento Franciscano e que viria a acumular as
funções de adro religioso e de mercado indígena a céu aberto – o tradi-
cional tianguez hispano-americano.
A diversidade, complexidade e extensão das praças coloniais e
dos quarteirões que as separariam poderiam dar uma ideia do tamanho
incomensurável de Huacaypata e da dimensão, frequentemente grandio-
320
sa, dos espaços abertos que preencheriam as cidades pré-colombianas.
Por outro lado, a especialização funcional de cada um dos três recintos
urbanos coincidiria, em parte, com a hierarquia simbólica da praça re-
manescente: coincidiriam os espaços destinados aos ritos religiosos na
cidade inca e no núcleo colonial, bem como aqueles dedicados ao lazer
e às festas.

A Plaza de Armas como estrutura cenográfica barroca

Contudo, o cenário dramático da Plaza de Armas de Cuzco não


seria constituído, unicamente, pela sua condição como fragmento espa-
cial da antiga Huacaypata, e sim pela presença marcante de pelo menos
duas estruturas arquitetônicas singulares: a Catedral e a Igreja da Com-
panhia de Jesus. Neste sentido, para apoiar a análise da configuração
artística do núcleo urbano, seria interessante considerar o papel exercido
por estas igrejas como elementos hierarquicamente privilegiados dispos-
tos no âmago da cidade, na praça que recolheria as maiores atenções
por parte dos espectadores. A estrutura monumental da Catedral e o
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

majestoso templo jesuítico iriam pontuar, distintamente, a experiência


da descoberta do ambiente citadino com seus vastos frontispícios que
acomodariam verdadeiros retábulos barrocos esculpidos em pedra.
Assim, em um dos lados mais extensos da Plaza de Armas, na
sua face nordeste, seria edificada a Catedral de Cuzco. Levantada acima
das ruínas do ancestral Palácio do governante inca Viracocha, o oitavo
monarca de Tawantinsuyu, marcaria duas tendências essenciais da arqui-
tetura e da urbanística hispano-americanas: por um lado, a sobreposição
de uma importante estrutura arquitetônica virreinal frente a um signifi-
cativo monumento pré-colombiano, simbolizando o sepultamento dos
valores culturais preexistentes e a ascensão de uma nova ordem – a im-
posição do Cristianismo católico; por outro lado, a tradição colonial de
se assentar a mole da principal construção eclesiástica da cidade na Plaza
Mayor.
A implantação da larga fachada – que encerraria uma parte sig-
nificativa da face nordeste da praça, nas proximidades do vértice que
marcaria o encontro com o lado sudeste – voltada de frente para o gran-
de vazio que se abriria diante do templo, tendo seu eixo principal cru-
321
zando perpendicularmente a testada da igreja, seria clara exceção entre
as primeiras matrizes e catedrais alçadas nas cidades virreinales3. Ou seja,
a opção de Becerra por erguer a Catedral com sua monumental fronta-
ria direcionada imediatamente ao espectador que acorreria a Plaza de
Armas favoreceria a constituição, a posteriori, de um dramático cenário
perspectivo.
Contribuindo para sua exaltação cenográfica, apresentaria ou-
tras duas pequenas igrejas adossadas à sua fachada principal, recuadas
em relação à sua dilatada fachada em sinal de respeito à Catedral – devi-
do à sua condição hierarquicamente inferior diante do grande templo. A
mais antiga, El Triunfo, seria a igreja que acolheria a cadeira do bispo até
a consagração da atual Catedral, mais de 100 anos após a fundação do

3
Segundo os estudos de Alberto Nicolini, as plazas mayores contariam, comu-
mente, com estruturas religiosas ajustadas de lado para o ambiente liberto
das praças, ocupando toda a extensão de um dos flancos que encerrariam
os vastos recintos abertos – deixando, quando muito, um pequeno respiro à
frente da igreja (todavia, fora dos domínios da plaza). NICOLINI, Alberto.
La ciudad hispanoamericana, medieval, renacentista y americana. In: Atrio.
Revista de Historia del Arte. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, n. 10-11,
2005, p. 32.
RODRIGO ESPINHA BAETA

primitivo templo. Já na década de 1530, a igreja seria levantada acima das


ruínas do Palácio inca de Sunturhuasi, ao lado direito da fachada prin-
cipal da igreja maior, em um dos limites da face nordeste da praça. No
outro costado seria construída, a partir de 1723, a Capilla de Jesús y Ma-
ría, complementando o conjunto volumétrico, de alto teor cenográfico,
composto pelos organismos religiosos deste flanco da Plaza de Armas.
A estrutura maneirista da igreja, por sua vez, formada por uma
massa poderosa e sólida, surgiria como um dos eloquentes e grandiosos
volumes que romperiam o conjunto formado pelas galerias porticadas,
sobrepostas por casarões com balcões, que envolveriam o ambiente da
Plaza de Armas. Sua fachada principal seria emoldurada por duas torres
barrocas, de acanhada estatura, achatadas e pesadas – solução frequen-
te na composição da arquitetura eclesiástica em muitos territórios das
Índias Ocidentais, especialmente na área andina, que sofreria constante-
mente com trágicos terremotos. A largura incomum da frontaria provo-
caria a sensação de que o volume da igreja invadiria o ambiente à frente
dilatando-se, simbolicamente, para toda área da praça principal da cida-
de. Este sentido de diástole oferecido pela projeção perspéctica do edifí-
322
cio diante da praça e pela expansão transversal do frontispício para além
de sua larga testada – direcionamentos virtuais que buscariam preencher
o vazio urbano – seria favorecido pela implantação do templo, que se
colocaria à frente das duas capelas agregadas às suas fachadas laterais.
Igualmente expressivo seria o dinâmico frontispício da Cate-
dral. Após o terremoto de meados do século XVII, a frontaria aparece-
ria coberta por uma intrincada e agitada composição barroca formada
por elementos de relevo derivados do repertório clássico greco-romano:
colunas da ordem coríntia, arquitraves, frisos, cornijas, frontões cur-
vilíneos – uma rica modenatura arquitetônica que avançaria e recuaria
à frente da superfície das rugosas paredes da fachada. Deste modo, o
conjunto decorativo conformaria um retábulo de pedra exposto diante
da praça; uma complexa máquina cenográfica barroca que entraria em
grave contraste com a sobriedade, a densidade e a assepsia do restante
da fachada, bem como com a poderosa massa das torres comprimidas.
Contudo, a Catedral teria que dividir a atenção com o mais ex-
pressivo monumento do Barroco cusqueño: o conjunto de La Com-
pañia – complexo levantado logo após a chegada dos jesuítas à cidade
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

em 1571, mas totalmente reconstruído, oitenta anos depois, devido ao


arruinamento causado pelo sismo de 1650. A igreja e o colégio seriam
erguidos em um dos lados menores da Plaza de Armas, acima das ruínas
do Palácio inca de Amuracancha, residência de Huyana Cápac, décimo
segundo imperador inca. Esta có-presença das duas estruturas arquite-
tônicas religiosas mais suntuosas da cidade disputando espaço na Plaza
Mayor não iria se filiar ao modus operandi praticado pelos conquistado-
res; e Cuzco, talvez, venha a ser o único exemplar significativo de nú-
cleo urbano virreinal onde despontaria esta concorrência acirrada pela
atenção do transeunte na praça principal: os invasores peninsulares e a
própria cúria municipal buscariam evitar que qualquer organismo arqui-
tetônico religioso de caráter expressivo disputasse o interesse, na Plaza
de Armas, com a Catedral – e na antiga capital inca não seria diferente,
já que o Cabildo Eclesiástico teria feito grave oposição à construção da
Igreja dos Jesuítas na praça, sob a alegação de que não se deveria erigir
edifício de semelhante porte nas proximidades da Sede.
Reforçando ainda mais a disputa pela comoção do espectador
na praça central, La Compañia apresentaria, do mesmo modo que a
323
Catedral, sua inebriante frontaria barroca voltada diretamente à plaza,
assim como contaria com duas capelas unidas a seus flancos – menos re-
cuadas em relação à fachada principal do que no caso da sede episcopal.
A estreita Iglesia de Lourdes apareceria à esquerda do templo jesuítico; a
Capilla de San Ignacio despontaria do outro lado, junto à área na qual se-
ria levantado o colégio da ordem. Esta pequena igreja, particularmente,
apresentaria uma rica e entalhada fachada barroca recoberta por formas
estereométricas que lembrariam “pontas de diamantes”, superando, em
expressividade, as elevações frontais dos templos adossados à Catedral.
Mas nada que pudesse se comparar ao tratamento da verticali-
zada fachada da igreja jesuítica que viria a dominar, visualmente, a Plaza
de Armas após a segunda metade do século XVII – para o desgosto dos
canônicos da sede episcopal. Mais uma vez, o decorativo frontispício de
pedra se destacaria, por contraste “figura-fundo”, diante das duas torres
nas quais estaria enquadrado – organismos profundamente expressivos,
mas de articulação mais simples que o maquinário barroco da portada
central.
Portanto, a Catedral, em sintonia com sua implantação em um
dos lados maiores da praça, direcionada a um espaço bem mais largo
RODRIGO ESPINHA BAETA

do que comprido, constituiria a dominante horizontal da esplanada; já a


Iglesia de la Compañia, erigida diante do longilíneo eixo noroeste-sudes-
te que interceptaria os lados menores do grande recinto aberto, marcaria
a componente vertical. O conjunto da Catedral se apresentaria como um
monumental acontecimento arquitetônico que se expandiria lateralmen-
te e perspectivamente para o espaço da Plaza Mayor, provocando um
virtual alargamento de sua fachada-retábulo. O santuário dos jesuítas,
por sua vez, desvelaria um dinâmico altar-mor de pedra, aprisionado e
contraído pelas elegantes e graves estruturas volumétricas constituídas
pelos altos campanários. A relação entre as massas edificadas das torres
jesuíticas e o frontispício tridimensional profusamente ornamentado,
“acoplado” à superfície, produziria um sentimento de estrangulamento
do núcleo central da fachada, sensação que levaria à ilusão de que o
saliente retábulo barroco petrificado – armado sob o céu azul da Cuz-
co colonial e voltado ao principal espaço do núcleo urbano – se des-
prendesse da frontaria planimétrica e também se projetasse idealmente
à praça.
324
Não obstante, o efeito mais significativo, retirado da experi-
mentação dramática arrebatadora da Plaza de Armas, estaria fundado
no convincente discurso retórico instigado pela concentração em con-
junto – e não isoladamente – das ações cenográficas promovidas pelas
duas estruturas religiosas adversárias: edifícios que imperariam majesto-
samente sem a ameaçadora presença de outros eloquentes complexos
arquitetônicos de caráter institucional – como seria o costume nas plazas
mayores das cidades hispano-americanas, que, usualmente, acolheriam a
catedral ou igreja matriz, bem como o palácio municipal ou a sede do
governo regional.
Contudo, o persuasivo evento barroco não seria expresso, uni-
camente, pela agitação suscitada na percepção contígua da imagem dos
templos, panoramas que revelariam o poderoso contraponto da hori-
zontalidade oferecida pela Catedral, com a verticalidade proporcionada
por La Compañia – mas também, notadamente, na justaposição dos
espaços livres adjacentes às duas igrejas: o expansivo átrio dominado
pela sede episcopal e a virtual nave, aberta à praça, disposta à frente do
templo jesuítico – nave a céu aberto, encerrada pelo movimentado retá-
bulo de pedra, enquadrado pela frontaria da igreja (Figura 1).
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

325

Figura 1: Sequência de imagens da Plaza de Armas de Cuzco. Acima: Catedral –


Sede Episcopal de Cuzco – e a antiga Iglesia de El Triunfo – acoplada e recuada
à direita. Logo abaixo, à esquerda: Iglesia de la Compañia. Mais abaixo: Catedral
del Cuzco, à esquerda e La companhia, ao fundo. Tudo abaixo, à esquerda: Ca-
tedral del Cuzco, à esquerda e La companhia ao fundo. À direita: Iglesia de La
Compañia. Fotografias do autor, 2007.

O cerne da Plaza de Armas, portanto, revelaria uma fatal inter-


penetração dos dois adros religiosos que, à frente das igrejas principais
e de seus retábulos exteriores, invadiriam e romperiam o vazio da praça
através de um intenso e dinâmico movimento de dilatação. A longilínea
nave jesuítica, rodeada pelos soportales das edificações civis, se justaporia
ao átrio transversal da Catedral que, por sua vez, ocuparia o espaço da
RODRIGO ESPINHA BAETA

Plaza Mayor. Assim, a concentração destas duas estruturas ligadas ao


poder espiritual, dispostas em um dos cantos do amplo espaço aberto,
apoiaria um confronto dramático que, indubitavelmente, só favoreceria
a intensificação do caráter barroco no núcleo urbano. O sentido de “ma-
ravilha” revelado na coexistência dos virtuais átrios – espaços ligados,
simbolicamente, aos organismos religiosos – animaria a retórica barroca
encenada no vazio da praça através de mais um esquema de sobreposi-
ção espacial lançado no retalho da remanescente esplanada inca.

A “via sacra” como eixo dominante da Cuzco barroca

Para além do inebriante evento dramático conformado pela


Plaza de Armas, a cidade abrigaria outros acontecimentos que anima-
riam os panoramas capturados pelos espectadores, manifestações tea-
trais que contribuiriam para transformar a cidade em uma incondicional
experiência barroca. Um destes acontecimentos estaria relacionado, di-
retamente, à praça principal e participaria dos processos de sobreposi-
ção e interpenetração física, simbólica e espacial que dominariam grande
326 parte da configuração morfológica e artística do ambiente citadino. Seria
um evento modelado pela mais importante artéria do núcleo colonial;
uma estrada inca preexistente, remanescente da reorientação do traçado
urbano após a nova fundação da cidade; eixo que marcaria dois dos
caminhos voltados para os quatro suyus do Império pré-hispânico – no
caso, a estrada para Antisuyu, na aproximada direção leste e o caminho
ocidental para Cuntisuyu.
Segundo Graciela Viñuales4, a preservação desta e de outras
importantes vias pré-hispânicas estaria vinculada ao fato de as mais re-
levantes composições arquitetônicas e as mais proeminentes áreas ceri-
moniais da Cuzco incaica terem sido, invariavelmente, sobrepostas pelas
moles de conventos, monastérios, igrejas, hospitais, colégios, palácios
– imponentes complexos arquitetônicos levantados na cidade colonial.
De fato, seriam ações que indicariam a manutenção física dos lugares
que abrigariam as estruturas simbólicas do antigo núcleo urbano pré-
-hispânico – estruturas, porém, totalmente resinificadas no contexto da
nova povoação cristã.

4
VIÑUALES. El espacio urbano en el Cusco colonial: uso e organización de las
estructuras simbólicas, op. cit., p. 13.
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

Neste sentido, esta rua privilegiada acabaria cruzando muitos


dos mais admiráveis recintos sagrados do assentamento hispânico; tam-
bém receberia, sequencialmente, a maioria dos organismos eclesiásticos
cusqueños de certa relevância, edifícios que substituiriam as tradicionais
huacas indígenas. Por isso, este eixo organizador do espaço da cidade
ganharia a denominação, por parte da pesquisadora argentina, de “Via
Sacra”.
Na encosta a nordeste da Plaza de Armas seria erguida, pro-
vavelmente no início do século XVII, a Iglesia de San Blas, templo que
dominaria a paróquia de mesmo nome – uma das cinco primeiras a se-
rem criadas para os nativos. Poder-se-ia dizer que o inebriante interior
da capela – formado por altares dourados ultra ornamentados e por
um suntuoso e movimentado púlpito, equipamentos lançados na nave e
no presbitério, em contraste fatal com as paredes brancas desnudas de
adobe e com o exterior de caráter essencialmente simples –, marcaria o
início (ou o encerramento) do eixo de mais de um quilômetro de exten-
são da “Via Sacra”. A antiga estrada inca passaria, na verdade, adjacente
à estrutura de San Blas e de sua praça e desceria, em um percurso não 327
muito linear, em direção à Plaza de Armas – disposta a cerca de quinhen-
tos metros de distância.
Um pouco abaixo, a uma quadra da praça principal, a via pas-
saria pelo Palacio Arzopispal, casarão que pertenceria aos marqueses de
San Juan de Buenavista, construído sobre as ruínas do palácio do go-
vernador inca, Roca – que reinaria, aproximadamente, de 1350 a 1380.
Sem dúvida, seria muito rica a experiência do transeunte que galgasse
a encosta em direção a San Blas e se deparasse com a esquina na qual
este edifício seria levantado, erguido sobre complexos muros incas pree-
xistentes. O vértice do casarão contaria com um balcão quadrangular,
justaposto a uma espécie de torreão ligeiramente saliente, um mirante
lançado na esquina da “Via Sacra” com a atual Calle Herrajes – elemen-
to arquitetônico sublinhado pelo telhado em balanço que cobriria toda
extensão do organismo de madeira que avançaria sobre a rua desde o
segundo piso do palácio. Um pouco à frente surgiria a imponente por-
tada de pedra que distinguiria o acesso ao edifício – estrutura pujante,
capturada através da visão em escorço devido à sua implantação angu-
RODRIGO ESPINHA BAETA

losa, oriunda do deslocamento provocado pela portada ao se desalinhar


do limite da testada.
Mais alguns passos e o espectador irromperia na Plaza de Ar-
mas e se depararia com os panoramas que revelariam toda a trama bar-
roca discutida anteriormente. Este instante especial seria comandado
por um sentimento de “maravilha” proporcionado pelo “efeito surpre-
sa”: a descoberta, repentina, do mais importante evento cenográfico da
cidade – situação completamente incomum para os núcleos hispano-
-americanos de desenho radicalmente regular, nos quais a abertura de
um acontecimento dramático imprevisto raramente ocorreria. O meca-
nismo que geraria a impressão da “surpresa” residiria no fato da “Via
Sacra” nascer muito estreita na altura do Barrio de San Blas e alcançar a
praça principal ainda com uma largura modesta, o que limitaria o campo
de visão do espectador até ele ingressar na praça após passar pelo cos-
tado da Capilla de El Triunfo – que apareceria à direita, na conclusão
deste trecho do antigo caminho pré-hispânico. Além disso, apesar da via
cruzar a Plaza Mayor acompanhando um dos lados menores da grande
328 esplanada, justamente aquela face na qual seria levantada La Compañia,
ela chegaria um pouco desalinhada em relação ao seu lado sudeste – cer-
ca de 20 metros; só depois seguiria seu flanco, unidirecionalmente, até
a conclusão final do eixo perspectivo, na altura da Iglesia de San Pedro,
700 metros adiante.
Deste modo, após ter avistado as torres elevadas da igreja je-
suítica nas proximidades da Capilla de San Blas ao iniciar a descida do
eixo sagrado, o transeunte perderia o contato visual com o templo e só o
resgataria pouco antes de alcançar o deslocado acesso à praça: situação
que ofereceria ao passante uma imagem muito mais atraente da igreja,
destacando-se o volume e, especialmente, seu frontispício – lançados em
grave escorço para a visão do espectador que se aproximasse.
Após a igreja dos jesuítas, a via seguiria absolutamente retilínea,
perseguindo o ponto de fuga que encerraria o eixo dramático. No setor
mais baixo da Plaza Mayor, o passante poderia avistar, no poderoso en-
caminhamento em profundidade, para além dos campanários da Com-
panhia, outras diversas torres de igrejas que seriam assentadas na via. Os
torreões achatados de La Merced e de Santa Clara, lançados no eixo da
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

“Via Sacra”, seriam imediatamente capturadas pelo olhar, alinhados em


fuga perspectiva com as duas torres dos jesuítas. No entanto, um pouco
mais à frente, o par de campanários de San Pedro se apresentaria con-
juntamente ao transeunte.
Assim, dando prosseguimento ao trajeto, vencendo o ambiente
da Plaza de Armas, a estrada ganharia, a noroeste, um pequeno alarga-
mento que acompanharia toda a extensão de uma das fachadas laterais
da Iglesia del Convento de La Merced, implantada na face oposta da
via, logo após a grande mole do colégio jesuítico. A estrutura monástica
seria fundada em 1537 e construída em uma huaca que marcaria a casa
de uma Coya, ou princesa inca. Não obstante, o convento masculino e
a igreja seriam praticamente reconstruídos após o terremoto de meados
do século XVII. Seguindo a tradição mudéjar5, a igreja estaria assentada
de costados para a pequena praça à frente e nem sequer exporia a fa-
chada voltada para o eixo longitudinal do templo (geralmente a mais
importante) – por estar oculta por um muro e por um portão alinhados
com a rua. A sóbria fachada lateral só teria, como elementos de desta-
que, a portada principal, que daria acesso transversal ao seu interior, e 329
o arremate superior da pesadíssima e achatada torre, organismos que
receberiam um tratamento decorativo mais complexo. Deste modo, o
frontispício, marcado pela portada em uníssono com o andar elevado
do campanário, criaria um interessante contraponto diagonal frente à
assepsia e rugosidade da frontaria. Também seria significativa a inusitada
presença de uma capela aberta de índios diluída no conjunto decorativo
da portada – nicho implantado acima do acesso ao templo, incorporado
à sóbria composição barroca. Esta capilla abierta teria como finalidade
permitir que os ofícios fossem executados para as pessoas que trabalhas-
sem no comércio e nas oficinas abaixo.
Por outro lado, a praça na qual se levantaria a Iglesia de La Mer-
ced seria um fragmento da antiga Plaza del Regocijo, separada do recinto
da municipalidade por um quarteirão construído algum tempo após a
divisão da esplanada de Huacaypata – quadra que receberia, a partir de
finais do século XVII, a Casa de Moneda de Cuzco, substituída, na déca-
da de 1930, por uma monumental construção neocolonial. Não obstan-

5
NICOLINI. La ciudad hispanoamericana, medieval, renacentista y americana, op.
cit., p. 32.
RODRIGO ESPINHA BAETA

te, este quarteirão permitiria que se abrisse, à direita, ao final do pequeno


largo de La Merced, um encaminhamento perspectivo de mais de 300
metros. Flanqueando a Casa de Moneda, passando adjacente à face su-
doeste da Plaza del Regocijo e por seu cabildo, e prosseguindo por outro
longo trecho de rua, a fuga visual estaria emoldurada, em profundida-
de, pela sóbria e distante fachada da Igreja del Convento de Monjas de
Santa Teresa. Seria outra situação atípica para o modelo consagrado de
traza em damero hispano-americana: as cidades que contariam com este
desenho nunca apresentariam um monumento postado na conclusão
dos pontos de fuga gerados, perspectivamente, pelas linhas paralelas lan-
çadas nas vias retilíneas – ruas que se cruzariam ortogonalmente e em
intervalos regulares (Figura 2).
Persistindo na “Via Sacra” e vencendo mais um seguimento de
rua, seria aberto, à direita, o último retalho da antiga esplanada inca: a
enorme Plaza de San Francisco, recinto dominado pela igreja sede do
convento que daria nome ao espaço, ambiente no qual também se esta-
beleceria o tianguez – como já foi comentado. O convento, que ganharia
330
dimensões bem significativas, seria construído, a partir de 1538, acima
das ruínas de outra huaca pré-hispânica: a cancha de Ccasana. A igreja
maior, assentada na antiga plataforma inca, seria um organismo arqui-
tetônico que exporia mais do que a superfície de uma de suas fachadas,
como era de costume: apresentaria sua massa edificada em escorço, ofe-
recendo a visão da sua imponente volumetria que dominaria o recinto
– demarcando mais um rito católico vinculado ao eixo sagrado.
Logo após, alinhado com a terminação do lado sudoeste da pra-
ça franciscana, surgiria um organismo arquitetônico republicano edifica-
do em 1835: o Arco de Santa Clara – um arco do triunfo de três fórnices,
com uma abertura central mais ampla, que passaria por cima da artéria
de veículos, e outras menores, que se sobreporiam às passagens para os
perdestes. Apesar de ter sido levantado após o período Barroco, pelo
seu tratamento e materiais construtivos – a mesma pedra andesita que
constituiria a base de toda arquitetura religiosa – e por sublinhar a fuga
perspectiva que se desenvolveria desde a Plaza de Armas, o arco não
perturbaria a intensidade do evento dramático encenado na via; pelo
contrário, acabaria favorecendo-o.
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

331

Figura 2: Sequência de imagens da Via Sacra de Cuzco. Acima: fotografia feita


do Barrio de San Blas da “Via Sacra”. Vislumbram-se, sequencialmente: a Ca-
tedral; as Torres e a fachada da Iglesia de La Compañia; o campanário de La
Merced; a torre de Santa Clara; e, fechando o encaminhamento perspectivo, San
Pedro, com suas duas torres e fachada-retábulo. Ao meio: a Via Sacra vista da
Plaza de Armas. Abaixo, à esquerda: La Merced. Abaixo. À direita: fuga pers-
pectiva – retirada entre a Plaza de La Merced e a Plaza El Regocijo – voltada
para a fachada principal da Iglesia del Convento de Monjas de Santa Teresa.
Fotografia do autor, 2007.

Sua denominação estaria vinculada ao fato de estar muito pró-


ximo ao Monastério de Santa Clara, que surgiria no campo visual logo
após o transeunte vencer um de seus fórnices. O complexo religioso
feminino teria sido fundado na década de 1550, na zona de Amaruca-
ta, um tradicional bairro da nobreza inca. Juntamente com a Catedral,
seriam as únicas estruturas arquitetônicas religiosas de vulto que teriam
escapado com poucos danos do sismo de 1650. A implantação da igreja
RODRIGO ESPINHA BAETA

maior se daria segundo o modelo tradicional – seguido também por La


Merced e San Francisco – de costado para o logradouro, do mesmo lado
sudeste que as estruturas jesuíticas e mercedárias. Contudo, sua fachada
lateral, a única exposta à cidade, estaria ligeiramente recuada em relação
à “Via Sacra”, definindo um pequeno átrio encerrado por um gradil
levantado na testada do lote. Como destaque, a pesada fachada só apre-
sentaria as sóbrias portadas e a larga e achatada torre, campanário ergui-
do à frente, lançado acoplada ao plano da grande frontaria, com uma
largura equivalente à do átrio – ou seja, sobressalente e alinhado com a
via e encerrando a extensão linear do pequeno recinto aberto.
Porém, o que mais despertaria a atenção na imagem que se
capturava da fachada e do campanário de Santa Clara seria sua interfa-
ce com o panorama perspectivo do edifício religioso que encerraria os
eventos barrocos do eixo sagrado: a Iglesia de la Parroquia de Indios
de San Pedro – templo que originalmente faria parte de um hospital
para os nativos, fundado em 1565. Construída por um mestre indígena
a partir de 1688 – utilizando-se, ainda, de pedras provenientes das mura-
332
lhas incas do Monte Picchu6 –, seria implantada, mais uma vez, na face
sudeste da rua, no vértice do quarteirão que estaria voltado à praça que
se abriria à frente. Para o espectador, as elegantes torres da igreja, bem
como sua frontaria barroca, já poderiam ser vistas, parcialmente, em
contraposição ao pesado campanário de Santa Clara, após a travessia do
arco triunfal republicano. E devido à existência do recuo, conformado
pela praça aberta entre o mosteiro e a sede da paróquia, sua expressiva
imagem perspectiva iria se abrindo, gradativamente, até se apresentar,
integralmente, ao transeunte e em perfeita elevação – desvelando seu
rico frontispício barroco lançado à frente da superfície da fachada: mais
um teatral retábulo de pedra, embutido entre duas torres, que seguiria o
modelo de La Compañia.
O altar-mor de pedra, aberto perspectivamente à “Via Sacra”,
visto nas proximidades da finalização do eixo, seria a conclusão ideal
deste caminho que, após alcançar a Plaza de Armas, sempre revelaria
panoramas nos quais torres, portadas e frontispícios de igrejas se su-
cederiam perspectivamente. É claro que, se o percurso fosse feito na

6
BUSCHIAZZO, Mario. Estudios de arquitectura colonial hispano americana. Bue-
nos Aires: Editorial Guillermo Kraft, 1944, p. 107.
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

direção oposta, outros efeitos cenográficos despontariam – e alguns


se anulariam. Assim, a “Via Sacra” nasceria em uma igreja para índios,
passaria pela arquitetura religiosa monumental da classe dominante e se
concluiria, de forma pertinente, em outra paróquia indígena – indepen-
de do sentido do percurso assumido pelo passante (Figura 3).

333

Figura 3: Sequência de imagens da Via Sacra de Cuzco. Acima: Capilla de San


Ignacio e a continuação da “Via Sacra” no alinhamento dos casarões portica-
dos. Abaixo, à esquerda: a Via Sacra, vislumbrando, sequencialmente, La Com-
pañia, La Merced e Santa Clara. Ao meio, à direita: Santa Clara e, ao fundo, San
Pedro. Abaixo, à direita: a finalização da via na fachada retábulo de San Pedro.
Fotografia do autor, 2007.
RODRIGO ESPINHA BAETA

A arquitetura religiosa e as vistas panorâmicas da cidade de Cuzco

Até o presente momento, a expressão da dramaticidade, defla-


grada pela cidade andina seria analisada através do percurso assumido
pelo passante que caminhasse pelas vias e praças internas do núcleo
urbano, trajeto que revelaria, progressivamente, os importantes aconte-
cimentos cenográficos que acabariam contagiando todo o ambiente ci-
tadino com sua teatralidade barroca. Contudo, a cidade também poderia
ser vislumbrada dos morros e encostas que envolveriam o vale dos rios
Huatanay e Tullumayo – entre outros vales e cursos d’água que cruza-
riam a região –, sítios geralmente ocupados por bairros indígenas carac-
terizados pela presença significativa de expressivas igrejas paroquiais: as
paróquias de San Cristóbal e Santa Ana, com suas igrejas assentadas na
encosta abaixo da Fortaleza de Sacsayhuamán – monumental fortifica-
ção inca de onde, igualmente, panoramas inebriantes da cidade colonial
poderiam ser capturados; a Iglesia de Belén, levantada mais distante, na
franja entre os Rios Chunchulmayo e Huancaro; o Bairro, assim como
o já comentado Templo de San Blás, na encosta a nordeste da Plaza de
334 Armas, em uma das pontas da “Via Sacra”.
Ou seja, galgando estes elevados assentamentos, áreas que se-
riam frequentadas, prioritariamente, pelas comunidades indígenas, as
vistas dominantes que se abririam ao transeunte destacariam, indubita-
velmente, os organismos religiosos. Na verdade, a paisagem anunciada
das encostas e morros desvelaria uma grande massa de telhados cerâ-
micos alaranjados distribuídos, homogeneamente, através de uma vir-
tual trama de linhas dominantes ortogonais que produziria uma falsa
impressão de regularidade – impressão que superaria, ilusionisticamente,
o baixo teor de ordenação racional do traçado da cidade. Deste modo,
dilacerando a suposta grelha ortogonal, formada por uma superfície pla-
na de coberturas alaranjadas que se espalhariam pelos vales, as torres das
igrejas e os frontispícios conformados em pedra andesita, bem como
as cúpulas mais claras de tijolo despontariam como “figuras” sobre o
“fundo” homogêneo dos telhados.
Discorrendo, especificamente, sobre as calotas hemisféricas as-
sentadas acima das proeminentes construções católicas, ao contrário do
modus operandi praticado no Velho Mundo, onde apenas uma grande cú-
pula – construída acima de um tambor cilíndrico e coroada por uma ver-
ticalizada lanterna – se destacaria sobre o telhado de duas ou mais águas
ARQUITETURA E CIDADE NA AMÉRICA HISPÂNICA...

que protegeria o edifício religioso, na América hispânica seria comum a


apresentação – para o exterior da igreja – da complexa trama de abóba-
das que encerraria as naves, as capelas laterais e o presbitério do monu-
mento. De fato, esta tradição (também corriqueira em algumas regiões
da Espanha) seria desenvolvida devido à reiterada ausência de telhados
nas igrejas e catedrais hispano-americanas, prática construtiva que deixa-
ria suas complexas abóbadas de tijolo – formadas quase sempre por cas-
quetes de cúpulas justapostos sequencialmente – descobertas e expostas
à cidade, criando interessantíssimos efeitos volumétricos determinados
pela interpenetração de inúmeras estruturas sinuosas e onduladas.
Assim, o espectador que subisse em algumas áreas do Barrio de
San Blas, da Parroquia de San Cristóbal ou da Fortaleza de Sacsayhua-
mán, avistaria pelo menos vinte e seis calotas hemisféricas distribuídas
acima da Catedral de Cuzco, sem contar com aquelas cúpulas que fecha-
riam as Iglesias de El Triunfo e de Jesús y María e dos outros zimbórios
referentes às abóbadas de La Compañia, Merced, San Piedro, Santo Do-
mingo. Este dinâmico jogo de formas onduladas seria potencializado
pelos arremates cupuliformes das grossas torres, o que levaria Fernando
Chueca Goitia7 a denominar este massivo agrupamento de suaves cú- 335
pulas distribuídas pelas coberturas dos edifícios de arquitectura-montículo.
Logo, seriam capturadas das encostas, invariavelmente, cenas
dramáticas nas quais se destacariam: a nave e o átrio a céu aberto forma-
dos pala Plaza de Armas e suas igrejas dominantes – suas cúpulas, cam-
panários e frontispícios (especialmente o retábulo exterior da Igreja dos
Jesuítas); a sequência das torres dos templos alinhados que conforma-
riam a fuga perspectiva da “Via Sacra”, além do encaminhado perpendi-
cular que buscaria o Convento de Santo Domingo (não discutido); mas
também os outros organismos religiosos lançados por toda extensão da
cidade; e as igrejas a cavaleiro das elevações que envolveriam o vale co-
berto pelos telhados das construções coloniais ordinárias. Desta forma,
a paisagem apreendida do núcleo privilegiado, que se espalharia abaixo,
ofereceria ao transeunte uma síntese imediata de toda trama cenográfica
que se poderia vivenciar ao se caminhar pelas ruas do assentamento
urbano.

7
CHUECA GOITIA, Fernando. El Barroco hispánico y sus invariantes. In:
MINARDI, Vittorio (org.). Simposio internazionale sul Barocco Latino Americano.
Atti. Roma: Istituto Italo-Latino Americano, v. 1, p. 189-200, 1980, p. 196.
RODRIGO ESPINHA BAETA

Como os nativos seriam os espectadores que, comumente, tra-


fegariam pelas encostas de onde se abririam os panoramas distantes da
cidade – já que habitariam as áreas altas ao redor do vale central – ficaria
claro que a Cuzco colonial cumpriria seu papel como centro regional
de propagação da devoção religiosa. De cima, os descendentes daquele
povo que teria edificado o grandioso império inca se sentiriam subju-
gados pela nova ordem política e religiosa que, impositivamente, teria
se instaurado um século antes – um comando espiritual capturado na
imponente presença das estruturas religiosas que apontariam por toda
cidade (Figura 4).

336

Figura 4: Imagens panorâmicas de Cuzco. Acima: fotografia feita da colina onde


se encontra a fortaleza inca de Sacsayhuamán mostrando a Plaza de Armas de
Cuzco com suas duas igrejas. Percebe-se a conformação cenográfica do espaço
se configurando como uma nave a céu aberto voltada para a fachada-retábulo
da Iglesia de La Compañia. Abaixo: As calotas das cúpulas e as torres da Cate-
dral e de La Compañia – vistas do Barrio de San Blas. Fotografia do autor, 2007.
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

Capítulo 21

PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE


ARCHITETTURE VIRTUALI

Silvio Van Riel

La conservazione e valorizzazione degli apparati decorativi ad


illusionismo architettonico richiede un attento approccio metodologico
al progetto di restauro; la decorazione infatti fa parte integrante della
muratura su cui è stata dipinta. In questa relazione vengono considerati
tre esempi significativi di questa problematica, riferiti a soffitti realizzati
con centine lignee e stuoie di canne e intonaco che nell’intradosso
presentano decorazioni pittoriche, in questo caso ad illusionismo
architettonico.1 Questo sistema di controsoffittatura, documentato
dal XIII secolo, ha avuto grande impiego negli edifici religiosi e 337
nelle residenze per le qualità di leggerezza e di economicità che li
distinguono. Oggi questi supporti spesso si trovano in precario stato
di conservazione a causa di diversi fattori: alcuni intrinseci al sistema
costruttivo, altri esterni ad esso come ad esempio cedimenti fondali,
sisma, infiltrazioni di acqua, aumentati carichi termo-igrometrici dovuti
all’adeguamento impiantistico. Il precario stato di conservazione si
rende manifesto, spesso, all’intradosso dove i dipinti e le decorazioni
presenti mostrano un quadro fessurativo di vistosa entità, distacchi
della pellicola pittorica, degrado e/o distacco del supporto dovuti allo
sfarinamento dell’intonaco etc.2
Il cinquecentesco palazzo Serristori, costruito sulla riva sinistra
dell’Arno, ai primi del Settecento fu oggetto di una importante tranche

1
Questo sistema viene chiamato camorcanna.
2
Caduta di porzioni di supporto dovute al distacco dell’intonaco dal tessuto
di canne; perdita di porzioni del supporto dovuta alla marcescenza del tessuto
di canne o al distacco dello stesso dalle centine lignee; macchie color ruggi-
ne dovute all’ossidazione degli elementi in ferro (chiodature, fili); alterazioni
cromatiche dovute ad infiltrazioni di acqua o al deposito particellare fino. Per
approfondimenti si rimanda a QUAGLIARINI, Enrico, D’ORAZIO, Marco.
Recupero e conservazione di volte in “camorcanna”. Firenze: Alinea Editrice, 2005.
SILVIO VAN RIEL

di lavori di ampliamento e di riordino.3 Averardo Serristori, figlio di


Luigi e Camilla Riccardi, maggiordomo di Anna Maria Luisa l’Elettrice
Palatina e uno dei consiglieri più fidati, nel 1724 affidò all’architetto
Ferdinando Ruggieri la progettazione dello scalone di collegamento
del piano nobile e di una scala a chiocciola secondaria. Parallelamente
Averardo procedette al riordino degli apparati decorativi di alcuni
ambienti del palazzo, che interessò principalmente il seicentesco salone
del piano nobile e i mezzanini, con il concorso degli artisti più illustri
del periodo (fig. 1). Nell’agosto 1733 ebbe inizio la lunga attività per i
Serristori del giovane quadraturista Antonio Domenico Giarrè, figlio
di Filippo, entrambi pittori di fiducia dei Rinuccini,4 vicini alla famiglia
granducale, dai quali ebbero numerose commissioni.

338

Figura 1: Firenze, palazzo Serristori, salone, volta a padiglione, macchina


architettonica virtuale, particolare.
Foto: Fauzia Farneti

Un nuovo programma di ampliamento del palazzo, seguito


dall’architetto Bernardo Ciurini, verrà realizzato a partire dal 1747 da

3
CARRARA, Francesca. Salviati e Serristori: le dimore a Firenze in età baroc-
ca, in BEVILACQUA, Mario, MADONNA, Maria Luisa (a cura di). Atlante
tematico del barocco italiano. Residenze nobiliari Stato Pontificio e Grandu-
cato di Toscana. Roma, De Luca editore, 2003, pp. 382-392.
4
FARNETI. Quadraturismo e grande decorazione nella Toscana granducale,
pp. 343-348.
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

Anton Maria Serristori che diede avvio anche alla decorazione delle
nuove stanze del suo appartamento del piano nobile, in occasione del
matrimonio con Teresa Guadagni celebrato nel 1748. Ancora una volta
viene chiamato Anton Domenico Giarrè a ridefinire l’apparato decorativo
del salone del piano nobile di Antonio, che fa parte dell’ampliamento
seicentesco dell’edificio progettato da Pier Francesco Silvani, ritoccando
“la pittura dell’intonaco alla volta”, realizzata da Agnolo Gori e Cosimo
Ulivelli nel 1670, che aveva conferito una inconsueta monumentalità
all’ambiente. Dagli inventari del 1806 e 1812 si evince che nel salone si
aprivano “tre finestroni” e si trovavano “nove portiere di panno rosso”. Il
Giarrè dipinse anche “due porte e due finestre della suddetta camera” (fig.
2). Tutta la decorazione del salone tra il 1788 e il 1789 venne ‘restaurata’
da Giuseppe, figlio di Antonio Domenico Giarrè; questo intervento
fa parte di un ampio programma di ridecoro di diversi ambienti, cui
parteciparono Giuseppe Sorbolini, Pietro Rabbuiati, Gaspero Puccinelli,
Giuseppe Fabbrini, Gaspero Bargioni e Giuseppe Castagnoli che eseguì
una pittura di architettura nella camera di fronte alla cappella terrena.
Giuseppe prima, Castagnoli e Mulinelli poi, intervennero nelle stanze
dipinte in precedenza da Anton Domenico Giarrè. 339

Figura 2: Firenze, palazzo Serristori, salone, decorazione ad illusionismo


architettonico, particolare. Luigi Baldancoli su disegno di Anton Domenico
Giarrè, 1897-1899
Foto: Fauzia Farneti
SILVIO VAN RIEL

Nell’agosto del 1866 la copertura dello stesso salone, impiegato


ormai come magazzino di mobili, e il tetto crollarono in seguito a un
incendio sviluppatosi nel secondo piano; nelle Memorie scritte nel 1924
da Umberto Serristori si legge che le pitture “murali a buon fresco erano
rimaste illese (e sono quelle che riprodotte a tempera vi si veggono
anche oggi) mentre nulla più esisteva della volta andata completamente
distrutta”. Furono subito avviati i lavori di riedificazione del tetto seguiti
dall’ingegnere Telemaco Bonaiuti, che non interessarono la ricostruzione
della volta; in questa occasione, a sostegno della nuova copertura venne
costruito un muro di spina che ripartì il salone in due ambienti distinti.
Fra il 1872 e il 1875 Alfredo Serristori riprese il restauro del salone, ormai
bipartito, con la costruzione di due volte e il consolidamento del muro
di facciata e di quello di spina edificato nel 1866, inadeguato a sostenere
il carico del tetto e delle volte. I lavori furono sospesi e ripresi nel 1895
da Umberto Serristori che ripristinò per quanto possibile l’impianto e la
copertura originaria del salone, demolendo il muro di spina, “rifacendo
la parete dalla parte del giardino e rinnovando la volta ossia lo stuoiato”.
La grande volta a padiglione lunettata del salone, il terzo a Firenze per
340 ampiezza in una residenza privata dopo le sale dei palazzi Corsini e
Capponi, copriva un’area di 14,32x16 m e venne costruita dall’architetto
e ingegnere Tito Bellini, assistito dall’ingegnere Giuseppe Lenci su
commissione di Umberto Tognozzi di Imola, che aveva ereditato il
palazzo e il nome da Alfredo Serristori. Il nuovo tetto è stato progettato
e costruito indipendente dalla copertura voltata ad incannicciato del
salone, costituita da due grandi travi reticolari lignee disposte secondo
un’asse nord-sud, alle quali risulta agganciato l’intero sistema di travi
e centine della volta a lunette sottostante; tutti gli elementi lignei sono
di abete bianco. La peculiarità delle travate è costituita dal fatto che sia
le ali superiori che quelle inferiori poggiano su lastre di pietra posate
sulla muratura per una profondità di una cinquantina di centimetri. La
volta vera e propria, sospesa alle travate mediante collegamenti metallici,
è costituita da centine lignee alte circa 16 cm, formate da tre tavole,
e da una stuoia di canne intrecciate sottostante che è tesa da travicelli
disposti lungo le generatrici delle volte e raccordati alle centine a mezzo
di pendini di legno.
L’analisi delle strutture ligneee di copertura è premessa
indispensabile al restauro di questo prestigioso ambiente che versa in
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

uno stato di degrado che coinvolge l’intero edificio a causa della mancata
manutenzione e dell’abbandono. Nell’intento di un recupero formale
e stilistico delle pareti, nel 1897 il pittore Luigi Baldancoli, che dieci
anni prima aveva decorato la galleria d’arte e d’antiquariato di palazzo
Lenzi in piazza Ognissanti a Firenze, si impegnò a dipingere a tempera
le pareti “uguali alle esistenti”, la copertura voltata nel “medesimo stile
settecentesco” e le imposte del salone. Per ottenere questo risultato, dal
momento che sulle murature anche se compromesse e danneggiate,
erano ancora visibili brani di decorazione, venne effettuato il rilievo
fotografico dallo stesso Baldancoli con l’impiego di ponti lignei allestiti
dal muratore Enrico Cambi, lo stesso che alcuni anni dopo realizzò la
ricostruzione del salone assieme al falegname Demetrio Lumachi che si
occupò della carpenteria. Questa operazione si rese necessaria perché
l’intervento prevedeva la quasi completa ricostruzione della parete sul
giardino; il salone nelle sue forme tardo seicentesche, originale nel
panorama fiorentino contemporaneo, fu inaugurato con un ballo il 13
febbraio 1899.
L’apparecchiatura architettonica virtuale delle pareti denota
un impianto ancora settecentesco, nel colonnato ionico trabeato che 341
percorre le pareti e nella modalità di risolvere i sovrapporta enfatizzati
al centro dal tradizionale busto, molto in uso nelle sale fiorentine fin
dalla metà del Seicento; negli intercolunni si aprono nicchie in cui su alti
piedistalli trovano posto elementi figurativi, a fingere statue, che possono
essere ricondotti al repertorio del Giarrè, come le nereidi e le volute,
riscontrabili anche negli apparati decorativi da lui realizzati nelle sale
terrene dello stesso palazzo. Il colonnato che percorre le pareti denota la
perdita di quell’intento di profondità proprio degli ingannevoli costrutti
dipinti dal Giarrè nella prima metà del Settecento, come ben possiamo
cogliere ancora nelle sale terrene. Il disegno prospettico impegna tutte le
pareti della sala, coinvolgendo l’osservatore nell’illusione architettonica.
I colori impiegati sono quelli dei materiali dell’architettura reale; ogni
singolo elemento è descritto nel dettaglio, con le ombre generate;
l’ingannevole costrutto architettonico del secondo ordine delle pareti
e della volta, progettato interamente dal Baldancoli, trova i propri
riferimenti in ambito bibienesco e, pur dichiarando in modo evidente
la finzione, tiene conto delle aperture e degli elementi dell’architettura
reale del salone. Al di là delle aperture realizzate nella copertura voltata
SILVIO VAN RIEL

si intravvedono brani di architetture urbane, che richiamano immagini


analoghe proprie del repertorio di Rinaldo Botti e di Pietro Anderlini: a
questo proposito si citano le decorazioni nella cappella principale della
Badia Fiorentina e, per Giuseppe del Moro, quella della chiesa di San
Leone a Pistoia.
Un altro esempio significativo di illusionismo architettonico si
trova nel complesso trecentesco di San Girolamo che si colloca nelle
vicinanze della piazza di Fiesole e di villa Medici.5 Con la soppressione
degli ordini religiosi di San Giorgio in Alga, dei frati Gesuati e di San
Girolamo di Fiesole nel 1668,6 il vescovo di Fiesole prese possesso
della chiesa, del convento e “dei beni annessi” in nome della Santa
Sede; dagli anni trenta del Settecento il complesso dei Girolamini risulta
essere “di dominio della famiglia Bardi di Vernio”7 e, come riferisce il
Moreni, “serviva di villa”.8
Furono i Bardi ad adattare al nuovo uso l’antico convento con
interventi mirati a conferire al primo piano il ruolo di panoramico “piano
nobile” della nuova residenza laica. A loro si deve presumibilmente la
costruzione e la decorazione della galleria posta sopra il loggiato della
342 chiesa.
La galleria soprastante il portico a tre campate della chiesa di
San Girolamo ha pianta rettangolare, con i due angoli a settentrione
tagliati obliquamente dalle brevi pareti su cui si aprono le due porte di
accesso in pietra serena, di cui una conduce a una scaletta pentagonale.
Degni di attenzione i sovrapporta, databili alla prima metà del
Settecento, costituiti da un fastigio mistilineo in stucco arricchito
ai lati da serti vegetali e nastri; una testina delimitata da volute a S

5
FERRARA, Miranda, QUINTERIO, Francesco. Michelozzo di Bartolomeo. Fi-
renze: Salimbeni, 1984; MAZZINI, Donata (a cura di). Villa Medici a Fiesole.
Leon Battista Alberti e il prototipo di villa rinascimentale. Firenze: Centro Di, 2004.
6
BANDINI, Angelo Maria. Lettere XII ad un amico nelle quali si ricerca, e si illustra
l’antica e moderna situazione della città di Fiesole e suoi contorni . Siena: Bindi 1800
(rist. anastatica Firenze: Libreria Chiari, 2003), pp 130-145 (132); BRUNORI,
Dionisio. L’eremo di S. Girolamo di Fiesole. Fiesole: Tip. Ernesto Rigacci, 1920;
CARBONE, Giunio. L’eremo di San Girolamo ora Villa Ricasoli sulla collina di
Fiesole: descrizione di Giunio Carbone, s.l., s.n., 1852
7
Il dominio è riferito in un rilievo del 1730, cf. FERRARA, Miranda, QUIN-
TERIO, Francesco 1984, pp. 307-308, nota 17.
8
Nel 1798 il complesso fu acquistato dal priore di Firenze dell’ordine di S.
Stefano, il cavalier Pietro Leopoldo Ricasoli; si rimanda a PASSERINI, Luigi.
Genealogia e storia della famiglia Ricasoli. Firenze: coi tipi di M. Cellini, 1861, pp
109-113(110).
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

sdraiato, occupa l’asse centrale. Nello spessore della parete nord, che
corrisponde alla controfacciata della chiesa, si aprono tre nicchie di
cui quella centrale, più ampia, è chiusa da una vetrata mentre le due
laterali, sopra un parapetto, presentano due grate lignee aperte sulla
navata. La galleria presenta una decorazione pittorica integrale ad
illusionismo architettonico che coinvolge pareti, finestre, nicchie e la
copertura voltata a padiglione a incannicciato. Ancora da individuare
l’autore dell’ingannevole macchina architettonica a cielo aperto che, a
mio avviso, potrebbe essere assegnata ad Anton Domenico Giarrè,
che abbiamo visto attivo in palazzo Serristori, o ad un prospettico a
lui vicino.
Infatti, aldilà della balaustra si snodano le quinte prospettiche
definite da brani di architettura all’antica, in parte diruta, impostata
anche in diagonale secondo una modalità rintracciabile in alcune sue
opere. L’impianto compositivo unitamente all’uso di arcate a tutto sesto
accanto a quelle ad arco acuto, di colonne bugnate, di numerosi uccelli
che con i loro colori vivacizzano la cromia del costrutto, portano ad
individuare la mano del Giarrè per le evidenti analogie con la galleria di
villa del Rosso Corsi poi Martelli a Giogoli Rossi (1735) e della galleria 343
di palazzo Capponi Covoni a Firenze. L’apparato architettonico
delle pareti brevi sono progettate tenendo conto della porta che si
apre in ciascuna di queste, delimitate da una cornice in finto marmo
rosso. L’architettura illusoria costruita sulla parete ovest è di grande
suggestione e mantiene pressoché inalterato l’impianto originale
settecentesco costruito da varie quinte prospettiche; la struttura del
quarto piano prospettico trova la propria conclusione in una balaustra,
nel cui centro è posta una improbabile fontana; nella vasca si raccoglie
l’acqua di quattro zampilli che escono dalle bocche di delfini dalle code
intrecciate, un motivo proprio del repertorio bottiano. Al di là di questa
struttura dal colore della pietra si intravvedono i ruderi di un’esedra,
dai toni rosati, che mostra i segni di un intervento successivo. L’ultima
quinta prospettica è costituita da un paesaggio agreste vivacizzato da
comparse.
Nella parete meridionale si aprono due finestre e una
portafinestra, adattamento nel tempo di una apertura uguale alle
precedenti, delimitate da cornici virtuali e concluse da un fastigio
affiancato da due volute molto plastiche (fig. 3). Mentre le decorazioni
SILVIO VAN RIEL

dipinte attorno agli stipiti sono costruite secondo il punto di vista


di un osservatore posto al centro della stanza, quelle poste sopra
l’architrave sono perfettamente simmetriche, come se fossero viste
da un osservatore posto davanti ad esse. A destra della portafinestra
sono rappresentati brani di un’architettura gotica in rovina con effetti
di grande suggestione e, sulle rovine, è posto un uccello notturno fuori
scala; sullo sfondo una torre circolare addossata a un alto muro. Due
figure umane, una donna con un canestro sul capo e un uomo con un
lungo bastone, si aggirano tra i ruderi: entrambe sono state dipinte dopo
gli elementi architettonici che traspaiono molto chiaramente attraverso
esse. In primo piano è dipinto un pilastro decorato plasticamente con
panoplie, ai piedi del quale sono ammucchiati frammenti di elementi
architettonici, lacerti disegnati in maniera poco convincente dal punto
di vista prospettico che potrebbero essere un’aggiunta successiva. Altri
ruderi sono rappresentati alla sinistra della portafinestra ma, in questo
caso, si tratta di brani di architettura classica.

344

Figura 3: Fiesole, san Girolamo, galleria, parete sud, decorazione a finta


architettura.
Fonte: Fauzia Farneti

Il costrutto architettonico della parete est, a destra della finestra,


è caratterizzato dai ruderi di un muro crollato lungo l’asse di due aperture:
una finestra e una porta. Allo stipite superstite della porta è addossato
un pilastrino concluso da una grossa mensola a voluta che sostiene la
vasca di una fontanella. Uno zampillo che esce da una piccola testa a
bassorilievo su una sorta di pigna ovale di colore violaceo, ricade nella
vasca dalla quale sporge una pianticella fiorita. Molte considerazioni
fanno ritenere che la fontana sia dovuta ad un intervento successivo:
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

la collocazione inverosimile, le forme grossolane, le dimensioni fuori


scala, il colore della pigna così simile a quello del vaso posto ai piedi
del pilastro dipinto nella parete sud, una analogia tra questa testina
e quella del piedistallo del vaso affrescato nella scaletta. Brani di
architettura ruinistica sono rappresentati anche sulla parete nord; alla
sinistra rispetto la porta centrale sono dipinte due colonne doriche dal
fusto marmoreo e capitelli dorati, su cui si imposta una trabeazione non
proporzionata rispetto alle colonne (fig. 4).9 Le basi sono coperte da
fronde, presumibilmente per coprire le difficoltà prospettiche legate
all’incerta posizione delle colonne rispetto alla struttura retrostante.

345

Figura 4: Fiesole, san Girolamo, galleria, parete nord, decorazione a finta


architettura
Fonte: Rielaborazione grafica Monica Lusoli

La galleria è coperta da una volta ribassata a incannicciato sulla


quale prosegue il cielo dipinto contro cui si stagliano le architetture
ruinistiche delle pareti; sono rappresentate varie specie di uccelli, ben
riconoscibili: colombi, pappagalli, aironi, fagiani, anatre etc. Al centro
della volta sono dipinte figure divise in due gruppi, per le quali è
riconoscibile la mano di Giovan Domenico Ferretti. Dal momento che
la galleria è stata dipinta nel periodo in cui i Bardi erano proprietari della
villa, l’apparato decorativo potrebbe celebrare l’attività venatoria e, più
in generale, la vita all’aperto e quindi, i piaceri della caccia e dell’amore.
Anche il vano della scaletta pentagonale, coperto da una volta a botte,
è interamente decorato con architetture in rovine enfatizzate dalle erbe
che si insinuano nelle lesioni.

9
Da notare la dimensione dell’architrave rispetto alla larghezza dell’abaco del
capitello.
SILVIO VAN RIEL

L’impianto pittorico originario della galleria, realizzato a mezzo


fresco, nel tempo ha subito numerosi interventi: ritocchi, modifiche
anche estese e restauri con tecnica a secco. Gli elementi architettonici
dipinti sono stati eseguiti con il trasporto del disegno mediante
l’incisione diretta e indiretta su intonaco ruvido ancora umido, come
ben si evince dall’indagine a luce radente. Anche dove i caratteri stilistici
o prospettici inducono a supporre interventi posteriori, le incisioni e
quindi il disegno dell’impianto settecentesco sono spesso rispettati.10
Alcuni elementi, quali le figure umane a piccola scala, sono invece
rappresentati senza l’ausilio di incisioni, presumibilmente per la facilità
di controllo del disegno di modeste dimensioni. Nella parete ovest la
mancanza di incisioni nell’esedra e le incertezze prospettiche inducono
a ritenerla un’aggiunta successiva o un brano oggetto di ridipintura.
I fastigi curvilineo delle porte ovest (a sinistra) ed est discordano
con le incisioni visibili a luce radente, che mostrano un disegno
completamente diverso, analogo a quello della porta di collegamento
con la scaletta. Discordanze con i segni delle incisioni si notano anche
sulla parete nord, vicino alla nicchia sinistra, come mostra ad esempio il
346 piccolo obelisco modificato rispetto l’impianto originario (fig. 5).

Figura 5: Fiesole, san Girolamo, galleria, foto a luce radente della parete nord-
est, particolare delle incisioni realizzate per trasferire il disegno sull’intonaco
ancora fresco.
Foto: Fauzia Farneti

10
Si veda come esempio la fontanella dipinta nella parete est.
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

Le sovrapporte e le sopraffinestre compositivamente sono


analoghe al disegno delle incisioni e il repertorio decorativo mostra
similitudini con quello più ricco che connota le sovrapporte del castello
di Meleto, dipinte da Lorenzo del Moro; l’analogia è riscontrabile nelle
volute molto plastiche, nell’uso di decorazioni dorate e di elementi
vegetali. Un parallelismo che coinvolge anche i motivi floreali e la fauna
che popolano il cielo, gli imbotti delle finestre e si affacciano dai partiti
architettonici; uccelli domestici e selvatici dai colori luminosi, che alla
moda del Bimbi, anche se non con la sua maestria, sono raffigurati in
maniera da renderne ben riconoscibili le caratteristiche della specie,
secondo una linea di interesse scientifico per la natura che aveva pervaso
molta parte della cultura fiorentina fino dal secolo precedente. Questa
soluzione informerà gli apparati anche di Giuseppe Del Moro e della sua
scuola, si cita quale esempio il casino di Livia a Firenze.
Una delle più evidenti forme di degrado degli apparati pittorici
è quella relativa alla presenza di depositi superficiali incoerenti (polveri),
costituiti principalmente da fuliggine, depositi carboniosi e, in generale,
polveri grasse untuose sedimentate in debole spessore anche in forma
di velo opacizzante. Il loro accumulo, sotto forma di incrostazioni, 347
localizzate soprattutto sopra i radiatori, è favorito proprio dai movimenti
ascensionali dell’aria riscaldata. In alcuni punti l’intonaco appare più
lucido: potrebbe essere l’effetto di un legante, ad esempio l’uovo,
utilizzato in un ritocco pittorico, oppure quello determinato da un
protettivo che testimonierebbe quindi restauro delle pitture. Prima di un
intervento di restauro pittorico dell’apparato decorativo della volta, che
mostra un quadro fessurativo complessivamente omogeneo per l’intera
superficie intradossale, con lesioni ad andamento trasversale accentuate
all’imposta, è necessario risolvere la causa del suo degrado.
La volta è costituita da una ossatura minuta definita da un sistema
di travicelli ad andamento parallelo al perimetro della pianta, sfalsati
in altezza ad assecondare la curvatura determinata da cinque centine
trasversali (fig. 6).11 L’andamento della superficie voltata è disegnato
da una trama in canniccio, fissato dal basso ai travicelli; la tessitura,
seppure complessivamente fitta, presenta punti di discontinuità negli
spazi rimasti vuoti tra le intersezioni dei gruppi ortogonali alle canne;

11
L’interasse dei travicelli risulta pressoché costante, pari a circa 25 centimetri.
SILVIO VAN RIEL

depositi di materiale vario, polvere, calcinacci e pezzi di laterizio


poggiano sulla superficie soprattutto in prossimità dell’imposta. Gli
strati dell’intonaco, stesi a più riprese sul canniccio, determinano la
superficie dell’intradosso. Il quadro di complessiva precarietà dei
collegamenti suggerisce di prendere una serie di provvedimenti atti
a ristabilire continuità tra le parti, con un intervento esteso al lato
estradossale volto al riassemblaggio e alla verifica dei collegamenti
delle armature lignee di sostegno; al miglioramento dei collegamenti
delle centine con la travatura di copertura; alla ricomposizione
della continuità della volta a incannicciato. In questo caso sarebbe
opportuno rifarsi all’esperienza di interventi analoghi realizzati nella
seconda metà del Novecento, in cui è preferibile, una volta consolidato
il film pittorico con collanti naturali, predisporre la rimessa in pristino
del collegamento con il cannicciato superiore tramite colate di latte di
calce addittivate con componenti indurenti fino a ridare coesione fra
intonaco sottostante e canniccio, come è stato realizzato nel salone di
palazzo Pucci (fig. 7).

348

Figura 6: Fiesole, san Girolamo, galleria, struttura di copertura.


Fonte: Elaborazione di Silvio Van Riel
PROBLEMI DI RESTAURO E DI CONSERVAZIONE DELLE ARCHITETTURE VIRTUALI

Figura 7: Firenze, palazzo Pucci, salone del primo piano, struttura dell’estradosso
della volta; in evidenza i tenditori della struttura della volta.
Foto: Agata Codispoti
349
Altri numerosi apparati architettonici realizzati all’interno dei
palazzi fiorentini versano in uno stato di grave degrado a causa della
mancata manutenzione o dell’abbandono, come ad esempio nel salone
di palazzo Pucci;12 la finta architettura dipinta da Jacopo Chiavistelli
alla fine del Seicento e quella realizzata presumibilmente alla fine del
Settecento sulla copertura voltata del salone presentavano depositi di
polvere, dissesti quali lesioni e deformazioni risolti con un adeguato
intervento di restauro. Per prevenire danni più congrui alla copertura
voltata e quindi all’apparato decorativo pittorico, in precedenza
è stato eseguito il restauro delle strutture di sostegno della volta ad
incannicciato, sostituite da nuove strutture lignee alle quali sono
collegati tenditori in acciaio con molle elastiche, al fine di adattare le
deformazioni naturali che avvengono per variazioni termiche dello
scheletro ligneo e del relativo incannicciato intonacato sottostante,
oggetto di intervento con latte di calce. Queste nuove strutture lignee
sono agganciate alla catena lignea della capriata di sostegno del tetto.

12
FARNETI. Quadraturismo e grande decorazione nella Toscana granducale,
pp. 205-232 (214-215).
SILVIO VAN RIEL

La scelta progettuale dell’intervento di consolidamento e di


riabilitazione strutturale dell’orditura lignea principale del tetto e degli
elementi secondari di sostegno della volta ha optato quindi per la
separazione dei due sistemi strutturali al fine di alleggerire la struttura
del tetto dal carico della volta ad incannicciato.

350
Sobre os Autores

Alex Fernandes Bohrer - Possui Graduação em História pela Univer-


sidade Federal de Ouro Preto (Licenciatura/2003 e Bacharelado/2004),
Mestrado em História Social da Cultura pela Universidade Federal de
Minas Gerais (2007), e Doutorado em História Social da Cultura pela
mesma universidade (2015). Atualmente, é Professor Efetivo do Insti-
tuto Federal de Minas Gerais.

Alfredo José Morales Martínez - Doctor en Historia del Arte por la


Universidad de Sevilla (1978) y Catedrático de Historia del Arte en la
Facultad de Geografía e Historia de la Universidad de Sevilla (1996).
Académico correspondiente de las academias de San Fernando de Ma-
drid, de Nuestra Señora de las Angustias de Granada y de San Telmo
de Málaga.

André Guilherme Dornelles Dangelo - Graduado em Arquitetura e


Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994), especia-
lização em Arte e Cultura Barroca pela Universidade Federal de Ouro
Preto e em Patrimônio Construído pela Faculdade de Arquitetura da 351
Universidade do Porto, mestrado em Ciências da Arquitetura pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (1998) e doutorado em História
Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006).
Atualmente é professor adjunto da Escola de Arquitetura da Universi-
dade Federal de Minas Gerais.

Aziz José de Oliveira Pedrosa - Bacharel em Design pela Univer-


sidade do Estado de Minas (2006), especialista em História e Cultura
da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008), mestre em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2012) e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (2016). Atualmente é professor adjunto do Centro
Universitário Newton Paiva.

Carla Bromberg - Graduada em Música pela Faculdades Santa Mar-


celina (1992), mestra em Musicologia pela Hebrew University Of Jerusa-
lem (1999), e doutora em História da Ciência pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (2009). Possui pós-doutorado pelo Centro
Simão Mathias de Estudos em História da Ciência - PUC/ SP atual-
mente realiza pós-doutorado no Departamento de Matemática da Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo.
Celina Borges Lemos - Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1980), mestra em Sociologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais (1988) e doutora em Ciên-
cias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Possui
pós-doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uni-
versidade de São Paulo (2008). Atualmente é professora associada da
Universidade Federal de Minas Gerais, vinculada ao Departamento de
Análise Crítica e Histórica da Arquitetura e do Urbanismo e ao Progra-
ma de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo.

Célio Macedo Alves - Graduado em História pela Universidade Fede-


ral de Minas Gerais (1988), mestre em História Social pela Universida-
de de São Paulo (1997) e doutor em História Social pela Universidade
de São Paulo (2002). Atualmente é professor de magistério superior da
Universidade Federal de Ouro Preto.

Danielle Manoel dos Santos Pereira: Graduada em História pelo


Centro Universitário Assunção (2007), especialista em História da Arte
pela Universidade Cruzeiro do Sul (2010), mestra em Artes pela Uni-
versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2012) e atualmen-
352 te é doutoranda em Artes pelo Instituto de Artes da mesma instituição.

Danilo Matoso Macedo - Graduado e mestre em Arquitetura e Ur-


banismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997, 2002), es-
pecialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola
Nacional de Administração Pública (2004) e doutor em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade de Brasília (2014). Atualmente é arquite-
to da Câmara dos Deputados, sendo sócio do escritório MGS Macedo,
Gomes & Sobreira.

Eduardo Alberto Pires de Oliveira - Doutor em História de Arte


na Universidade do Porto sob o tema “André Soares e o rococó do
Minho”. Atualmente é investigador integrado do Centro de História de
Arte / Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É acadêmico
correspondente da Academia Nacional de Belas Artes.

Fauzia Farneti - È Ricercatore in quiescenza dell’Università degli Stu-


di di Firenze, Dipartimento di Architettura. I suoi interessi di ricerca
spaziano dal ‘500 all'800, ponendo particolare attenzione ad alcune te-
matiche: l’incidenza della pittura di “quadratura” sull’architettura co-
struita; l’analisi delle varianti dei linguaggi; il contributo dell’Accade-
mia del Disegno alla formazione dell’architetto nel ‘600 e ‘700; il ruolo
dell’indagine storica nell’intervento di restauro e nella valorizzazione
dei beni culturali nei centri storici.

Javier Navarro de Zuvillaga - Licenciado en la Escuela Técnica Su-


perior de Arquitectura de la Universidad Politécnica de Madrid (1968),
Graduado en Teoría del Diseño por The Architectural Association
School of Architecture de Londres (1971), Doctor en Arquitectura por
la Universidad Politécnica de Madrid (1980). Catedrático de Perspec-
tiva en la Facultad de Bellas Artes de la Universidad Complutense de
Madrid desde 1980.

Luiz Alberto Freire: Licenciado em licenciou-se em Letras Vernáculas


com Francês pela Universidade Católica do Salvador (1983), bacharel
em Museologia pela Universidade Federal da Bahia (1990) e doutor em
História da Arte pela Universidade do Porto em Portugal (2001). Reali-
zou estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Minas Gerais (2014-2015). Atualmente é
professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.

Magno Moraes Mello: Grudado em História pela Faculdade de Filo- 353


sofia Ciências e Letras de Belo Horizonte (1983); especialista em Crí-
tica de Arte e Museologia pela Università Internazionale dell'Arte de
Florença (1990), mestre em História da Arte pela Universidade Nova
de Lisboa (1997), doutor em História da Arte pela Universidade Nova
de Lisboa (2002) e pós-doutor em História da Arte pela Università de-
gli Studi di Firenze (2012). Atualmente é professor de História da Arte
da Universidade Federal de Minas Gerais e lidera o grupo de pesquisa
Perspectiva Pictorum.

Maria Cláudia Almeida Orlando Magnani - graduada em Filoso-


fia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990), especialista em
Filosofia Contemporânea pela mesma instituição (1998), mestra em
Ciências da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (2004) e doutora em
História da Arte pela Universidade Federal de Minas Gerais (2013).
Atualmente é professora adjunta de História da Arte no curso de Tu-
rismo e Diretora de Cultura da Universidade Federal dos Vales do Je-
quitinhonha e Mucuri.

Mônica Maria Lopes Lage: Graduada em História pela Faculdades


Integradas de Pedro Leopoldo (2006), mestre em História Social pela
Universidade Federal do Amazonas (2010) e doutora em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais (2013). Atualmente é pesquisa-
dora do Grupo de Pesquisa Gênero, Sociabilidade, Afetividade e Se-
xualidade. Membro do Laboratório Estudos de Gênero - LEG, mem-
bro do grupo de pesquisa Perspectiva Pictorum, e associada ao grupo de
estudos NINFA - Núcleo Interdisciplinar do Estudo da Imagem.

Marília Martha França Sousa - Graduada em Licenciatura em Edu-


cação Artística com habilitação em Artes Plásticas pela Universidade
Federal do Maranhão (2012) e especialista em Gestão e Docência do
Ensino Superior (2015). Foi professora substituta do Departamento de
Artes/DEART da UFMA no período de 2014 a 2016, onde ministra as
atividades curriculares de Estágio Supervisionado e disciplinas da área
de História da Arte e Arte-Educação.

Regiane Aparecida Caire Silva - Graduada em Licenciatura Plena


em Educação Artística pela Fundação Armando Álvares Penteado
(1984), mestra em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (2009), e doutora em História da Ciência
pela mesma instituição (2014). É professora e pesquisadora atuando na
graduação do curso de Licenciatura em Artes Visuais e no Programa
354 de Pós Graduação em Artes da Universidade Federal do Maranhão.

Renata Nogueira Gomes de Morais - Possui graduação em História


pelo Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz
de Fora - UFJF (2010). Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em
História da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (2014), na
linha História Social da Cultura. Atualmente é pesquisadora do grupo
de pesquisa Perspectiva Pictorum.

Rita Binaghi - Laurea in Architettura (Statica) conseguita presso il


Politecnico di Torino, laurea in Materie Letterarie (Estetica) consegui-
ta presso la Facoltà di Scienze della Formazione dell’Università degli
Studi di Torino. Ricercatore confermato presso la Facoltà di Scienze
Matematiche, Fisiche e Naturali dell’Università degli Studi di Torino
(Corso di studio in Scienza e Tecnologia dei Materiali per i Beni Cul-
turali), ora in quiescenza. Membro della Società Italiana di Storia delle
Matematiche.

Rodrigo Espinha Baeta: Graduado na Escola de Arquitetura da


Universidade Federal de Minas Gerais (1994), especialista pelo Curso
de Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios Históricos da
Universidade Federal da Bahia - CECRE UFBA (1996) e pelo Curso
Ciudades y Viviendas de Iberoamérica, oferecido pelo Centro Nacio-
nal de Conservación, Restauración y Museología (CENCREM), La
Habana, Cuba (2005). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia - PPGAU
UFBA (2003) e doutor pelo mesmo programa (2011). Atualmente é
professor permanente do Mestrado Profissional em Conservação e
Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos da Universidade
Federal da Bahia.

Silvio Van Riel - È professore associato in quiescenza di Restauro


architettonico e Consolidamento degli edifici storici presso la Scuola
di Architettura dell’Università di Firenze dove si è laureato nel 1975 e
dove ha svolto attività didattica e di ricerca, come professore incaricato
a contratto ed infine come professore di ruolo. Attualmente è profes-
sore a contratto dei Laboratori di restauro 1 e 2 e docente presso la
Scuola di Specializzazione in Beni Architettonici e del Paesaggio.

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356 CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA
A presente edição foi composta na fonte Garamond, e foi impressa
pela Rona Editora Ltda. em papel Supremo-C 300g (capa); Off-set
90g. Tiragem desta edição: 100 exemplares.

PRODUTORA EDITORIAL
Tânia Maria T. Melo Freitas

CONCEPÇÃO DA CAPA
Ludmila Andrade Rennó

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Ludmila Andrade Rennó

REVISÃO
Valesca Andrade Rennó
Tânia Maria T. Melo Freitas

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