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A POLEMICA SOBRE O O PODER BOLCHEVISTA (Kautsky, Lenin, Trotsky) RUY FAUSTO ‘Abruma que envolve a hist6ria do movimento socialista no sécu- lo XX € muito mais espessa do que se supde em geral, ¢ hid materiais impor- tantes enterrados sob o peso de mitologias ainda poderosas. Ha autores que no se Ié, partidos e organizagdes que ndo deixaram ou quase nao deixaram tragos, hd acontecimentos quase esquecidos. Mesmo a desmistificagiio do stalinismo, que comegou nos anos 20 e que se impés nas tiltimas décadas, eve um papel contraditério. Se ela pode desmascarar a versio stalinista da histéria da esquerda no século XX, ela nao deixou de ter ao mesmo tempo um papel de ocultagiio. Dir-se-ia mesmo que a profissio de 18 antistalinista se transformou numa garantia de objetividade, sob a qual se ocultam novas Iendas. Denunciar os crimes de Stalin tornou-se um bom instrumento para afirmar que 0 autocratismo bolchevique foi o resultado da guerra civil, que no poderia haver governo de coalizaio porque os outros partidos de esquer- da se haviam alinhado com a contra-revolugao etc. A tendéncia mais recente de acoplar a critica do stalinismo com a do teninismo, mas sem fazer as di tingdes sempre necessirias (mesmo se tem o mérito de nio cair mais no antigo corte apologético) também nfio foi muito titi. O fago entre 0 auto- cratismo burocrético e 0 despotism genovidério deve ser estabelecido com rigor, sem fazer com que o primeiro seja absorvido pelo iltimo, mas também sem inocentar 0 primeiro porque ele nao foi até o genocidio. A histéria co- nheceu e conhece muitos regimes abomindveis que nao foram genocidarios, mesmo se &s vezes abriram o caminho para o genocidio. * Nota do editor: O presente texto, redigido originalmente em francés, foi apresentado a um colsquio consagrado a Marx, realizado em Paris hi trés anos. A tradugio & do autor Feita emt Sio Paulo sob preméncia de tempo para publicagio em Lut Nove, pode apresentar uma ou ‘outea insuticiencia nas referéncias ts fontes. A revista, que estabeleceu os prazos, assume a responsabilidade por esses casos. 30 LUA NOVA N® 53 — 2001 ste artigo trataré do bolchevismo a partir de certos textos, escritos, respectivamente, por um critico do poder bolchevista, Karl Kautsky, e pelas duas maiores figuras do bolchevismo, Lenin e Trotsky. Na realidade, o seu objeto € uma. discussiio — enr parte encarada inten cionalmente como tal pelos seus participantes, em parte simplesmente objetiva— que envolve também outras figuras do bolchevismo, cujos tex- tos me fimitarei_a mencionar. Se niio abandono a leitura dos textos, a rea lidade hist6rica ela propria aparecera evidentemente através deles, ¢ mais do que isto, sera analisada, em algumas pas menos auténoma. Q Ieitor deve ter presente que o autor deste artigo nao é nem um historiador nem um cientista politico, Karl Kautsky, tedrico bem conhecido do partido social- democrata alemo ¢ da segunda Internacional, consagrou ao bolchevis- mo’ uma série de escritos que ele redigiu a partir do ano que sucede A tomada do poder pelos bolcheviques. O primeiro texto de Kautsky sobre 0 assunto, A ditatura do proletariado (publicado em 1919), provocou uma resposta de Lenin, a muito célebre A revolugao pro- letdria ¢ 0 renegado Kéutsky (1918). Kautsky esereveu em seguida Terrorismo ¢ comunismo (1918-1919), que foi objeto de uma resposta de Trotsky, em um livro que tem o mesmo titulo (1920), Kautsky repli- ca com Da demoeracia ao trabalho escravo, uma discussie com Trotsky (1920). Do Indo bolchevique, houve outras respostas a Kautsky, entre as quais a de Karl Radek (Ditadura do proletariado ¢ terrorismo, 1920) ¢ a de Bukharin (A teoria da ditadura do proletaria- do, 1919). Kautsky escreverd ainds outros textos sobre © bolehevismo entre os quais O bolchevismo no impasse (1930). Kautsky no foi evidentemente o tnico socialists que eriticou o bolchevismo. Mas ele oferece o interesse dé pertencer ao grupo daqueles socialistas que de um modo ou de outro criticaram tanto o bolchevismo como a diregiio social-cemocrata do seu pats, Ele faz parte (pelo menos me parece razodivel situd-lo af, o que reramente se fz) da galdxia, muito’ he- terogénea sem dtivida, dos socialists que pelo menos em algum momento tomaram distancia tanto em relagio ao bolchevismo como em relagio A social-demoeracia oficial. A meu ver, essa gakixia ~ se for valido consi- us de forma ma gen is Ou "Ver H, Draper, Kar! Mars’ Theory of Revolution, vol, Ill, The ‘dictatorship of the prote- suriat” (with the assistance of Stephen F. Diamond). New York, Monthly Review, 1986, p. 332, nota. H, Draper refiere-se ainda aA divudira do proferariado de 1, Kameney, & sugere que poderia ter havido outras respostas. APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 31 der4-1a em conjunto ~ com suas diferengas ¢ suas contradigdes, suas qua lidades e seus defeitos, é de uma atualidade excepcional. No seu espago, Kautsky representa 0 setor mais préximo da social-democracia (se se qui- ser, o mais “A direita”, mas o termo nesse contexto é em algumea medida ambiguo). Rosa Luxemburgo g, nesse universo, quem estii mais 4 esquer- da, Entre os que criticaram tanto a social-democracia oficial como o bolchevismo seria preciso citar Martoy, figura muito importante ¢ mais ou menos esquecida de menchevique internacionalista?, e tomando alguma liberdade com a cronologia também o jovem Trotsky (de antes de 1917), autor do notdvel Nossas tarefas politicas. Se se comparar a situagdio de Kautsky com a das outras figuras que mencionei, poder-se-ia dizer que cla € fragilizada pela sua pos durante a guerra. Nao que se possa legitimar as invectivas de Lenin, ¢ a legenda do “renegado Kautsky” ~ de resto, posigiio de Lenin relativa- mente 2 guerra ndo pode ser sem mais avalizada. Mas a posigio de Kautsky, em particular no que se refere & votagiio dos créditos dle guerra pelo Partide Social-Democrata alemio em 1914, foi efetivamente muito problematica’. a 2 Entre os mencheviques que escreveram contra o boleheyismo, € preciso citar evidentemente Axelrod, a quem 0 jovem Trotsky dediea Nossas sarefas politicas, Axelrod era muito ligado a Kautsky. Theodor Dan estava préximo de Martov depois de outubro de 17, ¢ Ihe sucedeu na diregio do movimento menchevista. Claro que a “disputa” dos mencheviques com o bolchevismo teve uma dimensio muito diferente de uma simples querela tedrica, Nesse sen tido, eles s20 mais importantes do que Kautsky, que era uma espécie de “velho sabio” da social-democracia alema, Kauisky, que no perter ia A tragdo social-democrata do Reichstag, foi convidado a parti- cipar da reunidio que deveria decidir da posigao do Partido em relagao aos enéditos de guerra, Inicialmente, ele era favorivel 2 abstenglo (anteriormente, ele era talvez pela recusa). Mas verificando que a imensa maioria era favordvel A aprovagio dos eréditos de guerra, propos ue se apresentasse um certo niimero de exigéncia ao governo relativas ao eardter da guesra e Ar mancira de concluzi-ia, sendo a aceitagao delas condigao para um voto lavordivel. A Tr rejeitou a proposigo de Kautsky. Mas este aecitou participar da comissao que rdi consideragdes do voto favoravel. Na comissio, Kautsky obiém que se inetus uma proscrevendo asa elgvsula ‘bes. Entretanto, mesmo esta foi finalmente retirada a pedido do go- vero a quem a digi do Paria transmitira 0 documento, antes da segio do Reichstas Alguns meses mais tarde, Kauisky ~ como também Bernstein, @ qual. membro da fragao, vorara Favoravelmente sos entJitos de guerra — tom posigéo contra & guerra, daxlo © seu ter ofensivo. A oposigdo a guerra ganba entdo cada vez mais peso no pais e no interior do partido. Como a diregao estava ligada de pés ¢ m¥ios ao governo e aos militares, 0 processo conduziria a uma cisto, que daria origem 30 Pastido Social-Democrata. Independente. Kautsky, mas também, unt momento, Luxemburgo ¢ Bernstein, fardio parte dele. 32 LUA NOVA N° 53 — 2001 Entretanto, apesar de tudo, ¢ em parte por isto mesmo, o inter- esse que oferece Kautsky € considerivel, ¢ sob certos aspectos & superior ao dos outros. Digamos primeiro que o fato de ter sicio “alemao” (em todo caso, de viver na Alemanha, ele nascera em Praga), 6, sob um aspecto, interessante, Na medida em que a crise da social-demoeracia foi, com 0 bolchevismo, um dos dois grandes problemas — diria, um dos dois pecados originais — do socialismo dos primeiros 25 anos do século XX, Kautsky, “alemio” ¢ critico do bolchevismo, esti de certo modo duplamente no cen- tro dessa histéria. Que ele tenha sido logo marginalizado tanto pelos bolcheviques como pelos social-democratas, inclusive por uma parte dos independentes, nao poe em questio o que acabo de dizer. Em segundo lugar, em relagio a outros sociais-democratas alemées ¢ austrfacos que escreveram sobre o bolchevismo, ¢ depois sobre 0 stalinismo, Kautsky teve sem diivida 0 mérito da firmeza. Ao contririo de outros social-democratas, ele nunca aceitou a teoria com ressaibos colonialistas segundo a qual o bolehevismo era ruim para 0 europeus mas bom para os russos. Finalmente, Kautsky viveu até quase o fim dos anos trinta ~ Luxemburgo foi assassinada em 1919, Martov morreu em 1923 — 0 que Ihe permitiu acompanhar a histéria do bolchevismo, e depois do stalinismo até as vésperas da segunda guerra mundial. Nilo entrarei em todos os detalhes da polémica. Kautsky comega d vezes por consideragGes retGricas sem interesse, sem falar das longas teoriza- Ses antropoldgicas de valor duvidoso. Mas os livros que examinaremos con- tém elementos criticos muito importantes. Com os scus defcitos, esses livros silo notaveis. Como eles so pouco conhecidos ~ conhece-se bem “o renega do Kautsky”, mas nao o proprio Kautsky —¢ além disso so pouco acessiveis, seri preciso citar muito. Do lado bolehevique, os textos ficam no limite dat invectiva ¢ também da ago. Num caso, o da resposta de Lenin, a escrita & interrompida pelas exigéncias da agio. Quanto ao texto de Trotsky (Terrorismo e comunismo), seré necessério examind-lo com cuidado: ele con- tém uma espécie de teoria do ultra-bolchevismo. A POLEMICA Kautsky: violéncia e direito# A ditadura do proletariado de Kautsky wata do partido © da classe, da democracia ¢ da ditadura, da ditadura do proletariado, da questo APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 3 do dircito ¢ da violéncia. O livro se ocupa dos nove primeiros meses da revolugao bolchevique, mas tem também uma dimensdo mais geral. Pouco depois da revolugao alema de novembro de 1919 Kautsky publicaré uma versfio resumida ¢ um pouco modificada do livro, para uso dos alemies, em que as partes mais especificamente russas serdo eliminadas. Dentre os temas do livro hi um, de resto presente ao longo de toda a polémica, que poderia servir como ponto de partida, e tanto mais que ele, de certo modo, penetra todo 0 resto: o tema da violéncia ¢ do direito. No contexto de uma explicagio sobre 0 conceito de “ditadura do proletariado” em Marx, Kautsky é levado a dar uma definigiio de “ditadu- 12” (nogéio que serve de titulo ao capitulo). “Tomada de modo literal, a palavra [ditadura] significa supressio da democracia. Mas tomada de modo amplo, ela significa também soberania de uma Gnica pessoa, que nao esté ligada a nenhuma lei” (DP (K)), Dietz, 1990, p. 31, tradugdo inglesa p. 43). Fixar-me-ci apenas sobre essa dltima parte da definigao: ditadura é a “soberania” que nao esté ligada a nenhuma lei, Evidentemente, essa definigdo poderia ser discutida, Se toda ditadura passa pela transgressao de certas leis, uma vez. instalada ~ se tomarmos 0 termo “Ici” no sentido pura- mente positivo de uma norma editada formalmente por um poder, qualquer que seja a “legitimidade” dessa lei — haverd ditaduras mais ou menos lega~ listas. Porém 0 que nos interessa aqui 6 primeiro o fato de que Kautsky acentua 0 carter anti-juridico que tém (pelo menos numa certa fase) as ditaduras, definigaio — caso raro — que Lenin aceita. Depois de ter recusado varias afirmagées de Kautsky, Lenin escreve no seu estilo agressive: “Como um ciiozinho cego que ao acaso fareja aqui ¢ 14, Kautsky caiu sem querer sobre ima idéia justa (...). A ditadura & um poder que se apoia dire- tamente sobre a violéncia e nao esta ligada por nenhuma lei. A ditadura re- voluciondria do proletariado & um poder conquistado e mantido pela vio- Iéncia, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que nao esta li- gado a nenhuma lei” (RPRK (L) Oeuvres Choisies 3, op.cit., p. 1071) Lenin e Kautsky estiio assim, excepcionalmente, de acordo no que concerne aquela definigdo. Mas eles se separam evidentemente no que 4 Kautsky, Die Diktatar des Prolerariats, Wien, t. Band, 1919. Utilizarei a edigio da Dietz, Berlim, 1990, que abreviaret por DP (K). (Uilizaret igualmente as tradugdes francesa, Lar die~ (ature du protétariat em L&nine, La Dictature du prolétariat et le rene UGD, 10/18, 1972, inglésa The dictatorship of profeturiut, Michigan, 1964), e Lénine, La dictanure du protéuriat et le rénégat Kauisky, que abrevio por RPRK (L) em Lénine, Oeuvres Choisies, vol. 3, Moscou, Editions du Progrés, 1968. 34 LUA NOVA N® $3 — 2001 toca A posi¢io de cada um diante do objeto definido, Na realidade, a definigao se constitui a partir da dualidade violéncia/ tei. Lenin “toma o partido” da primeira. Kautsky, 0 da titima, Bssa definig&o tem um sentido protundo na sua relagéo com a histéria do poder boichevique. E que a ditadura bolehevique no seu inicio, e num perfodo consideravel, foi mar- cada por uma tendéncia antijuridica, Antijuridismo que aparece, no inicio, no fato de que os bolcheviques “deixam que as massas pratiqueny” as suas ages violentas. Ele estd presente ainda, mais tarde, nas leis que, para- doxalmente, dio uma grande latitude a-arbitrariedade (leis que declaram a legalidade de uma certa auséneia de legalidade, se assim se pode dizer). Um exemplo: Kautsky cita uma artigo da Constituigao Soviética de 1918, aprovada pelo Conselho dos Sovietes, apés a expulsiio de mencheviques ¢ sociais revolucionarios, artigo que concerne as eleigdes para os sovi observa 0 carter vago e pouco formalizado do procedimento: “Nao encon- trei uma determinagio que invista em uma autoridade especitica que deve verificar 0 voto de cada pessoa, que estabelega a lista de votantes, ¢ 0 pro- cedimento da eleigio, se ela sera por votagio seereta ou levantando a mio” (DP (K), idem p. 52, tradugiio inglesa p. 83). Kautsky continua, citando um discurso de Lenin de 28/8 /1918, onde se diz — Kautsky resume o texto de Lenin — a propésito dos votantes ¢ do procedimento em conexiio com 0 carter socialista dos sovietes: 1) os votantes so as massas exploradas & trabalhadoras, sendo excluidos os burgueses; 2) toda formalidade buro- critica cessa, As massas elas préprias decidem sobre 0 procedimento ¢ a data das cleigoes"S. O que merece o seguinte comentirio de Kauisky: “Parece, pois, que qualquer agrupamento de cleitores pode organizar 0 pro- cedimento eleitoral, conforme o seu capricho. Através disso, aumenta ao maximo a arbitrariedade, ¢ a possibilidade de se desembaragar de todo ele- mento inconveniente da oposigiio no interior do proprio proletariado” (idem, p. 53. tradugiio inglesa_p. 83). Como se vé, instaura-se uma querela entre o direito ¢ a violén- cia, que € ao mesmo tempo uma discussiio sobre a forma e o conteddo. Depois de citar o texto que acabo de transcrever, Lenin 0 comenta do seguinte modo: “O que é isso, senio consideragdes de um empregado escriba (tradugiio francesa valer de plume) contratado pelos capitalistas que, por ocasiao de uma greve, grita forte conta a violéncia exercida pela 5 CF, Lenin, Oeuvres Choisies, 2, pp. 102, 68. 105 ¢ 125 APOLEMICA SOBRE 0 PODER HOLCHEVISTA 35 massa sobre os operirios zelosos que ‘desejam trabalhar’? Por que 0 modo de eleicao estabelecido pelos funciondrios burgueses na demoeracia bur- guesa ‘pura’ nao € arbitririo? Por que o sentido da justiga das massas que se mobilizam para a uta contra os seus exploradores de sempre, das mas sas esclarecidas e aguerridas por esta Iuta sem limite (tradugio francesa @ outrance) deve ser menor do que a de um punkado de tunciondtios, de in telectuais e de advogados formados no espirito dos preconceitos burgue- ses?” (RPRK (L), in Oeuvres Choisies, 3, p. 194, grifado por L). As formas stio formas burguesas; 0 “poder proletério” € 0 inimigo das formas, ou entio instaura formas que legitimam a liberdade relativamente as formas. Mas a que nos conduz tudo isto? Kautsky: classe, partido, governo; ditadura do proletariado. Retomemos a discussio por um outro lado, que constitui de fato © seu niicleo. Os primeiros capftulos do livro de Kautsky so consagrados Ademocracia e A ditadura, mas desde o inicio vé-se 0 que est em jogo mais precisamente, a relagio entre classe ¢ partido ¢ a questiio do carter do poder revolucioniirio nas suas relagées com as classes @ os partidos Kautsky € levado a estabelecer distingdes ¢ definigdes que podem parecer formais (o que, bem entendido, Ihe ser cobrado), mas que, por tras da sua banalidade ¢ formalismo, fornecem elementos para uma erftica: “Um par tido (. ele represente um interesse de classe. Um mesmo interesse de classe pode ser representado de varias maneiras, por diversos métodos taticos. Segundo a sua variedade, os representantes de um mesmo interesse de classe se divi dem em diferentes partidos” (DP (K), idem, p. 25 inglesa p. 31). “Partidos ¢ classes podem nao coincidir. Uma classe pode se dividir em diferentes partidos, um partido pode consistir em membros de diferentes classes” (DP (K), idem, p. 26, ingles p. 32). Se ninguém afirma que partido é a mesma coisa que classe, essa insisténcia “Yormal” sobre a nao coincidéncia dos dois toca num ponto sensfvel: a pretensdo de um partido de ser o represen- tante de uma classe. Ela problematiza essa relaciio. E imediatamente se vé que conclusdes ele tira relativamente & ditadura do proletariado: “Se 0 pro- letariado esta dividido em varios partidos (...) a ditadura de um desses par tidos nao € mais de modo algum a ditadura do proletariado, mas a ditadu va de uma parte do proletariado sobre uma outra parte, A situagio se com- plica ainda mais se os partidos socialistas estiverem divididos contorme as suas relagdes com os elementos nio proletirios (...)” (idem, p. 33, inglesa ) nao é sindnimo de uma classe, ainda que, em primeira instancia, 36 LUA NOVAN® 53 — 2001 p. 46). A observagiio € de alcance geral, mas visa em particular 0 caso russo: “Comegando pela pretensao de representar a ditadura do proletaria- do, [o regime russo] era desde o inicio a ditadura de um partido no interior do proletariado” (idem, p. 54, inglesa, p. 85)."(...) a ditadura da classe (...) 6 na realidade a ditadura de um partido” (idem p. 78-9, inglesa p. 132, cf. p. 50, inglesa p. 78: “(...) ditadura certamente. Mas (...) do proletariado?”"6 Kauisky justifica pois a necessidade da participagaio do governo de outros partidos socialistas, ou pelo menos a necessidade de assegurar a represen- lagdo desses partidos nas assembléias eleitas. Por outro lado, sem discutir a questiio da liberdade para os partidos no socialistas (Kautsky parece ser favordvel, em princfpio), ele se manifesta claramente, como veremos, em favor da garantia do exercicio dos direitos politicos para 0 conjunto dos cidadaos. Tudo isto seria compativel com a idéia de “ditadura do proletariado”, tal como ela se encontra em Marx ¢ Engels? A esse respeito Kautsky propde uma leitura dos textos de Marx e de Engels. Quando eles falam em “ditadura do proletariado”, visam, segundo Kautsky, nfo “uma forma de governo, mas uma condigéo (Zustand) que deve ocorrer neces- sariamente cada vez que 0 proletariado conquistou 0 poder politico” (idem, 6 Essas teses sto reforgadas pela idgia de que uma classe pode dominar mas no pode go- veinar, S20 0s partidos que governam, a menos que se trate do governo de “eliques” ou de un poder individual. Isso quer dizer que, mesmo nas condigdes ideais, o poder s6 pode pertencer 20 “proletariado” de um modo mediato, circunstincia da qual se extrai nao a idéia de que 0 govemno de utn 36 partido € inevitavel, mas pelo contratio, a de que & necessério multipticar as garantias para bem afrontar os riscos inerentes a tal mediagii. Essas teses sto reforgadas pela idgia de que uma classe pode dominar mas nao pode governar. Sa0 os partidos que go- vvernam, a menos que se trate do governo de “cliques” ou de um poder individual, Isso quer dizer que, mesmo nas condigées ideais, 0 poder s6 pode pertencer a0 “proletariado” de um ‘modo mediato, circunstancia da qual se extrai nao a idéia de que 0 governo de um sé partido E inevitivel, mas pelo contririo, a de que € necessirio multiplicar as garantias para bem afvontar os riscos inerentes a tal mediagao. Dada a importancia deste livro, ereio que convém dar as seguintes indicagdes: a obra foi escrita em 1919 (fora um apéndice que € de 1918) e foi publicada pouco depois da morte de Martov em 1922. Cito a tradugao francesa de V. Mayer, que contem um texto preliminar (1923) e uma introdugio biografica mais longa (1934) ambos de Theodor Dan, além de um prefiicio de J. Lebas (Paris, Société dEdition Nouveau Promethée, 1934). (Com vistas & uti- lizagao que se poder fazer dessa tradugdo convém levar em conta uma observagio de Dan, do final da nota biogesfica de 1934: “A obra de Martov foi escrita no momento em que & socialismo democritico estava ainda dividido em dois campos inimigos [digamos, os sociais- nacionalistas de um lado e os interacionalistas como Maitov de outro ~ RF]. Em conse- Qiiéncia, € natural que, nessas condigoes, 0 polemista mordaz que ert Mariov kince As vezes apreciagées muitos duras a propésito da corrente socialista, que tampouco 0 poupava. Pensamos que era possivel abandonar as expresses as vezes um pouco vivas do polemista, como o teria feito, sem ditvida, o préprio Martov” (p. 28). APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 37 p. 31, inglesa p. 43, grifado por K). Kautsky retoma o tema mais adiante: “(Empregando a f6rmula (Wértchen) ‘ditadura do proletariado’], Marx quis somente descrever uma condigao politica, nio uma forma de gover- no” (idem, p. 83, inglesa p. 140, grifado por K). Isto significa que a “ditadura do proletariado” seria a contrapartida da “ditadura da burguesia” ela designaria a dominagio do proletariado apés a vit6ria da revolugio, sem visar a forma precisa que tomaria essa dominagio. Observe-se que, mais a propdsito de Engels do que a Marx, esta interpretagio ser retoma- da por Martoy, em seu livro O bolchevisnio nundial?. Depois de citar um passo do célebre preficio de Engels 4 Guerra civil na Franga de Marx, passo em que Engels faz do sulrigio universal uma das garantias dat sub- missiio do novo poder d sociedade, e lembrando que Engels reconheceu na Comuna de Paris a ditadura do proletariado, Martov escreve: “Nao é evi- dente que, exprimindo-se assim ¢ identificando, ao mesmo tempo, ral repiiblica demoerdtica com a ditadura do proletariado, Engels nao se serve dessa Gitima expresso para designar uma forma de governo mas para de- signar a estrutura social do poder de Estado? Kautsky com raziio insistiv nisso na sua brochura A ditadura do proletariado, quando disse que, em Marx, nao se tratava da forma do governo, mas da sua natureza“ (Martov, op. cit., p. 120, grifado por Martov).® Kautsky: a liquidagéio da Assembléia Constituinte; 0 soviet ea democracia A ditadura do proletariado foi escrita no verio de 1918 (na p. 73, inglesa p. [21, do livro, Kautsky diz pelo menos que esta escrevendo na data de 5 de agosto), portanto pouco depois do inicio da guerra civil. No que concerne as medidas repressivas e de limitagiio das liberdades, ele est diante de dois acontecimentos principais: 0 “fechamento” da Assembiéia Constituinte no dia 19 de janeiro de 1918 (6 de janeiro pelo antigo ca- lenddrio, substituido em fevereiro de 1918)°, e a expulsio dos mencheviques e de parte dos sociais-revolucionsirios do Comité Executivo 8 Bata ¢ também, de fa10, 0 mticleo da posigho de H. Draper em Karl Marx's Theory of Revolution, vol. Il, citado (ver por exemplo, pp. 305-306) mesmo se ele tem uma atitude nuito critica em telagdo a Kautsky. Comentarei em outro lugar o seu The Dicsatorship of the Proletariat from Marx to Lenin, New York, Monthly Review Press, 1987. a Assembléin Constituinte havia sido eleito a 25 de novembre de 1917 (nove calenkirio), portanto pouco depois da tomada do poder pelos boicheviques. Ax eleigdes haviaun dado 4 vitdria aos sociais-revolucionsrios, 38 LUA NOVA N® $3200! Central dos sovieles a 14 de junho de 1918. Eis af as dois pélos em torno dos quais vio girar as oposigdes (no plino propriamente politico; no plano geral das liberdades, eles lutam pela liberdade de imprensa, contra as vio~ Iencias da Veicheca, instituida em dezembro de 1917, ete.): de uni lado a uta pela elcigZo de uma Assembléia Constituinte, de outro a luta pelas liberdades nos sovietes. Em A ditadura do proletariado Kaulsky ocupa-se tanto de uma coisa como da outra. Sabe-se que o fechamento da Assemblgia Constituinte dera origem a eriticas por parte do socialismo internacional!®, Deixarei de lado certos aspectos da discussio, outros serio introduzidos mais adiante. Por ora, limito-me a um ponto que € interessante, pelas razdes que veremos. Kautsky lembra uma resolugdo do Comité Exccutivo Central datada de 7 de dezembro (novo calendério), na qual se diz, que uma assembiéia qual- quer, inclusive a Assembléia Constituinte, s6 poder ser considerada como “realmente democritica” e realmente representativa “da vontade do povo”, se 0s eleitores tiverem o direito de chamar de volta os seus representantes, sob cerlas condiges. Ora, num texto publicado pela Pravda de 26 de dezembro de 1917 (n.c.), texto que prepara o fechamento da Assembiéia, Lenin se vale entre outras coisas do fato de que as listas dos candidatos do partido majoritério, 0 partido social-revoluciondrio, haviam sido organi- zadas antes da ruptura mais ou menos detinitiva entre a direita © a esquer- da desse partido, sendo assim listas comuns, o que langava dividas sobre a legitimidade dos resultados. Kauisky observa que se tal era 0 caso, era preciso convocar “novas eleigdes (...) nos dis 08 sociais-democratas” (idem, p. 45, inglesa, p. 68), em lugar de fechar pura e simplesmente a Assembléia Constituinte, O argumento de Kautsky foi formulado também por Rosa Luxemburgo no seu ensaio sobre A re- volugdo russa: “Dado que a Assemblgia Constituinte fora eleita muito antes do giro-decisivo, a reviravolia de Outubro, e refletia na sua com- posigdo a imagem de {um} passado [j4] superado, ¢ nao do novo estado de coisas, impunha-se por si mesmia a conclustio de que exatamente era pre- ciso quebrar a velha constituinte caduca ¢ natimorta, e convocar sem demora novas eleigdes para obter uma nova Assembléia Constituinte (...). Em lugar disto, Trotsky concluiu da insuficiéncia particular da Assembléia tos que haviam escolhido 10 Vor a respeito Trotsky, De lar révalution al'actobre a lr paix de Brest-Litowsk. Trotsky defende evidentemente a posigio oficial A POLEMICA SOBRE O PODER BOLCHEVISTA 39 Constituinte reunida em outubro! a inutilidade de toda assembléia consti- tuinte em geral, e mesmo, generalizando, a nao validade de toda represen tagio popular nascida do. sul volugiio”. 2 io popular universal, em [tempo de] re- A “democracia burguesa” encarnada pela Assembléin Constituinte os boleheviques opdem os sovietes, que no comportam re~ presentagio burguesa, Mas pelo menos no interior do efrculo restrito da representacio soviética, as regras democriticvas seriam respeitadas? © arti- go 20-do documento citado afirma que “(...) no que concere arclasse operiria ¢ os camponeses mais pobres, ele tém a mais completa liberdade” (idem, p. 86, inglesa p. 145). Kautsky pergunta: * Possuem eles efetiva, mente a completa liberdade?” (ib.). Kautsky se fixard sobretudo sobre a decisio do Comité Executivo Pan-russo dos Sovietes (14 de junho de 1918) de expulsar os mencheviques ¢ os social-revolucionarios (do centro e de dircita). ¢ recomendar a todos os sovietes que fagam o mesmo (ver ib., p. 53, inglesa, p. 84), observando que essa medida nao visava individuos que haviam cometido atos ilegais, mas partidos. E que com’ela, os pro- letérios que haviam votado nesses partidos perdiam seu direito de voto, “seus votos ndo contam mais” (ib.). Kautsky conclui: “Assim, mesmo no interior do proprio proletariado, 0 circulo daqueles que dispdem de direitos politicos, sobre os quais repousa o regime bolchevista, se estreita cada vez mais” (idem, p. 54; inglesa, p. 85). Lenin: A Revolugdo prolerdria e 0 renegado Kautsky A resposta de Lenin, num pequeno livro que se tornou célebre, € que esmagou de fato a erftica de Kautsky, fundamenta-se em trés ele- mentos. Primeiro, numa Ieitura diferente da “ditadura do proletariado” em Marx e Engels. Segundo, numa critica da “demoeracia burguesa”. Tereeiro, 1 Bla foi eleita em novembro, segundo os dois calendkirios, '2 Rosa Luxemburg, Zur Russisehen Revolution (1918, publi Werke, vol. 4,Berlim, Dietz, 1974, p, 353-4, Discute-se em que medida Rost Luxemburz0, nos seus ditimos meses dle v ida, teria mudado de posiglo relativamente ap bolehevisino, © a questio especifica do Fechamento da Assembiéia Constiluinwe. Na sua biograti Luxemburgo, J.P. Nett! afiemia que ela muda de posigao em relagio ao problem espect mas que este € 0 inico ponto em que Luxemburgo se desdiz. no que se refere & critien do bolchevismo. Mais do que isto, a tese de que ela mudou de posigio relativamente & questo espeeffica da disperso da assembléia russa deve se apotar em algo mais sélido do que © Fauo de que ela foi contra 10 de uma Assembisia Constituinte na Alemsinba ido em 1921) em Gesammtelte 40 LUA NOVA N* 53 — 2001 numa tentativa, que ndo seré ade Trotsky um ano mais tarde, de legitimar igdo bolchevista mediante argumentos ainda democraticos: os isporiam do apoio da maioria da populag%io pobre, as mas- sas russas gozariam de muita liberdade etc. Esse texto, conhecido demais para ser bem estudado, merece uma anilise ao mesmo tempo interna ¢ externa. E preciso pé-lo em relagiio com o.que se sabe da realidade russa nos dois primeiros anos apés a revolugio, ¢ a partir disso fazer uma andlise ideolégica interna do texto. Isto 6, tentar revelar as regras que permitem ocultar a realidade social ¢ legitimar poder autocratico. Seria preciso comparar as regras € mecanismos de tal discurso ideolégico com as regras © mecanismos que se encontram no discurso ideolégico burgués, pois o funcionamento das duas ideologias nao é 0 mesmo, Isto como programa de trabalho, Aqui s6 darei algumas indicagdes. Passo rapidamente sobre a leitura que faz Lenin da “ditadura do proletariado” em Marx ¢ Engels. “A ditadura revolucionaria do proletaria- do — escreve Lenin a partir do que teria escrito Marx ~ € um poder con- quistado e mantido pela violéncia, que o proletariado exerce sobre a bur- guesia (...)” (Oeuvres Choisies 2, p. 71). O que significaria que a “ditadu- ra do proletariado” segundo Marx seria mesmo uma forma ditatorial de poder do proletariado, ¢ ndo um “estado em que 0 proletariade domina, qualquer que seja a forma desta dominagdo. Trata-se em seguida de mostrar a superioridade da ditadura do proletariado sobre a democrac' burguesa, ¢ em particular, a superioridade do poder bolchevique que se supde encarne a primeira diante da democracia burguesa, Por um lado, a argumentagiio de Lenin € um raciocinio negativo, que supde uma espécie de lei do terceiro excluido. Ele quer mostrar que a democracia burguesa ¢ uma falsa democracia, 0 que levaria & conclusio ~ esta constelagiio é su- gerida pela argumentagio — de que por isso a ditadura do proletariado (tal como ele a entende) e © poder bolchevique Ihe seriam superiores: “A democracia burguesa, que comparada com a Idade Média constitui um grande progresso, permanece sempre ~ ¢ no capitalismo el: ndo pode absolulamente ser outra coisa ~ estreita, limitada, falsa, mentirosa, um paraiso para os ricos, um ardil e um engano para os explorados, para os pobres” ( Oeuvres Choisies, 2, p. 77). No Estado burgués mais democriti- co as massas oprimidas entram em choque constante com a contradigaio gritante entre a igualdade formal proclamada pela “democracia” dos capi- lalistas ¢ as milhares de restrigdes © manipulagdes eferivas que fizeram dos trabalhadores escravos assalariados. Precisamente esse contradigao abre os olhos das massas sobre 0 quanto © capitalismo € pobre, mentiroso e a APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 4 hipdcrita” ( Oeuvres Choisies 2, p. 79, grifado por Lenin), 5 importante por em evidéncia essa I6gica do terceiro excluido, dado que ela desempenha papel considerivel na just os. Voltarei a isso. Mas a justiticagao é também positiva. Alguns exemplos: “A demo- cracia protetiria, da qual o poder dos sovietes € uma das formas, trouxe precisamente para a imensa maioria da populago, para os explorados e os trabalhadores, um desenvolvimento © uma ampliagiio nunca vistos no mundo” (Oeuvres Choisies, 2, p. 79). “Os sovietes sto a organizagio ime- diata das massas trabalhadoras e exploradas elas préprias, que lhes facilita organizar elas mesmas o Estido © governar em cada forma possfvel. Precisamente a vanguarda dos trabalhadores e explorados, 0 proletariado urbano, se bencficia com isto porque nas grandes empresas ele & 0 mais unido; ele é 0 que pode eleger com mais facilidade, e melhor controlar os deputados eleitos (Oeuvres Choisies, 2, p. 80). “A liberdade de imprensa deixa de ser uma hipocrisia, pois a burguesia é despojada das impresoras e do papel” (Oeuvres Choisies, 2, p. 80-81). Por ter despojaco a burguesia das melhores construgdes, “o poder soviéiico tornou um milhdo de vezes mais demoeratico para as massas 0 direito de reunitio, aquele direito sem o qual a democracia € um engodo (Oeuvres Choisies, 2, p. 81). “Entre os paises burgueses mais democraticos, hi um s6 no mundo onde o simples trabalhador do campo ou 0 semi-proletario do campo em geral (isto 6, 0 representante da massa oprimida, da imensa maioria da populagio), goze que seja aproximadamente de uma liberdade de se reunir nos melhores ediffcios, de uma tal liberdade de dispor, para exprimir suas idéias, defender seus interesses, das mais vastas impresoras ¢ os melhores esto- ques de papel, de uma tal liberdade de contiar precisamente a homens da sua classe a diregiio ¢ a ‘administragio’ do Estado?”. “As cleiges indire- tas para os sovietes nao locais facilitam a convoeagio dos congressos dos sovietes, tornam © conjunto do aparelho menos custoso ¢ mais mével, ¢ mais acessivel aos operarios ¢ aos camponeses, ¢ isto num tempo em que a vida se agita e importa ter a possibilidade de revocar rapidamente seu deputado local ou de envid-lo ao congresso geral dos sovietes” (ib.). Em conelusiio: “A democracia proletaria é um milhao de vezes mais democrati- ca do que qualquer democracia burguesa; o poder dos sovietes é um mi- Iho de vezes mais democritico do que a mais demoerdtica democracia burguesa” (ib., grifado por Lenin). Ora, em que medida esse quadro corresponde & situagdo da Rissia no final de t918, ¢ ao que se passou nos dois anos que sucedem & tomada do poder pelos bolcheviques em outubro/ novembro de 1917? stemas buroc! 42 LUA NOVA N* $3 — 2001 Tomo como referéncias sobretudo dois livros. Uma obra ckissica ja antiga, As arigens do absolutisma connunista — os-bolcheviques. ea oposigao (1917-1922) de Leonard Shapiro!3, e um livro mais recente, The Menchevistas after October de V. Brovkin'4, dois trabalhos muito escrupu- losos © bem informados. No que se refere 2 liberdade para a imprensa socialista, cis 0 que escreve Shapiro: “Desde os-primeiros dias da re- volugiio os jornais socialistas nio dispuseram de nenhuma seguranca e, em varias ocasi6es, foram vitimas.de confiscagdes brutais ¢ arbitrdrias por ordem do Comité Militar Revoluciondtio” (Shapiro, op. cil., p. 75). E ver= dade que “até a metade do ano de 1918, a imprensa menchevique ainda era bastante abundante” (Idem, p. 167). Como a guerra civil comega de fato em junho de 1918, a explicagio corrente que liga a repressiio & podcria ter uma aparéneia de justificacdlo, Eniretanto, como jd se escreveu, a represstio contra a esquerdt no comunista comega bem antes d civil, na realidade ela comega com a propria tomada do poder. Outra ten- lativa de justificagdo se apoiaria na posigiio dos social-revoluciondtrios ¢ mencheviques durante a primeira fase da guerra civil (segundo semesire de 1918). No que se refere aos mecheviques, seria preciso dizer que sé uma parte dos mencheviques das provincias, mas niio © Comité Central uetra civil guerra 13 Uilizn a ada francesa de Serge Legra, Pais, Abs, Les Hes 1987, '4 Stanford, California, Stanford University Press, 1977, e jusifiewr essa politiea dizendo que a repressio das outras tend cia normalos' bolcheviques aeabavam precisamente de dervubar um governo em que estavam representadosmencheviques ¢ sociais-revolucionarios, sendo essv ato politico, ele préprio, legitimado pelo earsier “reaciongrio” ou imobilisia da politica de uns e de outros, sobretudo no que conceme & guerra © a questdo agritia, O projelo de “derrubar” o goverio provisério poderia se justificar: mas por que miétodos e com que lim? A esquerda menchevique nao pre- ‘gava utr coisa desde havia algum tempo (mas niio por meio de une insuireigdo}, © 0 Comité Centeal menchevique acabara aecitando essa perspestiva ~ tarde demas entretant Os bolcheviques. derrubaram Kesensky para governar conié partido snieo (a alianga om os sociais-revolucioniiios de esquerda, seguado os préprios bolcheviques ~ ver Trotsky ~ era tica e transit6ria). Ora, a pretensio ase apresentar como o parte da classe ~ veremos pouco 4 pouco ~ 36 podia conduzir awn encadeamento de violence Quando, por volia do Fina! do ano, depois do golpe de Bstado do almirante Koltehak, a direita ce dexircia dtcita passam a dominar ox movimentos antiboleheviquesso CC menchevique nio 86 apoio lado verielho na guera civil, como incita os seus membros a participa da wae desse Indo. Em conseqiiéncia dessa politics ox mencheviques sig de nove legilizados (30 de novembre de 1918), Mas “esta medida nil nnidava grande coisa no plano pritica, Nos sovietes locas i “imaioria nevolucionia’ nfo aplicava o decrew e as autoridades policiais ebmtinuavann aprender cos mencheviques sem fomecercuslquer justiieagi ...) Um dos sus jamais reaparveew. nas foi de novo proibido um més um ms e 4 ioeros depois. Como se nuantiverany as prisbes em série ¢ algumas execug6es. a' medida de “le de Lenin, pois ele'se disp socialists APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 43 menchevique se levanta contra © poder bolchevique.!® A atitude dos outras se explica, cm parte pelo menos, pela politica bolchevique (fechamento de jomnais, prisdes, dispersio da Assembléia Constituinte). Assim, as afir- magoes de Lenin no Renegado Kautsky sao falsas, mesmo para o perfodo anterior a junho de 1918 Lenin pretende que os bolcheviques contavam com 0 apoio da maioria do povo ou pelo menos do proletariado, Kautsky havia eserito na Ditadura do protetariado que, se a ditadura “pode representar durante um perfodo a ditadura da maioria do proletariado sobre a minoria (...) hoje mesmo isso se tornou duvidoso” (DP (K), p. 54, inglesa , p. 85). Lenin fornece dados relativos a0 volume das delegagies de partidos no dois congressos dos sovietes de junho de 1917 a julho de 1918. Segundo os scus dados os bolcheviques tinham 13 % dos delegados em junho de 17 (velho estilo), 51% em outubro (id) , 61% em janeiro, 64% em margo ¢ 66% em julho (Ver RPRK (L), Dietz, p. 131 Oeuvres Choisies, 2, p. 100). Disto Lenin conclui o seguinte: “Basta olhar esses niimeros para compreender porque a defesa da Assembléia Constituinte ou 0 discurso [daqueles que] (como Kautsky) |pre- tendem] que os boicheviques nao teriam atras de si a maioria da populagao, niio provoca entre nds mais do que riso” (RPRK (L), Oeuvres Choisies, 2, p. 100). E ainda: “(...) a experiéncia de mais de seis meses (tempo consideravel para uma revolugio) da atividade conciliadora dos mencheviques, de tentati- vas de conciliar o proletariado com a burguesia, convenceram © povo da vanidade dessa tentativa ¢ afastaram o proletariado dos mencheviques” (RPRK (L), Oewvres Choisies, p. 99, grifado por L). Ora, Lenin “simplifica” a curva, ¢ sé cxamina uma parte do perfodo a analisar (0 fivro foi terminado em dezembro de 1919). Que ocor- reu efetivamente de junho de 1917 a novembro de 1918? Sem diivida, entre junho de 1917 ¢ fevereiro de 1918 0 peso dos mencheviques cai vertigi- nosamente, primeiro por causa do apoio dado pela diregdo menchevique ao governo provisério, do qual participavam mencheviques (Martov ¢ 0 grupo internacionalista eram contra esse apoio), depois por causa do sucesso das primeiras medidas do governo bolchevique em favor da paz, da terra ¢ 0 controle opersrio.!? Mas em seguida, parece evidente que houve uma inversio da tendéncia, O terceiro congresso dos sovietes, em janciro de 1918 sc reuniu ja em condigdes muito particulares.'8 O mesmo tipo de 17 Ver a respeito Brovi Veia-se 0 que escrev mente os mencheviques Op. cil p. 51 a esse respeito Brovkin, visando em particular mas nao exclusiva- “Os bolcheviques convocaram 0 terceiro congresso (...) come un 44, LUA NOVA N* $3— 2001 irreguiaridade teria ocorrido no quarto Congresso, reunido em margo, que deveria ratificar o Tratado de Brest-Litovsk.!® Os ntimeros que concernem a0 peso relativo das fragdes so, por isso, pouco expressivos. Mais importante ainda, os historiadores nos fornecessem dados bastante completos sobre o resultado das eleigdes para os sovietes das cidades de provincia, na primavera de 1918. Os bolcheviques foram derrotados quase por todo lado, em beneficio dos mencheviques , ¢ isto apesar das condigées muito desfavoraveis em que se realizaram as eleigdes. E cada vez que os mencheviques sio vitoriosos, 0 governo bolchevique intervém de uma forma ou de outra. Por outro lado, 1 medi da em que os boleheviques deixam de ser representativos, surge, impul- sionada pelos mencheviques (principalmente, parece, pela “direita” menchevique, mas 0 movimento contava com muita gente sem partido ou de outras tendéncias) um grande movimento de assembléias operdrias independentes. O desenvolvimento desse movimento, de um lado, e a ameaca de uma derrota dos bolcheviques no Congresso dos sovietes, de outro, esto entre as razbes da expulsio dos mencheviques ¢ dos sociais- revolucion: em julho de 1918. (Os sociais-revolucionarios de esquerda, que haviam participado de um governo de coalizdo com os bolcheviques, e que se haviam separado destes ap6s 0 Tratado de Brest-Litovsk, foram expulsos, por sua vez, algum tempo mais tarde).20 ios do Conselho Executivo dos soviet contrapeso & Assembliia Constituinte, para demonstrar que as massas os apoiavam ainda, A pequena fragio menchevique (50 membros) aesse congresse reunido rapidamente © qualifi- cou de escimio (mockery), estratagema (play) destinado a cobrir o crime bolchevique {0 fechamento ca Assembigia Constituinte| com o manto da legitimidade(...). A dispersao nfo foi debatida. Os representantes dos partidos da opasigtio nao foram admitidos na comissao de poderes. Tanto os mencheviques como os soviais-revoluciondrios reclamaram do fato de que foi recusada de maneira arbitriria a admissio a0 Congreso de virios delegados provincia pertencentes aos seus partidos. O governo bolchevique no prestou contas ao Congreso da sua politica a partir de outubro. Em compensagio, as orquestras tocavam cangdes revolu- cionéiias, ¢ os bolcheviques fizeram discursos sobre a inevitabilidade da revolugiio mundial” (Brovkin, op. cit. p. 62), Yer Brovkin, op. cit, p. 70: (...) © CC menchevique enviow um protesto veemente xo CC bolchevique, mas sem resultado. O aparetho administrativo (machinery) de convacagho & de diregio do congresso era controlailo pelos bolcheviques” 20 Ao contririo dos mencheviques. eles tinham teniado sublevar-se contra os bolchevigues. Para julgar essa politica ¢ preciso niio esquecer 6 que foi a pritica governamental bolchevique esse period. A POLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 45 Kautskty: Terrorismo e comunismo Terrorismo e¢ Comunismo?! , escrito entre agosto-setembro de 1918 e junho de 1919, nao se refere, aparentemente, ao Renegado Kautsky. Hi referéncias a um outro texto de Lenin, As rarefas imediatas do poder soviético. A Ditadura do protetariado foi publicada no inicio da guerra civil, € pouco depois da expulsiio dos partidos de oposigio do Comité Executivo dos Sovieles. O texto nao fala, ou fala muito pouco, da guerra civil. Terrorismo ¢ Comunismo wata, pelo contririo, da politica bolchevique durante a guerra civil2? ¢, como 0 seu titulo o indica, em par- ticular do terrorismo. Por outro lado, nesse livro o autor continua a anali- sar as limitagdes da democracia, no interior do sistema dos sovietes (vimos que Kautsky era favordvel a eleigio de uma Assembléia Constituinte, mas isso nao o impede de criticar de dentro os defeitos da versio russa do sis- tema dos sovietes).23 Mas a obra olerece ainda o interesse de apresentar uma anflise do que Kautsky considera como 0 s bolchevista. Kautsky afirma visar nio tal ou qual erro inevitivel (o que seria cémodo, acrescenta, para alguém que esta longe das “penas © perigos” (TK (K), Dietz, p, 293, fr. p. 170, }, mas dos erros que “nascem necessaria- mente (mit Nonwendigkeit) de uma lalsa concepgdo de prinefpio. Esses erros s6 podem ser evitados superando-se essa concepgiio; eles poe em perigo todo futuro movimento revolucionario se se deixar que elas passem sem critica, ou mesmo se clas forem embelezados e glorificados — no suposto interesse da revolugdo” (TK (K), Dietz, p. 294, fr. p. 170) istema de classes na Ruissia 21 Fervorisuus said Kommuunisuus, Bin Beitrag, zur Naturgeschichte der Revolution. B E, Berger, sd, Cito a edigio Dietz, Berlim. Abrevio por TK (K) 22 4 guerma civil comega propriamente no verio de 18. como levante da Legiaio Teheea (tropa constitufda em parte por ex-soldados de origem tchecosloviea do exdrcito austrZueo, sionados pelos russos) apoiado pelos sociais-revoluciondrios. Um governo de maiork gonstitufdo em Samara, Outros governos, mais & dirvita, serio constituidos em outras cidades, 230 livro foi escrito, ou pelo menos terininado. depois da revolugio alema de novembro de 1918 (Kautsky diz ter interrompido a sua redagio no momento dat revoluglio), € apés a rup. tura da coalizio entre os sociais-demoecratas e os sociais-emocratas independentes (SPDU. partido a0 qual Kautsky pertence desde 1917). Os dois partidos dividem o poder durante unt perfodo bastante curto, depois da vit6ria da revolugio de 1918 ¢ da proclamagio da reptibli- ca, O livro é também posterior ao assassinato de Luxemburg ¢ de Liebknecht (janeiro de 1919), mas € anterior a adesao da maioria dos sociais-democratas independentes i Terceira Internacional 46 LUA NOVA N® 53 — 200 O que parece chocante Kautsky 6 a brutalidade da explosio e 0 fato de que ela degenera em “terrorismo”, isto é, que ela nao se abate ape nas sobre os que combatem do outro lado, ou sobre os que, de um modo ou de outro, agem contra o chamado poder “soviético”, mas também, de modo indi lado.24 Em Da democracia ao trabalho escravo, 0 livro que ele publicara em 1920, réplica a Terrorismo ¢ conunismo de Trotsky, que comentarei mais adiante, Kautsky escrevera a propésito do terrorismo: “(...) mesmo aquele que cré no Jevante armado como salvagio terd escripulos jem admi- tir] que 0 terror é a continuagao do levante, do qual ele nio se distingue. O levante vai contra as tropas de um governo. Gente armada uta contra gente armada, O terror assassina [gente] sem defesa. Ele deve ser posto no mesmo plano da execugio de prisioneiros na guerra. Ou isto € também ‘somente uma continuagiio direta da guerra’? Sou suficientemente [um] quaker hip6erita para responder de maneira det questiio” (DDTE (K), p. 124) Passamos pois a um novo grau. Depois de ter citado um texto da Situagéo das classes trabathadoras na Inglaterra de Engels, no qual se trata do “rancor” do proletariado, ¢ no qual Engels afirma que o rancor & Linto, sobre aqueles que, dada a sus origem, se supde estejam do outro siva pela negativa a esta cm certo sentido, o terror havia comegado antes (desde 0 inicio tinha havido repressio de massa contra os oficiais) a repressio muda de cariter no verio de 1918 (eI. Brovkin, op.ci., p. 280, “a aplicagio do terror” muda): “Emr juno de 1918, « lista de inimigos do bolchevisino inelufa néo $6 ex-policiais, oficiais, proprietirios e os “Cadetes” (membros do Patido Constitucional Democritico), mas também camponeses Fieos, pequenos come ciantes, e operirios que sustentavam os mencheviques ¢ 0s Sociais-revolucionirios” (Brovkin, op. cit, p. 280). E Brovkin cita uma entrevista de Dzerzhinskii publicada pel Novaia Zhisn de 19/6/18: “A sociedade ¢ a imprensa nip compreendem corretamente as tarelas € 0 carder de nossa comissio fextraordinra]. Eles conecbem a luta conta a contra-revolugo em termos dla policia de Estado normal, © & por isso que e'es reclamam garantias, wibunais, enquetes, investigagdes etc. N6s nao temox nackt em comin! com os tribunais militares revolucionstrios. N6s representamos o terror organiza. Isso deve ser dito com frangueza ~ 0 terror 6 absol- tamente necessirio nas circunstineias presentes. Nossa tarefa & Iutar contra os inimigos do poder sovistico, Nés aierrorizamos ox inimigos do poder soviético de maneira a esmagar 0 ime no seu bergo”. (Brovkin, op. cil, p. 281). Kautsky cita por sua vez vow declarayao nada por Dzcrzhinsky, onde se diz: “(..) a Comissio extraordindria pan-russa deelara (...) ‘que ela nao Fars nenhuma diferenga entre os guardas brancos das fileiras das tropas de Krasnov ¢ os guarts brancos dos partidos menchevique e social-revolucionsrio de esquerda, A férula da Comissio extraordinatia atingiri com 0 mesmo rigor uns e outros. Os socialistas revoluciondrios de esquerda e 0s mencheviques por n6s aprisionados serio [consicerados como] reféns, ¢ © seu destino dependers do Comportamento dos dois partidos” (extratdo do Irvestia do Comité executivo central pan-russo, 1.0 $9, de 1.0 de margo de 1919, eitado por Kautsky, (TC (K), Dietz, p. 333, fr. ps 224), APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVIST? um es {mulo importante no inicio do movimento operiirio mas que, em seguida, este o ultrapassi, pois o movimento opersirio representa a causa da humanidade € nio s6 a dos operarios, Kautsky escreve: “O bolchevismo superou seus adversirios socialistas elevando a selvageria ¢ a brutalidade “do inicio do movimento operdrio’ A ordem de forga mot (TC (K), fr. p. 191). Assim, ele transformou “a luta sociali pagio ¢ pela reedificagio da humanidade inteira em uma expiosiio de 6dio ¢ de vinganga dirigida contra individuos, ¢ expondo estes dltimos aos piores tratamentos e as piores torturas, longe de clevar 0 proletariado a um grau moral superior, © bolchevismo, pelo contrdtio, 0 desmoralizou" (idem, p. 191). A esse respeito, poder-se-ia lembrar 0 que diz Victor Serge em Memérias de un Revoluciondrio sobre os velhos ressentimentos que se manifestaram de maneira brutal. Vé-se também a brutalidade do ressenti- mento na maneira pela qual Zinoviev comenta a miséria da porgio que cabe aos burgucses segundo as regras do racionamento pés-revolu- ciondrio.25 E Kautsky conclui: “Esses marxistas, esses revoluciondrios e inovadores ousados nao souberam encontrar nada {como meio de inocular a moral comunista tis massas] além dos meios lamentaveis com a ajuda dos quais a velha sociedade havia procu gar dos Trutos dos seus proprios pecados: 0 tribunal, « prisio, a pena de morte. Por outras palavras, o terror” (TC (K), p. 192). Além da dendncia do terrorismo, Kautsky procede a uma anilise das relagdes sociais na Ruissia bolchevista, De resto, os dois temas estiio li- zados. O “rancor” em relagio aos ex-privilegiados (ci-devants) tem 0 seu lado objetivo na nova hicrarquia social, que & em parte, mas: no inteirs- mente, uma inversio da antiga, Sera necessirio extrair longas passagens dessa andlise importante: “Basta analisar as formas sociais que se desen- volveram fatalmente sob © regime bolchevista a partir do momento em que se aplicaram métodos bolehevistas (...). Encontramos na atual Réssia bolchevista uma classe camponesa com base numa propriedade privada niio 7 da revolugiio” a pela emanci- rado se desembars 25 Ver Brovkin, op. vit., p. 193. 26 “Os tribunais revoluciondrios ¢ as comissdes extraoriinsirins se tornaram armas do terror Tanto uns como os outros se impuscram violentaiente, sem eontar us expedigdes de repress militares eis vitings so numerosas. O nimerd de vitnnas das comsses extra onlingrias seri sempre diffeil de estabelecer. Howve milaves delsy, O ealeulo mais moder dio dio mimera de 6.000, Outros testemmuntos dso 0 dobro, mesmo o tiplo desse miner. E preciso aerescontar indmeras viims aritrariamente aprisionadas,maltratadas ou foraradas até a monte” dent, p. 220, 48 LUA NOVA N®53— 2001 limitada e de uma produgio doméstica fechada. Esta classe leva uma existén- cia A parte, sem ligagao orgdnica com a inddstria urbana (...) Ao lado dese sistema pequeno-burgués do campo se eleva na cidade uma sociedade qu pretende ser socialista. Bla quis abolir as diferengas de classe. Comegou por rebaixar ¢ destruir as ckasses superiores e chegou #t uma nova sociedade de classes. Esta contém trés classes. A classe inferior compreende os antigos “burgueses’ capitalistas, pequeno-burgueses intelectuais, desde que nao te- nham espirito de oposicio. Privados de todos os direitos politicos, despoje dos de todos os meios de existéncia, silo de tempos em tempos obrigados a fazer os trabalhos mais repugnantes para receber em troca ragdes de alimen- to as mais lamentavelmente insuficientes, ou antes verdadciras ragdes de fome. O inferno em que vivem esses hitotas s6 pode ser comparado com os fendmenos mais horrendos que o capitalismo jit engendrou. A criagdo dess inferno € 0 ato de violéncia proprio ao bolchevismo, seu primeiro passo importante em diregiio & emancipagdo da humanidade. A classe média es formada por operirios assalariados. Eles sio politicamente privilegiados. Seguindo a letra da Constituigiio s6 eles dispdem, nas cidades, de direitos eleitorais, da liberdade de imprensa ¢ de coaliziio (...) ou antes deveria ser assim (...) Para salvar a inddstria [dado o nivel da grande massa dos assala- jados russos] foi necessdrio superpor aos operdri ciondrios que se arrogou cada vor, mais © poder real © tornow ilus6rias 2 liberdades dos operarios. Naturalmente, isto nao aconteceu sem resisténci por parte dos operiirios (...) © absolutismo do tchine (graduado) da antiga burocracia reaparece sob um novo invdlucro, mas (...) de modo algum me- Ihorado” (TC (K), p. 210-212). Kautsky tentard dar uma caracterizagéio geral da nova sociedade russa, fazendo a0 mesmo tempo o balango dos seus inconvenientes em relagio & sociedade anterior a Outubro: “S6 a grande propriedade fundiar e feudal desapareceu. Para isso, as condigées necessdrias estavam amadurecidas na Ruissia (...) © capitalismo privado (...) reveste as formas mais lamentaveis abjetas do comércio clandestino e da especulagio financeira. O capitalismo industrial de privado que era tornou-se capital mo de Estado. Outrora, a burocracia do Estado e a do capital privado man- tinham, uma em relag&o & outra, uma atitude critica, e mesmo hostil. O operirio tinha entéio alguma possibilidade de ter ganho de causa, ora con- tra uma ora contra outra. Hoje a burocracia do Estado e a do capital estéo unificadas: este é 0 resultado final da grande transformagio socialista intro- duzida pelo bolchevismo. Isto significa 0 despotismo mais opressor que a Réssia jd conheceu” (TC (K), p. 213). os uma nova chasse de fun- ‘A POLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 49 Essa andlise da estrutura das classes esta articulada com a erftica da “democracia soviética” que Kautsky havia comegado a fazer em A ditadu- ra do proletariado. Assim, a andlise da sociedade civil se prolonga na dos fun- damentos do poder de Estado na Rissia bolchevique: “O poder absoluto dos conselhos operdiios se desenvolveu assim em um poder absoluto de uma nova burocracia, em parte saida desses conselhos, em parte nomeada por eles, eem parte imposta. Esta burocracia representa a {classe} superior das trés classes urbanas, a nova classe dominante que se constitui sob a égide dos antigos idealistas e militantes comunistas” (idem, p. 212). “A substituigio da demo- cracia pela.dominagio arbitréria dos conselhos operdirios que deviam expro- priar os expropriadores levou assim A dominagio arbitréria de uma nova buro- a € reduziu a democracia a letra morta, mesmo para os operdrios, pois estes caem na maior servidio econémica que j4 suportaram. Ao mesmo tempo, a perda da sua liberdade no € absolutamente compensada por um acréscimo de bem-estar” (TC (K), tr. ft., p. 213). Tudo isto s6 foi posstvel através das medidas repressivas mais violentas, tomadas nao s6 contra os partidos burgueses, mas igualmente contra os partidos socialistas: “(...) a severidade com a qual os bolcheviques amordagam a imprensa esti dirigida nao 6 contra a impren- sa burguesa, mas contra toda imprensa que néio jura pelo regime existente:” (idem, p. 187). “O pecado mortal do bolchevismo 6 0 esmagamento da democracia por um poder ditatorial que no se deixa conceber sendo como um regime absoluto de violéncia de um individuo ou de uma pequena orga- nizagao solidamente construfda” (idem, p. 228). quadro converge com um diagnéstico que nfo atinge apenas os métodos do bolchevismo: “(...) a prépria finalidade do terror bolchevista nao é sem reproche. Sua tarefa imediata 6 manter no poder 0 aparelho de dominagdo militar e burocratica que os bolcheviques criaram” (idem, p. 221). Os bolcheviques estabeleceram “sua prépria ditadura sob 0 letteiro da ditadura do proletariado" (idem, p. 220). Eis ai o que escrevia 0 “renegado Kautsky” em 1919. craci Trotsky: Terrorismo e Comunismo Se Terrorismo ¢ comunismo de Kautsky nio € uma réplica a0 Renegado Kautsky de Lenin, Terrorismo ¢ Comunismo de Trotsky?” & explicitamente uma resposta ao livro homénimo de Kautsky. A novidade desta nova fase da discussio é que do lado bolchevique se abandona toda veleidade democratica. Nao se procura mais 50 LUA NOVA N* 53 — 2001 legitimar 0 bolchevismo como representando a politica de uma “*maioria”, trate-se da “maioria” do “povo” ou mesmo da maioria do proletariado. Pelo s letras o direito do partido de vanguarda rio ou minoritario — de “representar” o proletariado. Isto c explica sem diivida pela dificuldade crescente que encontra o bolchevis- mo em se apresentar como partido majoritirio. Pode ser que a mudanga tenha alguma-coisa a ver também, mas de um modo secundério, com as diferengus entre Lenin ¢ Trotsky; no essencial eles estito de acordo, Porém em 1920 Trotsky professa uma espécie de ultra-bolchevismo’, e sobretu- do, mais do que Lenin, aprecia definir a sua posigao — por “brutal* que ela seja — com toda a clareza, 0 que, diga-se de passagem, nao é em si mesmo (ou nfo é suficientemente) uma virtude, “O papel excepcional?? que desempenha o Partido Comunista as condigdes de uma revolugio proletiria vitoriosa — escreve Trotsky — é bem compreensivel. A questo & a da ditadura de uma classe. Na com- posigfio desta classe entram elementos variados, estados de espirito he- terogéncos, diferentes niveis de desenvolvimento, Mas a ditadura pres- supde unidade de vontade, unidade de diregio, unidade de agiio. Por que outra via poderia ela se realizar’? A dominagio revolucionaria do proletaria- do pressupée no interior do préprio proletariado a supremacia de um par tido que dispde de um programa de agiio claro, ¢ de uma disciplina interna sem falha” (TC (T), tr. inglesa p. 108 tr. fr. p. 118). Vé-se assim. Da idéia de uma ditadura de classe, Trotsky deduz de certo modo a dominagiio (ou a “supremacia”, mas o contexto nio deixa lugar 2 ddvida) do Partido. © apoio da maioria (no interior nfo s6 do “povo* mas mesmo do proletariado) ser obtido depois. Os métodos demoeraticos “retardam” no que se refere ao proceso revolucionirio. “Se 27 Fervavismus und Komumenisnnes, 1920, abreviarei por TC (T). Tradugae inglesa: Pervorism tunel Conunanisn, Michigan University Press, 1961. Uilizei ainda dus imdigoes fran ‘uma editada peta Promethée, e outra que & de A. Rosier (salvo indicagie expressa, a tadugto francesa utlizada é a primeira). © posficio i intradugo tenn a data de 29 de maio de 1920, 0 epflogo x de 12 de junho do mesino ano. 28 expresso ¢ ullizada por Michael Lowy na parte final do seu livro Lit théorie de la révo~ lution chez le jeune Max, Patis, Maspero, 1970. Toda essa pare Final do livro foi omitida na edigdo brasileira, o que x meu ver se justfica elas razdes indieadas pelo autor, O reverso da moeda é 0 desaparceimento de importante anilise erica, em estilo luxcmburguista, do Trotsky do inicio dos anos 20 O texto inglés Uiz “exclusive 30 © texto inglés diz “domin: APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA, sl © regime parlamentar —escreve Trotsky — mesmo no perfodo de deser volvimento ‘pacifico’ estdvel era antes um método ‘grossciro’ de descobrir a opinidio no pafs, na época da tempestade revoluciondria ele perdeu com- pletamente a sua capacidade de acompanhar 0 curso da luta © 0 desen- volvimento da consciéncia revoluciondria. (...) O regime soviético, que esti ligado da maneira mais estreita, orginica*!, mais honesta, com a maioria do povo que trabalha, encontra a sua significagio nao de maneira estitica, refletindo estaticamemte uma maioria, mas a criando de maneira dindmica, Tendo entrado na via da ditadura revoluciondria, a classe operdiria russa significou através disso mesmo que, no perfodo de transigao, cla nao edifica a sua politica sobre a arte inconstante de rivalizar com os partidos camaledes, na caga aos volos camponeses, mas sobre a parti pagiio efetiva das massas camponesas, lado a lado com o proletariado, no trabalho de dirigir © pafs em fungao dos verdadeiros interesses das ma trabalhadoras. Esta democracia € muito mais profunda do que o parla mentarismo* (TC (T), inglesa, p. 45, fr. ed. Prométhée, p. 55). O que significa: 0 método parlamentar é grosseiro. Hi um outro método mais rigoroso, 0 que di o poder a minorias que “devem* se tornar maiorias... Tudo isto em nome dos “verdadeiros interesses da classe oper ? Trotsky responde: “Acusaram- nos mais de uma vez. de ter substituido a ditadura dos sovietes pela ditadu- ra do nosso partido, E entretanto pode-se dizer com completa justiga que a ditadura dos sovietes $6 se tornou possivel gragas & ditadura do partido. E gragas A clareza de sua visio ted sua forte organizagiio revolu- 14 que © particlo assegurou aos sovietes a possibilidade de se trans- formar de informes pat ion: ‘ria, Nao haveria af “substituismo” ica e ciond mentos operirios em um aparelho da dominagio do trabalho. Nessa ‘substituigo” do poder da classe pelo poder do partido nfio hd nada de acidental, e na realidade niio ha [ff nenhuma substitu Os comunistas exprimem os interesses fundamentais da classe operéria, E totalmente natural que no perfodo em que a histria poe na ordem do dia esses interesses cm toda a sua extensai sentantes reconhecidos dat cla inglesa p. 109, tr. fr. p. 119), Esses textos so de uma clareza extraordindria, Parte-se da idgia de que os “comunistas |e somente os comunistas, RF] exprimem os int (0 os Comunistas se tornem os repre~ se operiria na sua totalidade” (TC (T), tr. 3) O texto inglés diz “direta”. 52 LUA NOVA N* 53— 2001 esses da classe operdria”. Uma vez admitido esse axioma, que seria evi- dente em si mesmo e que, como todo axioma, nao exige prova, conelui 6 resto. Como exprime os interesses da classe opersiris © poder comunista ndo tem necessidade de uma outra legitimacdo, sobretudo nfo tem neces- sidade da legitimagao que viria de um sufragio qualquer. Pelo contririo, a questdo se inverte, Se quisermos que a maioria (do povo ou pelo menos do proletariado) esteja com o partido que exprime os verdadciros interesses do proletariado, € necessdtio que esse partido esteja no governo e de prefer- €ncia esteja s6 ele no governo. Portanto, a ditadura do Partido € a ditadura da classe, 0 “substituismo” é uma lenda democrdtica. Q.E.D. O texto de Trotsky é candnico. Qualquer que tenha sido o seu destino, poder-se-ia dizer que ele, Trotsky, forneceu © modelo para tod: justificagdes Futuras da ditadura burocritica. A esse propésito, seria preciso fazer duas ordens de conside- rag6es. Primeiro sobre a relagiio entre est posigio e a politica de Marx. Em grandes linhas, seria bem dificil querer justificar esta posigio a partir de Marx,’mesmo se certos textos, sobretudo a “Mogiio da diregao central da Liga dos Comunistas” (1850) poderia fornecer aiguns elementos de just cagiio. Leonard Schapiro (op. cit,, p. 4) observa 0 interesse de Lenin pela carta de Marx a Engels de 16 de abril de 185672, onde se trata da questo da possibilidade, para a Alemanha, de que a revolugio proletaria se apoie “sobre uma nova versio da Jacquerie”. Lenin se apoiava nesse carta para afirmar que um partido bem organizado devia tentar tomar poder ime- diatamente.* Em segundo lugar, seria preciso observar a oposigio entre essas teses e as pos jeriores de Trotsky x esse respeito. se as 32.B nao de 1865, como se fé na trad ncesa do fiveo de Schapiro, A esta, escrita numa mistura de alenvo, inglés e francés, evocs a situagio dos jacobinos alemaes de Mogéincia, os quais, apés a ocupagio da cidade pelas tropas napolebnicus, prockumaram a repibliea © declararam a anexagao dela & Franga, mas que por falta de apoio popular foram esmagados pelos prussianos em 1793:"Dependeri do curso das coisas em Berlim [saber] se nds ndo se- Femos obrigados a chegar a uma posigo semelhante a dos “elubistas” de Mainz, na antiga re- volugiio. Tudo na Alemanba vai depender da possibilidade de fornecer apoio A revolugao pro- letdria através de algum tipo de segunda edigao da guerra dos camponeses. Ent, a1 coisa sex excelente (Werke, Berlin, Dietz, vol. 29, p. 47) #9 'Nos textos oficiais da Terceira Internacional encontrar-se-d a idgia de que um govemo re- volugiondrio nfo tem necessidade de contar imediatamente com o apoio dat maioria dos explorados: “(.,.) @ idgia habitual dos velhos partides © dos velhos lideres da Segunda Internacional, de que «1 maioria dos trabalhadores © dos explorados pode, em regime capita lista, sob 0 jugo escravista da burguesia (...) alquirir uma plena consciéneia socialista, a APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 53 Na realidade, esses textos contradizem diretamente — e de sciente, scm diivida — as teses do jovem Trotsky sobre o “subs- tituismo*, tais como elas aparecem sobretudo em Nassas tarefias politi- cas. Nesse livro notdvel, ao qual voltarei em outro Jugar, trata-se em nde parte dos métodos internos ao partido, da relagdo entre o conjunto do partido e a sua diregao. Mas nele se fala também da relagiio entre 0 pa tido ¢ “as massas", ¢ entre 0 partido ¢ as outras organizagbes, Embora nao de modo imediatamente evidente, 0 problema interno ests ligado aos pro- blemas externos. O jovem Trotsky conienta principalmente um documento dos boicheviques do Ural. Eis esse documento, citado por Trotsky: “Se a maneira con gr firmeza socialista, conviegdes e eardter: ess iia, nds dizemos, engana os traballkudores. Na realidade, € s6 depois que a vangwarda proletiria sustentada pela dniea classe revolucionaria ‘ou pela stia maioria, tiver derrubado ox exploradores. os tiver quebrido, houver libertado os exploraclos das suas serviddes (...) € x6 entao ¢ ao prego da mais dara guerra eivit, que a edu= instrugdo, a organizagao das mais amplas massas em tomo do proietariado, sob a Sut influéncia va sua diregdo, poderd ser leita, v que ser possivel vencer o egoismo delas, seus Vicios, suas fraquezas, sta falta de coesio, alimentados pelo regime da propriedade privada, ce transformii-las em uma vasta € livre associagao de trabalhadores livres” (“Les tiches prin- cipales de I"Intemnationale Communiste” em Theses, conditions et status de M'inernationale Communiste, texto oficial votado no segundo Congresso Mundial da 1.C.. Bibliotéque Communiste Normande, sft, sf lugar de publicagao, p. 3 ¢ 4), Literalmente, 0 texto s6 exclui a necessidade do apoio «do conjunto dos explorados. Mas dada a maneira pela qual ele est construido -0 sujeito & a vanguarda e nao a classe, a tese a refutar €a “dos velhos lideres da Segunda Internacional”. os quais. parece, nem sempre insistiram na necessidade de um apoio majoritario mais vasto do que 0 do proletariado -, ele legitima de Tato uma posigdo “van- guardista”, Esta & dle resto, afirmada em outros textos da mesma coletGined, relatives ao exer cicio do poder revoluciondrio, em que o partide € posto acima de todas as formas de organi- zagio proletiria: * (...) 0 trabalho nos Sovietes, como nos sindicatos de inddstria que se tomnaram revolucionatios deve ser invaridvel ¢ sistematicamente ditigide pelo partido do pro- Jetariado, isto 6, pelo partido comunista. Vanguarda organizada da classe opericia, 0 partido connista responde igualmente as necessidades econdmicas, politicas e espirituais do eon Jjunto da classe operiria, Ele deve ser a base dos sindicatos & dos Sovietes, assim como de todas as outras formas de organizayio proietiria” (Theses... op, cit. p. 29). Trata-se eviden- temente de reeusar (odo tipo de regime “parlamentar” © “tods fiegio de vontade popwlas” (Os partidos comunistas e 0 partamentarismo”. idem, p. 48). Quanto & organizagao interna dos partidos comunistas, os documentos propdem nao s6 a centralizagaio mais estrita, mas «una diseiplina quase ou pursi © simplesmente militar: “(..) Os partidos que pertenvem & tntemacional Comunista devem ser edifieados sobre o principio do centralismo democratico. Na época atual de guerra civil encamigada 0 partido comunista no poder cumprir o sew panel se ele nao for organizado da mancira mais centralizada, se-nele no for admitida uma isciplina de fervo beirando a disciplina militar e se seu organismo central nfo for munida cle amplos poderes, exercer uma autoridade incontestada, beneliciar da confianga undnime dos mnilitantes” ("Conditions d*admission de partis dans P1.C.", idem, p. 22), 34 Trotsky, Nas idches polisiques. tradugio de D. Fraenkel. Paris, Gonthier, colegio Médiations, 1971 54 LUA Nova N® 53 ~- 2001 Comuna de Paris de 1871 fracassou - dizem os marxistas do Ural ~ & porque nela estavam representadas diferentes tendéncias, porque havia nela diversos representantes, freqiientemente opostos e em contradigao (...) houve muitas disputas e pouco agao (...) E preciso dizer, no somente da Russia, mas do proictariado mundial, que ele deve estar preparado e se preparar para receber uma organizagiio forte e poderosa. A preparagiio do proletariado para a ditadura é uma tarefa organizacional to importante que todas as outras devem the ser subordinadas” (Nos taches politiques, p. 208). E eis o comentario de que cle € objeto, por parte do jovem Trotsky: Em todo caso, os autores desse documento tiveram a coragem de atirmar bem alto que a ditadura do proletariado Ihes aparece com os tragos da ditadura sobre o proletariado: Nao € a classe operiria que, por sua ago auténoma, tomou nas © destino da sociedade, mas uma ‘organiza forte e poderosa’ que, reinando sobre o proletariado e através dele sobre a sociedade, assume a passagem ao socialismo” (idem, p. 209). “Para preparar a classe operdria para a dominagio politica € indispensavel desen- volver e cultivar a sua auto-atividade, o habito de controlar ativamente, em permanéncia, todo @ pessoal executivo da Revolugiio...Mas para os “jacobinos sociais-democratas”, para os intrépidos representantes do subs- tituismo politico, a enorme tarefa social ¢ politica que é a preparagiio de uma classe para o poder de Estado é substituida por uma tarefa organi: cional-tética: a fabrieagdo de um aparelho de poder” (ib.).35 Nao é isso 0 que diz 0 mesmo Trotsky, menos de duas décadas depois. A propésito da alianga com 0s sociais-revoluciondrios de esquerda no primeiro semesire de 1918, cle escreve, depois de afirmar que se trata- va de uma alianga “titica” na qual os bolcheviques cos excessivos”; “Nao obstante, o episddio dos SR de esquerda mostra de maneira suficientemente clara que 0 regime de compromissos, acordos, mii ndo assumem “ris concessdes miituas (...) no pode durar muito tempo numa époea em que as situag6es se alteram com uma extrema rapidez, ¢ na qual a unidade suprema de ponto de vista é necessfria para tornar possivel a unidade da agao” (TC) (T), tr. inglesa. 109). A perspectiva é a mesma cm relagio 20s sindicatos: “Tanto quanto a politica de coaliziio a ‘independéncia’ continua 35 Cr, idem, p. 121" (...) em politica “externa” esses métodos [os do “substituismo” interno, RE] se manifesta nas tentativas de fazer pressio sobre as outras organizagées sockais, uli Tizando a forga abstrata dos interesses de classe do proletariado, © nfo a forga real do prole- tariado consciente dos seus interesses de lasso” APOLEMICA SOBRE 0 PODER BOLCHEVISTA 55 do. movimento sindicalista no perfodo da revolugdo proletéria é uma impossibilidade. Os sindicatos tornam-se os rgiios econdmicos mais importantes do proletariado no poder. Com isso, eles caem sob a diregio do Partido Comunista. Niio s6 as questdes cle principio no movimento sind cal mas sérios conilitos de organizagiio no seu interior silo decididos pelo Comité Central do nosso Partido” (TC (7), tradugao inglesa p. 110). Trotsky € levado a colocar a questo da garantia de que de fato € 0 Partido que exprime os interesses do proletariado. A reposta é brutal. “Mas onde estd a garantia, nos pedirio certos homens sensatos, de que & justamente 0 vosso partido que exprime os interesses do desenvolvimento hist6rico? Destruindo e pondo na ilegalidade outros partidos, vocés impediram que eles entrassem em competigdo com vocés, ¢ em conse- giiéncia privaram-se {da possibilidade] de testar a vossa linha de aco”. Eis a resposta: “Esta idgin € ditada por uma concepgio puramente liberal do curso da revoluciio. Num perfodo no qual todo antagonismo assume um cardter aberto, ¢ a luta politica passa rapidamente & guerra civil, o partido dirigente tem materiais suficientes para testar a sua linha de ago, sem que 0s jornais mencheviques tenham a possibilidade de circular. Noske esma- ga 0s comiunistas, mas eles crescem. Nés suprimimos os mencheviques & 0s SR — ¢ cles desapareceram. Esse critério nos € suliciente. De qualquer modo, nosso problema nio €, a cacla momento, o de medir estatisticamente © agrupamento das tendéncias; mas o de assegurar a vit6ria da nossa tendéncia, Porque essa tendéncia é a tendéncia da ditadura revoluciondria” (TC (1), t. inglesa p. 109). O que esse texto diz € simplesmente falso. Como vimos, os mencheviques nao se enfraqueceram. Enquanto havia um minimo de vida democritica eles pelo contratio se reforgaram, e seu reforgo é sem ddvida um dos motivos do agravamento da sua situagao. Uma vez esmagados pelas medidas de policia (medidas sem duivida mais cficazes do que as que foram tomadas contra os comunistas pelos “socia- listas” de Weimar), eles, por assim dizer, desapareceram... Tomar uma “desaparigiio” como esta como critério para o estabelecer um juizo politi- co, eis algo que € pelo menos estranho.%6 36 Poder-se-ia citar nesse contexto um discurso pronunciado por Trotsky no décimo congres- so do Partido Comunista (0 discurso € de 14 de margo de 1921). Trata-se de responder & “oposigao operdria”, que propde uma certa autonomia das bases openirias (segundo Schapiro, op. cit., tralava-se de qualquer maneira de uma democratizagio muito limitada, no sentido de que cla tocariam essencialmente nas relagdes entre a base & a diregtio do Partido): "(...) oposigzio operiria veio com slogans perigosos, no sentido de que eles transformaram em 56 LUA NOVA N* 53 — 2001 Trotsky ndo toma somente a defesa da ditadura do partido mas também a defesa clo terrorismo (a justificagao do terrorismo nao esta propria- mente presente no Renegado Kautsky de Lenin). “Seri que ainda é necessatio justificar o “tertorismo revoluciondt 2”, pergunta-se Trotsky no prefacio seu livro (TC (T), tradugiio inglesa p. 9). A justificagao do terror mo funda-se num “dado de fato”, que contém implicitamente um espécie de clogio — ambiguo — dos adversdrios, a saber, di direita extrema, O que diz Trotsky é que, para a esquerda como para a direita, a democracia nito existe mais no mundo (¢ implicitamente, que € “ racional” que seja assim): “(...) & em vio que buscaremos hoje no mundo inteiro um regime que, para se man- ter, ndo recorra a uma terrfvel repressdio de massa. E que as forgas das clas- fetiche os principios democriticos. Eles puseram acima do Partido os direitos dos operirios, de eleger representantes para as organizagdes de operdrios, como se o partido nao tivesse 0 direito de assegurar a sua ditadura mesmo no caso em que esta ditadura se choca de modo temporitio com o estado de espirito cambiante da democracia operiria, Em Petrogrado 0 camarada Zinoview declarou, com algum exagero, que se —permitirmos a reunifio do “Congreso dos Proclutores” de Schlyapnykov, 99 % serd constituido por gente sem partido, por SR e por mencheviques. Isto € unt exagero monstruoso ¢ deve ser imediatamente riseado do registro. O que significa para a ilustragao da Internacional que nossa *democracia dos operitios’ consiste em 1% que votam pelos outros 9996? Isto & um exagero monstruoso! Mas mesmo se nés reduzirmos bastante os 99% de Zinoviev, sobraré ainda um nximero substancial [de pessoas insatisfeitas, RF]. As informagdes que chegam das provineias mostram que os

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