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Patrice Schuch
Mas, talvez, eu devesse primeiro esclarecer o que deve ser entendido como
etnografia pública. A expressão refere-se simplesmente ao princípio de trazer
para vários públicos — além dos círculos acadêmicos — as conclusões de
uma etnografia analisada à luz do pensamento crítico, de modo que estes
resultados possam ser apreendidos, apropriados, debatidos, contestados e
utilizados. Presume-se que tal conversa entre o etnógrafo e seus públicos gera
uma circulação de conhecimento, reflexão e ação suscetível de contribuir
para uma transformação do modo como o mundo é representado e
experienciado (Fassin, 2013a, p. 628).
1
Artista plástica que resgatou jovem amarrado nu em poste no Flamengo presta depoimento à polícia. R7,
5 fev. 2014. Disponível em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/artista-plastica-que-resgatou-jovem-
amarrado-nu-em-poste-no-flamengo-presta-depoimento-a-policia-05022014>. Acesso em: 16 set. 2014.
2
Cabe destacar que, quando Michel Foucault (2002, p. 306) menciona que o racismo assegura a função
da morte numa economia da biopolítica, explica: “é claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o
assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de
permitir uma relação biológica de supressão dos perigos, externos ou internos, em
relação à população e para a população: “se você quer viver, é preciso que você faça
morrer, é preciso que você possa matar” (Foucault, 2002, p. 305). O racismo, enfim,
asseguraria a função da morte na economia do biopoder, aquela definida pela promoção
da vida como problema e foco do poder político.3
De volta ao Brasil, 2014: chamada por vizinhos que presenciaram a cena da
prisão do jovem negro e nu por uma trava de bicicleta em um poste na zona sul do Rio
de Janeiro, a coordenadora do Projeto Uerê, a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello,
diz para jornalistas sobre a defesa do jovem: “eu recebo ameaças por defender, mas
estamos falando de seres humanos. Recebi no Facebook a seguinte mensagem: ‘pra
mim essa raça tem que ser exterminada com requintes de crueldade’¨.4 A rede social não
foi somente o lugar da explicitação da fronteira entre o que deve viver e o que deve
morrer. De acordo com a Polícia Civil, o Facebook foi também o espaço para marcação
de um encontro entre jovens brancos de classe média, moradores da região, para “[...]
patrulhar o Aterro [do Flamengo] em busca de potenciais autores de delitos”. 5 As
atividades desse grupo e de outros do tipo deram origem a uma forma de nominação
popular referenciada em debates e reportagens sobre o tema, estreitamente relacionada
às suas maneiras de justificação moral: os “justiceiros”. Essa ideia de “justiça” proclama
sua não conformação ou não contentamento com a lei, colocando-se inclusive acima
desta e para além de suas assertivas: o jovem em questão foi liberado pela Polícia sem
nenhuma acusação.
Rumo a outra direção: periferia de Paris, interpelação policial acompanhada por
Fassin (2011) em seu trabalho de campo de quinze meses, entre 2005 e 2007. O autor
multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição,
etc”.
3
Quanto ao biopoder, Foucault (2002) especifica que, ao contrário do direito da “espada” do poder
soberano de “fazer morrer e deixar viver”, e do tipo de poder disciplinar que toma o corpo individual
como alvo normalizador, o biopoder tem por foco a “população” como tal e o homem como ser vivo (o
homem-espécie). Trata-se de um poder regulamentador. Embora o aparecimento dessas formas de poder
esteja historicamente marcado na obra de Foucault (poder soberano nos séculos XV e XVI, poder
disciplinar a partir do século XVII e início do século XVIII e biopolítica a partir do final do século XVIII
e início do século XIX), a análise do autor sobre a função do racismo explicita seu insistente argumento
de que não se trata de supressão de tipos de poder de acordo com tais cronologias, mas de composições e
sobreposições de suas variadas técnicas e estratégias.
4
Adolescente atacado por grupo de ‘justiceiros’ é preso a um poste por trava de bicicleta, no Flamengo. O
Globo, 03/2/2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/adolescente-atacado-por-grupo-de-
justiceiros-preso-um-poste-por-uma-trava-de-bicicleta-no-flamengo-11485284>. Acesso em: 10 abr.
2014.
5
Após linchamento de suspeito, jovens confirmam em depoimento “patrulha para proteger Aterro”. R7, 4
fev. 2014. Disponível em: <http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/apos-linchamento-de-suspeito-jovens-
confirmam-em-depoimento-patrulha-para-proteger-aterro-04022014>. Acesso em: 16 set. 2014.
começa seu relato especificando que, embora as situações de brutalidade tenham sido
excepcionais durante sua pesquisa, as cenas de humilhação pública fizeram-se comuns,
produzindo-se cotidianamente nas ruas, por meio do controle de identidades e da
verificação dos corpos, nas interpelações com o uso injustificado de algemas e também
nas delegacias, durante os interrogatórios, ou nos locais de detenção. Comentários
depreciativos e insultos racistas faziam parte das interações ordinárias entre os
“guardiões da paz” e aqueles por estes interpelados, banalizando as ideias de impureza,
indeterminação e desvalorização que, por meio da linguagem, inscreviam formas
particulares de estigmatização sociorracial (Fassin, 2011, p. 155).
Fassin conta que as estratégias de interpelação nas ações de patrulhamento e
verificação, a linguagem e outros sinais ostensivos de desprezo perante os vizinhos
conjugavam-se frequentemente para produzir uma situação de mortificação social. A
cena em que um homem de origem subsaariana é interpelado pela polícia pelo fato de
que seu carro apresentava um problema de segurança é evocativa desse processo:
No banco de trás do carro que trouxe para a delegacia de polícia, um oficial
lhe interroga: “Alguma vez você já teve problema com a polícia? — Não. —
Cuidado. De toda a forma, nós vamos verificar (silêncio). Qual é a sua idade?
— Vinte e um anos. — Você trabalha? — Não, eu não encontrei trabalho. —
Você é casado? — Não, ainda não. — (Cada vez mais desdenhoso:) Você se
dá conta? Você tem vinte e um anos, na sua idade você deveria ter um
emprego, uma família, uma casa, partir em férias, ter uma vida normal, não?
Veja o que você fez da sua vida. Ela é podre, a sua vida (Fassin, 2011, p.
202-3).6
“Ela é podre, a sua vida”, palavras ditas pelo policial francês na sua rápida
interação com o jovem que conhecia provavelmente havia alguns minutos, são não
apenas potentes formas de violência psíquica e moral, mas também instrumentos de
uma interpelação que produz, como explica o autor na entrevista deste livro, tanto a
sujeição à violência da lei quanto a subjetivação, ou seja, a constituição de si como
sujeito racializado. Para compreender esse processo, na entrevista, Fassin retoma a
descrição de Frantz Fanon, que descobriu sua negritude pelos olhos e pelas palavras dos
outros, nos olhares de medo e nas palavras de desdém que lhe eram dirigidas. No livro,
o autor salienta com maior precisão que não se trata de uma tomada de consciência, mas
de uma experiência vital de encarnação e incorporação. Segundo Fassin (2011), a maior
parte da política de segurança pública francesa reside nesse tipo de patrulhamento, que
institucionaliza a desigualdade e racializa o público a que se dirige.
6
Todas as traduções são de minha autoria.
A construção de sujeitos políticos racializados se efetiva com inúmeros
procedimentos e atividades do trabalho da polícia, como a constituição de tipologias
aparentemente neutras para o registro de pessoas (“raça negra”, “norte africano”) e a
pragmática racial que dirige as abordagens de identificação e verificação de pessoas (a
diferenciação entre “ciganos” e “romenos”, por exemplo, em que se diz aos primeiros
“vocês são uma merda” e, sobre os últimos, “eles vivem na merda”). Acontece até
mesmo nos comentários e nas piadas internas à convivência dos profissionais — por
exemplo, o comentário jocoso de um policial sobre um adolescente: “ele jogava
basquete. Um dia as camisetas e redes desapareceram. Foi ele quem as tinha roubado.
Era fácil adivinhar: ele era o único árabe da equipe” (Fassin, 2011, p. 237).
7
Esse é o problema clássico discutido por Agamben (2007), autor que salienta que a estrutura da exceção
— forma externa de relação que inclui alguma coisa unicamente por meio de sua exclusão — é
consubstancial na política ocidental. Segundo seu ponto de vista, a implicação do que chama de “vida
nua” (vida matável, mas insacrificável) na esfera da política constitui o núcleo originário, ainda que
encoberto, do poder soberano.
quartiers. É impossível não ser afetado pela dimensão evocativa da rica análise
realizada pelo autor acerca das formas de interpelação dos jovens de classe
trabalhadora, geralmente pertencentes às minorias étnico-raciais, que vivem nos
conjuntos habitacionais das periferias de Paris. Como o autor assinala em alguns dos
trechos da entrevista neste livro, tais jovens são subjetivados como racializados, com
todos os preconceitos associados à cor de suas peles, origens e religiões. As
interrogações acima, entretanto, estão presentes em outras pesquisas de Fassin, e é
possível estabelecer um paralelo entre as questões trazidas pela etnografia com os
policiais das periferias parisienses e outras práticas de diferenciação no berço francês
dos ideais de universalidade. As pesquisas em torno das práticas humanitárias (Fassin,
2007a, 2010a; Fassin e Pandolfi, 2010) e acerca dos programas franceses de auxílio a
necessidades e a pessoas sem documentos (Fassin, 2005) evidenciam essas dimensões.
Trata-se, portanto, de incluir não somente a experiência dos atores, mas também
a dimensão dos “valores” e “significados” na produção da vida. Isto é, interessa
problematizar o modo como seres humanos são tratados e têm suas vidas avaliadas e
distinguidas, não somente por tecnologias de governo, mas também por dimensões
morais relativas à produção dos significados e pela vivência de suas experiências
biográficas e coletivas. Esta, conforme Fassin, não é uma empreitada contrária, mas
complementar ao estudo das práticas de governo: “essas perspectivas não são
contraditórias, mas complementares: ao analisar as novas formas da arte de governo,
pode-se apreender o seu conteúdo político” (2009, p. 52). Entretanto, Fassin apresenta
seu próprio repertório conceitual, introduzindo um conjunto de conceitos operadores
para pesquisas na área, como os de “biolegitimidade” e “política da vida”:
Eu tentei seguir o trabalho de Michel Foucault sobre biopolítica — a qual eu
reformulei como políticas da vida — e biopoder — o qual substituí por
biolegitimidade. É crucial para mim não só do ponto de vista da exegese do
seu trabalho — o que outros já fizeram com talento —, mas da perspectiva
dos usos do seu pensamento nas ciências sociais — e eu acrescentaria na vida
cotidiana também. O que as políticas fazem para a vida — e as vidas — não é
apenas uma questão de discursos, estratégias e táticas. É também uma
questão dos modos concretos pelos quais os indivíduos e grupos sociais são
tratados, segundo quais princípios e em nome de qual moral, implicando-se
nisso desigualdades e falsos reconhecimentos. Em outras palavras, para
prolongar a referência wittgensteiniana, é ainda uma questão de forma, mas é
também uma questão de vida (2009, p. 57).
Aïssa Ihich, aos 18 anos, em maio de 1991; Youssef Khaïf, aos 23 anos, em
junho de 1991; Mohamed Bahri, aos 18 anos, em outubro de 1992; Makome M’Bowole,
aos 17 anos, em abril de 1993; Ibrahim Sy, aos 18 anos, em janeiro de 1994; Khafif
Amamra, aos 20 anos, em abril de 1994; Fabrice Fernandez, aos 24 anos, em novembro
de 1997; Abdelkader Bouzine, aos 17 anos, em dezembro de 1997; Habib Ould
Mohammed, aos 17 anos, em dezembro de 1998; Riad Hamlaoui, aos 25 anos, em abril
de 2000; Mohamed Berrichi, aos 27 anos, em março de 2003; Bouna Traoré, aos 15
anos, e Zyed Benna, aos 17 anos, em outubro de 2005; Mohsin Sehhouli, aos 15 anos, e
Laramy Samoura, aos 16 anos, em novembro de 2007; Mohamed Benmouna, aos 21
anos, em julho de 2009.
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