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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

UNEB - Salvador 09 a 11 de outubro de 2015


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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

ANAIS DO
II SINBAIANIDADE
(SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE BAIANIDADE) E DO
II CILLAA
(CONGRESSO INTERNACIONAL DE LÍNGUAS E LITERATURAS AFRICANAS E
AFRO-BRASILIDADES)

Entre Áfricas e Bahias: a diversidade de saberes

Salvador 09 a 11 de outubro de 2015

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB

Simpósio Internacional de Baianidade (2. : 2015 : Salvador, BA)

Anais [do] II Simpósio Internacional de Baianidade : II Congresso Internacional de Línguas e


Literaturas Africanas e Afro-Brasileiras, 9 a 11 de Outubro de 2015 / Organizado por: Gildeci de
Oliveira Leite. _ Salvador: UNEB, 2015.

Modo de acesso: www.apidic.uneb.br


ISSN: 2237-3780

Contém referências.

1. Cultura popular – Bahia - Congressos. 2. Baianidade – Congressos. 3. Bahia – Usos e


costumes. I. Congresso Internacional de Línguas e Literaturas Africanas e Afro-Brasilidades. II.
Leite, Gildeci de Oliveira. III. Universidade do Estado da Bahia. Assessoria de projetos
Interinstitucionais para a Difusão da Cultura.

CDD: 306.098142

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REITORIA
JOSÉ BITES DE CARVALHO
VICE-REITORIA
CARLA LIANE NASCIMENTO DOS SANTOS

CHEFIA DE GABINETE (CHEGAB)


MARIA APARECIDA PORTO SILVA

PRÓ-REITORIA DE AÇÕES AFIRMATIVAS (PROAF)


WILSON ROBERTO DE MATOS (ATUAL)
MARLUCE MACEDO (NA ÉPOCA)

SECRETARIA ESPECIAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS (SERINT)


JARDELINA BISPO DO NASCIMENTO

ASSESSORIA DE PROJETOS INTERINSTITUCIONAIS PARA A


DIFUSÃO CULTURAL (APIDIC)
GILDECI DE OLIVEIRA LEITE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS


GILBERTO NAZARENO SOBRAL (UNEB)

DOUTORADO MULTI-INSTITUCIONAL E MULTIDISCIPLINAR EM


DIFUSÃO DO CONHECIMENTO
SUELY MESSEDER (UNEB)
ROSÂNGELA ARAÚJO (UFBA)

MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA


EDILENE SANTOS LOUSADA (ATUAL)
MÁRCIO JOSÉ CORDEIRO FAHEL (NA ÉPOCA)

CAODH (CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DOS DIREITOS


HUMANOS)
CLODOALDO DA SILVA ANUNCIAÇÃO

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ASSESSORIA DE PROJETOS INTERINSTITUCIONAIS PARA A


DIFUSÃO CULTURAL (APIDIC)

ASSESSOR ESPECIAL
GILDECI DE OLIVEIRA LEITE

SECRETÁRIA
TATIANE APARECIDA ASSIS DOS SANTOS

TÉCNICO
SÉRGIO LUIZ ARAÚJO DE JESUS

ESTÁGIÁRIOS
JAQUELINE FREIRE DE JESUS
LUIGI ALBERTO BATISTA VIANA
MADALENA PEREIRA LEONI

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Universidade do Estado da Bahia (UNEB)


ASSESSORIA DE PROJETOS INTERINSTITUCIONAIS PARA A
DIFUSÃO CULTURAL (APIDIC)
PRÓ-REITORIA DE AÇÕES AFIRMATIVAS (PROAF)
SECRETARIA ESPECIAL DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS (SERINT)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS
DOUTORADO MULTI-INSTITUCIONAL E MULTIDISCIPLINAR EM DIFUSÃO DO
CONHECIMENTO
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA (MP-BA)
CAODH (CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS) MP-BA

ANAIS DO
II SINBAIANIDADE
(SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE BAIANIDADE) E DO
II CILLAA
(CONGRESSO INTERNACIONAL DE LÍNGUAS E LITERATURAS AFRICANAS E
AFRO-BRASILIDADES)

Entre Áfricas e Bahias: a diversidade de saberes

Rua dos Vereadores


Lauro de Freitas - Bahia, CEP: 41.150-000

www.apidic.uneb.br

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COMISSÃO ORGANIZADORA

Gildeci de Oliveira Leite (Presidente- UNEB)


Carla Patrícia Bispo de Santana (Vice-Presidente UNEB – Alagoinhas)
Aguida Rodrigues (Discente UNEB/ Supervisora PIBID-UNEB-Seabra)
Adilma Nunes Rocha (UNEB- Ipiau)
Andrea Betânia da Silva (UNEB)
Aline Nery dos Santos (UNEB- Seabra)
Amanda Maria Nascimento Gomes (UNEB- Seabra)
Amanda Chaves Alcântara (Estagiária – APIDIC)
Ana Maria Maciel (UNEB – Camaçari)
Antônio Carlos Monteiro Teixeira Sobrinho (Doutorando – UFBA)
Antônio Carlos de Oliveira Filho (Estagiário – APIDIC)
Carla Patrícia Bispo de Santana (UNEB – Alagoinhas)
Carlene Vieira Dourado (Mestranda Pós-Crítica UNEB)
Camila Vaz (Discente Direito – Campus I)
Camila Leite Oliver (UNEB- Seabra)
Claudia Madalena Feistauer (UNEB – Brumado)
Cléber Nogueira Aleluia (UNEB- Seabra)
Clodoaldo Silva da Anunciação (MP-BAHIA / UESC)
Daniela Galdino (UNEB – Brumado)
Eduardo Aires Santos (APIDIC-UNEB)
Edilson Félix Oliveira (C.A. Comunicação – DCHT-UNEB- XXIII)
Enio Saldanha de Azevedo (Estagiário – APIDIC)
Everton Carneiro (UNEB- Seabra)
Fábio Nogueira de Oliveira (UNEB)
Filismina Fernandes Saraiva (UNEB- Seabra)
Gilberto Nazareno Sobral (UNEB/PPGEL)
Gilmar Miranda Freire (Sintest – UNEB) Ícaro
Rebouças (DCE-UNEB)
Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho (UNEB)
Jamile Lessa (Professora SEC-Bahia)
Jaqueline Santana Machado (Técnica Uneb)
Jean Cleverson Simões Mutti Afonso Rego (Professor Substituto – UNEB)
Joabson Lima Figueiredo (UNEB -Irecê)
João Batista Castro Junior (UNEB – Brumado)
João Evangelista do Nascimento Neto (UNEB Santo Antônio de Jesus)
Jose Manuel Castrilon (UNEB – Brumado)
José Carlos Bastos
Josivaldo Pires (UNEB – Itaberaba)
Leonardo Rodrigues Teixeira (Técnico – UNEB- Seabra)
Lúcia Tavares Leiro (UNEB – DEDC)
Luciana Moreno (UNEB)
Maiara Macedo (Professora Município de Seabra)

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Marcelo Lemos (UNEB)


Maria Angélica Rocha Fernandes (UNEB -Brumado)
Maria Carollina Santos Carvalho (Bolsista IC –
UNEB) Marielson Carvalho (UNEB -Irecê)
Marilene Lima dos Santos (Mestranda Pós-Crítica UNEB)
Marinalva Lima dos Santos (Mestranda Pós-Crítica
UNEB) Marluce Macedo (PROAF-UNEB)
Michael Saldanha de Oliveira (D.A. Língua Inglesa – DCHT-UNEB- XXIII)
Nerivaldo Alves Araujo (UNEB)
Otávio Assis (UNEB- Ipiau)
Raphaella Silva Pereira de Oliveira (UNEB- Seabra)
Sergio Luiz Araujo de Jesus (APIDIC-UNEB)
Simone Ferreira de Souza Wanderley (UNEB)
Suely Santos Santana (UNEB – Santo Antônio de
Jesus) Tatiana Maria Le Fundes (UNEB)
Tatiane Aparecida Assis dos Santos (APIDIC-
UNEB) Tatiana Maria Lefundes de Souza
Vanessa Bastos Lima (UEPB)
Vivian Meira de Oliveira (UNEB – Brumado)
Yarda Jhordsne Silva Araújo (D.A. Língua Portuguesa – DCHT-UNEB- XXIII)
Wesley Correia (Ifba)
Williane Coroa (UNEB – Ipiau)
Wodisney Cordeiro (UNEB – Santo Antônio de Jesus)

COMITÊ CIENTÍFICO

Ricardo Tupiniquim Ramos (UNEB) Coordenação Geral


Acácio Almeida (UNILAB)
Andrea Betânia da Silva (UNEB)
Amarino Queiroz (UFRN)
Ana Rita Santiago (UFRB)
Antenor Rita Gomes (UNEB)
Carla Patrícia Bispo de Santana (UNEB/Pós-Crítica)
Cecília C. M. Soares (UNEB)
Claudia Madalena Feistauer ( UNEB – Brumado)
Claudio Cledson (UEFS)
Eduardo David Oliveira (UFBA)
Flávio Gonçalves dos Santos (UESC)
Gilberto Sobral (UNEB/PPGEL)
Iaci Maia Mata (UFBA)
Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho (UNEB)
Itamar Pereira de Aguiar (UESB)
Jean Adriano Barros (UFRB)
João Batista Castro Junior (UNEB – Brumado)
João Evangelista do Nascimento Neto (UNEB – Santo Antônio de Jesus)
Jose Manuel Castrilon (UNEB – Brumado)
José Ricardo Moreno (UNEB)
Josivaldo Pires (UNEB)
Kleyson Assis (UFRB)
Lucia Tavares Leiro (UNEB)
Luciana Moreno (UNEB)
Luis Flávio Godinho (UFRB)
Luiz Valverde (UNEB)
Marcos Botelho (UNEB)

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Maria de Fátima Ribeiro (UFBA)


Marilde Queiroz Guedes (UNEB)
Marluce Macedo (PROAF – UNEB)
Murilo da Costa Ferreira (UNEB)
Minervina Joselí Espíndola Reis (UNEB)
Nelma Arônia dos Santos (UNEB)
Nerivaldo Alves Araujo (UNEB)
Paulo Cézar Martins Borges (UNEB)
Rita Chaves (USP)
Rosemere Ferreira da Silva (UNEB)
Simone Caputo (USP)
Suely Santos Santana (UNEB – Santo Antônio de Jesus)
Tânia Celestino Macedo (USP)
Valquíria Claudete Machado Borba (UNEB)
Vivian Meira de Oliveira (UNEB – Brumado)

REVISÃO TÉCNICA Filismina Fernandes saraiva (UNEB)


Gildeci de Oliveira Leite (APIDIC-
UNEB)

DIGITAÇÃO
Todos os textos foram digitados por seus autores e autoras. As autoras e os autores
dos textos são os responsáveis por todas as informações contidas.

EDITORAÇÃO Madalena Pereira Leoni (Estagiária – APIDIC)

ARTE DA CAPA George Luís Cruz

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 21
Grupo de Trabalho Vozes negras nas literaturas de língua espanhola 22
Coordenação: Amarino Queiroz (UFRN), Liliam Ramos da Silva (UFRGS) e
Wodisney Cordeiro (UNEB).
Donato Ndongo- Bidyogo, Francisco Zamora Loboche Juan Tomás Ávila Laurel: 23
três vozes hispano-africanas da Guiné Equatorial.
Amarino Oliveira de Queiroz
Entre cruzes e silêncio, Annobón: metáfora de um povo esquecido 34
Wodisney Cordeiro dos Santos
Vozes negras na literatura cubana: representações da memória como exercício 45
de resistência
Eidson Miguel da Silva Marcos e Mariano Oliveira de Queiroz.
Grupo de Trabalho Diálogos entre África e o Brasil: imagens da infância e 54
da juventude na contemporaneidade
Coordenação: Mônica Menezes, Renata Nascimento, José Welton Ferreira
Junior
Impressões negras: diversidade cultural no espaço escolar 55
Taís Rocha Ribeiro
Infâncias negras brasileiras: uma leitura interseccional a partir do Copene 66
Flávio de Jesus Damião e Rosângela Costa Araújo
O lado negro da história: a representação de personagens negros na literatura 78
infantil e juvenil contemporânea no Brasil
Aline Cesar Carvalho e Mônica Menezes Santos.
Releituras de Lobato 88
Mônica de Menezes Santos
Grupo de Trabalho Pensando sobre gênero nas artes, na mídia e outros 100
discursos
Coordenação: Carla Patrícia Santana, Ivia Alves, Alvanita Almeida Santos
As poetas do recôncavo baiano: insubmissões às normas burguesas e 101
românticas
Ivia Alves
Da resistência e do gueto: a escrita poética de mulheres negras do bairro de 110
Sussua
Lissandra da França Ramo e Ívia Alves rana
Grupo de Trabalho Pensamento social negro brasileiro: por uma estética 117
da libertação
Coordenação: Eduardo Oliveira
Autores e autoras de axé 118
Gildeci de Oliveira Leite
Branquitude, branquidade e a identidade racial branca entre o pensamento 128
social sobre a questão do negro no Brasil.
Joyce Souza Lopes

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Contos populares de mestre Didi: acervo histórico cultural 138


Antonio Marcos dos Santos Cajé
Do cárcere à humanidade: por uma educação intercultural e antirracista no 149
sistema carcerário brasileiro.
Lidiane do Espírito Santo Ferreira de Jesus
Grupo de Trabalho Diversidade linguística e identidades baianas 158
Coordenação: Ricardo Tupiniquim Ramos, Vivian Meira, Celina Abade
A variação do tópico frasal na escrita do aluno surdo 159
Jaci Leal Pereira dos Santos e Carla Luzia Carneiro Borges
Beiru, uma marca identitária na toponímia soteropolitana 172
Rosane Cristina Prudente Rose Thioune
Conservadorismo e inovação na norma literária do modernismo: o corpus 181
amadiano e a mudança da gramática
Aparecida Pereira dos Santos, Maria Helena Gonçalves Oliveira, Ricardo
Tupiniquim Ramos
Mabaço: um estudo dialetólogico na Bahia 224
Lauro Ferreira dos Santos
O que nego tem para nos contar: historicidade, gramaticalização e carga 233
semântica do pronome nego no português do Brasil
Arivaldo Sacramento e Danniel Carvalho
Grupo de Trabalho História, cultura e itinerário biográficos: questão racial, 244
intelectuais e educadores baianos.
Coordenação: Josivaldo Pires Silene Arcanja Franco
Difusão social do conhecimento: uma vivência de valorização e preservação da 245
memória do artista Miguel Araújo.
Ana Carla Nunes e Kathia Marise Sales
Grupo de Trabalho Baianidades rasuradas. 255
Coordenação: Marcos Aurélio dos Santos Souza, Braulino Pereira de
Santana, Lídia Nunes Cunha
O controverso “ser baiano” presente em Bahia de Todos os Santos: guia de ruas 256
e mistérios, de Jorge Amado
Tatiane Almeida Ferreira
Poeta da Bahia: imagens da Bahia na poesia de Sosígenes Costa 267
Marcos Aurélio dos Santos Souza
Reminiscências da Mata Atlântica pelo fio memória: representações da natureza 276
em Corpo Vivo, de Adonias Filho
Manuel Barreto Júnior
Uma leitura mítica da Iararana de Sosígenes Costa 286
Mariana Barbosa
Grupo de Trabalho Culturas, territórios e infância. 296
Coordenação: Jaqueline Nascimento, Clarissa Braga

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A infância como instrumento de denúncia do processo de formação identitário 297


angolano
Ana Gonzaga
A vivência da cultura popular brasileira através de oficinas lúdicas: um olhar 305
sensível da Casa de Brincar Alecrim
Rafaela Souza Guimarães e Ana Carla Nunes Pereira
Contação de histórias afro-brasileiras com jogos improvisacionais: relato de 313
experiência com crianças
Larissa de Souza Reis
Mídia televisiva: um espaço de divulgação científica para criança? 319
Marizete Pinheiro de Oliveira
Grupo de Trabalho Análise do discurso: as diversas religiões na Bahia 327
Coordenação: Camila Leite Oliveira Carneiro, Everton Nery Carneiro, Jorge
Nery
A inclusividade do novo LOC da IEAB: Lex orandi, lex credendi, lex agendi 328
Adriano Portela
Aspectos da expressividade de seminaristas em situação de leitura oral 336
Érica Azevedo da Costa
O discurso da solidariedade na canção nova em vitória da conquista 349
Cláudia Madalena Feistauer
O discurso religioso nas prédicas de Antonio Conselheiro: uma análise a partir 356
dos pressupostos da ad francesa
Ilza Carla Reis de Oliveira
Teologia e cultura: uma conversa com Carvalhaes 369
Everton Nery Carneiro
Uma análise dos pontos de Preto Velho e orixá da umbanda 380
Leiliane Rodrigues de Araujo
Grupo de Trabalho A potência da multidão: diálogos entre os vetores da 440
narrativa contemporânea na literatura e no cinema brasileiro e/ ou africano
Coordenação: Vanessa Bastos Lima
Os cinemas africanos como produto das independências: a importância do filme 441
La Noire de... De Sembene Ousmane
Márcio Paim
Realismo literário e o “choque do real” na obra O Inferno de Patrícia Melo. 453
André Ângelo de Medeiros Araujo
Grupo de Trabalho Poéticas afro-brasileiras: literatura, corpo e música 465
Coordenação: Marielson Carvalho, Cristian Souza de Sales, Joabson Lima
Figueiro e Moisés Oliveira Alves
Africanidades e construções identitárias na invenção do popular em Ascenso 466
Ferreira
Liana Dantas de Medeiro
As contribuições de Oscar da Penha (o Batatinha) para o samba baiano 473
Oyama dos Santos Lopes

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Do Benim à Bahia: o atlântico afro-baiano de Angélique Kidjo 483


Marielson Carvalho
É pra descer quebrando: insurgência, pagode e negritude. 497
Ivanilde Guedes de Mattos
Navios negreiros: Solano Trindade, Castro Alves e o jogo da representação 510
Vitor Rafael Oliveira Alves
Quem precisa das baianidades? (reflexões sobre as construções identitárias da 524
Bahia)
Joabson Lima Figueiredo, Alvanita Almeida Santos
Vozes de intelectuais afro-caribenhas: Sobre Piel y Papel, de Mayra Santos 537
Febres.
Cristian Souza de Sales
Grupo de Trabalho Literatura e diversidade: o desvelar das identidades 550
negras e indígenas.
Coordenação: Izanete Marques Souza, Luís Henrique Alves Gomes e
Daniela Maria Barreto Martins
Afirmar pela diferença, (re)conhecer pela igualdade: a assinatura índigena na 551
literatura brasileira
Ana Claudia Pacheco de Andrade e Celeste Maria Pacheco de Andrade
A narrativa das contradições: uma análise do romance A Gloriosa Família, de 564
Pepetela
Vilma Santos da Paz
Literatura e diversidade: o desvelar das identidades negras e indígenas 573
Izanete Marques Souza, Luís Henrique Alves Gomes e Daniela Maria Barreto
Martins
Grupo de Trabalho Impactos da lei 10.639/03 no PNBE e mercado editorial 584
brasileiro.
Coordenação: Daniela Galdino
Lei 10.639/03: discursos da revista nova escola (2004-2014) 585
Adriana dos Santos
O que ainda precisa mudar? Doze anos da promulgação da lei 10.639/03 594
Jussara Oliveira de Souza
Grupo de Trabalho Múltiplos olhares do contemporâneo: fricções entre 602
literatura e outras artes.
Coordenação: Nerivaldo Alves Araújo, Andréa Batânia da Silva, João
Evanjelista do Nascimento Neto
A representação do anti-herói no livro e filme homônimos “Toda Nudez Será 603
Castigada”
Marcela Ferreira Lopes
Euno ritmo da pisadinha, entre giros e umbigadas: poética do corpo e 610
performance no samba de roda das margens do Velho Chico
Nerivaldo Alves Araújo
622

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Tradição encruzilhada: oralidade, cultura popular e candomblé


Mauren Pavão Przybylski e Leandro Alves de Araujo
Voz poética e experiência no documentário indígena. 630
Maures Pavão Przybylski, Francisco Gabriel Rêgo e Priscila Cardoso de Oliveira
Silva
Grupo de Trabalho Intelectuais negros e a produção de conhecimento no 642
Brasil
Coordenação: Rosemere Ferreira da Silva
A figura da negra no conto Um Especialista, de Lima Barreto 643
Maria Aparecida dos Santos Souza
A trajetória do movimento negro brasileiro: do pós abolição a 652
contemporaneidade
Lucas Lima de Andrade
Intelectuais afrobrasileiros: Luiz Gama na literatura do século XIX 660
Meila Oliveira Souza Lima
O texto literário afro-brasileiro no ensino fundamental: uma proposta de 668
intervenção pedagógica com a obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de
Jesus
Milena Paixão da Silva
Representação da identidade nacional no projeto musical do disco brasileirinho 680
de Maria Bethânia
Lucival Fraga dos Santos
Grupo de Trabalho Culturas, memórias e linguagens: a proteção jurídica 691
possível
Coordenação: João Batista de Castro Junior, Clodoaldo Silva Anunciação
O direito à memória do espaço urbano: uma análise da eficácia do tombamento 692
no centro Histórico de Salvador
Milena Guimarães Andrade Tanure
Probus: uma associação do sertão produtivo na cena da ação, pesquisa e 706
extensão universitárias
João Batista de Castro Junior e Caio Coêlho de Oliveira
Grupo de Trabalho Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, 722
Angola e Moçambique: narrativas literárias e históricas, tramas e temas de
nações, culturas e identidades.
Coordenação: Suely Santos Santana, Denilson Lessa dos Santos
Angola, Cabo-Verde e Moçambique: as narrativas de língua portuguesa da 723
coleção Autores Africanos da editora Ática
Clauber Ribeiro Cruz e Dr. Márcio Roberto Pereira
Angola em tempos de guerra na voz traumática de António Lobo Antunes 737
Romilton Batista de Oliveira e Edilene Dias Matos
As literaturas bissau-guineenses e o escritor Abdulai Sila no contexto das 750
literaturas africanas de língua portuguesa
Suely santos Santana

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As visões de estrelinho: imagens de Moçambique no conto o cego estrelinho de 765


mia couto
Odara Perazzo Rodrigues
Entre sonhos e ideologias, a pestana continua vigiando o olhar: Pepetela e sua 773
arte
Cibele Verranjo Correa da Silva
Literatura e questões identitárias em A palavra e os dias, de Vera Duarte 785
Processos de construção identitária em Terra Sonâmbula, de Mia Couto
Inara de Oliveira Rodrigues
Mergulhos no materno mar de Boaventura Cardoso: um olhar sociocultural sobre 799
Angola no pós-independência
Jorge Luiz Gomes Junior
Nós matamos o Cão-Tinhoso: texto colonial, discurso anticolonial 811
Vércia Gonçalves Conceição e Maria de Fátima Maia Ribeiro
O papel do intelectual cabo-verdiano pós-independente em o Meu Poeta, de 823
Germano Almeida
Mariana Andrade Gomes
Processos de construção identitária em Terra Sonâmbula de Mia Couto 834
Regina Costa Nunes
Retratos de Moçambique Pós-Guerra Civil (1977-1992) nos filmes de Licínio 844
Azevedo
Alex Santana França
Grupo de Trabalho Educação, línguas e linguagens pluriculturais 856
Coordenação: Abílio Manuel Marques de Mendonça, Rosângela Accioly
Lins Correia, Carla Santos Pinheiro, Mônica Corrêa Marapara
Akpalô: Compondo linguagens africano-brasileiras para o currículo da educação 857
infantil no município de Santo Amaro de Ipitanga
Rosângela Accioly Lins Correia
Contribuições da perspectiva africano-brasileira para a educação infantil 869
Carla Santos Pinheiro
Rádio comunitária: uma abordagem cultural e identitária 882
Carla Eliana da Silva Tanan
Grupo de Trabalho Escritas periféricas e (des)locamentos contemporâneos 894
Coordenação: Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho, Lílian Almeida,
Luciana Sacramento Moreno Gonçalves
Batalhas da literatura negro-brasileira 895
Sally Cheryl Inkpin
Dando a letra nas quebradas: representações da literatura periférica 907
contemporânea na obra literatura, pão e poesia, de Sérgio Vaz
Mércia de Lima Amorim
Cartografias da marginalidade nas obras Capitães da Areia, do brasileiro Jorge 917
Amado, e Marginais, do cabo-verdiano Evel Rocha
Érica Antunes Pereira

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Do silêncio colonial ao grito pós-colonial: a participação da mulher no mercado 932


editorial dos Palop
Pedro Manoel Monteiro
O fragmento na contemporaneidade: poesia e pensamento 945
Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho
Um modo de estar entre as ilhas e o cosmos: A poética de Filinto Elísio 957
Raquel Aparecida Dal Cortivo
Grupo de Trabalho Representações culturais do axé 966
Propositores: Antônio Carlos Sobrinho e Filismina Fernandes Saraiva
Entre Orixás e Babá-eguns: personagens de Vasconcelos Maia 967
Filismina Fernandes Saraiva
O candomblé para Jorge Amado 983
Antonio Carlos Sobrinho
Representações da identidade e cultura negra nas letras das músicas do bloco 991
afro Ilê Aiyê
Edmilson de Sena Morais
Grupo de Trabalho Alfabetização e elevação de escolaridade de pessoas 1011
jovens, adultas e idosas na Bahia: experiências exitosas
Coordenação: Francisca Elenir Alves
Cultura afro-brasileira e o projeto de regularização do fluxo escolar na 1012
escola municipal Brigadeiro Eduardo Gomes – Salvador/BA
Neise Mare de Souza Alves, Débora Barbosa da Silva, Maria das Graças
Guimarães
Grupo de Trabalho Arte, educação e terapia na Bahia: diálogos possíveis. 1025
Coordenação: Priscila Peixinho Fiorindo
Entre a Bahia e angola: a disputa pela capoeira em salvador na década de 1960 1026
Tauã Fernandes Junqueira
Oficina corpo lúdico 1035
Silvia de Paula Garcia
Os labirintos da escritura: uma leitura do romance No Inferno, de Arménio Vieira 1043
Vilma Aparecida Galhego
Grupo de Trabalho Educação literária afrodescendente 1054
Coordenação: Murilo da Costa Ferrera
Educação e relações étnico-raciais: as imagens de áfrica e os afrodescendentes 1055
David Alves Gomes
O PIBID como ferramenta para se refletir sobre posturas e discursos racistas na 1068
escola
Josenéia Silva Costa e Leandra dos Santos Silva
Grupo de Trabalho Gênero, raça/etnia, sexualidades e outros temas 1077
contemporâneos na docência: saberes, práticas e desafios
Coordenação: Clebemilton Nascimento
Educação e sexualidade como prática de empoderamento feminino: inserindo 1078
novas abordagens educativas para a promoção da saúde
Vanessa Nascimento Machado

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O ato de escrever e de se reescrever: em foco Raquel de Queiroz e Conceição 1087


Evaristo
Luane Tamires dos Santos Martins
Grupo de Trabalho Direito, literatura e relações raciais 1100
Coordenação: Ivana Silva Freitas, Samuel Santana Vida
O sistema jurídico e a negação do território negro 1101
Laís da Silva Avelar
Os “quartos de despejo” do estado democrático de direito: o trabalho doméstico 1113
e as marginalidades institucionais das relações trabalhistas no Brasil
Gabriela Batista Pires Ramos
Racismo científico: Institucionalização e seletividade do poder punitivo e as 1126
relações raciais no estado brasileiro
Jeferson Henrique dos Santos Conceição
Grupo de Trabalho Literaturas africanas pós-coloniais: estudo das 1136
dinâmicas do imaginário e de memória como instrumento de redescrição
identitária
Coordenação: Kleyson Assis e Jean-Paul D’Antony
Contornos identitários e pós-colonialismo no cinema o Ultimo voo do flamingo 1137
Jean Paul d’Antony Costa Silva
Diálogos literários: a pena é uma arma 1150
Cláudia Cristina de Oliveira
Entre pistas e xipocos: a varanda do frangipani de mia couto (a denúncia de um 1164
passado)
Regina Margaret Pereira
Literatura como política cultural: uma perspectiva neopragmática 1172
Kleyson Rosário Assis
Perfumes identitários e as sombras da memória em Um rio chamado tempo, 1181
uma casa chamada terra, de Mia Couto
Manuela Solange Santos de Jesus, Rosana dos Santos Soares, Filipe Araujo
dos Santos, Silvana Carvalho da Fonseca
Grupo de Trabalho Literatura, cinema e quadrinhos: construções de 1189
Bahias.
Coordenação: Marinalva Lima e Patrícia Kátia da Costa Pina
Jubiabás: a negra Bahia das páginas à tela 1190
Marinalva Lima dos Santos
“O que é que a Bahia tem”: a cidade da Bahia e a construção imagética do negro 1200
Marilene Lima dos Santos
Grupo de trabalho Brasil – África – MERCOSUL: direitos humanos 1213
emancipatórios, educação em direitos humanos, filosofia da libertação,
(de)colonialidade do pensamento e epistemologias do sul. Crítica à
ideologia da dominação e exclusão.
Coordenação: José Cláudio Rocha, Denise A. B. F. Rocha e Luís Carlos Rocha

16
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Brasil – África – MERCOSUL: direitos humanos emancipatórios, educação em 1214


direitos humanos, filosofia da libertação, (de)colonialidade do pensamento e
epistemologias do sul. Crítica a ideologia da dominação e exclusão
José Cláudio Rocha, Denise A.B.F. Rocha, Luiz Carlos Rocha
Direitos humanos, dignidade, democracia e educação no brasil 1226
Ana Maria Maciel Bittencourt Passos
Uma breve discussão sobre o ensino da história africana e cultura afro-brasileira 1234
a partir das práticas pedagógicas dos docentes de Alagoinhas-BA
Edite Nascimento Lopes
Grupo de Trabalho Salvador em discursos: entre a retórica e a análise do 1242
discurso
Coordenação: Gilberto Nazareno Telles Sobral
Itamar, gay, negro, estudante, assassinado em uma praça no centro de 1243
Salvador, certamente mais uma vítima do ódio aos homossexuais: o campo
grande e os discursos
Liliane Silva de Aquino
Marca, lugar e ethos: o processo de constituição do ethos discursivo da marca- 1252
lugar na comunicação publicitária da cidade de salvador
Nelson Soares
Ornatus vieiriano: entre o sentido verdadeiro das palavras 1265
Thomaz Heverton dos Santos Pereira
Grupo de Trabalho Cultura de tradição oral 1279
Coordenação: Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho
Cultura, literatura de cordel e as relações etnicorraciais através dos estudos 1280
culturais
Cláudia Zilmar da Silva Conceição
(en)cantos de trabalho no contexto contemporâneo 1292
Eliane Bispo de Almeida Souza e Silvane Santos Souza
Enleituramento: a manipulação dos dispositivos digitais no desenvolvimento do 1298
sujeito leitor
Silvane Santos Souza e Eliane Bispo de Almeida Souza
Narrativas orais num quilombo do sertão: identidade e cultura popular em Volta 1306
Grande-BA
Carlene Vieira Dourado
Nos braços de Nanã e Irôco: o tempo espiralar na fala de remanescentes 1314
Líbia Gertrudes de Melo
Grupo de Trabalho História e ficção em narrativas africanas 1332
Coordenação: Wesley Barbosa Correia, Maria Nazareth Soares da Fonseca e
Lívia Maria Natália de Souza
Análise da atuação feminina na guerra de independência de angola e no 1333
cangaço de Jequié, através da literatura
Kalyane Bárbara Oliveira Novaes e Samir Santana de Oliveira
As tramas históricas e literárias: a poética de Noémia de Sousa a partir da 1349
experiência colonial
Carla Maria Ferreira Nogueira

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Nação e encenação: os heróis, o mítico e o histórico na literatura de Boaventura 1355


Cardoso e de Mia Couto
Everton Fernando Micheletti
Subjetividades: gênero, literatura e história em changes 1364
Meyre Ivone Santana da Silva
Grupo de Trabalho Festas na Bahia de Todos os Santos 1372
Coordenação: Fátima Tavares, Francesca Bassi e Cleidiana Patricia Costa
Ramos
A festa do divino em Salvador: uma performance colonizadora? 1373
Viviane Paraguaçu Nunes
O olhar pós-panóptico do Dois de Julho: a cobertura da festa da Independência 1384
do Brasil na Bahia no telejornal Bahia Meio Dia, em Salvador
Anaelson Leandro de Sousa
Grupo de Trabalho A Bahia está em todo lugar – Dias Gomes e Jorge 1397
Amado: a baianidade no mundo
Coordenação: Maria Angélica Rocha Fernandes
A Bahia está em todo lugar –Dias Gomes e Jorge Amado- a baianidade no 1398
mundo.
Maria Angélica Rocha Fernandes
As baianidades na obra “Capitães de Areia” de Jorge Amado 1410
Adriana Mendes Andrade, Antonio Mauricio de Andrade Brito e Mônica Menezes
Grupo de Trabalho Baianidades, africanidades e outras latitudes. 1417
Coordenação: Joabson Lima Figueiredo
Avaliação do conhecimento nutricional em atletas de capoeira de Salvador-Bahia 1418
Mariana Pereira Santana Real e Nadja Gomes de Santana
Bahia e afrodescendentes versus hemoglobinopatias e/ou talassemias em 1430
heterozigoses – uma revisão de literatura
Maria de Fátima Brazil dos Santos Souto
Indígenas e negros: retratos do Brasil em crônicas coloniais 1442
Carla da Penha Bernardo
Presença do Black English em The Color Purple 1450
Joel Menezes Barreto Junior e Laura de Almeida
Grupo de Trabalho Literatura, educação, formação de identidade e 1458
combate ao racismo.
Coordenação: Domingos Oliveira de Sousa
A identidade do professor de língua portuguesa na pós-modernidade 1459
Felícia Dourado Gomes, Jônatas Nascimento de Brito, Jenivaldo Monteiro
Machado e Luiz Felippe Santos Perret Serpa
Acontece que são baianos: fotorreportagens de Pierre Verger e expressão 1472
gráfica na revista O Cruzeiro
Ronaldo dos Santos da Paixão
A Identidade em imagem: retratos da feira-livre de Coité-BA 1483
Moisés dos Santos Viana
Baianidades visuais: contribuição de artistas afro-brasileiros nas artes plásticas 1495
do Brasil
Nelma Cristina Silva Barbosa de Mattos
Cuba Bahia 1507

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Regiane de Souza Costa, Ronaldo dos Santos da Paixão e Edson Dias Ferreira

Ditos populares – uma experiência na Escola Pedro Paranhos 1514


Idália Maria Tibiriçá Argolo e Carolina Tibiriçá Argolo dos Santos Fundação
Do morro ao asfalto ou como o samba saiu dos terreiros para entrar no palácio 1526
Paulo Roberto Alves dos Santos
Formação de professores e ensino de literaturas africanas de língua portuguesa: 1538
um currículo possível
Eliane Gonçalves da Costa
“L’etudiant noir” a voz da negritude 1545
Antonio Marcos de Almeida Ribeiro
Monteiro lobato: ideologia, racismo e discurso em duas narrativas 1557
Ítila Raiane da Silva e Cristian Souza de Sales
Grupo de Trabalho Brasil e países da África: parceria sul-sul para a 1566
cooperação e para o desenvolvimento.
Coordenação: Acácio Sidinei Almeida Santos, Juvenal Carvalho, Wilson
Roberto de Mattos
Cooperação Brasil-Guiné Bissau na educação superior no período de 2003- 1567
2013: o caso do programa estudante-convênio de graduação (PEC-g)
Lorena de Lima Marques
Imagens e elementos simbólicos “africanos” nas comunidades negras rurais 1579
brasileiras contemporâneas: um olhar sobre o “Quilombo dos Vicentes”
Itamara Silva Damázio
Grupo de Trabalho Sons, versos e sentidos na produção literária África- 1590
Bahia.
Coordenação: Rafael Alexandre Gomes dos Prazeres, Lílian Lima Gonçalves
dos Prazeres
Identidade e ancestralidade africanas na música Mandume, do rapper brasileiro 1591
Emicida
Tamires de Lima Sousa Santos e Céres Marisa Silva dos Santos
Quilombos literários: fronteiras negras de resistências 1602
Maria Gabriela Batista Neiva de Menezes
Sons, versos e sentidos na poesia de Ana Paula Tavares 1612
Lílian Lima Gonçalves dos Prazeres e Rafael Alexandre Gomes dos Prazeres
Grupo de Trabalho Crianças, infâncias, linguagens e interseccionalidade 1622
Coordenação: Flávia de Jesus Damião e Ana Lúcia Soares da Conceição
Araújo
A aplicação do RPG no ensino o ideal de escola; brincar pelo brincar 1623
Ana Carla
Infância enjeitada na salvador do século XIX: a santa casa de misericórdia da 1631
Bahia e a educação dos expostos
Ana Paula de Souza
Infâncias, crianças e culturas: a ginga da (des) construção na roda da sociedade 1639
Ana Lúcia Soares da Conceição Araújo
“Para a infância negra, construiremos um mundo diferente”: em que a noção de 1651
raça pode contribuir para compreendermos a(s) infância(s) brasileira(s)?

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Míghian Danae Ferreira Nunes

Grupo de Trabalho As possibilidades da historiografia literária pensada por 1666


e para escritores baianos
Coordenação: Thiago Martins Prado
Gilfrancisco: um índio baiano sacudindo a historiografia literária sergipana 1667
Thiago Martins Prado
Grupo de Trabalho Educação e diversidade: os desafios da 1678
interseccionalidade
Coordenação: Ana Lúcia Gomes da Silva, Izanete Marques Souza e Roberto
Santos Teixeira Filho
Educação e diversidade: os desafios das interseccionalidades. 1679
Ana Lúcia Gomes da Silva, Izanete Marques Souza e Roberto Santos Teixeira
Filho
Educação e diversidade: valorizando as representações culturais locais como 1690
ferramenta educacional em Cachoeira-BA
Tamires Conceição Costa
Vozes e contra-vozes de um discurso universitário lusófono: o caso da Unilab 1699
Francisca Mônica Rodrigues de Lima
Grupo de Trabalho EJA e formação de professores 1708
Coordenação: Tânia Regina Dantas
Leitura e escrita na EJA: uma abordagem ambiental 1709
Yara da Paixão Ferreira
Grupo de Trabalho Negras-femininas grafias: insubordinadas e 1716
insubmissas narrativas.
Coordenação: Hildalia Fernandes Cunha Cordeiro, Júlio Cézar Barbosa e Carla
Maria Ferreira Nogueira
Encontro de Marias: vozes de mulheres negras e suas potencialidades 1717
Gislene Alves 0 Silva e Sheila Rodrigues dos Santos
Grupo de Trabalho Psicologia e relações raciais: baianidade, afro- 1726
brasilidades e outros pertencimentos em favor da saúde psíquica.
Coordenação: Clélia R. S. Prestes, Carla França e Anni de Novais Carneiro
Psicologia e relações raciais: baianidade, afro-brasilidades e outros 1727
pertencimentos em favor da saúde psiquica.
Terezinha Conceição dos Santos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

APRESENTAÇÃO

Prezadas Leitoras,
Prezados Leitores,

Usando o inescapável clichê de momentos como esses, declaro que tenho o prazer
de apresentar os Anais do II SINBAIANIDADE (Simpósio Internacional de Baianidade) e II
CILLAA (Congresso Internacional de Língua e literaturas Africanas e Afro-Brasilidades).
Contudo, como não seria prazeroso? Se não fosse prazeroso, provavelmente, não
faríamos eventos como esses, alcançando números mais expressivos a cada edição.
Foram 12 (doze) mesas, incluindo a conferência Magna com Manuel Rui e Martinho
da Vila. Tivemos participação de 08 (oito) países de 03 (três) continentes. Do Brasil, 22
estados participaram, discutindo Áfricas e Bahias em 58 (cinquenta e oito) grupos de
trabalhos. Ao todo foram 93 (noventa e três) instituições de ensino superior com membros
de suas comunidades inscritos em nossos eventos. Somando a participantes oriundos de
instituições do ensino básico, dentre outros que não informaram a origem, tivemos mais de
2.000 (dois mil) participantes.
Como dissemos, números expressivos, mas não apenas do ponto de vista
quantitativo. Em nosso Caderno de Resumos tivemos 424 (quatrocentos e vinte e quatro)
textos publicados, destes 291 (duzentos e noventa e um) comunicações orais e 158 (cento
e cinquenta e oito) banners.
Desta forma, é de fato com enorme prazer que apresento os Anais do II
SINBAIANIDADE e II CILAA.

Lauro de Freitas, 01 de junho de 2016.

Gildeci de Oliveira Leite

21
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: VOZES NEGRAS NAS LITERATURAS DE LÍNGUA


ESPANHOLA

PROPOSITORES: AMARINO QUEIROZ (UFRN), LILIAM RAMOS DA SILVA (UFRGS) E


WODISNEY CORDEIRO (UNEB)

Ementa:

Os estudos africanistas realizados no Brasil encontram algumas lacunas no que diz

respeito ao registro e à apreciação dos fenômenos literários e culturais temáticos

produzidos em língua espanhola na África e sua diáspora nas Américas, bem como a partir

do próprio território peninsular espanhol. As tentativas de fortalecimento de um diálogo Sul-


Sul cada vez mais afinado com demandas e particularidades literárias e culturais afro-

ibero-americanas se colocam, portanto, como um desafio crescente e uma necessidade

também sob a perspectiva da crítica acadêmica brasileira na área de Letras. Neste sentido,

o presente grupo de trabalho pretende ampliar o debate iniciado em torno da questão,

trazendo visibilidade para autoras e autores cuja produção oral e/ou escrita em língua

espanhola esteja compreendida no espaço afro-ibero-americano. Para tanto, serão

recortadas representações literárias e culturais negras nas literaturas afro-hispânicas,

evidenciando ainda o protagonismo autoral de algumas de suas vozes.

22
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

DONATO NDONGO- BIDYOGO, FRANCISCO ZAMORA LOBOCHE JUAN TOMÁS


ÁVILA LAUREL:
TRÊS VOZES HISPANO-AFRICANAS DA GUINÉ EQUATORIAL

AMARINO OLIVEIRA DE QUEIROZ (UFRN)

Em 13 de julho de 2007, a República da Guiné Equatorial decretou o idioma


português como sua terceira língua oficial, ao lado do espanhol e do francês, cumprindo
protocolarmente parte das exigências feitas pela Comunidade dos Países de Língua Oficial
Portuguesa frente ao movimento pela adesão permanente do país ao grupo. Ainda que
tenha alcançado o intento no ano de 2014, tal decisão foi recebida com bastante reserva
pela comunidade lusófona internacional devido à sua suposta legitimidade. Pese aos laços
que unem a Guiné Equatorial à antiga África colonial ibérica - invadida que foi pelos
navegadores portugueses e, após algumas negociações entre as partes, ocupada e
explorada pelos colonizadores espanhóis - para muitos observadores políticos o episódio
revelaria uma manobra de motivação meramente econômica. Esta necessidade de
oficialização da língua portuguesa teria sido desencadeada a reboque da descoberta de
grandes jazidas de petróleo ao longo de todo o Golfo da Guiné, moeda de troca que
atrairia os interesses comerciais de vários Estados investidores, dentre eles o Brasil, país
que, coincidentemente ou não, promoveu no ano de 2010 a primeira visita oficial de um
Chefe de Estado àquele território.

Vivendo sob um regime político que se autoproclama democrático, há mais de trinta


anos a Guiné Equatorial é conduzida pelo mesmo mandatário, Teodoro Obiang, graças a
um golpe militar perpetrado contra a ditadura que ali se instalara poucos meses após a sua
independência política da Espanha, decretada em 12 de outubro de 1968. Tendo o
castelhano como primeira língua oficial, secundado pelo francês e o português, em
realidade a Guiné Equatorial configura um intricado mosaico lingüístico onde convivem
diversos idiomas autóctones, a exemplo daqueles utilizados pelos povos bubi, combe, bisio
e fang, idiomas da família lingüística bantu, bem como o anobonês, ou fa d´ambo, crioulo
de base portuguesa falado na ilha de Ano Bom. Tal evidência constituiu outro argumento

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

utilizado para a adesão da Guiné Equatorial à Comunidade dos Países de Língua Oficial
Portuguesa, por representar um registro vivo da ocupação lusitana naquele território.

Por volta dos anos 40 do século passado, a produção literária escrita em castelhano
a partir da Guiné Equatorial passaria a encontrar maior representatividade, revelando a
presença mais expressiva de escritores locais na imprensa colonial e dando
prosseguimento à investida iniciada em torno de 1901, com o aparecimento do primeiro
jornal publicado na cidade de Santa Isabel, atual Malabo, capital do país. Em 1947 é
aberto aos autores nativos um pequeno espaço na revista católica La Guinea Española, de
fortes tintas colonialistas, com o propósito de difundir e preservar os contos, as fábulas e
as lendas da tradição autóctone. Mbaré Ngom (1993) observa que, por trás desta atitude,
se ocultava outro objetivo:

valerse de los nativos, alumnos de las misiones católicas y seminaristas em su


mayoría, para obtener datos de primera mano sobre las costumbres de los distintos
pueblos que habitaban la colonia y, de ese modo, facilitar La «acción colonial y
civilizadora» de España. Además de la utilización de la escritura para traducir el
alma y la mentalidad de los nativos, se trataba más que nada, por lo menos
inicialmente, de una operación de recolección, transcripción y traducción al
castellano de la producción literaria tradicional.

En este sentido, los propios «autores» y actores eran meras correas de transmisión.
Sin embargo, la interacción a nivel de los «intermediarios» o «autores» de dos
situaciones culturales marcadas, la primera por la oralidad y la segunda por la
escritura con sus exigencias formales, dio lugar a una simbiosis. (NGOM, 1993, p.
412)

Por ironia, assevera Ngom, a estratégia missionária desencadeou um efeito oposto,


uma vez que o processo de mera recolha, tradução e transcrição desses materiais foi
paulatinamente evoluindo pela incorporação de formas mais individualizadas de
manipulação. Munindo-se da liberdade de interpretação e criação características dos
escritores, estes novos autores acabariam por promover, também a partir do registro
escrito em castelhano, uma reelaboração estética dos relatos tradicionais recuperados pela
memória e redimensionados pela imaginação.
A produção oral encontra, especificamente dentro da Guiné Equatorial, uma dupla
realidade onde aparece, por um lado, a tradução ao espanhol e o reconto de narrativas
tradicionais e, por outro, o conjunto constituído por essas narrativas originais, os ditados,
os provérbios e as canções em línguas locais. Neste sentido, vale ressaltar que é
crescente o esforço de autores como Jacint Creus, Nánãy-Menemôl Lêdjam, José Elá ou
Justo Bolekia Boleká no registro de estudos relacionados com outras criações produzidas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

nas línguas bantas faladas no país, bem como em língua crioula anobonesa. Esse caráter
híbrido flagrado através das expressões literárias guinéu-equatorianas alimenta também as
relações que envolvem, ao mesmo tempo, e numa ordem bastante peculiar, a relação
dialógica entre o oral e o escrito, o tradicional e o contemporâneo, o ibérico e o africano.
Tal perspectiva se faz presente em alguns fragmentos literários de autores coetâneos do
país, a exemplo de Donato Ndongo-Bidyogo, Francisco “Paco” Zamora Loboch e Juan
Tomás Ávila Laurel, cujos textos, lamentavelmente, ainda não encontraram tradução para
o português. Os três autores guardam outras características em comum no tocante à
criação literária, cujo alinhamento político deflagra uma recorrente tematização da memória
individual e coletiva, a experiência do exílio e a opressão perpetrada pelo regime autoritário
que assola o país.

De origem anobonesa, mas nascido em Malabo no ano de 1966, o romancista,


poeta, articulista, dramaturgo e ensaísta Juan Tomás Ávila Laurel é considerado um dos
mais representativos nomes da atual literatura guinéu-equatoriana. Ferrenho opositor ao
regime ditatorial de Teodoro Obiang, Ávila Laurel tem sua trajetória pessoal marcada por
constantes idas e vindas ao país, censura, repressão, limitações diversas e até greve de
fome. Através de sua já extensa e diversificada obra - que vai do romance ao poema, do
conto ao teatro, dos ensaios críticos aos artigos de opinião, Juan Tomás Ávila Laurel
investe numa estética de resistência frente aos efeitos negativos da globalização naquele
contexto em particular, não deixando de se preocupar com as projeções dessa realidade
em termos mundiais. A simbologia historiográfica, a modernidade, a opressão econômica,
a criminalidade, os efeitos da intervenção neocolonialista das potências estrangeiras no
atual cenário da Guiné Equatorial constituem alguns dos elementos recorrentes tanto em
seu universo poético quanto em sua produção ficcional. Indagado sobre uma identidade
híbrida hispano-africana, Ávila Laurel declararia que

para mí es más importante ser hombre, ser persona; creo que ser africano es
circunstancial. Lo que pasa es que mundialmente ser africano significa asumir y
enfrentarse a los problemas del subdesarrollo, de la marginación, de la pobreza.
Entonces te das cuenta de que cuando empiezas a hablar estás obligado a hacerlo
sobre tu realidad. Ser africano, pues, no me determina, pero me condiciona. Me
considero africano, pero Guinea Ecuatorial es un país con muchas tradiciones
1
hispanas y eso hace que se sienta muy fuerte lo español.

1
Entrevista completa no número 16 da revista espanhola “Espéculo”, nov - 2000 – dez 2001, disponível em:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero16/jtavila.html

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O olhar vigilante e crítico do Juan Tomás Ávila Laurel escritor é assimilado com
maior frequência através dos textos em prosa que tem publicado nos últimos anos, mas
encontra paralelo em seu enfrentamento direto ao regime político da Guiné Equatorial,
pelos constantes artigos de opinião publicados na imprensa internacional e pela profusão
de conferências que tem proferido, como convidado, em universidades e eventos culturais
ao redor do mundo. Prolífico e polifacético autor, seus pensamento tem encontrado
extraordinário alcance no meio virtual através dos ensaios e artigos de opinião que publica
regularmente em blogs como o “Malabo”, componente da revista digital FronteraD, e
mesmo através do uso das redes sociais. Essa repercussão vem sendo avaliada de perto
por estudiosos como Elisa Rizo, crítica literária e editora de uma antologia que contempla
parte da obra poética, narrativa, teatral e ensaística do escritor. Para Rizo, a escrita de
Juan Tomás Ávila Laurel
cruza conceptualmente distintas geografías para mirar com ojo crítico la
epistemologia occidental y sus repercusiones en África y en otros sures. La
literatura de Ávila Laurel, aunque se ha distinguido por el despertar de la conciencia
cívica de su país, también deja asomar un filón transnacional que enfatiza, en forma
simultánea, la circunstancia local de Guinea Ecuatorial y los mecanismos globales
que conectan a África con otras regiones del mundo. (RIZO, 2012, p. 9)

Contemporâneo de uma geração que cresceu em plena vigência do regime ditatorial


guinéu-equatoriano, experimentando o violento processo de censura institucionalizado e o
conseqüente apagamento de importantes registros da História nacional, os textos de Juan
Tomás Ávila Laurel ajudam, pois, a construir outras interpretações históricas da realidade
guinéu-equatoriana e mundial, configurando um espaço de debate onde a voz da
coletividade silenciada encontra significativo protagonismo.

Os chamados anos de silêncio que acompanharam o período mais sanguinolento da


ditadura veriam surgir, no entanto, algumas obras literárias no exílio, abrindo espaço para
um momento de ruptura que por sua vez daria lugar a uma fase mais ascendente: nela
revelar-se-iam autores como Donato Ndongo-Bidyogo e Francisco “Paco” Zamora Loboch.
Radicado na Espanha, para onde se havia transferido com o objetivo de realizar estudos
universitários ainda durante o período colonial, mas impedido de retornar à terra natal por
razões políticas, o poeta, romancista, compositor, jornalista, músico e ensaísta Francisco
Zamora Loborch apresenta como uma de suas principais características a condição de
exilado involuntário. É certo que o impasse causado por tal situação lhe marcaria
definitivamente a vida pessoal, mas é igualmente verdadeiro que este mesmo problema se
converteria, ao longo dos anos, num importante elemento mobilizador de sua força criativa

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

através da militância política, jornalística, musical e literária, distribuída em registros como


a prosa ensaística encontrada em Cómo ser negro y no morir en Aravaca, de 1994, por
exemplo, onde se detém sobre um episódio real envolvendo o assassinato por racismo de
um imigrante na Espanha.

Já em Memoria de laberintos, livro de poesias publicado em 1997, movido por forte


influxo lírico, Zamora Loboch evoca a infância e a primeira juventude vividas em Malabo,
os conflitos do exílio experimentado pela população guinéu-equatoriana chegada à
Espanha, o choque cultural advindo dessa experiência e os conseqüentes traumas
identitários. As marcas de sua identidade híbrida hispano-guinéu-equatoriana, dentro de
uma realidade hispânica peninsular, a condição de exilado involuntário e a reconstrução da
memória constituem, por excelência, os fios condutores dessa coleção de poemas. Filho
de pai poeta, o exilado Francisco Zamora Loboch encontraria, particularmente no trabalho
com a memória, não apenas o agenciamento de uma consciência voltada para a
identidade cultural dividida entre o hispânico e o africano: nele também se definiria um
expressivo recurso para a elaboração e a expressão de seu próprio universo poético.
Segundo Juan Antonio de Urda Anguita, o trabalho mnemônico na poesia de Francisco
Zamora

se hace evidente en su esfuerzo por reconstruir un pasado que ya vive solo en su


memoria. Pero esa labor es siempre complicada. En su caso él ni siquiera conoció
su país como entidad independiente, así que la misma identidad nacional tiene que
ser inventada en sus versos. Además, Guinea Ecuatorial cae en manos de una
dictadura que manipula a su conveniência los resortes de la cultura nacional.
Seyhan señala que en esos casos El autor a menudo se esfuerza en reclamar y
preservar legados culturales destruidos en sus países por los regímenes opresivos.
Y todos esos empeños están presentes en la obra poética de Francisco Zamora.

Invirtiendo el título de su poemario, jugando con un espejo verbal, la Memoria de


laberintos se transforma en el laberinto de la memoria, un lugar ya inexistente en el
que, no obstante, es muy fácil perderse. Porque no solo es su propio pasado íntimo,
individual o privado el que surge entre los versos, sino al mismo tiempo toda una
nación, tal y como Zamora La recuerda y la recrea. (ANGUITA, 2005, pp. 3-4).

Os textos apresentados em Memoria de laberintos estão impregnados, como


dissemos, de recordações da infância e da primeira juventude do poeta, emergentes de um
reencontro com o próprio passado. Apesar deste aparente centramento em um passado
particular, ou um passado que de certa maneira tenha interferido sobre sua vida ou sobre
sua percepção individual do mundo, o pretérito não se configura como o tempo verbal
predominante em seu discurso poético, direcionado que está esse trabalho memorialista

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

para uma reinvenção ficcional dos fatos e sua projeção no presente e no futuro. A obra de
Francisco Zamora Loboch, prossegue Juan Antonio de Urda Anguita,

pertenece a dos mundos, incluso más de dos, porque la influencia anglosajona se


filtra también en sus poemas, producto de la globalización cultural. Su voz es
híbrida, imbuida por todos esos mundos. Esto se manifiesta más claramente en
Cómo ser negro y no morir en Aravaca, donde sirve a su propósito de sacudir las
conciencias españolas, no a través de un discurso exclusivamente guineano, sino
mediante una voz pan-nacional que sólo marca el hecho de ser negro. Pero
también en su poesía, porque, a pesar de que lo parece en una primera lectura, no
es uma reconstrucción de Guinea, sino la recreación de unos recuerdos en los que
se mezclan lo guineano y lo colonial español junto a un número de influencias
anglosajonas. Son recuerdos, sí, pero los recuerdos híbridos de un ser humano
complejo, fruto del cruce y el choque de las diferentes culturas entre las que ha
trascurrido su existencia. (ANGUITA, 2005, pp.10-11).

Tal como percebemos em Juan Tomás Ávila Laurel, a experiência do exílio e o


trabalho com a memória constituem algumas das características comuns às obras
assinadas por Francisco Zamora Loboch e Donato Ndongo-Bidyogo. Nascido na Guiné
Equatorial em 1950 e igualmente impedido de regressar a seu país por razões políticas, o
também historiador e jornalista Donato Ndongo-Bidyogo revelou-se um escritor bastante
prolífico, publicando diversos artigos, ensaios e livros dedicados a temas de interesse
histórico, político e literário, além de enveredar pela ficção, notadamente o romance. Foi o
autor da primeira antologia da literatura guinéu-equatoriana, levada ao público espanhol
somente no início da década de 80 do século passado, pela qual arrebatou uma coleção
de elogios e críticas. Acusado por seus detratores de estar inventando uma literatura
escrita inexistente, em balanço realizado cerca de vinte e dois anos após esta primeira
edição, Ndongo-Bidyogo afirmou categoricamente que o livro

fue tan novedoso que los medios culturales españoles lo acogieron con la
indiferencia de la incredulidad, aunque, en rigor, no iba dirigido fundamentalmente a
ellos, sino a mis propios compatriotas. (...) Cumplido este deber de justicia,
permítanme decir que ese libro pionero cumplió sobradamente sus objetivos, el
primero de los cuales era, claro está, dar a conocer las por entonces escasas
manifestaciones literarias de mi país, lo cual permitía insertarlo definitivamente
entre los países hispánicos, conservando plenamente su peculiaridad afrobantú.
Dicho de otra manera, y sin por ello menospreciar la oralidad de la que somos los
escritores africanos claramente herederos, quise situar a Guinea Ecuatorial dentro
del marco de la modernidad cultural, pues habíamos abandonado, o estábamos
alejándonos paulatinamente, de los modos y modelos ancestrales para adecuarnos
a nuevas formas de creación y de expresión cultural.

Acabo de afirmar que el escritor africano actual es el heredero genuino de los


narradores de la tradición oral, de los griots, y esa era, efectivamente, otra de mis
propuestas esenciales: puesto que, por una serie de circunstancias, las culturas
tradicionales de los pueblos guineanos ya no podían circunscribirse fundamental y
exclusivamente a sus formas precoloniales, era obligado adecuar nuestra creación

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

a los tiempos nuevos, modernizando al mismo tiempo tanto los contenidos como los
modos de expresión, para romper el círculo cerrado en que podríamos haber
quedado atrapados si nos conformábamos con los caminos trillados de la tradición,
renunciando a la tarea de acometer las transformaciones y resituar nuestras
culturas, para que fueran acordes con las exigencias de nuestra realidad
presente.(NDONGO-BIDYOGO, 2006, pp. 1-2).

A publicação desta primeira coleção de textos poéticos e narrativos da literatura


nacional representaria, ainda em palavras de Ndongo-Bidyogo, a afirmação de que, por
não rechaçar os aportes essenciais de outras civilizações como a técnica, a escritura e a
língua, a Guiné Equatorial, pelo contrário, podia demonstrar que não apenas estava
incorporando positivamente estas contribuições, mas também as disponibilizava em seu
próprio benefício: vertendo-as em instrumentos de liberação e de projeção rumo à
diversalidade.

Dentre as obras ficcionais de Donato Ndongo-Bidyogo ganha destaque a


trilogia romanesca intitulada Los hijos de la tribu, cuja estruturação segue os ritmos e as
formas narrativas da tradição oral africana, apresentando uma visão sócio-histórica da
realidade guinéu-equatoriana através do período colonial, passando pelo processo da
independência, a subseqüente experiência da ditadura nos anos 70 e chega até a década
dos 90 do século passado. Em palavras de Jorge Salvo (2003, pp. 45-49), o romance Las
tinieblas de tu memoria negra se apresenta na forma de um racconto, ou narração através
da memória do personagem, do conflito que se desenvolve em sua consciência pelo
embate entre a fé cristã e os valores religiosos bantos. Metaforiza-se, desta forma, o
caráter plural que vai formatar a identidade cultural dos povos colonizados, uma vez que
este narrador está também consciente da inevitabilidade da europeização da cultura e da
sociedade. A questão reside, portanto, em como reciclar esses dois legados culturais,
avançando no sentido da construção e afirmação positiva de uma identidade híbrida.
Conduzido pelo fio das lembranças e da imaginação, essa narrativa de Donato Ndongo-
Bidyogo
tiene como objetivo central cumplir con su función social un poco diferente: más que
la de educar, es la de escribir la historia de África. El escritor, el novelista, al igual
que el tradicional story-teller o griot, cumple la función de recapitular la historia
antigua y de agregar la historia recente de manera de acumular el relato histórico
de la coletividad. Es en este marco que la novela de Ndongo (...) se adentra en el
nuevo mundo de la novela africana, signada por el tema postcolonial (SALVO,
2003, pp. 117),

que, como sabemos, põe em pauta a busca de respostas através de uma cada vez maior
diversidade de falas. As outras duas obras que compõem a trilogia são Los poderes de la

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tempestad e El Metro, colecionando as memórias, conflitos e experiências decorrentes


desses trânsitos culturais, até a década de 90, igualmente inéditas em língua portuguesa
até o momento.
Se comparado ao percurso histórico de outras literaturas africanas produzidas em
línguas europeias, o exercício ficcional em prosa configura um aspecto diferenciador
relevante na produção hispano-negro-africana da Guiné Equatorial. Ao contrário de São
Tomé e Príncipe, da Guiné-Bissau ou dos países francófonos, por exemplo, a literatura
escrita ali produzida em espanhol encontrou sua estreia no conto, seguido de perto pelo
romance, sendo que a expressão poética tomaria maior vulto somente a partir dos anos 60
do século XX. Em 1973, através de seu conto “O sonho”, Donato Ndongo-Bydiogo já se
debruçava tematicamente sobre o processo migratório africano que continua ceifando
centenas de vidas humanas na aventura pelo oceano Atlântico, rumo ao arquipélago das
Canárias, ou na travessia do mar Mediterrâneo, rumo ao continente europeu, antecipando
uma discussão que ele próprio retomaria, mais tarde, em seus romances. Tal iniciativa por
si só alimentaria possíveis olhares em torno das relações entre Literatura e História, na
condição de espaços suplementares a uma reinterpretação de fatos do passado que,
lamentavelmente, se repetem no presente. Conforme assinala o crítico Mbaré Ngom,
En «El sueño», de Ndongo-Bidyogo, la historia transcurre en parte en Senegal. En
este relato, el desplazamiento viene motivado por las precarias condiciones
sociales y económicas en las que están sumidas la mayoría de los países del África
independiente y cuyas víctimas suelen ser los jóvenes al no encontrar su lugar en la
construcción del Proyecto Nacional. Trata, pues, de un tema candente, vigente hoy
más que nunca, que afecta tanto a los países africanos como a Europa: la masiva
inmigración clandestina de la juventud africana hacia la Europa de la reputada
opulencia. (NGOM, 2010, p. 415)

Em contrapartida, diferentemente das investidas literárias anticolonialistas que


tiveram lugar nos antigos territórios ultramarinos anglófonos, francófonos e lusófonos, a
produção colonial guinéu-equatoriana não foi inicialmente marcada pelo registro de uma
literatura de resistência, na qual a criação literária e a militância político-social
caminhassem estreitamente relacionadas. Uma postura reivindicatória e contrária aos
rumos políticos do país foi assumida, porém, por parte da grande maioria de seus autores
e autoras justamente a partir da etapa posterior à independência, com a subseqüente
experiência ditatorial, momento em que se enquadrariam cronologicamente Donato
Ndongo-Bydiogo, Francisco Zamora Loboch e, um pouco mais tarde, Juan Tomás Ávila
Laurel. Um poema deste último escritor, aliás, presente no livro intitulado Historia íntima de
la humanidad (1999), ilustra de maneira bastante singular a elaboração de um discurso

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reivindicatório frente à censura, à repressão, às injustiças sociais e ao silenciamento


imposto aos concidadãos guinéu-equatorianos pelo regime autoritário de Teodoro Obiang:

Un minuto de silencio/ vale más que un siglo/ de aplausos./ Silencio./


Cierras los ojos y ante ti vês/ pasar siglos de historia/ cargados de bromas/ que los
hombres hicieron./ Unos que pasaron por reyes infelices,/ otros por felices tenderos,
todos exhiben la inocente tristeza/ de hombres que no merecen lo que tuvieron./
Cierras los ojos y con ello comprendes/ que la historia sólo pretende una cosa: /Aún
no sea fácil tarea,/dejar al culpado por inocente/ y sin pecado al que tuvo/ una
cadena de errores./ Pero a los buenos se les entierran vivos/ para que no pequen.
2
(LAUREL in: “Silencio, silencio”)

Esta atitude permanece até os dias atuais, na forma de uma expressão literária
claramente ideologizada e vigilante onde repercute, de forma bastante clara, o
compromisso efetivo que muitos dos escritores locais assumiram para com o seu país,
sobretudo após a ruptura política, o banimento e o exílio.

Não obstante algumas manifestações em crioulo anobonês - e apesar da


relativamente recente co-oficialização do português, ainda não existem registros de textos
literários originalmente escritos em nossa língua a partir da Guiné Equatorial. Aos nomes
anteriormente referidos, nas últimas décadas vieram se somando a essa crescente escrita
literária em castelhano Raquel Ilonbé, María Nsúe, Ciriaco Bokesa, Jerónimo Rope, Ana
Lourdes Sohora, Juan Manuel Jones, Remei Sipi, Gerardo Behori, María Caridad Riloha,
Joaquín Mbomio, Guillermina Mekuy, Maximiliano Nkogo, Mercedes Jora, Justo Bolekia,
Paloma Loribo, José Siale ou Melibea Obono. Estes são apenas alguns nomes cuja
trajetória literária reflete também um labor aproximativo entre os elementos bantos e
hispânicos que compõem o encontro do verbo com a palavra escrita mediado pela
memória, num esforço constante de tentar preencher, também através do contributo
literário, as lacunas existentes na discussão em torno de uma verdade histórica única.

É nesta direção, pois, que se vem formatando significativa amostra de sua literatura
contemporânea em espanhol, procedimento que, já o sabemos, alinha a experiência
desenvolvida por Donato Ndongo-Bidyogo, Francisco Zamora Locboch e Juan Tomás Ávila
Laurel a grande parte daquela produzida em outros países africanos na
contemporaneidade, colocando em particular relevo a inserção estética e política das letras

2
O poema “Silencio, silencio” foi também publicado em antologia disponível on line no site do autor:
http://www.guineanos.org/poemas_ramblas_xiv.htm Acessado em: 22 jan 2006.

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hispano-africanas dentro do conjunto maior representado pelas literaturas africanas como


um todo.

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Miami: Florida State University, College of Arts and Sciences, 2003. Tesis doctoral, 2003.

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ENTRE CRUZES E SILÊNCIO, ANNOBÓN: METÁFORA DE UM POVO ESQUECIDO

WODISNEY CORDEIRO DOS SANTOS (UNEB)

A Guiné Equatorial, logo após a saída da Espanha de suas terras no final da década
de 60 do século XX, começou a viver um processo de forte repressão durante as duas
ditaduras que se seguiram. A primeira, comandada por Francisco Macías Nguema, durou
11 anos, de 1968 a 1979, e foi marcada pela repressão a toda e qualquer manifestação
política, social e cultural. É justamente nessa época que Macías ordena que todo acervo
literário seja queimado para que a população não tenha acesso às obras. Nesse mesmo
período, os assassinatos, as perseguições, a suspenção de todas as garantias
constitucionais, constituíram-se na única arma para o predomínio e a manutenção da etnia
Fang. Esse período é representado em Áwala cu sangui de Ávila Laurel:

Era Malabo de 1977 un lugar profundo. Muy profundo. Decían que Macías no
estaba, que se había ido a su lugar. En Malabo no se sabía nada de él. Pero
estaba. Todos los que salían a la calle lo hacían sólo después de colocarse la efigie
de Macías el pecho o en la solapa de las camisas. Si iban a las oficinas o a algún
ministerio debías ir con la efigie de Macías. También debías irte documentado. El
carnet de PUNT era el más importante. (LAUREL, 2000, p. 2)

O medo e o silêncio predominaram nessa época. Porém, no início dos anos 80


deste mesmo século, Macías foi assassinado pelo seu sobrinho, dando lugar a mais longa
ditadura naquele país. Teodoro Obiang Nguema, logo após o “golpe de libertad”, se tornou
o novo presidente e, com um tom conciliador, afirmou que “La cultura debe ser
considerada en mi gobierno como prioridad absoluta, ya que sin ella el Pueblo de Guinea
Ecuatorial no podría asumir positivamente el proceso de la Reconstrucción y
Reconciliación Nacional” (N’GOM apud MIAMPIKA, 2010, p. 31).

No entanto, se por um lado tal discurso contribuiu para o surgimento de novos


escritores, a prática costumaz não impediu que o silêncio se mantivesse presente e latente
naquela sociedade. Outras formas de imobilização à criação literária se dão na medida em
que livrarias e bibliotecas, tão necessárias, se configuram entre os itens não fomentados
pelo governo e, com isso, o mercado editorial em Guiné Equatorial é praticamente
inexistente. Segundo Nerín,

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El número de lectores en Guinea es todavía menor. El sistema educativo vigente, así


como la falta de periódicos y revistas ha reducido a la nada los hábitos lectores de la
población. La mayoría de los estudiantes universitarios no ha leído jamás un solo libro.
Los profesores de literatura se limitan a dictar biografías de autores y listados de sus
obras, y ellos mismos no leen nada de nada. En todo el país no hay una librería, y las
bibliotecas están poco dotadas e infrautilizadas (únicamente se utilizan para estudiar
apuntes, no para consultar obras literarias. (NERÍN apud MIAMPIKA, 2010, p. 300)

Esta forma de silenciar a sociedade, portanto, não se configura em uma maneira


menos violenta de impedir o acesso das pessoas, de um possível público leitor, aos livros.
Ela se metamorfoseia na pseudoliberdade e se concretiza na total falta de incentivos para
a implantação de editoras, bem como a aquisição de livros literários para as bibliotecas ali
existentes. Além disso, ocorre também a censura às informações que podem ou não estar
disponíveis à população. Para Orlandi, “a censura estabelece um jogo de relações de força
pelo qual ela configura, de forma localizada, o que, do dizível, não deve (não pode) ser dito
quando o sujeito fala” (ORLANDI, 2013, p. 77).

Para suprir essa carência, a única saída encontrada por diversos escritores de
Guiné Equatorial foi a de publicar os seus livros no país do colonizador. É o caso de
Donato Ndongo-Bidyogo, M’Baré N’Gom, María Nsué Angüe, Francisco Zamora, Pedro
Cristino Bueriberi, Juan Tomás Ávila Laurel e outros. Alguns desses escritores vivem como
exilados na Espanha e poucos, porém corajosos, em Malabo, capital do país. É o caso de
Juan Tomás Ávila Laurel. Vale salientar que embora tais escritores sejam africanos,
falando sobre a África, estando na África ou fora dela, ao fazerem a exposição de seus
conflitos, suas dores, suas alegrias e suas tristezas, a língua utilizada por eles seja na
forma denotativa ou de maneira metafórica, tem sido a do colonizador. Tal predileção se
constitui num possível diálogo entre os que urgem ser vistos, reconhecidos e aqueles que
fingem ou ignoram não conhecer os problemas vividos em Guiné Equatorial. Logo, em se
tratando desse país, o castelhano passa a ser a língua do diálogo, o idioma que passa a
ser usado como uma ponte entre o invisível em direção ao visível, entre o silenciado e o
que pode propagar a voz.

Ainda no que diz respeito a Guiné Equatorial, vale enfatizar que esse é o único país
no continente africano que tem por língua oficial o castelhano e tal idioma é imprescindível

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não somente para os acordos internacionais, mas também para os intercâmbios e


expressões culturais. Como define muito bem M’Bare N’Gom.

Guinea Ecuatorial es la única comunidad política y nacional de África subsahariana con


herencia hispana y, por ende, con una literatura escrita en lengua castellana. Guinea
Ecuatorial es, por ahora, el único país del continente en tener el castellano como lengua
oficial y de transacción internacional, así como vehículo de expresión cultural. Asimismo,
la literatura guineana y africana en castellano está marcada por cierta hibridez cultural (la
tradición cultural negroafricana y la europea). Es un proyecto que participa de dos
expresiones y experiencias culturales; es, ante todo, literatura africana y, sólo después,
literatura hispana. Donato Ndongo-Bidyogo la define como hispanoafricana o literatura
africana hispanófona, escrita por africanos sobre África, desde África o desde la
transterritorialidad. (N’GOM apud MIAMPIKA, 2010, p. 24)

Há, como se pode perceber, a apropriação de um componente cultural que é a


língua castelhana que, mesclada a outros componentes da cultura africana de Guiné
Equatorial, resultam em uma riquíssima literatura. Literatura em castelhano, sem deixar de
ser africana, que revela suas tradições e que serve também como veículo de denúncia
social. Contudo, essa literatura ainda se encontra desconhecida do vasto público leitor,
seja pelo fato de sua ausência na academia ou, quem sabe, pela ausência de intercâmbios
nacionais que permitam que ela tenha a sua visibilidade.

É neste ambiente de imprecisões, em que a única certeza é a necessidade de


escrever e de publicar literatura, que surgem escritores como Juan Tomás Ávila Laurel.
Nascido em Malabo em 1966, começa seus estudos em Annobón, faz o secundário em
Malabo, onde, posteriormente, se forma em enfermagem. Laurel é considerado por muitos
um escritor bastante profícuo no que diz respeito à literatura. Ele escreve poesias, contos,
romances, tem blogs e milita, corajosamente, pelo fim da ditadura de Teodoro Obiang
Nguema. Em 2011, chegou a fazer greve de fome, tendo que sair de Malabo para se exila
na Espanha. Sobre Laurel, N’Gom afirma:

Juan Tomás Ávila Laurel es, sin lugar a dudas, el escritor más prolífico de Guinea
Ecuatorial; cuenta con más de una docena de títulos, entre los cuales destacan la novela
corta Nadie tiene buena fama en este país (2002), y su última novela Avión de ricos,
ladrón de cerdos (2008). Juan Tomás Ávila Laurel ha cultivado todos los géneros
literarios, desde la poesía, pasando por el ensayo, la novela, la novela corta, la narración
popular, hasta el teatro. (N’GOM apud MIANPIKA, 2010, p. 33)

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Em sua caminhada como escritor, Juan Tomás Ávila Laurel escreve as seguintes
narrativas: Áwala cu sangui (2000), Arde el monte de noche (2009) e El dictador de
Corisco (2014). Nessa sua trajetória, Laurel busca romper o silêncio imposto pelas duas
ditaduras e suas obras passam a ressoar as angústias de uma sociedade oprimida ante
um ditador que se mantém no poder há mais de 40 anos. O escritor tem nas suas obras o
seu ativismo, a sua luta e porque não dizer, o seu grito. Em 1994, em seu poema Silêncio,
silêncio, Laurel já sinaliza uma posição contrária ao regime político vigente, feito este
também assumido por muitos escritores que fugiram e se exilaram na Europa e nos
Estados Unidos.

Un minuto de silencio

vale más que un siglo

de aplausos. Silencio.

Cierras los ojos y ante ti ves

pasar siglos de historia

cargados de bromas

que los hombres hicieron.

Unos que pasaron por reyes infelices,

otros por felices tenderos, todos exhiben la inocente tristeza

de hombres que no merecen lo que tuvieron.

Cierras los ojos y con ello comprendes

que la historia sólo pretende una cosa:

Aún no sea fácil tarea,

dejar al culpado por inocente

y sin pecado al que tuvo

una cadena de errores.

Pero a los buenos se les entierran vivos

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para que no pequen.

(LAUREL, 1994)

Calar-se e manter as pessoas caladas foi, durante a ditadura de Francisco Macías


Obiang, e tem sido, atualmente, na de Teodoro Obiang Nguema, uma estratégia dos
ditadores de Guiné Equatorial que tem como principal objetivo a manutenção do poder, o
acúmulo e a concentração de riquezas para si e para os seus familiares e cúmplices.
Segundo Amarino Queiroz,

“Os chamados anos de silêncio que acompanharam o período mais sanguinolento da


ditadura Macías veriam surgir, no entanto, algumas obras literárias no exílio, abrindo
espaço para um momento de ruptura que por sua vez daria lugar a uma fase mais
ascendente.” (QUEIROZ, 2011, p. 31)

No entanto, romper o silêncio tem sido a luta dos escritores daquele país. Seja no
exílio, seja em Malabo, os contrários ao regime tentam conscientizar a sociedade para as
injustiças que ali são cometidas através dos seus textos. Um bom exemplo dessa
conscientização é a obra Arde el monte de noche de Juan Tomás Ávila Laurel. Nela, o
cenário é a ilha de Annobón. O narrador-personagem, um garoto, começa a contar as suas
lembranças vividas na ilha. A estória se inicia com um canto que ecoa em toda aquela
elevação isolada no Atlântico, rompendo o seu silêncio, chamando a todos os homens
vigorosos para a árdua tarefa que deverá ser executada naquele dia. Conta o narrador:

La canción empezaba así:


Maestro: Aleee, tire usted un poco.
Todos: ¡Alewa!
Maestro: Aaaalee, tire usted un poco.
Todos: ¡Alewa!
- Aaale, toma suguewa.
- ¡Alewa!
- Aaaalee, toma suguewa.
- ¡Alewa! (LAUREL, 2009, p. 8)

Nesse canto, guiado por um maestro e seguido por todos os demais membros da
comunidade, é possível observar o sentimento de nostalgia do narrador. É um convite à

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imaginação que introduz o leitor no cenário vivido pelo garoto com o objetivo de retratar os
costumes locais, suas vivências, suas memórias. E o garoto explica a canção:

Lo de ‹‹tire usted un poco›› también podía ser ‹‹tirad vosotros un poco››, o ‹‹tiren vosotros
un poco››, o ‹‹tiren ustedes un poco››, o ‹‹tiren de él un poco››, o ‹‹tirad de él un poco››.
¿Sabéis por qué podía ser cualquiera de las versiones? Porque la lengua en la que se
dice esto no tiene ‹‹usted››, pero el ‹‹maestro›› que dirige a ‹‹todos›› se dirige a ellos con
respeto, como si les tratara de usted; Pero lo hace cantado, y para mí es la canción más
bonita del mundo entero, y es la que me arranca más recuerdos, la que más nostalgia de
mi tierra me trae. (LAUREL, 2009, p. 8)

Essas lembranças acontecem, segundo o narrador, devido a solicitação de um


senhor, chamado Manuel, que queria manter um registro das histórias daquele povo para
que elas não se perdessem. E que elas pudessem passar da oralidade para o texto escrito,
mas para isso, era imprescindível que a memória fosse acionada, que fatos passados,
antes guardados na consciência, imergissem, pois, segundo Bosi: “se lembramos, é
porque os outros, a situação presente, nos faz lembrar” (1994, p. 54). Partidário dessa
mesma visão, Bergson assevera que “o maior número de nossas lembranças nos vem
quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam” (BERGSON
Apud BOSI 1994, p. 54). Sendo assim, a memória se materializa em um importante
instrumento de recuperação do passado, ao salvá-lo, contribuindo para a compreensão do
presente, como também para a construção do futuro. A memória, então, seja individual ou
coletiva, deve servir “para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF,
1996, p. 477). Assim, em Arde el monte de noche o narrador explica que o seu relato foi
motivado por alguém que queria conhecer alguma estória do seu povo. Poderia ser um
conto, uma fábula, uma estória qualquer, mas o narrador preferiu relembrar os
acontecimentos que marcaram a sua vida quando ainda era uma criança.

Me pidieron que contara un cuento, o varios, y pensé que lo mejor era contar la historia de
mi niñez, pues no me acordaba de ningún cuento de aquellos años. Entonces el jefe de
estos blancos, que decía que venía para recuperar nuestra tradición oral, y que se
llamaba Manuel, me dijo que contara lo que quisiera, pues a lo mejor había aspectos
importantes en los recuerdos de mi niñez. Conté lo que recordaba de aquellos años y
luego cerré la boca cuando consideré que había acabado. (LAUREL, 2009, p. 227)

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Logo, ao ser revivida, após o estímulo de outros, a memória possibilita romper com
o silêncio e, além disso, ela precisa estar associada “a lugares. E não é por acaso que
dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar” (RICOEUR, 2007, p. 57). E
este lugar é Annobón com sua bela paisagem, seu relevo, suas pessoas. E o narrador
reforça esta experiência vivida em seu lugar, em sua ilha: “Como ya dije, esta breve
canción me transporta a mi tierra pequeña, y al hacerlo, hace que me acuerde de la gente
que vivía allá cuando la conocí, y hace que me acuerde de mi abuelo” (LAUREL, 2009, p.
20). Entretanto, as lembranças não necessariamente ficarão restritas ao lugar e às suas
pessoas, elas poderão, também, remeter a fatos, a acontecimentos que unem as pessoas
ao seu ambiente. Contudo, a memória, um dia silenciada, poderá estar carregada de
dores, de angústias e que, ao ser acionada, servirá para desvelar os mais diversos
sentimentos, a saber: a fome, as doenças, o preconceito, a indiferença, o abandono, a
violência, a escuridão, a morte. Assim, o que se inicia com uma linda canção, em Arde el
monte de noche, passa também a relatar os mais profundos dramas vividos por aqueles
que habitavam a ilha de Annobón.

Dentre eles, no romance, pode-se destacar a fome que começa a causar enormes
problemas para os moradores da ilha. Nas lembranças do narrador, a yuka com o molho
de pimenta se converte na alimentação diária. Havia falta de peixes, ainda que estivessem
cercados pelo Atlântico. Outro aspecto importante é a presenças de estrangeiros que, com
seus barcos, pescavam e levavam os pescados tão desejados pelos moradores da ilha. Ao
mesmo tempo, os ilhéus entregavam as suas jovens para serem usadas sexualmente em
troca de mercadorias: alimentos, roupas, produtos de higiene e limpeza, cigarros etc. A
necessidade, a carência e o abandono criam o ambiente favorável a todo e qualquer tipo
de exploração. Logo, entregar as suas jovens era uma forma de amenizar a carência de
tudo que havia em Annobón.

Y se hizo como se pensó. Unos hombres con los que hablaron las mujeres las llevaron al
barco y vieron a los blancos aquellos. Recuerdo que se me dijo que una de las mujeres
que… No, nadie me dijo nada. Lo supe meses más tarde. Ocurrió que del trato con las
mujeres, llegaron a la isla, y no en los mismos cayucos en que se las llevó, sino en las
embarcaciones de aquel barco, todo lo que ellas echaban en falta en aquella carestía
atroz: jabón, petróleo, sal, ropas, zapatos, cerillas, cosas diversas para comer, pescado y,
bebidas alcohólicas y cigarrillos. Bueno, había unos envases de jabón en polvo, y venía
bien porque a cada uno le podían entregar un puñado del mismo, y se contentaba.
(LAUREL, 2009, p 51-52)

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Observa-se, então, que o desespero, diante de tão grandes necessidades, contribui


para que os habitantes de Annobón não poupem as suas jovens mulheres que passam a
ser usadas como moeda de troca: favores sexuais por produtos escassos na ilha. Mas
esse não era o único problema que as pessoas naquela comunidade enfrentavam. O
narrador, ao relatar suas lembranças, expressa uma forte angústia ao narrar a morte de
uma mulher. Ela foi perseguida pelos moradores que a golpeavam com pedaços de pau e,
estando nua, buscou refúgio na igreja em busca de salvação, mas não obteve a tão
almejada libertação. Ao ser recebida na igreja, o padre, logo cobriu a sua nudez, ouviu a
sua confissão e lhe disse que fosse em paz. Ao sair da igreja, a mulher foi morta a
pauladas. Ao relatar esse episódio, o narrador se incomoda com o fato de o padre não
mantê-la sob sua custódia ou, quem sabe, dizer a todos que ali estavam para não
seguirem com o seu intento ou seriam excomungados. Pelo contrário, o que acontecerá
rompe com a sua expectativa. O padre tão somente ouviu a confissão da mulher e a
deixou seguir para o matadouro que a aguardava.

¿Qué era aquello? La persona golpeada, que luego pudimos ver era una mujer, sacó
fuerzas de donde nadie sabía y corrió delante de la gente y cruzó todo el pueblo y se
dirigió a la Misión.

(…)

Contaré lo que pasó con el tramo de la iglesia: aquella mujer pensó que iba a morir y entró
a confesarse al Padre cura. No se escapaba de sus perseguidores. Allí la recibió el Padre,
al que disgustaría aquella desnudez, y por eso le dio aquella sábana para taparse. Serían
las mismas que utilizaban en el altar. Se tapó aquella mujer y fue recibido por el Padre
cura en el confesionario. Primero confesó, después hizo la penitencia y fue absuelta.
Luego comulgó y el cura aquel le dijo que podía ir en paz.

(…)

Ya dije lo que pasó cuando nos dimos cuenta de que aquellos hombres, y mujeres, y
niños pensaban llegar al final; decidimos no verlo. Para muchos no es cualquier cosa.
Para ellos eran lo que querían, y quizá ya habían jurado que lo llevarían a cabo. (…)
Estuvieron apaleando a aquella mujer hasta que expiró en sus manos. Una cosa que
nunca jamás vimos, o que algún mayor dijera que se había hecho con un isleño conocido.
Mataron a aquella mujer. (LAUREL, 2009, p. 77 e 80)

A intolerância e tamanha selvageria dos islenhos, e o silêncio do padre afligem o


narrador. Mas o seu sofrimento não se encerra nesse ato rememorado, pelo contrário,

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amplia-se quando uma epidemia de cólera assola Annobón, causando a morte de


inúmeras pessoas. As pessoas começam a sofrer com a diarreia, com vômitos constantes
e principalmente pela falta de atendimento médico. Elas não sofriam somente pela
escassez de alimentos, mas sim porque suas bocas amargavam em função da
enfermidade que já atingira a muitos ilhéus. Ao ser procurado, o único médico local não
podia fazer nada, uma vez que não possuía os medicamentos para tratar aquela
enfermidade. Morre também o médico e com ele, a esperança. Morrem os ilhéus sem que
ninguém possa ajudá-los. E, quando não foi mais possível nomear as pessoas que
morriam naquela ilha, a dramaticidade no romance chega ao ápice e é representada por
meio de cruzes que passaram a simbolizar o desespero e o abandono.

Por eso en total había †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †,


†, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †,
†, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †,
†, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †,
†, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †, †,
†, †, †, †, †, †, †, †, †, †, † correspondientes a los que murieron de aquella furiosa
enfermedad. (LAUREL, 2009, p. 100-101)

Arde el monte de noche, portanto, pode ser entendido como uma metáfora de uma
sociedade silenciada, um lugar quase esquecido e que precisa ser melhor entendido,
estudado. No romance, a ilha de Annobón com sua gente, sua cultura e seus conflitos é
apresentada como um local esquecido, abandonado e distante do continente. Uma
possível metáfora da Guiné Equatorial, país de contrastes, rico em petróleo, porém isolado
e marcado por uma forte e longa ditadura que, há mais de 40 anos, domina aquele país.

O romance configura-se, dessa forma, em uma representação dos dramas sofridos


por aqueles que, em Guiné Equatorial, vivem sob uma ditadura que já dura mais de 40
anos. Durante todo esse período ditatorial, vários grupos étnicos foram dizimados em prol
da supremacia da Fang. A ilha no romance, retrata um país esquecido, não desconhecido,
mas abandonado a sua própria sorte. Sob o domínio espanhol desde o final do século
XVIII, Guiné Equatorial teve muito bem tempo para fazer a sua transição entre ex-colônia e
República autônoma. Com isso, utilizando-se da perseguição, do terror, assassinatos e
imposição do silêncio, Francisco Macías protagonizou uma onda de mortes no país. Por
onze anos, Macías proibiu o uso do espanhol como língua franca, além de cometer um dos

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piores genocídios da humanidade. Na década de 70 do século XX, julgado e condenado


sumariamente por seus crimes, é sentenciado a morte. Assume a presidência Teodoro
Obiang Nguema. No entanto, ainda que se pregue a conciliação e a união do país,
mantém-se a prisão de opositores políticos, a perseguição daqueles que discordam de
suas ideias e a pena de morte. Vale salientar, ainda, que durante esses dois momentos
históricos ocorridos na Guiné Equatorial, período esse de forte ditadura, nem a Espanha, a
ONU, a igreja católica e tampouco a imprensa espanhola ou de outros países,
demonstraram interesse sobre os dramas vividos por todos aqueles que estão sob o
domínio desse regime ditatorial e também não reagiram ao genocídio étnico perpetrado
durante a presidência de Francisco Macías.

Arde el monte de noche, assim, retrata o silêncio dessas vítimas. A ilha se converte
em um espaço de dor, de lamento e de morte, do avô que não fala, do padre que não
liberta uma jovem da morte e das pessoas que ao vê-la agonizar, não reagem; do médico
que não cura e morre por causa da cólera; da fome atroz que atormenta a todos e do fogo
que destrói a pouca plantação na ilha. Com todo esse cenário há, no romance, um forte
apelo dramático que visa romper esse silêncio. O romance tem por objetivo denunciar as
mazelas sociais resultado das duas ditaduras seguidas em Guiné Equatorial, constituindo-
se, portanto, na possibilidade de um diálogo entre os que não podem ser esquecidos,
nesse caso os africanos, com os ocidentais. O romance guineano permite romper as
fronteiras continentais e levar a conhecer uma cultura diferente, com os seus respectivos
conflitos humanos. Sendo assim, através do olhar literário, é possível que melhor seja
compreendido o processo de colonização e descolonização de Guiné Equatorial, uma vez
que o romance convida o leitor a conhecer um mundo que ainda se mantém fechado, mas
que necessita ser revelado.

REFERÊNCIAS

LAUREL, Juan Tomás Ávila. Poemas. Malabo: CCHG, 1994.


_________. Áwala cu sangui. Pángala. Malabo: 2000.
_________. Arde el monte de noche. Calambur Narrativa: Madrid, 2009.

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BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão [et al.] 4.ed. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1996.
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MIAMPIKA, Landry-Wilfrid. ARROYO, Patricia. De guinea Ecuatorial a las literaturas
Hispanoafricanas. Editorial Verbum. Madrid, 2010.
N’Gom, M’Bare. La literatura africana de expresión castellana: de una “literatura
posible” a una literatura real. Etapas de un proceso de creación cultural. En:
MIAMPIKA, Landry-Wilfrid. ARROYO, Patricia. De guinea Ecuatorial a las literaturas
Hispanoafricanas. Editorial Verbum. Madrid, 2010.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. São
Paulo: Editora da Unicamp, 2013.
QUEIROZ, Amarino Oliveira de. A Guiné Equatorial em sua literatura: espaço de
diálogo ibero-bantu. Em: GRIOTS: culturas africanas: literatura, cultura, violência,
preconceito, racismo, mídias / Organizadores Tânia Lima, Izabel Nascimento, Carmen
Alveal – Natal: EDUFRN, 2012.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.].
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
RODRÍGUEZ, Celia Olimpia. Aproximaciones literarias a la memoria, historia e
Identidad en la literatura contemporánea de Guinea Ecuatorial. 2011. Disponível em:
tspace.library.utoronto.ca/handle/1807/29849. Acesso em: 12 de set. 2015.

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VOZES NEGRAS NA LITERATURA CUBANA:


REPRESENTAÇÕES DA MEMÓRIA COMO EXERCÍCIO DE RESISTÊNCIA

EIDSON MIGUEL DA SILVA MARCOS (UFRN)


AMARINO OLIVEIRA DE QUEIROZ (UFRN)

No tocante à discussão em torno das identidades situadas à margem da História


hispano-americana oficial, faz-se necessário repensar o processo de formação sócio-
cultural que remete à chegada do colonizador europeu ao Novo Mundo e seu contato com
os povos originários do continente, realçando, nesse debate, a efetiva participação dos
negros africanos cooptados para o trabalho escravo. Durante séculos, essa discussão se
desenvolveu a partir de um viés eurocêntrico, cristalizando leituras do contexto americano
oriundas de um único ponto de vista, o do chamado “vencedor”. Nesse sentido, a literatura
constitui um espaço onde a memória e a experiência dos “vencidos” também ganham lugar
e voz, tanto sob a perspectiva autoral como a partir das próprias representações inscritas
no corpo narrativo.

No presente trabalho, investiremos numa breve leitura de obras literárias hispano-


americanas recortadas da produção cubana em particular, a exemplo de Cecilia Valdés, de
Cirilo Villaverde e Memórias de um Cimarrón, de Miguel Barnet, procurando destacar
vozes narrativas que evidenciem a experiência social, histórica e cultural de alteridades
pouco visibilizadas ao longo dessa trajetória, mas igualmente conformadoras das
identidades hispano-americanas como um todo.

Em 1492, o Novo Mundo é “descoberto” pela esquadra comandada por Cristóvão


Colombo a serviço da coroa espanhola. A partir de então, os vários aspectos
configuradores desse “Novo Mundo”, juntamente com o de seus habitantes, passaram a
ser vistos e interpretados através de lentes eurocentradas. As produções quinhentistas,
que entraram para a história ocidental sob o rótulo de Literatura de Informação,
inauguraram um olhar de fora sobre a América, esboçando, assim, um perfil identitário do
autóctone baseado no imaginário do colonizador.

Podemos observar, por exemplo, que em seu diário de bordo Cristóvão Colombo já
esboça um perfil dos “índios” e das relações entre estes e os colonizadores a partir de um

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imaginário particular 3. Após um dos contatos mantidos com os autóctones, Colombo


registraria que: “él y su ayo y consejeros llevan grande pesar porque no me entendían ni yo
a ellos. Con todo, le conocí que me dixo que, si me compliese algo de aquí, que toda la isla
4
estava a mi mandar.” É interessante perceber que, mesmo sem haver pleno
entendimento entre ambas as partes, situação motivada pelas diferenças linguísticas,
Colombo consegue depreender que os nativos “põem a terra à sua inteira disposição”.

Conforme assegura León-Portilla (1987), em paralelo ao diário de Colombo são


produzidos outros textos que expressam a visão dos vários povos que habitavam o
continente americano antes da chegada dos colonizadores, a exemplo dos Astecas, Maias
e Incas. No tocante à experiência afro-descendente, trabalhos como o desenvolvido por
Miguel Barnet em Memórias de um Cimarrón ou por Teresa Cárdenas em Cachorro Velho
nos trazem um ponto de vista diferenciado, situando em primeiro plano outros
protagonistas dessa mesma história: os negros escravizados.

Neste seu romance em particular, Teresa Cárdenas retrata a dura vida das negras e
negros trabalhadores dos engenhos cubanos, fazendo representar na figura do
protagonista Cachorro Velho as marcas da violência incrustada no corpo e no espírito dos
homens e mulheres de cor. Ao final, Cachorro Velho, por meio dos sentimentos do amor e
da solidariedade para com os seus pares, logra libertar seu coração e seu espírito dos
grilhões do cárcere, já que não consegue o mesmo com o corpo físico.

Em romances como Cecilia Valdés, do cubano Cirilo Villaverde (1812-1894), já se


esboçam também relações configuradoras da sociedade cubana do século XIX sob um
prisma social e etnorracial entre o negro e o branco. Nesse recorte, porém, o elemento
indígena não aparece, o que o distancia de outras experiências literárias realizadas no
século XIX, a exemplo do Romantismo no Brasil. Diferentemente da abordagem cubana,
na perspectiva romântica brasileira emergiram projetos identitários como os apresentados

3
Podemos pensar imaginário como “reino das hiper-realidades espiritual-afetivas ou anímicas (...)
impossíveis de ser contidas na formalização lógica das frases, cláusulas, definições. O imaginário transborda
todo limite.” (JOACHIM, 2010, p. 11)
4
COLÓN, Cristóbal. Diario de a bordo. Disponível em:
www.elhistoriador.com.ar/documentos/conquista_y_colonia/diario_de_a_bordo_de_cristobal_colon.php,
acessado em: 02 de julho de 2015.

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através dos romances de José de Alencar, nos quais a representação de uma identidade
nacional se deu por meio da celebrada miscigenação entre um índio idealizado e o branco.

Na realidade cubana do século XIX, em meio a tensões nacionalistas e ao regime


escravocrata, a jovem Cecilia Valdés encanta os homens com sua exuberante beleza. De
origem humilde, Cecilia desconhece seu passado: nascida de uma relação socialmente
condenada, ela é filha de Cándido Gamboa, homem que tem no trabalho escravo a base
de sua riqueza e poder. Ignorando sua paternidade, Cecilia acaba se apaixonando por seu
irmão, Leonardo Gamboa, cuja cor e condição social são fatores importantes para um
processo de ascensão social.

Com a estrutura de um romance de costumes, Cecilia Valdés busca retratar, pois,


para além de um drama amoroso e incestuoso, a sociedade cubana do século XIX.
Sociedade pluriétnica e pluricultural, onde dicotomias como negro/branco, rico/pobre são
simplistas demais para darem conta da complexidade existente. As discriminações étnicas,
por exemplo, se dão não apenas entre brancos e negros, mas entre os próprios brancos,
como através da distinção criollo / espanhol, ou entre as “pessoas de cor”, via apreciação
do teor de negrura da pele, ou por meio da configuração biológica do indivíduo: o mulato,
por exemplo, denunciaria uma presença de sangue branco, fato que o tornaria mais
“nobre” que o negro:

[Cecilia] por lo mismo que era de la raza híbrida e inferior, se formará cualquier idea
aproximada de su orgullo y vanidad, móviles secretos de su carácter imperioso. Así
es que, sin vergüenza ni reparo, a menudo manifestaba sus preferencias por los
hombres de la raza blanca y superior, como que de ellos es de quienes podía
esperar distinción y goces, con cuyo motivo solía decir a boca llena, — que en
verbo de mulato sólo quería las mantas de seda, de negro sólo los ojos y el cabello.
(VILLA VERDE, 1977, p. 108-109)

Segundo Imeldo García (1977), o próprio Villaverde, nascido em um engenho de


açúcar e filho de médico que atendia os escravos, para ingressar nas esferas superiores
de educação teria apresentado documento que atestava a “limpeza de seu sangue”, não
sendo, portanto, um mestiço.

Do ponto de vista social, o romance aponta também para a existência de distinções


que vão além da dicotomia branco / preto. Entre os negros, se verifica essa situação nas
relações entre libertos e escravos, ou ainda entre os negros que possuem uma posição

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social mais elevada em relação aos outros. Há contextos em que essas questões acabam
se encontrando, como na busca de uma escalada social por parte dos negros e mestiços.
Casar com branco se torna uma condição de ascensão social, não somente pela situação
financeira almejada – geralmente melhor para os brancos – mas para a possibilidade de
“enobrecer” étnica e socialmente pela agregação a um indivíduo de “melhor cor”. Os
conselhos que Cecília recebe de sua avó dão uma boa noção desse fato:

— ¿Y tú te quieres comparar con la hija de seño Pimienta, que es una pardita


andrajosa, callejera, y mal criada? El día menos pensado traen a esa espiritada, a
su casa en una tabla con la cabeza partida en dos pedazos. La cabra, hija, siempre
tira al monte. Tú eres mejor nacida que ella. Tu padre es un caballero blanco, y
algún día has de ser rica y andar en carruaje. ¿Quién sabe? Pero Nemesia no será
nunca más de lo que es. Se casará, si se casa, con un mulato como ella, porque su
padre tiene más de negro que de otra cosa. Tú, al contrario, eres casi blanca y
puedes aspirar a casarte con un blanco. ¿Por qué no? De menos nos hizo Dios. Y
has de saber que blanco, aunque pobre, sirve para marido; negro o mulato ni el
buey de oro. (VILLA VERDE, 1977, p. 85-86)

Os bailes que ocorrem ao longo da trama de Cecilia Valdés constituem uma síntese
de toda a complexidade étnica e social da sociedade cubana do século XIX. No esboço de
um perfil social, o espanhol, o criollo, o negro e o mestiço aparecem como elementos da
“nação habanera”. A pluralidade etnorracial e social acentuada por conflitos aparecem
como marcas principais desse contexto:

Desde temprano el baile estaba lleno, de bote en bote, según reza la frase familiar.
El golpe de gente de todos colores, sexos y condiciones que se apiñaba ante
ambas ventanas del ancho portal, presentaba aspecto tan animado, como
interesante y tumultuoso. En el gran salón no se cabía ni de pie, al menos mientras
no se bailaba; los hombres se codeaban unos con otros, y ocultaban casi del todo a
las mujeres sentadas alrededor. (VILLA VERDE, 1977, p. 409)

(...)

Cualquiera mediano observador pudo advertir que, a vueltas de la amabilidad


empleada por Cecilia con todos los que se le acercaban, había marcada diferencia
entre los negros y los mulatos. Con éstos, por ejemplo, bailó dos contradanzas, con
los primeros sólo minués ceremoniosos. Pero dio amplia rienda a su innato
exclusivismo cuando se le presentó el negro de las entradas profundas y la rogó le
admitiera como pareja para una danza o un minué. Eso sí, no llevó su negativa
hasta el no áspero y seco; le dio sus razones para no bailar con él, que tenía
comprometida la siguiente pieza, que se sentía muy cansada, etc. El hombre no se
dio por satisfecho, antes se mortificó lo que es indecible y se alejó murmurando
frases groseras y amenazantes. (VILLA VERDE, 1977, 410-411)

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De fato, ao se pensar na inserção do negro nessa sociedade, verifica-se que os


mecanismos de ladinização ao qual o escravo era submetido para “melhor se adaptar” à
nova realidade favoreciam uma integração a esse novo mundo. 5

A ruptura entre a etnia e a cultura era uma práxis do sistema escravocrata que
buscava garantir a adaptação do negro ao regime de servidão. Então, os indivíduos de
várias etnias que vinham de África passavam por processos de aculturação, que
apresentavam peculiaridades nas diferentes zonas do continente, preservando ainda
elementos de sua cultura “original” que, submetidos a uma nova ordem de fatores e ao
contato com outras culturas – de outros grupos étnicos africanos, dos ameríndios, dos
europeus – produziram conformações sui generis.

Tais fatos apontariam para uma integração do negro no contexto americano,


tornando-o, com toda sua bagagem cultural, um elemento marcante na composição de
uma identidade para o continente, assim como para as nações americanas. A respeito da
experiência diaspórica do negro e seu lugar nos diversos contextos desse processo,
Roland Walter (2009) lembra que a existência diaspórica designaria um entre-lugar
caracterizado por desterritorialização e reterritorialização, assim como por uma implícita
tensão entre a vida aqui vivida e uma memória e um desejo pela experiência anterior,
vivida na origem. Desse modo,

A diáspora afrodescendente das Américas deve ser entendida, portanto, como


espaço diaspórico constituído por diversos lugares e comunidades heterogêneos:
uma encruzilhada mediada por uma transcultura heterotópica onde existem lares e
desabrigos entre lugares e mares. Viver nesta encruzilhada fronteiriça / diaspórica /
transnacional / transcultural, portanto, envolve negociações por através de um
território fissurado. (WALTER, 2009, p. 43)

Nesse contexto, as possibilidades de ascensão social que o regime de servidão


permitia também contribuíam para uma aculturação, uma vez que, para sair dos trabalhos
mais pesados e se tornar um empregado doméstico ou artesão, o negro precisava
assimilar a cultura do patrão. Assim, mesmo conseguindo alguma ascensão, esses negros
ainda eram relegados a um status de inferioridade, o que levou muitos grupos ao
isolamento social. Daí autores como Roger Bastide entenderem que não devemos falar de

5
O termo ladinização remete ao processo pelo qual o negro era “preparado” para ser inserido no regime de
servidão. Consistia em iniciar a separação de sua herança étnica, afastando-o de seus pares, por exemplo.

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ausência de cultura para estas sociedades, mas da existência de culturas negras à


margem das culturas africanas e afro-americanas.

Assim, em Cecilia Valdés, Villaverde, mesmo escrevendo de um lugar de fala


histórico, étnico e socialmente mais privilegiado, acaba conferindo “voz” à memória e a
experiência dos afro-descendentes, a partir de representações inscritas no corpo narrativo,
onde a condição sócio-histórica do negro é apresentada em várias de suas nuances.

Já na década de sessenta do século XX, o poeta, ensaísta e etnólogo cubano


Miguel Barnet registraria, em Memórias de um Cimarron, o testemunho de Esteban
Montejo, que foi escravo, cimarrón 6 e combatente na guerra pela independência de Cuba.
Por intermédio desse trabalho, temos acesso ao ponto de vista de um dos protagonistas
dos eventos históricos que marcaram a trajetória cubana e que, contraditoriamente, não
dispõe de repercussão nas demais esferas sociais e de difusão da informação.

Em seu relato, Esteban Montejo nos apresenta um esboço do contexto social em


que nasceu e viveu. Em relação aos negros, ele aponta para as diferenças étnicas
existentes, que poderiam marcar positivamente ou negativamente as relações entre eles:

Os lucumís não gostavam do trabalho da cana e muitos fugiam. Eram os mais


rebeldes e valentões. Os congos não; eram meio covardões, fortes para o trabalho
e por isso pegavam no batente sem queixas. Existe um tipo de cutia muito
conhecida que é chamada conga; é muito covardona.

Nos engenhos havia negros de diferentes nações. Cada um tinha seu tipo. Os
congos eram escuros embora houvesse muitos jabaos. Eram geralmente
pequenos. Os mandingas eram meio avermelhados. Altos e muito fortes. Eu juro
que eram ruins de nascença e criminosos. Estavam sempre na deles. Os gangas
eram bons. Baixinhos e de cara sardenta. Muitos foram cimarrones. Os carabalís
eram como os congos musungos, umas feras. (BARNET, s/d, p. 37)

A existência dessas experiências negras na América, a partir das negociações em


torno das fissuras espaciais e temporais conformou identidades por vezes mais próximas
de um passado ancestral localizado na África, ou então “novas” identidades negras
pautadas em uma vivência americana, ou, ainda, a incorporação a uma nacionalidade
hispano-americana, como no caso do Estaban Montejo, uma vez que na América se
delineava um quadro de ruptura entre etnia e cultura. Os negros transladados da África

6
Termo que designava o escravo fugitivo que vivia sozinho nas matas em Cuba, diferentemente do
quilombola que se organizava em comunidades. No Brasil, uma referência similar é representada na Bahia
através da figura do “nego fugido” (PINTO, 2014), auto popular composto de música e dança, encenado ao ar
livre.

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eram de diversas etnias – Wolof, Mandinga, Bambara, Bijagó etc. – porém, geralmente,
não conservariam maiores traços de suas culturas nativas. Tal fato devia-se, em certa
medida, a uma política deliberada por parte dos representantes do poder para evitar a
formação, entre os escravos, de uma consciência de classe explorada.

A partir da supressão do tráfico e da escravidão, as nações desapareceram. As


mesclas étnicas tornaram-se regras. Daí pode-se compreender que estaríamos diante de
uma dupla diáspora: a dos rastros culturais africanos, que transcendem as etnias, e as dos
negros que, à força de misturas, perderam suas heranças africanas e assimilaram
civilizações circundantes – anglo-saxões, espanhóis, franceses, portugueses, com as
várias fissuras e negociações aludidas por Walter (2009).

Assim, as diferenças iam para além daquelas de caráter étnico, chegando às de


pertença territorial entre o negro de cá (nascido em Cuba) e o “africano de lá, do outro lado
7
do charco (BARNET, s/d, p. 41). Distinção que atingia também as relações sociais de
poder entre os próprios negros. Montejo, por exemplo, se reconhece como negro e como
cubano, percebendo ao mesmo tempo as tensões sociais embutidas nessa identidade:

Quando terminou a guerra, começou a discussão de que se os negros tinham


lutado ou não. Eu sei que noventa e cinco por cento da raça negra fez a guerra.
Depois eles começaram a dizer que era setenta e cinco. Bem, ninguém lhes criticou
essas palavras. O resultado foi que os negros ficaram na rua da amargura. Isso era
incorreto, mas assim foi.

Na polícia não havia nem um por cento de negros, porque os americanos diziam
que quando o negro pegasse força, quando se educasse, isso seria prejudicial para
a raça branca. Assim, o negro foi completamente separado. Os cubanos da outra
raça ficaram quietos, não fizeram nada e aí morreu o assunto, até hoje, que é
diferente, porque eu vi brancos com negras e negras com brancas, que é mais
delicado, pela rua, nos cafés, em qualquer lugar. (BARNET, S/D, p. 178-179)

Ao recortar nossa discussão em uma experiência centro-americana e caribenha


rastreamos e analisamos elementos que apontam para a emergência de identidades
permeadas, principalmente, por tensões de ordem social e etnorracial. Em Cecilia Valdés e
em Memórias de um Cimarrón, a literatura constitui um espaço onde a memória e a
experiência dos afro-descendentes ganham lugar e voz, tanto sob a perspectiva autoral –
no caso de Esteban Montejo, que é ao mesmo tempo autor e ator de toda a narrativa,
transcrita por Miguel Barnet – como a partir das próprias representações inscritas no corpo

7
Charco – o Oceano Atlântico.

51
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narrativo, conforme verificamos no caso das personagens negras de Villaverde. Tais


vozes, principalmente a de Montejo, sinalizam na direção de uma requalificação histórica,
antropológica e literária de alteridades como as afro-descendentes, a partir do ponto de
vista dos próprios “vencidos”.

Essas vozes narrativas evidenciam, portanto, a experiência social, histórica e


cultural do negro africano em sua diáspora, assim como a sua presença na conformação
das identidades hispano-americanas como um todo. Elas deixam entrever, através do
relato de Esteban Montejo, que a construção de uma identidade nacional aparece
fissurada por categorias que não são facilmente articuláveis, como as de nacionalidade e
raça. Esta última passando, inclusive, por um processo de apagamento das alteridades
negras nos discursos produzidos a partir de certas esferas do poder, o que atenderia a
projetos de manutenção de determinadas estruturas sociais, nomeadamente a
subordinação e invisibilização dos negros.

REFERÊNCIAS

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

PINTO, Monilson dos Santos. Nego Fugido: o teatro das aparições. Dissertação de
Mestrado em Artes Cênicas. São Paulo: UNESP, Programa de Pós-Graduação em Artes,
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VILLAVERDE, Cirilo. Cecilia Valdés. Havana: Huracán, 1977.

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Américas. Recife: Bagaço, 2009.

53
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GRUPO DE TRABALHO: DIÁLOGOS ENTRE ÁFRICA E O BRASIL: IMAGENS DA


INFÂNCIA E DA JUVENTUDE NA CONTEMPORANEIDADE

PROPOSITORES: MÔNICA MENEZES (UNEB), RENATA NASCIMENTO (UNEB), JOSÉ


WELTON FERREIRA JR. (UNEB)

Ementa:

Diante do contexto de descentramento identitário que marca a contemporaneidade, a

infância e a juventude aparecem como temas que evocam uma alteridade cujo valor quase

sempre foi reduzido na formação sociocultural dos modernos estado-nação no Ocidente.

Embora tenham desenvolvimentos distintos, as literaturas para crianças e jovens nos

países africanos de língua oficial portuguesa (PALOP) e no Brasil têm sido desafiadas a

enfrentar questões concernentes ao universo simbólico acerca da infância e da juventude


diante das conjunturas culturais e políticas que lhes são subjacentes, apontando para
projetos políticos e literários que situam as crianças e os jovens em um continuum entre o

passado e o futuro. Diante disso, verifica-se a tentativa de superação da dimensão

didático-pedagógica que outrora foi hegemônica nesse tipo de produção. Em seu lugar,

aparece um investimento em leituras críticas que valorizam a estética e o diálogo com as

dinâmicas culturais que marcam os contextos de produção das obras, cujo protagonismo

das crianças e dos jovens evidencia experiências alteritárias organizadas em torno de seus

modos de ver e de agir sobre o mundo. Diante disso, este GT pretende estimular o debate
acerca do imaginário constituído em torno das crianças e dos jovens a partir de um

comparatismo literário que invista na leitura de diferentes textos como documentos da

cultura em contextos marcados por processos históricos particulares, porém atravessados

por temas comuns que estimulam produções interessadas na desconstrução de

estereótipos, do racismo e da subalternização, contribuindo para a discussão de questões

etnicorraciais.

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IMPRESSÕES NEGRAS: DIVERSIDADE CULTURAL NO ESPAÇO ESCOLAR

TAÍS ROCHA RIBEIRO (UNEB)

A tecnologia digital vem constantemente alterando as dinâmicas sociais na


contemporaneidade, provocando transformações nas formas de pensar, conhecer e
construir o conhecimento, causando impactos no campo da educação. Nesse sentindo, o
artigo apresenta algumas considerações e reflexões sobre a experiência de trabalho
“Impressões Negras” desenvolvida na Escola Municipal Malê Debalê (Salvador-BA), sobre
as interlocuções entre as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e a Cultura
Africana e Afro-brasileira. Com o objetivo de discutir tais interlocuções e valorizar as
concepções educativas presentes nas Leis 10.639/03 e 11.645/08, foram desenvolvidas
preposições teórico-metodológicas contemplando estudos tradições culturais africanas, em
especial a simbologia Adinkra (que representa ideias expressas em provérbios, conceitos e
aforismas dos povos Akan, da África Ocidental). Numa perspectiva de educação para a
promoção da diversidade cultural, alunos desenvolveram pesquisas e conteúdos a partir de
dispositivos móveis, refletindo, por meio da arte visual e da estética, sobre a relevância da
dimensão cultural no processo educativo, permitindo o protagonismo desses jovens para
representar sua visão sobre a Cultura Africana e Afro-brasileira como fontes legítimas de
produção do conhecimento.

Palavras-chave: TIC. Dispositivos Móveis. Diversidade Cultural. Educação Básica.


Hibridação Cultural

Introdução

As experiências de utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC)


na Rede Municipal de Ensino da cidade de Salvador desenvolvidas pelo Grupo de
Pesquisa em Geotecnologias, Educação e Contemporaneidade (GEOTEC/UNEB), servem
como objeto das reflexões sistematizadas nesse artigo. O GEOTEC desenvolve atividades
e experiências que redimensionam práticas pedagógicas interativas, coletivas e
colaborativas mediadas pelas tecnologias na Educação Básica da cidade de Salvador
desde o ano de 2007, está vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Educação e
Contemporaneidade (PPGEduC) e Mestrado Profissional Gestão e Tecnologias Aplicadas
à Educação (GESTEC), do Departamento de Educação (DEDC I) da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), fortalecendo o vínculo entre a Universidade, a Pesquisa e a
Rede pública de Ensino.
Atentos às demandas da comunidade escolar da cidade de Salvador em promover
as culturas e a interatividade na prática pedagógica, articulando as tecnologias móveis com

55
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

as bases das relações étnico-raciais, estabeleceu-se a parceria com Grupo GEOTEC, a


Sociedade Cultural, Recreativa e Carnavalesca Malê Debalê 8 e a Escola Municipal Malê
Debalê, que funciona dentro das instalações da entidade, também conhecida como Bloco
Afro Malê Debalê.
As experiências socializadas nesse artigo é resultado da articulação de saberes
entre as tecnologias, educação e culturas, foram analisados aspectos relativos às
potencialidades das TIC pela via da capacidade criativa dos sujeitos, no exercício da
criticidade e do entendimento das diversidades culturais. Através da arte e estética
presentes nas tradições culturais, foram desenvolvidas preposições metodológicas que
auxiliavam os alunos a compreender como o ser humano se constitui como sujeito e como
age no mundo social em interações mediadas por palavras, imagens, sons, gestos e
movimentos.
A presença das diversas tecnologias digitais e analógicas no cotidiano das pessoas,
muitas vezes, traz a não compreensão dos processos culturais que envolvem o surgimento
e a consolidação de uma tecnologia e suas implicações sociais. As formações culturais,
apesar de surgir e se solidificar seguindo uma ordem cronológica, não leva a anterior ao
desaparecimento. Nesse sentido, há um movimento criativo de reinvenções culturais, já
que há um processo de coexistência, sobreposição e misturas que formam um tecido
cultural complexo e híbrido.
A escrita convive com a fotografia, com o cinema, o teatro e a oralidade,
interpenetrando-se com o cinema, a internet, os dispositivos móveis numa mescla com a
cultura de massas, com a televisão e as manifestações gráficas e visuais num complexo
jogo performático de tradição e mudança, instável e móvel. Para uma melhor compreensão
de um contexto descentrado e aberto das culturas, Canclini (2013), argumenta que as
culturas precisam ser analisadas sobre o viés da hibridação, assim, define Culturas
Híbridas como os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que
existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”
(CANCLINI, 2013. p. 19).

8
O nome do bloco é uma homenagem à Revolta dos Malês, levante de negros muçulmanos que ocorreu em 1835, em
Salvador. O termo “malê” deriva do iorubá “imale”, designando o muçulmano, já ‘debalê’ foi um arranjo criando pelos
fundadores, em referência ao balé e as energias positivas oriundas da dança. Fonte: www.malêdebalê.info.br

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Nessa perspectiva híbrida das culturas que caracteriza as dinâmicas da sociedade


contemporânea e perceber o papel da escola hoje e os entrelaçamentos com diversos
campos do conhecimento, esta e muitas outras pesquisas desenvolvem-se a respeito da
relação entre a prática educativa, a diversidade cultural e as tecnologias digitais,
contribuindo para os estudos em educação. Para unir-se a essa polifonia de vozes com
temas recorrentes e olhares diversos na pesquisa, foi utilizada como estratégia
metodológica as conexões entre a experimentação, teoria e prática pedagógica por meio
da pesquisa participante (BRANDÃO, 2006).

Diversidades Culturais, Tecnologias Móveis e Educação


Para uma melhor compreensão das interlocuções entre as diversas culturas e a
Educação, faz-se necessário trazer um entendimento acerca dos modos de produção das
culturas e da comunicação, associadas sempre aos mais variados suportes tecnológicos,
uma tarefa bastante árdua. Diversos teóricos possuem, como objeto de estudo, a definição
das fronteiras e áreas de interesse próprios da cultura, muitas vezes, trazendo conceitos
divergentes. A interdisciplinaridade do campo cultural e suas dinâmicas apresentam-se
como um círculo que não se fecha.
Logo, a concepção de cultura desse estudo não se configura a partir de um amplo
levantamento bibliográfico acerca da questão ou mesmo algo que venha a evidenciar
uniformidades teóricas e conceituais, mas um meio de melhor perceber como as
diversidades culturais emergem numa escola da rede pública de ensino que integra um
grupo cultural e carnavalesco da cidade de Salvador. Assim, a cultura pode ser
compreendida como "forma originária de abordagem do real (a singularidade, a
incomparabilidade) de um grupo determinado, o que significa transcendência, liberdade ou
agregação de valor humano" (SODRÉ, 2010).
A proposta dessa experiência teve por objetivo refletir sobre as possibilidades de
uso das TIC no espaço escolar, numa perspectiva de educação voltada para a valorização
das diversidades culturais. Nesse sentido, as análises desses modos de produção culturais
e comunicacionais desenvolvidas pelos sujeitos da pesquisa, articulam-se com o
pensamento crítico de Sodré (2012) sobre importância crescente dos afetos nas culturas
contemporâneas.
O pesquisador faz um convite para perceber, de forma mais sensível, as
singularidades do outro, na prática da consciência coletiva para compreender a
comunicação no seu sentido mais amplo de interação, ou seja, a comunhão. O paradigma

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do sensível (SODRÉ, 2012) implica numa relação mais respeitosa e não destrutiva da
realidade – uma vez que “a força motriz da diversidade cultural está na sensibilização das
consciências frente à emergência do Outro, isto é, em autossensibilizar-se de maneira a
tomar contato com a gênese contingente de suas crenças, valores e atitudes” (SODRÉ,
2012, p. 185).
O autor destaca também, na sua obra, que a perspectiva crítica do tempo
educacional contemporâneo é o da descolonização, que se traduz numa reinvenção dos
sistemas de ensino e dissolução das explicações monoculturalistas do mundo, assim,
afirma:
Descolonizar o processo educacional significa liberá-lo, ou emancipá-lo, do monismo
ocidentalista que reduz todas as possibilidades de saber e a enunciação da verdade à
dinâmica cultural de um centro, bem sintetizado na expressão “pan-Europa”. Esse movimento
traz consigo igualmente a descolonização da crítica, ou seja, a desconstrução da crença
intelectualista de que a consciência crítica é apanágio exclusivo do letrado ou de que caberia
a este último iluminar criticamente o Outro (SODRÉ, 2012, p. 19)

Em face dessa constatação, o autor ainda afirma que a civilização pan-europeia é


pensada no singular, sempre implicando no saque, colonização e extermínio do outro. O
movimento da descolonização educacional transita pela contracorrente do singular, no qual
as culturas são contempladas e respeitadas em suas diversidades simbólicas,
transformando os modos tradicionais de produção de culturas e comunicação, sobretudo
na escola.
Ao se considerar o panorama contemporâneo que se empenha por uma reforma no
ensino, construindo projetos educacionais que contemplem a diversidade e a criatividade
humana, evidencia-se a necessidade de incorporar-se aspectos culturais, filosóficos e
pedagógicos dos diferentes povos que formam a nação brasileira, afastando-se padrões
eurocêntricos. Durante décadas, a escola acabava por promover uma espécie de
segregação informal, pela prática de ocultação e distorção das culturas negras e
indígenas.
O Bloco Afro Malê Debalê fundado há 36 anos, difunde os valores e sentidos que
reforçam a história e a cultura do povo negro, através de práticas pedagógicas com base
nas relações étnico-raciais, que se estruturam em dois pontos essenciais (SANTANA,
2009): O primeiro, solidificado pela concepção da África como uma das matrizes históricas
e culturais do povo brasileiro, balizado em conceitos que retratam a história, sociedade,
antropologia, literatura e cultura do continente africano. O segundo, na compreensão crítica

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e mais integrada de processos históricos que se fazem relevantes na contemporaneidade,


como as consequências do processo de descolonização da África e América Latina.
Nesse sentindo, o bloco, juntamente com o corpo docente da escola, desenvolvia
projetos pedagógicos em confluência com as Leis 10.639/03 e 11.645/08 antes mesmo
dessas terem sido sancionadas. A Lei de 10.639/03 determina que os conteúdos de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana sejam ministrados em todo o currículo, em
especial na área de Educação Artística, História e Literaturas Brasileiras. Assim, o Projeto
Impressões Negras, buscou potencializar as atividades já desenvolvidas na escola, a partir
do uso de dispositivos móveis.
O ensino das culturas africanas e afro-brasileiras deve ser estruturado numa
perspectiva de consolidação da diversidade cultural e, acima de tudo, pela afirmação da
identidade da população juvenil afrodescendente. As tecnologias se configuram como
elemento potencializador da produção do conhecimento e práticas instituintes
(HETKOWSKI, 2004), já que permite a existência de ambientes que privilegiam as
conexões, a criatividade e as inovações. Nesse sentido, o projeto foi pautado a partir das
referências ancestrais e contemporâneas da própria comunidade, mediada pela tecnologia,
arte e estética negra.
As oficinas de expressão artísticas mediadas pelos dispositivos móveis
representaram nesse projeto uma oportunidade de criar e dialogar com o outro, pesquisar,
conhecer e debater sobre a História e Culturas Afro-brasileiras e Africanas. Nesse
percurso, artístico e criativo, os alunos e alunas foram levados a interagir com outras
subjetividades, criar junto, colaborar, aceitar a opinião do outro e somar a isso a sua
própria contribuição, originando uma obra única, autêntica e representativa da cultura e
dos valores bem mais plurais.
Para melhor conectar as bases teóricas que perpassam essa pesquisa, faz-se
necessário pontuar os contextos dos contatos culturais descritos por Canevacci (1996),
que afirma que estes são “caracterizados pela reinterpretação ativa da recombinação
desnorteante, da revitalização móvel” (CANEVACCI, 1996, p. 22). Compreende-se, assim,
que a hibridação se atém também pelas coisas triviais e alheias, que incorpora, desdobra-
se. Os contatos culturais que ocorrem na escola, de forma respeitosa, afetuosa e sensível,
afastam-se a homogeneização simbólica.
Segundo Freire (1996), educar exige respeito aos saberes dos educandos, fazendo-
se necessário discutir com eles a razão desses saberes em relação com o ensino de
conteúdos, valorizando e suas experiências, exercitando a criticidade e a capacidade

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criativa. Quando, através da educação, é possível assegurar às pessoas o crescimento, a


visão da totalidade de tudo o que vivem. Evidencia-se o papel das pessoas como seres
histórico-sociais, no exercício da prática de comparar, de valorar, de intervir, de escolher,
de decidir, de romper.
Quando a educação, onde quer que seja aplicada, proporciona momentos de
descoberta de si próprios – sejam educandos ou educadores – e de suas histórias sociais
e culturais, reforça-se a capacidade crítica dos sujeitos do processo educacional. Desse
modo, ensinar afasta-se de uma mera transmissão de conteúdos pré-estabelecidos, mas
conta com uma diversidade de experiências, processo este que pode deflagrar no aprendiz
uma curiosidade crescente e que pode torná-lo mais criativo.
Assim, um dos pontos que norteou esta proposta de trabalho foi a estabelecer uma
conexão entre os saberes curriculares e a experiência social dos alunos dentro do grupo
cultural Malê Debalê, por meio de uma ponte entre a educação, a arte e a cultura. Segundo
Sodré (2014), a comunicação preenche os grupos sociais, pois institui uma série de
comportamentos, afetos, vínculos profundos ligados a um território (físico ou simbólico) e
que criam meios para que a “comunidade” possa existir. Assim, é possível notar como a
comunidade se apresenta como lugar da produção do conhecimento histórico e cultural.
Nesse sentido, a comunidade não se limita a relações de proximidade ou mesmo de
vizinhança, mas sim pelas possibilidades de fluxos e dos vínculos, conferindo uma
territorialidade outra para a cultura, na qual a comunicação e a sociabilidade são
indissociáveis. A comunicação é essencial para que os membros da comunidade possam
compartilhar interesses comuns, construindo juntos, a identidade coletiva do grupo. A partir
daí, revelam-se novas formas de uso dos lugares e da produção simbólica, para que se
perfaça o ideal comunitário.
São, nessas interações, que o objeto de pesquisa se revela, numa construção
recíproca e simultânea do conhecimento, fala-se de objetos, de sujeitos, produção de
semelhanças, divergências, nas quais a ação participativa da pesquisa contribui para a
formação processual dos sujeitos mais livres e críticos.

Percursos metodológicos

O projeto Impressões Negras foi realizado na Escola Municipal Malê Debalê no ano
de 2015, por meio de uma perspectiva pedagógica em prol da reflexão da diversidade
cultural por meio da arte e da estética. Para tal, foi necessário perceber as produções

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

simbólicas afro-brasileiras e africanas para além das generalizações, por suas matrizes
distintas, carregadas de uma efervescência culturais próprias.
A proposta era a de contribuir com o desenvolvimento de práticas e projetos
educacionais que construam e reconstruam o conhecimento plural, as experiências,
contemplando a abordagem participativa da pesquisa. Nesse sentido, pesquisadores,
alunos e alunas, professoras e diretores foram envolvidos, multiplicando-se os pontos de
vista.
Os desafios das investigações sociais são muitos e a credibilidade da ciência não se
localiza somente no rigor, mas pela "contribuição de sua prática na procura coletiva de
conhecimentos que tornem o ser humano não apenas mais instruído e mais sábio, mas
igualmente justo, livre, crítico, criativo, participativo, co-responsável e solidário"
(BRANDÃO; STRECK, 2006).
Nas palavras de Freire (1996), não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino.
O autor reconhece o caráter político e ideológico da atividade científica e pedagógica, por
meio das ações: Pesquisar para constatar; Constatar para intervir; Intervir para educar. A
metodologia de pesquisa participante (BRANDÃO, 2006) foi utilizada por ser aquela que
mais se apresenta como uma forma alternativa e emancipatória de saber popular.
Esses modos de fazer pesquisa pressupõe uma intervenção num contexto de
realidade. Logo, essa pesquisa parte do entendimento – construído de modo colaborativo
nos estudos sobre Educação e Contemporaneidade realizados pelo GEOTEC – no qual a
escola vai além do espaço de aplicação do saber acadêmico, mas configura-se com lugar
de encontro de muitas vozes e saberes. Logo, a pesquisa e a intervenção são operações
dessa investigação, assim foram realizadas oficinas de amparo teórico, prático e técnico,
onde os alunos e alunas puderam refletir sobre as culturas e as diversidades.
As atividades envolveram pesquisas, releituras das obras dos artistas, debates e
discussões sobre as artes plásticas como meio para refletir não somente sobre a
multiplicidade de grupos étnicos, costumes e tradições diferentes entre os africanos que
foram trazidos ao Brasil e para a Bahia. Os diálogos apareceram como uma constante,
entre educadores e educandos, onde todos aprendiam mutuamente, criando conexões
entre a liberdade, a cultura e a tecnologia.
No primeiro momento, uma série de explanações sobre o projeto, seus objetivos,
etapas, esclarecimentos sobre a pesquisa acadêmica foram realizadas. Assim sendo, os
alunos e alunas foram informados das vantagens e possíveis riscos (como o
constrangimento na exposição da imagem dos jovens e/ou suas produções), todos

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também foram informados que as atividades eram de livre participação e que, mesmo
assim, ainda havia a necessidade de aprovação dos responsáveis legais. Os partícipes e
seus responsáveis foram orientados sobre a opção de não ter os dados utilizados ou
divulgados na pesquisa e participar as atividades em sala de aula, tendo suas produções e
fotos cuidadosamente descartadas.
A proposta de trabalho com jovens do 5º ano do ensino fundamental envolveu três
eixos básicos: Bahias; Áfricas; e Diálogos Negros, desafiando-os a pensar as culturas afro-
brasileiras e africanas por meio de vivências e articulações, nas quais as tecnologias
funcionam como potencial de experimentação de um modo de pensar mais estético e
criativo.
Os valores ético-estéticos dos povos Akan foram trabalhados com o objetivo de
valorizar as culturas ancestrais, respeitando as suas alteridades, símbolos, mitos e
filosofias. Os Akan são um grupo étnico e linguístico da África Ocidental milenar, que hoje
se espalham pelos territórios de Gana e Costa do Marfim e mundialmente conhecidos
pelas significativas habilidades em tecelagem. Destaca-se a produção de tecidos Adinkra,
pano tradicional impresso ou carimbado com símbolos visuais que transmitem a sabedoria
tradicional, os aspectos da vida e do ambiente e as virtudes da cultura local.
A simbologia Adinkra (um sistema de escrita pictográfica e de ideias comprometidas
com a preservação e transmissão de valores, criada pelos povos Akan) foi reproduzida em
tecidos por meio de carimbos (Figura 1), pintura digital e fotomontagens, trazendo
contribuições significativas para uma melhor percepção da história e a ancestralidade,
também as relações entre os povos africanos e as músicas, danças e estética negra
presentes no Malê Debalê.
Figura 1 – Produções dos alunos e alunas com a simbologia Adinkra

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Fonte: Banco de Imagens GEOTEC, 2015

Todas as atividades possuíam cunho teórico e prático, com oficinas sobre culturas,
artes plásticas, arte digital, mídias, permitindo que os jovens produzissem ilustrações,
fotos, pinturas digitais. O uso de vários tipos de recursos visuais, aplicativos e jogos foram
de grande importância, destacando aqui a utilização dos tablets pelos alunos (figura 2),
permitindo uma experiência estética e pedagógica agradável, mobilizando do
conhecimento em sala de aula, potencializados a partir da apropriação de tecnologias.

Figura 2 – Oficina de Captura e Edição de Imagens

Fonte: Banco de Imagens GEOTEC,2015

Os jovens puderam experimentar as potencialidades educacionais dos dispositivos


móveis modo mais intenso, já que construíram novos significados para as tecnologias
móveis, além do já conhecido entretenimento. Aprenderam mais sobre aplicativos, quais
são mais adequados para fotografias, edição de imagens, fotomontagens, pinturas, entre
outros, refletindo sempre sobre o potencial comunicacional e informacional dos dispositivos
móveis.

Considerações Finais
A Escola Municipal Malê Debalê oferece uma série de referenciais afro-brasileiros e
africanos como forma de manutenção da memória individual e coletiva da comunidade que
se reflete nas falas e produções de conteúdo feitas pelos alunos e alunas. Ao reconhecer,

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potencializar e articular ações já desenvolvidas pela escola e pelo grupo cultural Malê
Debalê, foi possível compreender como os alunos adquirem rapidamente consciência
crítica, auxiliando na construção de uma identidade étnica, social e cultural.
Como forma de valorizar as percepções e expectativas dos partícipes, sobretudo
pelos benefícios trazidos aos mesmos, destacam-se as falas e inferências sobre as
culturas afro-brasileiras e africanas, nas multifacetadas identidades negras possíveis, por
meio da experiência pessoal e as vivências dos alunos e alunas enquanto produtores de
conteúdos artísticos.
Nos relatos, a presença de aspectos da cultura africana na atividade estética
realizada nas atividades “Diálogos Negros” foram, sem dúvida, as mais marcantes,
provocando situações desafiadoras para o grupo de pesquisa. Entre falas animadas,
seguras e diretas sobre a valorização da estética negra, identidades e culturas, algumas
situações de discriminação racial e as dificuldades de aceitação da própria estética
surgiram. Não sendo nosso objetivo aqui analisar tais falas, mas permitir o espaço para
que sejam audíveis por si mesmas:
O que é estética negra? É a raça, é tudo isso aqui que a gente está fazendo. Isso é ter
cultura, quando a gente mesmo faz, igual as pessoas que vieram da África pra cá pro Brasil,
principalmente na Bahia. (Aluno 20, 11 anos)
Aprendi muita coisa que tem a ver com a minha raça...minha raça é negra, então usar de
turbantes faz parte de mim, tem um pedaço de mim. Aqui na escola muita gente usa, as
professoras, alunas, por causa da beleza negra. (Aluna 4, 11 anos)

Essa pintura é muito bonita. Aqui ninguém usa esse tipo de pintura, tinha que espalhar,
sabe? Essa estética negra tinha que ter em todos os lugares, o povo precisa saber que não
existe só uma raça, existem várias raças, principalmente a negra! (Aluno, 12 anos)

Eu não gostava do meu cabelo natural, aí insisti pra minha mãe alisar. Mas um dia, cheguei
da escola, me olhei no espelho e me senti incompleta com aquele cabelo e eu chorei. Minha
mãe disse que tinha que esperar pra cortar, demorou um pouco. Só que depois que eu cortei
eu me achei mais bonita. (Aluna 9, 12 anos)

A educação como prática libertadora revela que há espaços possíveis para


diversidade cultural, proporcionar encontros e trocas dos educandos com as
Bahias e Áfricas é criar vínculos entre a ancestralidade e o que acontece
agora. As contribuições desta investigação na rede básica de ensino e os

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seus desdobramentos, representam as articulações entre a arte, a estética e


a cultura. Aproximar os debates sobre a diversidade cultural de dispositivos
tecnológicos no ambiente escolar é ampliar as possibilidades de aprendizado,
reconhecer a importância da tecnologia para a criatividade e compreender
que os dispositivos tecnológicos estão ligados diretamente às dinâmicas
sociais.

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65
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

INFÂNCIAS NEGRAS BRASILEIRAS: UMA LEITURA INTERSECCIONAL A PARTIR DO


COPENE

FLÁVIA DE JESUS DAMIÃO (UFBA)


ROSÂNGELA COSTA ARÁUJO(UFBA)

No âmbito do pensamento e das relações sociais brasileiras, bem como no âmbito


da produção científica da ciência social no país - a pobreza e a inapetência se
constituíssem nas lentes pelas quais a população negra foi vista e representada, inclusive
as crianças negras. (Del Piory, s.d.).

A assunção exclusivamente da pobreza para compreender as crianças negras e


suas infâncias brasileiras, favoreceu a elaboração de um repertório investigativo centrado
apenas na classe social. Esse modus operandi, obliterou a possibilidade de se colocar a
dimensão da pobreza em intersecções com outras variáveis estruturais para uma leitura
aproximativa das micro e macro realidades vividas pelas crianças negras. Quais sejam; as
dimensões étnico-racial, de gênero, geográfica, religiosa, afetiva, dentre inúmeras outras.

Diante desse contexto, torna-se evidente que no Brasil foi forjado um discurso
cientifico e político de encobrimento das múltiplas e complexas dinâmicas da vida de
meninas e meninos negros e suas infâncias. A pobreza, a carência, a falta constituíram-se
no índice privilegiado a matizar a produção e difusão de conhecimento acerca das
crianças negras brasileiras, porque havia – e ainda há - um modelo cognitivo universal, e,
exclusivo de criança e de infância no pensamento social brasileiro – a criança branca
burguesa e sua infância.

Este trabalho é um recorte da pesquisa de doutorado em andamento. Aqui


apresentamos um mapeamento inicial das produções apresentadas no VIII Congresso
Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (COPENE) realizado em Belém do Pará em
julho de 2014, a fim de identificar e analisar como se processa a produção e difusão do
conhecimento acerca das questões étnico-raciais e de gênero para com as infâncias
negras.

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1. Congresso Brasileiro de pesquisadores/as Negros/as (COPENE)

O Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as(COPENE) é um evento


bianual que realizou sua primeira edução no ano de 2000 em Recife. Segundo Nilma Lino
Gomes (2008). Desde a realização da primeira edição do evento, ocorrida no Recife em
2000, o objetivo principal foi conjugar à produção teórica-acadêmica, uma ação crítica e
propositiva em torno de problemas que afetam a população negra brasileira.

Considerando os contornos deste texto, nos deteremos na oitava edição do referido


evento. Um destaque importante a ser feito, que é ainda há escassez de trabalhos –
artigos e pesquisas - que abordem o COPENE como lócus de estudos. Em nossas buscas
iniciais encontramos os seguintes trabalhos sobre este evento (Nilma Lino Gomes, 2008;
Azânia Nogueia, Joana Passos e Tânia Cruz. 2013). Também recorremos a página da
Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) na Internet e os Anais do
VIII COPENE, como fontes de informação sobre o Congresso.

2. O VIII Copene

O VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as foi realizado em Belém-


PA na Universidade Federal do Pará(UFPA) em julho de 2014. O encontro teve como
tema Ações afirmativas: Cidadania e Relações Étnico-raciais. Nesta edição o encontro
tinha como principal objetivo “apresentar e discutir os processos de produção e difusão de
conhecimentos intrinsecamente ligados às lutas históricas empreendidas pelas populações
negras nas Diásporas Africanas(...)”(Coelho, Soares e Silva, 2014: 34).

No período de inscrições de participantes com submissão de comunicações orais


havia um universo de trinta(30) simpósios temáticos propostos, para os quais os
participantes poderiam enviar seus trabalhos. No entanto, doze(12) ST’s não foram
realizados. Dentre os Simpósios Temáticos(ST) que não ocorreram no VIII COPENE,
encontra-se o simpósio especifico acercas das infâncias negras. O simpósio chamava-se
Relações Raciais e Infâncias Negras e foi proposto pela Professora Doutora Fabiana
Oliveira da Universidade Federal de Alfenas(UNIFAL).

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A não efetivação do simpósio especifico acerca das Relações Raciais e Infâncias


negras, causou uma frustação em virtude das implicações que tenho com a temática de
modo geral, e com o COPENE, de modo mais singular.

A primeira implicação ressalta a faceta da militante das questões das crianças e


infâncias negras. A proposição do ST 14 no VIII COPENE de Belém significava, de certo
modo, o início da consolidação da temática infâncias negras no COPENE. Até o ano de
2010 ou seja, até o VI COPENE, as discussões que envolvia crianças e infâncias negras
eram distribuídas entre os diversos ST’s que ocorriam no evento. Em 2012, no VII
COPENE, ocorrido em Florianópolis, houve pela primeira vez, a proposição e realização
de um ST especifico acerca das infâncias negras. Este simpósio foi uma proposição
colaborativa entre mim e a professora doutora Lucimar Rosa Dias (UFPR). A segunda
implicação, refere-se a dimensão de pesquisadora em formação. Após, o primeiro ano no
doutorado, o COPENE, passou a se configurar como o campo da minha pesquisa de
doutorado.

3 Mapeando os trabalhos apresentados no VIII Copene

Com o intuito de identificar se havia trabalhos que contemplassem as categorias


eleitas por nós, infâncias negras, relações étnico-raciais e gênero, procedemos uma
leitura dos resumos dos trabalhos nos anais do VIII COPENE. Elegemos os seguintes
descritores quando da leitura do resumo. Infâncias negras, crianças negras, educação
infantil, relações étnico-raciais, negro(a), afrodescendente, racismo, gênero, conhecimento,
cultura”.

Selecionamos os trabalhos que contemplassem os referidos descritores de modo


isolado ou aquleles que trouxessem as categorias em intersecção. Os trabalhos
encontrados foram:

Trabalhos Autor/a Instituição

Nem preto, nem branco? Reflexões sobre as Lílian Teresa IFMA/UFF


relações etnicorraciais na educação Infantil Martins Freitas

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A literatura infanto-juvenil como viés construtivo Maria UFT


da identidade das crianças Kalunga de Mo1qnte Aparecida
Alegre- GO Matos; Valdete
Rodrigues de
Oliveria

Apresento-lhes histórias e contos africanos: “Tia Ana Paula dos URCA


por que nestas histórias só tem pessoas pretas? Santos

Modernidade e o encobrimento das crianças Flávia de Jesus UFBA


negras brasileiras e suas infâncias Damião;
Eduardo David
de Oliveira

Professoras negras de educação infantil em São Mighian Danae USP


Paulo: alguns apontamentos sobre trabalho e Ferreira Nunes
formação

O trabalho Nem preto, nem branco? Reflexões sobre as relações etnicorraciais na


educação Infantil de Lílian Teresa Martins Freitas discuti as relações étnico-raciais e
infância a partir da educação infantil. Em A literatura infanto-juvenil como viés construtivo
da identidade das crianças Kalunga de Monte Alegre- GO, Maria Aparecida Matos e
Valdete Rodrigues de Oliveria, chegam a conclusão que a literatura infanto-juvenil africana
e afro-brasileira pode influenciar no processo de construção de identidade e autoestima
positiva de crianças negras e não negras no ambiente escolar

A terceira comunicação selecionada Apresento-lhes histórias e contos africanos:


“Tia por que nestas histórias só tem pessoas pretas? de Ana Paula dos Santos também
tem como foco a relação entre a literatura infanto-juvenil africana e a formação da
identidade de crianças negras. Em Modernidade e o encobrimento das crianças negras
brasileiras e suas infâncias é uma co-autoria entre Flávia de Jesus Damião e o professor
Eduardo David de Oliveira. Neste trabalho, discutemos que a modernidade e seu projeto
de colonialidade de poder e saber europeus, encobriram diversos sujeitos sociais, dentre
eles as crianças negras e suas infâncias.

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Em Professoras negras de educação infantil em São Paulo: alguns apontamentos


sobre trabalho e formação, Mighian Danae Ferreira Nunes, centra sua atenção nas
professoras negras de educação infantil.

3.1 Reflexões acerca dos trabalhos selecionados

Um primeiro aspecto que chama nossa atenção é a pequena quantidade de


trabalhos encontrados, em torno das infâncias e crianças negras, apenas cinco (5)
trabalhos. Mesmo em evento que tem como foco a população negra, e, que ocorre na
segunda década do século XXI, as crianças negras e suas infâncias ainda, continuam
figurando como um continente populacional que tem suas demandas e especificidades
sub-representadas, também no âmbito da pesquisa cientifica brasileira com recorte étnico-
racial.

Neste sentido, desde o fim da década de 1970, e, ao longo das décadas de 1980 e
1990, alguns pesquisadores e pesquisadoras do campo das relações étnico-raciais
(Henrique Cunha JR, Luiz e Salvador, 1979; Pereira, 1987; Eliane Oliveira 1994(a);
Lucimar Dias, 1997; Neuza Gusmão, 1999) vêm apontando para a necessidade de se
produzir pesquisas que privilegiem crianças negras, de modo geral, mas especialmente
crianças negras pequenas. Esses estudos sinalizavam que até então, a criança negra e
menor de 7 anos tinha recebido pouca atenção pela reflexão cientifica.

A partir dos anos 2000, houve a intensificação de debates sobre a questão racial no
Brasil. Os movimentos sociais negros pautaram do Estado brasileiro a implementação de
instrumentos legais, e, a instituição de ações afirmativas para a população negra. Uma vez
que este contingente populacional foi historicamente desprivilegiado em função do racismo
estrutural operado pelo Estado brasileiro.

Neste cenário, de maior demanda sociais em torno das questões da população


negra houve um aumento significativo no número de estudos e pesquisas em torno das
infâncias negras no campo das relações étnico-raciais. Dentre este universo apontamos
temos: Eliane Cavalleiro, 2000; Denise Ziviani, 2003; Fabiana Oliveira, 2004(b); Lucimar
Dias, 2007; Flávia Damião, 2007; Silvandira Franco, 2007; Marta Santos 2008; Paula
Telles, 2010; Cristina Trindad 2011 dentre outros.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em virtude desse adensamento, é que nos causa estranheza a quantidade reduzida


de estudos acerca das infâncias negras no COPENE 2014.

Para nós, duas compreensões possíveis podem ser desenhadas no horizonte. A


primeira, de ordem econômica. Infelizmente, ainda hoje, custear uma viagem a região
Norte do país envolve alto custo financeiro. Tal fato pode ter inviabilizado a participação de
muitas pesquisadoras/es, inclusive daquelas que tematizam as questões em torno das
infâncias negras.

A segunda possibilidade explicativa diz respeito a questões de ordem geracional.


Partindo do aporte da sociologia da infância, uma leitura possível nos remete a dimensão
das infâncias como ordem geracional que está numa relação do domínio em relação a
geração da adultez.

No campo da teoria, a sociologia da infância tem construído os seus objetos de


análise a partir de três principais pontos de vista. (...) Num terceiro olhar, enfim, a
infância é entendida (tal como a adultez) como uma das duas gerações sobre a qual
assenta a ordem geracional, estrutura permanente que existe, com a sua clivagem
binária, em todas as sociedades (Qvortrup, 2004 apud ALMEIDA, ALVES,
DELICADO, CARVALHO, 2013: 341)

Considerando a proposição defendida por Jeans Qvortrup, (2004 apud ALMEIDA,


Ana Nunes; ALVES, Nuno de Almeida; DELICADO, Ana; CARVALHO, Tiago, 2013) acerca
da infância como “categoria dominada face a adultez”, em articulação com a reduzida
presença de trabalhos apresentados no COPENE 2014, bem como, com a suspensão do
ST Relações raciais e infâncias, nos perguntamos se neste evento pode estar havendo
um tratamento desigual – na esfera política, social, cientifica - no que concerne ao aspecto
geracional das infâncias negras como marcador relevante no âmbito das pesquisas sobre
população negra.

Em outras palavras, nos questionamos se, e, porque a dimensão geracional das


infâncias negras tem sido excluídas das pautas da produção do conhecimento mesmo
entre as pesquisadoras/es negros. Para nós, esse movimento sinaliza ainda uma postura
adultocêntrica das pesquisadoras/es do campo das relações étnico-raciais.

Outro aspecto que também precisamos destacar, é que nenhuma das cinco(5)
comunicações identificadas apareceu a categoria gênero em intersecção com infâncias

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negras. Os cinco textos selecionados entrecruzam apenas as categorias infâncias negras e


relações étnico-raciais.

Segundo Jane Felipe de Souza (2005) o conceito de gênero surgiu no interior do


movimento feminista na década de 1960. Sua criação faz parte do um movimento que
buscou colocar em cheque um conjunto de práticas sociais que legitimavam a
desigualdade entre mulheres e homens como ações naturais e universais a partir do
discurso das diferenças biológicas. Este conceito também evidenciou que a dominação e
subordinação das mulheres estavam ligada ao patriarcado e ao machismo vigente em
diversas sociedades.

Como conceito plural que é, a discussão acerca de gênero pode ser realizado a
partir de diversos marcos teóricos – do marxismo até a teoria pós- estruturalista. Isso
ocorre, porque enquanto categoria conceitual, as relações de gênero se configuram como
uma construção social, política, histórica e cultural banhada em relações de poder.

Um desses marcos teóricos é a perspectiva pós-estruturalista. O foco dessa


perspectiva, acerca de gênero, está em seu aspecto eminentemente relacional e
contextual.

Para além do COPENE 2014, no cenário mais amplo da pesquisa cientifica


brasileira, não podemos afirmar que haja a inexistência de pesquisas que relacionem
gênero e infância. No entanto, podemos a partir dos trabalhos das professoras Márcia
Gobbi (1997), Eloisa Rocha (1999) e Jane Felipe (2005) dizer que ainda há uma escassez
de estudos que contemplem a categoria gênero nos estudos sobre infâncias, crianças, e
educação infantil.

A escassez de estudos envolvendo gênero e infância é também apontada por


Zuleica Pretto e Mara Lago (2013). Neste trabalho, as autoras investigam as produções
sobre as infâncias nos estudos de gênero, a partir de duas Revistas Feministas. Ao final,
com base em 14 artigos analisados- as autoras sinalizam que além da necessidade de
haver maior numero de estudos envolvendo gênero e infância, é preciso que a categoria
gênero seja articulada a outras categorias sociais.

Se a questão de gênero não aparece em intersecção com a categoria crianças e


infâncias negras como temática principal nos cinco trabalhos selecionados, ela se faz

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presente no perfil das autoras das comunicações. No conjunto de sete autores, há seis
mulheres e apenas um homem.

É fundamentalmente, pela mão das pesquisadoras negras, e, em menor número


pela mão de pesquisadoras não-negras, que as temáticas das crianças e infâncias negras
adentra os espaço da produção de conhecimento cientifico. Os trabalhos de Flávia
Damião (2012) Thaís Carvalho (2013) corroboram essa compreensão.

No texto do projeto de tese que submeteu na seleção do DMMDC Flávia Damião


(2012) identificou o predomínio de pesquisadoras negras, em torno da eleição das crianças
e/ou infâncias negras como seus focos de pesquisa.

Thaís Carvalho (2013) na pesquisa bibliográfica para sua dissertação de mestrado


identificou um conjunto de vinte e quatro (24) dissertações e teses produzidas entre 2003 e
20011 que abordavam as relações étnico-raciais e a educação infantil e/ou infâncias.
Deste total, de pesquisas, 23 foram realizadas por pesquisadoras, apenas uma foi
empreendida por um pesquisador.

A forte, e, recorrente autoria de mulheres negras nos trabalhos acerca das infâncias
negras nos remete por hora a duas reflexões.

A primeira, mais positiva, é de que a chegada dessa temática ao âmbito da


academia tem sua gênese nas preocupações empreendidas pelos movimentos sociais
negros com a educação de suas crianças ao longo da nossa presença em terras
brasileiras. (Petronilha Gonçalves e Silva e Luis Alberto Gonçalves, 2000; Henrique Cunha
Júnior, Ana Beatriz 2003; Ivan Lima, 2004).

As mulheres negras sempre tiveram uma participação ativa nos movimentos negros.
Jurema Werneck (2000) diz que “foi a partir da contribuição das mulheres que a
comunidade negra veio a se organizar”. Pensamos, que no decorrer do processo de
organização da população negra, as questões das infâncias negras foram tomadas como
importante pelas mulheres. Se não podemos afirmar que todas as pesquisadoras negras
que trabalham com as questões das infâncias negras no âmbito da universidade, estão ou
estiveram ligadas a estes movimentos, podemos dizer que parcela significativa destas
autoras forjaram suas preocupações sobre a temática a partir de algum nível de relação
com estes movimentos.

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A segunda reflexão, que de alguma maneira pode se contrapor a primeira, refere-se


aos motivos que favorecem a predominância de pesquisadoras negras na atenção dos
universos das experiências infantis negras brasileiras no interior da academia. Porque são
as mulheres negras quem mais tem se ocupado das questões em torno das infâncias
negras, também, no campo da produção de conhecimento cientifico no Brasil?

Essa inquietação só nos ocorreu após aproximação com a produção teórica da


intelectual negra norte-americana bell hooks.(1995) Ela nos diz que o “sexismo e o racismo
atuando juntos perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na
consciência cultural coletiva a idéia de que ela esta neste planeta principalmente para
servir aos outros” (p.468). bell hooks avança, e, nos aponta que a compreensão da mulher
negra como inatamente mais capazes de cuidar de outros, está presente no pensamento
cultural de toda a sociedade, inclusive no do grupo social negro.

As considerações de bell hooks acerca do estereotipo da mulher negra como sendo


talhada para servir os outros, desequilibra nossa compreensões sobre as relações de
gênero na produção do conhecimento cientifico acerca das infâncias negras brasileira.

Considerações finais

As reflexões apresentadas neste texto, forjadas a partir de uma perspectiva de


conhecimento situado e eticamente implicado, busca contribuir para produção do
conhecimento que privilegia a intersecção entre relações étnico-raciais, geração e gênero.

O levantamento empreendido no VIII COPENE possibilitou a um só tempo, visibilizar


os estudos apresentados nesta edição do evento, bem como, problematizá-los. As analises
iniciais, nos trabalhos do VIII COPENE apontam a carência de trabalhos que elejam a
intersecção entre as categorias raça, gênero e geração quando temos em pauta as
questões das crianças negras brasileiras e suas infâncias.

O desafio posto a todas/os nós, militantes, pesquisadoras, ativistas, profissionais da


educação, que elegemos as questões em torno das infâncias negras, como nossas
temáticas de vida, de luta e de estudo, é a produção de conhecimentos forjado numa “pluri-
versalidade epistêmica” como nos diz Ramón Grosfoguel (2008). Ou seja, que nossa

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produção epistêmica, atuando nas fronteiras dos saberes, afirmem as muitas faces, jeitos,
sotaques, sonhos, histórias e experiências das infâncias negras brasileiras, como infinitas
possibilidades de ser e viver de modo autoral, positivo e digno. Para isso, precisamos
realizarmos um duplo movimento. Denunciar os etnocentrismos - étnico-racial, geracional e
de gênero, etc - que estão presentes nas relações sociais brasileiras, e que
transcodificam diferenças em desigualdades sociais. E, ao mesmo tempo, criar e anunciar
uma ambiência social na qual as infinitas possibilidades de ser e viver as infâncias negras
sejam realizadas de modo autoral, positivo e digno.

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O LADO NEGRO DA HISTÓRIA: A REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS NEGROS


NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

ALINE CESAR CARVALHO (UFBA)


MÔNICA DE MENEZES SANTOS (ORIENTADORA - UFBA)

Introdução

O lado negro da história. Negro? Sim, negro. Mas o “correto” não seria utilizar o termo
afrodescendente?

As palavras carregam consigo uma história na língua calcada no seu uso e nos contextos
em que foram utilizadas. A escolha de uma palavra em detrimento de outra evidencia mais
do que uma escolha ao acaso. E a palavra negro não está sendo aqui utilizada
gratuitamente. Como explicita Cuti em seu artigo “Quem tem medo da palavra negro”,
publicado na revista Matriz, em 2010, a palavra “negro” é a única do léxico que, ao ser
empregada para se referir à organização humana, não exclui o racismo. Sendo
historicamente utilizada como modo de ofender e inferiorizar, é agora assumida e utilizada
como forma de pertencimento e empoderamento, o que dá a ela outra acepção.
Reconhecer-se “negro” positiva o que era negativo. Não utilizar o termo é burlar um
processo de emancipação fundado pelos próprios negros:

Se o Brasil se concebe branco e mestiço, precisa se conceber negro. Não o


fazendo, o país vai continuar rejeitando a si mesmo. O negro brasileiro não é
africano, assim como os brancos daqui não são europeus, por mais que uma
pequena parcela lute pela dupla cidadania e tradições daquele continente sejam
preservadas. O branco aqui está doentiamente identificado, pois só se identifica
consigo mesmo. O negro luta para identificar-se consigo mesmo, pois está
identificado apenas com o branco, assim como o mestiço. No Brasil, a identidade só
faz sentido se for consigo mesmo e com o outro, não enquanto subserviência a
padrões estéticos ou identificação histórica, mas empaticamente. (CUTI, 2010)

O racismo vem adiando esse processo. Cento e vinte e seis anos após a abolição da
escravidão em nosso país, último país a aboli-la, e após inúmeras e sucessivas buscas
pela vigência do real significado que o termo “livre” carrega, algumas das formas de

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distinções sociais antes utilizadas pelas classes prestigiadas ainda se encontram


presentes em nosso dia-a-dia, mas desta feita, na maioria das vezes, de forma escondida
e mascarada. Olhares preconceituosos, depreciativos, e atitudes discriminatórias, bem
como dificuldades que são impostas somente àqueles que possuem um tom de pele
escuro ou status social menos favorecido.

A própria representação do negro em um dos principais meios de veiculação de


informação no Brasil, a televisão, é problemática e resume-se na escassez de
protagonistas e atores não-brancos, sendo que quando estes aparecem, ocupam lugares
sociais de subalternidade, representando motoristas, empregadas domésticas e pessoas
que ocupam um status social menos abastado. Sobre o assunto, em uma publicação
veiculada ao jornal O tempo em novembro de 2014, Wesley Grijó, pesquisador e professor
de comunicação da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), conclui: “Os negros
ainda são mais representados do que falam por si na TV. O que se vê é a história dos
negros contada pelos brancos”.

Ainda sobre a questão da representação, a autora Ana Célia da Silva, em sua pesquisa
sobre a representação social do negro no livro didático, publicada em 1995 pela Editora da
UFBA (EDU-. FBA/CEAO), quantificou a frequência de ilustrações com personagens
brancos e negros. Como resultado, ela obteve 435 ilustrações de crianças brancas em
atividades de lazer ou em sala de aula e apenas 51 ilustrações de crianças negras, a
maioria delas trabalhando ou realizando ações consideradas negativas.

Como podem então as crianças negras sentirem orgulho de sua cor, de suas raízes, e da
história de seu povo, quando mergulhadas em uma sociedade que prega e valoriza
padrões que caminham no sentido oposto? Qual a importância e o papel das histórias
infantis e dos professores educadores nesse aspecto? Num universo de lindas princesas
com pele branca como a neve, lábios vermelhos como o sangue, cabelos pretos como o
ébano, loiros como o amanhecer, suntuosos castelos e príncipes montados em lindos
cavalos brancos, como está sendo inserido na literatura infantil a imensa riqueza e beleza
da cultura africana? Qual tem sido o lugar ocupado por uma literatura infantil e negra no
Brasil?

A partir de um diálogo com trabalhos já publicados, como o de Ione da Silva Jovino,


“Literatura infanto-juvenil com personagens negros no Brasil”, e “ Literatura infanto-juvenil
contemporânea no Brasil e em Moçambique: tecendo negritudes”, de Maria Anória de

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Jesus Oliveira, buscarei traçar um breve olhar sobre os personagens negros na literatura
infantil hoje em nosso país, não fechando os olhos para as ideologias racistas que
permeiam a sociedade brasileira. Do mesmo modo, não deixarei de abordar algumas obras
revolucionárias que surgiram no mercado editorial infantil brasileiro nas últimas décadas e
que têm sido fundamentais para formação de uma nova consciência nas crianças do
Brasil. Para tanto, trarei a análise de algumas obras infantis, como: Menina bonita do laço
de fita, escrita por Ana Maria Machado; As tranças de Bintou, escrito por Sylviane A. Diouf;
O cabelo de Lelê, escrito por Valéria Belem, Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar, de Erika
Balbino, e Obax- Um conto africano, escrito e ilustrado por André Neves.

A trajetória dos personagens negros na literatura infantil juvenil brasileira.

Se eu sou mesmo afrodescendente, eu quero saber as histórias da África, porque


mesmo que não apareça a moral, como nas fábulas, elas têm uma moral escondida
que você aprende. Os heróis negros desses contos ajudam as pessoas a respeitar
os outros, ensinam que ninguém vive sozinho, isolado. São todos um conjunto para
combater o preconceito, a fome. (Fonte: Geledés.org.br)

As palavras acima foram ditas por Gustavo, um garoto de 10 anos, estudante da rede
pública de ensino do estado de São Paulo, em uma entrevista, quando questionado sobre
suas impressões acerca do Projeto Leituraço, que traz aos alunos contos e histórias
africanas. Apesar da pouca idade, o menino Gustavo traz-nos uma importante reflexão.

A história da literatura voltada ao público infantil no Brasil começou no final do século XIX e
início do século XX, com o surgimento das primeiras publicações, inicialmente com função
educacional, para moralização e evangelização dos jovens. A inserção de personagens
negros nas histórias ocorre a partir do final da década de 20 e início da década de 30,
durante o século XX.

Num contexto histórico marcado pela recém-saída da escravidão, a representação da


cultura negra por meio dos personagens das histórias infantis estava fortemente marcada
pela retratação da condição “inferior” dos mesmos, pela retratação de sua subalternidade.
Em nenhuma das representações de personagens negros desta época algum dos traços

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da cultura africana era ressaltado ou citado de forma positiva, mas era evidenciado o fato
de não saberem ler e eram retratados de modo pejorativo.

A partir do ano de 1975, surge uma preocupação por parte de alguns autores de
representar a sociedade brasileira de outra maneira. Com isso, os personagens negros nas
histórias infantis figuram com maior frequência, numa tentativa de introduzir a este público
assuntos até então não debatidos pela sociedade, muito menos por crianças e jovens,
como o preconceito racial.

A intenção original, no entanto, muitas vezes não conseguia ser alcançada. A preocupação
em conscientizar acerca da discriminação recorrente nas vivências do cotidiano e sobre a
necessidade de mudar a forma de tratar esse outro terminava por retroceder a
representações que iam ao sentido oposto. Ainda havia naquele contexto uma
superioridade com relação aos que antes eram cativos e que, apesar de agora livres, ainda
eram vistos como menores. Os personagens mostravam que eram os brancos os
detentores da beleza, da colocação social e das qualidades evidenciadas e que se deveria
desejar possuir.

A autora Ione da Silva Jovino, em seu artigo “Literatura infanto-juvenil com personagens
negros no Brasil”, acitado anteriormente, analisa o modo como era retratada a mulher
negra durante o passar dos anos acima descritos, e termina por esclarecer como se deu a
trajetória da inserção dos personagens negros nas histórias infantis e juvenis brasileiras.
Segundo a autora, durante o início do século XX, a personificação da mulher negra se
resume à empregada doméstica, descrita incansavelmente com um lenço e avental,
contida no espaço da cozinha, totalmente inferiorizada e subjugada. Como exemplo a
autora nos traz a Tia Anastácia, do escritor Monteiro Lobato, já gravada no nosso
imaginário como a empregada da família, que é a todo o momento criticada e
desprestigiada como pessoa e como contadora de histórias.

A partir de 1975, a autora explicita a representação da negra com traços físicos


provenientes dos brancos, sofrendo discriminações sociais e raciais, continuando a ocupar
um lugar de inferioridade e passividade. Sobre isso, acho importante salientar que ainda
hoje, na contemporaneidade, aparece marcada em muitas histórias infantis como
característica a representação de personagens negros de forma caricaturada com traços
europeizantes, como ocorre no atual filme infantil A princesa e o sapo, no qual a
personagem principal possui traços físicos comuns a pessoas brancas, apesar de ser

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negra. A mesma é apresentada como cozinheira, que almeja se tornar dona de um


restaurante, o que só consegue após se casar com um príncipe e se tornar uma princesa.
Mais uma vez entram em cena preconceitos sociais e raciais historicamente arraigados ao
pensamento da sociedade brasileira.

A partir da década de 80, alguns livros iniciam o que mais tarde viria a ser uma ruptura
com as antigas formas de inserir o negro e seus traços culturais nas histórias. Começam a
entrar em cena a relutância em aceitar a discriminação, a necessidade de buscar uma
identidade cultural até então negada, a possibilidade de exercer diferentes papeis na
sociedade e de possuir uma cultura que deva ser valorizada.

Com outro olhar e sem vendar os olhos: uma ruptura e uma nova abordagem dos
personagens negros.

Em 2002, é instaurada em nosso país a Lei 10.639/2000, que visa sancionar e tornar
obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana da educação básica com
o objetivo de – como reza as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana –
assegurar igualdade de vida e cidadania, bem como o direito de acesso às diversas
marcas culturais que formam o cenário brasileiro. Como resultado, contemporaneamente,
encontramos uma relativa, mas ainda pequena, mudança na representação dos
personagens negros nas histórias infantis e juvenis lidas nas escolas do ensino básico no
Brasil. Histórias essas nas quais algumas vezes personagens negros ocupam papeis de
protagonistas. Além disso, os livros infantis e juvenis que trazem histórias da África
ganham maior espaço no mercado editorial.

Há ainda, no entanto, um longo caminho a ser percorrido. Mesmo com a crescente


presença dos personagens negros, estes ainda se mostram escassos mediante a imensa
valorização da cultura e interesses europeus, fazendo com que muitas obras apresentem
em seu cerne histórias marcadas por uma representação estereotipada do negro.

Dentre as obras infantis e juvenis com personagens negros as quais tive acesso, algumas
me despertaram grande interesse por trazerem a preocupação e o cuidado de reconhecer

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e mostrar a cultura africana e o negro inseridos num cenário positivo. Não restringem a
obra a um contexto sociocultural, mas buscam conversas, rupturas com o que é
costumeiro, buscam novas abordagens.

Uma obra tida como pioneira nesse sentido é Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria
Machado. A história traz como personagem principal uma menina negra, e inicia-se com a
descrição da imensa beleza que esta menininha possuía: “seus olhos pareciam duas
azeitonas pretas [...] seus cabelos eram enroladinhos e bem negros como fiapos da noite
[...] sua pele era escura e lustrosa como uma pantera negra” (2005, PÁGINA 01). Essas
características não são apresentadas na história de modo negativo, muito pelo contrário, a
menina é admirada por um coelhinho branco que deseja de qualquer jeito se tornar
pretinho e lindo como a menina. Entram em cena discussões acerca dos padrões sociais,
da auto estima da criança negra e da beleza que esta possui. O coelho da narrativa
entende que a menina é negra devido à descendência de sua avó, que também era negra,
e daí procura uma coelha negra para casar e ter uma filha pretinha como a menina. Ao fim
da história, o coelho tem filhos de todas as cores “e até uma coelha bem pretinha”, o que
pode evidenciar, segundo Ana Célia da Silva, um continuum de cor que é costumeiramente
atribuído às variações da cor negra, que diferencia os indivíduos hierarquicamente em
nosso país. Outro ponto importante a ser evidenciado e problematizado na obra é o trecho:
“uma mulata linda e risonha” (MACHADO, 2005), uma vez que o mesmo reforça o
estereótipo da negra risonha, que não é chamada de negra mas sim de “mulata”, nos
remetendo à hipótese de autonegação e branqueamento presentes na ideologia racista
brasileira, na qual a miscigenação é a “saída” para se chegar ao ideal de beleza branco,
adotando-se a mulata como símbolo desta transição.
Outra importante obra a ser analisada é As tranças de Bintou, escrita por Sylviane A. Diouf,
que nasceu em Paris e após estudos acadêmicos que cerceiam a cultura africana, focou
seu olhar para as crianças do mundo, e que está presente no PNBE. Livro no qual
encontramos como cenário um local africano e como protagonista uma menina africana, a
Bintou, que sonha em ter tranças como as mulheres mais velhas da sua aldeia no lugar
dos seus birotes; tranças enfeitadas com pedras coloridas e conchinhas. O livro se inicia
com a voz da protagonista: “Meu nome é Bintou e meu sonho é ter tranças. Meu cabelo é
curto e crespo. Meu cabelo é bobo e sem graça. Tudo o que tenho são quatro birotes na
cabeça” (DIOUF, 2010). Entram em cena a percepção da criança mediante o mundo
adulto, as tradições africanas, a valorização dos mais velhos, os alimentos típicos presente

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nas celebrações, as roupas utilizadas, a transmissão destas tradições através das


gerações e as relações familiares. A menina recebe um penteado da avó e entende que é
linda mesmo sem possuir as tranças que viriam mais tarde: “Eu sou Bintou, meu cabelo é
negro e brilhante. Meu cabelo é macio e bonito. Eu sou a menina dos pássaros no cabelo.
O sol me segue e eu estou muito feliz.” (DIOUF, 2010).

O cabelo de Lelê, escrito por Valéria Belém, é mais uma história que nos traz a questão da
percepção da criança dos seus traços e características oriundas da descendência africana,
salientando a beleza que existe em ser como somos: diferentes. A menina que, no início
da história, não gosta dos seus cachinhos, busca nos livros respostas que expliquem
porque possui o cabelo tão enrolado, até que encontra a resposta:

Depois do Atlântico, a África chama e conta uma trama de sonhos e medos, de


guerras e vidas e mortes no enredo. Também de amor no enrolado cabelo, puxado,
armado, crescido, enfeitado, torcido, virado, batido, rodado. São tantos cabelos, tão
lindos, tão belos! (2007, p.6)

Lelê então entende que seus cachinhos representam uma imensa riqueza e passa a amá-
los. A história termina com a pergunta direcionada ao leitor: “Lelê ama o que vê! E você?”
Ao fim do livro, notamos que Lelê aparece de mãos dadas com um menininho ruivo, o que
nos faz refletir: seria esse fim de história a repetição da mesma hipótese da miscigenação
da população brasileira como saída para o branqueamento? Ou a personagem,
simplesmente, após viajar pelos países africanos e descobrir as diversas possibilidades de
penteados, fica feliz e se harmoniza com as outras crianças sejam elas negras, brancas,
louras ou ruivas?
A próxima obra é Obax, um conto africano, escrito e ilustrado pelo brasileiro André Neves,
que nos traz uma ficção ambientada na África e mostra que um continente tão rico
culturalmente ainda tem muita coisa para nos contar. As ilustrações remetem ao costume
existente em diversos grupos étnicos na Nigéria, Costa do Marfim, Senegal, Mauritânia,
Mali, e outros países, de utilizar lama e pigmentos naturais obtidos a partir de plantas
colhidas na região para enfeitar suas casas, roupas e objetos de cerâmica. A história
mostra também que o continente africano é formado por muitos países, muitos povos,
muitas histórias. Os nomes dos personagens também são africanos, Obax, que significa

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flor, e Nafisa, que significa pedra preciosa. A história traz a valorização da tradição oral,
mostrando que as histórias, como contam os contadores na África, são sagradas.

Obax, a protagonista da história, é uma menina conhecida na comunidade por suas


aventuras e histórias inventadas. Certa vez, Obax inventou ter visto uma chuva de flores, e
todos duvidaram, o que a deixou muito triste e a motivou a sair pela savana até encontrar a
tal chuva de flores. No caminho, encontra Nafisa, um elefante que a acompanha na
jornada. Nem sequer uma vez encontrou a chuva de flores. Voltou para casa e encontrou
todos muito preocupados com o seu sumiço, e então passou a contar todas as aventuras
que viveu e Nafisa seria a prova perfeita de que tudo era verdade. Mas, ao saírem,
ninguém vê nada, nem as pegadas do elefante que a menina havia contado, havia
somente uma pequena pedra em forma de elefante. Com raiva, Obax a enterra no chão.
No dia seguinte, no mesmo lugar nasce um enorme baobá, cheio de flores coloridas que
provocou uma linda chuva de flores quando Obax se aproximou da mesma. Nesse dia,
todos passaram a acreditar nas histórias de Obax e a árvore é repouso para sonhos cheios
de aventuras.

A última das histórias aqui elencadas é Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar, de Erika
Balbino, ilustrado pelo grafiteiro Alexandre Keto, publicado no dia 24 de maio deste ano,
pela Editora Peirópolis. O livro apresenta às crianças figuras lendárias das religiões de
matriz africanas que marcaram de forma expressiva a cultura brasileira trazendo a
capoeira como arte, dança e riqueza cultural ao universo do leitor. A obra nos traz a
história dos irmãos Cosme, Damião e Doum que certo dia se encontram com um menino
que se chama Pererê e muitos outros amigos que junto a eles irão passar por caminhos
mágicos e descobrir os encantos da capoeira. No desenrolar da história esses
personagens vão em busca do guerreiro Guariní ou Ogum Rompe-Mata para buscar ajuda
na luta contra Ariokê e todos aqueles que machucaram a Mãe-Terra com o desmatamento.

Nesta história o público em geral e, sobretudo, o público infantil e juvenil entra em contato
com a força da cultura africana. Sobre a obra a autora afirma:

A cultura afro-brasileira ainda é invisível. Seu ensino foi aprovado por lei (Lei
10.639/030 em 2003), mas permanecemos no campo do aprendizado da cultura
europeia, replicando valores já tão ultrapassados. Continuamos no campo do
folclore, como se o negro e até mesmo o índio fossem objeto de uma vitrine,
utilizada para fazer figuração em momentos oportunos. A literatura pode nos libertar

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dessas amarras e acredito que esta seja minha pequena contribuição. (Fonte:
Geledés.org.br)

Algumas das narrativas infantis e juvenis brasileiras contemporâneas e publicadas no


Brasil trazem algumas marcas inovadoras como o ouro, os reinos, a beleza negra e a sua
força, passando a desmistificar ideias e conceitos que reduzem a cultura africana às
guerras entre tribos, à fome, e aos atrasos sociais. No lugar destes se fazem presentes as
tradições, as lutas, conquistas e resistências.
As narrativas trazidas neste trabalho confirmam essa característica inovadora, não se
constroem fundamentalmente a partir de um ideal de possível embranquecimento e muito
menos num ideal onde o belo e desejável é o ideal branco. As crianças, personagens
protagonistas destas histórias, passam a entender o mundo adulto, as tradições, os
costumes e a amar a sua beleza, que para ser bela, não precisa ser deste ou daquele jeito.

Percebemos, por meio do contexto histórico, que a possibilidade de retratar positivamente


o negro por meio das histórias tanto na literatura quando por meio da mídia era algo
rarefeito, silenciado. As obras focalizadas aqui nos mostram contribuições valorosas para a
construção da identidade negra, que não é mais encarada como um problema, mas
recebem atenção e valor.

É importante salientar que, apesar de não focalizarem os personagens negros envolvidos


em cenários de demonstração de preconceito racial e/ou social, e sobretudo por isso, estas
obras são de imensa importância no que diz respeito a dar às culturas e às muitas Áfricas
um novo significado. Ler e disseminar histórias que são pautadas nas perspectivas
europeias, mas que estão mergulhadas nos espaços sociais e culturais africanos de que
fazem parte, possibilitando ao leitor que se projetem e que conheçam esse espaço outrora
pouco abordado.

Conforme explicita Maria Anória de Jesus Oliveira, em seu trabalho “Literatura infanto-
juvenil contemporânea no Brasil e em Moçambique: tecendo negritudes”,

Daí dizer-se que para ficcionalizar tais raízes, têm-se voltado “para o passado
remoto para reinventar África e tradições”, além de recriar o presente. Há
tematizações, ações e espaços sociais diversificados, contendo protagonistas,
sobretudo, altivos que expressam, compartilham aflições, desejos, por meio da
própria voz ou através do narrador. (SILVA, 2010, p.12)

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Sabemos que as inovações e as mudanças de conceber e enxergar o outro vem aos


poucos, como foi ao longo da construção do nosso país, por isso as obras de literatura
negra continuam sendo exceções no mercado editorial. Sabemos também que nem todas
as histórias infantis e juvenis que abordam personagens negros os trazem a partir do
mesmo viés que as obras analisadas aqui, e entendemos que os parâmetros sociais nos
quais estamos inseridos, infelizmente, ainda seguem padrões eurocêntricos, mas
entendemos também que essas obras aqui trazidas nos fornecem modelos e nos abrem
caminhos, por assim dizer, para algo muito maior que deve ser construído e disseminado
pelo nosso país e, principalmente, mostrado para as crianças negras, para que se
identifiquem e se vejam com outro olhar, para que sintam orgulho da imensa riqueza
cultural que carregam.

REFERÊNCIAS

SILVA, Ana Célia da. A Representação social do negro no livro didático. EDUFBA:
SALVADOR, 2011.

OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Literatura infanto-juvenil contemporânea no Brasil e em


Moçambique: tecendo negritudes. Itabaiana: GEPIADDE, Ano 4, Volume 7 | jan-jun de
2010.

JOVINO, Ione da Silva. Literatura infanto-juvenil no Brasil: um breve panorama sobre a


representação de personagens negros. In: Souza, Floretina; LIMA, Nazaré. (Org.).
Literatura afro-brasileira. Salvador: CEAO; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

CUTI. Quem tem medo da palavra negro? Revista Matriz. Grupo Caixa Preta. Porto Alegre,
RS, 2010.

DIOUF, S. A. As tranças de Bintou. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.

MACHADO. Ana Maria: Menina bonita do laço de fita. 7º edição. São Paulo. Ártica, 2005.

BALBINO, Erika: Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar. 1º edição. Editora Peirópolis, 2014.

BELÉM, Valéria: Os cabelos de Lelê. 2º edição. IBEP NACIONAL, 2012.

NEVES, André: Obax: um conto africano. Brinque book, 2010.

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RELEITURAS DE LOBATO

MÔNICA DE MENEZES SANTOS (UFBA)

Quando da realização das pesquisas para a elaboração da minha tese de


doutoramento, intitulada Por um lugar para a literatura infantil e juvenil nos estudos
literários – que buscou refletir acerca do lugar (ou do não-lugar) concedido à literatura
infantil e juvenil nos estudos literários brasileiros contemporâneos – aferi que Monteiro
Lobato é o autor mais estudado no espaço acadêmico e, ainda, que, a despeito de todas
as revisões contemporâneas sobre as representações das minorias em autores modernos,
os estudiosos dos 75 trabalhos por mim lidos, entre dissertações e teses, produzidas entre
os anos de 2006 e 2010, dos Programas de Pós-Graduação de seis instituições por mim
eleitas (PUC-RS, USP, UNICAMP, PUC-RJ, UFRJ e UFMG), realizaram, majoritariamente,
leituras de enaltecimento tanto da obra quanto do autor de Reinações de Narizinho,
escamoteando, por suas vez, as motivações e contradições lobatianas para a construção
do seu projeto estético para modernização do Brasil. Projeto esse que tinha na literatura
infantil e juvenil sua principal linha de ação.

Antes de entrar nas discussões sobre o corpus do trabalho propriamente dito,


gostaria de avivar em nossa memória que, no ano de 2010, baseado nas denuncias de
autoria do técnico em gestão educacional da Secretaria da Educação do Distrito Federal,
Antonio Gomes da Costa Neto, o qual, em sua leitura de Caçadas de Pedrinho, entendeu
que o livro teria conteúdo racista, sobretudo no trato com a personagem negra Tia
Anastácia em comparações a personagens animais, tais como urubu, macaco e feras
africanas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendou ao Ministério de
Educação (MEC) a implementação de ações governamentais em função da aquisição pelo
Programa Nacional Biblioteca Escola (PNBE) do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro
Lobato, bem como de sua distribuição e consequente aplicação em sala de aula, pelo fato
de o mesmo conter estereótipos raciais.

Em consequência, muitos escritores, professores, intelectuais e a imprensa, de um


modo geral, concluíram que o CNE baniria as aventuras do Sitio do Picapau Amarelo, ou
especificamente o livro Caçadas de Pedrinho, das salas de aula. Em vista disso, a
Academia Brasileira de Letras, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e diversos

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escritores e intelectuais (entre eles Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós,
Lygia Bojunga, Pedro Bandeira, Ruth Rocha) escreveram manifestos, cartas e abaixo-
assinados de apoio a Monteiro Lobato; mais do que isso, se manifestaram contra a
censura da qual, supostamente, a obra de Lobato estaria sendo vítima.

O que se tornou evidente com a polêmica, sobretudo por conta das reações
apaixonadas, foi o lugar de distinção concedido a Monteiro Lobato pela intelectualidade e
pela sociedade letrada brasileira. Lugar esse que se reafirma quando da análise dos
trabalhos produzidos sobre o autor. Diante disso tudo, a minha tese é de que há toda uma
linhagem de estudiosos da literatura infantil e juvenil produzida por Monteiro Lobato que se
predispõem ao enaltecimento desse escritor, recusando leituras mais contextualizadas e
políticas. Podemos, a partir dessa afirmativa, construir diversas considerações acerca do
lugar que esse autor e sua obra ocupam no cânone da literatura brasileira, mesmo sendo a
maior parte de sua obra pertencente a um gênero considerado menor.

Vejamos alguns exemplos dessa linhagem de estudos: Margarida de Sousa, na


dissertação Emília: potencialidade transgressora na formação de um novo conceito de
infância (UFMG), analisa a boneca Emília relacionando-a à constituição de um novo
conceito de infância. Para a autora, a preocupação de Lobato com o exercício da
linguagem e sua importância para a formação de indivíduos críticos, cultos e livres,
capazes de construir uma nova nação brasileira, alcança o ponto máximo em sua
personagem mais importante, pois, muito mais que uma boneca, a personagem é, para
além do alterego de Lobato, o alterego da própria infância: “Emília, uma boneca de pano
(um brinquedo), assume a importante tarefa de ser o objeto sobre o qual a criança espelha
suas vivências.” (SOUSA, 2009, p. 85)

A autora considera que, ao criar Emília, Lobato estaria construindo um conceito de


infância que se afastaria da concepção reconhecida na época: de um ser frágil,
dependente e facilmente manipulável. E foi justamente essa representação transgressora
da infância, segundo Luciana Corrêa, em sua dissertação Infância, escola e literatura
infantil em Cecília Meireles, que fez com que a poeta recusasse as obras lobatianas
destinadas à infância e à adolescência, conforme fica evidente em carta que a poeta
enviou a Fernando Azevedo, em 1932:

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Recebi os livros de Lobato. [...] Ele é muito engraçado, escrevendo. Mas aqueles
seus personagens são tudo o que há de mais malcriado e detestável no território da
infância. De modo que eu acho que eu penso que os seus livros podem divertir
(tenho reparado que diverte mais os adultos do que as crianças) mas acho que
deseducam muito. [...] Por nenhuma fortuna do mundo eu assinaria um livro como
os de Lobato, embora não deixe de os achar interessantes. (MEIRELES apud
CORRÊA, 1996. p. 229 – Grifo meu)

Além das noções de pureza e submissão infantil, prováveis causas da


desaprovação por Cecília Meireles dos “personagens malcriados” do Sítio do Picapau
Amarelo, alguns pesquisadores consideram, entre eles Caroline E. Brero (2003), que outra
questão poderia ter levado a pedagoga a não mencionar Lobato nos Problemas da
literatura infantil: a guerra travada entre o autor e a igreja católica desde os anos de 1930.
Na década de 1950, mesmo momento em que Cecília Meireles lançava seu estudo, a
Igreja Católica promoveu campanhas para que fossem queimados os livros de Monteiro
Lobato, e escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro, São Paulo e Taubaté, além de
bibliotecas, passaram a proibir essas obras. Contudo, não nos interessa aqui comprovar as
motivações que a teriam levado a reprovar e, consequentemente, silenciar a obra infantil e
juvenil lobatiana no seu livro Problemas da literatura infantil. Interessa-nos apenas
evidenciar como a representação não pacífica e domesticável da infância construída por
Lobato provocou muitas ebulições naquela época, ao passo que o debate em torno das
expressões racistas só emergiu quando houve uma transformação na maneira da
sociedade brasileira pensar a sua própria constituição, isso por conta do empoderamento e
das reivindicações de um grupo que foi durante séculos - e ainda é - marginalizado.

Outra perspectiva de leitura que enaltece a obra lobatiana é também encontrada


na dissertação Os narradores híbridos de Memórias da Emília de Monteiro Lobato
(UNICAMP), na qual a estudiosa Emilia Mendes localiza, no diálogo que a obra Memórias
da Emília estabelece com o cinema hollywoodiano, a admiração lobatiana pelo
desenvolvimento tecnológico, científico e econômico, e flagra a sua fórmula para formação
de um Brasil moderno: a mescla entre o clássico e o moderno, o nacional e o estrangeiro.
Além disso, a estudiosa evidencia o investimento do escritor em representar a infância de
maneira ativa e transgressora:

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Na obra lobatiana, principalmente as consideradas de instrução ou mistas,


encontramos um educando ativo, participante de seu processo de aprendizado e
cuja interação social, principalmente com adultos, é fundamental na construção do
conhecimento. Narizinho, Pedrinho e Emília interagem o tempo todo com adultos
dos mais divergentes caracteres e formações: desde adultos extremamente cultos a
iletrados e ignorantes, desde homens extremamente valorosos a grandes patifes da
humanidade, desde loucos varridos a baluartes da razão e da ciência... (MENDES,
2008, p. 68)

Do mesmo modo que Margarida Sousa, Emília Mendes não discute as motivações
ou as implicações do empenho do escritor em constituir esse educando ativo, nem as
estratégias utilizadas pelo mesmo para conceber seu projeto; também não questiona o que
representam e que posições hierárquicas ocupam os personagens que interagem
socialmente com Pedrinho, Narizinho e Emília (crianças em processo de formação). Enfim,
não são observados que os traços eleitos por Lobato na sua elaboração de um projeto de
Brasil moderno, do qual o Sítio é um protótipo, derivam, especialmente, da cultura europeia
ou norte americana, em detrimento daqueles especificamente brasileiros, notadamente os
negro-mestiços.

O projeto literário e pedagógico de Lobato pretendia formar cidadãos capazes de


construir um país desenvolvido intelectual e materialmente. Na base do projeto, segundo
seu próprio discurso, estaria a valorização do que é nacional, mas sempre atualizado pelo
contato com os países desenvolvidos, conforme se infere da leitura do trecho de carta,
datada de oito de setembro de 1916, enviada ao amigo Godofredo Rangel:

Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La
Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. [...] Ora,
um fabulário nosso, com bichos daqui em vez de exóticos, se for feito com arte e
talento dará coisa preciosa. As fábulas em português que conheço, em geral
traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e
impenetráveis. Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim
seriam um começo da literatura que nos falta. (LOBATO, 2010, p. 370)

O que estava no bojo do seu projeto, portanto, era produzir conhecimento de uma
perspectiva brasileira e torná-lo acessível a um público sempre maior. Na procura por
essas realizações, o escritor lançava mão de duas linhas de ação: narrar a partir de um
texto que atingisse diretamente o seu leitor e que o incorporasse ao próprio texto; criar
canais que possibilitassem o encontro entre obra e público. Além disso, a estratégia
lobatiana para fazer circular seus livros na escola e através de uma rede comercial que

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não se apoiava apenas em livrarias para distribuir livros fez dele, já no final da década de
1930, além de o autor mais lido pelas crianças e adolescentes brasileiros, um
empreendedor na atividade editorial. O que significa dizer que tanto a produção quanto a
distribuição de livros faziam parte do empenho de Monteiro Lobato para formar uma
mentalidade nacional. Essa mentalidade seria construída a partir de modelos apresentados
pelo escritor em sua obra.

Tais modelos são flagrados por Mariana de Gênova, na dissertação As terras


novas do sítio: uma nova leitura da obra O Picapau Amarelo (UNICAMP). Para a
pesquisadora, em O Picapau Amarelo, há uma crítica contundente e pessimista de Lobato
à sociedade moderna e urbanizada. Na obra, personagens de fábulas e de contos de fadas
se mudam para o Sítio e são recebidos da forma mais acolhedora possível pelos seus
moradores. Mas a superpopulação e a desorganização territorial provocam brigas e
desentendimentos entre os novos habitantes. Gênova identifica nesses acontecimentos a
opinião negativa de Lobato à onda migratória que chegou ao Brasil na década de 1930. Do
mesmo modo, ela compreende o fracasso do casamento entre a Branca de Neve com o
príncipe Codadade (encontro de etnias e culturas que passaram a compor o cenário do
Sítio) como uma constatação de Lobato de que o encontro pluriétnico poderia fracassar.

Outra estudiosa que faz essa análise do Sitio do Picapau Amarelo como uma
representação do Brasil construída por Lobato é Dilma Castelo Branco Diniz, a qual
considera que o Sítio configura uma utopia do país que se assemelha à utopia proposta
por Oswald de Andrade. Nas suas palavras “[...] foi Monteiro Lobato que realizou, com o
Sítio do Picapau Amarelo, “a utopia oswaldiana do Matriarcado de Pindorama e do bárbaro
tecnicizado” (DINIZ, 1997, p. 164). Essa aproximação entre Oswald de Andrade e Monteiro
Lobato me conduz a Silviano Santiago, no artigo “Oswald de Andrade ou elogio da
tolerância racial” (2006), quando o crítico discute a afirmação do intelectual modernista de
que os poemas da Coleção Pau-Brasil, publicados em 1924, foram escritos “[...] por
ocasião da descoberta do Brasil”. Descoberta esta que aconteceu justamente quando o
poeta estava em Paris.

Lobato, como Oswald, também compreendia que era a partir do diálogo entre o
interior (nacional) e o exterior (norte-americano e europeu) que o Brasil poderia
modernizar-se material e espiritualmente. Na eleição e alinhamento dos valores a serem
ativados por esses intelectuais para integração de um “país atrasado e periférico” ao

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concerto das nações modernas, estaria uma nova forma de colonização, ou a colonização
do futuro, que consiste

[...] na forma como Oswald de Andrade e outros recuperaram o que injustamente


tem sido classificado de passado colonial brasileiro numa visão reducionista do que
é na verdade a possível cultura das raças indígenas e africanas no diálogo com a
Modernidade ocidental. Esse reducionismo acaba por valorizar uma razão moderna
etnocêntrica, intolerante, incapaz de manter o diálogo com o seu outro (as culturas
ameríndias e africanas). (SANTIAGO, 2006, p. 137 – Grifo meu)

Sobre a apropriação de outras tradições por Lobato, Thatty Castello Branco, na


dissertação O Maravilhoso e o Fantástico na literatura infantil de Monteiro Lobato (PUC-
RJ), localiza, sem maiores questionamentos, o diálogo do criador de Emília com a
mitologia grega. Para a pesquisadora, a partir do contato com os personagens fantásticos
e maravilhosos criados e recriados por Monteiro Lobato, a criança descentra-se, torna-se
um espírito livre dos preconceitos, do dogmatismo. Com tal pensamento, Branco
desconsidera o fato de o maravilhoso ancestral eleito por Lobato não estar nas narrativas
orais de matriz africana ou indígena, estar na mitologia grega e nos contos de fadas, e
estar, também, na literatura europeia: “Viva Anderson! Viva Carroll!” (LOBATO, 2009, p.
27), foi o que gritou Emília, após escutar Tia Nastácia contar uma história do seu “povo”.
Enfim, há uma eleição.

A significação cultural de Tia Nastácia é colocada em posição hierárquica


desfavorável, do mesmo modo que o seu lugar social, o espaço da cozinha que, para
Marisa Lajolo em “Negros e negras em Monteiro Lobato”, é o “[...] emblema de seu
confinamento e de sua desqualificação social.”(LAJOLO, 1999, p. 65). É precisamente
esse lugar que faz com que seus interlocutores desprestigiem suas narrativas em relação
às eurocêntricas: “Eu também acho muito ingênua essa história de rei e princesa e botas
encantadas – disse Narizinho. – Depois que li o Peter Pan, fiquei exigente.” (LOBATO,
2009, p. 18)

Margarida Sousa, autora da dissertação já referenciada, ao analisar a recepção


das histórias das tradições populares contadas por tia Nastácia, na obra que leva o seu
nome, considera que as crianças, sobretudo Emília, expõem os “[...] conceitos que
estavam presentes no discurso adulto, mas que hipocritamente eram negados” (SOUSA, p.

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109) e cita Marisa Lajolo para enfatizar que “[...] o conflito é violento porque ele não era
menos violento na vida real, nem abaixo, nem acima do Equador” (LAJOLO, 1999, p. 89).
Negar esse conflito violento seria, para Sousa, “[...] uma forma de marginalizar o negro e
sustentar o status quo”(p. 110). No seu dizer, “[...] as más-criações de Emília, ao invés de
disseminar o racismo, promovem um questionamento e denúncia dessa realidade ainda
tão presente na sociedade brasileira: o preconceito racial encoberto.” De fato, Lajolo flagra
na mímese da recepção encenada por Lobato nas Histórias da Tia Nastácia as tensões
raciais pela qual passava o Brasil na época e constata nessa obra os mesmos
encaminhamentos que a questão da representação do negro encontrava em boa parte da
intelectualidade brasileira. Mas a estudiosa também sugere que se avalie a posição
díspare das duas contadoras de histórias do Sítio do Picapau Amarelo: Tia Nastácia e
Dona Benta. Enquanto a última narra histórias da tradição europeia e, por ser adulta e
mais experiente, fica em posição hegemônica em relação aos seus ouvintes; a primeira,
conta as histórias da tradição popular e oral brasileira e, embora também adulta e
experiente, por sua condição de serviçal e pelo ofício de cozinheira, fica em posição de
subalternidade em relação aos receptores.

Na dissertação Era uma vez... A contação de histórias no universo lobatiano:


contribuições para a formação do leitor (PUC-RJ), Márcia Sousa, abranda a rejeição
demonstrada pelos personagens do Sítio quando escutam as histórias contadas por Tia
Nastácia, ou seja, não questiona o que significa a desqualificação que os personagens
impõem à tradição oral trazida pela cozinheira negra:

O senso crítico apurado dos personagens ao ouvirem as histórias de tia Nastácia, a


princípio, faz parecer que Lobato privilegia a cultura letrada em detrimento da oral,
o que não nos parece justo, visto que, mesmo tendo o autor escrito e transcrito
muitas histórias, fez questão de mediá-las ao dar voz (ora a uma negra
descendente de escravos que não teve acesso aos livros, ora a uma senhora leitora
voraz de clássicos antigos, ou ainda a outros personagens), possibilitando que
estas fossem contadas. Em suma, parece-nos, antes, que ele não seccionou, mas
agregou, retirando de cada um o seu melhor sumo.(SOUSA, 2010, p. 2)

Ao constituir o Sítio do Picapau Amarelo, protótipo de um Brasil moderno e


desenvolvido, Monteiro Lobato, como tantos outros intelectuais nas décadas de 1920 e
1930, procurou incorporar à modernidade ocidental os elementos anteriormente

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recalcados: as contribuições culturais das raças indígenas e africanas. No entanto, ao


contrário do que afirma Márcia Sousa, o encontro cultural teve lugares demarcados
hierarquicamente. À Tia Nastácia coube, por exemplo,

[...] o papel de “informante”, de fornecedora de histórias das quais as outras


personagens lobatianas se apropriavam como antropólogo em viagem de campo,
garimpando alteridades e exotismos que, retrabalhados, passam a constituir tanto
objeto da ciência (o folclore) quanto objetos de alta valorização estética (a obra
modernista), em nenhum dos dois casos retornando o produto a seus sujeitos de
origem. (LAJOLO, 1999, pp. 76-77)

A marginalidade da cultura popular, representada por Tia Nastácia, também é


encenada na obra Caçadas de Pedrinho, livro que deu origem à polêmica em 2010.
Todavia, Jaquelin Rocha, na dissertação De caçada às caçadas: o processo de re-
escritura lobatiano de Caçadas de Pedrinho a partir de A caçada da onça (UNICAMP), em
nenhum momento trata dos aspectos preconceituosos que hoje estão em pauta,
restringindo-se a observar as semelhanças e diferenças temáticas e formais identificadas
entre as duas obras. Embora a autora cite trechos que, atualmente, são polêmicos, não o
faz para discutir questões referentes às supostas expressões racistas de Lobato:

Os atos das personagens são narrados, no segundo livro, de forma relativizada,


elas “trepam em uma árvore próxima como macacos”, na primeira versão, é
modificada para “como se houvessem virado macacos, todos procuraram a
salvação nas arvores”; Rabicó “virou gato”, enquanto na segunda versão, ele está
“à arvore que nem gato”. Essas modificações são sutis, porém parecem deixar a
narrativa menos categórica, ainda que a parte descritiva, nela, seja maior. (ROCHA,
2006, p. 66 – Grifos da autora)

Para a autora, no seu ato interpretativo, não foi relevante mencionar que, em se
tratando de Tia Nastácia, as expressões não deixaram de ser categóricas. “Negra beiçuda”
e “macaca de carvão que sobre em árvores” são os epítetos utilizados para designá-la
ainda na sexagésima edição da obra, tal como se pode ler abaixo:

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[...] e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem
uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que
parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros [...]. (ROCHA,
2006, p. 66 – Grifo meu)

Tais expressões reiteram noções de superioridade e inferioridade raciais


predominantes em uma determinada época e, portanto, conforme recomenda o CNE,
necessitam ser contextualizados, por conta dos efeitos que esse tipo de linguagem pode
exercer sobre a personalidade em formação de crianças tanto negras quanto brancas.

Ângela Lignani, autora da tese J. K. Rowling: diálogo literário e cultural com


Monteiro Lobato e Isabel Allende (UFMG) – ao comparar as obras dos três autores,
avaliando as apropriações mitológicas feitas por eles em seus diálogos com as suas
respectivas tradições literárias – analisa a relação de Lobato com a mitologia grega, como
também com as produções consagradas como clássicas da literatura destinada à infância
e à adolescência (Andersen, Perrault, Carroll e Barrie), e constata que estas são tratadas
pelo autor como modelos a serem seguidos para a constituição de um fabulário
propriamente brasileiro. Fabulário que deve englobar a cultura local, de matriz africana e
indígena, sendo, no entanto, a matriz europeia o ícone autêntico, aquele que contém a
verdade essencial e, portanto, ocupa posição hierárquica superior:

De um lado os negros, de outro os índios. A salvação estava no branco com todo o


acervo trazido da Europa. Tivesse Lobato uma visão mais condescendente do
“aborígene”, termo que ele utiliza para se referir ao índio, talvez houvesse criado
outros ricos personagens a fazerem parte do panteão brasileiro. Como acrescentar
elementos que intensificassem ainda mais o que ele entendia como primitivismo e
que continuariam a atestar uma deficiência no país que ele focalizava com lentes
severas? (LIGNANI, 2007, p. 45)

Evidencia-se no trabalho de Lignani um posicionamento crítico diferenciado em


relação a outros estudiosos da literatura infantil e juvenil brasileira que, dentro do corpus e
recorte temporal por mim eleitos, se propuseram a analisar a representação da cultura
não-europeia e não-letrada na obra destinada à infância e à adolescência de Monteiro
Lobato. Diferentemente de outros críticos, a autora não concorda que a obra retrate

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apenas os conflitos da vida real, encenando o comportamento de uma época no que se


refere às relações raciais e, por isso mesmo, denunciando os preconceitos. Para Lignani,
não se trata apenas de desvalorizar o popular, trata-se de desqualificar “[...] principalmente
as fontes advindas dos segmentos negro e índio, já que Histórias de tia Nastácia se
constitui como uma contínua reafirmação da falta de imaginação do povo, do negro e do
índio, com o aval de Dona Benta.” (LIGNANI, 2007, p. 67)

Na tese também se discute a característica antropofágica de Monteiro Lobato.


Segundo a autora, tal característica era perpassada por um ideal iluminista humanista que
objetivava a formação do leitor mirim e do leitor em geral. Para tanto, o intelectual
escolhia, no acervo cultural do ocidente, o que considerava importante para seu projeto. O
Sítio do Picapau Amarelo seria uma miniatura do mundo, de um mundo novo constituído
por seu autor, a partir de um processo de seleção e montagem.

No entanto, em contraponto a Dilma Diniz – que, na sua aproximação entre o Sítio


do Picapau Amarelo e o “Matriarcado de Pindorama”, põe em cena apenas os aspectos
positivos da elaboração antropofágica de Lobato, declarando ser o mesmo “[...] um espaço
livre, harmônico, isento da repressão e aberto à atividade criadora e lúdica [...], um espaço
do ócio e não do negócio, como na sociedade patriarcal” (DINIZ, 1997, p. 130) – Lignani
flagra os jogos de forças que subjazem as relações sociais e culturais no Sítio. Ao
comentar o episódio das Memórias de Emília em que o Sr. Popeye luta com Peter Pan, a
autora escreve:

[...] diferentes momentos do episódio mostram que, apesar de aficionado pelo


cinema e inventividade americanos, na fabulação entre ingleses, americanos e
brasileiros, há um complô, aprovado inclusive por Dona Benta, para que o Sr.
Popeye leve a pior, dando a melhor ao lado inglês, revelando mais e mais o seu
fascínio pela obra de James Barrie e considerando que o acervo do “bom gosto”
pertence à Europa, os Estados Unidos também são “crias” como o Brasil e
devedores das mesmas fontes. (LIGANI, 2007, p. 130 – Grifo meu)

Portanto, tanto o Matriarcado de Pindorama quanto o Sítio do Picapau Amarelo


são elaborações de intelectuais modernos em seus anseios por constituir, em um momento
em que o Brasil passava por uma série de mudanças – aceleração dos processos de
urbanização e industrialização, desenvolvimento de uma classe média e surgimento de um

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proletariado urbano –, uma imagem positiva da nação que pudesse colocá-la no rol das
nações desenvolvidas. Contudo, na urdidura dessas narrativas, os ingredientes escolhidos
e, mais ainda, as posições em que foram agrupados esses ingredientes, denunciam as
motivações desses intelectuais.

Referências

BRANCO, Thatty. O maravilhoso e o fantástico em algumas obras infantis de Monteiro


Lobato. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-RJ, 2007.
(Dissertação, Mestrado em Letras).

BRERO, Caroline. A recepção crítica das obras A menina do Narizinho Arrebitado (1920) e
Narizinho Arrebitado (1921). Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e
Letras da UNESP/Assis, São Paulo, 2003. (Dissertação, Mestrado em Letras).

CORRÊA, Luciana. Infância, escola e literatura infantil em Cecília Meireles. Rio de Janeiro:
Departamento de Educação da PUC-RJ, 2001. (Dissertação, Mestrado em Educação).

DINIZ, Dilma. Monteiro Lobato: o perfil de um intelectual moderno. Belo Horizonte:


Programa de Pós Graduação em Letras da UFMG, 1997. (Tese, Doutorado em Estudos
Literários).

GÊNOVA, Mariana. As terras novas do sítio: uma nova leitura da obra O Picapau Amarelo.
Campinas: Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária da UNICAMP,
2006. (Dissertação, Mestrado em Teoria e História Literária).

KOSHIYAMA, Alice. Monteiro Lobato – intelectual, empresário, editor. São Paulo: T. A.


Queiroz, 1982.

LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. São Paulo, Globo, 2010.

LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. São Paulo: Globo, 2009.

LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. 60. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

LAJOLO, Marisa. Negros e negras em Monteiro Lobato. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira
& GOUVÊA, Maria Cristina Soares de (Org.). Lendo e escrevendo Lobato. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 1999.

LIGANI, Ângela Maria. J.K. Rowling: diálogo literário e cultural com Monteiro Lobato e
Isabel Alende. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
da UFMG, 2007. (Tese, Doutorado em Estudos Literários).

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MENDES, Emília. Os narradores híbridos de Memórias de Emília de Monteiro Lobato.


Campinas: Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária da UNICAMP,
2008. (Dissertação, Mestrado em Teoria e História Literária).

ROCHA, Jaqueline. De caçada às caçadas: o processo de reescritura lobatiano de


Caçadas de Pedrinho a partir de A caçada da onça. Campinas: Programa de Pós-
Graduação em Teoria e História Literária da UNICAMP, 2006. (Dissertação, Mestrado em
Teoria e História Literária).

SANTIAGO, Silviano. Ora (Direis) puxar conversa!: ensaios literários. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2006.

SOUSA, Margarida. Emília: potencialidade transgressora na formação de um novo


conceito de infância. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários da UFMG, 2009. (Dissertação, Mestrado em Estudos Literários).

SOUSA, Márcia. Era uma vez... A contação de histórias no universo lobatiano:


contribuições para a formação do leitor. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em
Letras da PUC-RJ, 2010. (Dissertação, Mestrado em Letras).

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GRUPO DE TRABALHO: PENSANDO SOBRE GÊNERO NAS ARTES, NA MÍDIA E


OUTROS DISCURSOS

PROPOSITORES: CARLA PATRÍCIA SANTANA (UNEB), ÍVIA ALVES (UFBA), ALVANITA


ALMEIDA SANTOS (UFBA)

Ementa:

A proposta deste GT é reunir trabalhos que discutam as questões de gênero nas diferentes

formas de artes, na literatura, na música, na pintura e outras, assim como na mídia e no

cinema em outros discursos, a exemplos dos discursos religiosos e políticos. E ainda

pensar as relações de gênero no intercâmbio dessas manifestações, sejam nas

produções brasileiras e/ou africanas.

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AS POETAS DO RECÔNCAVO BAIANO: INSUBMISSÕES ÀS NORMAS BURGUESAS


E ROMÂNTICAS

IVIA ALVES (UFBA/NEIM)

Nem sempre as mulheres foram proibidas de se expressar na literatura. Na era das


conquistas marítimas (1500- alta Idade Média), as aristocratas escreviam ou então
desinteressadas no casamento, ingressavam em ordens e irmandades religiosas, e ali
continuavam suas instruções e escritas.

No entanto com o advento da Modernidade, com o capitalismo e a burguesia


predominando, novas regras sociais são implantadas, e a divisão sexual do trabalho em
ambiente público e privado passou a limitá-las. Seu papel social era desempenhar o papel
de esposa, mãe, além de dirigir os afazeres domésticos e orientar a criadagem. Com todas
estas tarefas, a pouca instrução (no máximo primária), esta nova ordem, deixava pouco
tempo para contemplar e escrever, principalmente em uma sociedade católica
escravocrata como a baiana. Grande parte foi autodidata.

Além disso, o próprio movimento literário, o romantismo, patrocinavam temas


vivenciados como a diversificação do amor, o mar, a vastidão, as florestas e a pátria. Se as
mulheres viraram Musas amadas, idolatradas e idealizadas, elas perderam a voz. Mesmo
assim, Adélia Fonseca, Amélia Rodrigues, Maria Augusta Guimarães criticaram tais
normas e limitações românticas que as impediam de escrever os grandes temas.

O termo modernidade implica uma mudança total de perspectivas do modo de ver e


vivenciar a vida no ocidente. Embora na história oficial a época moderna se inicie com as
descobertas do novo mundo e a descoberta das passagens por mar para o oriente, a
modernidade para nós se inicia com a primeira revolução industrial, quando os cientistas
descobrem a máquina a vapor e a forma de auxiliar o homem pela máquina.

Esta nova perspectiva fundamentada no progresso das ciências, é agregada por um


novo modelo de perspectiva socioeconômico. Assim temos o mundo ocidental como
conhecemos agora: regime politico democracia, regime financeiro capitalismo e no social a
divisão de classes burguesia e proletários (os donos das empresas e os trabalhadores). A
modernidade com a publicação de livros, relê a história das épocas anteriores (a antiga e a
média) a partir dos seus eixos : a divisão de espaço público e privado, a soberania do
homem e seu papel público. Assim não se sabe, realmente, a função das mulheres no
mundo antigo (seja Greco-romano, Egípcio ou mesmo da Mesopotâmia ou no mundo
árabe).

Dito isto, vamos nos focar na situação das mulheres a partir da Modernidade não
nas Metrópoles colonizadoras (onde já há diferenças sérias, a exemplo de Alemanha e
Itália), mas na nação recém saída da colonização, o Brasil, cujas rendas provinham das
terras (seja da cana de açúcar, seja do café) vivendo em fazendas, raramente viajando
para as precárias cidades, apenas nas festas religiosas.

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Nem sempre a mulher foi silenciada ou só esteve no gineceu ou dentro de casa


grande. A Modernidade reescreveu todas as épocas: antiguidade, idade média para
adequar as vidas e rotinas das mulheres ao sua proposta, que dividia o trabalho pela
divisão sexual. Cabia ao homem o trabalho, o sustento da família, todas as atividades no
espaço público e cabia à mulher o cuidado da família e da casa. É este paradigma que vai
delimitar as atividades da mulher.

Na Modernidade, com a ascensão da burguesia e do capitalismo, estas mudanças


de hábitos passaram a ser o paradigma da sociedade: o espaço público para os homens e
o espaço privado ou doméstico destinado às mulheres que não podiam exercer profissões
nem trabalhar fora ou ganhar dinheiro.

Esta mudança do modelo socioeconômico construiu o movimento chamado


romantismo e seus desdobramentos que chegam até meados dos anos de 1950. É pelo
movimento romântico, o qual se prende ao amor e à Natureza que os limites a mulher
transformada em Musa passiva que vai silenciar as mulheres como artistas, compositoras
e escritoras.

Se conhecemos poucas mulheres escritoras antes da Modernidade, elas não


contam da memória da história oficial, porque sendo livros escritos por homens, eles
poderiam silenciar sobre as produções de autoria feminina a fim de reiterar que suas
atividades estavam voltadas como mães e esposas. Como já ao longo destes cinquenta
anos muitas escritoras tiveram suas escritas silenciadas, bem como consideradas como
arte menor ou de pouca importância. Mas basta verificar um dicionário literário atual ou a
antologia em 3 volumes, organizada por Zahidée Muzart, denominada Escritoras
Brasileiras do século XIX que se pode verificar a quantidade de escritoras que escrevem
no Brasil.

No entanto, este silenciamento sobre os romances, poesias e teatro dessas


mulheres, seguem à norma que se construiu na Modernidade e nos movimentos literários
desde o romantismo.

Aqui nesta fala, vamos evidenciar que muitas mulheres escritoras percebiam as
normas e limites impostos pelo romantismo.

Tendo como foco temático as aventuras e desventuras do amor, partindo de que a


expressão teria que ser vivida, vivenciada, essa temática impedia, pelas regras sociais e
divisão de trabalho, que as mulheres falassem de amor para um amado. Privadas de se
expressar, dentro de casa, elas não poderiam ter arroubos de falar dos largos planos da
natureza, nem da floresta e o mar. Pelas regras sociais (como agora que a mulher tem que
se sedutora magra e erotizada), as mulheres da época tinham que ser recatadas, castas e
nunca demonstrar seus sentimentos. Quanto mais expressá-los em público, em livros!
Obrigadas ao casamento, ao cuidado com o marido e a criação dos filhos, que incluía a
alfabetização até os 7 anos, além de serem responsáveis pela formação religiosa dos
mesmos, e mais de orientar e observar as tarefas da criadagem a fazer todas as tarefas
domésticas cozinhar, lavar, costurar, limpar a casa e naquela época a prataria) E

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observem que não existiam eletrodomésticos, como as que existem agora, pois eles só
apareceram a partir de 1940 e só se efetivaram popularmente no Brasil, em 1970.

É a Modernidade que elege a mulher como a mãe perfeita, a cuidadora da prole e


da casa. Em tempos anteriores a criança

Era cuidada por amas, valetes, preceptores. Enquanto Brasil colônia, seguindo o
modelo europeu, a criança ao nascer passava para a mãe de leite e eram criados pelas
escravas enquanto na mesma época, na Eiropa, a burguesia começava a construir e morar
na cidade e as crianças iam viver no campo com os camponeses porque o ar era mais
puro do que na cidade. Uma escritora baiana bissexta da primeira metade do século XX,
Maria Luiza Varjão observa que a mulher não tem identidade própria. Seu poema
evidencia: Quando menina e menina-moça ela é a filha de alguém, quando jovem é a noiva
de alguém, é esposa de alguém e quando se torna mãe, ela é apenas a mãe de alguém.
Na realidade o que ela quer dizer que a mulher não tem identidade própria, sempre ela é a
extensão de um homem.

Embora as mulheres da casa grande fossem alfabetizadas, até meados do séc. XIX,
em casa, elas iam se instruindo. lendo os livros da biblioteca da fazenda, ou tomando de
empréstimos os livros de irmãos e primos, que já frequentavam a faculdade de Medicina.

Só após os anos de 1870, que se tornou comum as casas grandes de cana de


açúcar ou de café passarem a ter as preceptoras estrangeiras provenientes de classes
médias da França, Alemanha e Inglaterra e de outros países, porque era imprescindível
para esta nata da sociedade que as mulheres falassem francês (a moda do século XIX e
principio do XX), por causa da sociabilidade nos salões, e depois, o inglês (século XX, por
interesse econômico). O alemão era alternativa de uma terceira língua. Uma delas,
preceptora alemã já imbuída do capitalismo de sua terra, comenta que dentro do
capitalismo brasileiro, pois capitalismo considera o trabalho a força motriz, eram os
escravos os verdadeiros donos do Brasil e não seus senhores.

Mas com todas estas limitações sociais, as mulheres ao final dos dois decênios do
século XIX começam a publicar em volume, do Amazonas ao Rio Grande do Sul.
Inicialmente, suas produções são publicadas em Almanaques sejam editados no Brasil ou
em Portugal ou em revistas literárias, mas sem ganho econômico. Era vedado às mulheres
ganhar dinheiro com suas produções e encontramos nas nossas pesquisas livros que
informam ser a renda financeira dedicada aos filhos órfãos que perderam os pais na guerra
do Paraguai (Adélia Fonseca) ou para construir obras beneficentes ou católicas, como no
caso de Amélia Rodrigues, que dedicou a reunião de seus poemas no livro Bem-me-
queres para a construção da Igreja Nossa Senhora Auxiliadora, pela irmandade dos
salesianos.

Havia também outra limitação para a escrita e publicação das mulheres. Seus livros
deveriam ser apresentados ao público como uma aprovação de um homem. Nas classes
altas, ou por familiares intelectuais, ou seu próprio marido escritor (Julia Lopes de Almeida)
ou por intelectuais amigos.

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Os segmentos sociais que podemos chamar de classe média (só assim


denominados entre 1920), que se avolumava entre as duas classes existentes, os
aristocratas de terras ou escravos, aquele segmento já procurava a profissionalização e as
mulheres estudavam para ser professoras. É o caso de Amélia Rodrigues que enquanto
seu pai vivia publicava poemas e escrevia peças para o teatro que eram encenadas no
teatro de Santo Amaro. Após a morte do pai, ela transfere-se para Salvador e começa a
publicar nos jornais da cidade, usando de vários pseudônimos masculinos, até que passa a
ter a proteção dos Irmãos Salesianos, que tendo implantado uma tipografia em Niterói,
acatou-a como colaboradora e depois, a escritora se transfere para Niterói. Finalmente,
Amélia Rodrigues ficou responsável pela publicação de revistas e livros destinados às
mulheres católicas.

E por que toda esta digressão sobre o contexto sociopolíticocultural do país,


fundado no capitalismo? É para se analisar toda esta produção de autoria feminina a partir
de uma análise do contexto, articulando a autoria feminina com a Análise do Discurso
Crítico, de linha inglesa. Porque só assim entenderemos as limitações/normas exercidas
sobre a condição da mulher nos séculos XIX, até metade do século XX e como nos seus
discursos elas conseguem escapar das normas.

Mesmo as primeiras produções de 1970, como a da baiana Helena Parente Cunha


foram impactantes.

Vejamos este miniconto de Helena Parente:

A RESPOSTA
HELENA PARENTE CUNHA

As amigas perguntavam. Por que não dá de uma vez? Ela resistia. Perguntada.
Trinta e cinco anos. A educação. A moça tem que se conservar pura até o
casamento. Seja comportada. Por que você não trepa com ele? Seja recatada.
Essas coisas feias e baixas. Por que você é tão antiquada? Careta? Quadrada?
Perguntadeiras. Desejo impuro? Por que não podia? Se perguntencia. Cio. Ardia.
Um dia. Deu. Volúpia? Anestesia. No crescendo da vertigem, se retomou.
Recobrada. Uma moça? Era tarde. Atravessada, já tinha sido transposta. Perdida.
As amigas, como foi? Gostou? Não gostou? Pergunteirosas. Decepção.
Arrependimento. Remorso. E agora? Uma puta? Como encarar a família?
Perguntâncias. Não podia. Vergonha. Desespero. A honra. Nunca mais. As amigas.
Visitas constantes. O hospital psiquiátrico. Resposta.

• (1985)

Mas vamos continuar demonstrando como as autoras do século XIX conseguem


construir um contra discurso sem que possam ser condenadas como não escritoras. Logo
de início, elas se colocam em um lugar submisso na relação de gênero, consciente da
divisão sexual do trabalho, que elas estão escapando do privado para o público. E para

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penetrar neste espaço público elas elogiam: Os homens são inteligentes, capacitados para
escrever, elas não são adequadas para o espaço público. Esta estratégia vai ser uma
forma de se inserir em um espaço público que não é seu, mas são publicadas.

Vamos ver como Adélia Fonseca, uma aristocrata da zona que escreveu bem na época
da trasição entre o arcadismo (o poeta era sempre um narrador e, portanto, poderia ser um
produto escrito por homem ou mulher) e o romantismo. Sabendo dos limites e das
restrições sociais, ela abre seu livro com este poema:

Imitação do Snr. Aboim

Adélia Fonseca (19 de Março de 1849).

Se eu fôra da Trácia o Vate sublime,

A lira afinára p’ra só te cantar;

Se eu fôra o pintor de Itália famoso,

Quisera o teu rosto p’ra mim copiar.

Se eu fora a fontinha, que corre indolente,

E sobre conchinhas se vai espraiar,

Então me verias, correndo anelante,

Teus pés delicados risonha beijar.

Se eu fôra um infante gentil, inocente,

Só tuas caricias quisera lograr;

Se sono tranquilo meus olhos cerrasse,

No teu brando seio qu'zera pousar.

Se eu fôra a violeta, que sob as folhinhas

Esconde os encantos que Deus lhe quis dar,

A ti me mostrára, e sobre teus lábios

Meus puros perfumes quisera entornar.

Mas eu não sou fonte, pintor, ou violeta,

Nem vate, que possa teu nome exaltar;

Apenas sou triste mulher, que te adora

O mais que na terra se pode adorar.

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Mas o poema de maior rebeldia desta escritora foi os versos dedicados a sua irmã,
mas com o tema amoroso, eleito pelo romantismo. E se percebe sua revolta ou
denúncia quando ela muda a voz de feminina para masculina. Vejamos:

Meus desejos
Á ANGELINA.

Eu quizera dizer-te, meu anjo,

Quanto és por minh'alma adorada;

Eu quizera mostrar-te que trago

Tua imagem no peito gravada.

Eu quizera, que a sábia natura

Seus primores p’ra ti reservasse;

Eu quizera, que o Deus de bondade

De mil ditas teus dias c’roasse.

Eu quizera, de todo o universo

Sobre o trono melhor te assentar;

Eu, emfim, desejára ser homem

E poético amor te offertar.

Só em ti, enlevado, veria

O meu voto mais caro cumprido;

Quando um’alma, que a minha entendesse,

Ao Eterno eu houvesse pedido.

Amélia Rodrigues, que é proveniente de um segmento social (indeterminado),


conjunto de brancos ou pardos livres, vivendo em torno dos engenhos, que precisa ser
profissional para sobreviver. Assim ela estudou, em principio com os padres (em geral
alemães) e já adolescente entra para a Escola Normal a fim de obter o diploma de

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professora, profissão que sempre exerceu. Como começou a escrever para teatro, ela
tinha a capacidade de escrever poemas na forma narrativa, criando cenas.

No romantismo, a mulher (sem voz) foi romantizada desde a metáfora de uma rosa
até se tornar Musa de um poeta. No caso do poema A pétala de rosa ela já transgride,
porque a mulher era comparada a uma rosa, portanto um conjunto de pétalas, aqui no seu
poema a rosa seria o conjunto de mulheres cerceadas pelas normas e seguindo a elas. A
metáfora de uma pétala que se desgarra do seu conjunto, evidencia a transgressão de
uma única mulher. O poema é dialogado que se dá por um pássaro (um beijar flor que
simboliza a voz ou o discurso das regras sociais para uma mulher e a mulher desgarrada
metaforizada como a pétala) O beija-flor vendo a pétala flutuando aleatoriamente na
natureza em busca de alguma coisa além do conjunto, ele pondera que ela vai se perder,
que não há nada fora do ambiente doméstico, onde está protegida e não existe nada para
procurar. O beija-flor insiste que ela nesta busca incessante vai cair na lama. Em outro
momento ele sentindo sede vai beber agua em um lago e encontra a pétala de roça quase
a morrer. Pesaroso, diz que ele tinha avisado, mas a pétala não está triste porque ia
morrer, mas por ter tentado sair das normas. E o maior paradoxo está que ele falava da
lama e ela estava a morrer na água límpida, onde ele fora beber água. Este é uma forma
de contra discurso que em geral passa direto como dentro das normas.

Como o poema é muito grande, eu vou colocar apenas o contra discurso.

A pétala de rosa

Lá voa nas asas do Zéfiro brando,

por entre a ramada

De rosa uma pétala singela e cheirosa,

De cor encarnada.

-Qual é teu destino, gentil peregrina

Dos ermos da terra?

Que força te leva da sombra do vale

P’ra o alto da serra?

(...)

-Louquinha! Não sabes que o vento enganoso

Te pode perder?

E, em vez de levar-te do céu aos encantos,

Na lama da terra deixar-te morrer?

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(...)

Depois – nos caniços d’um lago onde fora

Sedento beber,

A mísera pétala achou desmaiada,

Vizinha a morrer

(...)

Ei-la!.. em suspiros lhe disse o piedoso

Gentil Beija-flor

O vento matou-a... Responde-lhe a mísera

Oh ! não! Foi a crença na força do amor!

Também ela tem consciência de que não pode falar, expressar os seus sentimentos,
o que vem do coração. Observe como metaforicamente ela coloca em cena as suas
limitações causadas pelo paradigma social e literário

La folle du logis (a louca da lógica)

Basta, doida. Interrompe a audaz corrida

Que levas pelo azul. Os olhos fecha,

Dobra as asas e morre, ave ferida,

Sem soltar nem um ai! Nem uma queixa.

(...)

Renuncia ao passado.

Não no faz, porém, tímida, fraca, vencida,

Antes, mais enérgica, mais intrépida, mais viva!

Para finalizar, mostro como as regras no ambiente público se tornaram cada vez
mais conservadoras. No naturalismo, questiona uma jovem poeta gaúcha porque as
mulheres não podiam escrever com tal vocabulário, por exemplo, em vez de lábios colocar
beiços e outros vocábulos que foram trocados. Mas mesmo assim, elas investiam no
naturalismo, com reservas e um primo de Maria Augusta Guimarães que já havia morrido
prematuramente e nunca teve seus versos publicados em vida, vão ser editados pelo
primo, ilustre intelectual baiano, como uma maneira de evidenciar como a mulher deveria

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escrever. A produção de Maria Augusta Guimarães é escrita entre 1850/60 e vem a luz
(publicação em livro) 30 anos depois, em 1890. Mas atente-se que não será pelo valor de
seus versos, mas sim como uma maneira de modelo para a escrita das mulheres que
escreviam em 1890. Como ela podia ser modelo para as mulheres de 30 anos depois? As
escritoras já tinham avançado demais e era isso que queria ser combatido pelo
conservadorismo dos homens. Portanto, era respeito ás normas da condição da mulher?
Não, simplesmente castração.

A ideologia conservadora da sociedade vai ser completamente superada pelas


poetas da segunda metade do século XX. Há uma escritora baiana que desmantela os
símbolos construídos como modelo para o comportamento das mulheres. Uma forma
dessa desconstrução vai ser muito bem realizada por Myriam Fraga com vários poemas
sobre Penélope, fragmento do poema com o qual eu concluo:

“Quando Ulisses chegar

A sopa estará fria”

REFERÊNCIAS

Alves, Ivia.Amélia Rodrigues(Org) Itinerários pecorridos. NICSA/Quarteto. Santo Amero;


Salvador, 1998

Alves, Lizir Arcanjo (org) Mulheres Escritoras na Bahia: as poetisas 1822-1918,


Salvador, Étera, 1999.

Fonseca, Adélia. Ecos da minh’alma. s/i. 1866

Myriam Fraga. Poesia reunida. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia,


2008

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DA RESISTÊNCIA E DO GUETO: A ESCRITA POÉTICA DE MULHERES NEGRAS DO


BAIRRO DE SUSSUARANA

LISSANDRA DA FRANÇA RAMOS (PPGNEIM/UFBA) 9


ÍVIA ALVES (PPGNEIM/UFBA) 10

O estudo dos saraus da periferia foi tema da minha monografia que agora está em
fase de maior aprofundamento e abrangência da pesquisa para dissertação de mestrado,
com ênfase na produção de mulheres negras baianas que integram ou circulam nesses
saraus. Por isso, um exercício de imersão na dinâmica dos saraus que acontecem em
áreas periféricas da cidade de Salvador é um passo indispensável para compreender os
significados dessa produção escrita nas comunidades em que estão inseridas e sua
relação com as histórias de vida das autoras. Esse texto é, portanto, uma notícia dos
primeiros passos de uma pesquisa ainda em andamento.

Estamos diante retomada da designação sarau que na alta literatura significou a


reunião de grupos intelectuais e depois se deslocou para eventos litero-musicais nas
casas, entre os séculos XVIII e XIX, e desapareceu por completo com o surgimento de
teatros e salas de músicas. Na atualidade, a designação reaparece nos eventos da
periferia.

Em alguma medida, pretendo buscar esta ressignificação bem como as motivações,


as origens e os desafios que se mostraram e ainda se impõem aos organizadores dessas
atividades na contemporaneidade. Tendo a monografia como uma amostra piloto, me
propus mapear todos os eventos que têm esta denominação em Salvador, para fins de
compreender em qual contexto se insere a escrita das mulheres negras da periferia. Por
isso, se fez necessário, antes de tudo, conhecer e mergulhar no cenário que tem sido
palco para a divulgação de suas obras.

Desse modo, a primeira reflexão necessária a essa pesquisa será: O que é, então,
um sarau? Segundo os dicionários consultados, consiste em uma “reunião de pessoas
para recitação e audição de trabalho próprios em prosa e em verso” (MICHAELLIS, 2010,

9 Licenciada em Letras Vernáculas, pela Universidade Federal da Bahia; Especialista em Estudos Étnicos e
Raciais, pelo Instituto Federal da Bahia e Mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e
Feminismo, pelo PPGNEIM-UFBA. Email:lissandra.ramos@hotmail.com.
10 Professora (aposentada) da Universidade Federal da Bahia, lotada no Instituto de Letras e vinculada pelo
PROPAP. Possui Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1996) e Pós-
Doutorado pela PUCRS (2000-2001). É pesquisadora permanente do Núcleo de Estudos interdisciplinares
sobre a Mulher (NEIM- UFBA). Atua na pesquisa e na Pós-graduação (PPGNEIM-UFBA).

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

p. 780) ou ainda uma “reunião noturna, de caráter musical ou literário” (AULETE, 2015 11).
Sendo assim, o termo está registrado em dicionários de termos literários em dois sentidos,
o primeiro: de uma reunião noturna, de finalidade literária e a segunda: reunião festiva,
geralmente noturna, para ouvir música, conversar, dançar. Com algumas nuances de
diferenciação, ambas, acepções convergem quando afirmam ser o sarau uma reunião de
pessoas diversas, porém com interesses comuns, onde se apresentam peças artísticas.

É importante destacar, porém, que a configuração dos saraus que aconteciam no


passado de certa maneira não são como os realizados atualmente nas periferias, em
especial nas periferias de Salvador. As mudanças contextuais (tipo de local, tipo de
instrução, tipo de classe social) certamente refletem na dinâmica dessas atividades que já
não estão ligadas a figuras da elite do país como acontecia em tempos passados.

Minha pesquisa até agora fez um levantamento dos saraus, seja através de buscas
pela internet, seja através de pesquisas de campo e entrevistas. Foram identificados trinta
e quatro saraus na cidade de Salvador. Desse quantitativo, cinco são destinados ao
público infanto-juvenil. Os demais vinte e nove não fazem especificação de público e
acontecem tanto nas periferias como em regiões mais próximas ao centro da cidade.
Todavia, é notório, o crescimento de eventos dessa natureza em bairros periféricos,
indicativo de que eles foram florescendo da periferia para o centro.

Nesse sentido, Cajazeiras, Sussuarana, Pirajá, Mussurunga, Capelinha, Fazenda


Grande do Retiro, Bairro da Paz, Gamboa, Itapuã e Paripe são alguns dos bairros que
abrigam saraus, que tomam denominações próprias quais sejam, respectivamente, o
Sarau do JACA, Sarau da Onça, Sarau da Zefa, Sarau A A Cara do Ethos, Sarau da
Capelinha, Sarau do Movimento Arte Marginal Salvador*, Sarau da Paz, Sarau do Gueto,
Sarau da Praça e Sarau do Beco. Tratarei com brevidade do histórico de alguns deles.
Também foram identificados saraus realizados dentro de universidades, há registros do
Sarau Arte Livre – UNEB (Campos Cabula – Salvador), Sarau da Mata Inteira – UFBA
(Campos Ondina – Salvador), Sarau de São Lázaro - UFBA (Campos São Lázaro –
Salvador).

Vale destacar que alguns dos grupos entrevistados até o momento, dentre eles o
Sarau do JACA e o Sarau da Onça, citam como o primeiro o sarau fundado no centro

11
Disponível em: http://www.aulete.com.br/SARAU

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antigo e de comunidade negra no Pelourinho com o nome de Bem Black, organizado pelo
poeta e professor Nelson Maca, como referência e/ou influência para a construção desses
outros espaços. Da mesma forma, o Sarau Cooperifa, organizado pelo poeta Sérgio Vaz,
em uma periferia de São Paulo, também foi citado como influência e inspiração.

O Sarau da Onça acontece no bairro de Sussuarana, geralmente a cada quinze


dias, desde 2011. Foi fundado por um grupo de amigos (Sandro Sussuarana, Preta Mai,
Evanilson Alves e Omael) que estavam envolvidos em atividades comunitárias com foco na
juventude negra local. Quando das primeiras atividades realizadas pelo grupo, parte dos
integrantes eram recém-ingressos em cursos universitários, mas alguns ainda não haviam
adentrado o espaço acadêmico. Atualmente, a equipe de organizadores já assumiu outra
configuração, constando de Brenda Gomes, Lissandra Pedreira , Mateus Silva e Maiara
Silva, que se juntaram ao grupo fundador Evanilson Alves e Sandro Sussuarana que
permanecem no grupo.

O Sarau JACA de Poesia acontece, desde março de 2014, em Cajazeiras, e seu


evento é mensal. É organizado pela Juventude Ativista de Cajazeiras, uma cooperativa de
metarreciclagem formada por um coletivo de jovens moradores de Cajazeiras e
adjacências. Os organizadores, em sua maioria, são estudantes universitários, mas já
realizavam saraus e outras atividades culturais antes do período em que seus inegrantes
começaram a ingressar no espaço universitário.

O Sarau A A Cara do Ethos, também tem início em 2014, acontece uma vez por
mês no bairro de Mussurunga. Seu idealizador é Davi Souza de Jesus, que conta com o
apoio de algumas pessoas da comunidade, dentre as quais estão Bruna e Aline, ambas,
estudantes universitárias. O sarau também já foi realizado em algumas escolas públicas do
entorno.

O Sarau do Beco acontece mensalmente em Paripe, desde julho de 2015, surgiu


através do coletivo Sarau do Beco, com apoio da jornalista e moradora de Paripe, Sueide
Kintê. A realização dessa atividade na rua foi a melhor maneira que os organizadores
encontraram para falar com a comunidade e com os moradores da rua de direitos
humanos, combate a violência contra mulheres e racismo, dentre outras temáticas. Temas
importantes para comunidade, além das questões de raça e gênero, são abordados; ocorre

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homenagens a personalidades, etc. As redes sociais funcionaram como a principal


ferreamente de divulgação inicialmente, mas há pretensão de ampliar para outros canais.

Em alguns casos identificamos saraus que já deixaram de acontecer ou que estão


com atividades suspensas por tempo indeterminado, a exemplo do Sarau do Cosme, em
Cosme de Farias; Sarau de Itapuã, em Itapuã; e Sarau da Capelinha, em São Caetano.

Constatamos que nas equipes organizadoras, o número de mulheres envolvidas é


inferior à quantidade de homens. Há algumas características comuns a esses espaços:
ambos promovem intervenções artísticas variadas (dança, música, pintura, grafite, dentre
outras), embora o foco esteja na literatura; existe a participação da plateia e acontecem
debates sobre temas diversos e, em todos, há poetas convidados previamente; da mesma
forma, utilizam a técnica do microfone aberto o que quer dizer que qualquer pessoa que
deseje, pode recitar.

Diversos poetas e grupos de poesia transitam por vários saraus. O quantitativo de


poetas mulheres, no entanto, é inferior ao de poetas homens. Em alguns saraus percebe-
se, inclusive, a menor participação de mulheres também na condição de ouvintes. Até o
atual estágio da pesquisa identificamos dezessete poetas mulheres (escrevem e/ou
recitam) que participam de saraus nas periferias. São elas: Sol Silva; Fabiana Lima;
Negreiros Souza; Joyce Melo; Lane Silva; Maiara Silva; Carol Xavier; Gleise Souza; Laiara
Mainá; Larissa Oliveira; Ludy Borges; Bruninha Silva; Andrea Cairo; Sil Kaiala; Mary
Guimarães e Juliana França.

Dentre as poetas identificadas, considerável número integra grupos mistos de


poesia, ou seja, participam de grupos formados por homens e mulheres. Como exemplos
de grupos mistos temos o Grupo de Poesia Resistência Poética, formado por oito
integrantes, dos quais cinco são homens e três mulheres, ao inverso temos o “Grupo
Ágape: Poetas do Gueto”, que possui onze integrantes, sendo quatro homens e sete
mulheres. Os dois grupos possuem parte dos integrantes originados do bairro de
Sussuarana.

Os dois grupos mencionados realizam movimentos itinerantes em diversos saraus


da cidade, como convidados, e já fizeram apresentações, também, fora de Salvador. A
divulgação de suas produções se dá tanto através do Facebook, que tem sido uma

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ferramenta bastante utilizada por esses grupos de escritores, e bem menos através de
publicações impressas.

Propomos então, num recorte para esta comunicação, lançar um olhar para as
publicações dos grupos mistos anteriormente mencionados, pois ajuda a perceber a
produtividade da escrita poética de mulheres negras de bairros da periferia soteropolitana,
integrantes de tais grupos. Embora, o objetivo aqui não seja discutir a temática ou
conteúdo desses escritos, uma análise da quantidade de poesias escritas por mulheres
dentro desse contexto aponta para reflexões necessárias acerca de tais práticas. Para
tanto, tomamos como base duas publicações, uma de cada grupo conforme expomos a
seguir.

O “Grupo Ágape: Poetas do Gueto” publicou, através da Editora Galinha Pulando,


no ano de 2014, uma coletânea intitulada A Poesia cria asas. Das quarenta e quatro
poesias constantes no livro, vinte e oito são de autoria feminina, o que representa
aproximadamente 63% (sessenta e três por cento) dos escritos.

O Grupo de poesia “Resistência Poética”, também em 2014, produziu


artesanalmente livretos que eram vendidos no interior dos coletivos ou em saraus. Em
torno de setenta e sete por cento das poesias constantes na publicação são de poetas
mulheres, afinal dos nove poemas sete deles são de autoria feminina.

Alguns dos títulos das poesias remetem a questões vivenciadas pela comunidade
negra que vive na periferia. A tabela a seguir diz respeito aos títulos de cada autora nas
publicações as quais esse texto se refere. É possível notar alguns deles e revelam a
ligação de muitos deles às pautas anteriormente mencionadas.
Poeta Título Tema Publicação
Maiara Silva Identidade Negra Afirmação identitária A poesia cria
negra asas
A Chegada Romântico A poesia cria
asas
De preta Ancestralidade/ A poesia cria
Resistência Negra asas
Inspiração a Poesia/Poeta A poesia cria
Carol Xavier asas
Meu Black agride Resistência Negra A poesia cria
Carol Xavier asas
Família sem Pobreza/ Precariedade A poesia cria
auxílio de serviços públicos asas

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Abençoa senhor Pobreza/ A poesia cria


vulnerabilidade social asas
Especialmente Romântico A poesia cria
para você asas
Joyce Melo Ruim é o seu Estética Negra e A poesia cria
preconceito Preconceito asas
Descaso Educação A poesia cria
asas
Não resisto a nós Romântico A poesia cria
asas
Falo de nós Negro/ Pertencimento A poesia cria
asas
Lane Silva Preta Consciente Racismo e exploração A poesia cria
asas
Amor da minha Romântico A poesia cria
vida asas
Eterna Utopia Violência Policial A poesia cria
asas
Minha Perifa Periferia Livreto
Resistência
Poética
Aline Sonho Livreto
Resistência
Poética
Encrespada Estética Negra/ Mídia A poesia cria
asas
Laiara Mainá Mudanças Educação/Precariedade A poesia cria
de serviços públicos asas
Ouviram? Clamor social/ descaso A poesia cria
estatal asas
(R)edu(Ca)ção Redução da maioridade A poesia cria
penal asas
Mulher Mulher/Poder A poesia cria
asas
Larissa Oliveira Sou Romântico A poesia cria
asas
Padrão Brasil Extermínio / Violência A poesia cria
Policial asas
Insatisfação Extermínio da A poesia cria
juventude negra asas
Negreiro Navio negreiro/ A poesia cria
resistência asas
Transição de Luta/Resistência Negra A poesia cria
Gleise Sousa pensamento asas
Auto de Auto de resistência/ A poesia cria
resistência Violência Policial asas
Sou poesia Poesia A poesia cria
asas
Por descuido Romântico A poesia cria

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asas
Dricca Silva Cabelo Afro Estética Negra Livreto
Resistência
Poética
Hoje Egoísmo Livreto
Resistência
Poética
Fabiana Lima Afrimativa Mulher negra Livreto
Resistência
Poética
Feminismo Combate ao machismo Livreto
contundente Resistência
Poética
Fabiana Lima e Nós por Nós Luta/Militância Livreto
Dricca Silva Resistência
Poética

Esses dados iniciais nos levam à hipótese de que há uma considerável produção de
autoria feminina nos espaços dos saraus de periferia. Se voltarmos ao título dessa
comunicação, o fragmento “da resistência e do gueto”, além de fazer referência aos grupos
de poesia dos quais participam as poetas em questão, sugere um profundo dialogo da
realidade com as temáticas abordadas nas poesias. As escritas poéticas dessas autoras
revelam discursividades sobre questões raciais e de gênero, através de poesias que
versam sobre a identidade negra, a estética da mulher negra versus padrões televisivos, a
situações de risco vivenciadas nas periferias, a liberdade de utilização do seu corpo, dentre
outras questões.

REFERÊNCIAS:

AGAPE, Grupo. A poesia cria asas. Vitória da Conquista: Galinha Pulando, 2014.

AULETE, Caldas. Aulete Digital: Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa.


Dicionário Caldas Aulete, versão on line. Disponível em: http://www.aulete.com.br/SARAU.

RESISTÊNCIA POÉTICA, Grupo de Poesia. Livreto artesanal. Salvador, 2014.

MICHAELLIS: dicionário prático de língua portuguesa. São Paulo: Editora


Melhoramentos, 2010.

TENNINA, Lúcia. Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e
aplausos. Revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Brasília, n. 42, p. 11-
28, jul./dez. 2013. Tradução: Paulo Thomaz.

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GRUPO DE TRABALHO: PENSAMENTO SOCIAL NEGRO BRASILEIRO: POR UMA


ESTÉTICA DA LIBERTAÇÃO

PROPOSITOR: EDUARDO OLIVEIRA (UFBA)

Ementa:

Apresentação do Pensamento Social Brasileiro; Iniciação ao Pensamento Negro no

Pensamento Social Brasileiro; O pensamento social brasileiro e a questão do negro até a

década de 30 – Da Escola Nina Rodrigues ao Lusotropicalismo de Gilberto Freyre; O

pensamento social brasileiro e a cultura negra – Africanização, Reafricanização e Crítica

da Cultura Afro-brasileira: Da sociologia compreensiva de Roger Bastide à crítica

antropológica da Cultura Africana no Brasil de Peter Fry – em torno às Religiões de Matriz

Africana no Brasil; Educação das Relações Étnicorraciais e História e Cultura Africana e


Afro-brasileira: a Lei Federal 10.639/2003; Estética da Libertação Afro-brasileira: os

sujeitos coletivos – Religião de Matriz Africana e Capoeira Angola; Corpo, Rito, Mito no

Pensamento Social Negro brasileiro; Paradigma ético-estético; Filosofia africano-brasileira.

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AUTORES E AUTORAS DE AXÉ

GILDECI DE OLIVEIRA LEITE 12

Na Ilha de Itaparica 13, há um terreiro de culto aos ancestrais conhecido como Ilê 14
Agboulá, onde existe o culto a Babá Agboulá um ancestral que em vida foi filho do orixá
Xangô. Conforme conta o Oju Obá 15 e Elebogi 16 Marco Aurélio Luz, o local da citada casa
religiosa em Ponta de Areia no alto do Bela Vista, foi adquirido do Sr. Joãozinho por Mãe
Senhora, Ialorixá Oxum Muiwá e Iyá Egbé. Mãe Senhora também providenciou a
construção do ilê nla, “barracão”. Mestre Didi na época Korikowe Olukotun (o escrivão de
Baba Olukotun olori Egun), como filho herdeiro da Iyá Egbé providenciou a criação da
Sociedade Civil do Ilê Agboulá e doou a propriedade para o terreiro registrando em
cartório.
Apesar de todo o sacerdócio de culto a Babá Egun ‘o pai ancestral’ ser de
exclusividade masculina, as mulheres como também alguns homens fora do sacerdócio,
são detentores de postos de importância no egbé. Mãe Senhora a Oxum Muiwá cujo nome
católico era Maria Bibiana do Espírito Santo, exerceu o posto de maior relevância entre as
mulheres no Ilê Agboulá e detinha grande respeitabilidade e liderança na hierarquia
sacerdotal.
Tive a oportunidade de ver uma foto interessante para os objetivos deste texto,
ambientada no Ilê Agboulá. Nela há três ojés ‘sacerdotes do culto a Babá Egun a saber:
Mestre Didi , Alapini, supremo sacerdote do todo o culto a Babá Egun e filho biológico de
Mãe Senhora, e os ojés Laércio dos Santos e Manoelito. O senhor Laércio foi Alagbá do
Ilê Omilá, casa fundada posteriormente por ele, situada no estado do Rio de Janeiro 17.
Hoje, Mestre Didi Alapini e o ojé Laércio Alagba já se encontram no mundo espiritual. Na
foto estão todos reunidos após o 7 de setembro de 1980, data cívica que coincide com os
festejos e homenagens à Babá Agboulá, patrono da casa. Na foto aparece também, ainda
muito jovem, José Félix dos Santos, neto biológico de Mestre Didi.

12
Professor da UNEB (Universidade do Estado da Bahia).
13
Fica no Estado da Bahia na região nordeste do Brasil.
14
Casa em Iorubá. Trata-se de um terreiro de culto aos ancestrais.
15
O Olho do Rei Xangô, um posto da casa de Xangô, Ilê Axé Opô Afonjá.
16
Posto no Ilê Asipà.
17
Apesar de ter exercido o sacerdócio na segunda capital do país, o Ojé Laércio, filho de Ogum, foi iniciado na Ilha de
Itaparica no antigo terreiro do Barro Branco.

118
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Descrita a foto, que está publicizada no Facebook do senhor José Félix dos Santos,
o Otun Alagbá do Ilê Asipá, vale adentrar na forma de aprendizado anunciada através de
dois comentários na rede social. O primeiro de Georgenes Amor Divino: “O mais
importante é apreciar e se calar, aprendo muito mais por que ‘a fruta só dá no tempo’,
assim falava minha vó Maria Honória de Xangô. O outro comentário de Nem Costa,
complementa: “o ouvir e ver é mais importante que o falar”.
Partimos do pressuposto que os comentários postados nas redes sociais sobre a
foto que motiva esta introdução, denota formas de aprendizado e caminhos para se
alcançar o conhecimento nos cultos de Babá e nos ilê axé em geral. Afinal, dona Honória
de Xangô deveria fazer parte de alguma casa de culto aos orixás. Deve-se também dizer
que o olhar, o ouvir e o apreciar deste pesquisador confirmam os ditos dos internautas a
respeito da forma do aprendizado. O diálogo sobre o aprender e o ensinar gira em torno do
fato do senhor José Félix ter sabido aprender em silêncio, respeitando as hierarquias, as
normas e hoje ocupar importante posto sacerdotal no Ilê Asipà, casa da família Asipà,
fundada por Mestre Didi. José Félix é Otum Alagbá, liderança, ‘a direita do Alagbá’ o
segundo em comando. José Félix pode ser compreendido por nós, neste texto, como uma
mimetização daquele que tem que saber o seu lugar para adentrar os espaços de axé, ver,
observar o que é permitido observar. Ouvir, escutar o que é permitido escutar. Fazer
somente depois das autorizações formais, vindas do sacerdócio ou do sagrado. Como se
diz entre membros da família biológica de Mãe Senhora, ficar no “buchê, buchê”, calado,
de boca fechada, observando para aprender, quando se é permitido observar.
Ao pesquisador o ver, ouvir, interpretar, transcrever é também fazer e as
autorizações podem ser parecidas com aquelas dadas aos iniciados. Em sentido latu, é
preciso compreender um pouco do pensamento, do ensinar e do aprendizado das casas
de axé, pois somente as entrevistas, quando concedidas, e a apreciação dos parcos
documentos escritos não darão conta de quaisquer pesquisas com o “povo de axé” 18.
Temos que compreender e teorizar sobre os prováveis porquês de tantas reservas
para com os ensinamentos, seja ao outro distante, extramuros, ou ao outro membro da
comunidade que se torna também outro por ainda não dominar determinados códigos.
Entendemos que todos nós somos outro e eu ao mesmo tempo, a depender da perspectiva
e das diferenças estabelecidas entre as identidades e os seres humanos portadores destas
identidades. Conquanto, dois membros de uma mesma torcida organizada são outro um

18
Preferimos a denominação povo de axé para designar membros de religiões afro-brasileiras.

119
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para o outro, considerando que além das identidades que os unem na torcida, eles terão
outras identidades que os diferenciam, por isso seriam os iguais e os diferentes.
É preciso afirmar que este posicionamento aparentemente arredio e introspectivo do
povo de Axé, é sim uma forma de se defender daqueles que não querem ou não poderão,
ao longo dos anos, alcançar os merecimentos para o aprendizado, pois é preciso aprender
a aprender. Tal posicionamento pode também ser lido como uma identidade de resistência
(Munanga, 2013). Parte-se do princípio que seria preciso preservar os segredos, o awò,
para se defender dos estigmas dominantes, para resistir e sobreviver às identidades
legitimadoras que, de acordo com Munanga (2013) são elaboradas pelas instituições
dominantes para dominar os atores sociais.
Não obstante, a identidade de resistência dentro dos terreiros, pode se transformar
em identidade-projeto, pois “[...] com base no material cultural à sua disposição, constroem
uma nova identidade que redefine sua posição na sociedade e, consequentemente se
propõem em transformar o conjunto da estrutura social” (MUNANGA 2013 p.3). É preciso
saber se, no caso do candomblé e de demais religiões afrodescendentes, as estruturas da
sociedade foram afetadas por membros nascidos nas comunidades ou afiliados ao longo
de suas vidas.
O fato é que, mesmo com as normas e regras rígidas de aprendizagens e de acesso
ao conhecimento sagrado negro, identificamos uma categoria que nomeio de Autores de
Axé. Esses autores transformaram parte da estrutura social, inserindo valores da cultura e
mitologia 19 afro-brasileiras na sociedade através da ciência e das artes. Esses autores e
autoras tal qual o senhor José Félix dos Santos souberam encostar-se, apegar-se a Ogum,
o asiwaju, aquele que vai à frente (Luz, 2000) o orixá Patakori, ‘cabeça dos orixás’ e seguir
em frente. A metáfora dos poderes de Ogum entra aqui como símbolo de subversão e do
valorizar o Povo de Axé. Parte-se do princípio que, de forma consciente ou não, esses
autores adentraram as casas de Axé imbuídos de subjetividades e desejosos de
comunhão, por isso foram aceitos e tornaram-se membros do Axé.
Como amigos e/ou membros, filhos da casa, e com acesso aos meios de
canonização e de comunicação de massa, cabia então, também, a eles não se deixarem
depreciar. O cuidado com o dito e o escrito mantém o compromisso com a verdade, a
preservação do segredo e o respeito ao objeto pesquisado. As identidades do Axé agora
também os identificavam, por isso os movimentos de divulgação e de valorização das artes

19
Entendamos mitologia como narrativa.

120
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e das mitologias de Axé, multifacetadas nas produções desses novos membros serviam e
servem para o movimento de libertação proposto por Fanon (apud Munanga 2013): a
libertação das imagens depreciativas de si mesmos.
A imagem do Senhor José Félix dos Santos atrás, encostado na casa de Ogum, ou
de autores de Axé como Pierre Verger, Vivaldo Costa Lima, Jorge Amado, Júlio Braga,
Ildásio Tavares, Gilberto Gil, Zora Seljan, Marco Aurélio Luz, Narcimária do Patrocínio Luz,
Vasconcelos Maia, Juana Elbein dos Santos entre tantos, podem ser deslocadas para as
posições de Mestre Didi, Alapini, e do Alagbá Laércio, filho de Ogum. Se inicialmente
suberam respeitar o tempo e as normas internas do ilê axé, mereceram, então, o passo à
frente, o lugar de liderança e se tornaram autores de axé. A possibilidade de eterna
alimentação da ancestralidade e de permanência da cultura que é divulgada e intervém na
sociedade converge com a manutenção do segredo.
Voltando à foto que tem Ogum na frente e ao meio representado pelo senhor
Laércio e, ao fundo, uma de suas moradas, dizemos que o adentrar nesse território só se
dá por permissão de seus atores principais, os sacerdotes e sacerdotisas, ouvido as
entidades.
A moeda paga pelos autores (as) de Axé foi a subjetivação do outro e o ver-se no
outro até tornar-se um deles. Não é imposto o se iniciar, mas sem a filiação espiritual,
portanto afetiva, tudo ficará mais difícil. Os aprendizados só serão permitidos aos omo
okan ‘filhos do coração’ ou aos amigos, compreendendo amigos como aqueles que
respeitam e aceitam a diferença, sem tentar subjugar o outro. Aos outros, os limites são
impostos pela própria objetividade e frieza dos métodos e tratos, praticados por eles, os
curiosos e pesquisadores. A teoria da repulsa mútua é a própria objetividade distanciadora
do pesquisador imparcial que se quer longe e frio para com o outro. O que ele não percebe
é que desejo de repulsa já é o desejo, portanto uma subjetividade, que prefiro chamar de
subjetividade negativa. Juana Elbein dos Santos (2003, p.36) cita Roger Bastide em sua
angústia que diz "Só um sacerdote de culto, bem alto na hierarquia do mesmo poderia
introduzir a classe de textos que esperava." Ou seja, para escrever com a devida
propriedade, produzir textos em considerável excelência teria que ser de dentro, não
apenas adentrar a religião, deixar-se adentrar por ela. Compreendo esses autores como
autores de Axé. Conforme Santos (1978), o axé é uma força que pode ser adquirida por
introjeção ou contato. Sem deixar-se ser introjetado pelos conceitos e pela cultura de Axé,
tonar-se-ia impossível a compreensão e portanto novas introjeções e alimentações deste
Axé. Se para a religião o Axé é o que torna possível o processo vital, para uma escrita em

121
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um desejável nível de excelência é preciso ser autor ou autora de Axé. Não quero tocar
nos estereótipos, todos podem escrever sobre mitologias afro-brasileiras, inclusive
alcançando algum grau de expertise sem ser um iniciado. Não obstante, para a
compreensão de uma cultura tão calcada na oralidade é preciso deixar ser penetrado por
ela e esta penetração só é concedia aos iniciados em algum grau de iniciação, seja
litúrgica ou de afetividade.
Os terreiros tradicionais e demais religiões afro-brasileiras são territórios com regras
e dinâmicas próprias. Adentrar esses espaços exige a compreensão de sua geografia e de
suas relações de poder. Ao observador inconveniente pode ser oferecida uma informação
falseada, como forma de se proteger dos indesejáveis. O dinheiro e o prestígio social não
compram as informações que fazem parte do segredo. Submeter-se a um modelo de
compra e venda de informações, colocando ao dispor do capital os desejos e
subjetividades negras do povo de Axé é uma tentativa em vão. Compra-se quase tudo, até
uma falsa amizade, mas o preço estabelecido para o ver, ouvir, fazer é determinado com
moedas de trocas estabelecidas pelas normas internas.
Um importante desembargador, para citar a música de Gerônimo e Vevé Calazans
(2015), ou um filho de pescador só terão as informações se assim merecerem. O
merecimento e as dádivas são pautados com base nas relações de poder internas. O
poder externo pode ser representativo, mas não impõe a revelação de informações, nem
tampouco o acesso a territórios e momentos sagrados exclusivos aos iniciados, às vezes a
iniciandos e até a visitantes, sob autorização do sacerdócio ou das divindades. Há ainda a
possibilidade do ver e de não saber o que viu, do realizar determinados rituais na frente de
desavisados visitantes e ao mesmo tempo não ser notado pelos visitantes, por um
pesquisador. Autores e autoras de Axé autorizados a verem os segredos, se autora ou
autor de Axé de fato, só falarão aquilo que foram autorizados a falar. Como disse o
internauta Georgenes Amor Divino "O mais importante é apreciar e se calar." Se isso serve
ao sacerdócio como serviria a um intelectual ou artista sedento por divulgar a novidade ?
Ao autor/autora de Axé do campo artístico, não há limites para a recriação, assim o
link com o verossímil poderia denunciar aquilo que se pretende guardar na opacidade da
arte. Para as mãos dos cientistas limitar-se a preservar o segredo pode parecer mais difícil,
pois este, apesar de também intérprete como o artista, deve ser translúcido, transparente,
inequívoco, ao contrário do opaco. A dificuldade ou o cumprimento do pacto do segredo
existe no compromisso assumido individualmente. Cumprida a preservação do awò,
segredo, que é ritualístico e espiritual outras informações e até segredos serão confiados e

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permitida a sua utilização. Um autor de Axé ou autora de Axé compreenderá esta dinâmica
e saberá o que pode e o que não pode ser divulgado, apropriado, ressignificado. Sobre os
prováveis argumentos de limitações na seriedade da pesquisa, seja para produção de arte
ou de ciência, devemos lembrar que toda produção é sempre carregada de
intencionalidade, portanto de escolhas. Toda escrita será sempre resultado de uma
seleção.
Conforme Oliveira, (2013.)

Com efeito, linguagem e cultura são duas dimensões de uma mesma condição de
pensamento e ação. A mediação sígnica da construção das identidades torna-se
instrumento de produção de subjetividade, de territorialização de intensidades. Na
era digital a subjetividade é perpassada por jogos semióticos que resultam em
balizamentos do pensar, do agir econômico, político e interpessoal. Interferindo nos
domínios mais íntimos da vida privada os Meios de Comunicação Social e os
Aparelhos de Estado modulam vontades, desejos, angustias e anseios, mobilizando
diversas formas de práxis e construindo hegemonias. Compreender como os
signos são capturados nos diversos imaginários, como operam inversões entre a
fantasia e o efetivo, como os discursos e práticas subversivas são modelizados com
a finalidade de manter estruturas excludentes é um desafio urgente colocado à
filosofia da práxis. Como produzir códigos subversivos que não permitam capturas
semióticas sob a modelização das linguagens dominantes? Uma vez que todo
signo é polissêmico, será possível tal produção sígnica incapturável? Não seriam
estas questões prementes para a pesquisa na contemporaneidade? Não seria o
caso de repensar a forma da pesquisa ao invés de reificar o modelo da
modernidade? Ao mesmo tempo, não se deveria sair do plano meramente analítico
e apostar no plano propositivo a fim de superar nossos atuais limites de pesquisa?

Se a vida nos terreiros é uma vida em comunhão coletiva é também uma vida
privada, pois algumas informações cabem somente aos membros daquela comunidade.
Apesar das inserções, às vezes questionadas, de cotidianos dos candomblés em redes
sociais, como é o caso da fotografia neste texto comentada, existe a preocupação na
preservação do segredo. A preservação do segredo não significa o afastamento dos
domínios dos meios de comunicação de massa e dos aparelhos de estado que, conforme
Oliveira (2013), modulam vontades, desejos angústias, etc. Ao se esperar uma ialorixá
assistir o final da novela das nove para iniciar o xirê ‘cânticos sagrados’, vê-se
perfeitamente uma das formas de interferência dos meios de comunicação de massa.
Naquele momento, a matriarca fazia as vontades dela e de quase todo o terreiro, afinal
parte significativa do Brasil assiste ao final de uma novela das nove ou das vinte e uma
horas.

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O vestir, os hábitos alimentares e as formas de se relacionar com o outro praticadas


pelas pessoas do culto também são espelhadas na sociedade como um todo que, por sua
vez, é reflexo das territorializações de intensidades e de subjetividades, conforme denuncia
Oliveira (2013). O ilê axé e demais religiões afrodescendentes não vivem em uma redoma,
livres de quaisquer interferências/influências de outros grupos sociais. Os autores e
autoras de axé influenciam e são influenciados. O povo de Axé mantém formas próprias de
comportamentos e de relação com o outro. A correta maneira de adentrar o espaço do Axé
e de dele fruir aprendizagem pode ser entendida como prática subversiva. Ela relega a
criação de momentos de pesquisa, como as entrevistas, a uma incompletude exacerbada,
tornando imprescindível o conviver no terreiro para aprender e fruir tudo, até o limite
imposto pelo próprio terreiro. A produção de códigos subversivos é algo diretamente
relacionada ao fazer do cotidiano do candomblé. O ver e o ouvir nem sempre estão
diretamente relacionados ao fazer-se entender. O oral e o gestual podem ser feitos de
forma totalmente incompreensíveis.
Para não se fazer entender, pode-se utilizar o idioma ritual, quando desconhecido
do observador, o jargão religioso ou simplesmente o desprezo por etiquetas da sociedade
extramuros, pois se pode ao invés de falar, balbuciar palavras ritualísticas, manter o
silêncio. Pode-se também estabelecer limites entre o ouvir e o ver, mantendo o de fora
distante dos acontecimentos, seja pela distância física ou pela venda diante dos olhos,
encobrindo determinados fazeres com um pano branco, sem permitir o ver daqueles que
ainda não estão preparados para ver. Sob o pano branco tudo está protegido. O alá de
Oxalá, orixá que também é Obatalá, rei, senhor do pano branco, a tudo protege, sob os
seus domínios, se mantêm o segredo. A subversão dos códigos, através do jargão
religioso, do balbuciar, do limite de trânsito, do silêncio e do ver limitado pode ser
entendida como formas de escapar de linguagens dominantes sem, contudo, deixar de
participar delas.
Mesmo com a utilização de fotografias, filmagens, páginas da internet, a inserção de
crianças na escola, a formação de graduados, especialistas, mestres e doutores, reafirma-
se o compromisso da preservação do segredo. Os códigos do ilê axé continuarão
protegidos ora sob o pano branco, ora sob as folhas do mariô 20 e untados com o azeite de
dendê. Os poderes do mariô e do dendê, também, podem dificultar o acesso a informações
principalmente ao pesquisador. Por isso, será de extrema importância a compreensão de

20
Folhas rituais oriundas do dendezeiro e ligadas ao orixá Ogum.

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uma verdadeira práxis de afetividade. Não se fala aqui de falsear uma afetividade para
conquistar o outro e ter as informações desejadas. Fala-se de uma ação que distancie de
si a desqualificação do desejo e como menciona Oliveira (2013) “[...] o império da razão”. O
desejo de fruição e produção do conhecimento e reconhecimento extramuros pelo povo de
Axé existe desde os seus primórdios. Mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, já
dizia sobre sua vontade de ver seus filhos de anel no dedo e aos pés de Xangô. 21 Ou seja,
compreende-se a impossibilidade do insulamento e mais que isso, revela-se o desejo de
participação ativa nos códigos sociais extramuros, mas sempre aos pés de Xangô, sem
perder a relação e considerando todos os deslocamentos territoriais.
Dentro dos ilê axé, sem o afeto recíproco, seria impossível a realização de uma
pesquisa com êxito, ou quase impossível. Vejamos grandes nomes das pesquisas em afro-
brasilidades integrantes das comunidades terreiro. Vários destes nomes possuem relações
honoríficas, fraternas ou litúrgicas com candomblés ou outras religiões afrodescendentes.
Citamos alguns, agora outros Ordep Serra, Jaime Sodré, Muniz Sodré, Eduardo David
Oliveira, dentre outros. Todos eles possuem relações de afetividade com o que
costumamos chamar de objeto de pesquisa, há outros exemplos de pesquisadores e
difusores de conhecimento que são sacerdotes tais como Mestre Didi, Mãe Stella de
Oxóssi, Ruy Póvoas, Júlio Braga, José Sant´Anna Sobrinho e Genaldo Novaes.
Lembremos que a arte também difunde conhecimentos.
Essa relação de afetividade necessária tem que ser como uma relação de
parentesco, alguém que se torna um entre os outros, por isso recebe gradativamente as
permissões para caminhar em suas observações. Não se trata de vantagem ilícita, mas de
merecimento. O observar, mesmo quando o observador possui relações consanguíneas ou
de parentesco litúrgico, deve começar à distância, como o ainda jovem José Félix dos
Santos, neto de Mestre Didi, fazia, conforme foto discutida aqui. Aproprio-me de um ditado
do Recôncavo Baiano “Em terra dos outros, se pisa de mansinho”, pois se por um lado a
abertura para uma subjetividade que compreenda o outro além dos números e da razão
quantitativista é necessária, por outro a parcimônia é também recomendada aos
pesquisadores.
Ainda conforme Oliveira (2013), o tratado tem que ser de comunhão com o outro,
então a inviabilidade de uma política de cooptação. Todos nós sabemos que todo esse
21
Segundo Marcos Roberto Santana (2008) a frase completa é "Quero ver meus filhos aos pés de Xangô, com anel no
dedo. "Conforme Mestre Didi,para quem Mãe Aninha falou sobre essa intenção e que inspirou a criação da Mini
Comunidade Oba Biyi é: “Quero ver nossas crianças de hoje, no amanhã, de anel no dedo e aos pés de
Xangô”.(SANTOS,Deoscoredes Maximiliano e Luz,Marco Aurélio.Oba Biyi ,o rei nasce aqui.Salvador:Fala Nagô,2007)

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movimento possui também um interesse, uma finalidade. Contudo, se antes poderia ter
sido somente o pesquisar pela objetividade de pesquisar e de obter resultados, agora pode
ser a pesquisa imbuída de criatividade e sentimento, sem perder a validade, tendo um rigor
outro. Para isso, o pesquisador deverá optar por uma práxis libertadora, nunca alienante
ou de tentativa de dominação do outro. O caminho para imprimir no povo de Axé uma
perspectiva de auto sujeição, tentando torná-los subservientes, certamente fará com que o
pesquisador perca suas possibilidades de êxito, fique sem o Axé. É preciso entender as
religiões afrodescendentes como um território com pensamento, normas próprias e com
um olhar carinhoso e desconfiado com o outro. Autores e autoras de axé alimentam e são
alimentados. O axé deve ser alimentado (Santos, 1986) continuamente. Para relacionar
esse conceito de realimentação ao trabalho do autor/autora de axé, entendo que eles
também possuem papeis importante, tais como valorizar as culturas negras na sociedade
excludente, seja através das artes ou da ciência. Livres de uma ação proselitista, pois não
realiza-se a solução com o segredo ritualístico, esses autores realimentam as
comunidades afrodescendente por eles fruídas, realimentam a cultura, a vida, portanto
fazendo uma espécie de axé.

REFERÊNCIAS

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Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995.

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<http://books.scielo.org, p. 13-74.

GERÔNIMO & CALAZANS, Vevé. É D´Oxum. In: PRANDI, Reginaldo. Segredos


Guardados. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/orixampb.pdf. Data do
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Salvador: EDUFBA, 2000.

126
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MACEDO, Roberto Sidnei. OUTRAS LUZES: UM RIGOR INTERCRÍTICO PARA


UMA ETNOPESQUISA POLÍTICA. In: MACEDO, RS., GALEFFI, D., and PIMENTEL
A. Um rigor outro sobre a qualidade na pesquisa qualitativa: educação e ciências
humanas [online]. Salvador: EDUFBA, 2009, 174 p. ISBN 978-85- 232-0636-9.
Available from SciELO Books <http://books.scielo.org, p.75-106.

MUNANGA, Kabengele. Diversidade, etnicidade, identidade e cidadania. São Paulo:.


Palestra proferida no 1º Seminário de Formação Teórico Metodológica-SP. Disponível em
http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/09/Palestra-Kabengele-
DIVERSIDADEEtnicidade-Identidade-e-Cidadania.pdf. Acesso em 30.09.2013.

NOBREGA, Cida & SANTOS, José Félix dos (Org.). Maria Bibiana do Espírito Santo,
Mãe Senhora: saudade e memória. Salvador: Corrupio, 2000.

OLIVEIRA, Eduardo David. Conhecimento e Cultura: à propósito dos regimes


subjetivos. No prelo. 2013.

SANTANA, Marcos Roberto. Jorge Amado e os ritos de baianidade: um estudo sobre


Tenda dos Milagres. 2008. 133f. Dissertação (Mestrado em Estudo de Linguagens) —
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Salvador. 2008.

SANTOS, Deoscoredes Maximiliano e Luz, Marco Aurélio.Oba Biyi ,o rei nasce


aqui.Salvador:Fala Nagô,2007.

SANTOS, Deoscoredes Maximiliano (Mestre Didi). Por que Oxalá Usa Ekodidé. 3ª Edição.
Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

DIDI, Mestre. Contos crioulos da Bahia: Creole Tales of Bahia: ÁkójopòÍtànÁtenudénuÍran


Omo OdùduwàniIlè Bahia (Brasil). Salvador: Núcleo Cultural Níger Okàn, 2004.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1986.

SANTOS, Juana Elbein dos. Transmissão do Axé: religião e ethos negro no Brasil. In:
SEMANA DE ESTUDOS SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO NA FORMAÇÃO
SOCIAL BRASILEIRA , 3., Niterói, 1978. Caderno, p. 27- 35.

SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu tempo é agora. São Paulo: Editora Oduduwa,
1993.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Rio de Janeiro: Corrupio, 1998.

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BRANQUITUDE, BRANQUIDADE E A IDENTIDADE RACIAL BRANCA ENTRE O


PENSAMENTO SOCIAL SOBRE A QUESTÃO DO NEGRO NO BRASIL 22

JOYCE SOUZA LOPES 23

RESUMO

O objetivo deste ensaio é refletir sobre os percursos científico-políticos que os estudos


sobre branquitude têm sido construídos. Deste modo, tratando a branquitude como tema,
campo e/ou objeto entre os estudos das hierarquias raciais, mapeamos o percurso
temático da branquitude entre os estudos das relações e hierarquias raciais no Brasil, uma
vez que dimensionamos a abordagem de um tema caro para política racial e, não obstante,
para o Movimento Negro: a branquitude como poder, como supremacia e/ou hegemonia
racial.

Palavras-Chave: Branquitude/Branquidade; Identidade Racial; Hierarquias Raciais.

1. INTRODUÇÃO

Com a abordagem recorrente das ações e políticas afirmativas raciais entre os


discursos midiáticos, populares e políticos, em especial a partir da discussão sobre cotas
raciais e sua (in)constitucionalidade, temos configurado no Brasil, sob a atuação do
Movimento Negro, um campo discursivo sobre os rumos da política racial, entre alguns
parâmetros racializar ou desracializar tem sido um enfoque relevante. Contudo, seguindo
aportes científicos e/ou políticos de mediação notamos, mais uma vez, o negro em questão
e, de acordo com a pauta, sua negritude. Contraposto, provocamos uma discussão
partindo da identidade racial branca, a branquitude, e, em especial, da perspectiva
científico-política que a envolve.
Quando mencionamos e nos apropriamos dos estudos sobre
branquitude/branquidade trata-se da indicação de superação da ausência, entre as
Ciências Sociais em geral, e na Antropologia sobretudo, de investigações particulares

22
Esta proposta é parte integrante de pesquisa de mestrado em curso intitulada “Lugar de branco e o ‘branco
fora do lugar’: Representações sobre a desconstrução do racismo da branquitude entre o Movimento Negro
em Salvador-BA”, orientada pela Prof.ª Dr.ª Rosane Aparecida Rubert da Universidade Federal de Pelotas..
23
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia; Mestranda em Antropologia
Social pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: Joyce.seso@gmail.com

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sobre a identidade racial branca. Este despertar contribui para desconstrução da ideia de
quem tem raça é o negro, na medida em que os brancos se beneficiam do seu status
humano generalizado (CARDOSO, 2008). O branco então, além de socialmente
racializável deve ser entendido enquanto sujeito diagnosticável, objeto de pesquisa,
observação e compreensão.
Em 1957, o sociólogo Guerreiro Ramos já propunha essa discussão, dissertando
sobre a necessidade de situar cientificamente o/a branco/a, entendendo que “o que se tem
chamado no Brasil de “problema do negro” é reflexo da patologia social do “branco”
brasileiro, de sua dependência psicológica” (RAMOS, p. 236, 1995).
Sabe-se que branquitude está, de forma irrestrita, relacionada à identidade racial
branca, a partir disto criamos considerações e a efetivamos enquanto conceito múltiplo. No
Brasil, uma das proposições de distinção está na própria expressão – branquitude ou
branquidade. Em via de transposições de linguagem nos deparamos com outros termos,
ora agregados de diferentes sentidos, ora sinônimos. Até 2004, as produções brasileiras
foram abordadas seguindo o termo branquitude, contudo, a partir da publicação do livro
Branquidade: Identidade Branca e Multiculturalismo, de Vron Ware, nos deparamos com o
termo branquidade. Segundo Lourenço Cardoso, a relação entre os dois termos tem a ver
com o processo de tradução do conceito em inglês, em que, de acordo com sua revisão
literária, no Brasil ambos têm o mesmo significado. Sendo assim, a utilização dos termos
encaixa-se por critérios opcionais (CARDOSO, 2008).
Nesta altura, tomamos parte da reflexão ao sentido atribuído aos estudos com
temática racial, estando de acordo com Angela Fiqueiredo e Ramón Grosfoguel quando
apontam o seguinte:

O campo de estudos conhecidos como "estudos das relações raciais" no Brasil


constituem o objeto de conhecimento historicamente produzido por acadêmicos
brancos cuja epistemologia baseia-se no estudo sobre negros, por isso mesmo, a
noção de estudos sobre as "relações raciais" mantém o mito de uma
horizontalidade entre os grupos racialmente diferenciados. Julgamos ser mais
adequado falarmos de "hierarquias raciais" já que enfatizaríamos a verticalidade
das relações sobre a suposta horizontalidade expressa na definição "estudos das
relações raciais" (2007, p. 36).

Entendendo os estudos das hierarquias raciais no Brasil partindo deste locus


interpretativo, sobretudo no que diz respeito a branquitude como tema, campo e/ou objeto,
alçamos as discussões sobre a desracialização entre os estudos sobre
branquitude/branquidade e a influência de autores como Paul Gilroy na defesa de uma
perspectiva da abolição do conceito de raça. Sendo esta uma das vertentes político-

129
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científicas da temática em evidência, elencamos de modo contraposto uma segunda


vertente que é a racialização, adoção de ações políticas afirmativas raciais como medida
antirracista.
Ao provocarmos o uso do construto de Raça (sem aspas) como essencialismo
estratégico 24, esboçamos argumentos em defesa do que julgamos mais operante na
realidade brasileira de modo específico e sublinhamos ainda aspectos de uma produção
com rumo descolonial, distintiva a epistemologia do corpo-política do conhecimento,
sobretudo do ponto de vista da localização geopolítica. Ou seja, ao invés de sujeitos que
pensam “o outro”, propõe-se o estudo a “si mesmos” a partir do reconhecimento e crítica
do seu lugar histórico-racial de privilégios também epistêmicos, buscando romper com a
autorrepresentação do branco como padrão genérico de humanidade e, sobretudo, com
seu legado de intencionalidade de conhecimento apático e neutralizado (GROSFOGUEL,
2007).

2. BRANQUITUDE/BRANQUIDADE ENTRE OS ESTUDOS DAS HIERARQUIAS


RACIAIS

O conceito de raça sofreu alterações de sua concepção científica biológica, através


de um conjunto de teorias ligadas a correntes como o evolucionismo social, darwinismo
social, teoria das raças e miscigenação, até sua concepção antropológica de raça
enquanto aspectos culturais, nessa conjuntura, a obra do ensaísta Gilberto Freyre, Casa-
Grande & Senzala (1961), é salutar para compreensão de uma grande mudança nas
ciências e pensamento social brasileiro acerca do conceito de raça. Freyre introduziu o
conceito de cultura (antropológico) nos espaços erudito-acadêmicos nacionais, que até
então possuíam uma hegemonia intelectual das doutrinas racialistas do século XIX
(GUIMARÃES, 2005).
A partir da década de 50 o conceito de raça volta à cena intelectual nacional e
internacional devido a uma série de pesquisas realizadas no Brasil e no mundo,
financiadas pela UNESCO com o propósito de empreender investigações sobre as

24
“A expressão “essencialismo estratégico” (originalmente proposta por Spivak) refere um tipo de
solidariedade temporária para efeitos de acção social. O qualificativo “estratégico” estabelece uma ressalva
em relação ao denegrido “essencialismo” e, simultaneamente, suspende as propostas alternativas de muita
teoria social pós-estruturalista (nomeadamente na esteira de Foucault e, mais recentemente, de Butler) que
apontam no sentido do estilhaçamento das categorias identitárias” (ALMEIDA, 2009, p. 2).

130
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relações (hierarquias) raciais, bem como categorias analíticas como raça, racismo e
discriminação racial e sua viabilidade conceitual (MAIO, 1999). É nesse momento que, no
Brasil, estes estudos ganham uma nova perspectiva teórico-metodologica, de forma que,
“O desenvolvimento dos estudos sobre relações raciais no Brasil marcam o momento de
profissionalização e institucionalização das ciências sociais brasileiras” (PINHO, 2010,
p.33).
Estudos como dos sociólogos Pierson (1945) Florestan Fernandes (1978), Roger
Bastide (1951), Octavio Ianni (1960), Fernando Henrique Cardoso (1960), Oracy Nogueira
(1942), dentre outros, inauguram uma nova problemática central no campo, ao
debruçaram-se sobre o lugar do negro nas sociedades de classes no pós-abolição (MAIO,
1999).
As pesquisas sobre relações (hierarquias) raciais se ampliaram e as
problematizações atuais envolvem práticas do cotidiano, ações políticas de movimentos
antirracistas, estudo das políticas públicas pautadas pelo recorte de raça e, sobretudo,
uma vasta produção teórica no que concerne ao uso e aplicabilidade do conceito de raça
de forma científica (LIMA, 2008). Bairros (1991), Hasenbalg (1988) e Valle Silva (1988)
podem ser citados como corolários dessa perspectiva das relações (hierarquias) raciais no
Brasil, ao investigarem como as desigualdades sociais no país, em vários setores (renda,
emprego, educação, residência, etc.), têm uma ligação intrínseca com as questões raciais
(GUIMARÃES, 2005).
O despertar científico acerca do branco enquanto sujeito racializável marca outra
transição histórica dos estudos das relações (hierarquias) raciais, à medida que coube ao
branco o papel de objeto de pesquisa. Sob essa lógica, retira-se o negro do foco
problemático em que condicionavam as análises sobre raça/racismo e é proposto,
também, o foco na identidade branca. Essa perspectiva, ligeiramente recente, foi marcada
pelo impulso dos Critical Whiteness Studies (Estudos Críticos da branquitude) nos EUA, a
partir da década de 1990 sob o contexto da luta pelos direitos civis e a entrada dos negros
na universidade.
Apesar desse reconhecimento dos estudos americanos enquanto catalisadores,
destacamos produções em outros países, a citar: Inglaterra, África do Sul, Austrália e
Brasil. Autores como Du Bois (1935), Fanon (1952), Biko (1960-1970), Memmi (1957),
Abdias do Nascimento (1966), estão entre os precursores que evidenciaram os conflitos
entre negros e brancos elencando ainda a perspectiva acerca do lugar de privilégio
subjetivo, objetivo e/ou simbólico da branquitude (CARDOSO, 2008).

131
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No Brasil, Gilberto Freire foi o primeiro a utilizar o termo branquitude, a partir da


perspectiva de desconstruí-lo, bem como defendia o desuso do sentido negritude, em prol
da positivação da mestiçagem enquanto ideal de democracia racial. Em 1957, o sociólogo
militante Guerreiro Ramos foi quem propôs uma discussão acerca do lugar de privilégio da
brancura, apontando, inclusive, Gilberto Freire enquanto um dos espoliadores da cultura
negra ao se valer de sua patologia-protesto, ou seja, por se localizar exterior a
superioridade branca segundo critérios europeus, ressalta sua brancura diante dos negros
e os fazem inferiores.
Já em 1980 Abdias do Nascimento escreveu um documento – publicado em 2002
em O Quilombismo – apontando sua disposição em formalizar as sugestões de Guerreiro
Ramos e de um escritor que o antecedeu, Fernando Góes, de situar o branco como objeto,
propondo a construção de um seminário em que os africanos deveriam promover um
Congresso Internacional para estudar os brancos da Europa e seu prolongamento
arianóide no Brasil. Seriam estudos minuciosos sobre a violência ideológica sutil, ou
violência física, econômica e espiritual praticadas pela raça branca (NASCIMENTO, 2002).
Proposição que, se efetivada, nos levaria a profundas reflexões a partir do olhar do outro
sob uma relação historicamente inversa da Ciência – O objeto branco.
Ao atentar-se, em 1957, que as teorias raciais até então, na verdade, se
constituíram em uma Sociologia do Negro Brasileiro, Guerreiro Ramos sustenta a análise
pioneira do impacto da ideologia do branqueamento para os brancos (RAMOS, 1995).
Contudo, sua incitação só começa a tomar corpo no Brasil, timidamente configurando um
campo epistêmico das ciências humanas, e entre os estudos de relações (hierarquias)
raciais, a partir dos anos 2000 com as pesquisas de Piza (2002), Rossatto & Gesser
(2001), Bento (2002), Sovik (2002), as traduções de Ware (2004), etc. (CARDOSO, 2008).
A partir de então, um leque de autores tem configurado perspectivas heterogêneas
e, por vezes, divergentes, assim, “definir o que é branquitude e quem são os sujeitos que
ocupam lugares sociais e subjetivos da branquitude é o nó conceitual que está no bojo dos
estudos contemporâneos sobre a identidade branca” (SCHUCMAN, p. 22, 2012). Contudo,
é ligeiramente consensual que as produções desse campo, de modo geral, são aporte
constitutivo ao entendimento da brancura, da identidade racial branca e dos conflitos
epistêmicos e empíricos de tal proposição. Conforme Sovik (2002), a branquitude é uma
abordagem teórica de natureza diversa, uma categoria analítica e política,
indubitavelmente necessária para se pensar as hierarquias raciais no Brasil.

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Bento (2002) apresenta um aporte significativo ao estudo da branquitude,


sobretudo por sua produção teórico-empírica sobre a desconstrução do traço racista dos
brancos. Seguindo a proposta de reeducação e a concepção pedagógica de apreensão
crítica da realidade racial, Bento aborda os aspectos psicossociais das interações raciais a
partir dos cursos e formações do Centro de Estudo das Relações de Trabalho e
Desigualdades (CEERT 25).
A realização dos debates com diferentes grupos (movimentos sindicais, feministas,
funcionários do poder público envolvidos com políticas de inclusão no trabalho, etc.) tornou
mais aguçada as percepções sobre a branquitude e atuou como base para formulação de
questões como: “[...] o que é que faz com que pessoas que cultuam valores democráticos
e igualitários aceitem a injustiça que incide sobre aqueles que não são seus pares ou não
são como eles?” (BENTO, p. 28, 2002). Em contrapartida, houve o subsídio para
encaminhamentos práticos de como pessoas brancas que fizeram um compromisso de
ruptura com o abandono de seu racismo poderiam oferecer um modelo para outros
brancos, em busca de novas maneiras de entender a sua própria branquitude (BENTO,
2002).
Logo, cabe ao sentido referencial desta pesquisa a indagação introdutória do livro
de Vron Ware, Branquidade: identidade branca e multiculturalismo: “que forças históricas e
contemporâneas sustentam as formações particulares da branquitude no Brasil, e que
estratégias antirracistas seriam apropriadas para subverte-las?” (p.9, 2002). Não obstante,
discutir e compreender as dimensões da branquitude significa corroborar para
consolidação e avanço desse campo dos estudos das relações/hierarquias raciais. Sobre
tais análises discursivas, “o desafio, portanto, passa a ser o de indagar o que se vem
dizendo sobre a branquidade, se o que está sendo dito tem implicações mais libertárias ou
mais regressivas, e de onde vem o surto atual de discursos sobre ela” (FRANKENBERG,
2004, p. 320).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

25
“[...] uma organização não-governamental, apartidária e sem fins lucrativos criada em 1990 com o objetivo
de conjugar produção de conhecimento com programas de intervenção no campo das relações raciais e
gênero, buscando a promoção da igualdade de oportunidade e tratamento e o exercício efetivo da cidadania
(BENTO, p. 147, 2003)

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O conceito de raça sofreu alterações de sua concepção científica biológica, através


de um conjunto de teorias ligadas a correntes como o evolucionismo social, darwinismo
social, teoria das raças e miscigenação, até sua concepção cultural. A obra de Gilberto
Freyre por vezes é tomada como salutar, já que introduziu o conceito de cultura
(antropológico) entre espaços erudito-acadêmicos que até então possuíam uma
hegemonia das doutrinas racialistas do século XIX. A partir de 1950 o conceito de raça
volta à cena intelectual devido a uma série de pesquisas, financiadas pela UNESCO, com
o propósito de investigações sobre as relações raciais. Inaugura-se uma nova
problemática: o lugar do negro nas sociedades de classes no pós-abolição.
O despertar científico acerca do branco enquanto sujeito racializável marca outra
transição histórica dos estudos sobre raça, à medida que coube ao branco o papel de
objeto de pesquisa. Retira-se o negro do foco problemático em que condicionavam as
análises sobre raça/racismo e é proposto, também, o foco na identidade branca.
Apresentar o percurso temático da branquitude entre os estudos das relações e hierarquias
raciais no Brasil trata-se de dimensionarmos a abordagem de um tema caro para o
pensamento social negro: a branquitude como poder, como hegemonia racial. Quando
mencionamos e nos apropriamos dos estudos sobre branquitude/branquidade trata-se da
indicação de superação da ausência, entre as Ciências Sociais em geral, de investigações
particulares sobre a identidade branca. Este despertar contribui para desconstrução da
ideia de quem tem raça é o negro, na medida em que os brancos se beneficiam do seu
status humano generalizado.
A proposição de alinhar-se a uma epistemologia descolonial caminha no sentido de
desafiar a ““ego-política do conhecimento” cartesiana das ciências ocidentais, opondo-lhe a
“geopolítica e a corpo-política do conhecimento”” (GROSFOGUEL, 2007, p. 32). Trata-se
de uma propensão, como afirma Grosfoguel, ainda sob muitos obstáculos entre os estudos
étnicos, e que leva em conta:

[...] em vez de um sujeito branco estudando sujeitos não-brancos como objetos de


conhecimento, assumindo-se a si mesmo como um observador neutro não situado
em nenhum espaço nem corpo (“ego-política do conhecimento”), o que lhe permite
portanto reclamar uma falsa objetividade e neutralidade epistêmica [...] temos a
(“geopolítica e corpo-política do conhecimento”) (GROSFOGUEL, 2007, p.32).

Muito embora, devo ressaltar concordância em que “tanto a paridade como a


assimetria racial podem contribuir de forma significativa com estudos críticos sobre raça no
Brasil” (SCHUCMAN, COSTA E CARDOSO, p. 17, 2012). O que propomos aqui é, antes, a
localização e definição do sujeito pesquisador, uma vez que, supostamente, tendemos a

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superar o enunciado de neutralidade e objetividade científica. Falar deste lugar de branca,


e a partir deste lugar, significa justamente romper com o pacto narcísico de transpor-se
invisível e universal, tal como aponta Bento (2002). O desenvolvimento de uma pesquisa
entre este recorte racial compreende o despertar contributivo à desconstrução da ideia de
quem tem raça são os negros, na medida em que os brancos se beneficiam do seu status
humano generalizado. Bem como, produz-se parte da possibilidade do preenchimento de
uma lacuna que corresponde à ausência, demanda e emergência de investigações
particulares sobre tal categoria (CARDOSO, 2008).

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CONTOS POPULARES DE MESTRE DIDI: ACERVO HISTÓRICO CULTURAL

ANTONIO MARCOS DOS SANTOS CAJÉ (UFRB)

RESUMO

Pretendemos, com este trabalho, apontar e interpretar o papel dos símbolos e signos
através da visão cultural dos contos de Mestre Didi. Entretanto, não se trata de símbolos
que estão ocultos nas narrativas dos contos, mas de elementos intrínsecos a elas, que se
investem de valores simbólicos para a cultura e a história. A motivação que instigou a
construção tanto deste artigo como da pesquisa subjacente foi o interesse em relação aos
elementos dos contos nas ações populares das tradições orais que surgem, conforme a
leitura, no discurso narrativo da obra de Mestre Didi. O sistema simbólico permite abarcar
os olhares epistemológicos e o senso comum pelos quais estes símbolos e signos trazem
representações do inconsciente coletivo de um povo.

Palavras-chave:

INTRODUÇÃO

Todos os povos sempre narraram suas histórias pelos contos e pelos mitos, mesmo
quando não havia escrita. No entanto, havia a oralidade como mecanismo substancial que
agregava valores ao movimento social de cada povo, e suas memórias eram preservadas.
E essas histórias guardam a cultura. Discutiremos, no presente artigo, os símbolos e
signos presentes nas narrativas literárias dos contos de Mestre Didi, de modo genérico,
uma vez que existem noventa e quatro contos do referido autor, distribuídos nos livros:
Contos crioulos da Bahia (sessenta e cinco contos); Contos negros da Bahia e contos de
Nagô (vinte quatro contos); Porque Oxalá usa Ekodidé; História da Criação do Mundo;
Autos Coreográficos Mestre Didi (dois contos); A chuva de poderes.
A compreensão da palavra símbolos tem sua origem no Latim Symbolum, que
significa “marca, símbolo”. Este, por sua vez, é derivado do grego clássico Simbolon,
“senha garantia”. Esta palavra grega é formada por SYN, que significa junto, e BALLEIN,
que tem o significado de “lançar, arremessar, atirar”, sua tradução literal seria “atirar junto”.

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É algo que representa uma ideia, uma entidade física ou um processo. Já o signo indica
alguma coisa, e representa o próprio símbolo como marca. Diante dessas compreensões
sucintas a respeito dos termos símbolos e signos, será feita análise dos mesmos nos
contos de Mestre Didi. No entanto, este exame será muito mais amplo, mais denso, já que
diante dos contos existe a história cultural que carrega percepções de um povo africano e
dos afrodescendentes, pois os contos contam muito mais que fábulas: eles contam a
historiografia e a diáspora.
Analisar os contos literários de Mestre Didi possibilita ampliar a cultura e descortinar
os elementos da história com a junção da literatura, com proporção de
multirreferencialidades históricas dos saberes ocultos e às vezes silenciados nas narrativas
dos contos. Sendo que muitas dessas literaturas narradas nas escritas e na oralidade
guardam os símbolos e signos que se manifestam como acervo da cultura e seus
personagens literários retratam parte do real e do imaginário.
Os contos, enquanto material histórico, mescla realidade e invenção enveredando
por um caminho fantástico, ao tempo em que absorvem a história e cultura através de
tradições orais e de sujeitos como autores e atores. A interpretação simbólica dos contos
permite perceber, pelo viés da literatura, uma estrutura que ultrapassa o ato de
simplesmente ler, propiciando a construção de uma interpretação histórica.
Compartilhando com o ponto de vista de Robert Darnton (2014, p.26), ouso
transcrever uma longa citação:

A generosa visão do simbolismo que tem Bettelheim fornece uma interpretação


menos mecanicista do conto do que a resultante do conceito de código secreto que
tem Fromm, mas também decorre de algumas crenças não questionadas quanto ao
texto. Embora cite comentaristas de Grimm e Perrault em número suficiente para
indicar alguma consciência do folclore como disciplina universitária, Bettelheim lê
“Chapeuzinho Vermelho” e os outros contos como se não tivessem história alguma.
Aborda-os, por assim dizer, horizontalizados, como pacientes num divã, numa
contemporaneidade atemporal. Não questiona suas origens nem se preocupa com
outros significados que possam ter tido em outros contextos, porque sabe como a
alma funciona e como sempre funcionou. Na verdade, no entanto, os contos
populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e
sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de
expressarem as imutáveis operações do ser interno do homem, sugerem que as
próprias mentalidades mudaram. (...)

Diante do exposto acima, os símbolos nos contos comunicam a história cultural de


uma nação ou de uma etnia. Nos contos de Mestre Didi, a ancestralidade do povo nagô
está implícita pelos contos de procedência “do sagrado, sejam eles escritos ou orais, que
são relatos vivos dos deuses se relacionando com o indivíduo em todas as esferas

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interpessoais e místicas” (Cajé, 2014). Os símbolos e signos articulam-se de maneira


sublime, tanto na escrita como na oralidade, como é possível perceber na assertiva abaixo:

A interpretação do símbolo, uma vez descoberto seu nexo ontogenético, seu ou


seus referentes, permite-nos tornar explícita a realidade fatual. Já dissemos que
não entendemos o símbolo com um significado constante; sua interpretação está
sempre em relação a um contexto. Sua mensagem está em função de outros
elementos (SANTOS, 2008, p.23).

Os símbolos nos contos possuem fins peculiares e pertinentes ao homem, pois


mesmo que ora estejam ocultos, ora desvelados, manifestam-se como dinamizadores da
cultura, tornando-se mecanismos de evidências e sinais para a história. Como afirma
Ginzburg “poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios de um
tapete. Chegando a este ponto, vemo-los a compor-se numa trama densa e homogênea”,
(Ginzburg,1989) já que os símbolos e signos encontrados nos contos fazem o indivíduo
observar suas necessidades, caso existam, e distinguir variantes culturais e ao mesmo
tempo (re)construir uma identidade. A própria concepção do conto por si só já pode ser
compreendida como símbolo-signo — uma unidade completa — e quando nos deparamos
com a leitura e suas interpretações, usamos esse objeto como unidade simbólica ou uma
representação simbólica.

O nível da interpretação simbólica permitiu-me penetrar, abarcar e tornar inteligível


certos aspectos dos dados fatuais que não poderia ter apreendido de outra forma. É
particularmente frutuoso, quando aplicado a uma disciplina consagrada ao estudo
das “ações não-poéticas”, de ritos, formalizações, dramatizações... artes não
aplicadas (LANGER, apud SANTOS, 2008, p.25)

Como foi comentado no início deste texto, lançaremos um olhar epistemológico dos
símbolos e signos nos contos de Mestre Didi, sendo que utilizaremos mais adiante dois
contos para revelar alguns elementos revelados. Como é do conhecimento de todos, as
cultura africana foi encaminhada para o Brasil pelos escravizados que foram arrancados e
massacrados desde a chegada dos portugueses, a partir da descoberta do país.
Na sua transatlântica viagem feito animais, os negros trouxeram consigo valiosos
bens que proporcionaram ao Brasil a cultura como é hoje; e nessa diáspora vigiada,
acorrentada, humilhada, eles também possibilitaram a construção da memória imaterial
das narrativas orais, que possuem signos e símbolos. E a partir da dinâmica dos contos,
passamos a conhecer o sistema cultural deste homens e mulheres; suas guerras; seus reis

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com suas nações; sua religião de matrizes africanas e seu panteão; seus mitos; enfim,
tudo isto está presente nos contos de Mestre Didi.

O CONTO QUE PASSA PELO TEMPO QUE PASSA POR NÓS

A vendedora de Acaçás que ficou Rica

Em uma cidade existia uma senhora que há muitos anos vendia acaçá e
mingau pela manhã.
Já se achando muito cansada, um dia, ela resolveu ir à casa do Babá Ifá
pra saber o que ela devia fazer para deixar de vender mingau e acaçá, e viver mais
descansada para o resto da vida, pois já estava um mucado velhinha.
Depois de feita a consulta, Ifá disse para ela:
— Você me traga uma galinha, um porco, enfim tudo o que lhe ocorra pela
cabeça.
Imediatamente ela saiu para dar as providências, a fim de conseguir as
coisas, o mais depressa possível, para levar ao Babá Ifá, pois queria se ver livre
daquela vida de qualquer jeito. Logo que conseguiu tudo que lhe pareceu suficiente
para o trabalho que Ifá ia fazer, foi levar. Depois de feita a entrega, Ifá disse para
ela:
— Vá, minha filha, dentro de sete dias vai terminar a grande guerra que
está sendo travada pelo general Ogun, muito perto daqui; na volta dele, você terá a
recompensa merecida, obtendo uma melhor posição na vida, por todos estes anos
que vem ajudando à alimentação de todo o povo desta cidade com seu acaçá e
com seu mingau.
A velhinha foi-se embora e recomeçou a fazer seu mingauzinho com os
acaçás. Quando completou sete dias, ela já nem se lembrava mais do que tinha
feito, nem do que lhe tinha dito Ifá, quando viu e ouviu uma zoada e um bocado de
soldados que vinham em sua direção com muitos gritos de satisfação, vivas e
toques de tambores, parando em frente ao lugar onde ela estava vendendo. Nisto,
um deles, que era o general Ogun, e que estava comandando toda aquela gente
vinda da guerra com muita fome, chegou junto dela com todo o pessoal dizendo:
— Minha velhinha, não morremos na guerra, será que vamos morrer aqui
com fome?
Em reposta, ela prontamente, de muito bom grado, mandou todos se
sentaram e começou a servir um por um.
Terminada a refeição, Ogun que não tinha dinheiro nenhum para pagar o
almoço, pois devorara com os companheiros tudo o que foi de comer da velhinha,
pontual como era, dividiu com ela de tudo o que trazia de saques da guerra, ficando
assim a vendedora de acaçás e mingau riquíssima, de surpresa. Esta transferência
foi divulgada por todos os lugares do mundo. (SANTOS, 2003, p.111).

A análise do conto acima levando-se em consideração os símbolos e signos nos


remete à perspectiva da literatura pela história, já que possui elementos culturais bastante
relevantes. Observa-se que o sagrado está simbolizado pelo oráculo Ifá, que pelo axé
(energia dinâmica) possibilita à velhinha uma vida melhor. No entanto, essas energias ou
Asé (axé — energia dinâmica elementar da vida) precisam ser doadas para serem

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recebidas, neste caso, pela oferenda, pois os signos do acaçá e do mingau são elementos
genéricos que alimentam a vida, ou seja, o indivíduo.
É possível também observar no contexto do conto a posição social que simboliza
força e hierarquia, quando Ogun aparece como general e não como Orixá, e os soldados
surgindo de um conflito que é a guerra.
Metaforizando as inúmeras possibilidades que este conto oferece no bojo de sua
narrativa, ao ser lido por cada pessoa, seus símbolos e signos contribuem como um elo
essencial e necessário para as relações sociais e culturais, como a relação da velha com o
sagrado e com a generosidade; e a recompensa no final: a riqueza.
Os contos populares, como diz Darnton (2014, p.26) “são documentos históricos”.
Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes
tradições culturais”. Observando o conto de Mestre Didi acima, nota-se que a vivência com
o mundo místico era algo que estava presente constantemente na vida dos homens e
mulheres; e seria como algo propulsor na sociedade, como um seguro social que alimenta
a fé.
Assim como o mingau e o acaçá alimentam o corpo, a fé alimentava ou alimenta
ainda hoje a ideia de cosmovida, enquanto ser humano e divino se entrelaçam através do
signo que é o jogo oracular. A velhinha representa a ancestralidade do povo africano e dos
afrodescendentes, evidenciando a dicotomia do mágico/real. O fio condutor deste conto é a
relação do imaginário com a tradição dos acontecimentos na sociedade.
Os personagens dos contos com suas múltiplas facetas, destacando-se a literária e
a histórica, possuem uma função que é guardar os signos e símbolos culturais dos
afrodescendentes. Assim sendo, essa simbologia nutre as mais variadas formas de
comunicação que compõem os variados matizes da diversidade e riqueza da cultura afro-
brasileira.
Podemos entender que a função simbólica dos contos está velada e se manifesta no
processo de sociabilidade; funcionando, assim, o entendimento pela comunicação. Os
contos de Mestre Didi são constituídos de variados elementos, desde a sua formação
religiosa, como Asipá, Alapini, sacerdote supremo do culto aos Baba-egun. Como artista
plástico e homem negro, seus contos trabalham com a diversidade humana, pois são
escritos que baseiam-se nos símbolos do sincretismo, nos contos fabulados e
cosmogônicos (contos baseados nos mitos), nas próprias relações sociais, pois muitos
contos possuem visões da história cultural, seja da Bahia (principalmente do recôncavo
baiano), seja dos contos africanos da diáspora.

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Como alguns dos principais alicerces da cultura, temos os símbolos e signos; a


linguagem e os costumes; e outras composições axiológicas que também, obviamente,
alimentam o sistema dinâmico das relações humanas. É através dos símbolos e signos,
que compreendem a ideia central do artigo, que somos direcionados a uma magnífica
compreensão da cultura. Por exemplo, retomando o personagem do conto acima — Ogun
— que simboliza o homem forte que traz consigo a vitória e a força, pois na tradição
cultural do panteão ioruba, expressar símbolos é conotação de existência, tantos para os
ancestrais quanto para os que vivem.

A cultura é o movimento da ancestralidade, e a ancestralidade é como um tecido


produzido no tear africano: na trama do tear está o horizonte do espaço; na
urdidura do tecido está a verticalidade do tempo. Entrelaçando os fios do tempo e
do espaço cria-se o tecido do mundo que articula a trama e a urdidura da
existência. A ancestralidade é um tempo difuso e um espaço diluído. Evanescente,
contém dobras. Labirintos desdobram-se no seu interior e os corredores se abrem
para o grande vão da memória. A memória é precisamente os fios que compõem a
estampa da existência. (OLIVEIRA, 2007, p.245)

Na citação acima, nota-se claramente a importância de tecer nossa ancestralidade


como cultura que se processa no tempo e espaço: no conto, a personagem da Velhinha é
a personificação da mulher como elemento que simboliza a ancestralidade feminina que
trabalha, que manuseia o alimento que, por sua vez, é fonte para a vida humana; ademais,
a comida é a ponte para o diálogo com Ogun, já que sacia sua fome e dos seus soldados.
A ancestralidade está representada neste conto e em vários outros de Mestre Didi,
pois é na mesma que se encontra a força das histórias da tradição oral e também a história
como fonte literária e documental de um povo ou de uma nação: é essa ancestralidade que
alicerça a cultura iorubana e outras do continente africano.

Os contos ilustram o acervo de textos místicos, acontecimentos históricos (inclusive


os ocorridos na órbita da sociedade global com seus integrantes) que, marcados
por sua intemporalidade narrativa e sua característica fantástica de representações,
reforçam e ensinam os padrões e valores indicativos dos comportamentos
necessários à coesão do grupo, os contos narrados ilustram o significado de
conhecimento e de moral das diversas representações simbólicas que ensinam e
dirigem a socialização. (LUZ, 2011, p. 95).

Na assertiva acima, pode-se perceber a afirmação da importância das narrativas


dos contos, com seus emblemas e sinais, já que elas evidenciam a cultura de um povo; e
nos contos de Mestre Didi essa cosmovisão assegura e promove a comunicação e
socialização pelas diversidades, sendo por meio deste sistema simbólico que surgem as
relações nas quais a linguagem se manifesta, juntamente com a literatura e a história.

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OS SÍMBOLOS E SIGNOS GUARDIÕES DA MEMÓRIA

Mas entre os Gregos, da mesma forma que a memória escrita se vem acrescentar
à memória oral, transformando-a, a, história vem substituir a memória coletiva,
transformando-a, mas sem a destruir. Divinização e, depois laicização da
memória... (LE GOFF, 1990, p.438)

A memória, sem dúvida, ao aliar-se aos símbolos e signos, representa a forma


constituída do progresso do indivíduo; seja pelo seu passado ou pelo futuro, não de
maneira anacrônica, mas de maneira intrínseca aos elementos aos quais se possibilita a
se mostrar ou a lembrar. Salientando que a concepção de memória de Le Goff matura-se
na ideia dos contos de Mestre Didi, que partem do princípio da escrita para a oralidade, ou
vice-versa; a centralidade deste aspecto é que a memória é compilação de informações,
ou seja, são documentos que nos fazem entrar em contato com nossa ancestralidade e
nossa cultura; é fazer lembrar o que foi esquecido e fortalecer o que é lido e lembrado.
E os contos de Mestre Didi trabalham muito bem com a memória e com o conceito
teórico de memória de Le Goff: essas memórias são passagens das tradições orais Nagô
para a escrita. Sendo transmitida assim, a memória coletiva permeada por influências
divinas (da religião de matrizes africanas), são memórias que asseguram com ênfase a
história do povo negro e da diáspora. Nesse contexto, os símbolos são principalmente
elementos que promovem a interseção ou a encruzilhada documental dos contos, como
processo de acervo histórico conservado pela memória.
Os símbolos, mais que os signos, são marcantes e se relacionam com mais
movimento: os símbolos do acaçá e do mingau, além de representar alimento, trazem a
ideia da afetividade. O mingau, por exemplo, lembra o carinho e a proteção; já o acaçá é
um símbolo que representa o alimento que, a seu turno, simboliza uma língua iorubana:
tudo isso entremeado por uma dicotomia entre o sagrado que alimenta os Orixás e a ideia
de um símbolo forte.
A luz emitida pelos contos afro-brasileiros, de maneira genérica, e principalmente
através dos contos de Mestre Didi, elucida a cultura por vários feixes: desde os
afrodescendentes e das culturas africanas, como um processo narrativo que se relaciona a
partir da singularidade ao plural, fortalecendo a história oral. É pelo sistema simbólico e

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dos signos que os contos narram, como acervo documental que se utiliza da literatura
como mecanismo organizador, sendo um patrimônio imaterial da cultura.
Mestre Didi vai mesclando a cultura, o cotidiano e o sagrado nos seus contos, com
reflexões simbólicas que reconstroem a busca pela diversidade. A função do símbolo é,
nos contos de acervo, manter vivos os costumes de um povo. Em muitos dos seus contos,
os signos são logo revelados; e já em outros contos eles se mantêm ocultos, como assim
deve ser! Os símbolos, de maneira alguma parecem isolados; pelo contrário, o símbolo
une-se a uma determinada cultura e nesse caso, como estudamos no conto de Mestre
Didi, a cultura está fortemente baseada na diáspora, dando lugar a uma composição
simbólica.
Quando analisamos ou estudamos os símbolos e signos nas narrativas de Mestre
Didi, é necessário fazer a comunicação entre as relações estabelecidas na narrativa lida, já
que o símbolo por ele mesmo não se revela, não se manifesta como tal. Para que o
símbolo, de maneira genérica, seja revelado é necessário aplicá-lo a um fato ou a um
sistema que se comunique ao objeto; neste caso pode ser pelas vias da cultura, pelo
sagrado ou pela ética e moral; e isto está bastante presente nos contos de Mestre Didi.
Os contos são meios de acesso ao saber e ao conhecimento, independentemente
de serem narrativas do imaginário fantástico ou contos baseados em fatos reais, visto que
o sistema simbólico dos contos africanos está presente nas relações de poder. Portanto,
para a compreensão de um ou mais símbolos, é necessário que o leitor(a) desenvolva uma
análise intercultural, pois há variações na interpretação dos contos escritos ou orais. Para
que não ocorra um equívoco na interpretação desses contos pelo viés dos símbolos; neste
caso é de profunda importância saber sobre a cultura que alicerça a sua narrativa: como já
mencionamos anteriormente, a cultura a qual Mestre Didi se apega está fundamentada nas
raízes afro-brasileiras e africanas.
Haja vista que os símbolos abarcam a subjetividade, sendo assim um produto do
ponto de vista de quem lê, é óbvio que não podemos limitar a fonte de interpretação do
leitor(a), pois a leitura é um processo inesgotável. Por outro lado, é importante ficar atento
ao que o símbolo relata, direcionando seus significados. Neste caso, deixamos claro que a
análise dos símbolos e signos nos contos de Mestre Didi deve ser feita observando o
entrelaçamento daqueles com sua cultura subjacente: costumes, valores e a própria
religiosidade do sagrado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conto “A vendedora de acaçá” tem símbolos e signos que desvelam-se para tecer
a cultura e, a um só tempo, impulsionam com veemência o imaginário fantástico pela
literatura. Sem esquecer que eles também empregam a história como ferramenta que torna
os contos como documentos históricos, ou seja, os contos populares de Mestre Didi não
somente distraem, provocando alegria quando são lidos, eles são também mecanismos
historiográficos que possibilitam a compreensão da diáspora e da cultura dos povos
negros.
É importante salientarmos que a literatura dos contos de Mestre Didi ressalta com
peculiaridade um estilo que vai do fantástico ao sagrado: uma combinação essencial da
interpretação de uma cultura e, principalmente, os contos analisados pelos caminhos dos
signos e símbolos proporcionam uma visão da cosmovisão da cultura negra.
Utilizar a lógica e a epistemologia conjugadas com o senso comum dos contos
populares, é um modo de formar um sistema dinâmico genérico; é comunicar e apresentar
a cultura afro-brasileira como é e como pode ser. A obra literária de Mestre Didi é uma
poderosa síntese de impulsos e ideias diversas. Em seus contos encontramos símbolos de
interação social, coletivo e cultural.

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DO CÁRCERE À HUMANIDADE: POR UMA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E


ANTIRRACISTA NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

LIDIANE DO ESPÍRITO SANTO FERREIRA DE JESUS (UFBA)

Resumo: A educação é um direito de todo cidadão, ao qual não se prescreve com a idade,
muito menos com a condição social, esteja ele desprendido ou privado de liberdade. Tal
afirmação encontra-se no artigo 6º da Constituição de 1988, e, a partir dela, compreende-
se que o indivíduo privado de liberdade não perde seu direito à educação.
Compreendemos que ao refletirmos acerca da condição de que mulheres e homens,
grande parte negros oriundos das periferias, são submetidos dentro do espaço carcerário,
nos direcionamos para questões que permeiam desde a arquitetura dos presídios, quanto
à marginalização e a completa desumanização desses indivíduos. Essa violenta forma de
encarceramento pode ser entendida como uma das mazelas do racismo institucional
brasileiro. Entendemos também que o encarceramento teria por finalidade reeducar
indivíduos para que num futuro próximo estes sejam reinseridos na sociedade. No entanto,
o processo de prisionalização contribui fortemente para a reincidência ao crime. A partir
dessas problemáticas, este artigo pretende demonstrar como práticas educacionais
interculturais e antirracistas permitem ao indivíduo encarcerado compreender sócio e
politicamente a sua posição de algo, bem como perceber que os seus antigos crimes
favorecem a reprodução de estereótipos raciais que contribuem para a manutenção de um
racismo estrutural no Brasil.

Palavras-chave: educação antirracista; emancipação; humanidade; racismo;


prisionalização.

A constituição brasileira legisla em seu artigo 6º que a educação é um direito que


compete a todos, desde aspectos como faixa etária, gênero, condição social, raça, bem
como portadores de necessidades especiais ou pessoas privadas de liberdade.
Compreende-se a educação como um dos pilares fundamentais para uma vida digna nas
sociedades contemporâneas, e a falta dela é entendida como uma violação aos princípios
básicos de convivência. De acordo com a Constituição de 1988, é dever do Estado
fornecer plenamente o direito à cidadania. Não possibilitar o acesso à escola, é violentar
imaginários, demarcar espaços de poder, hierarquizar pessoas.

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O sistema Carcerário Brasileiro tal qual como se configura, entende-se como um


espaço onde o indivíduo poderáser penitenciado pelos delitos cometidos para uma futura
ressocialização. No Brasil, assim como em muitos países espalhados pelo mundo, a
política de encarceramento é o principal método legalizado de punição de indivíduos, onde
parte das pessoas que estão encarceradas pertencem às classes mais baixas da
sociedade, o que torna explicito o caráter elitista das prisões brasileiras. Os indivíduos que
estão privados de liberdade, muitas vezes tiveram suas vidas negadas através das
desigualdades sociais e da negação dos seus direitos fundamentais de vida.

Para início de reflexão, devemos ter a informação de quem está atualmente


encarcerado no Brasil. Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias - INFOPEN (2014), 607.731 pessoas encontram-se presas no Brasil,
quantitativo equivalente a quarta maior população carcerária mundial, ficando atrás apenas
dos Estados Unidos, China e Rússia. Dentrodesse quantitativo assustador, 75% competem
ao sexo masculino, em sua maioria jovens entre 18 e 24 anos de idade. O que mais choca
nesses dados trazidos até o momento, corresponde ao percentual de negros: 67% somam
homens e mulheres que se encontram hoje privados da liberdade. O percentual de negros
aprisionados no Brasil, comparados aos 52% de negros contabilizados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010),é proporcionalmente maior do que o
percentual total de brasileiros negros. Diante dessas informações, o encarceramento seria
uma nova modalidade de colonização de indivíduos?

Ao adentrar um presídio, homens e mulheres, logo na entrada, são


desumanizados: despidos de todas as suas vivências e da sua autonomia, suas
identidades são ofuscadas num processo cruel de marginalização. O ato de despir homens
e mulheres negras presos, não permeia apenas questões disciplinares, mas também no
quanto se perpetua o poder sobre os corpos negros brasileiros. Foucault, em seu livro
Vigiar e Punir afirma que:

O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar,


tem como função maior "adestrar"; ou sem dúvida adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e melhor. [...] A disciplina "fabrica" indivíduos; ela é a técnica
específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e
como instrumentos de seu exercício. [...] O sucesso do poder disciplinar se deve
sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção
normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o
exame.(FOUCAULT, 2004, p. 143)

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O ato de despir-se de suas vivências está relacionado ao poder disciplinar


explicitado por Foucault, no qual compreende a inserção de indivíduos no sistema
carcerário através de uma simbologia do apagamento da vida anterior à condenação,
visando uma implantação de ideais distantes das referências de vida dos presidiários, uma
forma de adestramento. Entretanto, o Estado, de forma hipócrita, se faz do discurso
"disciplinar e aprisionar para reenserir", mas não assegura que as pessoas privadas de
liberdade sejam transformadas.

Dessa forma, a condenação de indivíduos e a sua completa desumanização é


entendida pelo Estado apenas como métodos que contribuem para o adestramento e uma
futura ressocialização.No entanto, o ato de encarcerar para disciplinar contribui ferozmente
para futuras reincidências ao crime, por causar aos detentos um sentimento de exclusão e
humilhação.O processo de prisionalização ocorre diariamente retirando as vivências
sociais do presidiário e potencializa a assimilação da cultura carcerária:

Prisionalização é a internalização dos valores próprios do sistema carcerário, é a


penetração tão profunda do preso na cultura carcerária que pode torná-lo incapaz
de viver em liberdade com outros indivíduos.Isso ocorre sobretudo entre os presos
que têm penas longas. A manutenção deles num único regime de cumprimento de
pena por um longo período inevitavelmente leva à dessocialização e à
prisionalização. (BARROS; CASTANHEIRA, 2001)

Assim, as penitenciárias brasileiras constituem um ambiente que se alicerça diante


da repressão e da punição. Os pequenos metros que demarcam as celas, com aparência
sombria, remetem constantemente a culpabilidade do indivíduo e a sua danação.

Não podemos nos desprender de que corpos negros contabilizam a maior parte
dos indivíduos encarcerados no Brasil. Tais situações degradantes ocorridas dentro do
sistema carcerário brasileiro nos remetem a questionamentos acerca da existência de um
racismo institucional em território brasileiro. Segundo Kabengele Munanga, o racismo
possui dois aspectos de demasiada importância para a sua compreensão. O primeiro diz
respeito a divisão de raças humanas elaboradas por cientistas, como superiores ou
inferiores; e em segundo, mas não menos importante, a categorização de identidades
fictícias, onde é permissível a exploração, marginalização e, em alguns casos, a execução
do homem negro. O conceito de raça em sua instância biológica atualmente encontra-se
derrubado por esclarecer a não existência de hierarquização de raças, vistas a partir de
características físicas, morais ou intelectuais. A raça, nas palavras de Munanga, "em seu
sentido sociológico, é um conjunto de indivíduos sensatos que possuem características

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físicas hereditárias comuns", e foi a partir dessa categorização das raças, que surge a
definição de racismo que para Nilma Lino Gomes é,

[...] uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em relação a pessoas que
possuem um pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da
pele, tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de ideias e imagens
referente aos grupos humanos que acreditam na existência de raças superiores e
inferiores. O racismo também resulta da vontade de se impor uma verdade ou uma
crença particular como única e verdadeira. (GOMES, p. 52)

De acordo com Nilma Lino Gomes, o racismo se fortalece através de duas facetas:
o individual e o institucional. Sabe-se que o racismo individual ocorre quando apenas um
indivíduo atinge pessoas de forma particular, podendo ocorrer em alguns casos além da
violência simbólica, a física. A forma institucional se distingue por ser a maneira em que o
Estado contribui direta ou indiretamente para a exclusão e marginalização de negros e
negras. O racismo institucional se faz presente no Brasil em segmentos essenciais tais
como na saúde e nas escolas públicas, entretanto, o racismo institucional também se
fortalece na mídia brasileira.

O racismo, em sua forma institucional, possui uma grande proporção quando se


fala dos homicídios dentro das periferias brasileiras. No período pós-abolição da
escravatura, o código Penal Brasileiro torna os negros, protagonistas, alvos de repressão
policial. Diante dessa situação, tornaram-se alvo de estereótipos, tendo como principais
vítimas jovens, em sua maioria homens pobres moradores das periferias. O mapa da
violência, desde o período colonial brasileiro, tem cor e é negra. Atualmente, o estigma de
negro criminoso ainda caminha pelo cotidiano dos brasileiros. O Estado é sem dúvida, o
maior executor desses crimes, sendo que as mortes desses jovens negros não são vistas
como um problema estrutural que deve ser combatido, mas como uma execução de
indivíduos com desvios de conduta. Em um Estado no qual a pena de morte não é legal, a
execução de jovens negros não é uma exceção. Fábio Mandigo, em seu conto intitulado
Muito como um Rei, que nomeia o seu livro de mesmo título, nos mostra o cotidiano do
homem negro da periferia na cidade de Salvador:

Empurrou o cano frio da escopeta em minha nuca. Bateu com força o cano frio da
escopeta em minha nuca. Engatilhou a doze. Vou morrer, pensei, e não passou
porra de filminho nenhum de minha vida por minha cabeça. O frio do cano duplo em
minha nuca, o peso dos coturnos em minhas costas. [...] Eles revezaram entre eles
e entre nós. Com socos, pisões e cassetetadas. Pisões que enterravam nossos
rostos [...] Ele bateu forte o cano da doze em minha nuca. Senti o sangue quente
descendo em meu pescoço e percebi que estava com frio. (MANDINGO, p. 87, 89 e
90)

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O movimento negro luta contra a repressão policial e o genocídio da juventude


negra, que está encobertado pelo mito da democracia racial. Juntamente com essas
reivindicações, temos, sob o poder bélico do Estado, policiais negros exterminando
mulheres e homens negros. A canção "Reaja" gravada pela banda de rap Fúria
Consciente, aborda com bastante nitidez a existência desse genocídioperpetrado por
homens negros do Estado. Com um maior armamento e estratégias de ataque mais
eficazes, a periferia vem sendo dizimada dia após dia: “Mas eles não eram os inimigos.
Eram outros jovens como vocês. [...] - Como pode atirar num homem igualzinho a você?”A
canção dialoga acerca da atuação do policial nas favelas, visando a manutenção da ordem
e o bem estar da população. A polícia, aparelho repressor do Estado, atribui aspectos
criminais aos negros e negras das periferias. Por possuírem total permissão para
abordarem indivíduos "suspeitos", a sua cor, se torna parâmetro fundamental para a
culpabilidade dessas pessoas.

Na mesma canção também se discute forma nítida o quanto atitudes racistas,


vivenciadas diariamente, se mantém forte perante essa estrutura segregacionista, e que
podem acarretar numa assimilação por parte de pessoas negras; todavia não podemos
afirmar que um negro é racista, pois racismo existe através de estruturas de poder nas
quais os negros não possuem privilégios. Dessa forma, racista pode ser considerada a
instituição policial que perpetua as desigualdades raciais:

No começo de tudo isso... O que estou querendo dizer com tudo isso é que toda
vez que você agride alguém através de imagens e conceitos, que diminuem a ele e
a sua raça, você está fazendo com que ele depois de um tempo acredite nisso. Isso
que estou falando são os estereótipos: mostram que a maioria dos negros é
formada por analfabetos funcionais, promíscuos, violentos, pobres, que se tornaram
criminosos. Infelizmente muita gente negra compra essas ideias, e esses
estereótipos passam a ser verdades. Então você começa a se vingar dos indivíduos
que se encaixam nesses estereótipos e basicamente tenta apagar essas imagens
negativas, tentam se livrar desses monstros, desse ódio que inconscientemente te
persegue. (FÚRIA CONSCIENTE – Reaja)

Desde a infância, meninos e meninas negras são violentamente excluídos. Com


suas infâncias ceifadas pela instabilidade do sistema capitalista, muitas dessas crianças
trocam brinquedos e livros por caixas de picolés e armas. Tal fato não se dá apenas por
questões financeiras, mas também porque o sistema racista permanece enraizado em
nosso cotidiano. Com os avanços da modernidade, a política colonialista foi
extinta.Contudo, as práticas do colonialismo perduram camufladamente na
contemporaneidade, o que chamamos atualmente de colonialidade.O conceito da

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

colonialidade desencadeia em três instâncias: a colonialidade do poder, a do saber e a do


ser. Esta primeira entende-se como a invasão e destruição do imaginário do outro para
reafirmar e naturalizar o saber do colonizador. A colonialidade do poder subalterniza o
outro, nesse caso os indivíduos negros encarcerados, reprimindo qualquer forma de
conhecimento e de acesso de negros e negras em situações que exigem o exercício do
poder.

Denomina-se por colonialidade do saber o impedimento ao acesso aculturas não-


europeias, no caso brasileiro, as culturas, bem como as historicidades africanas, afro-
brasileiras e indígenas que são consideradas primitivas e inferiores. Por fim, a
colonialidade do ser consiste na “negação de um estatuto humano para africanos e
indígenas [...] Essa negação implanta problemas reais em torno da liberdade, do ser e da
história do indivíduo subalternizado por uma violência epistêmica." (OLIVEIRA; CANDAU,
p. 26).

A partir da conceituação do termo colonialidade, podemos detectar que os homens


e mulheres encarcerados, cresceram através da negação. Há diversas maneiras de se
marginalizar pessoas negras. O ensino nas escolas públicas brasileiras talvez seja o
principal difusor da exclusão social, se caracterizando principalmente pela precariedade
que se faz presente na estrutura dos prédios escolares, nos salários dos professores, na
alimentação oferecida aos educandos e por último, mas não menos importante, nos
conteúdos trabalhados em sala de aula. A violência no Brasil convive entre nós desde a
sua formação até a nossa contemporaneidade como afirma Marilena de Chauí:

"[...] as desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas,


políticas e sociais, o autoritarismo que regula todas as relações sociais, a corrupção
como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, as
intolerâncias religiosa, sexual e política não são considerados formas de violência,
isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e por
isso a violência aparece como um fato esporádico superável" (CHAUÍ, 1999).

A educação é um dos pilares fundamentais para a diminuição do quantitativo de


encarcerados nos presídios brasileiros, porém de que forma podemos contribuir para
melhorias na educação prisional? A educação nas prisões possui um papel preponderante
na formação/reeducação de homens e mulheres, que através dos muros e grades
penitenciárias onde se encontram marginalizados, conseguem de alguma forma serem
reinseridos à vida, ou seja, a educação parte como método de humanização dos
indivíduos.

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É importante que saibamos que a escola é um espaço onde se concretiza


identidades como boas e/ou ruins, onde o jogo das identidades se faz visível devido à
constante circulação de informações, bem como a manutenção dos significados. Nos
últimos anos surgiram reflexões edebates acerca da educação em sua forma plena, bem
como com recorte racial e social que possibilitaram, de certa forma, sucintas melhorias
como a prática de uma educação intercultural e antirracista.
Alcança-se através da educação intercultural, de acordo com Catherine Walsh
(2007), uma dinamicidade permanente entre culturas sem hierarquizações, uma permuta
de vivências e conhecimentos bem como a conscientização dos problemas sociais.
Segundo Oliveira e Candau (2010) as estratégias da interculturalidade orientam ações e
pensamentos, trazendo para o centro aquelas culturas consideradas inferiores e
reconstruindo o pensamento sobre o “outro”.Criticar os princípios coloniais e lutar pela
mudança estãopresentes no discurso intercultural, mas é necessário transformar esses
imaginários.As práticas educacionais de nível intercultural propõem estratégias
diversificadas dos sujeitos, numa forma de reconhecimento das diversidades existentes
nas sociedades contemporâneas. Assim, os saberes de base europeia não são excluídos,
mas não sobrepõem os de outras matrizes.Candau e Oliveira reafirmam o discurso de
Walsh quando afirmam que,

A interculturalidade crítica (...) é uma construção de e a partir das pessoas que


sofreram uma experiência histórica de submissão e subalternização. Uma proposta
e um projeto político que também poderia expandir-se e abarcar uma aliança com
pessoas que também buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à
racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social como pela
criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta
maneira, a interculturalidade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem um
projeto da diferença em si. (...), é um projeto de existência, de vida. (WALSH in
OLIVEIRA; CANDAU, p. 26)

Por se tratar de um projeto político que está para além do diálogo entre
comunidades ocidentais e os demais grupos sociais, a proposta intercultural deve ser
levada para os diversos ambientes de nossa sociedade, em especial para dentro das salas
de aula. Temáticas que dialoguem com as culturas afro-brasileiras e africanas devem ser
incluídas nos currículos escolares prisionais aliadas a metodologias emancipadoras e
questionadoras a fim de reduzir estereótipos e a racionalização de indivíduos. A
preocupação com o que será ensinado por trás das grades, influenciará no pensamento
social desses encarcerados e contribuirá para um descentramento do poder ocidental, para
futuras relações de igualdade.

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A Educação Intercultural possibilita, como foi explicitado anteriormente, o


descentramento da cultura ocidental, no entanto, devemos nos atentar para uma
pedagogia que busque,

"[...] uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva - portanto, não
somente denunciativa - em que o termo insurgir representa a criação e a
construção de novas condições sociais, políticas, culturais e de pensamento. Em
outros termos, a construção de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito
além dos processos de ensino e de transmissão de saber, que concebe a
pedagogia como política cultural" (WALSH apud OLIVEIRA; CANDAU, p. 28)

É através de atitudes avessas à colonialidade, que surge a Pedagogia Decolonial,


na qual pretende descolonizar a sociedade para disseminar de forma não hierárquica
valores civilizatórios afro-brasileiros e indígenas dentro da educação para uma mudança
estrutural e institucional mediante uma educação antirracista e de novas políticas
construídas a partir das culturas e vivências dos indivíduos negros e indígenasdentro do
sistema carcerário brasileiro. Tais procedimentos podem ser contemplados por meio da
aplicação à Lei 10.639/03 que obriga à educação básica inserir, em todo currículo escolar,
o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, em especial nas disciplinas de Literatura,
Artes e História Brasileira.
Concluímos que, para que haja mudançasàs quais resultem na emancipação dos
negros encarcerados, deve-se construir, no âmbito do ensino nas penitenciárias, novas
práticas pedagógicas com valores africanos e afro-brasileirosestruturantes, a fim de
desconstruir práticas da colonialidade,como o genocídio e os processos que culminam no
alto índice de encarceramento de jovens negros, com a finalidade de reconstruir
imaginários, para humanizar aqueles que foram por tanto tempo subjugados. Cabe ao
professor configurar-se como um intelectual capaz de apresentar e dialogar sobre a
temática, tendo em vista a proporcionar a conscientização do detento através da difusão
de valores culturais de forma não hierarquizada, contribuindo para que o próprio
encarcerado reflita positivamente e criticamente sobre as relações étnico-raciais e a sua
condição de presidiário.

REFERÊNCIAS

CANDAU, Vera Maria Ferrão; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Pedagogia decolonial e
educação antirracista e intercultural no Brasil. In: Educação em Revista. v. 26. n. 1.
Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, abr. 2010. p. 15-40.

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CANDAU, Vera Maria Ferrão. Direitos humanos, educação e intertextualidade: as


tensões entre igualdade e diferença. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v13n37/05. Acesso em: 07 outubro 2015.

CARNEIRO, Suelaine; SILVA, Rodnei Jericó da. Violência racial: uma leitura sobre os
dados de homicídios do Brasil. Disponível em: http://www.geledes.org.br/wp-
content/uploads/2014/05/Violencia-Racial-Portal-Geledes.pdf. Acesso em: 08 outubro
2015.

FÓRUM Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública,


ano 8, São Paulo: 2014. Disponível em
http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario_2014_20150309.pdf. Acesso
em: 07 outubro 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações
raciais no Brasil: uma breve discussão. In: Educação anti-racista: caminhos abertos
pela lei federal nº 10.639/03. Disponível em: http://unesdoc.
unesco.org/images/0014/001432/143283por.pdf. Acesso em 07 outubro 2015.

MANDINGO, Fábio. Muito como um rei. In: Muito como um rei. São Paulo: Ciclo
Contínuo, 2015, p. 86-103.

MUNANGA, Kabengele. Racismo da desigualdade à intolerância. São Paulo:


Perspectiva, 1990, p. 51-54.

PINHO, Osmundo. O Círculo da Morte e o Materialismo Estético. Disponível em


http://artigo157.com.br/wpcontent/uploads/2015/10/O-Circulo-da-Morte-e-o-Materialismo-
Estetico_157-2.pdf. Acesso em: 07 outubro 2015.

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GRUPO DE TRABALHO: DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E IDENTIDADES BAIANAS

PROPOSITOR: RICARDO TUPINIQUIM RAMOS (UNEB), VIVIAN MEIRA (UNEB) E


CELINA ABADE (UNEB)

Ementa:

Em seu imenso espaço geográfico, abriga a Bahia uma admirável diversidade não apenas

cultural, como linguística. Este GT se propõe a acolher estudos sobre a Bahia a partir de

sua diversidade linguística em contraponto à diversidade cultural, estudos sobre os

múltiplos patrimônios culturais representados ou representáveis pela língua no amplo

contexto de sua variação: língua falada X língua escrita, norma padrão X variedades

vernáculas, língua literária X variedades vernáculas, onomástica, entre outros temas.

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A VARIAÇÃO DO TÓPICO FRASAL NA ESCRITA DO ALUNO SURDO

JACI LEAL PEREIRA DOS SANTOS (UNEB)


CARLA LUZIA CARNEIRO BORGES (UEFS)

RESUMO

A língua espaço visual, L1, tem sido uma abordagem de estudos presentes na Lei de Diretrizes e
Bases da cultura surda (Brasil, Lei nº 10.436 de 2002), com a intenção de sustentar a ideia da
igualdade social e o respeito às diferenças. Embora este trabalho seja pensado a partir de uma
pesquisa de natureza qualitativa por meio de questionário e entrevista semiestruturada feita com
alunos surdos de uma escola da cidade de Catu, para analisar a estrutura do tópico frasal escrito
por esses alunos. Neste trabalho trataremos apenas da revisão literária. O enfoque deste estudo é
apresentar a variação do tópico frasal na passagem de L1, que compreende a língua espaço visual
para L2, língua escrita do português (QUADROS, 1997). A partir da análise da variação presente
no tópico frasal da escrita de alunos surdos, objetivamos compreender que essa variação decorre
da marca da estrutura textual da língua brasileira de sinais, língua materna do surdo. Por entender
que a LIBRAS tem uma estrutura própria, assim como tem a língua portuguesa. Pesquisas
apontam variações na língua portuguesa escrita (LABOV, 2008) e elas ficam mais visíveis na
passagem de L1 para L2, quando se percebe que a estrutura frasal entre uma e outra diverge
(ALMEIDA e SILVA, 2009), sendo necessária uma preocupação dos espaços educacionais e das
políticas públicas por uma educação bilíngue, por entender que Libras é língua materna do surdo e
que a marca da estrutura frasal adotada por essa comunidade não está ligada à “incapacidade”,
mas sim a um modelo apresentado pela língua de sinais.

Palavras-chave: tópico frasal, bilinguismo, variação, escrita do aluno surdo.

1 INTRODUÇÃO

Após as aulas de Variação linguística e Ensino, ministradas pela professora Dra.


Josane Moreira Oliveira, no Programa de Pós-Graduação de Linguística na Universidade
Estadual de Feira de Santana, as discussões sobre o estudo da variação, trouxe a
inquietação em tentar entender a variação que ocorre na transcrição das línguas espaços
visuais, L1, para a língua portuguesa escrita L2. Entendendo que, a complexidade de uma
língua é inerente a todas as outras, as variações regionais, históricas e sociais percebidas
na linguística da língua portuguesa também são presentes na língua brasileira de sinais.

A proposta deste trabalho é discutir um problema que intriga enquanto educadora,


o aprendizado da língua portuguesa escrita pelo surdo e entender até onde o
comportamento da estrutura escrita do aluno surdo dificultará o acesso deste, à linguagem

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escrita da língua portuguesa e a interação com a libra? Sendo assim, como deverá ser
pensada a cultura do “erro” na escrita do tópico frasal pelo surdo? Se existe complexidade
para qualquer falante aprender a língua portuguesa, como se dará esse processo para o
aluno surdo que não domina nem sua língua primeira – LIBRAS, escrever em língua
portuguesa?

Se a língua é um fato social se constroem em espaços sociais, logo, se diferem de


acordo com cada falante, e cada região, sendo possível à variação. Esta pode ser a língua
portuguesa, japonesa, francesa ou a línguas de sinais. Todas sofrem mudanças, são vivas
e só existem porque pessoas falam, logo constroem linguagens. Segundo Calvet (2002, p.
12), “[...] as línguas não existem sem as pessoas que a falam, e a história de uma língua é
a história de seus falantes”.

Esta pesquisa foi pensada a partir de questionário e entrevista semiestruturada feita


com os alunos surdos de uma escola da cidade de Catu, neste pretendemos identificar
marcas variacionistas na escrita do aluno surdo comparando-a com a estrutura frasal da
língua portuguesa escrita. Por não ter autorização de apresentar exemplos da escrita dos
alunos da escola citada, será apresentado exemplos de análise segundo Quadros (2008,
2009), Carlos Skliar (1999), Josiane Fagundes de Almeida e Silvana Araújo Silva.

2 TUDO COMEÇA ASSIM...

Para falar da variação que acontece no tópico frasal da escrita do aluno surdo,
tomamos como enfoque a variação que acontece na transcrição de L1 para L2. Se a
variação é processo atuante nas línguas, por serem heterogêneas, dentro de suas
estruturas. Ela também acontece nessa transcrição de língua brasileira de sinais para
língua portuguesa escrita. Parece que muita coisa se perde nessa passagem, mas os
autores afirmam que não é bem assim. Tudo acontece porque ambas têm estruturas
diferentes. Nesse caso em pauta, pretendemos entender como varia a estrutura frasal de
L1 para L2.

Com o tema pretende-se construir uma ideia sobre a variação presente na escrita da
língua portuguesa do aluno surdo e faz-se necessário aqui traçar um possível caminho

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

para discutir alguns espaços históricos linguístico até a variação laboviana ou “teoria
laboviana”.

Lous-Jean Calvet (2002) diz que a linguística moderna nasce das ideias
saussurianas em elaborar um modelo abstrato da língua, o autor mostra que o genebriano
traça uma dicotomia língua/fala, teoria presente em “Curso de Linguística Geral (1916)”.
Aqui, Saussure afirma que a língua é a parte social da linguagem. Saussure (1916) diz: “a
língua é um sistema que conhece sua ordem própria” (SAUSSURE, 1969, P. 31), “[...] a
língua é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É ao mesmo
tempo um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de necessidades
adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”
(SAUSSURE, 1969, P. 17). Mas reconhece que: “é interno tudo que provoca mudança do
sistema” (SAUSSURE, 1969, P. 32).

Quando o autor genebriano declarando que o único objeto de estudo da linguística é


a língua, separando-a da fala, considerando-a um ato individual do sujeito (p.19), ele não
exclui a mudança da fala mas se atem apenas no estudo da língua, por entender que a
complexidade da fala é interessante para o estudo, mas dela cada “falante é senhor” e
como estudar toda essa construção em todas as falas? Diz o autor que: “a língua não está
completa em nenhum cérebro” (p.21). E só na massa, ou seja no social ela existe de modo
completo.

Segundo Calvet (2002, p. 12), “[...] as línguas não existem sem as pessoas que a
falam, e a história de uma língua é a história de seus falantes”. Contraria aqui o autor as
ideias estruturalistas e recusa o que existe de social na língua. Para o autor, entra a
Sociolinguística para contrariar as ideias saussurianas.

Se as línguas só existem a partir da fala das pessoas elas sofrem variações. Estas
ocorrem de acordo com a classe social, idade, a escolarização, gênero, a região etc. logo é
um fato social. As mudanças que acontecem a partir da língua são mais lentas e só se
estabelecem a partir da vontade do sistema (registro), enquanto que na fala elas são mais
constates.

Calvet (2002), se apropria de ideias de que a “língua é um fato social” de Antonine


Meillet proferidas em 1965 em uma aula inaugural do Collège de France e diz que
enquanto Saussure distingue estrutura de história, Meiller tenta uni-las:

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Por ser a língua um fato social resulta que a linguística é uma ciência
social, e o único elemento variável ao qual se pode recorrer para dar conta da
variação linguística é a mudança social, por isso muito próxima da que se
encontrará mais tarde na obra de William Labov (CALVET, 2002, p. 16).

Além de Meiller, Calvet apresenta outros autores que comprovam a existência da


mudança. A ideia expressa por Lafargue é que “a língua muda vinculada a fatos políticos”
(p.18), Nicolai Marr (1864 apud Calvet, 2002, p. 18), aponta uma origem para todas as
línguas. Afirmando que todas as línguas têm origem gestual, seguida de elementos fônicos
e posteriormente registro.

Segundo Calvet, surge em 1895 -1929 o autor Mikhail Bakhtin, fazendo críticas às
ideias saussurianas e às ideias freudianas, dizendo que: “faltavam em Freud uma teoria da
linguagem e em Saussure ver que o signo linguístico é o lugar da ideologia” (p.20).

Como o caminho percorrido pela história da linguagem é imenso, e esta história da


linguagem e ou sobre a linguagem continua em discursão, iremos para um fato que
ocorreu em uma conferência em Los Angeles em 1964, precisamente 11 a 13 de maio,
onde 25 pesquisadores se encontraram para apresentação de temas referentes à
linguagem. Dentre estes, encontrava-se Willian Labov o qual apresentou o tema “A
hipercorreção como fator de variação” (CALVET, 2002, p. 29). Já se percebe aí a
preocupação de vários pesquisadores no que concerne à variedade de línguas e seu
processo variacional. Nesse contexto, ainda afirma Willian Bright apud Calvet (2002, p. 29)
que: “[...] uma das maiores tarefas da sociolinguística é mostrar que a variação ou a
diversidade não é livre, mas que é correlata às diferenças sociais sistemáticas”

Os trabalhos de pesquisas desenvolvidos por Labov como: estudo social da ilha


situada junto à costa de Massachusetts, Martha’s Vineyard, sobre a pronúncia do ditongo;
assim como a estratificação do /r/ nas grandes lojas nova-iorquinas; seu trabalho com
crianças de “guetos urbanos”, seja sua pesquisa sobre o falar dos jovens negros do
Harlem, segundo Calvet (2002), a preocupação nestes casos estava atrelada às causas de
fracasso escolar, em particular das dificuldades de aprendizado da leitura”, (p. 98), conclui
o autor que, essa pesquisa de Labov “[...] as dificuldades que os jovens negros enfrentam
são produtos de conflitos entre dois conjuntos, seu vernáculo e o inglês padrão” (p. 99),
nesse campo, o conflito cultural é o responsável pelo fracasso dos jovens negros. Sua

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metodologia nos permite entender as atitudes dos falantes e a variação percebida nesse
jogo.

Acreditamos ser necessário entende esse processo para mostrar os conflitos hoje,
encontrados na variação da estrutura frasal da escrita do aluno surdo na transcrição da
língua espaço visual L1, para a língua oral visual, L2, na modalidade escrita. No caso da
transcrição da escrita de L1 para L2 pelo aluno surdo percebe-se algumas divergências no
sentido de acontecer supressão de um conectivo, utilização de verbos no infinitivo para
qualquer tempo, posição inversa dos termos da oração e outros. É perceptível essa
variação porque não sabem escrever língua portuguesa? Ele não aprende, foge às regras
gramaticais? Tentaremos mostrar que a língua brasileira de sinais tem uma estrutura
própria assim como as outras línguas, e essa estrutura deve ser entendida como possível
e real em Libras.

O problema se encontra em o aluno surdo ter uma língua construída, não domina-a
por muitas vezes nascer e crescer em um espaço de ouvintes, ir tardiamente para um
espaço escolar, tendo que aprender alguns sinais para construir comunicação. E chegando
na escola, que seria o momento de aprender sua língua primeira, isso não acontece, ele é
obrigado a escrever em língua portuguesa.

2.1 Uma breve análise da variação em Língua brasileira de sinais

Observando a frase (1) “Eu estou saindo. Tchau!” e (2) “Eu sair. Tchau!”
(QUADROS, 2008, p.73), a ideia primeira é de que quem escreveu a frase nº 1 escreveu
“correto” e quem escreveu a frase nº 2, escreveu “errado”. Estamos diante de uma escrita
construída por um aluno ouvinte e outra por aluno surdo. Percebe-se que os elementos
gramaticais presentes nas duas construções obedecem à gramática de uma língua. Nesse
caso a gramática da língua espaço visual e a gramática da língua oral. Encontramos
presente nas estruturas: sintagmas, um sentido, o léxico, o sintático..., o que difere entre
elas e a modalidade.

Tomando como base os estudos linguísticos sobre as línguas brasileiras de sinais,


entende-se que a gramática da língua espaço-visual tem os mesmos elementos
gramaticais, as mesmas classes gramaticais, os mesmos elementos fonéticos, fonológicos,

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semânticos, sintáticos, que tem as línguas orais, por isso sofrem as mesmas variações e
mudanças, o que difere, é que uma é espaço visual e a outra oral. Podemos dizer que
tanto a língua oral quanto a Libras se estruturam a partir de unidades mínimas espaciais e
sonoras. Essas unidades são distintivas porque quando substituídas por outras, gera uma
nova forma linguística com um significado distinto. Nas libras, se surge um novo sinal
surgem novos significados, pois ela conta com os gestos (cada gesto e seus diferentes
movimentos), a expressão facial, a localização do falante em relação ao ouvinte,
aproximação ou distância do sinal e o corpo.

A língua brasileira de sinais possui os mesmos elementos linguísticos que possui a


gramática da língua oral, porém a Libras segundo Almeida e Silva (2009) tem uma
gramática independente de outras línguas orais e seus usuários constroem suas sentenças
a partir de parâmetros e uma estrutura de ideias.

Segundo as autoras, a estrutura frasal nos permite entender como o surdo processa
suas ideais.

Ex. 1º: Em LIBRAS: “Eu ir shopping”.

Em português: “Eu vou ao shopping”

Ao (preposição a + artigo o): não se usa preposições em Libras, pois a preposição


está incorporada ao verbo.

IR (verbo ficar no infinitivo, sendo que o surdo acrescenta outro sinal para se referir
ao tempo: agora, ontem, amanhã etc.) (ALMEIDA E SILVA, 2009, p. 42).

Segundo as autoras, em Libras não se usa artigos, preposições, conjunções,


elementos de ligação e determinação.

E pensando em uma outra dimensão, vamos compreender que, cada país tem sua
língua de sinal. No Brasil chama-se Libras (Língua Brasileira de Sinais), tem a ASL
(Línguas de Sinais Americanas), línguas de sinais japonesas, Italiana, Francesa, Inglesa e
etc. e estas línguas possuem léxico próprio, sintaxe, semântica e são marcadas por
dialetos (regionalismo), todos os usuários estão inseridos em uma “Cultura surda”, com
políticas próprias, história, organização social e cultural próprias. Assim, essas línguas
sofres mudanças constantes e se divergem.

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A língua brasileira de sinais é uma língua usada para pensar, para desempenhar
diferentes ações, como: perguntar/argumentar, fazer poesia, contar histórias, informar,
ordenar, contar, fazer perguntas em sinais. Quadros (2009) apud Jackendoff (1994) diz
que:

A coisa mais importante que eu quero destacar é que ASL é uma língua.
Claro, ela parece ser completamente diferente de outras línguas já conhecidas
como o inglês, o russo e o japonês. Isso significa que a transmissão não é através
do trato vocal criando sinais acústicos que são detectados pelo interlocutor por
meio da audição. Ao invés disso, os gestos do sinalizador criam sinais que são
detectados pelo interlocutor por meio do sistema visual. (...) O sistema periférico é
diferente, mas a atividade inerente é a mesma (QUADROS, 2009, p. 8)

Se as línguas espaços visuais passam pelas mesmas transformações que a língua


portuguesa escrita ou qualquer outra, nessa complexidade, como incluir no processo leitor
para a prática social o aluno surdo que não tem conhecimento da estrutura linguística da
sua língua primeira, tendo o mesmo que escrever em L2? É como um falante nativo da
língua portuguesa aprender alemão, inglês, espanhol, vai precisar aprender uma nova
língua. Assim é o aluno surdo quando chega à escola para aprende a língua portuguesa,
aprender não. Escrever em língua portuguesa. Na passagem de uma língua para outra
acontece muitos entraves quando elas têm a mesma modalidade, quanto mais em
modalidades diferentes. Pode-se usar o adjetivo à frente do nome que é o caso da língua
inglesa, mas percebe-se que os elementos linguísticos gramaticais são inerentes às
gramáticas de

A LIBRAS teve seu espaço a partir da Lei 10.436/2002, quando expressa que a
sociedade precisa adequar às exigências da cultura da comunidade surda. Isso implica na
inclusão de surdos no ensino regula; determinar a implantação da Disciplina LIBRAS no
Ensino Superior, especificamente na formação do professor e outros (BRASIL, Lei nº
10.436, 2000). Aqui nasce a obrigatoriedade de se estabelecer estudos linguísticos sobre a
língua brasileira de sinais, mas é provado que os estudos linguísticos em línguas de sinais
tiveram seu marco inicial nos anos 60 com Willian Stokoe 26 (QUADROS, 2009, P. 12). A
autora explicita que,

Os estudos linguísticos das línguas de sinais iniciaram com Stokoe (1960).


Este autor apresentou uma análise descritiva da língua de sinais americana
revolucionando a linguística na época, pois até então, todos os estudos linguísticos

26
Willian Stokoe (1920-2000) foi um dos primeiros linguistas a estudar uma língua de sinais com tratamento linguístico.
Considerado o pai da linguística da língua de sinais americana. (QUADROS, 2009, p.14)

165
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

concentravam-se nas análises de línguas faladas. Pela primeira vez, um linguista


estava apresentando os elementos linguísticos de uma língua de sinais. Assim, as
línguas de sinais passaram a serem vistas como línguas de fato. Stokoe apresenta
uma análise no nível fonológico e morfológico (QUADROS, 2009, P. 12).

Percebe-se que os estudos linguísticos da língua de sinais surgem no momento em


que a Linguística desponta no Brasil. Exatamente o momento em que um linguista
apresenta os elementos linguísticos, sendo considerado o pai da linguística da língua de
sinais americanas.

Aqui fica uma reflexão, assim como é complexo os estudos linguísticos gramaticais,
com suas variações na língua portuguesa, também o é na LIBRAS.

Assim, percebe-se que a variação presente no tópico frasal da escrita de alunos


surdos, decorre das marcas linguísticas desta e da estrutura textual que a língua brasileira
de sinais deve obedecer. A ausência de um conectivo ou a utilização do verbo no infinitivo
e não flexionado, a ordem dos sintagmas, não se configuram “erro” e sim uma organização
inerente à língua materna do surdo. Isso prova que ela tem uma estrutura própria, assim
como tem a língua portuguesa.

2.2 A variação presente na Língua brasileira de sinais

Todas as línguas, tanto orais quanto escritas sofrem variações. Através do contato
ou interferências de outras línguas. A variação pode ocorrer a partir: do gênero, grau de
escolaridade, a idade, classe social, a região e etc. Nas línguas brasileiras de sinais
acontecem também variações.

Acontece a variação linguística em LIBRAS. Em todos os lugares do mundo, há,


pelo menos, uma língua de sinais usada na comunidade surda de cada país, diferente
daquela da língua falada utilizada na mesma área geográfica. Isto se dá porque essas
línguas são independentes das línguas orais, pois foram produzidas dentro das
comunidades surdas. A Língua de Sinais Americana (ASL) é diferente da Língua de Sinais
Britânica (BSL), que difere, por sua vez, da Língua de Sinais Francesa (LSF). Vejamos
alguns exemplos:

Ex.: NOME

166
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ASL
27
LIBRAS

Além disso,
dentro de um mesmo
país há as variações regionais. A LIBRAS apresenta dialetos regionais, salientando assim,
uma vez mais, o seu caráter de língua natural. Vejamos presença da variação regional em
LIBRAS: representa as variações de sinais de uma região para outra, no mesmo país.
Vejamos três sinais diferentes para representar a palavra verde.

Ex:
VERDE

Na
LIBRAS-
Língua
brasileira
de sinais,
como nas
línguas
audiovisuais, acontece a variação social: refere-se às variações na configuração das mãos
e/ou no movimento, não modificando o sentido do sinal.
Ex: AJUDAR

Presenç
a da variação histórica: com o passar do tempo, um sinal pode sofrer alterações
decorrentes dos costumes da geração que o utiliza.

Ex.: AZUL

27
Exemplos pesquisados no site http://danianepereira.blogspot.com.br/2012/04/emprestimos-linguisticos-e-
variacao.html, Acessado em 25 de nov 2015.

167
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

2º 3º

Neste espaço, apresentamos exemplos de sinais para variação regional, social e


histórica. Mas mostraremos apenas como acontece a variação da palavra NOME,
mostrando que a mesma palavra pode ser representada por sinais diferentes. Vejamos a
configuração para a palavra nome:

Na primeira representação de sinais, em ASL (Línguas de sinais americanas), é


sinalizado com os dedos: anelar e médio em cima da mão esquerda;

Na segunda representação de sinais e LIBRAS (Língua brasileira de sinais) temos


os mesmos dedos em posições diferentes.

Nesse sentido, acreditamos ser necessário pesquisar e conhecer as variações


linguísticas existentes e usuais nas comunidades surdas para então comparar as
diferenças de sinalização em diversas regiões para melhor compreender o jeito que os
sujeitos surdos sinalizar e/ou melhor, como acontece a conversação e a comunicação em
Língua Brasileira de Sinais – Libras. Respeitando a diversidade em LIBRAS como as
exigidas pelos falantes audiovisuais.

2.3 Caminhos percorridos pela língua de sinais

A língua espaço visual, L1, tem sido uma abordagem de estudos presentes na Lei
de Diretrizes e Bases da cultura surda (Brasil, Lei nº 10.436 de 2002), com a intenção de
sustentar o discurso da igualdade social e o respeito às diferenças. Josiane Almeida e
Silvana Araújo Silva (2009), apresentam temáticas como: abordagens educacionais de
qualidade, com leitura, escrita e questões legais para a inclusão do portador da surdez.

Quadros (2008), diz que precisamos ter claro o papel e o estatuto da língua de
sinais dentro de uma proposta bilíngüe e cultural para surdos, não se pode pensar que um
aluno surdo vá a uma determinada instituição de ensino e construir conhecimentos leitores
com as mesmas metodologias utilizadas para os ouvintes. Diz quadro que:

Em primeiro lugar, as línguas de sinais apresentam-se numa modalidade


diferente das línguas orais; são espaço-visual, ou seja, a realização dessas línguas
não é estabelecida através dos canais oral-auditivos, mas através da visão e da
utilização do espaço. (QUADROS, 2008, p. 46-47).

168
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A comunidade surda tem uma língua que obedece estrutura e parâmetros próprios,
o surdo é dotado de capacidade linguista tal qual o ouvinte, nesse contexto, há de se
entender que para dirimir as dificuldades e a intenção do aprendizado da escrita de L2, há
de se pensar em uma metodologia de ensino que parta da língua espaço-visual e não da
escrita inicialmente. Coadunando com o pensamento de Skliar (2009), quando afirma no
excerto,

É muito importante estabelecer situações de ensino para que as crianças


surdas aprendam e adquiram sua língua de sinais como uma língua materna da
mesma forma que as crianças ouvintes o fazem em sua escola (SKLIAR, 2009, p.
117).

Quadro (2008), diz que “as línguas de sinais são línguas espaço-visuais” ou seja a
realização dela se dá por meio do espaço e da visão e são independentes das línguas
orais. Que surge exatamente pelas necessidades natural de comunicação. A quem pense
ser fácil a língua de sinais, mas ela é tão complexa como qualquer complexidade
encontrada em outras línguas. E segundo Almeida e Silva (2009, p. 40), “Encontramos
complexidade na língua de sinais, em todos os níveis: léxico, gramatical, sintático,
semântico, morfológico, assim como o uso linguístico do espaço”.

Fernandes (2003) diz que a LIBRAS possui uma estrutura gramatical que tem sua
base em parâmetros principais e secundários. Esses parâmetros funcionam como itens
lexicais da LIBRAS, eles situam o falante no espaço: “enquanto o ponto de articulação
(PA), Configuração de mãos (CM), Movimento (M), região de contado (RC), orientação das
mãos (OM) (ALMEIDA e SILVA, 2009, p. 41). Alguns autores já falam no espaço facial
(EF). Por isso Quadros (2008) diz que a língua brasileira de sinais é espaço-visual. Ela
acontece a partir da visão do espaço.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notando que a variação linguística de L1 acontece no interior da língua, no espaço


regional, entre línguas orais por conta da origem de cada uma, assim, a concepção de
“errado” na escrita do aluno surdo acontece por falta de conhecimento da estrutura
gramatical da língua brasileira de sinais. Nessa trajetória faz-se necessário compreender
que a LIBRAS tem uma estrutura própria, assim como tem a língua portuguesa. Na

169
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

segunda sua estrutura obedece o formato por exemplo: no tópico frasal: SVO (sujeito,
verbo e objeto. Ex: “Minha mãe diz que o surdo não aprende”; enquanto que a estrutura do
tópico frasal da escrita do surdo pode ser: VOS (verbo, objeto e sujeito), OSV (objeto,
sujeito e verbo). Ex: “Mãe diz surdo aprende não”. Por não compreender essa variação
dentro da própria língua, discute-se nesse formato a noção de “erro”.

Assim, se a Libras é importante para a construção do aluno surdo como sujeito


social, se ela fornece informações importantes para constituição desse aluno surdo, e se
ela apresenta informações importantes para o aprendizado da estrutura escrita da língua
portuguesa, fica confirmado que o bilinguismo é a melhor alternativa para o ensino de
línguas para criança surda, por ser uma proposta de ensino usada por escolas que se
propõem a tornar acessível à criança duas línguas no contexto escolar.

Fica aqui comprovado pelos autores que a variação é inerente às línguas. Sendo
marcada na língua de sinais também por questões históricas linguísticas, por situações
regionais, sociais e culturais. Até os sinais em LIBRAS (língua brasileira de sinais), podem
apresentar variações regionais na própria língua e entre a língua brasileira de sinais e a
japonesa, a inglesa e etc.

E aponta-se ser este trabalho relevante por construir um entendimento que a língua
espaço social é língua de humano, inserida em espaços sócias diferentes, que obedecem
parâmetros próprios mas está dentro de um contexto histórico social vivo. Elas existem
porque pessoas falam, logo constroem linguagens. Assim passível de mudanças
constantes.

REFERÊNCIAS

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LIBRAS. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2009.

BRASIL, Congresso Nacional. Lei nº. 10436, de 24 de abril de 2002. Brasília, 2002.

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na perspectiva da educação inclusiva. Brasília, jan.2008. Disponível em:
<http://peei.mec.gov.br/arquivos/politica_nacional_educacao_especial.pdf. Acesso em: 21
ago 2015.

CALVET, Lous-Jean. Sociolingüística: uma introdução crítica. Tradução de Marcos


Marcionilo. São Paulo: Parábolas, 2002.

170
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

FERNANDES, Eulália. Linguagem e surdez. Porto Alegre: Artmed, 2003.

PEREIRA, Daiane. Emprestimos Linguísticos e variação linguísticas em LIBRAS.


Disponível em: http://danianepereira.blogspot.com.br/2012/04/emprestimos-linguisticos-e-
variacao.html Acessado em 25 de nov 2015.

LABOV, William. Padrões sociolinguísticos/ tradução de Marcos Bagno, Maria Marta


Pereira Scherre, Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008 [1972].
QUADROS, Ronice Muller de. Educação de surdos: a aquisição da linguagem. Porto
Alegre: Artmed, 2008.

___________ Ronice Muller de e PIZZIO, Alino Lemos e REZENDE, Patrícia Luiza


Ferreira. Língua brasileira de Sinais I. Florianópolis: UFSC, 2009.
SAUSSURE, Ferdinand de Saussure. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix,
1969.

SKILIAR, Carlos (Org.). Atualidade da educação bilíngue para surdos: processos e


projetos pedagógicos. Porto Alegre: Mediação, 1999.

________, Carlos (Org.). Educação e exclusão: abordagens sócio-antropológicas em


educação especial. Porto Alegre: Mediação, 1997.

171
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BEIRU, UMA MARCA IDENTITÁRIA NA TOPONÍMIA SOTEROPOLITANA

ROSANE CRISTINA PRUDENTE ROSE THIOUNE (UNEB) 28

Refletimos como a investigação toponímica fincado no pertencimento cultural e na


referencialidade onomástica foi imbricada à editoração que o Jornal do Beiru priorizou na
rearticulação de valores comunitários no Beiru (Salvador/BA). A Lexicologia ampara a
realização do estudo de caso interpretativo, de base etnográfica com abordagem
qualitativa. O paradoxo entre as representações do poder e cultura que nortearam o
processo de socialização negra foram, veiculadas como uma estratégia motivadora para
uma variação da fortuna crítica que amparasse, sobre a ótica de posições afirmativas, a
reformulação do senso crítico do público e dos sujeitos do Jornal. Nestes contextos estas
ações ponderaram uma política de renovação estética e de produção de sentidos nos
multiletramentos que inferiram nas ações do Jornal.

Palavras-chave: BEIRU, LÉXICO, IDENTIDADE, TOPONÍMIA , MEMÓRIA.

Introdução

Considerando que a imersão no Léxico ocorre perpassada pelo fator social da


linguagem, o estudo das manifestações de escrita que constituem o cotidiano de um grupo
de sujeitos que moram no bairro do Beiru, em Salvador/BA, e que editam o seu jornal é
pertinente quando analisado pelo conceito de escrita enquanto um conjunto sócio-histórico
de práticas que fazem parte das atividades socioculturais ,destes, em contextos diversos
referentes à família, escola, espaços comunitários, redes sociais e comunidades virtuais.
Um panorama inserido na trajetória do Jornal de comunicação comunitária que discute o
racismo, utilizando os valores linguísticos expressos no pertencimento cultural, fatos
históricos e recorte geográfico imbricados na onomástica toponímica, possibilidades que
pelo viés memorialista firmam a conexão simbólica das suas principais articulações.
As suas relações com a oralidade, outras linguagens ou semioses, tendo em vista:
o processo conjunto de edição de textos e imagens das experiências pessoais com a
língua escrita de seus redatores, particularmente interessados no enfoque de políticas
afirmativas e culturais locais, possibilitou o mapeamento e investigação sobre os nomes
significativos para a sua ressignificação da territorialidade do Beiru. A contrapartida do

28
Graduada em Língua Portuguesa e Literaturas - UNEB, aluna especial de mestrado no Programa de Pós-
Cultura e Sociedade - UFBA e membro do Núcleo de Estudos Lexicais – NEL - Ppgel – UNEB/ Cnpq. E-mail:
dare.rose@gmail.com

172
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

público leitor, que via a comunicação e o diálogo pela internet, através de textos, faz
emergir identidades, memórias e saberes sociais diversos constituíram elementos de
reverberação das atividades comunicativas do Jornal.
Ancorada na Lexicologia, a realização do estudo de caso interpretativo, de
base etnográfica de abordagem qualitativa tem como referência a pesquisa de campo, e
portanto dados primários ou inéditos e a pesquisa conceitual ou teórica da língua,
contribuições essenciais aos estudos sobre as escritas que circulam em Salvador e suas
ressonâncias na comunidade virtual. A experiência do Projeto Oficina Permanente de
Jornalismo do Jornal do Beiru: Memória e História Afro-descendente nos possibilita a
reflexão, sobre múltiplos aspectos, dos estudos linguísticos, dentre eles a lexicologia, na
busca pelos símbolos e representações comunitárias significativas que deram sentido e
popularização à sua linha editorial.
A investigação toponímica forneceu o tom do discurso da narrativa efetuada pelo
Jornal, para a ancoragem de pautas e atividades que visavam a formação do censo
críticos dos sujeitos, com a perspectiva de focar estes estudos para a averiguação das
pertinências dos estudos biográficos na delimitação de ações afirmativas, enquanto
arcabouços de escavação do passado, que podem ser reinterpretados como uma
alternativa de novos paradigmas para comunidades fragilizadas, pelo desfacelamento
identitário recorrente na pós-modernidade. Já que um dos objetivos do Jornal é o reconto
e a ressignificação da história da comunidade a investigação da história oral – “a história
não é só aquela que está nos livros. É a história da nossa rua, do nosso bairro, dos nossos
avós”. (Jornal do Beiru, 9 ed., 2011, p.3) - foi o recorte para a descoberta de documentos -
“arquivo português guarda história do bairro” (Jornal do Beiru, 7 ed. ,2003, p.2) - que
confirmassem as versões coletadas nas pesquisas de campo das pautas. Pois já que a
restauração do espaço vivido não é possível no plano físico, só lhes resta a escrita
restauradora do passado tendo a memória como substrato. (BUENO, 1997, p.46).
Como procedimentos da nossa pesquisa ocorreram visitas de campo ao bairro do
Beiru (Salvador/BA) para observarmos o local, caracterizá-lo, e realizar entrevistas
temáticas com os sujeitos da pesquisa - líderes e colaboradores do jornal, a escolha e
caracterização dos sujeitos da pesquisa responsáveis pelo jornal, a descrição das edições
do jornal, tendo em vista o seu processo de edição e os textos escritos e orais, hipertextos,
imagens e autores, a descrição, sistematização e interpretação dos dados coletados a
partir da base teórica da pesquisa, observando-se as relações entre escrita, oralidade e
outras linguagens. Processo no qual emergiram os sujeitos que foram significativos na

173
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

trajetória do Jornal e os nos quais este impingiu um novo direcionamento em suas


trajetórias individuais e coletivas.

Jornal do Beiru

O jornal fundou-se, em 2002, a partir de uma “oficina de letramento” proposta


pela jornalista fundadora, Márcia Guena, com o objetivo de formar opiniões e oportunizar a
conscientização étnica através de um veiculo de comunicação comunitária, que também
objetivava a formação de leitores. Ela, por sua formação acadêmica e de militante
política, pôde dimensionar a função da língua e da escrita para alcançar os seus
propósitos.
O conhecimento e experiências adquiridos em outras instâncias socioculturais
pela fundadora do grupo foram fundamentais para que as pessoas da oficina de
jornalismo, estudantes de ensino médio e moradores do Beiru, reelaborarem, através do
diálogo e escrita de textos, os anseios, opiniões e demandas locais. Em seguida o
movimento inverso foi realizado: com a formação dos alunos das oficinas em redatores, o
jornal impresso ampliou o seu raio de atuação, interagiu com o meio digital e com as redes
sociais, desta forma os seus discursos, pensamentos e ações de identidade local
transbordaram para outros bairros e contextos socioculturais.
A partir desta circularidade o Jornal do Beiru elege símbolos como o Preto Beiru,
Cabula, Candomblé para a sua estratégia de comunicação e discussão para da cidadania
local. “Estamos construindo o rosto do preto Beiru” é o sologan” que a partir da edição 10
o Jornal utiliza, a historia do escravizado que pelos seus saberes conquista a liberdade e
uma grande porção de terras é a referência para o trânsito com as temáticas de resistência
e diversidade cultural, saúde, educação, gênero e ou cidadania por ele veiculadas. (Jornal
do Beiru, 10 ed., 2011).
A reconstrução do passado com o preenchimento de lacunas da memória
coletiva com vivências pessoais e simbólicas que documentem o contexto cultural,
histórico e geográfico ocorridas nortearam as edições do Jornal do Beiru, para um restauro
de uma consciência coletiva do que foi a trajetória do negro na formação da comunidade.
Ação na qual o texto onomástico é preenchido a partir das palavras que nomeiam as
representações que dão sentido à sua estratégia editorial.
Nas suas 11 edições impressas e nas veiculações digitais o Jornal concretizou um
conteúdo preocupado com o patrimônio civilizatório negro, consolidando um conteúdo

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

pautado na recursividade das relações interdisciplinares do uso da linguagem, da língua e


da sociedade. Percurso editorial que abusou das possibilidades que o inventário do
patrimônio lexical da comunidade atua como explicação para fatores da identidade local.

.Quilombo Urbano

Fincado em uma comunidade que pontou significativamente a combatividade,


contra o escravismo, durante o Brasil colonial e que hoje é depreciada socialmente pelos
seus problemas socioeconômicos, o Jornal do Beiru marcou as suas significações
ideológicas realizando um inventário dos atores históricos e coletivos imbricados com a
cultura, religiões de matricidade africana e política para a definição do repertório social
beiruense. O mapeamento do patrimônio social da comunidade através do léxico
possibilitou a construção de novas metáforas, marcas culturais que lapidaram a
recaptura da dignidade e cidadania da localidade.
Escolhido para saciar a cota baiana da comoção nacional com a morte de
Tancredo Neves o bairro é renomeado em 1985 em sua homenagem pelo Estado, só que
com o trabalho do Jornal do Beiru a sua efetivação até hoje não aconteceu. Aliada a uma
das missões do Jornal matérias como “Beiru esse nome tem história” (10 ed., 2011, p. 3)
marcam o intuito do Jornal de restaurar os significados dos nomes na comunidade. Um
exemplo de como a investigação toponímica equilibra a comunidade quanto a
referencialidade de sua origem.
No dicionário Áurélio [...], consta o nome Beirú como substantivo, masculino,
brasileiríssimo dado a uma qualidade de peixe da família dos caracídeos. Mas
levando-se em consideração a história do nome Beirú, sendo de um ancestral
proprietário de terras nas imediações do Cabula, que foi trazido como escravo da
terra de Oyó – África, que falava o idioma Yorubá, nota-se, que por vício de
linguagem aqui no Brasil, o nome do Preto Beirú sofreu consequentemente
alterações em sua grafia. O nome de origem Yorubá escreve-se GBÈRÚ e
pronuncia- se BÈRÚ. Certamente, devido às inúmeras influencias linguísticas em
nosso país, o nome do ancestral foi confundido com o do peixe. Para os povos
africanos os nomes escolhidos para seus filhos deveriam ter significado que
norteassem o caráter eo o destino dos mesmos o nome GBÈRÚ significa brotar,
floresce, desenvolver. Infelizmente, a maioria dos moradores dos moradores acha
que este nome tem a sonoridade “feia”. A falta de conhecimento de suas origens
leva a este conceito de “feio” remetendo, sempre, ao último plano, o significado, o
valor e a força do nome. (Jornal do Beiru. Arruda, Celeste D’ Alcãntara. Significado
do nome Beirú. 10 ed., 2011, p.3.).

Segundo dados da Secretária Estadual do Meio Ambiente da Bahia de 2010, o


bairro de Beiru possui uma população de 45.279 habitantes, o que corresponde a 1,85%
da população de Salvador, concentra 1,81% dos domicílios da cidade, tem 24,44% dos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

chefes de família situados na faixa de renda mensal de 1 a 2 salários mínimos, com uma
escolaridade de 4 a 7 anos de estudos, constata-se que 33,07% dos chefes de família têm
uma configuração que elenca o perfil dos ocupantes do conglomerado reminiscente do
Quilombo do Cabula e de uma fração das terras do “Preto Beiru”. Um retrato reeditado
pelas ações afirmativas, oficinas de letramento, leitura, atividades culturais de música,
dança, estética, pesquisa, etc do Jornal do Beiru.
Possibilitados pelo viés das pistas da identificação toponímica fincada no
pertencimento cultural e na referencialidade onomástica na busca de vestígios do
passado, o Jornal faz narrativas de reconstrução do espaço transfigurado pela
fragmentação urbana de fronteiras imprecisas. Na sua edição 7 na matéria “Quilombo do
Cabula Renasce”, os redatores apontam que os bairros do Beiru o Arenoso, Cabula VI,
Engomadeira, Estrada das Barreiras, Mata Escura, Novo Horizonte, Pernambués, São
Gonçalo, Retiro, Barros Reis e Sussuarana agregam marcas identitárias dos africanos
escravizados que lideraram um segmento das lutas antiescravagistas em Salvador. Ao
mesmo tempo outra matéria dessa edição “nome cabula tem origem em culto angolano”
aponta o significado da palavra de origem banto-angolense que a partir de seus usos no
Brasil, seria um ritual que aliava a sua celebração o extermínio de escravagistas, após
divide-se nas religiões umbanda e quimbanda, sempre referenciando a aglomeração de
resistência a escravização. Já na sua edição 11, p.4 no artigo “memórias da boa idade: a
história do bairro contada por moradores antigos” o Jornal explica a temporalidade de 1975
como sendo a de refúgio de diversos Terreiros de Candomblés na comunidade, e que na
proeminência do “Candomblé do Rufino” agregaram reuniões contra a ditadura militar e
instauraram em suas instalações a primeira escola pública do Bairro chamada Beiru.
Textos que transformam a representação do espaço para as novas gerações com outras
imagens, que se tornarão suportes de novas memórias ( BORGES; NAVA, apud
DELGADO 2006, p. 117).
.

Discussão

Já que a Toponímia é o trajeto da Onomástica que identifica as similaridades e


as diferenças dos lugares pelos seus nomes, a sua aliança com o Jornal para
fragmentação da visão avassaladora marcada, massacrada e estigmatizada pela mídia da
comunidade, foi um esteio na busca do que se perdeu perante a temporalidade e adquiriu
novas formas e significações. O Jornal do Beiru, inseriu textos que absorveram os

176
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

aspectos sociais, históricos e culturais da sua territorialidade advindos, dos contextos


informais e formais, do uso da língua na comunidade.
O mecanismo da construção de um texto onomástico, que se realiza por etapas. A
passagem do plano onomasiológico da língua (designarão) para o semasiológico
(significação) [...] o que permitira a complementação do processo denominativo.
Soa momentos de construção de um conjunto, que caminham associadamente e
ganham forma a medida que entendemos não ser possível isolar o sistema
onomástico do campo da linguagem. Aquele apoia-se neste, estando sujeito as
mesmas condições de transformação ou de evolução registradas ao longo das
épocas. (DICK, 2008, p.102).

A matéria da edição 10, “Beiru esse nome tem história”, foi uma das tentativas
de reconstrução da memória social da comunidade que permeou as atividades de
letramento das suas oficinas. A marca do Jornal – “estamos construindo o rosto do Preto
Beiru - Salvador, Bahia” foi um slogan que permeou a aprendizagem das capacitações
jornalísticas pelo diferencial não só de aglutinamento da aprendizagem mas como
também de seleção do público leitor.
Se o patrimônio lexical de uma língua constitui um arquivo que armazena e
acumula as aquisições culturais representativas de uma sociedade, refletindo
percepções e experiências multisseculares de um povo [...] a Toponímia se integra
à Onomástica como disciplina que investiga o léxico toponímico, através do estudo
da motivação dos nomes próprios de lugares. Constitui-se de enunciados
linguísticos, formados por um universo transparente significante que reflete
aspectos culturais de um núcleo humano existente ou preexistente, [...]No universo
onomástico de uma determinada região, há nomes de lugares que são
referencialmente identificáveis por pessoas que fazem parte de redes sociais afins.
Isso ocorre porque tais nomes podem ser facilmente reconhecíveis pela cultura
local, permanecendo registrados na memória dos membros daquela comunidade –
são os chamados arquivos permanentes. Outras vezes, percebe-se, na mesma
comunidade, uma impermeabilidade em muitos de seus topônimos – tratam-se dos
arquivos opacos. (SEABRA, 2004, p.1957).

A reflexão biográfica realizada sobre o topônimo Beiru descolou o seu sentido


opaco para que através dos arquivos permanentes houvesse um compartilhamento de sua
significação, deslocando-o para o espaço social. As construções destas narrativas no
Jornal recortam o individuo e constroem sua verossimilhança nas referências
comunitárias, nos fragmentos que ainda permanecem não só como ruínas, mas como
alicerces atemporais da experiência e consciência coletiva, consolidando-os como arquivo
permanente. Esta singularidade norteia o referencial identitário, nos apelos
comportamentais lastreada pela ancoragem social e histórica individual embasada num
tempo pretérito do pertencimento coletivo. (DELGADO 2006, p. 69). As lacunas da
biografia foram preenchidas por investigações históricas, que comprometidas com o
jornalismo literário, utilizaram um inventário do patrimônio lexical da comunidade para a

177
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

captura de significados oras apagados mas que seriam pontes de fixação do usos da
língua pelo Jornal.
Não se trata da dicotomia ficção ou verdade, mas sim de uma verossimilhança
possível. Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma
atitude narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de jornalismo,
nem de literatura, mas sim de melodia. (PENA, 2006, p.7).

Conclusão

O Jornal do Beiru, um dos marcos na combatividade ao monopólio cultural de


Salvador, no século XXI, concretiza com o seu Projeto Oficina Permanente de
Jornalismo do Jornal do Beiru: Memória e História Afro-descendente um diálogo com
outras linguagens e semioses, numa sedimentação das atitudes de multiletramento. As
edições número 7 e 10 são um exemplo consolidado das escritas coletivas e colaborativas
fincadas no jornalismo literário, no qual as reminiscências do Quilombo do Cabula,
marcam as configurações identitárias, principalmente quanto ao aspecto cultural e étnico
escavadas pelo memorialismo quanto a reconstituição biográfica do Preto Beiru, uma
concretude de como a rearticulação de seus valores comunitários refletem que a
toponímica fincado no pertencimento cultural e na referencialidade onomástica foram
essenciais para a reformulação do senso crítico do público e dos sujeitos do Jornal.
Nestes contextos estas ações ponderaram uma política de renovação estética e
de produção de sentidos nos multiletramentos que inferiram nas ações do Jornal. Estas
reflexões possibilitaram que esta circularidade que une as dicotomias passado com o
presente, real com o virtual, concretizassem uma ressignificação editorial. A construção
das matérias e as suas ilustrações, o conceito visual e de conteúdo consolidaram a
concepção de uma renovação estética pelo Jornal, o negro e a sua localidade não
estavam mais atrelados ás páginas policiais, viraram capa de um protagonismo capturado
e embasado em referências onomásticas. O palco da guerra urbana foi reescrito como um
polo de resistência cultural e identitário, um lugar ilustrado com grafites e testemunhos de
verdades históricas colhidas pela via oral e respaldadas por documentos rastreados fora
dos livros oficiais de história.
O eu narrado na publicação online da edição impressa número 10 acaba alargando
as suas fronteiras para o eu narrador-narrado. Os sujeitos que interagem nas redes
sociais relatam as suas biografias motivadas pela mensagem afirmativa da valorização dos
relatos sobre o Preto Beiru e das lideranças comunitárias da comunidade. Professores,

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alunos e pesquisadores utilizam as edições do Jornal para rediscutir a história, a cultura e


a marca identitária da comunidade..
A imagem estigmatizada e depreciada do bairro Tancredo Neves foi fraturada pelo
uso da linguagem, as oficinas de letramento jornalístico do Jornal pautaram temas que
embasados na reflexão toponímica sobre esta territorialidade permitiram que a sua
associação com estratégias de resgate identitário minimizassem os confrontos entre o
relato oficial da história do Brasil e a real história desta comunidade negra, pontuando-os
significativamente na toponímia soteropolitana. O preenchimento das lacunas e dos
silêncios sobre os nomes representativos da comunidade com a restauração de
significados toponímicos através da observação histórica das palavras – ou seja as
variantes sociais ou os fatores externos que as constituíram, foram uma munição
preponderantes no ineditismo da revolução letrada que o Jornal do Beiru continuou
singularmente na comunidade.

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CONSERVADORISMO E INOVAÇÃO NA NORMA LITERÁRIA DO MODERNISMO: O


CORPUS AMADIANO E A MUDANÇA DA GRAMÁTICA

APARECIDA PEREIRA DOS SANTOS 29


MARIA HELENA GONÇALVES OLIVEIRA 30
RICARDO TUPINIQUIM RAMOS 31

Neste trabalho, apresentamos alguns resultados do projeto de pesquisa


“Conservadorismo e inovação na norma literária do modernismo: o corpus amadiano e a
mudança da gramática”, conduzido, desde 2012, pelo professor Ricardo Tupiniquim
Ramos, junto ao Laboratório de Estudos da Diversidade Linguística e Cultural (LEDIV), no
Departamento de Ciências Humanas do campus VI (doravante, DCH6) da UNEB,
localizado em Caetité. Ao longo desses anos, o projeto vem contando com a ação de
bolsistas de Iniciação Científica, como as coautoras deste texto (biênio 2012-2014), hoje,
pós-graduandas. Dividimos o texto em quatro partes:
• a primeira, escrita pelo pesquisador, situa o referido projeto como um todo bem
como as concepções teórico-metodológicas que o orientam;
• a segunda, escrita por Aparecida Pereira dos Santos, trata dos objetos estudados
por ela estudados ao longo de sua IC e de seu TCC de graduação, quais sejam, a
indeterminação de sujeito e a construção passiva;
• a terceira, escrita por Maria Helena Gonçalves Pereira, discorre sobre seus
objetos durante a IC e o TCC de graduação: a concordância verbal e a nominal;
• as considerações finais, da lavra dos três autores.

A escrita literária como objeto de pesquisa

Na cultura ocidental, data de 23 séculos a emergência de uma linha de reflexão


sobre as línguas que, ao mesmo tempo, busca descrever e corrigir. A partir de uma

29
Pós-graduanda em Educação e Diversidade Étnico-racial e Licenciada (2015) em Letras Vernáculas pelo
Departamento de Ciências Humanas do campus VI (Caetité) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Ex-bolsista de
Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Professora da rede pública de
ensino no Sudoeste da Bahia.
30
Pós-graduanda em Educação e Diversidade Étnico-racial e Licenciada (2015) em Letras Vernáculas pelo
Departamento de Ciências Humanas do campus VI (Caetité) da UNEB. Ex-bolsista de Iniciação Científica pela FAPESB.
Professora da rede pública de ensino no Sudoeste da Bahia.
31
Doutor (2008) e Mestre (1999) em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia, Licenciado em Letras
Vernáculas com Inglês pela Universidade Católica do Salvador (1997), Professor-Assistente do Departamento de
Ciências Humanas do campus VI (Caetité) da Universidade do Estado da Bahia.

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preocupação em preservar os monumentos da literatura, filosofia e ciência antigas, os


pensadores alexandrinos orientaram seus estudos no sentido do que hoje se conhece por
Gramática Tradicional ou, inversamente, Tradição Gramatical. Embora não ignore a
existência de variações linguísticas, essa opção metodológica assume uma perspectiva
normativo-prescritiva que pretende preservar as formas tidas por clássicas, da literatura,
que passa a descrever detalhadamente, imputando a todas as demais variantes o caráter
de desvio, de incorreção.
Entre nós, essa tradição se instala entre os séculos XVI e meados do século XVIII,
graças à Companhia de Jesus, praticamente a única instituição então ocupada da
educação. Naquele tempo, educar no Brasil requeria um esforço hercúleo, devido ao
generalizado multilinguismo do país. Como língua de colonização, ela convivia em situação
de extrema desvantagem numérica com as línguas nativas que, segundo cálculo de
Rodrigues (1993), contavam entre 1300 e 1500 à época do descobrimento.
Dentre elas, deve-se destacar o tupi-antigo, também chamada língua brasílica ou
língua mais usada na costa do Brasil, por ser a própria do grupo indígena predominante no
litoral e facilmente compreendida por indígenas aloglotas. Os jesuítas chegaram a
normatizá-lo para fins de ensino aos colonos e seus filhos (pois de seu domínio dependia-
lhes a sobrevivência) e às gerações mais novas dos próprios gentios, transformando-a em
língua geral.
Maciçamente introduzido no país a partir dos meados de 1600, mas para cá trazido
já desde 1538, o negro era um novo elemento étnico-linguístico também heterogêneo, na
medida em que os nossos ancestrais africanos pertenciam a grupos humanos diversos,
falantes de idiomas vários, que se misturavam primeiramente nas feitorias de escravos na
costa africana, depois nos porões dos navios negreiros e finalmente nos mercados de
escravos e senzalas das fazendas. No contexto de diversidade linguística africana,
planejado e executado pelos traficantes negreiros pelo uso do recurso da seleção
linguística negativa na hora do embarque, eles tiveram de desenvolver entre si um falar de
intercurso e, para se comunicar com o resto da nova sociedade também multilíngue em
que foram inseridos como mão-de-obra bruta, muitos acabaram também aprendendo a
língua geral indígena e a portuguesa que, com esse contato, enriqueceram seu patrimônio
vocabular e conceitual.
Nessa época, já se desenvolvera uma mestiçagem étnico-cultural e linguística com
a tentativa de lusitanização do índio e do mestiço e indianização do português. Sobre a
vivacidade do bilinguismo luso-tupi em São Paulo, que pode ser entendido como existente

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na maior parte do país, Antônio Vieira (apud Silva Neto 1979, p. 51) deixou para a
posteridade o seguinte testemunho em meados do século XVII: “as famílias dos
portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que a
língua que nas ditas famílias se fala, é a dos índios, e a Portuguesa a vão os meninos
aprender à escola”.
Além disso, até pelo menos as reformas pombalinas do século XVIII, nas escolas
brasileiras, mantidas, via de regra, por jesuítas, ensinava-se mais o latim que o próprio
português, segundo o seguinte testemunho de Vilhena:

No tempo em que existiam os Jesuítas, incumbidos então de todas as escolas


menores, havia nos Gerais do Colégio desta cidade sete classes. Na primeira se
ensinava gramática portuguesa, desta passavam os meninos a aprender na
segunda os primeiros rudimentos da língua latina, estudavam sintaxe, e sílaba na
terceira classe, da qual passavam para a quarta onde aprendiam a construção da
mesma língua, e retórica, tal qual então se ensinava. Na quinta a matemática; na
Sexta filosofia, e na sétima se ensinava teologia moral. (VILHENA, 1969, p. 273-4)

Apesar desse quadro de profundo multilinguismo da sociedade colonial brasileira,


o português, como língua de Estado, ensinada na escola às novas gerações, foi,
paulatinamente, ganhando terreno em relação à língua geral indígena, mormente nas
áreas mais próximas ao centro político-administrativo da colônia, a Bahia, para onde a
imigração reinol passou a ser maior e mais constante. Uma afirmação posterior do próprio
Vieira testemunha o início do declínio da língua geral já nos fins do século XVII:

Quão praticada fosse a [língua] do Brasil, bem o testifica a primeira arte ou


gramática dela, de que foi autor Anchieta. Bem o testificam as outras que depois
saíram mais abreviadas, e os vocabulários tão copiosos, e o catecismo tão exato.
Sobretudo o testifica o mesmo uso de que nos lembramos os velhos, em que a
nativa língua portuguesa não era mais geral entre nós do que a brasílica. Isto é o
que alcancei, mas não é isto o que vejo hoje. [...] nessa comunidade é já tão pouco
geral a língua chamada geral do Brasil, que são muito contados aqueles em que se
acha. (VIEIRA, 1940, p. 423-6)

Para Silva Neto (1957, 1960, 1979), o português aprendido no Brasil por índios e
africanos teria formado uma espécie de semicrioulo que, a partir do século XVIII, graças à
superioridade da língua e da cultura portuguesas, ao declínio da língua geral indígena, ao
aumento de contingentes populacionais lusos migrantes para o Brasil e do número de
cidades, à integração mameluca à sociedade branca e, pasmem, ao avanço da
escolarização, foi lentamente caindo em desuso, dando lugar, salvo em variantes
interioranas, a um português polido, uniforme e unitário.

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Contudo, embora admitam a possibilidade do surgimento de crioulos e


semicrioulos no Brasil, alguns estudos recentes sobre a interação linguística colonial
negam o caráter de fator preponderante do seu lento e gradual desuso à escolarização.
Ramos (1999, p. 20), por exemplo, argumenta que,

diante da realidade sincrônica brasileira de um analfabetismo real ou funcional


generalizado, que atinge, malgrado o floreio das estatísticas oficiais, a grande
parte da população brasileira, soa ingênua, romântica e descuidada a assertiva de
ter contribuído o avanço da escolarização para o desuso da língua geral Tupi e o
desaparecimento de idiomas crioulos no Brasil. Afinal, se naquela época tivesse de
fato a escolarização avançado, que teria causado o seu recuo aos níveis atuais?

O desaparecimento da língua geral tupi e de idiomas crioulos no Brasil – se é que


de fato estes foram formados –, não se deve a uma superioridade intrínseca à língua
portuguesa ou à sua tradição literária ou status de meio de comunicação de uma alegada
cultura superior, mas sim a fatores sócio-históricos diversos e amalgamados em torno de
um só: no período colonial brasileiro, o português era língua de Estado, de dominação.
Dois outros fatores de relevância para o extermínio e o encurralamento dos nossos
índios e de sua cultura foram a legislação pombalina publicada após 1727 e, em 1759, a
expulsão definitiva dos jesuítas, paradoxalmente os maiores defensores e aculturadores
dos índios. Coube também a Pombal, entre outras decisões de política cultural e
linguística, a criação da primeira rede leiga de ensino que ficou restrita a uns poucos filhos
de boas famílias, perpetuando uma orientação pedagógica que reservava o conhecimento
racional das regras da língua às crianças aristocratas e burguesas e confinava os filhos do
operariado à prática simples da leitura e escrita, do cálculo e da moral. Nessa época, já era
comum aos filhos de brasileiros ilustres o costume de viajar para cumprir curso superior na
Metrópole, onde tomavam contato com a tradição literária.
Segundo Houaiss (1985), no início do século XIX (o da primeira Constituição
brasileira, que inscreveu o ensino primário universal, veleidade ainda hoje não atingida),
seria de 0,5% da população o índice de letrados no Brasil, que, no final da mesma
centúria, teria atingido 6%. Além disso, já nessa época era parquíssimo o número de
unidades escolares (se comparado ao da infinitamente superior população em idade
escolar), e a classe docente era desprestigiada em seus vencimentos e condições de
trabalho. Confirmam o estado crítico da educação pública durante o período do Segundo
Reinado as seguintes notícias extraídas de um jornal da época:

Há no Brasil 6180 escolas públicas. (Echo Santamarense, A4, n13, 18/06/1884, p.


1, col. 3, Noticiário: Escolas)

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Os professores públicos de Santa Catarina há quatro meses não recebem


vencimentos. Os do Paraná se acham no mesmo caso. No Ceará os professores
há um ano que deixaram de receber os seus cobres. Não se pode afirmar,
portanto, que seja muito animador o estado da instrução pública nessas províncias.
(Echo Santamarense, A3, n221, 28/03/1884, p. 2, col. 2, Noticiário: Classe mártir)

Ainda conforme Houaiss (1985), no início do século XX, seria 2% a população de


letrados no Brasil, chegando, em 1920, a algo em torno de 20 a 30%. Houve um aumento
do percentual e da população que de 3,5 a 4 milhões passou para cerca de 30 milhões. Na
época, ativaram-se os debates sobre as reformas educacionais, por influência dos novos
métodos pedagógicos europeus e norte-americanos. Exigia-se a reforma do processo
pedagógico sobre novas bases sociológicas, psicológicas, biológicas e ativistas. Uma série
de reformas do ensino acompanhou o surto dessas ideias: Lourenço Filho (CE, 1922-3);
Carneiro Leão (DF, 1922-6 e PE, 1928); Francisco de Campos (MG, 1927-8); Fernando de
Azevedo (DF, 1928); Antônio Teixeira (BA, 1928); etc.
Os anos de 1930 e 1940 podem ser caracterizados como uma época marcada por
intenso esforço de reorganização política e de reconstrução econômica, provocado pelo
caos da economia capitalista e intensificado pelo advento da II Guerra Mundial. Entre nós,
são os anos da Era Vargas (1930-1945), durante a qual se fomentavam e debatiam novas
ideias pedagógicas propostas para o novo planejamento da Educação nacional. Seguindo
essa tendência, em 18 de novembro de 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde
Pública (com Francisco de Campos à sua frente), que permitiu a concretização das novas
diretrizes da educação pública, abrangendo os três níveis de ensino. No ano seguinte, em
São Paulo, o clima de renovação propiciou a realização do I Congresso Católico de
Educação. Nele, se defrontaram as duas posições mais conflitantes no momento: apoio ao
ensino religioso nas escolas e defesa da lacaidade ou neutralidade religiosa escolar.
Finalmente, a Constituição de 1937 estabeleceu as bases da Educação nacional e
deu início a uma nova fase no processo da cultura brasileira em transformação. Entre os
organismos criados na época estão: o Instituto Nacional de Cinema Educativo (1937); o
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938) e o Serviço Nacional de Radiodifusão
Educativa (1939). Como se vê, multiplicavam-se os setores atingidos pela preocupação
com a formação das novas gerações.
Entre as inúmeras reformas em curso nesse período, destacam-se a Lei Orgânica
do Ensino Primário e a Lei Orgânica do Ensino Normal, conhecida por Decreto Capanema,
de janeiro de 1946, que procurou dar uma base comum aos diferentes graus e tipos de

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ensino, atendendo também às diversidades regionais. Como objetivos do ensino primário,


estabelecia-se:

a iniciação cultural, em vista do conhecimento da vida nacional, e prática de


virtudes morais e cívicas, enquanto que elevando o padrão de conhecimentos úteis
à vida familiar, proteção da saúde e iniciação à vida de trabalho, procura
desenvolver a personalidade ao educando. (MATTOS E SILVA, 1996b, p. 82)

No Brasil, a década de 1950 conheceu o fim da Era Vargas, a política


desenvolvimentista e populista de Juscelino Kubitschek e a construção de Brasília. Durante
essa década, prosseguiram os debates acerca das reformas ou reestruturações no campo
do Ensino com uma sucessão de portarias, projetos e leis, visando equacionar, com
realismo, o sistema educacional à complexa e mutante realidade brasileira. Mas quase
tudo permaneceu no papel, sem condições de chegar efetivamente à ação, em toda a rede
escolar.
Em relação ao ensino do português como língua materna e ao processo de
alfabetização, contudo, do início do século até esse tempo, pouca coisa mudou: não houve
um avanço do percentual de letrados no país. Além disso, os professores pertenciam à
elite cultural e a maioria dos alunos, à elite social; estes aprendiam, apesar das evidentes
falhas didáticas e pedagógicas, devido a alta capacitação de seus mestres e ao fato de
terem condições favoráveis de alimentação, saúde e farta possibilidade de leituras
supridas.
Somente durante o curtíssimo Governo de Goulart se votou o Projeto da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 4024, de 20/12/61), em tramitação no
Congresso desde 1948. Evidentemente, durante esses treze anos de espera, a realidade
social do país havia mudado muito. Os pontos básicos dessa Lei entroncaram no objetivo
básico da Educação: a democratização do ensino exigida pela premissa de que a
Educação é “um direito de todos” e um “dever do Estado”. Com o intuito de ampliar a
oportunidade de escolarização das camadas mais carentes da população e de atender às
necessidades do alunado, a nova lei aumentou a escolaridade obrigatória para oito anos e
a descentralizou os currículos.
Mattos Silva (1996b) destaca a mobilização popular através de movimentos pró-
alfabetização nesse parco período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964, citando
algumas entidades envolvidas na aplicação de projetos, a maioria inspirada na ação
educativa de Paulo Freire: os Centros Populares de Cultura (CPC’s) da UNE, as Ligas
Camponesas, a própria Igreja, através do Movimento de Educação de Base (MEB).

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Após o famigerado golpe de 1964, os governos militares iniciaram ações voltadas


para a educação que tomaram corpo através do Movimento Brasileiro de Alfabetização,
MOBRAL, sigla que, nas décadas seguintes, passou a designar pejorativamente, o
indivíduo (semi)analfabeto ou ignorante em relação a algum tema. O MOBRAL este
fracassou. As causas desse insucesso residem principalmente em três fatores, um
condicionante do outro nessa ordem: falta de vontade política, corrupção política, mau uso
do dinheiro público e dos recursos humanos.
Nos anos de 1970, época do surgimento e aplicação do MOBRAL, assistiu-se a um
assustador crescimento da população escolar nas escolas públicas brasileiras, como um
primeiro resultado da política educacional implantada pelos governos militares, que,
conservando a LDB pretendeu fazer passar a ideia de uma educação democratizada, que
fazia aumentar as chances de igualdades de condições. Em contrapartida, a esse aumento
do número de matrículas seguiram-se os da evasão escolar e da demanda de professores,
que se foram recrutar não mais na elite intelectual brasileira, mas da classe média-média e
média-baixa para baixo, gerando a formação de professores em cursos rápidos, sem maior
embasamento teórico.
A solução para o desprestígio e despreparo docente pareceu simples em dado
momento: a criação de um livro que, sozinho, ensinasse aos alunos o que fosse preciso;
surgiram, assim, livros de dois gêneros: verdadeiros livros-texto para os alunos e livros-
roteiro para professores aprenderem a servir-se bem daqueles.
Além disso, embora pseudo-democratizada quanto ao acesso, em relação ao
ensino da língua materna, a escola brasileira ainda persegue a tradição normativo-
prescritiva que os próprios professores em geral não dominam. A consequência disso é
óbvia: variadas falas e normas distanciadas da padrão chegam até a escola. A maioria do
alunado se cala e tem de deixar a escola para lutar pela sobrevivência quotidiana e
continuará subalterna, na sociedade que se reproduz de geração a geração, deixando o
poder e a voz com os que, por herança, já os adquiriram.
Analisando documentos oficiais diversos (pareceres, recomendações, planos
curriculares e diretrizes de ensino) relativos ao ensino da língua datados do meado dos
anos 70 até o fim da década seguinte, Fiad (1996) identifica duas posições distintas.
Inicialmente, nesses documentos havia tentativas de apropriação de uma concepção de
reconhecimento das variantes linguísticas convivendo com atitudes bastante prescritivas
em relação ao uso linguístico.

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Como prova da perene busca de nossa escola pelo ideal linguístico da tradição
normativa, pode-se citar inicialmente um parecer do extinto Conselho Federal de
Educação, escrito por Abgar Renault em 1975 (o Parecer Renault), que destaca a
importância de princípios gramaticais, sugere como medidas para solucionar o problema
do ensino da língua o estabelecimento e aplicação de normas e regulamentos rígidos
destinados a conter as impurezas do uso linguístico da mídia e dos editores. Além disso,
no ano seguinte, seguindo esse Parecer, o Conselho criou uma comissão para estudar a
carência linguística da juventude e sugerir medidas saneadoras. Era aquele um momento
de transição política de uma ditadura militar para o regime democrático. Na década de 80,
conquistada a democracia, consolidou-se e espalhou-se para além da Academia um
discurso sobre a diversidade linguística.
A promulgação da nova Carta Constitucional (1988), a aprovação e edição da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e a publicação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998) fizeram surgir novos horizontes para o letramento e o ensino
da língua materna no Brasil, conforme notamos anteriormente.
Se, em seu surgimento, sua função era preservar os textos clássicos da língua, ao
longo da história, ela tornou-se modelo ideal de uso da língua. Não se nega a necessidade
da Gramática Tradicional nas sociedades letradas nem se advoga o seu fim, mas a
renovação de suas fontes (já que a língua – mesmo a da escrita formal e literária –, muda
com o tempo) e uma mudança radical nas metodologias de ensino de Língua Portuguesa,
direcionando-o, sobretudo, para a prática da leitura (entendida como decodificação,
compreensão e interpretação) e produção de textos dos mais variados gêneros,
modalidades e variedades, conforme determinam os PCN.
Talvez por isso entre 2003 e 2005, em parceria com a Academia Brasileira de
Filologia, a Academia Brasileira de Letras abalizou grupo de notáveis linguistas e filólogos
que, sob diretrizes gerais de Evanildo Bechara e presidência do foneticista Ricardo
Cavalieri, discutia e elaborava o que chamavam de Terminologia Linguística para a
Educação Básica (TLEB), que substituiria a Nomenclatura Gramatical Brasileira,
documento de 1958, desde sempre incoerente, incompleto, anacrônico e hoje já caduco,
na medida em que as exigências do ensino de Língua Portuguesa posteriores aos PCN
vão muito além da frase, limite da Tradição Gramatical. Contudo, se naquele triênio aquele
grupo de notáveis divulgava suas discussões durante o Congresso Nacional de Linguística
e Filologia e no sítio oficial da Academia Brasileira de Filologia (www.filologia.com.br), a

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ausência de novidades há pelo menos 10 anos leva-nos a crer que tão relevante projeto,
por algum motivo, foi abandonado.
Em Portugal, já não se ensina gramática nas escolas, pois desde 2001 está em
vigor naquele país uma proposta de terminologia linguística semelhante à natimorta TLEB
brasileira. Por lá, o processo de discussão e elaboração desse documento durou cerca de
nove anos, envolveu a Academia de Ciências de Lisboa e pesquisadores de várias
universidades, mas enfim, foi concluído. Vale ressaltar que, seja lá ou aqui, esse processo
nada tem que ver diretamente com a reforma ortográfica, ora em fase de implementação.
Para que esses novos discursos adotado pelos documentos oficiais (MEC,
CFE/CNE, PCN) repercutam também nas secretarias e diretorias estaduais e municipais
de educação, na rede de ensino, e não só sejam adotados, mas também cumpridos e que,
para tanto, não sejam necessários outros quinhentos anos de história, este Projeto
pretende contribuir, indicando novas formas de se trabalhar a formulação escrita da norma-
padrão do português no Brasil e seu ensino.
Como dito acima, entre nós, a tradição gramatical surge ainda no século XVI, com
a célebre “Arte da gramática da língua mais usada nas costas do Brasil”, de José de
Anchieta, primeira gramática europeia de uma língua não europeia. No caso da língua
portuguesa, os primeiros compêndios gramaticais foram introduzidos no país apenas no
final do século XVIII, mas, grosso modo, apenas por volta da metade do século seguinte –
após a Independência, as polêmicas em torno da existência de uma língua nacional
brasileira e a decisão do Império em investir numa identidade linguística portuguesa para o
país –, é que surgem as primeiras obras desse gênero escritas por autores brasileiros.
Contudo, serem escritas por brasileiros não livra esses trabalhos de um traço
comum a todos os seus congêneres atuais a que podemos chamar lusofilia linguística: o
culto excessivo às formas de expressão linguística própria dos literatos portugueses.
Naquele momento, dois fatores justificam esse traço:
1) o ideal de correção linguística implantado na corte brasileira – na verdade,
continuação da corte portuguesa transplantada para o Brasil desde 1808 –, a ser seguido
pelo novo país, ideologicamente construído a partir de um modelo civilizatório europeu a
que se amalgamaram influências indígenas;
2) a inexistência de editoras no Brasil, que obrigava os escritores brasileiros a
publicarem seus livros na Europa – geralmente em Paris –, onde os textos passavam por
revisões gramaticais que os “purificavam” das “rebeldias” linguísticas ocasionais.

189
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Ademais, a despeito das várias tentativas – em algumas vezes bem sucedidas,


noutras, nem tanto – de produzir uma literatura calcada em valores de brasilidade e
espelhante de nossa realidade, em geral, os movimentos literários do século XIX foram
aplicações de padrões estéticos surgidos na Europa, sobretudo na França, refletindo,
portanto, valores eurocêntricos.
Somente no início do século XX, alguns escritores brasileiros destoaram da
maioria de seus pares, a partir de atitudes mais críticas diante da realidade nacional,
antecipando, assim, a tendência que marcou decisivamente aquela centúria: a
experimentação e criação de uma literatura que investigasse e questionasse mais
profundamente o Brasil.
A despeito dessas antecipações, historicamente, o marco do Modernismo do Brasil
é, sem dúvida, a Semana de Arte Moderna de 1922, não só por terem tomado parte dela
várias expressões de uma arte desvinculada dos padrões então vigentes, como também
pelas suas consequências.
Didaticamente, costuma-se dividir o Modernismo em duas fases:
a) período de “destruição” (1922-1930), com escritores preocupados em difundir
novas ideias, não recua diante das polêmicas e critica de forma agressiva a literatura
tradicionalista;
b) período de “construção” (1930-1945), com escritores que consolidam o
movimento renovador, revelando talento e maturidade artística nas obras.
Com o pós-guerra, uma nova geração de escritores começou a surgir no cenário
da literatura brasileira, abrindo caminhos que nos permitem perceber uma nova etapa na
história do Modernismo. Esse período, que praticamente chega até nossos dias, é
denominado por alguns críticos de terceira fase do Modernismo e por outros, de Pós-
Modernismo. Contudo, para o escopo deste Projeto, essa distinção pouco relevante.
Barbadinho Neto (1977 [1967]) se propõe a estudar exaustivamente a norma
literária dos modernistas em obras escritas até 1960. Todavia, suas conclusões contrariam
a percepção de bons leitores dessa literatura e de outros estudiosos – segundo a qual os
modernistas brasileiros se desviaram das formas habituais de expressão, consagradas na
norma gramatical lusitana, registrando um modo mais brasileiro de falar e escrever em sua
literatura – pois, conforme o supracitado autor,

[...] o comportamento linguístico do Modernismo confirma que havia mais rebeldia


nos gestos que nas obras – esta a verdade verdadeira. [...]Entre os modernistas,

190
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sempre houve “MAIS REBELDIA NOS GESTOS QUE NAS OBRAS”.


(BARBADINHO NETO, 1977, p. 2; 5 – grifos do autor).

Em outros pontos do texto, Barbadinho Neto (1977) aponta Mário de Andrade


como a única exceção aos escritores modernistas, no sentido de uma subversão do uso
linguístico, justificável pelo momento histórico:

A atitude de bota-baixo dos modernistas foi mais uma ameaça do que uma real
dilapidação do passado, mesmo entre os “modernistas históricos”, exceção aberta
para Mário – cujos excessos por que enveredou contribuíram tão-somente para
ensombrar-lhe a exuberante criação literária pessoal. [...] Somos tentado a crer que
Mário teria orientado em outro rumo a sua expressão, caso dar as costas ao
passado não fosse um imperativo do momento. E vamos além. Temos conosco que
seria a linguagem machadiana o paradigma a ser seguido. (BARBADINHO NETO,
1977, p. 3-4)

A despeito disso, na lavra de outros escritores, entre os quais, Jorge Amado, o


próprio Barbadinho Neto (1977, p. 93) indica a existência de fenômenos próprios da:
1) fala brasileira estabilizados na língua literária modernista, como o uso geral da
próclise; o uso de “ter” por “haver”; o desuso de “si” e “consigo” com referência à P2 do
discurso; a regência dos verbos de movimento pela preposição “em”, entre outros;
2) da tradicional escrita literária não acolhidos na escrita literária modernista, como:
a concordância ideológica (concordância do verbo com a ideia expressa pelo sujeito; v.g.
“o pessoal foram”), a ênclise com particípio e futuro; uso do pronome-objeto
acompanhando verbos pronominais (v.g. “Não se o viu”), entre outros.
Assim, apesar de registrar a preferência dos escritores modernistas ora pelo
registro de fenômenos da fala, ora pela reiteração de construções clássicas, Barbadinho
Neto (1977) não consegue explicar as razões desse uso variável nem incorporar à sua
visão de norma literária outros fenômenos da fala, em seu dizer, não estabilizados na
língua literária.
Esses fatos da língua viva presentes na escrita de Jorge Amado não são o único
aspecto mal compreendido por setores mais reacionários da academia no Brasil. Na
verdade, a despeito de todo o sucesso junto ao público brasileiro e estrangeiro, a obra do
escritor baiano, como um todo, é um tanto mal vista pela crítica literária, que normalmente
a descreve a partir de duas fases:
1ª fase: de “O país do carnaval” (1931) a “Os subterrâneos da liberdade” (1946) –
marcada por um realismo documentarista, dedicada “aos marginalizados pela vida – aos
oprimidos das classes populares, no campo e na cidade” (SAMUEL, 1985, p. 37), por

191
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

influência de teses extraliterárias de cunho socialista, por isso mesmo diminuída pela
crítica literária;
2ª fase: de “Gabriela, cravo e canela” (1958) até “A descoberta da América pelos
turcos” (1992), sua última obra publicada em vida – menos presa às ideologias políticas
que ao humorístico, pitoresco, picaresco e exótico da cultura baiana.
Contudo, esta divisão é mais didática, na medida em que – a despeito de, de fato,
na segunda fase, se desvincular da ideologia socialista por suas desilusões com o
stalinismo da ex-União Soviética, o autor não abandona seu projeto de literatura engajada
com a denúncia das mazelas sociais – a opressão feminina na sociedade patriarcal, a
miséria, a dilapidação do meio ambiente –, que passa a ocupar o fundo de cena, dando
visibilidade àquilo que, nela, a crítica literária tradicional destaca.
Sem entender a proposta amadiana de uma ficção inscrita na cultura, no cotidiano
das pessoas, Bosi (1970) considera as obras do escritor baiano romances de tensão
mínima: “Há conflito, mas este configura-se em termos de oposição verbal, sentimental
quando muito: as personagens não se destacam visceralmente da estrutura da paisagem
que as condiciona” (BOSI, 1970, p. 438). Contudo, outro é o entendimento de Edilene
Matos, em depoimento a Castilho (2010, p. 30):

Para Jorge Amado, se a literatura era vida, as palavras também significavam vida,
sem complicação. A proposta da narrativa poética de Jorge Amado era chegar ao
povo da maneira mais simples e direta possível, com uma linguagem em que o
povo pudesse ser identificado.

Era amplo o seu projeto estético de literatura inscrita na cultura, “na criação de
uma espécie de sociedade utópica, sem preconceitos e hierarquias, inclusive de palavras”
(CASTILHO, 2010, p. 30). Embora usuário da norma culta, Jorge Amado não se
preocupava com formalismos de linguagem, incorporando à sua escrita literária não
apenas frases feitas, os provérbios, gírias e palavrões, mas fatos do vernáculo:

[...] Sua proposta era burlar tudo que fosse represamento, burlar conscientemente
essa gramática. Ele põe na boca dos seus personagens sua linguagem, suas
particularidades linguísticas e fonéticas, nos diferentes contextos que usavam.
Não há, nesse sentido, como não falar de baianidade. Assis Duarte fala de uma
sintaxe “marcada por certa melodia típica da fala nordestina”. Uma linguagem
fluida, imersa e, clima lírico [...] (CASTILHO, 2010, p. 30)

Sendo Jorge Amado um prosador representativo do nosso Modernismo (brasileiro


e baiano) e o escritor nacional mais lido e traduzido até a década de 1990 e estando ele
entre os estudados por Barbadinho Neto (1977 [1967]), cabe-nos perguntar: que

192
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

fenômenos revelam conservadorismo ou inovação linguística 32 em sua lavra literária?


Quais as razões desse uso variável? Em que medida esses usos variáveis podem
determinar não só uma renovação na forma de ler sua obra, como também da norma-
padrão do português no Brasil?
Formulamos essas questões no projeto de pesquisa referido na introdução,
relevante por propor a análise do estilo de escrita literária de um dos escritores brasileiros
mais lidos e traduzidos de todos os tempos (Jorge Amado), revitalizando, assim, um
campo de aplicação dos estudos linguístico-filológicos um tanto esquecido pela academia
nas últimas quatro décadas: a Estilística Literária. A partir de novas bases teóricas,
pretendemos revisar as incoerências de Barbadinho Neto (1977 [1967]) apontadas acima e
alargar as explicações do uso variável de aspectos conservadores e inovadores na
formulação da escrita literária modernista brasileira. Assim, ensejamos não apenas revelar
uma nova forma de ler a literatura brasileira do século XX – especificamente as amadianas
– como também indicar novas formas de trabalhar a formulação escrita da norma-padrão
do português no Brasil e seu ensino.
Na pesquisa e em cada um de seus planos de trabalho específicos, a partir de uma
revisão bibliográfica sobre o tema, tratamos do problema proposto para, em seguida, da
análise dos textos amadianos – aqui considerados documentos 33 – desenvolvida a
partir da observação de um objeto mensurável de uma perspectiva estatística e
discursivo-filológica, ratificar ou retificar, total ou parcialmente, a teoria antes lida e
articulada.
A fonte de coleta de dados do corpus são as seguintes edições das obras
amadianas publicadas pela Companhia das Letras, consideradas definitivas, pois
autorizadas pelo autor ou pelos detentores dos direitos autorais de sua obra: os romances
“O país do carnaval” (Cf. AMADO, 2009 [1930], doravante, PC), “Suor” (Cf. AMADO 2008
[1934]) “Gabriela, cravo, canela” (Cf. AMADO, 2008 [1958], doravante, GCC), “Dona Flor e
seus dois maridos” (Cf. AMADO, 2009 [1966], doravante DFDM) e “Tieta do Agreste,
pastora de cabras (Cf. AMADO, 2000 [1977], doravante, TAPC); a novela “A morte e a
morte de Quincas Berro d’Água” (Cf. AMADO, 2009 [1959], doravante QBD); os contos “De
como o Mulato Porciúncula descarregou o seu defunto” (Cf. AMADO, 2008 [1959],

32
Enquanto, por um lado, entendemos por conservadorismo linguístico a atualização, na fala e/ou escrita, de
construções consagradas pela Tradição Gramatical, por outro, concebemos inovação linguística como a atualização, na
fala e/ou escrita de construções imprevistas por aquela tradição.
33
Consideramos documento qualquer fonte de informações, indicações e esclarecimentos para descrever, comparar e
interpretar usos e costumes, tendências, diferenças e outras características.

193
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

doravante MPDF), “As mortes e o triunfo de Rosalinda” (Cf. AMADO, 2010 [1965],
doravante MTR), “O milagre dos pássaros” (Cf. AMADO, 2008, doravante MP) e “A bola e
o Goleiro” (infantil, Cf. AMADO, 2008 [1987], doravante BG).
Até o momento, procedemos à aplicação de um método filológico – leitura de cada
obra com destaque, no texto, de abonações (posteriormente registradas em fichas-padrão)
– para coletar dados dos seguintes fenômenos linguísticos inovadores e de seus
contrapontos conservadores:
• uso de pronomes pessoais ou SN com valor de indeterminador de sujeito: você,
nós, a gente, o pessoal
• generalização do “se” como pronome indeterminador de sujeito (eliminação da
alegada construção “passiva pronominal ou sintética”);
• variação da marcação de número e eliminação do plural redundante no interior do
SN;
• reorganização do quadro de pronomes pessoais com suas consequências para a
concordância verbal (expansão de “você(s)” para a P2,5; uso variável de “a gente” e “nós”
para a P4; redução da morfologia verbal para quatro, três ou duas formas; não marcação
da concordância verbal na ordem VSO)
• generalização do uso da próclise;
• regência variável dos verbos de movimento;
• uso de construções relativas cortadoras (Este é um filme que gosto muito) ou com
pronome cópia (Este é um filme que gosto muito dele);
• uso de “onde” para indicar lugar, tempo, noção, causa e posse;
• construções comparativas a partir de usos expressivos da fala popular (“que
nem”, “feito”, etc.);
• construções negativas;
• uso de vocabulário e fraseologia próprios da cultura popular (inclusive do calão),
em especial, do Recôncavo Baiano;
• uso de “ter” por “haver” e suas consequências sintáticas.
Colhidos os usos desses fenômenos registrados nas obras amadianas e de seus
contrapontos conservadores prescritos na norma-padrão, eles são quantificados, lançados
e rodados pela versão Goldvarb do Varbrull, software de análise estatística de dados,
próprio para esse uso, que fornece dados percentuais absolutos e índices de frequência
relativa. Descrito estatisticamente, cada fenômeno é analisado a partir da teoria já

194
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sedimentada na literatura especializada sobre ele e interpretado segundo o pressuposto


teórico de que, pelo menos em Jorge Amado, o conservadorismo ou a inovação linguística
se explica, por um lado, pelo projeto estético do autor e, por outro pelo gênero textual ou
pelo tema da sequência textual em que se insere.
Para exemplificar a aplicação da metodologia acima exposta e, ao mesmo tempo,
apresentar alguns resultados do projeto em si, tratemos dos quatro primeiros fenômenos
morfossintáticos da lista supra.

As estratégias variáveis de indeterminação do sujeito

É impossível imaginar uma língua falada ou escrita que não esteja se referindo a
alguém. Todo texto é intencional, quando escrevemos de modo implícito ou explícito
estamos nos dirigindo a alguém ou a alguma coisa. Por isso, falar dos estudos referentes
aos fenômenos gramaticais é de fundamental importância, pois nos levam a compreender
além da estrutura uma melhor maneira em utiliza-los.
Ao falar em sujeito indeterminado, estamos nos referindo a um ser que ao executar
uma ação, não pode ou não quer ser conhecido. Para indeterminar esse sujeito, a
gramática tradicional considera apenas duas maneiras: colocar o verbo na 3º pessoa do
plural ou com o verbo na 3º pessoa do singular + se. No entanto, estudos recentes
mostram a incoerência dessa regra e apresentam diversas outras maneiras de que a
língua dispõe para indeterminá-lo.
Em relação ao sujeito, afirma Bechara (2004, p.409), “[...] a unidade ou sintagma
nominal que estabelece uma relação predicativa com o núcleo verbal para construir uma
oração.” Percebe-se que o sujeito é classificado como o ser que estabelece uma relação
com o núcleo verbal na construção frasal. Porém, podemos dizer que o sujeito vai além da
definição da gramática tradicional, pois ele é a essência da frase: “[...] o termo que exerce
a função de sujeito recebe o nome de substantivo, porque ele é o portador da substância
[...]” (BAGNO, 2012, p.411 – grifos do autor).
Ao referir-se ao sujeito indeterminado, afirma Bechara (1986, p.200): “Sujeito
indeterminado é o que não se nomeia ou por não querer, ou por não saber fazê-lo”. Mas,
as estratégias de indeterminação apresentadas por ele e outros gramáticos não dão conta
das socialmente utilizadas:

195
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Para indeterminar o sujeito, vale-se a língua de um dos dois expedientes:


1. empregar o verbo na terceira pessoa do plural;
2. usá-lo na 3ª pessoa do singular acompanhado da partícula se, desde que ele
seja intransitivo, ou traga complemento preposicional. (ROCHA LIMA,1972, p.206)

O sujeito é indeterminado quando de impossível identificação. Tal acontece em


orações com verbos: a) ativo, acidentalmente impessoalizados na 3ª do plural:
“Dizem que ele vem” ; b) acidentalmente impessoalizados na passiva: “Precisa-se
de um datilógrafo”- “Assim se vai aos céus,” (ALMEIDA,1985, p.414)

Como se vê, os gramáticos mostram apenas duas estratégias de indeterminação


para o sujeito, de fato, não estranhas aos usos dos brasileiros (Cf. PINA, 2009); contudo, a
crítica a essa abordagem se deve ao fato de apresentar apenas essas estratégias de
ocorrência do fenômeno, quando há outras.
Ora, a língua se modifica ao longo dos tempos, por isso as mudanças linguísticas
se fazem presente em nosso meio em decorrência da variação, que inicialmente acontece
na fala e faz com que a escrita se altere diacronicamente. Na era do Brasil colônia, por
exemplo, a indeterminação do sujeito acontecia por meio de uma estratégia pronominal,
em que se utilizava o vocábulo homem – então considerado pronome (hoje, um nome),
para ausentar o sujeito na frase.
Essa estratégia era utilizada também na língua românica do Baixo Império e do
português arcaico até o século XVI, período em que esse vocábulo passa a ter o valor de
substantivo, como conhecemos hoje:

[...] uma das formas de indeterminar o agente de um verbo era dar por sujeito a
esse verbo o substantivo homo, em Latim, homem, em Português, on, em Frances,
entre outros. Segundo o autor, “taes substantivos assumem neste caso verdadeiro
caracter pronominal, e equivalem exactamente ao man allemao”. Acrescenta ainda
que o francês e a única língua românica que mantem no período atual este modo
de expressão. (SAID ALI apud PONTES, 2008, p.21)

A estratégia do período colonial apresentada por Pontes na citação acima, se


constituía como uma das maneiras tradicionais de indeterminar o sujeito, porém, assim
como acontece nos dias atuais, naquela época, havia as inovações, e esse fenômeno
acontecia principalmente em cartas na “1a metade do século XVIII, 2a metade do século
XVIII, e a 1a metade do século XIX (1801 – 1822)”. (RUMEU, FRANCO, p.2)
Percebe-se então que a variação em relação ao sujeito indeterminado não é uma
inovação da contemporaneidade, mas sim um fato decorrente desde quando o homem tem
noção desse fenômeno. Por isso, as regras prescritas nas gramáticas tradicionais estão
ultrapassadas, por não incluir as demais maneiras de indeterminar o sujeito, presentes em
nossa sociedade.

196
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Como enfatizam Santos e Moura (2009, p.14) “A sociedade possui interfaces e


suas características refletem-se na comunicação e, consequentemente, na língua.” Não há
como conservar estratégias criadas desde muito tempo, mas perceber que o uso variável
de sujeito indeterminado se alterou ao longo dos tempos porque a língua varia de acordo
com as necessidades de sua época. Assim, desde o período colonial, muitas maneiras de
indeterminar o sujeito foram incorporadas à língua, chegando, consequentemente, aos
textos escritos, pois como sabemos, a variação primeiro acontece na fala, e por uma
exigência do falante, ela é veiculada à escrita.
No vernáculo brasileiro, há duas formas de indeterminação do sujeito. Determinada
pela estrutura frásica, a indeterminação sintática é, em parte, explicada pela Tradição
Gramatical, acontecendo com o verbo na P6 ou com o verbo intransitivo ou transitivo
indireto na P3 seguido de SE. Por sua vez, determinada pelo sentido do enunciado, a
indeterminação semântica não é objeto da Tradição Gramatical por decorrer da
emergência de novas estratégias de indeterminação do sujeito: o uso de pronomes
indefinidos – todo(a)s, tudo, algum(a)(s), algo, quem, nenhum(a)(s), nada, ninguém,
pouco(a)(s), muito (a)(s) –, ou pronomes pessoais – ele(a)(s), nós, a gente, você(s) – a
generalização do clítico se como indeterminador; o uso de sintagmas nominais genéricos 34
(doravante, SN):

[...] as gramáticas tradicionais não abarcam uma vasta gama de estratégias de


indeterminação do sujeito empregadas tanto na modalidade escrita como na
modalidade oral do Português Brasileiro: nós, a gente, você, eles, etc.[...]. (PINA,
2009, p.16 – grifos autorais)

A indeterminação é um traço semântico, que recorre a elementos morfossintáticos


para obter efeitos pragmáticos de não explicitação do agente. Ao lado de diversas
outras formas – se, eles, a gente, verbo na não-pessoa do singular e do plural etc. –
,você é a forma mais empregada nesse caso.(BAGNO, 2011, p.749)

Essas inovações apresentadas acontecem em decorrência das mudanças da


língua; por isso, ao escrever suas obras, o escritor segue as normas linguísticas do
período em que estão inseridos. Graças a isso, a linguagem literária nos apresentam os
diferentes estilos e linguagem condizentes ao contexto que o escritor se encontra.
Variantes como o se, ele e nós, que não eram consideradas como
indeterminadoras do sujeito, hoje ganham respaldo nos estudos linguísticos, por nos
mostrar a multiplicidade dessa língua que é dinâmica e flexível. Principalmente a

34
A faixa etária e o grau de monitoramento da fala condicionam a indeterminação com SN genérico, pois expressões
como “o maluco” e “o cara” são usos informais, mais presentes na fala dos jovens.

197
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

indeterminação com a partícula se, constante alvo de muitos estudos e crítica, por ter-se
tornado indeterminadora de sujeito ou um reflexivo: “De que forma um elemento indicador
de reciprocidade pode ter se transformado em elemento indicador de indeterminação do
agente? Foi um processo de gramaticalização bastante radical, pois o se-objeto direto se
tornou se-sujeito” (BAGNO, 2012, p.804 – grifos autorais), fato esse despercebido pelas
gramáticas normativas:

Os gramáticos, preocupados em descrever a língua portuguesa padrão, não


inserem no tema indeterminação do sujeito diversas estratégias encontradas por
estudiosos da língua (principalmente as encontradas em amostras de fala). Mas por
que não enfocar essas estratégias se elas também são utilizadas por falantes cultos
da língua portuguesa? Será que o uso real da língua realizado por falantes cultos
não merece destaque nas gramaticas? O fato é que as gramáticas ainda não
retratam todas as estratégias de indeterminação que aparecem nos estudos sobre
o tema. (PONTES, 2008, p.35)

Assim, as gramáticas estão aquém das inovações e não mencionam as novas estratégias
nem os diferentes graus de indeterminação, o total e o parcial, mesmo quando elas são
utilizadas por falantes cultos.
Por outro lado, os estudos sociolinguísticos acerca deste fenômeno demonstram
haver vários graus de indeterminação do sujeito, fato sequer mencionado pela Gramática
Tradicional. Assim, há indeterminação total e parcial. Na total, o contexto nada informa
sobre o sujeito, enquanto na parcial, o contexto recupera, em parte, o sujeito; podendo
haver parcial com elo de referência explícito – quando é possível a interpretação – ou com
elo de referência implícito – quando a interpretação se torna possível considerando o
contexto por meio de inferência.
Da coleta de dados nas obras mencionadas, chegamos ao quadro abaixo:

Quadro 1: Ocorrências das variantes de indeterminação do sujeito por obra

VARIANTES PADRÃO VARIANTES NÃO PADRÃO


OBRA verbo VI (P3) + se a gente você alguém ninguém todos quem todo mundo VTD (P3) + TOTAL
(P6) se
PC 28 26 22 3 0 2 1 0 0 3 85
QBD 34 17 13 0 2 0 0 0 0 21 87
BG 4 1 0 0 0 2 5 3 0 3 18
MP 4 3 0 0 0 0 1 0 0 6 14
MPDF 15 1 1 0 0 2 0 3 2 5 29
MTR 1 0 0 0 0 1 0 2 0 2 6
TOTAL 86 48 36 3 2 7 7 8 2 40 239

Uma leitura do quadro mostra o equilíbrio entre os usos conservadores e


inovadores nos gêneros estudados: o romance apresenta 54 ocorrências padrão contra 31
não padrão, enquanto a novela, 51 ocorrências padrão contra 36 não padrão, o conto, 24

198
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ocorrências padrão contra 25 não padrão. Apenas no conto infantil os números são um
pouco mais díspares: apenas 5 ocorrências padrão contra 13 não padrão.
Ademais, percebemos que, além das estratégias padrão (134 ocorrências,
exemplos a e b), não estranhas ao vernáculo brasileiro, as obras amadianas estudadas
também apresentam variantes não padrão (105 ocorrências, exemplos de c a f): o uso de
formas pronominais e a generalização do SE como indeterminador de sujeito:

a) “[...] a paz dos que não pensam nem se esforçam por pensar.” (PC, p.28)
b) “[...] o mesmo pode-se afirmar da voz embargada e do posso vacilante”. (QBD,
p.40)
c) “A gente deve satisfazer sempre os nossos instintos”. (PC,p.65)
d) “Você vê toda a confusão moderna”. (PC, p.60)
e) “Alguém se apressava a explicar”. (QBD,p.42).
f) “Também, ninguém mais se lembrou dele”. (PC, p.30);
g) “Ninguém quer deixar a vida... todos se agarram a ela ferozmente”. (PC, p.85).
h) “Deve-se dizer, a bem da verdade, que não estavam eles ainda bêbedos”. (QBD,
p.40)

Os exemplos de c a g são mostram uma indeterminação parcial, segundo a


sociolinguística, pois o contexto da frase possibilita a interpretação, ainda que não se saiba
exatamente a quem o discurso se refere.
Essas inovações se fazem presentes no vernáculo brasileiro e, por isso, não há
como negá-las. Embora ainda ausentes dos ambientes escolares, temos que divulga-las
de modo que o alunado e os demais usuários da língua vejam seus usos validados não só
pela escola como exemplificados na grande literatura.
O último exemplo aponta para a generalização da partícula SE em função
indeterminadora do sujeito, dado relevante no contexto das normas vernáculas do
português brasileiro e seu ensino e no desta pesquisa, pois aponta para nosso segundo
objeto: a construção passiva.

Variação e mudança da construção passiva no português brasileiro e seu registro no


romance amadiano

Diferente da construção ativa – que destaca o sujeito da ação verbal –, a passiva


destaca a ação em si, só ocorrendo com verbos transitivos diretos.
Conforme a Tradição Gramatical, há dois tipos de construção passiva: a analítica
(a única presente no vernáculo brasileiro, acrescentamos) e sua equivalente sintética ou
pronominal (hoje, só existente nos compêndios gramaticais e materiais didáticos). Ainda

199
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

conforme essa doutrina, a passiva analítica se forma por uma série de transformações da
construção ativa:
a) o SN objeto passa a figurar como SN sujeito marcado semanticamente pela
passividade da ação;
b) o SN sujeito torna-se SP facultativos, semanticamente marcados pela ação
(nomenclatura tradicional); e
c) o predicador assume forma participial transposta por SER

Ex.: O Presidente vetou o Projeto de Lei. (construção ativa)


SN sujeito predicador SN objeto

O Projeto de Lei foi vetado [pelo Presidente]. (passiva analítica)
SN sujeito passivo transpositor + [SPC agente, facultativo]
predicador

Por sua vez, a passiva pronominal ou sintética se formaria com o verbo predicador (na P3
ou P6) seguido do SE (partícula apassivadora, substituta do transpositor SER) e do SN
sujeito passivo:

O Projeto de Lei foi vetado. ⇔ Vetou-se o Projeto de Lei.


SN sujeito passivo transpositor + predicador + SE SN sujeito passivo
predicador

Contudo, os estudos sociolinguísticos mostram que no vernáculo brasileiro:


a) houve uma reanálise 35 da construção VTD + SE, de forma que o que a
gramática tradicional insiste em classificar como sujeito paciente, a gramática intuitiva do
brasileiro interpreta como objeto;
b) o se é interpretado como um indeterminador do sujeito, função que, aliás, já
cumpre, com verbos de outras predicações;
c) assim, não se pode falar em equivalência entre a construção analítica e a
alegada sintética porque em ambas o falante pretende dizer coisas distintas.
Logo:

[...] uma vez que não existe voz passiva pronominal (ou sintética) no PB, a
classificação de “partícula apassivadora” é inteiramente descabida, tanto quanto a
prescrição de fazer uma concordância entre verbo e objeto direto (“aqui se tiram

35
Uma observação: a reanálise sintática referida parece não ser fato exclusivo do PB, haja vista poder ser verificada não só em frases
de jornais portugueses atuais, mas também nesta citação d’Os Lusíadas, canto III, 103, (pasmem!): lvii) “E como por toda a África se
soa, | lhe diz, os grandes feitos que fizeram...”.

200
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fotocópias”), incompatível com a gramatica da nossa língua. (BAGNO, 2013, p.238


– grifos autorais)

A essa explicação sintática, pode-se juntar uma de natureza sintático-semântica.


As gramáticas escolares reconhecem a ordem SVO como preferencial em português.
Assim, em tese não haveria problema em colocar nessa ordem frase como “Nesta padaria,
se comem uns docinhos ótimos”. Segundo a interpretação normativa, “uns docinhos
ótimos” é sujeito; então, teríamos “Nesta padaria, uns docinhos ótimos comem-se”, ou
seja, devoram-se uns aos outros? Nossa!! Que meda!! Surrealista, não? Como se vê, a
interpretação normativa contraria a estrutura semântica da língua.
Por fim, um argumento pragmático. Não se pode falar em equivalência entre a
construção analítica e a alegada sintética porque em ambas o falante pretende coisas
distintas. Há situações em que uma construção não pode substituir a outra porque foge à
intenção original do falante:

Aluga-se esta casa e esta casa é alugada exprimem dois pensamentos, diferentes
na forma e no sentido. Há um meio muito simples de se verificar isto. Coloque-se
na frente de um prédio um escrito com a primeira das frases, na frente de outro
ponha-se o escrito contendo os dizeres esta casa é alugada. Os pretendente sem
dúvida encaminham-se unicamente para uma das casas, convencidos de que a
outra já está tomada. O anúncio desta parecerá supérfluo, interessando somente
aos supostos moradores, que talvez queiram significar não serem eles os
proprietários. Se o dono do prédio completar, no sentido hipergramatical, a sua
tabuleta deste modo: esta casa é alugada por alguém, não se perceberá a
necessidade da declaração e os transeuntes desconfiarão da sanidade mental de
quem tal escrito expõe ao público. (ALI, apud BAGNO, 1998, p.136 – grifos do
autor)

Em suma, temos que: com verbos predicadores seguidos de SN, o pronome SE


não tem função apassivadora, mas indeterminadora do sujeito da oração e, devido a isso,
o verbo vem na P3; consequentemente, colocado no plural, o verbo deixa a frase
incoerente, ilógica; frases desse tipo não estão na voz passiva, mas na ativa, porque a
intenção do sujeito é enfatizar a ação praticada por um sujeito indeterminado.
Por hora, finalizamos a discussão sobre a alegada passiva sintética das
gramáticas tradicionais com uma passagem muito bem humorada de Bagno:

Parece incrível que, depois de tanto tempo em vigor na língua falada no Brasil,
esta regra de uso do pronome SE ainda seja rejeitada pelos gramáticos
prescritivistas. Eles continuam agindo como o professor Aldrovando Cantagalo, do
conto “O colocador de pronomes” de Monteiro Lobato publicado em 1924. Ao ver
uma placa com os dizeres “Ferra-se cavalos”, o histérico gramático tentou explicar
ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural porque o “sujeito” da frase era
“cavalos”. E foi obrigado a receber esta aula perfeita de sintaxe brasileira:
— V. Sª. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele
SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado.

201
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Alguém já viu um cavalo pôr ferradura em si mesmo? talvez o professor Aldrovando


Cantagalo em seus delírios normativistas, que ainda acometem muita gente hoje em dia!
(BAGNO, 1999, p. 104)

Da coleta de dados nas obras mencionadas, chegamos ao quadro abaixo:

Quadro 2: Ocorrências da construção VTD + SE por obra

USOS
OBRA conservador inovador TOTAL
(passiva sintética) (sujeito indeterminado)
QBD 6 4 10
DFDM 297 386 683
BG 0 3 3
MP 1 6 7
MPDD 0 5 5
MTR 0 2 2
TOTAL 304 406 710

Esses dados revelam uma maior incidência de usos inovadores (algo em torno de
57%) em relação aos conservadores (aproximadamente 43% – exemplos entre a e c) tanto
no geral, quanto, especificamente em relação ao romance, gênero narrativo mais longo,
fonte da maioria plena dos dados coligidos (pouco mais de 97%):

a) Os poetas declamavam, trocavam frases de espirito, epigramas, cruzavam-se


trocadilhos. (DFDM, p.48)
b) Em compensação, desenvolvera-se a escola de culinária. (DFDM, p.128)
c) Buscam-se Novos Talentos. (DFDM, p.264)
d) Nos meios literários de Salvador, no entanto, elevou-se a interrogação e em
torno dela nasceu a polêmica [...]. (DFDM, p. 45 – indeterminação parcial)
e) [...] quando se narra a história de dona Flor e de seus dois maridos. (DFDM, p.46
– indeterminação total)
f) Mistério ou batota, milagre ou trapaça nunca se tivera notícia do azar tão
grande[...]. (DFDM, p. 498 – indeterminação total)
g) Via-se então uma aurora de cometas nascer sobre os prostíbulos e cada mulher-
dama ganhou marido e filhos. (DFDM, p.532 – indeterminação total)

No conto, só há uma única ocorrência conservadora (exemplo a):

a) [...] viram-se os pássaros, dezenas e dezenas. (MP, p.39)


b) Na hora agá, o que se via? Via-se a bola encaixada nas mãos de Pega-Tudo?
(BG, p.16 – indeterminação parcial)
c) “Colocou-se a bola Fura-Redes na marca do pênalti, um silêncio enorme cobriu o
estádio” (BG, p.26 – indeterminação parcial)
d) [...] diga-se a verdade. (MP, p.10 – indeterminação total)
e) [...] acrescente-se que o lar de Ubaldo com a bela Romilda encontra-se na
cidade de Lagarto. MP, p.22 – indeterminação total)
f) Pode-se somar a essas razões de orgulho o fato da cidade [...]. (MP, p.24 –
indeterminação parcial)
g) Nunca se soube por que Lindolfo Ezequiel arrepiou caminho. (MP, p.31 –
indeterminação total)
h) [...] da boca de Gringo nada de certo se sabia. (MPDD, p.8 – indeterminação
parcial)
i) [...] nada a comparar-se com as festas de São João. (MPDD, p.12-13 –
indeterminação total)
j) [...] ganhou a surra do velho Batista e, quando o caso se soube, o nome de Maria
do Véu. (MPDD, p. 34 – indeterminação total)

202
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k) [...] vestido igual nunca se vira. (MPDD, p. 34 – indeterminação total)


l) Num instante, se juntou dinheiro para comprar flores. (MPDD, p.41 –
indeterminação parcial)
m) O argentino, diga-se em sua honra [...]. (MTR, p.24 – indeterminação total)
n) [...] a fornicação [...] deve ser amiudadamente praticada para não se perder o
hábito, a técnica e o rebolado. (MTR, p.37 – indeterminação total)

Na novela, a situação se inverte, predominando (60%) usos conservadores (exemplos de a


até e).

a) Calaram-se as bocas. (QBD, p.57)


b) [...] com alegria ao iniciar-se e filosofia ao encerrar-se. (QBD, p. 60)
c) Cumpriram-se os ritos de gentileza do povo da Bahia. (QBD, p.57)
d) O feirante malicioso viu confirmarem-se suas piores suspeitas. (QBD, p. 60)
e) [...] quando as luzes se acendiam na cidade. (QBD, p.53)
f) [...] memória de morto, como se sabe, é coisa sagrada. (QBD, p.17 –
indeterminação total)
g) [...] onde quer que se bebesse cachaça. (QBD, p.50 – indeterminação parcial)

Esses exemplos demonstram como Jorge Amado se utilizava, conscientemente,


de construções consagradas no vernáculo brasileiro (sobretudo a generalização da função
indeterminadora da partícula SE), promovendo a atualização da escrita literária brasileira,
aproximando-a da gramática intuitiva do público leitor.

As regras variáveis de concordância

Podemos conceituar a concordância como o mecanismo de ajuste de um elemento


regido ao seu regente. Ela pode se dar entre o núcleo e os demais elementos de um SN
(concordância nominal) ou entre o SN sujeito e o verbo (concordância verbal). Carone
(1997, p.100) esclarece-lhe a natureza, afirmando:

É um fenômeno que ocorre no corpo das palavras que se flexionam; logo, é um fato
morfológico. Mas só ocorre entre palavras que contraem entre si uma função
quando se relacionam sintaticamente; logo, é um fato sintático. Podemos concluir
que a concordância é a manifestação mórfica de uma relação sintática.

No caso da concordância nominal, embora a norma-padrão determine a


concordância de adjetivos:
“[...] ele ama o povo porque vê a humanidade como uma só, porque está
persuadido de que cada individuo leva em si toda a humanidade e por isso o homem em
sua essência é livre.” (TAVARES, 1980, p.183)a) com os núcleos de SN coordenados,
redundando o uso do plural e, se for de diferentes gêneros, da forma masculina; ou
b) com o núcleo de SN mais próximo;

203
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essas regras não são categóricas, mas variáveis e dependentes de uma série de fatores
linguísticos e sociais, para os quais a tradição gramatical silencia; contudo,

Nas mais recentes pesquisas, a perda da morfologia flexional e das regras de


concordância nominal vem sendo interpretada como decorrente de um processo de
transmissão linguística irregular [...] desencadeado pelo contato do português com
as diversas línguas africanas e indígenas que coexistiram no país a partir da fase
de seu povoamento (BRANDÃO, 2009, p. 59)

ou, ainda, como fruto do “desenvolvimento de tendências existentes na deriva da língua de


Portugal” (BRANDÃO, 2009, p. 59).
Entre os fatores sociais condicionantes da variação da concordância nominal no
vernáculo brasileiro, as pesquisas sociolinguísticas destacam o nível de escolaridade do
falante, fator intimamente ligado a seu status social. Já entre os fatores sistêmicos,
destacam:
a) a classe da palavra e sua posição linear no sintagma;
b) a saliência fônica, a maior ou menor identidade entre as formas singular e plural;
ela determina um princípio pelo qual as formas menos marcadas (as dotadas de única
marca de plural, o morfema -s) seriam mais suscetíveis a apagar esse morfema:

Esquema: Continuum da saliência fônica dos nomes

– saliente + saliente

filho(s) freguês(es) mulher(es) pão/pães casal/ casais avô/ avós


homem(s) anão/anões jornalzinho/ jornaizinhos
____________________________________________________________________________________
nomes em: nomes com
vogal -s -r -ão -l plural duplo

c) o paralelismo formal, princípio pelo qual marcas levam a marcas (Todos os


meus alunos leram o livro.) e zeros, a zeros (“Meu padrasto não pagou as conta de luz
atrasada, aí a laite veio e cortô”).
Conjugando esses fatores, é possível dizer que, no vernáculo brasileiro:
1) na fala das classes populares, em geral, com menor índice de escolarização:
a) é altíssima a frequência de apagamento da marca pluralizante no núcleo do SN
em contraste com a registrada nos determinantes e quantificadores (à esquerda do núcleo)
e nos modificadores (à direita);
b) em SN com apenas dois elementos, ora todos os flexionáveis apresentam a
marca (ex. i), ora apenas o primeiro deles (ex. ii), ressaltando-se que, quando em posição
pré-nuclear há um numeral, é praticamente categórica a anulação da marca de número no
nome (ex. iii):

i) As escamas são tipo uma prata.


ii) A gente pesca em outras lagoa.

204
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

iii) Ele tem três barco.

c) em SN com mais de dois elementos:


• no núcleo (nome), a marca pluralizante ora pode ser implementada (exs. iv, vii),
ora cancelada (exs. v, vii, vii);
• em posição pré-nuclear 1, um único constituinte flexionável sempre recebe a
marca (exs. iv, v, vii)
• havendo dois constituintes pré-nucleares, o primeiro sempre recebe a marca, o
segundo, às vezes sim (ex. vi), outras, não (ex. viii);
• elementos pós-nucleares geralmente não recebem marca de plural, embora haja
registros mínimos em sentido contrário (ex. iv):

iv) As espinhas miúdas.


v) Uns barco novo.
vi) Esses três tipo.
vii) Umas nuvens cinzenta.
viii) As própria rede.

Como, nas classes sociais mais escolarizadas, os constituintes pré-nucleares


tendem a ser marcados, enquanto o núcleo e os elementos a ele posteriores, não, por
vezes de forma categórica ou independente de haver marcas formais ou semânticas
anteriores, pode-se concluir que, no PB, a tendência é atribuir a marca pluralizante aos
elementos mais à esquerda do SN. Isto é interessante, porque

Tradicionalmente, costuma-se dizer que, na chamada variedade popular, o


mecanismo da concordância é simplificado, econômico, pois se trata de eliminar
marcas desnecessárias por serem redundantes. No entanto, do ponto de vista
cognitivo, se poderia dizer que é um processo mais complexo do que aquele
utilizado pelos falantes cultos, que tendem a aplicar todas as marcas nos
constituintes flexionáveis do SN. Para estes últimos, basta ter a noção do conjunto
– o SN como um todo – para acrescentar, mecanicamente, a cada constituinte
flexionável a marca de plural. Para os demais falantes, a operação é mais
complexa: têm não só de ter a noção do conjunto, mas também de nele depreender
dois subconjuntos: o que se encontra à esquerda do núcleo e o que nele se inicia.
No primeiro, normalmente aplicará as marcas; no último, poderá deixar de aplicá-
las. (BRANDÃO, 2009, p. 70)

Ainda segundo essa estudiosa,

O padrão de marcação de pluralidade predominantemente à esquerda, embora


prevaleça na fala da maioria da população (o que o reforça e dissemina), é um
traço considerado estigmatizante pela minoria de falantes que dita as normas
sociais e políticas, dentre as quais as linguísticas, constituindo, por esse motivo, um
dos aspectos mais delicados do ensino de língua materna e, consequentemente,
um de mais fortes reflexos sociais. Nessa perspectiva, no Brasil, o ensino da
chamada norma culta de concordância nominal (e mesmo verbal) requer métodos

205
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muito próximos aos utilizados no ensino de uma língua estrangeira. (BRANDÃO,


2009, p.76-7)

Para Perini (2010), essas são regras do português brasileiro, seguidas por
praticamente todos os falantes, de todas as classes sociais e de todas as regiões, em
situação distensa e íntima de interação linguística. Além disso, o caráter morfológico desse
fenômeno: não se trata de simples omissão do -S final, que permanece em palavras se
não é marca de plural: atrás, nós, Luís, formas, etc.
Coligidos os dados relativos à marcação de plural no interior do SN em dois
romances, na novela e nos contos, chegamos ao seguinte quadro:
Quadro 3: A marcação de plural no interior do SN por obra estudada

USOS NÃO PADRÃO


USO
OBRAS Posição 1 Posição 2 TOTAL
PADRÃO
art. demonst. qtf. nome
GCC 1.403 5 1 0 1 1.410
Suor 110 1 0 0 2 113
QBD 361 0 0 0 0 361
BG 73 0 0 0 0 73
MP 94 0 0 0 0 94
MPDF 84 0 0 0 0 84
MTR 115 0 0 0 0 115
TOTAL 2240 6 1 0 3 2250

, cujos dados demonstram o predomínio de usos conservadores:

[...] aqueles brotos apenas nascidos dos cocos [...] (GCC, p. 28)
As marinetes novinhas ficaram [...] (GCC, p.31)
[...] os passageiros eram todos convidados. (GCC, p.31-32)
— Pudera! Pra dar comida ao malandro do filho... Um homem daqueles, de
dezenove anos, gordo como um burro... Um faz nada... Passa o dia todo socado
com as raparigas do Tabuão ou então matando bicho. Só vem em casa comer e
buscar dinheiro. (“Suor”, p. 231)
[...] dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores [...]
(QBD, p.15)
[...] a Redondinha vinha, redondinha, acolher-se nos braços de Bilô-Bilô,
aconchegar-se em seu peito. (BG, p.17)
Movimentaram-se os goleiros do Brasil. (BG, p.21)
As dragonas ele as conquistou mandando gente para o cemitério (MP, p.10)
[...] tocar-lhe os peitos, alisar-lhe as coxas (MP, p.21)
[...] deixando-o com seis meses [...] (MP, p.21)
Estava chovendo, uma dessas chuvinhas cabronas que molham mais do que água
benta. (MPDF, p.14)
[...] pelas mais velhas, que a tratavam como filha (MPDF, p.24)
[...] os rapazes do DOPS que vos arrancarão os escrotos e as confissões [...] (MTR,
p.42-3)
[...] o grau de grão-mestre fora-lhe outorgada por oitocentas e duas sociedades
secretas. (MTR, p.49)
Respondeu-me a voz solene dos séculos. (MTR, p.50)

, o que já se esperava porque, como dissemos, é esse fenômeno linguístico um dos mais
socialmente estigmatizados e boa parte dos dados provêm de narrativas longas, em que
predomina a fala do narrador, entidade ficcional que oculta o autor.
Contudo, os parquíssimos exemplos de uso não padrão corroboram, por um
lado, a descrição do vernáculo brasileiro – pois a marca de plural, em geral, aparece no

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primeiro elemento do SN – e, por outro, um dos pressupostos desta pesquisa – as


ocorrências não padrão se situariam em sequencias textuais que trouxessem, no
discurso direto, a fala de personagens de classes populares:

— Nas Alemanha eles comem ninho de passarinhos. (“Suor”, p. 312).


— [...] umas luz igual a essas. (GCC, p. 72).
— Tu não quer ir comigo pras mata? [...] (GCC, p.77)

Com isso, percebemos que, embora privilegiando o padrão normativo da


concordância nominal, não deixou Jorge Amado de registrar dados de variação linguística
semelhantes aos encontrados na fala popular, o que nos leva a refletir como trabalhar essa
diversa pluralidade no contexto da Educação Básica. Nesse sentido, Brandão (2009) nos
recomenda alguns procedimentos:
a) chamar a atenção do aluno para o fato de haver, em português, pelo menos dois
padrões básicos e opostos de aplicação da categoria de número plural no âmbito do SN:
• um, redundante, em que se usa a marca (o morfema -S) em todos os
constituintes flexionáveis do SN;
• outro, simplificado, em que se utiliza a marca no primeiro constituinte, ou nos
constituintes pré-nucleares, não se esquecendo, no entanto, de apontar os padrões
intermediários [...];
b) enfatizar que todos esses padrões são funcionais, [...] e, por isso, são
igualmente validos;
c) delimitar as situações de uso de cada padrão, discutindo, inclusive, com a turma
suas implicações sócio-comunicativas;
d) focalizar o tema em consonância com o estudo do mecanismo de flexão ou
utilizando exemplificações/ exercícios que ajudem a fixar formas de plural que, por conta
de determinados processos fonético-fonológicos, apresentem maior ou menor grau de
saliência fônica;
e) levar o aluno a selecionar SNs de textos orais/ escritos tipologicamente
diversos, mas, a princípio, próximos de sua realidade social, de modo que ele identifique
os mecanismos predominantes nas diferentes variedades e modalidades da língua e,
assim, introjete a noção de norma e, sobretudo, a de pluralidade de normas;
f) desenvolver no aluno gosto pela prática de leitura, incentivando-o a ler jornais,
revistas e obras literárias as mais diversificadas, o melhor caminho para a aquisição e
fixação de normas que não fazem parte de sua variedade de base. (BRANDÃO, 2009, p.
80-1)
Por sua vez, a concordância verbal é tradicionalmente definida como:

A concordância é o mecanismo através do qual as palavras alteram suas


terminações para se adequarem harmonicamente uma as outras, ou seja, uma
palavra secundária (verbo ou adjetivo) concorda com a palavra principal
(substantivo ou sujeito). (TERRA; NICOLA, 2008, p. 247).
A concordância em geral é um mecanismo sintático que expressa a associação de
elementos da frase. Ela pode ser nominal – concordância do adjetivo com o
substantivo –, ou verbal – concordância do verbo com o sujeito. Este fenômeno
linguístico, entre os de caráter sintático, é dos mais importantes. (BACCEGA, 2001,
p. 5).
Diz-se concordância verbal a que se verifica em número e pessoa entre o sujeito (e
às vezes o predicativo) e o verbo da oração. (BECHARA, 1986, p. 285).
A relação íntima entre o sujeito e o verbo determina que este se acomode ao
número (singular ou plural) e à pessoa (1ª, 2ª ou 3ª) daquele. Dizemos, por isso,
que o verbo concorda com o sujeito em número e pessoa. A nossa língua é muito

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rica no tocante à concordância do verbo com o sujeito, a que chamamos também


de concordância verbal. (BECHARA, 2005, p. 42).
A solidariedade entre o verbo e o sujeito, que ele faz viver no tempo, exterioriza-se
na CONCORDÂNCIA, isto é, na variedade do verbo para conformar-se ao número
e à pessoa do sujeito. [...] Evita a repetição do sujeito, que pode ser indicada pela
flexão verbal a ele ajustada. (CUNHA, 2001, p. 496).

A concordância verbal é antes um meio de exprimir a coesão textual que uma


relação de subordinação entre o verbo e o sujeito, como pretendem algumas exposições
normativas, segundo as quais:
1) com sujeito simples, o verbo o segue número e pessoa (exs. ix e x);
2) em construções de sujeitos com mais de um núcleo, o verbo vai para a
a) a P4, se houver um núcleo de 1ª pessoa (ex. xi);
b) a P5, se houver um núcleo de 2ª pessoa sem um de 1ª;
c) a P6, se os núcleos forem de P3 (ex. xi).

ix) Os garotos saíram de casa para o jogo com algum tempo de folga.
x) O ônibus demorou a chegar; por isso, se atrasaram.
xi) Ela e eu já estávamos quase chegando ao estádio quando João e César
ligaram.

De um modo geral, as gramáticas escolares e livros didáticos de português


(doravante, LDP) apresentam diversas outras normas como exceções ao padrão geral
acima descrito; são casos de expressões partitivas ou de quantidades aproximadas; dos
relativos “que” e “quem”; dos interrogativos; dos conectores “ou”, “nem”, “com”; da
expressão “um e outro”; e das orações com o verbo ser:

Descritos de forma particularizada nas gramáticas, tais casos demonstram, por um


lado, a inconsistência do tratamento tradicional que, pouco criteriosamente,
privilegia ora aspectos sintáticos ou morfológicos, ora semânticos, e chega a admitir
que o verbo concorde com outros termos da oração que não o sujeito. Por outro
lado, tais casos denotam a expressiva variabilidade que envolve a concordância
verbal, legitimada pelas gramáticas normativas, embora de forma não explícita.
(VIEIRA, 2009, p. 86)

Para Perini (2001), a concordância verbal tem o papel de atribuir funções sintáticas
aos SN oracionais, sendo o grande traço organizador da frase. Atuando como um sistema
de filtros independentemente motivados, a concordância verbal suprimiria certas estruturas
com má formação de algum tipo. Nessa perspectiva, os “erros de concordância” não
decorrem diretamente “do mecanismo de concordância, mas de outros fatores gramaticais
– em outras palavras, o ‘erro de concordância’ em si não existe. Trata-se antes da violação
de certos filtros e restrições independentes do mecanismo de concordância”. (PERINI,
2001, p. 189).
Essas restrições são duas: primeiramente, a estrutura oracional precisa respeitar
as condições de transitividade do verbo que a ocupa; além disso, os pronomes pessoais
têm formas especializadas para a função de objeto direto:

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Vamos tomar como exemplo os verbos quebrar, matar e comer, cujo


comportamento semântico é parcialmente diferente. Tentaremos construir um
mecanismo capaz de interpretar semanticamente as diferentes funções sintáticas
nas construções em que entram esse três verbos. As conclusões devem valer
igualmente para outros verbos. [...]
Os três verbos que estamos examinando têm traços semânticos distintos. Esses
traços são responsáveis por diferenças de aceitabilidade de muitas frases que, em
termos de sintaxe, parecem inteiramente paralelas. [...] Acontece que existem
regras que estabelecem esse tipo de relação: são chamadas regras de
interpretação semântica, ou mais simplesmente regras semânticas. (PERINI, 2001,
p. 261 e 265).

Por sua vez, Bagno (2007) tenta explicar a variação da aplicação da regra de
concordância no português brasileiro pelo princípio do cancelamento da marca de
redundância, também evocado para a concordância nominal, e pela distância entre o
núcleo do SN sujeito e o verbo; em seguida, informa que:

Aqui nem se fala propriamente de fenômenos novos, de efeitos da mudança


linguística sobre a gramática porque a leitura atenta de textos arcaicos, medievais,
clássicos e modernos tem revelado que desde sempre estiveram em ação em
nossa língua regras complexas de concordância que só parcialmente foram
contempladas pela tradição gramatical. (BAGNO, 2007, p. 223-4)

Segundo Vieira (2009, p. 85),

A não-realização da regra de concordância verbal, no português do Brasil, constitui,


sem dúvida, um traço de diferenciação social, de cunho estigmatizante, que se
revela, com mais nitidez, no âmbito escolar. O forte contraste entre o uso ou não do
mecanismo de concordância e as políticas de ensino, espelhadas em práticas
didático-pedagógicas fundamentadas em gramáticas que pressupõem uma norma
única indicam a necessidade de se conhecerem as regras em uso pelas diversas
comunidades de falantes.
Assim sendo, o primeiro passo para o estabelecimento de uma metodologia
adequada ao ensino de concordância é o conhecimento real dos fatores que
presidem à opção do falante pela aplicação ou não da regra, visto que a presença
da marca de número na forma verbal não é categórica em nenhuma variedade do
português brasileiro.

Entre os fatores sociais determinantes da variável concordância verbal no


português brasileiro, as pesquisas sociolinguísticas costumam apontar a faixa etária e o
grau de escolaridade. Segundo Vieira (2009, p. 91),

Em linhas gerais, a tendência à não-concordância intensifica-se à proporção que


aumenta a idade dos informantes, ou seja, quanto mais velho o informante, maior a
falta de concordância. Os menores índices de cancelamento na fala dos individuos
mais jovens se devem, certamente, a um complexo de fatores que abrange todas
as injunções sócio-comportamentais que envolvem esses indivíduos, como, por
exemplo, o contato com o turismo e o acesso a meios culturais.

Já entre os fatores estruturais, as pesquisas costumam apontar:

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1) a posição do sujeito em relação ao verbo: sujeitos pospostos favorecem a não-


aplicação da regra. No vernáculo brasileiro, língua cada vez mais próxima do padrão não
pro-drop, segundo a terminologia gerativa, entende-se o sujeito posposto ao verbo
naturalmente como objeto. Por isso, a incidência da regra de concordância entre o verbo e
esse tipo de sujeito é cada vez mais rara, mesmo entre os usuários da norma culta, a não
ser em situações de extremo monitoramento linguístico. Assim,

Temos [...] um contraste evidente entre duas regras, uma prevista pela norma-
padrão e outra que é ativada pelo uso da língua falada por todos os brasileiros,
inclusive os chamados ‘cultos’:

NORMA-PADRÃO VARIEDADES PRESTIGIADAS


Chegaram os livros. Chegou os livros.

Essa situação cria um problema para o ensino, principalmente porque, quase


sempre, na abordagem do fenômeno da variação linguística, os livros didáticos e
outros materiais só tratam das variantes linguísticas características daquilo que
Lucchesi chama de ‘norma popular’ [...].
Para início de conversa, se é verdade que a regra da não-concordância com o
sujeito posposto (Chegou os livros) ocupa cada vez mais terreno em todos os
estilos da língua falada e avança a grandes passos sobre os estilos monitorados da
língua escrita, também é verdade que a regra prevista na norma-padrão (Chegaram
os livros) ainda permanece viva e forte na consciência de muita gente [...].
(BAGNO, 2007, p. 114-6)

Por outro lado, “das estruturas de sujeito anteposto – em que predomina a


concordância –, destoam aquelas que apresentam sintagmas nominais retomados
pelo pronome relativo que, o qual, por não ser uma forma marcada quanto ao
número, induz também ao cancelamento” (VIEIRA, 2009, p. 90).

2) a distância entre o núcleo do SN sujeito e o verbo: quanto maior a distância,


menor a tendência à concordância;
3) o paralelismo das construções no nível oracional: a menor quantidade de
marcas explícitas de plural no sujeito levaria à ausência de marcas de plural no verbo;
4) a natureza semântica do sujeito: sujeitos de referência animada, em geral,
agentes da ação, favoreceriam mais a concordância que os inanimados;
5) o paralelismo discursivo: a ausência de marcas de plural no primeiro verbo de
uma série discursiva levaria a outras ausências;
6) a saliência fônica: formas verbais mais perceptíveis seriam mais marcadas que
as menos perceptíveis;
7) o tempo verbal e o tipo de estrutura morfossintática.
Além disso, no português contemporâneo, a aplicação da regra de concordância
ou sua ausência se relaciona com outros fenômenos linguísticos, como, por exemplo, uma
série de modificações no sistema de pronomes tradicionalmente chamados de pessoais

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(como se os demais não o fossem), formas flexionáveis nas seis pessoas gramaticais. A
Tradição Gramatical as elenca em cinco séries, cada uma das quais, correspondente a um
caso (função sintática), conforme o quadro abaixo.

Quadro 4: Pronomes pessoais conforme a Tradição Gramatical

O B L I Q U O S
N° Pes. RETOS ÁTONOS TÔNICOS PREPOSICIONADOS POSSESSIVOS
1ª eu me mim comigo meu/minha/s
Singular 2ª tu te ti contigo teu/tua/s
3ª ele/a o/a/se lhe/si consigo seu/sua/dele/a/s
1ª nós nos nos conosco nosso/a/s
Plural 2ª vós vos vos convosco vosso/a/s
3ª eles/as os/as/se lhes/si consigo seu/sua/dele/a/s
sujeito objeto objeto adjunto adverbial de adjunto
direto indireto companhia adnominal
FUNÇÃO SINTÁTICA PREDOMINANTE EXERCIDA PELO PRONOME

Conforme os padrões normativos, os pronomes pessoais retos só podem ser


usados como sujeito, salvo nos casos de sujeito acusativo (mandar, deixar, sentir +
pronome átono + infinitivo) (ex. xii) e orações infinitivas latinas (ex. xii). Considera-se,
portanto, erro o seu uso em outra função sintática. Ocorre que, mesmo entre falantes da
norma culta do português do Brasil, é normal o uso desses pronomes em função distinta
da de sujeito (exs. xiv e xcv).

xii) Ela deixou-se levar pelas palavras do namorado sedutor.


xii) Traga o livro para eu ler.
xiv) Vou trazer ele aqui.
xv) Não vá embora sem eu.

Além disso, muitas gramáticas informam que os pronomes oblíquos podem


substituir elegantemente os possessivos (ex. xvi) e exercer a função de adjunto adverbial
(xvii a xix), registros esses só encontrados, ao menos no Brasil contemporâneo, na escrita
formal de usuários da norma culta ou na língua literária:

xvi) Apertei-lhe a mão longamente, fitando-lhe os olhos.


xvii) Eis o rio onde o amor me nasceu.
xviii) Faço tudo isto por ti.
xix) Vivo apenas para ti.

Em geral, os possessivos são usados entre os identificadores e os nomes (ex. xx),


mas podem-se pospor a eles em referências indefinidas (exs. xxi e xxi) e também indicador
aproximação (ex. xxiii), afeto (ex. xiv) e respeito (ex. xxv):

xx) O seu irmão veio aqui.


xxi) Ele pediu um livro meu emprestado que eu nunca mais vi

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xxii) Filha minha não posa para revistas masculinas!


xiii) Aquele senhor deve ter seus 50 anos.
xiv) Meu caro amigo, se aproxime.
xxv) Minha senhora, eu não quis ofendê-la!

Outra discrepância entre a codificação das gramaticas escolares e a língua viva,


cotidiana, falada por todos, inclusive os utentes da norma culta, é a referente às formas de
P2 em geral. Tanto em território luso quanto em brasileiro, houve um rearranjo no sistema
de pronomes, não acompanhado pela tradição gramática. Assim, praticamente em todo
Brasil – salvo em áreas dialetais até certo ponto bem marcadas – Maranhão, Pará e
Amapá e os Estados sulinos, ainda conservantes, mutatis mutandi, das formas clássicas
(“mas não em 100% dos casos” (BAGNO, 2009, p.207)) –, o “tu” foi substituído pelas
formas “você(s)” nas funções reta e oblíquas não ablativas, embora nestas também se use
as antigas formas de objeto. Em geral, quando ainda utilizado, o “tu” é seguido de um
verbo na P3: cv) Tu vai sair agora?
Além disso, embora ainda registrado, principalmente em elocuções formais, “nós”
vem variando com “a gente”, tendendo a ser substituído, mesmo na norma culta, conforme
demonstram Nunes (1991), Cunha (1996) e Ramos (1997), entre outros.
Por sua vez, as formas oblíquas átonas de P3 masculina e feminina – os
chamados clíticos – tendem a desaparecer nas normas do português do Brasil, inclusive
na culta, sendo substituídas pela tônica (lhe) ou pela átona de P2 (te):

xxvi) a) Vou pegá-lo/a/s em casa


b) Vou te/lhe pegar em casa
c) Vou pegar você(s) em casa.

Resumindo, seria este o sistema de pronomes “pessoais” em uso hoje no Brasil:

Quadro 5: Subsistema de pronomes casuais do português do Brasil

FUNÇÃO SINTÁTICA EXERCIDA PELO PRONOME


N° Pes. sujeito objeto adjunto adverbial de adjunto adnominal
companhia
1ª eu eu/me/mim comigo meu/minha/s
2ª você você/te/lhe com você seu/sua/s; de você
Singular 3ª ele/a ele/a/s; com ele/a dele/a/s
te/se/lhe
1ª nós nos conosco/com nós nosso/a/s
a gente a gente com a gente da gente
Plural 2ª vocês vocês com vocês seu/sua/s; de vocês
3ª ele(a)(s ele(a)s com ele(a)s dele/a/s
)

Com base nesse subsistema reordenado de pronomes, o paradigma de


conjugação verbal ensinado nas gramáticas escolares e livros didáticos não funciona, está

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afastado da realidade dos falantes, mesmo os da norma culta. Na fala coloquial destes
últimos, o paradigma de seis pessoas reduz-se a três ou quatro, a depender o grau de
formalidade da situação comunicativa que determinará a opção do falante pela expressão
da P4 com “nós” ou “a gente”. Na fala popular, o paradigma pleno se reduz para somente
duas pessoas. Comparando-se os três paradigmas, no IdPr, temos:

Quadro 6: A flexão verbal em português padrão, coloquial brasileiro e não-padrão brasileiro

pronomes português padrão vernáculo brasileiro vernáculo brasileiro


(não-estigmatizado) (estigmatizado)
P1 eu canto canto canto
tu cantas canta canta
P2 você – canta canta
P3 ele/a canta canta canta
nós cantamos canta(mos) canta
P4 a gente – canta canta
vós cantais – –
P5 vocês – cantam canta
P6 ele(a)s cantam cantam canta

Assim, consideramos usos inovadores da concordância não só os que


contrariam os usos conservadores, como os relacionados a essas formas pronominais
inovadoras:

A substituição do “tu” e do “vós” pelo “você(s)”, amplamente majoritária no


território brasileiro, e, mais recentemente, a substituição do “nós” pela expressão
nominal “a gente” podem ser considerados os elementos que desestabilizaram o
sistema pronominal na norma culta do PB. (LUCCHESI, 2009, p. 46)

Coligidos os dados relativos à concordância verbal nas obras indicadas, chegamos


ao seguinte quadro:

Quadro 7: A concordância verbal por obra estudada

USO USO NÃO


OBRAS TOTAL
PADRÃO PADRÃO
GCC 1295 4 1301
Suor 852 32 884
TAPC 1357 27 1384
QBD 524 17 541
BG 71 0 71
MP 93 0 93
MPDF 137 4 141
MTR 80 0 80
TOTAL 4409 84 4493

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As observações anteriores, referentes à marcação de plural no interior do SN


valem, mutatis mutandis, para esses dados referentes à concordância verbal. Já
esperávamos um predomínio de dados conservadores:

O seu rico andor bordado de ouro, levavam-no sobre os ombros orgulhosos os


cidadãos mais notáveis[...] (GCC, p.15)
[...] acompanhavam a procissão de pés descalços[...] (GCC, p.16)
O coronel Manuel das Onças apressou o passo em direção à banca de peixe[...]
(GCC, p.18)
[...] Foi quando Gabriela, terminado o serviço, partiu para casa.[...] (GCC, p.320)
Os ratos passaram sem nenhum sinal de medo, entre os homens parados ao pé
da escada escura. (“Suor”, p.229)
Do terceiro andar descia uma moça de vestido azul. Encostou-se no corrimão
para que eles passassem. (“Suor”, p.230)
Bebiam cachaça na venda do Fernandes e cuspiam na escada, onde por vezes
mijavam. (“Suor”, p.230)
Pega no violino, no caderno de sambas, e vai para o Café-Madri, onde faz parte
do jazz. (“Suor”, p.236)
Para conversarem a sós, o único jeito foi fugir da casa repleta enquanto
Barbozinha, invencível, atravessava o pantanal de Mato Grosso [...] (TAPC, p.
220)
O pau comeu de todos os lados, muitos nem souberam os motivos da briga [...]
(TAPC, p. 541)
— No começo do ano, vou passar para a divisão dos maiores e dormir de pijama
[...] Mas mãe só vai comprar que eu for pro seminário. (TAPC, p. 93)
— Muito obrigada. Aceito, até comprar terreno, levantar minha palhaça. Vai ser
logo, logo [...] Tínhamos pensado ir nesse sábado, passar o domingo. (TAPC, p.
99-100)
A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente. (QBD,
p.13)
A frase final, repetida de boca em boca, representou, na opinião daquela gente,
mais que uma simples despedida. (QBD, p.13)
Quincas Berro d’Água mergulhou no mar da Bahia. (QBD, p.14)
Fura-Redes continuou a fazer gols sensacionais nos demais goleiros. (BG, p.15)
Mas quando entrava em campo a esquadra em cujo arco Pega-Tudo se exibia,
era aquela glória. (BG, p.15)
Pega-Tudo recolhia a pelota. (BG, p.15)
Não sendo ela, como é público e notório, dada a mentiras. (MP, p.9-10)
Heróis do acontecido foram Ubaldo Capadócio [...] e o coronel Lindolfo Ezequiel.
(MP, p.10)
Em Piranhas, apenas chegado, ele foi parar na cama de Sabô, cama que [...] era
também a de Lindolfo. (MP, p.29-30)
Deus seja louvado! (MPDD, p.7)
[...] eles tinham sido vistos no cais. (MPDD, p. 27)
Porciúncula pediu mais cachaça, no que foi atendido. (MPDD, p.40)
[...] quem pode evitar a peçonha das más-línguas [...]? (MTR, p.27)
A fornicação deve ser amiudadamente praticada para não se perder o hábito, a
técnica e o rebolado. (MTR, p.37)

pelos mesmos motivos – a natureza estigmatizada do fenômeno observado, a origem da


maior parte dos dados (sequências textuais de fala de narrador de gêneros narrativos
longos). Igualmente, já esperávamos ocorrências inovadoras, registradas, sobretudo, na
fala de personagens:

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— Tu não quer ir comigo pras mata? [...]” (GCC, p.77)


— Tu não saiu para vir trabalhar no cacau[...]? (GCC, p.77)
— [...] a gente saiu junto, do mesmo lugar. [...]” (GCC, p.108)
— Tu vai para pra Ilhéus? [...] (GCC, p.290)
— Você é um burguês indecente, Zug. (“Suor”, p. 235)
— Havia de deixar você e Júlia morrerem de fome? (“Suor”, p. 236)
— Você acha, hein? Com as coisas como vão... Nunca vi nada assim. A gente
daqui a dias passa fome. (“Suor”, p. 279)
— A gente trabalha o dia todo. De noite é que a gente varre os quartos... Quem
tem tempo de cuidar da latrina. (“Suor”, p. 331)
— No dia que esses sujeitos aparecerem aqui de novo em Agreste ou em
Mangue Seco, a gente bota eles pra correr. (TAPC, p.320)
— Tu disse que tinha certeza que não. (TAPC, p. 406)
— Tu é um porreta. (TAPC, 407)
— Se você disser não, Tieta, acabou-se Agreste, é o fim de Mangue seco
(TAPC, p. 316)
— Mas que a gente vive roubando, ah isso vive, não adianta tu ficar aí sentada
de terço na mão, mastigando o padre-nosso com esse ar de santa. (TAPC, p. 10)
— Se fosse seu pai, Leonardo, você gostava? (QBD, p.33)
— Depois a gente convida para a missa de sétimo dia. Vai quem quiser, a gente
não é obrigada a dar condução” (QBD, p.33)
— Uma vez, tu lembra, Eduardo? (QBD, p.33-4)
— A gente queria ver ele (QBD, p. 63)
— Tá aí para vocês comprarem uns sanduíches. (QBD, p.51)
— Se os distintos quiserem ir descansar, tirar uma pestana, a gente fica tomando
conta dele. (QBD, p. 67)
— [...] festa aqui não falta nem a gente precisa ir pedir de empréstimo a forasteiro
nenhum. (MPDF, p.13)
— A gente falava disso e daquilo. (MPDF, p.15)
— Você já está boa para casar, menina. Quer casar comigo? (MPDF, p. 33)

Com isso, percebemos que, embora privilegiando o padrão normativo da


concordância verbal, não deixou Jorge Amado de registrar dados de variação linguística
semelhantes aos encontrados na fala popular, o que nos leva a refletir como trabalhar essa
diversa pluralidade no contexto da Educação Básica. Nesse sentido, Vieira (2009, p. 93)
aponta ao menos dois objetivos pedagógicos para o ensino dessa norma, ao lado das
demais: “a) desenvolver o raciocínio lógico-científico sobre a linguagem na esfera dessa
estrutura morfossintática específica; e b) promover o domínio do maior número possível de
variantes linguísticas, de forma a tornar o aluno capaz de reconhecê-las e/ou produzi-las,
caso deseje”.
Para atingir o primeiro objetivo, uma estratégia aplicável é a proposta de
organização dos conteúdos de Língua Portuguesa sugerida por Lima (2000), que se pauta
em quatro princípios:
1) complexidade crescente – partir do conhecido ao desconhecido, do mais
simples ao mais complexo, ou seja, da variante de uso do aluno para as por ele ignoradas;
2) continuidade – manutenção de tópicos de concordância em diversos momentos
do curso, ora como alvo de estudo, ora como pré-requisito para outra aprendizagem;

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3) encadeamento em espiral – ampliação e aprofundamento dos conteúdos em


paralelo com a continuidade do estudo;
4) integração entre a concordância e outros tópicos gramaticais e o
desenvolvimento de habilidades textuais.
Levando em conta esses princípios, o trabalho com a concordância verbal na sala
de aula da Educação Básica deve iniciar pelos seguintes contextos:
a) formas verbais no singular e no plural com alto nível de saliência fônica;
b) verbos precedidos de SN sujeito com mais marcas de plural;
c) verbos precedidos de verbos com marcas de plural;
d) orações com sujeito anteposto, de referência animada e próximo ao verbo.
Por outro lado, os seguintes contextos deverão ser priorizados por favorecerem a
não-aplicação da regra:
a) formas verbais de baixa saliência fônica;
b) verbos precedidos de SN sujeito com menos marcas de plural;
c) verbos precedidos de verbos sem marcas de plural;
d) orações com sujeito posposto, de referência inanimada e distante do verbo.
Segundo Vieira (2009, p. 101),

o ensino da concordância nominal deve preceder o da concordância verbal ou a ele


ser simultâneo. A relação existente entre as marcas do SN sujeito e as marcas do
SV sugere a viabilidade de se ensinar a concordância verbal aliada à concordância
nominal. [...]
Exercícios sobre concordância devem alcançar níveis superiores ao da oração,
enfocando construções com verbos em série que possibilitem ao aprendiz a
percepção da interinfluência que exercem as marcas de número ou a ausência
delas nos sintagmas verbais.

Considerações Finais

Este trabalho buscou compreender os usos conservadores e inovadores presentes


na escrita amadiana, analisando as causas para esses usos e as possíveis medidas para
lermos a obra amadiana e melhor compreendermos a norma-padrão do vernáculo
brasileiro. A partir dos dados colhidos e quantificados, pudemos inferir que o escritor
baiano, como os demais de sua época, inova a escrita literária com o intuito de promover a
interação entre o público e seus textos.
Não há como criticar a escrita amadiana por ser simples e utilizar elementos da
oralidade, pois esse escritor tinha como foco principal inovar a literatura, estabelecer um

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novo fazer literário que representasse seu país, sua cultura. Por isso, muitas vezes ele não
adequa sua escrita à norma-padrão, mas leva para ela a fala popular, permeada de
variações linguísticas representativas da nacionalidade.
Assim, ele inseria a cultura, os valores e costumes da gente humilde, com quem
conviva desde sempre, na literatura universal, já que foi o escritor brasileiro mais lido e
traduzido do século XX.
Com essa pesquisa foi compreensível também que como todas as instituições
culturais, a língua se manifesta por meio de uma imensa variedade de matizes, que
espelham a própria diversidade humana. Todavia, em sociedades profundamente
arraigadas na cultura letrada, como a Ocidental, a diversidade linguística é ofuscada pelo
que se convenciona chamar norma-padrão, veiculada pela Tradição Gramatical, pelo livro
didático e por outros comandos paragramaticais (Cf. Bagno, 1999), instâncias sociais
ligadas às classes hegemônicas, que formulam um modelo linguístico conservador,
baseado na escrita literária clássica, e o apresentam às classes subalternizadas como a
única forma correta de uso linguístico. Assim, todas as normas vernáculas discordantes
desse padrão e, em geral, inovadoras em relação a ele, passam a ser consideradas como
erro.
Não há erro no uso linguístico, mas inadequação às situações de interação social
por meio da língua. A pesquisa mostra usos conservadores e inovadores da escrita literária
amadiana, por meio de fenômenos inter-relacionados de variação linguística do vernáculo
brasileiro: de um lado, a indicação da indeterminação do sujeito e a construção passiva; de
outro, as concordâncias nominal e verbal; entre esses dois pares, as alterações do sistema
de pronomes.
A análise desses usos deixou claro que Jorge Amado não tinha compromisso em
utilizar uma variedade linguística correta, mas adequada, isto é, uma variedade ao mesmo
tempo expressiva e simples, ora conservadora – vale dizer, mais próxima às regras
gramaticais –, ora inovadora – mais próxima à oralidade de seu povo, a que tanto amava:
“[...] ele ama o povo porque vê a humanidade como uma só, porque está persuadido de
que cada individuo leva em si toda a humanidade e por isso o homem em sua essência é
livre.” (TAVARES, 1980, p.183)
Esses elementos de oralidade presentes não só na escrita literária amadiana, mas
também, na de outros autores modernistas brasileiros apontam para e autorizam uma
urgente reforma das gramáticas escolares e do ensino de Língua Portuguesa. Em relação
aos fenômenos aqui analisados, apontamos alguns caminhos.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

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223
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

MABAÇO: UM ESTUDO DIALETÓLOGICO NA BAHIA

LAURO FERREIRA DOS SANTOS (UFBA) ∗

RESUMO: Este artigo, traz a análise de uma amostra do semântico-léxico do Estado da


Bahia, destacando a determinação dada para gêmeos, conhecido popularmente por
“MABAÇO”, uma designação afro-brasileira. Trata-se, portanto, de uma acepção
encontrada num estudo dialetológico, cuja origem é da língua do grupo banto, falada na
região africana de Angola, trazido para o Brasil pelos escravos e observados facilmente na
fala dos baianos. Com o intuito de fazer um estudo diacrônico, a partir da produtividade
das variantes por meio de um estudo minucioso coletados por informantes, analisando a
distribuição diatópica, computando a porcentagem das ocorrências, em gênero e distintas
faixas etárias, a qual está na carta de nº 100 do Atlas Prévio dos Falares Baianos (1963),
o Questionário lexical – IX CICLOS DA VIDA, cuja pergunta é: Qual o nome dado a duas
crianças que nasceram no mesmo parto. Nesta análise, torna-se possível identificar fatores
condicionantes para entender a variante MABAÇO, que teve maior número de ocorrências.
Este será o principal aporte de estudo, a partir da origem e dos significados, a partir dos
termos das amostras dialetais dos informantes. Visto que as respostas dadas pelos
informantes mostram que o conhecimento dessas pessoas tem seus significados, e fazem
parte do seu vocabulário ativo. Frequentemente, o seu uso, está limitado às pessoas mais
velhas ou pode estar condicionado na variação livre do contexto.

Palavras-chave: Africanismos; Dialetologia; Mabaço; Semântica.

1.INTRODUÇÃO

No século XVI, os negros foram trazidos para o Brasil, do continente africano para
trabalhar na agricultura, trabalhavam dia e noite, e nada recebiam, tudo era entregue ao
patrão, e além de tudo, eram maltratados. Apesar de toda essa escravidão, tiveram uma
participação eficaz na vida dos


Especialização em Linguística – Universidade Federal da Bahia

224
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

brasileiros, pois deixaram um legado imensurável, não só na cultura, na


culinária, na religião... e, principalmente na linguagem.

Para Henckel (2002, p.91) “A primeira pesquisa de campo, de capital


importância para o tema, foi realizada nos anos setenta na África e no Brasil
pela pesquisadora baiana Yeda Pessoa de Castro”. Então, é a partir dai que
começam a surgir estudos mais profundos e investigativos, apontando de fato,
a influência dos negros e das línguas africanas no Brasil. Nesse sentido, são
várias as palavras de origem africana que contribuem para o léxico brasileiro,
muitas ainda, existem no vocabulário ativo dos falantes. Essa língua, como
qualquer outra língua natural sintetiza uma série de construções que são
produtos de uma ampla diversidade de utilização funcional, o que a remete a
uma característica bastante dinâmica de multifuncionalidade recorrente.

São diversas as palavras que ao longo do tempo passam variações, pois


são heranças históricas que vem de outras gerações, ou outros lugares .
Sendo assim, o interesse de explanar a respeito do item MABAÇO surgiu como
tema deste artigo MABAÇO: UM ESTUDO DIALETÓLOGICO NA BAHIA , na
qual o objeto geral é dissertar sobre a influência da língua africana, por meio da
oralidade para o dialeto no brasileiro. Ao estudar a carta de nº 100 do Atlas
Prévio dos Falares Baianos (1963), destaca-se as determinações dadas para
gêmeos e a produtividade das variantes por meio de um estudo minucioso
coletados, de maneira que possa detalhar os contrastes das variantes,
enfatizando os aspectos semântico-lexical registrados na carta semântica
supracitada, ligado ao que se afirma na Geolingüística e na Dialetologia.
Segundo Aguilera,

os Atlas são verdadeiras fotografias sociológicas e dialetais, que


resgatam e registram a distribuição espacial de variantes linguísticas
que, por sua vez, evidenciam características étnicas condicionantes
histórico-culturais que afetam a linguagem de um grupo social.
(Aguilera 2004, p.10.).

O objetivo dessa pesquisa é analisar as unidades lexicais que


determinam as designações para gêmeos, computando a porcentagem das
ocorrências concordando a análise e confrontando as variantes e seus
respectivos conceitos registrados nos dicionários. Foi realizado a busca em
alguns dicionários, cada um em épocas diferentes, para ver o tratamento da
variante dadas nos verbetes, como de Ferreira (1987), Houaiss (1995), Moraes
Silva (1945) Nascentes (1943.), Nei Lopes, Castro (2004)

225
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Para a elaboração deste trabalho foi analisada a distribuição diatópica


da carta lexical que está no atlas linguísticos pesquisados, próprias dos atlas
pluridimensionais, com um breve histórico do Atlas Prévios dos Falares Baiano,
destacando suas importâncias.

2. DIALETOLOGIA

A língua, como um fenômeno heterogêneo, apresenta um papel muito


importante, visto que em relação a variação tem a possibilidade de descobrir
nesse espaço uma ampla variedade regional e sociocultural do português do
Brasil. As abordagens linguísticas, sobretudo as diatetológicas, abrangem a
língua em relação às funções socioculturais. Nesse contexto, a forma está
sempre associada a uma determinada função dentro de um significado. Para
Calvet (2002, p. 12), “as línguas não existem sem as pessoas que as falam, e a
história de uma língua é a história de seus falantes”.
A variação é um fenômeno ligado à língua, por isso é um objeto de análise da
Dialetologia e está ocupada em relacionar aos fatores socioculturais e, às
vezes, determinante na variação linguística. A ciência que estuda, sobretudo, a
fala de uma comunidade, é Dialetologia, pois tem o intuito de investigar as
variações distribuídas geograficamente. Para Cardoso (2010 p. 15), “é um
ramo linguísticos que tem por tarefa identificar, descrever e situar os diferentes
usos em que uma língua se diversifica, na distribuição espacial e sociocultural
”. Então, essa ciência que tem como finalidade, estudar as variações no
sentido que a língua seja representada espacialmente, através de mapas em
cartas linguísticas que possam representar ao mesmo tempo em atlas que
passa a ser descrita e analisada cientificamente dentro de critérios que
envolvem fatores sociais como o sexo, a idade, a classe social, entre outros.
Um fator importante é o estudo através dos atlas linguísticos, pois
auxiliam muito a propagar as variantes da língua nos estados brasileiros,
surgindo a sua importância num estudo minucioso através dos atlas.

Conforme Silva Neto(1957, p. 37)“define um atlas linguístico como um conjunto


de mapas em que se registram os traços fonéticos, lexicais e morfossintáticos
característicos de uma língua num determinado âmbito geográfico”. Nesse
sentido os atlas linguísticos têm por finalidade analisar, mapear e descrever as
variantes linguísticas que são registrados nos aspectos semântico-léxico,

226
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

fonético e morfossintático, colhidos oralmente pelos falantes nativos nos


lugares em que foram feitas as pesquisas, demonstrando também sua cultura.

3. ATLAS PRÉVIO DOS FALARES BAIANOS

Este foi o divisor de águas para o estudo da Geolingüística no Brasil,


publicado em 1963 cuja autoria é do professor Nelson Rossi, da Universidade
Federal da Bahia e teve como auxiliares Dinah Maria Isensee e Carlota
Ferreira. Este foi o primeiro que surgiu, servindo de padrão para que outros
Atlas pudessem surgir e, enfim, o Atlas Linguístico do Brasil, não por ser o
primeiro trabalho no ramo a ser notório, contudo pela importância do
conhecimento da fala regional da baiana.

O APFB, possui o questionário de 164 questões, cujo campo semântico


está ligado à agricultura, anatomia e fisiologia humana, culinária e
alimentação, geografia e astronomia, com 209 cartas linguísticas transcritas e
legendadas. Que por sinal teve, como objetivo mapear a área dos falares
baiano e teve a seguinte estrutura:

a) 50 localidades, cobrindo todo o estado da Bahia;

b) 100 Informantes das seguintes faixas etárias: 25 a 84 anos;

c) Nível de instrução: analfabeto e semi-alfabetizados;

d) homens e mulheres;

e) o Questionário contém 164 questões;

f) Campo Semântico: agricultura, pecuária, anatomia e fisiologia humana,


culinária e alimentação, geografia e astronomia;

g) possuem 209 cartas, compreendendo 11 de identificação, 154 fonéticas e


léxicas e 44 cartas resumo.

Entre elas, destaca-se a de nº 100 para a variante Gêmeos.

4. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

O corpus deste trabalho faz parte do ALSE e APFB,refere-se as


respostas dos informantes dos estados da Bahia e de Sergipe, considerando
ambos os sexos. Na Bahia foram entrevistadas 100 pessoas, nascidas e

227
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

criadas naquela região e que fossem ligadas ao campo, isso aconteceu em 50


localidades diferentes, porém só 76 respostas serviram para compor o quadro.
Já em Sergipe, as entrevistas foram realizadas em 15 localidades, distribuídas
em três faixas etárias (Faixa l: 30 a 39 anos, Faixa ll: 40 a 48 anos e Faixa lll: a
partir dos 50 anos), num total de 32 informantes. Para análise desse estudo,
foram selecionadas as cartas de que compõem o Atlas Prévio dos Falares
Baianos, carta de nº 100, e o Atlas Linguístico de Sergipe, carta de nº 107, em
que aparecem as denominações para o conceito Gêmeos, cujo enunciado é:
Qual o nome dado a duas crianças que nasceram no mesmo parto? E, está no
Questionário lexical – IX CICLOS DA VIDA.

Em geral as respostas dadas em Sergipe foram documentadas 32


registros, com três variantes (i) gêmeos com 28 ocorrências, (ii) mabaço com 2
ocorrências, (iii) Cosme e Damião com 2 ocorrências.

Figura 1: Produtividade das respostas na Bahia

BAHIA
GÊMEOS MABAÇO COME E DAMIÃO IMBABAÇO
IMBILICADO GEMADO babaço

2% 2% 1% 1% 1%

48%

45%

Nesse gráfico a Bahia demonstra um número significatico de variantes,


sendo Gêmeos com 49%, mabaço com 45%, Cosme e Damião e Imbabaço,
cada um com 2% e Imbilicado e Gemado com apenas 1% cada.

Visto que as respostas dadas pelos informantes mostram que o


conhecimento dessas pessoas tem seus significados, e fazem parte do seu
vocabulário ativo. Frequentemente, o seu uso, está limitado às pessoas mais

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

velhas ou pode estar condicionado na variação livre do contexto. Lembrando


que não foram registradas as marcas pluralizadas gêmeas/gêmeos e a forma
masculina que teve registro. A Bahia por possui a maior concentração de
negros e que aqui os escravos permaneceram, essas pessoas que foram
entrevistadas demonstraram sua influência da língua africana no semântico-
léxico do Estado da Bahia.

Segue abaixo trechos das entrevistas que confirmam as repostas dos


informantes:

(100/7) “Que hoje não chama mais mabaço. Nem eu mesmo chamo mais
(risos). Gêmeo, “Fulana teve gêmeo!” Dois menino. Antigamente chamava
mabaço mesmo, no meu tempo antigo, era isso mesmo. Mas agora é gêmeo”.
(Mulher, 80 anos, analfabeta)

(100/15) “gêmeo, quando nasce um e logo depois o outro e mabaço quando


são pegados”.

(100/31) “ mabaça, cada criança com um imbigo” e acrescenta, “duas


crianças num imbigo só”.

(100/42) “mabaço. Cosme e Damião, só muda o nome quando o pai é esse.”

(100/44) “ gemi, a companheira a pracenta é uma só”.

5. DICIONARIZAÇÃO DA VARIANTE

Para Nascentes (1955: XII),

Conhecer uma palavra é conhecer as causas que lhe fizeram atribuir


o sentido de que se reveste, a língua donde é originária, a família a
que pertence, as alterações que experimentou. Uma coleção de
etimologias seria já um resumo de todas as ciências e um grande
avanço para começar o estudo delas.

Deste modo, a etimologia e a lexicografia fazem parte da história de um povo.


Nessa perspectiva o artigo, buscou-se a partir dos dicionários de Ferreira
(1987), Houaiss (1995), Moraes Silva (1945) Nascentes (1943.), Nei Lopes,
Castro (2004), Aulete (2010) e Ximenes (2000) um apoio para estudar o
tratamento das variantes dadas nos verbetes.

Revelando, assim, o importante papel das pesquisas geolinguísticas


para o estudo da distribuição diatópica no que diz respeito à semântica-lexical,

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compreendendo o estudo dialetológico nos falares baianos. Outrossim, a busca


nos dicionários mostra unidades relacionadas ao campo semântico gêmeos e
a variante mabaço, (das quais tiveram mais produtividade) fornecidas pelos
falantes da Bahia, são dicionarizadas.

5.2 MABAÇO EM ALGUNS DICIONÁRIOS.

Variante Mabaço
Ferreira [variante de babaço.] S. m. Bras. 1. V. babaço. 2. Rel.V. Ibêji.
Houaiss S. 2 g. B1 irmão ou irmã gêmea. Mabaças. S. m. pl. Rel B 2
epíteto do orixá duplo ibêji. Etim. Quimb. E quicg. Ma’basa, pl.
de ka’basa “gêmeo”; pl. formado com o pref. Ba ou ma; daí as
var. babaça e, com alt de desig. Babaço.
Morais Silva S. M. Bras. Irmão gêmeo.
Nascentes Mabaça. Adj. Gêmeo que nasce em segundo lugar. (Variante
de babaça. q. v.) Babaçu. S. f. Espécie de palmeira (Orbinya
martiana, B. R.) (Do tupi wawa’su).
Nei Lopes Mabaça: Termo usado no Brasil correspondente ao português
“gêmeo.”. do quimb mabasa, pl. de kabasa, gêmeo.
Castro Mabaço: (banto) (ªBR) –s.2gen.
Mabaça (banto) 1. (BA) –adj. Diz-se da banana ligada a outra:
acredita-se que quem a come terá filhos gêmeos.

Para a variante mabaço, percebe-se que no estudo da palavra, há etimologias


bastante diversificadas. Veja que Lopes e Houaiss, apresentam mabaço como
pertencente ao quimbundo, enquanto para Castro ao banto. Ferreira e Morais
Silva tratam de brasileirismo, já Nascentes, diz que palavra originou-se do
tupi.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo que acabamos de ver, tem como proposta descrever e


analisar, a partir dos estudos diatópicos as variantes para palavra gêmeos. Os

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dados foram retirados do Projeto Atlas Linguísticos do Brasil, da questão 15-


Ciclos da Vida. A Bahia contempla um número maior de variantes (Mabaço,
Cosme e Damião, Babaço, Imbilicado, Imbabaço e Gemado), isso demonstra
que a linguagem popular baiana é uma das principais formas de expressão do
que se considera a baianidade. Evidenciando, assim, o bom humor e a
criatividade evidente na fala das pessoas residentes na localidade. Todavia
apresenta um dialeto muito rico sócio-culturalmente. Dessa forma, foi
constatada, pela ocorrência Gêmeos na carta analisada, que essa pesquisa,
por ser 1963 e que aqui os escravos tiveram, deixando seu legado, no qual
contribui para nossa linguagem, a variante pertence, de fato, a língua africana.
Isso só foi possível, mediante consultas bibliográficas para concretização desta
pesquisa acadêmica, O que proporcionou analisar nos dicionários tradicionais e
atuais examinados que consideraram sua origem, porém os autores não foram
unânimes quanto a etimologia da palavra.

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O QUE NEGO TEM PARA NOS CONTAR: HISTORICIDADE,


GRAMATICALIZAÇÃO E CARGA SEMÂNTICA DO PRONOME NEGO NO
PORTUGUÊS DO BRASIL

DANNIEL CARVALHO (UFBA)


ARI(VALDO) SACRAMENTO (UFBA)

Resumo: Dos legados da presença dos negros no Brasil e dos problemas


sociais que muitos negros sofrem na contemporaneidade, a História Social, a
Antropologia e a Sociologia têm-se ocupado há tempos. Entretanto, no terreno
dos estudos linguísticos, os trabalhos que se voltam para compreensão da
língua não trazem muitas contribuições sobre as questões sociais, políticas e
identitárias na construção das gramáticas da língua. Um exemplo disso é o
aparente processo de gramaticalização sofrido pela palavra nego no português
brasileiro que, em determinados contextos sintático-semânticos, passou da
condição de substantivo à de pronome. Este substantivo passa a ter duas
leituras pronominais distintas: uma definida, caracterizada por elementos
sintáticos definidores (ex.: possessivos ou tempo verbal finito e marca pessoal);
e outra indefinida. Entretanto, essa leitura indefinida do elemento
pronominalizado nego não é tão genérica e despida de valor quanto outros
pronomes da mesma natureza, tal como alguém, como pode ser visto na
comparação dos exemplos i) Tem nego bebo aí vs. ii) Tem alguém bebo aí. Em
(i), podemos verificar um resquício lexical pejorativo, possivelmente fruto dos
estereótipos produzidos pela parcela da população segregada, que a palavra
carregava quando substantivo, o que não pode ser recuperado em (ii). Desta
forma, o presente trabalho se dispõe a) a compreender a historicidade do item
lexical nego no contexto da história social do português brasileiro e b) a
descrever as características semânticas adquiridas por este elemento
pronominal em seu processo de gramaticalização, comparando-o com seus
pares indefinidos, a fim levantar o inventário de traços que o caracterizam. Por
fim, do ponto de vista metodológico, toma-se como base para o levantamento
dos dados e compreensão dos textos e dos sentidos históricos das ocorrências
de nego, o método de análise filológico, conforme o qual o texto e a língua
precisam ser interpretados na historicidade que os produziu. Esse

233
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

procedimento garante, pois, que a coleta e posterior análise dos dados não
seja anacrônica, o verdugo dos historiadores (da língua).

Apresentação

Questões Gramaticais
João Ubaldo Ribeiro

[...]
Nenhuma gramática ou dicionário, que eu saiba, reconheceu a visibilíssima
existência do pronome indefinido "nego", pronunciado "nêgo", que, inclusive,
já entrou faz muito para a literatura, pelo menos a literatura das crônicas de
jornal. Na verdade, um estrangeiro que disponha do melhor dicionário e da
melhor gramática continuará ignorando um pronome de uso universal nos bate-
papos informais, com sua variante paulista — "neguinho". Não é a mesma
coisa que "alguém" ou "todos", mas anda perto; assim como sua forma
negativa —"nego não" — não é a mesma coisa que "ninguém", mas anda
perto. Todo mundo conhece frases como "nego aqui é muito tolerante", "nego
não conserta esta bagunça porque não quer", "nego vai lá e dá um pau nele"
etc. Nestas questões lexicográficas, nego muitas vezes deixa escapar
coisas óbvias como esta.
[...]

(RIBEIRO, João Ubaldo. Questões Gramaticais. A arte de roubar galinhas. Rio


de Janiero: Editora Nova Fronteira, 1998, p. 95-99.)

Neguinho

Neguinho não lê, neguinho não vê, não crê, pra quê
Neguinho nem quer saber
O que afinal define a vida de neguinho

234
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Neguinho compra o jornal, neguinho fura o sinal


Nem bem nem mal, prazer
Votou, chorou, gozou: o que importa, neguinho?
Rei, rei, neguinho rei
Sim, sei: neguinho
Rei, rei, neguinho é rei
Sei não, neguinho
Se o nego acha que é difícil, fácil, tocar bem esse país
Só pensa em se dar bem - neguinho também se acha
Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz
Neguinho também só quer saber de filme em shopping
[...]
Se o mar do Rio tá gelado
Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul
Já na Bahia nego fica den'dum útero
Neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si
Neguinho cata lixo no Jardim Gramacho
Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo
Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo
Nego abre banco, igreja, sauna, escola
Nego abre os braços e a voz
Talvez seja sua vez:
Neguinho que eu falo é nós
Rei, rei, neguinho rei
[...]

(VELOSO, Caetano. Neguinho. In: Recanto. Universal Music: Salvador, 2011.)

Nêga vá
Quem nasceu pra você
Fui eu, nêga
Você é minha
E eu sou todinho seu

235
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

De quem é a boquinha, nêga?


Ela é sua, meu neguinho
De quem é o queixinho, nêga?
Ai, é seu também
De quem é o pescocinho, nêga?
Ele é seu, meu bem
Então chega pra cá
Pra recomeçar esse vai-e-vem
Venha, nêga, vá
[...]
De quem é o peitinho, nêga?
Eu falei que é seu, meu bem
De quem é o umbiguinho, nêga?
Mas ele é seu também
[...]

(Da Valéria , Pepé; Adan, Cal. Nega Vá. In: É o Tchan do Brasil. Polygram: Rio
de Janeiro, 1997.)

Introdução
No Brasil, não é difícil ouvirmos o tratamento de nego ou nega. Fixaram-
se em nossa cultura inúmeras expressões oriúndas da vida colonial e da
maneira de falar dos africanos e afro-descendentes. A palavra “negro” possui
inúmeros significados nos dicionários brasileiros, como pode ser visto no
recorte da entrada lexical dicionarizada abaixo 36:

ne·go |ê|
(alteração de negro)
adjetivo e substantivo masculino
1. [Brasil, Informal] Diz-se de ou indivíduo de pele muito escura. = NEGRO

36
"Nego", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008- 2013,
http://www.priberam.pt/dlpo/nego [consultado em 27-04-2014].

236
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

substantivo masculino
2. [Brasil,Informal] Forma familiar e carinhosa de tratamento (ex.: cadê minha n
ega?).
3. [Brasil,Informal] Designação vaga de pessoa indeterminada (ex.: isso aí é ca
rro de nego trabalhador). = INDIVÍDUO, NEGUINHO, SUJEITO, TIPO
Palavras relacionadas:
neguinho, negação, nega, negar, neca, adonde, necas

Atribuída ao escravizado, a palavra “negro” servia no contexto social


anterior à Abolição para estigmatizar, para demonstrar, a todo momento, o
status de inferioridade da pessoa a quem ela era atribuída. Servia para
humilhar e, em contrapartida, para fazer com que o racista se sentisse um
vencedor diante do outro não-branco. Em outros termos, era um palavrão com
o qual se ofendia o outro, dizendo-lhe que ele era escravo. (CUTI, 2007, p. 29).
Ainda de acordo com Cuti 37, muitas pessoas hoje em dia usam esse
expediente de humilhar sem consciência, pelo fato de que a prática da
discriminação racial “naturalizou-se”. A palavra “negro” sofreu várias mutações,
gerando outras palavras, suas variantes, tanto no campo formal quanto
semântico. Essa mesma variante pode ser empregada para exprimir admiração
e carinho como para projetar ódio e desprezo. É a circunstância que vai nos
revelar a intenção do falante.
Cuti (2007, p. 30) já dá pistas de algumas estratégias linguísticas,
relacionadas à morfossintaxe do nome nego, que interferem em sua
interpretabilidade:

Contudo, o uso afetivo, que nos remete a certa intimidade na relação,


oferece algumas pistas. Ao juntar o possessivo “meu” ou “minha”
antes do termo “nego” (com a pronúncia nêgo), tem-se o acolhimento
do outro. Ao contrário, quando se emprega o também possessivo
“seu”, o falante atira no outro a carga semântica da ofensa escravista,
como se dissesse ao ouvinte que é dele (“seu”) o defeito de ser
descendente de africanos escravizados. Como o acento diferencial

37
Cuti é o pseudônimo de Luiz Silva, um dos fundadores do Quilombhoje-Literatura
(http://www.quilombhoje.com.br/) e um dos criadores da série Cadernos Negros
(http://www.quilombhoje.com.br/cadernosnegros/historicocadernosnegros.htm).

237
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

não existe mais, para o caso de “nego”, substantivo, e “nego”, do


verbo negar, tem-se a impressão de ocorrer uma contaminação
semântica por causa do circuito racista do pensamento.

Nas letras da música popular brasileira, a palavra nego e seus derivados


(nega, neguinha, neguinho etc.) aparece com frequência, com ambas
conotações afetiva e ofensiva. A expressão “nego”, quando tem o sentido de
ofensa direta, é também utilizada para apontar um sujeito indeterminado, um
indivíduo qualquer, mas, muito comumente, com nuances pejorativas. Quando
as variantes “nego” ou “nega” recebem o sufixo diminutivo “inho” ou “inha”,
respectivamente, a ambiguidade também ocorre. Pode-se estar acolhendo ou
desprezando. Segundo Cuti (2007, p. 33), “na linguagem corriqueira paulistana,
emprega-se bastante a expressão “neguinho” para caracterizar qualquer
indivíduo que pretenda ultrapassar os limites, transgredir as normas, enganar o
próximo, uma pessoa abusada.” Quando se usa o aumentativo, surgem outras
nuanças. Um “negão” geralmente tem conteúdo semântico-pragmático diverso,
mas recuperável. Pode estar sendo caracterizado como forte fisicamente ou
sexualmente desejável. “Negona” é um termo altamente produtivo no falar
baiano, porém menos empregado em outros falares brasileiros. Entretanto, o
machismo também aí não deixa de acrescentar seu julgamento, em geral
pseudo-estético. Pseudo porque balizado pelo modelo branco de beleza (pele
clara, nariz afilado, cabelos lisos, corpo magro). É um termo que tende mais
para o sentido depreciativo, para caracterizar uma mulher de pele escura, feia;
ainda que entre negros, no uso da palavra, possa haver uma reversão, no
sentido de apontar uma mulher negra decidida, forte em seus argumentos e
convicções.
Assumiremos, para este trabalho, a hipótese de que as diferentes
expressões do item lexical nego são resultado de um processo de
pronominalização/gramaticalização. Descreveremos, a seguir, os pressupostos
teórico-metodológicos que nos guiaram em nossa pesquisa.

1 Sobre as definições das classes gramaticais


O termo pronome teria vindo do latim pronomen e significaria “palavra
que substitui o substantivo, ou que o acompanha para tornar-lhe claro o

238
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

significado” (FERREIRA, 1975, p. 1145). Bueno (1996, p. 532-533) define as


classes gramaticais relevantes para nossa pesquisa da segunte forma:
pronome, como “a palavra que substitui o nome ou a ele se refere, definindo-
lhe a posse, a posição, a indeterminação e outras relações; substantivo: o que
designa pessoa ou coisa; adjetivo: o que especifica pessoa ou coisa em várias
relações.
Mattos e Silva (1989), por sua vez, caracteriza os pronomes como
determinantes, definindo-os não somente como elementos que substituem um
nome, mas como todos os elementos que circundam o núcleo (elementos
satélites ao núcleo nominal). Câmara Jr (2006) caracteriza o pronome pela sua
noção gramatical de pessoa, isto é, por uma noção que se expressa pela
heteronímia, em vez de flexão, ou seja, pela mudança do vocábulo gramatical.
Vilela e Koch (2001) designam o pronome pelo termo Pro-Nomen, o qual traduz
um valor de “relação” entre as classes pronome e nome (ou substantivo). Além
disso, explicitam que os pronomes assinalam uma lista fechada de formas com
algumas características: flexionam em gênero e em número (normalmente);
não são comparáveis; são termos que ganham importância denotativa na
referencialidade do texto ou circunstância. Os pronomes indefinidos, contudo,
referem-se a um grupo de vocábulos que solicita o verbo na terceira pessoa e
que se atesta a uma determinação mais vaga em relação aos definidos,
identificados como alguém, outrem, ninguém, entre outros, de acordo com o
levantamento de Said Ali (1971). Com uma perspectiva semelhante, Vilela e
Koch (2001) salientam que os indefinidos compreendem uma quantificação ou
uma qualificação imprecisas, ou ainda determinam quantidades, referindo-se à
totalidade ou qualidades precisas, ou seja, ou quantificam uma pluralidade
(algum, pouco, muito) ou uma totalidade (todo, tudo, nada, nenhum).
Os pronomes diferem dos nomes, pois “limitam-se a mostrar o ser no
espaço” (CÂMARA Jr, 1970, p. 78). Além disso, eles situam os elementos do
mundo biossocial, os quais se aplicam à expressão linguística, dentro de um
quadro comunicativo, passando a ser indicados pela posição que ocupam no
momento de uma mensagem linguística. Ainda de acordo com o autor, os
pronomes se caracterizam pela noção gramatical de pessoa e em que ela
consiste. É uma noção que se expressa pela heteronímia, em vez de flexão, ou

239
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

seja, pela mudança do vocábulo gramatical. Said Ali (1971), por sua vez,
entende que todo pronome ou é um substantivo ou é um adjetivo, além de
ressaltar que o pronome-substantivo se caracteriza como pronome absoluto,
enquanto o pronome-adjetivo se caracteriza como pronome adjunto.
Para averiguar melhor os processos mencionados e ligá-los à
funcionalidade de nego, voltar-nos-emos ao estudo da gramaticalização.
Hopper (1991, p. 17), com base em Meillet (1958), entende a gramaticalização
como “a atribuição de uma característica gramatical a um vocábulo
previamente autônomo”. A gramaticalização leva em conta, portanto, não só a
funcionalidade da língua, mas também a forma de comunicação dos falantes,
constituindo um processo de regularização do uso de termos novos. A
gramaticalização é, desta maneira, interpretada como um processo diacrônico
e um contínuo sincrônico que atingem tanto as formas que vão do léxico para a
gramática como as formas que mudam no interior da gramática. A
gramaticalização é motivada pelo uso constante de termos em situações reais
de comunicação. Esse uso, por sua vez, faz que o elemento linguístico sofra
transformações para a regularização do uso da língua, apresentando
unidirecionalidade, ou seja, caminha do discurso para a gramática:

discurso > sintaxe > morfologia > morfofonologia > zero

Para isso, consideramos também a hipótese de que, para a existência


da unidirecionalidade, há fatores de cunho cognitivo, sociocultural e
comunicativo que interferem na mudança do elemento linguístico.
A partir do exposto acima, levantamos as seguintes questões de
pesquisa:

a) Quais propriedades primitivas (traços nominais) foram perdidas no


processo de pronominalização de nego no PB?
b) Quais propriedades mais gramaticais (traços pronominais) foram
assumidas por nego, ao se gramaticalizar?

2 Primeiras reflexões

240
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Nego encontra-se em um processo de pronominalização


(gramaticalização), o que pode ser visto a partir de indícios das características
da mudança categorial do termo (de nome para pronome), ao mesmo tempo
preservando características do nome e assumindo características de pronome.
Esse processo pode ser classificado como uma gramaticalização fraca
(LEHMANN, 1982), visto que a função pronominal assumida por nego é de
pronome indefinido, já atestado em outros itens lexicais, como povo, gente,
pessoal etc. Em alguns casos, entretanto, podemos verificar pistas de um
processo de gramaticalizaçao forte, quando, por exemplo, nego não é utilizado
com elementos determinantes, como artigo. Propomos, entretanto, que esse
esvaziamento da palavra nego e sua gramaticalização no item funcional
pronome não está sendo uniforme e algum material semântico-pragmático está
sendo ganho. Esta hipótese parte do fato de que há uma ocilação interpretativa
do termo nego, ora com interpretação afetiva, ora com interpretação pejorativa.
Algumas estratégias morfológicas acentuam essas interpretações, como o uso
de diminutivo sem determinantes (neguinho), que impele interpretação
pejorativa, como verificamos na música de Gal Costa. Na mesma fonte,
entretanto, encontramos o item lexical antecedido por um artigo definido e sua
interpretação perde a força pejorativa anteriormente mencionada.
A mesma ausência de determinante na música da banda É o Tchan não
resulta em interpretação pejorativa. Isso pode ser relacionado ao grau de
conteúdo mais adjetival do item gramaticalizado, que, neste caso, contém um
peso afetivo, não avaliativo.
Podemos, assim, problematizar a utilização de nego no Português Brasieiro
da seguinte forma:

a) Nego, adjetivo, provavelmente seu uso original na língua (homem negro


~ Homem nego ~ Nego);
b) Nego, nome, resultado de processos fonológicos e de processos
sintático-semânticos, como a perda do valor [+V] característico dos
adjetivos, nos termos de Chomsky (1965);

241
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

c) Nego, pronome, resultado do esvaziamento do conteúdo nominal e


adjetival para fins sintáticos, mas conservando algum traço
carcaterístico, apenas interpretado semanticamente.

A estratégia do diminutivo como componente morfológico que carrega


mudança de nuances semânticas é proposto por Santero (2011), em seu
estudo sobre o trabalho de face no português e no espanhol. No caso de nego,
o valor do sufixo –inho é, quase categoricamente negativo (afeto negativo), o
que parece ser atenuado com a utilização de pronomes possessivos de 1ª
pessoa. Esta estratégia, entretanto, é anulada e sua leitura acentuada quando
substituimos o pronome possessivo de 1ª pessoa por um de 2ª:

[...]
De quem é a boquinha, nêga?
Ela é sua, meu neguinho
[...]

Meu neguinho > seu neguinho

A perda do traço de 1ª pessoa na composição com nego que, segundo


Santero (2011, p. 34), é uma das marcações linguísticas do afeto positivo, gera
uma leitura não-subjetiva do item lexical, permitindo, assim, sua leitura de afeto
negativo.

Considerações finais
Neste trabalho, ainda em proogresso, pretendemos discutir as
estratégias línguísticas dos usos do item lexical nego, assumindo que sua
diversidade significativa se deve ao fato de este item estar sofreno um
processo de gramaticalização, fraco em alguns momentos, forte em outros
(LEHMANN, 1982).
Ainda, mostramos que esta multiplicidade semântico-pragmática,
vastamente encontrada na literatura e na música popular brasileira, pode ser o
reflexo de processos históricos, que impregnam o item lexical de valores

242
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

positivos e negativos, a depender dos processos avaliativos que se depreende


do contexto discursivo.
As análises e o tratamento dos dados, entretanto, precisam de
aprofundamento, para que possamos melhor responder as questões
levantadas para o desenvolvimento de nossa pesquisa.

REFERÊNCIAS

BUENO, Francisco da Silveira – Minidicionário da língua portuguesa – São


Paulo - Editora FTD, 1996.
CÂMARA Jr., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 3ª ed. Petrópolis: Vozes,
1970.
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press,
1965.
CUTI. Moreninho, neguinho, pretinho. Coleção percepções da diferença.
Negros e brancos na escola. V. 3, 2007.
DA VALÉRIA , Pepé; ADAN, Cal. Nega Vá. In: É o Tchan do Brasil. Polygram:
Rio de Janeiro, 1997
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
HOPPER, P. J. On some principles of grammaticalization. In: TRAUGOTT, E.
C. e HEINE, B. (eds.). Approaches to grammaticalization. Volume I,
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Company, p. 17-35, 1991.
LEHMANN, C. Grammaticalization: synchronic variation and diachronic change.
In: Língua e Stile 20, 1982.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas trecentistas: elementos para uma
gramática do português arcaico. Lisboa: IN-CM, 1989.
MEILLET, A. L’évolution des formes grammaticales. In: Linguistique Historiques
et Linguistique Générale. Paris: Librairie Ancienne Honoré Champion, 1958.
RIBEIRO, João Ubaldo. Questões Gramaticais. A arte de roubar galinhas. Rio
de Janiero: Editora Nova Fronteira, 1998, p. 95-99.
SAID ALI M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Edições Melhoramentos, 1971.
SANTERO, Camilla Guimarães. O uso do Diminutivo em uma interação face a
face: análise comparativa em corpora orais das variantes madrilena e carioca.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas (Língua Espanhola), 2011.
VELOSO, Caetano. Neguinho. In: Recanto. Universal Music: Salvador, 2011.
VILELA, M; KOCH, I. V. Gramática da Língua Portuguesa. Coimbra: Livraria
Almeida, 2001.

243
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: HISTÓRIA, CULTURA E ITINERÁRIO


BIOGRÁFICOS: QUESTÃO RACIAL, INTELECTUAIS E EDUCADORES
BAIANOS

PROPOSITORES: JOSIVALDO PIRES (UNEB) E SILENE ARCANJA


FRANCO (UNEB)

Ementa:

A narrativa de trajetórias individuais recuperadas dos frios e empoeirados

arquivos históricos e dos diferentes espaços de memória tem iluminado

questões e contextos mais amplos da experiência de indivíduos na sociedade

brasileira de diferentes períodos. A experiência analisada destes sujeitos

esclarecem questões bem mais abrangentes do que a história particular dos

seus personagens, consegue desvendar os múltiplos fios que ligam um

indivíduo ao seu contexto. Desta forma, o presente GT, procura reunir

pesquisadores das diferentes disciplinas das ciências humanas que tem se

dedicado a investigar a trajetória de homens e mulheres ou grupos específicos

que não usufruíram dos holofotes narrativos da História da Bahia, tendo assim

suas experiências encobertas pelo manto da memória social sobre intelectuais

e educadores baianos. A trajetória de juristas, escritores, professores, artistas e

toda sorte de protagonistas negros e não-negros que se dedicavam a questões

de interesse das populações afro-brasileiras, constituem o foco de debate do

presente GT.

244
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

DIFUSÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO: UMA VIVÊNCIA DE


VALORIZAÇÃO E PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA DO ARTISTA MIGUEL
ARAÚJO

ANA CARLA NUNES (UNEB)


KATHIA MARISE SALES (UNEB)

Conceitos de cultura e sua relação com a Difusão Social do


Conhecimento

Os dicionários de Língua Portuguesa abordam o termo cultura como um


conjunto de costumes, saberes adquiridos e ensinados que marcam a
existência dos povos, permitindo a manutenção e o registro das diversas
sociedades existentes no mundo. Elas são representadas por meio de danças,
lutas, tradições, arquitetura, povos e é definida como erudita e popular, mas o
conceito pode ser mais complexo. Esta amplitude do conceito de “cultura”
permite que alguns estudiosos a definam também como Patrimônio Cultural. A
exemplo disso Pelegrinni (1993, p. 92),

Ressalta que o significado dos patrimônios culturais é muito amplo,


sendo incluídos outros produtos do sentir, do pensar e do agir
humanos, variadas peças de valor etnológico, arquivos e coleções
bibliográficas, desenhos de sentido artístico ou científico, peças
significativas para o estudo da arqueologia de um povo ou de uma
época, e assim por diante; tudo somado no que se pode denominar o
meio ambiente artificial.

245
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

É por meio do mecanismo adaptativo que podemos perceber que a


própria cultura é capaz de responder ao meio em que se constrói, de acordo
com a mudança de hábitos. Outra característica importante é o seu mecanismo
cumulativo, ou seja, a cultura vai perpassando as gerações, acumulando
hábitos de cada uma e transformando-se, perdendo e incorporando aspectos
que possam adequar-se a sua sobrevivência. Ao longo dos tempos
percebemos que a cultura desenvolve-se e é dinâmica já que sofre mudanças
e alterações. Em alguns casos, as concepções sobre cultura são inovadas,
inventadas, criadas e aculturadas, ou seja, a cultura, à medida que ultrapassa
séculos e gerações, mantém e garante a continuidade dos povos, permitindo
que outras tradições misturem-se e as mudanças culturais e sociais
aconteçam, a partir deste contato e desta influência de um povo em relação a
outro.
Para que esta influência de outras culturas não ocorra, ou mesmo que
ocorram, não criem impactos negativos nas tradições de um povo, se faz
necessário a implantação de políticas públicas em prol da preservação dos
patrimônios culturais de determinadas localidades. Estas políticas devem ser
criadas por parte dos órgãos que são responsáveis pela manutenção da cultura
(IPHAN, UNESCO, IPAC, MINISTÉRIO DA CULTURA) e as mesmas devem
estar aliadas à preservação dos legados culturais que referencia uma
determinada comunidade.

Adquirir essa consciência que chamamos de “educação patrimonial”,


permitirá que a manutenção do Patrimônio Material e Imaterial seja garantida
em razão do processo contínuo do tempo. Assim, esta manutenção não privará
as novas gerações de dados importantes para a compreensão dos fenômenos
seculares ocorridos nas comunidades que possuem esta representação da sua
própria história e cultura. Percebe-se que as evoluções sociais e culturais,
assim como as transformações sofridas nas sociedades modernas e até
primitivas por conta de uma série de acontecimentos históricos, fizeram com
que os legados ou a memória coletiva, se tornassem transmissões culturais
entre os seres, por meio de vínculos com o seu passado, permitindo o resgate
de nossa identidade.

246
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Desta maneira, à medida que a manutenção das características é


repassada do passado para o futuro sem sofrer nenhuma interferência ou
alteração, os valores culturais são mantidos. Por isso é tão importante garantir
a conservação destas marcas do nosso passado, dando crédito e apoio à
revitalização de patrimônios ou o resgate destes legados culturais que no início
do texto chamamos de “cultura”. Se bem realizadas, essas ações de cuidado
ao patrimônio cultural material e imaterial permitem aguçar a memória coletiva
e esta, segundo Barreto (2000) “desencadeia, o processo de identificação do
cidadão com sua história e sua cultura.” Isso tudo em meio à globalização e a
um processo contínuo de não referenciação cultural à que sofremos
cotidianamente. Seja por meio do turismo ou da globalização maximizada que
ditam o que é ou não tido como tradição, é muito importante para a auto-
afirmação de nossa identidade étnica, religiosa, folclórica e cultural que criemos
desde a tenra idade um sentimento de pertencimento cultural, ao qual nos
referencia e nos identifica como seres sociais pertencentes a um determinado
grupo ou comunidade.
Desta forma, a Difusão Social do Conhecimento se apropria destes
elementos e possibilita que os saberes sejam transferidos de geração para
geração, possibilitando uma religação do passado com o presente, mantendo a
memória das pessoas, saberes e fazeres atuais e vivos para construção da
memória coletiva.

A Difusão Social do Conhecimento para a preservação do Patrimônio


Material e Imaterial

A formação da identidade dos grupos sociais se faz a partir dos


conceitos, vivências e memórias que os mesmos possuem sobre aquilo que os
referenciam como sujeitos sociais. Desta forma, a constituição dos significados
culturais para um determinado grupo social se objetiva a partir do que lhe é
apresentado por um membro da sua comunidade, inicialmente um componente
familiar, posteriormente pelos tantos outros sujeitos no decorrer da vida. Ao
longo da trajetória social, o indivíduo vai constituindo o seu sentido de

247
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

pertencimento local, que mesmo na fase adulta se singulariza como marca


indelével de sua identidade pessoal.
Durante seu desenvolvimento como ser humano-social, o indivíduo se
utiliza das representações simbólicas sociais como reconhecimento do seu
lugar. Nesse transcurso vai se fundamentando sua identidade, que é um passo
importante para sua participação como sujeito legitimado de uma determinada
cultura. Assim, a produção cultural ocorre a partir das relações estabelecidas
num diálogo com a história. Essa produção tem a total interferência dos
membros sociais que constrói um cabedal de valores, tradições, costumes e
referências que transforma a vida do indivíduo em sujeito social.
Neste exposto, entra o sentido de Patrimônio que na visão geral é tudo
aquilo de grande valor e importância, tanto para uma pessoa, quanto para um
grupo, uma comunidade ou um país. Patrimônio nos remete a questão de
memória individual e coletiva, a identidade e a heranças. Ele pode ser material,
que é tudo aquilo visível e concreto, ou seja, é o que podemos apreciar
utilizando os sentidos. O patrimônio imaterial por sua vez, é tudo aquilo que
não pode ser tocado, mas apreciado a partir dos sentimentos.

(...) O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e


constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de
seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade
humana. (IPHAN: PATRIMÔNIO IMATERIAL)

Desta maneira, o patrimônio material e imaterial tem uma relação direta


com a história, a cultura e a sociedade. A partir do desenvolvimento local,
envolvendo a economia, a educação, a história e as referências pessoais e
sociais, (re) criam-se novas perspectivas de preservação, revitalização e
reconhecimento da sua importância para o povo. Sendo visto como algo
importante que produz marcas identitárias.
Neste transcurso, entra a educação como desencadeadora de uma
conscientização e legitimação dos processos educativos que ver no simbólico e
no concreto algo que referencia a cultura, ao qual está inserido. A educação é
responsável pela acomodação do olhar, do corpo e das atitudes desde a tenra
idade dos sujeitos, levando-os a valorização da sua cultura e tradições.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A importância da cultura popular para preservação da memória das


populações: o trabalho de resgate e de Difusão do Conhecimento do
artista Miguel Araújo de Taperoá.

Cultura Popular, Festas e Folclore podem estar em uma mesma base


conceitual porque esta tríade apóia-se nos legados culturais de indivíduos, nos
mitos e lendas que são repassados e que são verídicos ou não-verídicos, mas
que encontram suas principais matrizes no empirismo ou conhecimento
Popular.
Esta reunião de saberes e viveres do povo trazido pelo Folclore e que é
utilizado basicamente para determinar a cultura das classes menos
favorecidas, está diretamente associada ao próprio conceito de Cultura
Popular, como define Edison Carneiro (1965, p.34),

Entende-se por Folclore um corpo orgânico de modos de sentir,


pensar, agir peculiares as camadas populares as sociedades
civilizadas. Alguns folcloristas entendem que o campo do folclore a
todas as sociedades até mesmo as primitivas, entretanto a existência
de graus diferentes da mesma cultura é necessária para caracterizar
o fenômeno, embora peculiares esses modos de sentir, pensar e agir
não são exclusivos do povo. Se as camadas populares integram, em
conjunto a sua vida cotidiana, toda sociedade se serve deles,
fragmentariamente, sob esta ou aquela forma.

Com o crescimento das sociedades evoluídas graças ao avanço das


tecnologias, as tradições populares aos poucos foram se perdendo. Isto se
deve ao novo modo de vida urbano, que não tem por costume cultivar ou
cultuar esses legados que são considerados vulgares pelas classes de maior
prestigio econômico em nossa sociedade, e que atualmente ditam as regras da
nossa cultura, e que de modo geral acabam não valorizando os costumes que
são adquiridos por meio de conversas, hábitos, crenças e costumes e
representados com o auxílio de diversas modalidades de expressão
(artesanato, dança, culinária, crendices, formas de se vestir, brincadeiras,
jogos, mitos, lendas, utensílios diversos, etc.). Todos esses valores têm um
ponto em comum: são transmitidos de geração em geração.
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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Este cuidado é uma maneira de manter o passado, dando continuidade


as suas tradições e gerando oportunidades para que outros povos conheçam a
nossa própria cultura por meio do que apresentamos como parte de nossa
história. Essa cultura pautada na vivência e observação, mas que nem sempre
é registrada em livros. É o que comenta Edison Carneiro (1965, p.76)

A experiência humana que se disciplina em cultura, constitui um


continuum de que participar tanto o conhecimento empírico do povo
como o conhecimento cientifico dos letrados. A sua existência na
mesma sociedade faz com que ambos os tipos de conhecimento se
vivifiquem mutuamente. O fato de terem uma origem comum – a
cultura universal sintetizada na civilização greco-romana propicia a
circulação dessa corrente vivificadora.

Com a diversidade Cultural do Brasil oriunda da nossa colonização


miscigenada entre índios, brancos e negros, os patrimônios imateriais de nossa
Cultura tornaram-se vastos. Esta junção de etnias fortaleceu todos os produtos
culturais existentes em nossas tradições, permitindo uma fusão única e
bastante expressiva. Na Bahia, pode-se observar que estas manifestações
adquirem um caráter diferenciado das manifestações populares existente em
todo o país.

Esta diversidade cultural, no entanto, pode ser denominada como


tradições, folclore, ou cultura popular e seu conceito é muito mais amplo, já que
estas manifestações constroem o legado cultural de uma sociedade e, por que
não dizer, da própria nação. Além disso, essa diversidade de cultura valoriza
determinadas localidades, como a Bahia, um dos Estados de maior
representatividade cultural do país.

As sociedades atuais, contudo, perderam o lastro que as tradições dos


povos dão a toda uma sociedade, porém uma preocupação mais maciça
acerca da manutenção dos bens intangíveis de nossa cultura passou a ter
visibilidade devido à necessidade de se conservar o patrimônio histórico-
cultural para a preservação da identidade dos povos. Os legados passaram a
ter uma proteção fundamentada a exemplo do que já é feito desde o ano 2000
pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) O processo
de tombamentos e registros no Programa Nacional de Patrimônio Imaterial

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

(PNPI) viabiliza a identificação, o reconhecimento e salvaguarda a dimensão do


patrimônio imaterial da cultura.

Este programa trata-se de um estatuto que avalia o bem e o registra


segundo sua característica e categoria. Desde a criação do PNPI, alguns
registros já foram feitos em alguns patrimônios existentes no país, a exemplo
do Círio de Nazaré, O Oficio das Baianas de Acarajé, O Samba de Roda do
Recôncavo e O Frevo. Em alguns casos, estas expressões culturais são
tombadas e reconhecidas como Patrimônio Imaterial e esta ação torna evidente
que uma preocupação estética passou a ocupar espaços nas mesas de
discussão governamental, a conseqüência disso, permitirá que em breve as
tradições sejam mantidas, os legados culturais eternizados, e as tradições
culturais superem os capitalismos, as evoluções sociais e globalizações, que
nem sempre favorecem para que perpetuem-se e sejam e repassadas as
novas gerações.

Difusão Social do Conhecimento e a preservação da cultura através da


obra do artista Miguel Araújo.

A Cidade de Taperoá originou-se de uma aldeia indígena em 1561,


passando ao longo dos tempos por diversas transformações até a sua
constituição em Cidade no século XIX. É uma localidade pequena, constituída
de Praças, Casarões Coloniais, prédios históricos, atrativos naturais e
Patrimônios Culturais, que em meio às evoluções e transformações sociais,
mantém-se graças ao trabalho do Senhor Miguel Araújo de 84 anos de idade,
artista plástico local, pesquisador, pintor, escultor e único responsável pela
manutenção da memória e de grande parte dos festejos culturais da Cidade.

Este trabalho aborda a importância da Difusão Social do Conhecimento


para a Cidade de Taperoá. Assim como o trabalho que é feito de manutenção
da cultura popular e da cultura de maneira ampla e geral do artista Miguel
Araújo, que mesmo não tendo um espaço museal, guarda a memória e a
história local através das suas criações.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Durante os meses de Outubro a Novembro, foram realizadas junto com


os alunos do IFBA Campus-Valença, algumas visitas técnicas a sua casa.
Neste ambiente, foi verificado e vivenciado a riqueza da história regional
através do seu vasto acervo. Cada espaço da sua casa contém um pouco da
história da cidade, esculturas de santos, pinturas, máscaras e peças feitas com
materiais reciclados, cadernos com poesias e coleções de obras de arte que
simboliza a essência do seu pertencimento a Cidade de Taperoá.

Essa simbologia possibilita uma Difusão ampla do conhecimento que


Miguel Araújo possui e que foi aprendido de maneira empírica desde a sua
infância, e que é transformado em novos saberes, quando materializado nas
suas produções artísticas feitas em ferro, palha, madeira, materiais recicláveis.
Toda esta produção guarda de maneira significativa as memórias de um
morador que convive há mais de 80 anos com a dinâmica e com as
transformações da Cidade de Taperoá.

Este olhar de pertencimento é o que faz com que a Difusão Social do


Conhecimento possibilitada através de Miguel Araújo ocorra de maneira muito
natural. Sendo um processo espontâneo que ocorre nos meios sociais, sem
que haja uma intencionalidade. Assim acontece com o Senhor Miguel. Desde
criança, começou a produzir peças artística, a qual produzia a partir das
leituras e do conhecimento que lhe chegavam através dos livros e revistas que
pessoas lhe davam. Neste processo Sales ( 2013, p.82) aborda que,

(...) Podemos compreender que a difusão social acontece como efeito


de processos cognitivos de sujeitos comprometidos e envolvidos com
as dinâmicas epistemológicas, produtivas – hoje baseadas no
conhecimento como infraestrutura produtiva.

Desta maneira, o referido artista passou seus 80 neste processo de


produção artística, difundindo mesmo que sem intenção o conhecimento
através das suas obras, que adquirem um abrangência global, pois as obras
foram vistas e apreciadas para além da casa do artista, ou para além da cidade
de Taperoá. Assim, ainda para Sales, (2013, p.86)

(...) A difusão não implica apenas aparatos instrumentais, lógicos,


técnicos, pragmáticos, mas, especialmente, as ações intencionais e
subjetivas que atuam e interferem nestes aspectos/estruturas a partir
de sentidos que os sujeitos lhes atribuem, fundando-os – são

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

“lugares” do sujeito, onde se expressam e exercem funções de


sujeito, resignificando a difusão e seus instrumentos e pragmáticas,
bem como reinventando-os, dinamizando-os, atualizando-os.

Assim, pode-se dizer que o artista Miguel Araújo, ao longo da sua


trajetória como artista, intencionalizou e se colocou como produtor de
conhecimento e como sujeito que se reinventa e participa ativamente do
processo construtivo de suas obras.

Com as visitas e sensibilizados com o olhar de preservação do senhor


Miguel Araújo, os alunos foram incentivados a pesquisar o trabalho do artista, e
assim, surgiu à vontade da criação de um Museu Virtual. Este ambiente
auxiliará na promoção, divulgação e manutenção da vasta obra cultural deste
artista. O Museu Virtual servirá para aproximar pesquisadores, estudantes,
amantes da arte e da cultura, de modo geral das produções feitas pelo artista.
Este espaço permitirá um novo olhar de preservação da cultura histórica e
social na ótica deste ilustre morador. Desta maneira, o conhecimento, assim
como a cultura devem ser revestidos em prol da comunidade.

Conclusão

Desta maneira, fica aparente que a cultura associada à preservação do


Patrimônio Material e Imaterial é o que referencia os sujeitos ao sentido de
pertencimento a uma determinada comunidade. Nesta trajetória, os indivíduos
se fazem seres sociais. As expressões e os fazeres culturais, delimitam a
maneira de apropriação do conhecimento. O senhor Miguel Araújo é sem
dúvida um fazedor e mantenedor dessas possibilidades de preservação cultural
da cidade de Taperoá-Bahia.

Através do olhar particular e singular do artista, a Difusão Social do


Conhecimento ocorre através de um processo que perpassa ao conhecer-
analisar-executar, ou seja, o artista materializa sua forma de pensar através
das suas obras concretas. Neste transcurso, há uma relação entre o conhecer
e o fazer, disseminando seu conhecimento, pois após a concretização da obra,
ela deixa de ser algo próprio para ser conhecida e levada para além do seu

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

conhecimento. Desta forma, Preservar e manter a Cultura Popular se faz


necessário, pois é uma questão de afirmação identitária de uma determinada
comunidade.

REFERÊNCIAS

JR, Duarte. O sentido dos sentidos. Criar Ed. Curitiba-PR, 2001.

AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem: Apontamentos para um livro de


memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Repensando a pesquisa participante. São Paulo.


Editora Brasiliense, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa.


31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 148p.

BURNHAM, Teresinha Fróes. Epistemologia, construção e difusão do


conhecimento: Perspectiva em ação. Salvador: Eduneb, 2011.

ARANTES, Antônio Augusto. O que é Cultura Popular? São Paulo: Brasiliense,2004.


PELLEGRINI FILHO, Américo. Ecologia, Cultura e Turismo. 2ed. Campinas:
Papirus,1993.
BARRETTO, Margarita. Turismo e legado cultural. Campinas: Papirus, 2000. 95.p

CARNEIRO, Edison. Dinâmica do Folclore. São Paulo, Civilização Brasileira, 1965.


IPHAN. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/234> Acesso, Nov. 2015.

SALES, Káthia Marise Borges. Cognição em ambientes com mediação telemática –


uma proposta metodológica para análise cognitiva e da difusão social do
conhecimento. Disponível em:
http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/12992/1/Tese%20DMMDC_Kathia%2
0Sales.pdf> Acesso em 08 de dezembro de 2015.

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GRUPO DE TRABALHO: BAIANIDADES RASURADAS

PROPOSITORES: MARCOS AURÉLIO DOS SANTOS SOUZA (UNEB),


BRAULINO PEREIRA DE SANTANA (UNEB), LIDIA NUNES CUNHA(UESB)

Ementa:

Este grupo tem como objetivo discutir a formação discursiva da baianidade.

Através da leitura de textos literários do século XIX e XX, os trabalhos desse

GT buscam expor e questionar o regime de verdade que estabelece um ideal

de baianidade como pensamento ou comportamento social. A leitura de

escritores baianos, como Xavier Marques, Sosígenes Costa, Adonias Filho,

Jorge Amado e outros, tem como problema a ideia de que os emblemas

discursivos da baianidade não podem ser entendidos como linearidade e

consagração unívoca, mas como dispersão e rasura.

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O CONTROVERSO “SER BAIANO” PRESENTE EM BAHIA DE TODOS OS


SANTOS: GUIA DE RUAS E MISTÉRIOS, DE JORGE AMADO

TATIANE ALMEIDA FERREIRA 38(FAPESB,UFBA)

Introdução

O presente artigo tem como proposta fazer uma leitura da narrativa de


Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios (1977), de Jorge Amado,
tomando, para tanto, as considerações do filósofo argeliano Jacques Derrida
acerca da administração do phármakon (remédio e/ou veneno) para o campo
da análise, a fim de fazer uma reflexão sobre o poder da escrita literária
enquanto construtora de identidade.
A obra do escritor brasileiro é uma produção cultural que produz
memórias e, consequentemente, uma identidade sociocultural, excedendo o
próprio texto, por conta do valor de alcance que possui. Embora pretenda ser
um guia turístico para a “Cidade da Bahia”, forma como Jorge Amado se dirigia
à cidade de Salvador, o livro não exalta apenas a beleza, a riqueza cultural e a
natureza da urbe para o turista, mas questões de ordem histórica, sociocultural
e identitária são também problematizadas.
Acionaremos o phármakon derridiano para entendimento da
problemática em torno da escrita, justamente por ela ser a linguagem de que é
feita a Literatura. Em sua obra A Farmácia de Platão (2005), Derrida traz o
mito de Toth, narrando que este descobriu os caracteres que dão forma à

38
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (UFBA).

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

escritura, à astronomia e à geometria. Toth oferta a Tamus, rei do Egito, esse


conhecimento que faria com que os egípcios ficassem mais instruídos e mais
eficazes na arte da rememoração: a escrita (DERRIDA, 2005, p.21), que viria
em auxílio da memória quando esta falhasse.
Tamus não acreditava que esse presente traria benefícios. As
características da escritura é que promoviam essa desconfiança, fazendo
sucumbir à fala, promovendo o seu parricídio. Porém a escrita não estaria
destituída de erros, pois para o rei “[...] só um discurso 'vivo', só uma fala […]
pode ter um pai” (DERRIDA, 2005, p.23). A fala seria verdadeiramente viva “[...]
para protestar quando for o caso e para se deixar questionar” (DERRIDA, 2005,
p.23).
Para Thot, a escrita é um remédio de combate ao esquecimento. Para
Tamus é um saber morto afastado da presença do pai logos, tornando-se uma
espécie de suplemento perigoso, um veneno que debilitaria a memória. No
entanto, a escrita tem o poder de persuadir, de transformar, pois enquanto
phármakon é capaz de passar de um significado a outro, por abrigar um caráter
ambíguo: é remédio para a perda da memória, mas, ao mesmo tempo, é
veneno, porque causa o parricídio da fala que acontece, para que se escape do
controle do pai, do logos, da presença, da verdade. A escrita contesta o que é
a verdade única, original, enunciada apenas por um.
O escritor Jorge Amado propõe outras verdades em sua escrita-
phármakon, pondo em questão o significado essencial com as suas verdades
metafísicas. O guia Bahia de Todos os Santos enquanto phármakon expressa
que a permanência da memória através da escrita é possível, ou seja, a obra é
um remédio envenenado contra a diluição dessa memória altamente
enunciativa sobre a cidade de Salvador.

Bahia de Todos os Santos: um phármakon

Os dizeres sobre a Bahia no guia Bahia de Todos os Santos


exemplificam a capacidade de a palavra dar forma a um discurso e projetá-lo
como uma verdade, a ponto de ele ser tomado e enunciado como tal pelos

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leitores, pelo senso-comum e pelos viajantes que são incitados a vir conhecer
a Bahia amadiana através do que leem em suas obras.
O discurso identitário construído em suas narrativas foi sendo
absorvido, mesmo que inconscientemente, e constituiu-se como verdade
cristalizada. Em contrapartida, o modo de produção, de circulação do literário
e de conteúdo da literatura contemporânea tenciona essa baianidade, situando
quem a fala e de qual lugar geopolítico e geocultural o faz, questionado essa
forma de entendimento do que é a identidade, o povo e a cultura local. É
necessário um contra discurso tão forte quanto para destituir determinadas
verdades referentes à identidade baiana que foram erguidas ao longo do
tempo. Para tanto, é preciso haver um descentramento discursivo, pois a
essencialização tem um poder político, uma vez que a linguagem produz um
lugar, um povo, realidades, sujeitos e etc.
A baianidade é uma ficção criada por diferentes autores, mas que tem
alguma relação com a herança africana. Ainda que neste discurso haja muitas
fraturas, a sua imagem está presente no imaginário de quem vive na cidade de
Salvador e de quem a visita, como também nas veiculações midiáticas que
são propagadas.
O guia Bahia de Todos os Santos expressa que a permanência da
memória através da escrita é possível, ou seja, a obra é um remédio
envenenado contra a diluição dessa memória da cidade de Salvador, que ficou
conhecida como “terra da felicidade”, festeira, hospitaleira, de encantos e de
gente alegre. Uma memória tão ficcional quanto à própria ficção, gestada na
realidade e na invenção, a ponto de tornar-se fala, reproduzir-se e manter-se
ao longo do tempo, uma vez que o texto literário não só representa como é
também uma força discursiva para além das representações estéticas. Além
disso, esse discurso foi apropriado por outras mídias. Assim, o escritor criou
uma memória que excedeu o espaço da escrita e se perpetuou na fala corrente
e em meios de comunicação como a televisão, o cinema e a publicidade.
Nesse sentido, a narrativa da baianidade extrapolou os limites da
escrita literária e gerou um discurso identitário conflituoso, cheio de
interpretações errôneas e exclusões que o tornam um veneno. Ele produz
realidades e age no cotidiano, pois é portador de uma linguagem performática.

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Tomás da Silva pautando-se em Derrida e em sua noção acerca do poder da


repetição, assinala que:

[...] A eficácia produtiva dos enunciados performativos ligados à


identidade depende de sua incessante repetição. [...] É de sua
repetição e, sobretudo, da possibilidade de sua repetição, que vem a
força que um ato lingüístico desse tipo tem no processo de produção
da identidade [...] ‘a escrita é repetível’. (SILVA, 2000, p. 94).

Vemos que, ao utilizar-se da palavra, um escritor cria verdades. As


palavras são utilizadas para tal fim, elas seduzem quando ditas com convicção
e, se são repetidas, ganham novos adeptos que a reproduzem, recriam ou a
adotam no cotidiano. Percebemos porque a linguagem escrita pode ser um
veneno para o filósofo platônico, justamente por sua capacidade de seduzir e
fascinar, criando imagens que se propagam indiscriminadamente.
Para Derrida o phármakon possui um caráter ambíguo, próprio da
palavra. A escritura é apresentada como phármakon (remédio) e recebida
como phármakon (veneno), sendo então duplamente condenada por Platão:
primeiro, por pretender substituir a fala; depois, por abalar a estrutura das
distinções fora/dentro, sensível/inteligível, bom/mau, falso/verdadeiro. Quanto a
essa qualidade do phármakon, elucida Niall Lucy (2004):

Phármakon é a condição na qual a oposição entre remédio e veneno,


bom e mal, fala e escrita é produzida. No movimento e no jogo de
ambiguidade da palavra, o phármakon vem primeiro, as oposições
vêm depois. Por isso, o phármakon é a differánce da diferença, é o
que deve sempre preceder, sempre vir antes de qualquer diferença
opositiva. (LUCY, 2004, p. 92).

Nesse sentido, a escrita de Jorge Amado é um veneno, porque se


torna fala corrente e não se restringe a ser somente escritura, é um
phármakon. As palavras do escritor para o guia permitem apreender a forma
como foi construído um discurso identitário, de reconhecimento do que é ser
baiano, mesmo sem se ter nascido na Bahia. Em palavras do escritor para
Bahia de Todos os Santos: guia de ruas de mistérios:

Baiano é um estado de espírito, certa concepção de vida, quase uma


filosofia, determinada forma de humanismo. Eis porque homens e
mulheres nascidos em outras plagas, por vezes em distantes plagas,
se reconhecem baianos apenas atingem a fímbria desse mar de
saveiros, as agruras deste sertão de vaquejadas e de milagres, os

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rastros desse povo de toda resistência. [...]E como baianos são


reconhecidos, pois de logo se pode distinguir o verdadeiro do
falso.(AMADO, 1977, p. 20).

O fragmento acima retirado do guia demanda uma análise múltipla,


tendo em vista ser um phármakon. Uma das leituras que podemos fazer dessa
passagem insiste em colocar um sujeito baiano estável, herdeiro de uma
metafísica humanista, marca de uma tradição filosófica centrada no sujeito, nos
valores da identidade e da presença a si. Para o escritor, ser baiano é uma
filosofia de vida, algo de essencial para além das demais identidades, algo
próprio, incomum, que só aos baianos pertenceria. É, sem dúvida, uma
metafísica que pretendeu fundar uma identidade. Refletindo sobre essas
questões essencialistas, Derrida apresenta a sua desconstrução e propõe a
destruição da metafísica, para libertar a filosofia dos conceitos que a fundaram.
A baianidade, a identidade baiana, em especial, a soteropolitana e a do
Recôncavo, é um discurso essencialista acerca da cidade de Salvador e sua
gente. Para entender melhor essa problemática, é válido recorrer ao significado
da palavra identidade, que quer dizer idêntico a si mesmo, implicando uma
semelhança essencial que percorreria toda a existência como sociedade ou
como indivíduo, prevalecendo em meio a uma tradição singular, neste caso, a
tradição baiana, que é inventada, híbrida e de formação recente, daí a sua
inoperância. Essa verdade cristalizada tem um poder político presente no
discurso literário, que participa da produção identitária através do jogo da
linguagem, produzindo um “ser baiano”. Nesse sentido, a baianidade é uma
ficção bem metafísica, porque Amado coloca a Bahia como centro do mundo e
isso conduziria a uma verdade fechada, não dando possibilidade ao trânsito.
Se a escrita amadiana é um phármakon, logo ela é vista como veneno,
diante da criação de uma verdade em meio a tantas outras sobre a “Cidade da
Bahia”, fugindo assim do controle da fala, do logos do pai, na medida em que
constrói um imaginário na escrita, registrando assim uma memória, pois a
resguarda, o que a torna parte da cultura. Contudo, não se deve perder de vista
que se a literatura é escritura, não pode conter a verdade e a presença viva.
Além disso, se é ideia de, não é ideia pura, segundo Platão, há uma negação
de toda essência, é mais uma questão de interpretação. Conforme Derrida,

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[...]o phármakon, ou, se assim se preferir, a escritura, só possa aí


girar em círculos: é em aparência que a escritura é benéfica para a
memória, ajudando-a do interior, por seu movimento próprio, a
conhecer o verdadeiro. Mas, na verdade, a escritura é
essencialmente nociva, exterior à memória, produtora não de ciência
mas de opinião, não de verdade mas de aparência. O phármakon
produz o jogo da aparência a favor do qual ele se faz passar pela
verdade etc. (DERRIDA, 2005, p. 50).

A verdade da identidade baiana não existe, ela é criada no discurso, no


estabelecimento de produto de narrações, de construções, de fantasias
pessoais, de aparatos e de relações de poder. Quem instituiria a categoria do
verdadeiro seria a fala e não a escrita, na lógica de Platão. Para Derrida, o
valor do phármakon enquanto positivo ou negativo é uma questão de
interpretação que precede às oposições metafísicas, além disso, ele não
produz verdades essencialistas, mas sim aparência.
Esse pensamento universalizante “[...]E como baianos são
reconhecidos, pois de logo se pode distinguir o verdadeiro do falso”(AMADO,
1977, p.20) é metafísico e se quer essencial, configurando como uma
pretensão de verdade, de realidade através das relações antinômicas ser, não
ser, verdadeiro-falso, a lógica binária do eu e do outro. Em suma, apesar de
Amado criar uma verdade, distinguindo um suposto verdadeiro de um falso, a
escrita se contradiz e engana, por ser responsável pelo jogo das aparências e
por não ter como imperativo categórico a verdade, ou ainda, uma única. As
palavras do filósofo negam a sua existência, pois de acordo com ele:

A verdade da escritura, ou seja, nós o veremos, a não-verdade, não


podemos descobri-la em nós mesmos, por nós mesmos. E ela não é
objeto de uma ciência, apenas de uma história recitada, de uma
fábula repetida. (DERRIDA, 2005, p.18).

A verdade não atua como condição de existência para si. A escritura


sofreria de uma incompatibilidade com o verdadeiro, de uma errância em
relação a essa verdade original, essencial que hierarquiza as identidades e as
diferenças.
O tema da verdade e da falsidade aparece nessa passagem da obra
amadiana e encontra-se em meio a um jogo, numa relação em que uma
determina a outra. Para falar disso, Derrida toma como referência Nietzsche
que considera a vontade de verdade como uma ação moral que esconde a

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mentira, a falsidade. Para ele, o conceito de essência não passa de um


simulacro, deslocando qualquer valor de superioridade, pois todos seriam
vontades de potência do homem, isto é, a verdade seria uma falsidade.
O conceito de verdade para Deleuze (1976) também se apoia nas
considerações de Nietzsche, que defende que não podemos conhecê-la, pois a
verdade é interpretativa, logo ela não existiria. A impossibilidade da verdade
resultaria do fato de haver um jogo de aproximação entre a verdade e a
falsidade. Em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche nos
fala a respeito da verdade:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas,


metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas
e enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas,
canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se
esqueceu de que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem
força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram
em consideração como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE,
1996, p.48).

Para Nietzsche a verdade não passa de uma ilusão que tomamos


como valor, de uma forma de adestramento de corpos, já que ela tem o poder
de regular as ações. O que é tido como verdadeiro é uma fantasia instituída.
Logo se vê que a identidade é um efeito de verdade e, portanto, não pode ser
nem verdadeira nem falsa, porque não é primitiva, nem estável. A verdade é
um desdobramento de sua vontade de potência, que está ligada às imposições
de quem exerce o poder.
A não identificação com a cultura da Bahia gera então o falso baiano
que não se adapta. O processo de hibridização cultural aconteceria entre os
que chegam à Bahia e se permitem misturar, promovendo a mobilidade e o
contato entre os diferentes territórios identitários, deslocando as identidades
que se pretendem originais e essencialistas. A viagem, a chegada a um novo
lugar, é a metáfora móvel da instabilidade da identidade, ou seja, é preciso
cruzar, de fato, a fronteira, e não permanecer nela. Essa é a problemática de
construção identitária. Aquele que resiste acreditando que sua identidade é
algo inato existente desde o nascimento, que não vai se contaminar, expressa
o caráter ambíguo das identidades fixas, que são algo mais imaginário que
real. Uma identidade unificada em um “eu” coerente, resguardada da influência

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do outro, é uma grande fantasia confortadora. O falso baiano expressa a


artificialidade de todas as identidades, por serem atravessadas por disputas de
território simbólico.
Até aqui essa foi uma das leituras que fizemos desse trecho da obra de
Jorge Amado, contudo, o texto requisita outras, visto que se trata de um
phármakon que abriga em si a dualidade. Apesar do apreço do escritor pela
filosofia clássica e a exaltação ao humanismo, notamos que ele não ignorou a
questão da diferença. Se lermos o texto de forma apressada, não
perceberemos que não há apenas uma essencialização desse “ser baiano”, há
também o estabelecimento de uma categoria de baianidade, pois não se
precisa ter nascido na Bahia para possuí-la, nem para afirmá-la.
Aparentemente a ideia de verdade, assim como seus postulados de influência
e de origem são latentes na passagem “baiano é um estado de espírito”, marca
que não há uma identidade fixa, que ela é apenas um estado. É um modo de
estar e não de ser. É uma condição. Qualquer um pode tornar-se baiano, não é
algo definido, nem definitivo, até mesmo para aqueles nascidos na Bahia.
Nesse sentido, o sujeito assume identidades diferentes estabelecidas
na relação eu/outro nos diferentes momentos de sua existência, identidades
que não são unas, puras ou completas ao redor de um eu. De tal modo, o
escritor questiona os discursos de hegemonia, hierarquia, centramento,
dominação e poder, pois a identidade torna-se uma "celebração móvel", uma
construção histórica e social, que não é original, transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2005, p. 12). Trata-se de uma
definição histórica e não biológica. Isto se deve à decorrência da
desterritorialização, pois o sujeito não é mais centrado.
Nesse processo de se tornar baiano há um desenraizamento dessas
pessoas, transcendendo fronteiras e identidades territoriais específicas. Essas
identidades desterritorializadas se deslocam e adquirem um novo significado,
com novas potências políticas.
Esse fragmento do texto amadiano desloca também os esquemas
cristalizados de unidade, pureza e autenticidade. Além disso, ele não pode se
configurar como estando em busca de uma origem, pois não se fecha à

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presença estrangeira, a do outro, para assegurar uma “diferença essencial”,


assumindo, dessa maneira, o sentido do desvio, operado pelo jogo da
différance, de Derrida (2002). Isso significa uma marca de contestação,
expondo a fragilidade dos mecanismos do discurso da metafísica ocidental,
pois ao dizer que ser baiano é um estado, não há uma identidade fixa, não há
uma homogeneização do que é ser baiano, há uma identidade aberta que
contestaria uma essência única, própria de quem nasceu na Bahia.
Percebemos assim que o escritor baiano propõe a ideia de identificação e não
de identidade, pois se trata de um processo, de um devir que não se completa,
por estar em constante movimento. “Uma identidade nunca é dada, recebida ou
alcançada, não, apenas existe o processo interminável, indefinidamente
fantasmático, da identificação” (DERRIDA, 1996, p. 43).
Nesse momento, o escritor opera um contra discurso ao remeter a
discussão acerca da identidade através de uma perspectiva que não privilegia
o local e o centro. A sua escrita passa a ser um remédio, pois é uma atitude
mais consciente, mais comprometida, que implica repensar mais
profundamente a questão identitária, problematizá-la, submetendo-a à dúvida,
à crítica, à análise. Seu entendimento acerca do que é o ser baiano consiste
em não se marcar a identidade, podendo este ser o mesmo e o outro. Há,
portanto, um deslizamento desses polos que marca a ausência de essência.
O pensamento amadiano enquanto veneno/remédio sai da metafísica,
uma vez que a escrita literária opera-se de forma contraditória. Ser baiano é
uma verdade que não é verdade, já que as pessoas se tornam baianas a partir
do momento que se reconhecem como tais ou assim são reconhecidas. Nesse
caso a aparente noção de origem é desconstruída pelo próprio autor, na
medida em que qualquer um pode converter-se em baiano basta se identificar
com a cultura, não é algo essencial. Assim, a relação com a alteridade se
confirma nesse jogo ser/não ser, como um jogo da différance que não se
prende à oposição, mas uma requisita a outra, como uma forma de rastro de
uma e outra, pois para ser um “verdadeiro” baiano não precisa estar
necessariamente ligado a uma origem nativa, podendo esse ser qualquer um.
Nesse sentido, o escritor desconstrói a ideia de origem, de verdade,
apesar de trazer a dicotomia do falso, mas marcada pela différance, que é a

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tensão e ligação entre os opostos. É preciso dizer que há o falso baiano para
que o verdadeiro se fortaleça, para que mais adeptos queiram se tornar
“essencialmente” e “verdadeiramente” baianos, mesmo que isso não seja
possível. Contudo, as regras do discurso pede essa afirmação identitária, pois
as narrativas tendem a inventar as identidades e as diferenças.

Considerações finais

Pela análise apresentada, percebemos que a linguagem literária


amadiana é um phármakon, um remédio para a morte da memória, mas
também veneno, porque ao mesmo tempo em que tenta alcançar uma
essencialidade inalcançável, a nega de pronto. Enquanto remédio e veneno,
não distingue o bem e o mal, o verdadeiro e o falso de forma clara, por conta
da própria especificidade dúbia da literatura. E, por não se tratar de remédio
inofensivo, já que é um phármakon, segundo Derrida, não pode jamais ser
simplesmente benéfico; a essência ou a virtude benéfica dele não o impede de
ser doloroso (DERRIDA, 2005, p. 56-57).
O texto de Jorge Amado se auto-desconstrói, nele há pontos de
quebra, tornando-se assim uma potência desviante que se afasta de um ideal
de origem em vários aspectos. Portanto, é uma fonte de erro, de perdição,
pois o phármakon instaura a dualidade, a contravenção que destitui as
certezas, as afirmações e a identidade. Remédio e veneno, ele é essa
différance, esse momento em que já não se consegue perceber a diferença
entre dois significados distintos.
Segundo Platão, a literatura não é um discurso autorizado para tratar
da verdade, antes disso, distancia-se dela e cria outras verdades, instituindo os
seus critérios de verdadeiro e falso. Como phármakon, burla esse jogo de
polaridades, por não abrigar em si uma essência, ao contrário, imprime o
exercício da différance, de um rastro, de um novo sentido que nunca se
completa. Nessa perspectiva, distancia-se da presença do sujeito da
enunciação e da voz reveladora da verdade, pois “[...] escrevendo o que não
diz, não diria e, sem dúvida, na verdade jamais pensaria, o autor do discurso

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escrito já está instalado na posição do sofista: o homem da não-presença e da


não-verdade”(DERRIDA, 2005, p. 12).
Portanto, o escritor Jorge Amado, como herdeiro de Thoth, deixa em
suspenso a essência para propor outras discussões, outras verdades na
escrita-phármakon, para que o rastro e as diferenças apareçam,
desconstruindo o centro como norteador do pensamento ocidental, pondo em
questão o significado essencial com as suas verdades metafísicas.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Rio de


Janeiro: Record, 1977.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e
Ruth Joffily Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro ou a prótese de origem.
Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 1996.

_________. A Escritura e a Diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da


Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002.

_________. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.


HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. 10. ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005.
LUCY, Niall. A Derrida Dictionary. Victoria: Blackwell Publishing, 2004.
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral.
In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo:
Editora Nova Cultural, 1996.
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos
estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

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POETA DA BAHIA: IMAGENS DA BAHIA NA POESIA DE SOSÍGENES


COSTA

MARCOS AURÉLIO DOS SANTOS SOUZA (UNEB) 39

De todos os gêneros textuais que conhecemos, o poema parece ser o


mais comprometido com uma localidade imediata, pelo menos, uma localidade
linguística. Por isso, é considerado o gênero de mais difícil tradução para uma
outra língua. Todas as traduções poéticas são sempre mais ou menos felizes e
infelizes releituras do texto original.

Por outro lado, o poeta muitas vezes se apresenta como ser


angustiado que quer produzir um discurso universalizante. A poesia, assim,
pode ser considerada como um ponto de cruzamento entre o desejo do
universal e a força semântica de sonoridades e cadências, que muitas vezes só
funcionam num determinado contexto semântico, em que o poeta compartilha
sua própria língua.

O poeta se move no conhecido particular, mas sua ânsia é pelo


desconhecido. Ele oscila entre o íntimo e o alheio. Entre aquilo que lhe é
familiar, ou seja, sua própria língua, com suas sonoridades, sentidos, lugares-
comuns, e a vontade de comunicar sentimentos e sentidos universais. A
poesia torna, dessa forma, o imediato, usual, que é a língua, em algo estranho
e alheio, expressando assim, o que Freud chamou de estranho familiar,

39 Professor Adjunto B do DEDCI/UNEB.

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unheimlich, “como algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz"
(FREUD, 1919-1986).

Com essa reflexão inicial, quero lançar minha inquietação sobre o


sentido de uma literatura baiana ou de uma poética da baianidade. Defendo
que a melhor forma de pensar uma arte do pertencimento, é pela via da rasura
do texto, que é a língua e a própria cultura, na qual o artista se insere e se
move. Rasurar é reinscrever com violência, produzindo no código esperado,
deslocamentos constantes que destituem qualquer fixidez, acomodadora do
estético e das fronteiras ideológicas e/ou identitárias.

Sosígenes Costa, poeta baiano, nascido na cidade de Belmonte, sul da


Bahia, morto no final da década de 60, produziu uma das obras mais
surpreendentes, em que a rasura do texto cultural e do código linguístico, que
induz o sentido de pertencer a uma região, funciona como o leitmotiv da sua
própria criação poética. Amigo do escritor Jorge Amado, com o qual formou um
grupo modernista na Bahia, a chamada Academia dos Rebeldes, no início do
século XX, Sosígenes, ao contrário do amigo famoso, quase nunca saiu da
Bahia. Para Amado (escritor que dedicou alguns livros e inspirou o personagem
Sérgio Moura de São Jorge dos Ilhéus) o poeta belmontino era uma espécie de
guru modernista baiano. José Paulo Paes, crítico paulista, dedicou uma obra
crítica a Sosígenes, intitulada Pavão Parlenda Paraíso, reconhecendo-o
como uma das principais vozes dos modernismo brasileiro. Entretanto, Paes,
não entendendo sua proposta poética e preso a uma visão etnocêntrica da
literatura, vinculou a obra de Sosígenes aos modernista paulistas,
considerando-a uma espécie de imitação atrasada do primitivismo literário da
Semana de 22.

A poesia de Sosígenes não foi tão bem compreendida por Paes.


Porque, enquanto os “corifeus” da Semana de Arte Moderna espalhavam
manifestos e livros nacionalistas, expressando uma tentativa desesperada de
síntese e representação folclóricas da diversidade cultural brasileira, o autor de
“Búfalo de fogo” encontrava nas suas experiências de leitura e em sua cidade,
Belmonte, às margens do rio Jequitinhonha, nas brincadeiras e nos costumes

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do seu locus, o material artístico necessário para a sua composição poética,


sem, entretanto se fixar numa postura “primitivista” hermética.

Conectado com o mundo, através de sua erudição e de leituras dos


mitos e histórias diversas das civilizações humanas, e com os pés fincados no
sul Bahia, Sosígenes estava tanto para São Paulo e Europa quanto para China,
tanto para erudição academicista quanto para os folguedos e crenças
populares, tanto para o Modernismo quanto para o Simbolismo e para o
Parnasianismo, para literatura brasileira e hispânica. Sua localização, dessa
maneira, se constituía em um entre-lugar discursivo, de onde aproveitava com
satisfação estética tudo o que sua antena poética captava.

Sua poesia caracteriza-se por tornar aproximar uma realidade imediada


ao estranho e longínquo, numa interessante sinestesia cultural: um oriente tão
caboclo, às vezes belmontino, quanto, douradamente chinês e misteriosamente
árabe, uma ânsia contínua de unir a aparente disparidade do mundo ocidental,
bíblico, parnasiano, ao “paganismo” caboclo, presente em narrativas colhidas
ao léu na voz do povo. Ao poeta encantava tanto o mundo contemplativo do
Parnaso, quanto o brilho da porcelana e da arquitetura chinesas, em poemas
como “Imagens da China” e “Versos aos vinte anos”. O Egito e todo o mundo
árabe esbalda mistério em versos como “A canção do menino do Egito”, “A
procissão de Cleópatra” etc. A poesia de temática africana tem destaque
especial como em “Cantiga Banto”, “Negro Sereio”, “Cantiga de Canavial” (um
poema em que ele compara o chicote de Pilatos com o chicote da escravidão
brasileira).

Viajando por essas paragens, persiste, entretanto, no seu mundo


caboclo de cantigas infantis, seu mundo imediatamente indígena estranho, em
intercessão com o universo. Iararana, o maior poema de Sosígenes, que se
transformou em um único livro, composto por quase dois mil versos em quinze
cenas, é uma prova contundente do caldo multicultural em que Sosígenes
embebia sua poética . “Epopeia grapiúna”, como chamou Gerana Damulakis
(1996), “Odisséia cabocla”, Cid Seixas (2001), “modernismo visto do quintal”,
como denominou José Paulo Paes (1977), são designações que traduzem uma
intercessão entre a aldeia do poeta e a pluralidade cultural do mundo que lhe

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cerca e lhe provoca. Seu poder de sinédoque, permite , então, a partir do


ambiente nativo, como diria Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa,
ver quanto da terra se pode ver no universo, sentir o outro, dialogar com o
vizinho e o alienígena.

Em Belmonte, numa ambiência marcada pela história da colonização


brasileira, a narrativa evoca localismos, flora, fauna e costumes, mas também
se comunica com mitos europeus, narrativas diversas das histórias escrita e
orais, produções literárias do Brasil e da América Latina. O lugar de Sosígenes
funciona através de uma “perspectiva dupla”, a mesma que Eliana Reis
identificou na literatura do escritor Wole Soyinca: “ele fala de dentro de sua
cultura, mas também de fora como alguém que não pertence totalmente àquele
mundo” (1999, p. 39).

O poeta se constitui como sujeito cultural, através dos contatos,


encontros e relações com o universo que o cerca. Fora de seu mundo, sua
cidade, seu quintal, ele encontra uma pluralidade significativa, onde reaviva nos
fragmentos de mundos tão distantes e tão próximos, as vozes apagadas
daqueles que viveram e vivem à sombra de um discurso identitário unívoco e,
ideologicamente, homogênea. Essa oscilação entre o particular e o plural
acaba por criar uma intimidade intersticial das diferenças culturais, no sentido
que lhe empresta Homi Bhabha, onde “as experiências intersubjetivas e
coletivas de nação, o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados”
(1998, p. 22).

Ao devassar motivos mítidos de origens diversas numa posição


intersticial, Sosígenes reinventa sentidos e pluraliza significantes. Nesse
aspecto, é que um centauro, figura errante da mitologia grega, inicia a trama
narrativa em Iararana, intercessionando-se com representações do colonizador
europeu – terrível e arrebatador, “anta medonha com cara de homem”
(COSTA, 1979, p.22) – e de diversos elementos da mitologia nativa, indígena
ou cabocla – a exemplo do cavalo-marinho, monstro marítimo fantástico da
mitologia cabocla: Ipupiara, gênio bestial e repugnante, inimigo, conforme
crença indígena, dos pescadores; o Jurupari, ou o pai do mato, figura temida
responsável por retirar o poder original das mulheres e entregar aos homens, e

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Tupã, deus poderoso, presente no estrondo do trovão e no clarão do


relâmpago.

Na cena II do poema, observa-se esse ser metade de homem, metade


cavalo, amalgamado com as crenças dos caboclos que assustados usam de
seu cabedal mítico para tentar apreender aquele ser estranho que se adentra
na barra do rio Jequitinhonha, em Belmonte, depois de ser da “pontinha da
Europa, porque era ousado demais”:

Essa anta com cabeça de gente não era anta…

Aquilo era cavalo com cabeça de gente.

O caboco com ódio o chamou Tupã-Cavalo

pois tinha o corpo de cavalo e andava de quatro pés

e só era gente, lá nele, até o imbigo, pode crer….

E os índios foram obrigados a servir Tupã-Cavalo

porque viram que ele sabia muita coisa

e era como Jurupari. (COSTA: 2011,p. 33)

A perspectiva utópica, fora de um lugar determinado (ou localizada em


um “não lugar”), é observada também na profusão mítica , elementos de
origens diferentes que se relacionam entre si numa negociação de sentidos
que revela a natureza profundamente local e plural, ao mesmo tempo, de
Iararana. Convivem num mesmo cosmo criativo mitos de natureza universal e
europeia (que foram assimilados pela cultura brasileira) como lobisomem e a
bruxa, que fogem do Centauro (outro mito europeu) junto com bichos e os eres
fantásticos da mata atlântica do sul da Bahia; mitos brasileiros (caboclos e
indígenas) como Romãozinho, caipora, curupira, Iara, boitatá, Sucim Saterê e
aqueles mitos criados no universo ficcional da obra – com os mesmos atributos
mágicos e de “verdade altenativa (que se perde no tempo) dos mitos coletivos
– como o Filhinho de aimoré, Tupã-cavalo, alma do mato e Iararana, que é a
filha do Centauro e da Iara, mas nega sua mãe e assume o discurso
colonizador e violento do pai.

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Essa diversidade mítica se estabelece através de um tempo indefinido,


anacrônico, também plural. A anacronia, aliás é um aspecto que atenua a
perspectiva descentrada em Iararana e em grande parte da obra de Sosígenes
Costa. José Paulo Paes dá uma mostra dessa propriedade poética, quando
analisa “Na casa de Açucena” um poema de Sosígenes em que reúne:

numa festa promovida pela flor cujo nome figura no título do soneto,
Sardanapalo, o devasso e poderoso rei assírio do século VII A.C, e
Frederico da Prússia, gênio militar do século XVIII, flautista e amigo
de Voltaire. E em Cuidado com o Rei de Ofir, outro poema, onde um
soberano dos templos bíblicos briga com um chefe asteca do século
XII, ameaçando exilá-lo para além da Patagônia, região positivamente
desconhecida do oriente antigo (PAES, 1977, p. 26).

Em Iararana, alguns exemplos assinalam esse abandono da noção de


estabilidade temporal e geográfica para assumir uma ideia de trânsito entre
histórias, mundos, percepções, culturas, identidades, marcando aquele “além”
pressentido por Bhabha na obra de alguns artistas.

Além significa distância espacial, marca um progresso, promete o


futuro; no entanto, nossas sugestões para ultrapassar a barreira ou o
limite - o próprio ato de ir além – são incognoscíveis, irrepresentáveis,
sem um retorno ao “presente” que no processo de repetição, torna-se
desconexo e deslocado. O imaginário da distância espacial – viver de
algum modo além da fronteira de nossos tempos – dá relevo a
diferenças sociais, temporais, que interrompem nossa noção
conspiratória da contemporaneidade cultural (BHABHA, 1998, p 23).

Assim, também, é que no “tempo do onça” em Iararana (tempo que


designa passado longínquo e que no poema possui, ainda, estreita relação
com uma idade anterior à própria existência e concepção da humanidade)
aparecem, paradoxalmente, figura que fazem parte do mundo presente do
poeta, a exemplo do homem-de-saia , que José Paulo Paes identificou como
um delegado de Belmonte “ que para não ser reconhecido em suas escapadas

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noturnas, disfarçava-se de mulher” (COSTA, 1977, p. 11). Essa mesma figura,


pertencente a um tempo vivenciado pelo poeta, surge acompanhado de os
diversos elementos míticos, fugindo do Centauro na cena I do poema:

Um dia, dom Grilo passou por aqui

Correndo de um bicho que estava lá atrás.

O homem-de-saia ficou com medo

E entrou no mundo.

Aquela bruxa também azulou.

O lobisomem tomou um sumiço

e a mula-de-padre foi se esconder. (COSTA: 1979,p. 35)

Nesse trânsito entre lugares, tempos e culturas diferenciadas, o poeta


abre espaço para um olhar deslizante, através do qual emerge um discurso
híbrido, que reflete e desconstrói a ideia de identidades unificadas, através de
símbolos fixos, tradutores da noção de pertencimento a uma cultura ou uma
região. Num poema intitulado “Poeta da Bahia”, em que mostra uma
multiplicidade estranha de elementos culturais, Sosígenes flagra espaços
vazios e instáveis no discurso da baianidade

Dizem que sou poeta da Bahia...


Eu não sei porque isto!
Eu não como efó,
nunca vi o acarajé,
eu não sei o que é obi,
eu não sei o que é obi,
nem ebo nem vatapá.
Nunca vi bejerecum
nem uru nem orobó.
Não vendo cocada,
não vendo jiló.
Não sei quem é dona Loló.
Não compro na biboca
ierê maia atarê.
Não vivo labutando

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com a baronesa de Passé.


Nunca fui a Itaparica,
não vou a festa de bagunça
onde tem faca e fuzuê.
Não pesco de puçá,
nunca fui pegar siri.
Se se come caruru
com farinha ou com acaçá
não sei.
Não moro em casa velha
que levantou o vice rei.
Não faço feitiço
não ando em candomblé.
Não acompanho procissão
de opa velha la da Sé.
Não toco pandeiro,
não toco ganzá.
Não planto guiné
nem croto dois de julho.
Não rezo santo antônio
nem são cosme são damião.
Não sou seabrista
nem farrista
ou civilista
nem cruz vermelha nem fantoche
Minha noiva não tem coche
que pertencesse a dom João.
Nunca fiz um soneto
ao casamento da raposa.
Minha avó não é Moema
nem meu pai Tomé de Sousa.
Minha noiva não tem coche
que pertencesse a dom João.
Nunca fiz um soneto
ao casamento da raposa.
Minha avó não é Moema
nem meu pai Tomé de Sousa. (COSTA: 2001A,p. 33)

Ao abordar uma narrativa híbrida e anacrônica e construir uma poética


do estranho familiar, Sosígenes se desloca num lugar deslizante e ambíguo,
em que faz refletir o cruzamento de elementos culturais diversos da história do
Brasil, em seu processo discursivo, conflituoso e violento. É nesse lugar
incômodo que a poesia encontra sua potência enquanto força criadora e
enquanto rasura.

REFERÊNCIAS

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

HABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana


Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora
da UFMG, 1998.

COSTA, Sosígenes. Crônicas e poemas recolhidos. Salvador, Fundação


Cultural de Ilhéus, 2001A.

______ . Iararana. Introdução, apuração do texto e glossário por José Paulo


Paes. São Paulo: Cultrix, 1979.

______ Poesia Completa. Salvador: Conselho Estadual de Cultura da Bahia


Salvador, 2001B.

DAMULAKIS, Gerana. Sosígenes Costa, O Poeta Grego da Bahia. Salvador:


Empresa Gráfica da Bahia; Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1996.

FREUD, Sigmund. O estranho. In: ESB. v. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1919-1996.

PAES, José Paulo. Pavão, Parlenda, Paraíso – Uma tentativa de descrição


crítica da poesia de Sosígenes Costa. São Paulo: Cultrix, 1977.

REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem


cultural: a literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará;
Salvador, BA: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999.

SEIXAS, Cid. Sosígenes Costa: Epopéia cabocla do modernismo na Bahia. In


PÓLVORA, Hélio (org.). A Sosígenes, com afeto. Salvador, Edições Cidade
da Bahia, 2001, p. 75-84.

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REMINISCÊNCIAS DA MATA ATLÂNTICA PELO FIO MEMÓRIA:


REPRESENTAÇÕES DA NATUREZA EM CORPO VIVO, DE ADONIAS
FILHO

MANOEL BARRETO JÚNIOR (UNEB) 40

Y así te digo por última vez:


La naturaleza no tiene núcleo ni cáscara;
Mirate tu más bien,
Si cáscara o núcleo eres.
Goethe

A memória natural de um povo também pode ser preservada na medida


em que se acolhem as matérias difusas de suas narrativas. De tal maneira, a
partir de efeitos estéticos e intersubjetivos o escritor concebe a natureza e as
tendências evolutivas das civilizações modernas, uma vez que reflete a
manutenção das práticas sociais e o substrato humano. Aspectos empenhados
pelo discurso ficcional que tem uma linha clara do modo de conceber a
natureza que orbita o homem - mesmo que através de memoráveis
lembranças.
As consequências do ponto de vista acima referido são estratégias
narrativas desenvolvidas por Adonias Filho, quando agrega imenso valor
memorialístico nas suas composições literárias. Neste sentido, a representação
da natureza, como reflexo estético da realidade experimentada, traduz-se pela
exuberância preservada da Mata Atlântica - que como matéria-estética,
fecunda o fluxo narrativo-descritivo da obra Corpo Vivo (1962). De tal maneira,

40
Professor Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia - UNEB – Doutor em Literatura pela
Universidade de Brasília - UnB.

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o imaginário do ficcionista é povoado pelas vivências do menino Adonias, que


criado nas terras do cacau, aprendeu a desvendar os mistérios da natureza.
Artifício estilístico, que remete a Raymond Willians (2000, p. 89), quando
afiança, que a “intenção de enfatizar a ideia de natureza contém, embora
muitas vezes de modo despercebido, uma quantidade extraordinária da história
humana”.

Contudo, a primeira referência quando se pensa em Adonias Filho é


lembrar que se trata de um daqueles escritores muito citado na academia, mas
pouco lido e, consequentemente, pouco conhecido pelo grande público.
Exceção feita lá pelo sul da Bahia, terra fértil no plantio do cacau e na
formação, por excelência, de meninos grapiúnas 41. Forjados para assumir
cadeiras na Academia Brasileira de Letras.

Corpo Vivo foi publicado em 1962. Um romance concluso do que a


crítica historiográfica nomeia de “trilogia cacau”, composta digressivamente por
Memórias de Lázaro (1952) e Os Servos da Morte (1946). A técnica usada pelo
escritor em Corpo Vivo é a tomada de várias cenas dispostas cronologicamente
de maneira descontínua. Adonias abandona, como já havia feito anteriormente,
em Servos da Morte (1946), “a narrativa de início meio e fim”. O tema central
da obra circunda em torno na vingança e da transformação ontológica do
homem em seu ambiente natural e os (des)caminhos e a ascensão consumado
das relações entre os homens e as práticas sociais. A este respeito, escreveu
Eduardo Portella, na Revista Tempo Brasileiro (1974):

[...] Mas não teria maior consequência se se tratasse de uma


vingança horizontal e romântica. Não. Esta começa por ser vingança
que não houve. O que é tanto mais surpreendente quando sabemos
que a substância dramática de Cajango se origina precisamente da
expectativa da vingança, desta sua destinação inapelável. Toda a
ferrociadade do personagem central repousa diretamente desse ato.
Tudo mais era simplesmente o trajeto de sua consumação. Adonias
Filho, porém, não vacila em destruir o herói. Interdita a vingança,
promove automática descompressão da heroicidade, sacrifica a
substância heroica desde o início. É um comportamento que cresce
quando sabemos normalmente fiéis salvadores do herói. O normal
em nossa literatura é salva-se o herói. Adonias filho se empenha
exatamente em uma solução diversa: desfaz o mito do herói, se
prefere implacável desconstruidor do herói. É este o seu maior ato de
violência, como meio para transcender. E que assim procedendo

41
Diz-se do gentílico daqueles nascidos na região cacaueira, no sul da Bahia. Hoje
apresentada como Costa do Descobrimento.

277
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chega a incorporar a morte ao cotidiano e retirar-lhe a normal


tragicidade. (FILHO, 1974, p. 12-13).

Estratégia de certa forma utilizada por Victor Hugo em Os Trabalhadores


do Mar (1886), quando anuncia um fim inesperado e trágico para o
protagonista da obra: Gilliatt; depois de seus desafios, superação e luta contra
as forças da natureza. Difere as tragédias pela condição providencial, pois em
Corpo Vivo (1962), a natureza apresenta-se como aliada ao menino Cajango
que aprende com o tio Inuri os segredos mais profundos para sobrevivência em
terras intocáveis, insólitas. No entanto, a condição do existencialismo passa a
ser repensado, uma vez que a natureza acolhe, desafia e liberta os
personagens através das contingências disparadas pelo meio ambiente. Obras
tão distante temporalmente, mas que seguem aliadas pelo curso natural dos
seus protagonistas, frente aos desafios impostos pelas forças natureza.

Indubitavelmente, o poder enfático, orgânico e protagonista da natureza,


dificilmente precisa ser enfatizado ao leitor de Corpo Vivo, dada à comunhão,
mesmo que por vezes conflituosa, entre as partes. Por este princípio, alude
Raymond Willians (2000, p. 91), sobre a alegorização discursiva da natureza:

[...] O que mais impressiona é a coexistência da ideia comum de “um


estado de natureza” com o uso quase despercebido, por ser tão
habitual, de “natureza” para indicar a qualidade inerente ao acordo.
Esse sentido de natureza como a qualidade intrínseca e essencial de
qualquer coisa em particular é muito mais que acidental. Na verdade
há evidências de que essa tenha sido, historicamente, seu primeiro
uso. (WILLIANS, 2000, p. 91).

A este ponto, uma análise bastante específica em Corpo Vivo,


problematiza a possível simbiose nutrida entre o homem e o meio ambiente.
Ambos agindo como extensão de si, per se. Um duplo que se caracteriza entre
os percursos do desbravamento para o plantio do cacau e a preservação da
mata, ainda que para tanto, possa acontecer interesses de conflitos. Cada
esfera de atividade cria forças contraditórias com tendências degenerativas –
do próprio homem e da floresta – que sucumbem e servem como modelo de
resistência interior contra a influência da gana pela posse de terras
representada pelo passado primitivo de uma civilização singular. Com efeito,
deve-se evidenciar que a Mata Atlântica, mantém grandes proporções
territoriais na região sul da Bahia, fato acontecido não por mera generosidade
ou consciência ambiental dos fazendeiros e trabalhadores rurais. Mas por um

278
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motivo simples: sem a densidade da mata o cacaueiro não resiste. Ou seja, à


lavoura cacaueira precisa da copa das árvores para sobreviver, fato que
possibilita relações amenas com o ecossistema local.

Entre o desbravamento da mata e a sua preservação para a produção


agrícola. O homem sulbaiano aprende a cuidar da floresta e a respeitá-la, pois
nela a sobrevivência, pensada de maneira sustentável e possessiva é evidente.
Esse acordo ecológico 42, mesmo que (in)consciente dos cacauicultores;
acabam por influenciar toda uma civilização que circundam, bordejam ou que
simplesmente vivenciam a intensa presença da Mata nas cidades do sul da
Bahia, que se confunde(iam) com vastos quintais.

Artifício, muito próximo ao que afiança Benedict Anderson (2008),


quando pensa na condição duma suposta “biografia das nações”, em seu
intenso trabalho comunidades imaginadas:
Tal quais as pessoas modernas, assim ocorre com as nações. A
consciência de estar formando parte de um tempo secular, serial
como tudo que isto implica de continuidade, e sem embargo de
“esquecer” a experiência de continuidade engendrando a
43
necessidade de uma narrativa de “identidade ” [...]. (ANDERSON,
1996, p. 116).

Por este olhar, as riquezas da relação entre o homem e a natureza


constituem o alicerce descritivo-narrativo experimentado em Corpo Vivo,
quando filtradas pelo imaginário do ficcionista a revelar as memórias de quem
corria entre os cacaueiros e a mata fechada. Fato que autentica o reflexo
artístico da realidade, consubstanciado entre as memórias pueris, que desnuda
as personagens - quase sempre, representada por intenso processo de
desantropormofização; transfigurados pela usura das matas, que se
transformam em roças para o plantio do fruto.

Por estas perspectivas, a narração principia em evidenciar a maneira


pelo qual a memória enxerga as temporalidades. Aspecto que desvela o

42
Toma-se a noção da palavra ecológica e seus derivados a partir do vocábulo ecologia, de
acordo com Barbosa (2005, p. 63): “A palavra ecologia, que segundo TRIGALE (1991) é
oriunda do grego e formada pelo sufixo logia (estudo) e pelo radical eco casa “querendo dizer:
o conhecimento de nossa morada”, tem uma conotação abrangente que prevê o cuidado com o
planeta Terra, mas o caráter de movimento de preservação do meio ambiente (fauna e flora,
sobretudo, mas também rios, florestas, mangues, cadeias de montanhas etc.).
43
Tradução livre.

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desenvolvimento da civilização humana e sua necessária simbiose com a


natureza:

Encontrarão o ninho, é o que pensa. Nas costas oculta pela mata


ficara a serra. A terra deveria ter se contorcido, fervendo em lama,
pedras e lavas em atrito, para fazê-la o aleijão medonho. Erguendo-
se na chapada, montanha que sobe em desaprumo, florestas e
rochedos se abraçam nas quedas dos despenhadeiros. Furação
doido e bruto que rodeava a torceira, como se fosse pano molhado, e
malhas são as nuvens que a rodeiam. O vento detido pelas encostas
do outro lado, não passa. (AGUIAR FILHO, 1974, p.19).

De tal maneira, o primeiro parágrafo da narrativa, acaba por se


multiplicar em todo romance; através do modo discursivo que conclama os
elementos naturais, inclusive, pela estratégia discursiva de transformar homens
em pássaros. Pois é o que evidencia a busca pelo ninho, uma metáfora que é
bastante explorada pelo autor em relação ao personagem Cajango. Ainda que
seja uma conexão retórica, a natureza se representa em cada personagem, e
se faz bastante aparente na personagem Hebe 44: que em dados momentos da
narrativa em presságios alerta: mataram os passarinhos de Deus!

De alguma maneira, a metáfora zoomorfica homens em passarinhos,


posto certamente para lembrar aos leitores da delicadeza que se propõe à
pequena ave, em sua forma sensível, perante os perigos da mata. Mas
também, evidencia a maneira brava, como essa mesma ave, adentra o coração
da selva a colorir com seu canto e plumas o denso verde-mar. Contudo,
homens e pássaros são a simbiose naturalista que se alimenta da
característica mais forte de cada ser; para se fazer sobrevivente a cada
instante do decurso histórico-temporal. Indubitavelmente, pode nascer dessa
responsabilidade as causas primeiras e consequências produzidas das
relações contraditórias – e por isto humana - que os homens têm com a
natureza.

44
Hebe é uma personagem emblemática que embala o fluxo narrativo. Uma mulher branca
com vestido preto e cabelos tão alvos como algodão que vaga pelos caminhos, vilas e
florestas. Sua voz tem um quê de mau agouro que lembra as Harpias do Inferno de Dante
(aves de rapina com rosto e seios de mulher). A personagem sempre aparece antes ou depois
do derramamento de sangue provocados pelos jagunços ou pequenos agricultores, nas lutas
pela terra. O anúncio da morte acontece quando e/ou depois de proferida a única frase que
Hebe entoa: “mataram os passarinhos de Deus!”. Entre as aves locais alude referência direta o
“Rasga mortalha” e a “Acauã”.

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A essa noção, o processo de antropomorfização, tão presente na obra


adoniana, pode ser entendido como matéria que busca fundir o sujeito histórico
com o universo. Movimento que se enriquece as experiências contextuais de
leitura, na medida em que torna eficaz a interfaces intersubjetivas em
representar o mundo e (re)criar o outro.

Afloradas tais questões, a representação da natureza na obra literária,


alinha a compreensão de bases naturais, como aponta Barbosa (2005):

Tratar da ideia de natureza, bem como suas implicações no universo


literário é tratar de um assunto multidisciplinar, complexo e capaz de
provocar distintos envolvimentos, exigir (sic) métodos e razões
estéticas, psicológicas e filosóficas. Toda simplificação deve,
forçosamente, pegar tributo à relativização e avaliar os prejuízos daí
decorrentes. Não deixa, porém de ser recompensador tentar adentrar
o campo da natureza e sua representação na literatura. (BARBOSA,
2005, p. 99).

Contudo, avançar exige sempre o retorno para o conhecimento da


natureza em sua plenitude germinal. Ainda na dimensão multidisciplinar da
representação, o mundo adoniano circunda uma qualidade de força
sobrenatural, que com a tessitura, mostra-se sensível à agitação externa da
vida, em captar; inclusive, as consequências que envolvem a violência e a luta
pela posse, tão presentes à realidade dos desbravadores da região cacaueira
da Bahia, em meados do século passado. Aspectos expressivos que
implementam o substrato visceral, e, portanto histórico e intersubjetivo que
representa a civilização sulbaiana em sua totalidade. A esta questão, conforme
Simões (1996), o berço mítico do autor de Corpo Vivo modifica-se
ficcionalmente pela carga simbólica, particularmente evidenciada através de
um discurso singular.

[...] O vento trouxe o fogo, lutamos como foi possível, mas o milagre
foi salvarmos a menina’. A mulher, na cacimba fora buscar água. O
homem na roça, fazia uma coivara, Quando correram, e chegaram, a
casa era uma fogueira. Dentro no quarto, a menina chorava, Ferira-se
o homem, e ali estavam a s queimaduras, ao tentar penetrar a casa.
[...] (AGUIAR FILHO, 1974, p. 29).

No excerto, os quatro elementos da natureza são representados, a


demonstrar que o ficcionista, parte da interação ambiental que evidenciam
negociações documento-ficcional como aspecto artístico. Um movimento com o
surgimento de uma personagem que provoca relações recíprocas com a

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natureza e que mudaria completamente o rumo de uma saga vil.


Descaminhado pelo amor, quiçá, para restabelecer a condição humana do
personagem. Deste modo visto, certamente qualquer outro nome de Mulher
seria possível, mas Adonias precisava de alguma forma, amolecer o coração
cego de Cajango. Assim surge: Malva 45. A erva-bálsamo que cambia e integra
o homem ao meio ambiente:

A labuta do homem contra as forças da natureza são cenas fortes


apresentadas por Adonias, que as conhece pelas vivências e pelo ouvir falar.
Sob tais perspectivas, o realismo ligado à memória, flui alicerçando a narrativa.
Movimento que embala um lirismo único ao apresentar as adaptações do
homem sulbaiano para sobreviver na densidade da mata. Mais tarde, já aliada
a ela, o homem aproveita suas armas naturais para impedir ameaças vindouras
de outros homens que não conhecem os segredos da floresta.

[...] A mata parece parada, na espreita, ainda não habituada com o


movimento dos homens Todos, homens e mata, como que escutam a
manhã. Empretecendo-se, agora é quase negra. E as folhas do alto,
começam a gotejar. Penetrando lentamente as copas das árvores,
escorrendo pelos galhos, a chuva acaba por atingir os homens. Os
mosquitos não incomodam tanto. Goteiras ininterruptas que castigam
e irritam, molhando os arbustos. Cobrem-se os homens com as capas
de lona que retiraram dos bornais. O Sangrador, apenas ele, não
sente a chuva. João Caio, sabe, porém, que a chuva levará meses. E
mudando de cor as suas águas, os rios ajudarão a Cajango.
(AGUIAR FILHO, 1974, p. 65).

Um aspecto objetivo deste recorte entre as polaridades entre o homem e


a natureza. Neste sentido, Curtius (1996), assinala que a paisagem ideal, se
quando o teórico retoma a noção conceitual do locus amoenus. Como
representação literária, tema que desde Idade Clássica até a modernidade é
utilizado esteticamente como expressão do fazer literário, de tal modo para
Curtius (1996, p. 257). [...] o locus amoenus é um topos bem delimitado da
descrição de paisagens. A ele ainda também se liga ainda outros problemas da
tópica histórica e da estilística.

O propósito distante do que vivem os personagens da obra, que


inebriados pela violência, são insensíveis à presença da natureza. A não ser
pela interlocução mais que necessária, de um sobrevivente que se revela não

45
É um gênero botânico da família Malváceas (Malva Silvestris). Gênero bastante comum na
Mata Atlântica.

282
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por exótico, mas profundo conhecedor de sabedorias ancestrais de nações


primitivas e dizimadas – Questão articulada pelo ficcionista quando direciona o
olhar a crítica sócio-histórica da civilização cacaueira – De tal modo, Adonias
consegue redimensionar a narrativa, como quem busca caminhos revisionistas
de um passado longínquo:

Três segundos imóvel, vazio o próprio olhar, a mercê da memória.


Quem sai das sombras é Inuri, deitado aos pés do fogo, a
recomendação queimando. Oito anos, sepultas em si mesmo,
aquelas palavras: “Se eu morrer, e tudo tiver ocupado, procure a
serra”. Não poderá contar as léguas para o norte até encontrá-la. “Os
homens não a conhecem”, A voz de Inuri. A serra que é uma
montanha, as nuvens encobrindo o dorso, ladeiras em que pés não
subirão em dez anos. O bugre estive com as mãos em sua base. “Vá
para serra, Cajango, se eu morrer, a voz de Inuri. (AGUIAR FILHO,
1974, p.116-117).

Portanto, os litígios mais importantes dessa constatação se apresentam


pelo fato de que a realidade selvagem da mata serve de locus amoenus a
Cajango. Pela restauração que o estatuto artístico se oferece a partir das
relações do homem com o meio ambiente. Desse modo, pelo fluxo narrativo, a
representação da natureza sulbaiana funciona como registro (documental) de
um passado natural, e, consequentemente, como elemento rudimentar na
construção do discurso literário. Entretanto, o cenário descrito apresenta certo
lirismo pela (re)apresentação de espécies nativas da flora e fauna local, através
da memória afetiva e aproximações entre tradições, mitos e cultura da região
cacaueira da Bahia.

A estas inferências de leitura, pelo caráter geral da obra, é com Malva


que Cajango busca o ninho em algum lugar da serra. Daí o plano estrutural da
obra cumpre-se quando refletido, sobretudo, pela zoomorfização dos homens
em passarinhos, que se encontra na natureza e suas arrebatadoras formas de
humanização. Para isto, os diversos planos da saga se entrecruzam numa
tessitura delicada que vão se ajustando no interior da obra, inclusive, por
restaurar nos homens feições das sintonias ontológicas:

[...] As nuvens continuarão descendo e sem qualquer vento, como


que caem pela força do próprio peso. Os olhos saem das nuvens,
agora confundidas com a montanha, e fitam Bem-Bem que aguarda a
resposta. Inútil dizer que Cajango se entenderá com a serra, ela o
abrigando até fazer-se esquecido, o sangue de Inuri em suas veias.
As peles de suas feras vestirão a ele à mulher, o alimento em suas

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caças e suas ervas, os braços se encontrando com suas árvores.


(AGUIAR FILHO, 1974, p. 135).

Não é de outro modo que o refúgio de Cajango e Malva se apresenta


como uma espécie de representação do paraíso terrial, axioma que
fundamenta a visão rousseauniana da integração homem-natureza. Pois,
naquele momento, ambos são selvagens na medida em que pertencem àquele
mundo primitivo, sem qualquer indício da civilização. Por esta acepção o
contrato tácito aí se representa; pois logo, o ficcionista articula a poiesis que
recria o mundo prefigurado na primitiva civilização cacaueira, de modo a
embalar o imaginário, fato retroalimenta as reminiscências do que foi um dia
Mata Atlântica sulbaiana.

[...] Um dia e talvez o tempo seja longo, os homens se aproximarão


levando os cacaueiros até o cume da serra. As florestas serão
derribadas, as matas vencidas, Cajango tão-somente uma sombra.
Até esse dia, porém, e enquanto vivo estiver o corpo, não será um
cego. As imagens estarão nos olhos, as vozes renascendo, a vida
perto como a pulseira de ferro. (AGUIAR FILHO, 1974, p.135).

Desafiado pelas contingências do imaginário, a narrativa deseja a peleja


e assim encaminha o leitor para uma terra singular que existiu no imaginário de
autor e que se faz sólida e independente pela ênfase do distanciamento
temporal. Talvez, a invocar a natureza, enquanto espaço mítico, edênico que
continua a encantar pela possibilidade permanente da arquitetura textual que
se mostra sempre disponível às parcerias contemporâneas.
Decerto, se acha a natureza incorporada à memória do ficcionista de
Corpo Vivo, que através dum atenuado tom profético já prefigurava os ecos
angustiosos da natureza - em tempos vindouros.

REFERÊNCIAS

AGUIAR FILHO, Adonias. Corpo Vivo. Editora Civilização Brasileira. Rio de


Janeiro: 1974.
AUERBACH, Eric. Mímesis: a representação da realidade na literatura
ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1946.

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CURTIUS, Ernest Robert. Literatura europeia e a Idade Média latina.


Tradução Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: Hucitec/EDUSP, 1996.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. /Mikhail Milhailovitch Bakhtin;


prefácio da edição francesa Tzvetan Todorov; introdução e tradução do russo
Paulo Bezerra. – 6ªed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São


Paulo: Hucitec Editora, 2010.

BARBOSA, Sidney. A representação da Natureza no romance francês do


século XIX. Tese em crítica e história do romance (Livre-docência).
Araraquara: Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, 2005. Disponível em:
http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/livre.../Barbosa_s_Id_arafcl.pd
f Acesso em 23 mai. 2012.

BASTOS, Hermenegildo. Formação e representação. In: Cerrados: Revista


do Programa de Pós-graduação em Literatura, n. 21, ano 15, 2006, p. 91 - 112.

GOETHE, Johann Wolfgang von. Ultimatum. Disponível em


http://www.textlog.de/18654.html Acesso em 10 out. 2015.
LUKÁCS. György. Marxismo e teoria da literatura; seleção, apresentação e
tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2ed – São Paulo: Expressão popular,
2010.
______. La mision desfetichizadora del arte. In: Estética – Tomo I, 2012.
SIMÕES, Maria de Lourdes Netto. Caminhos da ficção. Salvador: EgBA,
1996.
WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura.
Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das letras, 2000.

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UMA LEITURA MÍTICA DA IARARANA DE SOSÍGENES COSTA

46
MARIANA BARBOSA (UEFS)

Na tentativa de reconstruir ou recontar a história da formação étnico-


cultural Sul baiana, busquei, através da saga da mitopoética da Iararana, fazer
a retomada e ressignificada dos mitos, algo tão comumente empregado na
escrita de Sosígenes Costa (1901-1968). Começo por justificar o título deste
artigo, este que seguiu-se embasado na obra escrita por Gerana Damulakis,
em 1996, Sosígenes Costa: poeta grego da Bahia (1996), na qual a ensaísta
retoma a máxima declarada por James Amado que o definia como “o poeta
grego da zona do cacau”.
O substantivo próprio que denomina o autor é de origem grega,
Sosígenes: astrônomo que viveu no século I a.C., provavelmente nascido, em
Alexandria, nomeado por César. Sosígenes auxiliou na reforma do calendário
romano no ano de 46 a.C., transformando-o em Juliano, baseado no calendário
egípcio, deixando de ter 445 dias para os atuais 365 e os anos bissextos. A
partir da inspiração advinda dessa figura histórica foi que, no dia 14 de

46
Mestra em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Professora de
Literatura Brasileira III e Conclusão de Curso I na Universidade Federal de Lavras EaD (UFLA
– MG); atua como Professora de Filosofia e Ética Profissional na Universidade de Ensino
Superior de Feira de Santana (UNEF).

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novembro de 1901, batizou-se na cidade de Belmonte, Bahia, Sosígenes


Marinho da Costa.
Em 1928, em Ilhéus passou a publicar poemas e crônicas no jornal
Diário da Tarde, com a coluna diária intitulada de “Diário de Sósmacos”, que
seria, segundo Aleilton Fonseca (2012, p. 209), a “[...] contração anagramática
de seu nome completo”. Membro da Academia dos Rebeldes, de Salvador,
Sosígenes Costa teve como companheiro de luta literária nomes como os de
Jorge Amado, James Amado, Hélio Simões e tantos outros contadores de
histórias e cantadores de versos dessa região. A Academia dos Rebeldes
surge com suas ideias demolidoras, reagindo contra os exageros dos
modernistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, cujo projeto ideológico era
valorizar a cultura popular local, essencialmente, a cultura africana e a afro-
baiana, marginalizadas no processo colonizador excludente brasileiro.
Posteriormente, em 1979, José Paulo Paes publica a obra Iararana
(1979), escrito em 1934, poema narrativo composto por quinze cantos, que o
ensaísta qualifica na análise do prefácio como o “[...] mais ambicioso e o mais
sustentado dos poemas de Sosígenes Costa” (PAES, 1979, p. 3). Para Paes
há nestes versos um propósito nacionalista, que ao enfatizar os valores da
terra, contrapõem-se aos valores exógenos, fundamentados pelo coloquialismo
e pelo uso de termos regionais.
O título da mitopoética é revelador, pois advindo do substantivo Iara
que corresponde a senhor/senhora, do tupi “ig” que designa “água”, estes que
se juntam ao sufixo–rana, cujo significado seria “falso”, “semelhante a”. No
Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo (apud PAES, 1979, p. 6),
descreve a iara ou a mãe-d’água como sendo uma criação do indianismo
literário, que buscava abrasileirar a figura da sereia sedutora de homens, um
mito europeu. Esta, na versão abrasileirada se tornaria a “falsa Iara”.
O autor sob um olhar antropofágico apropria-se de um vasto
vocabulário indígena para expressar um tempo idílico no qual os índios viviam,
harmoniosamente, com a natureza. Revela, também, a "história de alma com
bichos falantes" ou "pantomima curiboca" (alcunhas criadas pelo próprio
belmontense para designar seu longo poema narrativo), animais com

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características humanas que interagem com figuras que representam a cultura


popular, tal como a Iara e o Caipora.
Nesse prefácio Paes (1979) faz uma análise introdutória do poema com
o qual busca aproximar o leitor ao estilo do poeta, fazendo-o “entender a
vinculação dessa poesia com a segunda geração modernista brasileira,
pretendida por Paes, pela temática localista que privilegia o caboclo, a
presença de lendas e mitos regionais e a liberdade criativa” (MALAFAIA, 2007,
p. 17), como assinala Jane Malafaia.
A Iararana de Sosígenes Costa é uma alegoria escrita em 1930, que
narra a formação étnico-cultural do Sul da Bahia, mais precisamente Belmonte
(onde o poeta nasceu) e seus arredores, incluindo Porto Seguro (desembarque
de Cabral), partindo de subsídios formadores da identidade nacional, com
elementos que remetem à formação brasileira, como o branco.
A foz do Jequitinhonha se faz presente através da menção de locais
daquela realidade geográfica, estes mostram que tanto a colonização dessa
região, quanto o nascimento da falsa Iara são usados como metonímia da
mestiçagem que ocorreu na colonização brasileira. O tempo é o “tempo da
onça”, quando não havia estranhos. O protagonista é o invasor, enquanto o
herói é o menino do céu, sendo a Iararana o símbolo da consequência da
invasão, fruto da mistura das raças: mestiça, a falsa iara nascida da violação
da mãe d’água do Jequitinhonha por Tupã Cavalo (o Centauro invasor). Sendo
ela a própria rasura, uma espécie de forjamento da raça. Como descreve Para
Marcos Aurélio Souza, em Narrativas de Mestiçagem (2012):

[...] as narrativas de Jorge Amado, Sosígenes Costa, Adonias Filho


criam exemplos e contra exemplos (rasuras) na configuração de
formação discursiva, ou seja, em descontinuidade e dispersão. Elas
processam esse discurso num cruzamento de tempos e lugares e
apresentam-no como um simulacro, uma repetição irônica, através de
uma escrita vacilante que o reproduz como um falsete, dispersando-
o, na polifonia e no jogo das relações culturais. (SOUZA, 2012, p. 61).

Isto, pois dito, reconhecemos que diante das rasuras não há como
pensar nas culturas como homogêneas, percebendo que na sua fundação
houve sim dispersões e confrontos, o que é evidenciado nos versos da epopeia
aqui estudada. Pois, parafraseando Souza (2012), não há limites fixos de

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territórios, nem de pureza no momento fundacional, uma vez que, no processo


de formação dessa história a mestiçagem não é feita de forma harmônica,
sequer os invasores permitem que os povos invadidos escaparem ilesos.
Diante dos embates entre a formação dessa cultura, desse povo,
Sosígenes Costa vê no filho da Iara com Aimoré (o caboco do mato), resultante
da união do “sangue do rio” com o “sangue caboco”, a possibilidade de reunir
as características da Areté e da Timé. Isto feito, pois, restituiria à mãe-dágua,
recuperando-lhe a honra. O fruto desse cruzamento, em minha percepção seria
o próprio Sosígenes, que mesmo se mostrando um protagonista confuso,
talvez por sua condição de “menino”, corroborada por sua estreita ligação entre
sua cidade natal, Belmonte, e sua cidade de acolhida, Ilhéus. Assim como já
fora assinalado ao explicar o surgimento do nome do autor, já que este além de
ser um astrônomo, teria influenciado o calendário, por isso teria se auto
intitulado de: “menino do céu”.
Ademais, verifico que o uso reiterativo da mitologia em Costa é
caracterizado por uma necessidade de ressignificação dos mitos através da
criação de outros, a partir da integração de elementos locais, culturais e de
animais que nos são tão peculiares, além do apego sentimental por esses
lugares de memória que lhe trouxe a necessidade de resgatar suas origens.
A obra Iararana traz na literatura uma reafirmação dos traços contidos
no panorama modernista, com a valorização do nacionalismo, com os
elementos mais representativos da cultura baiana na alma-do-mato, a história
da chegada de Tupã-Cavalo à região cacaueira e aspectos amorosos de Iara,
figura mitológica que habita as águas dos rios também conhecida como mãe-
d’água – materialização da divindade. Partindo da narrativa de cunho mítico, o
poeta expõe como teria se originado o cacau e apresenta marcas relevantes da
cultura regional que auxiliam no processo de composição da identidade local:

E Tupã-Cavalo brotou a mataria


E as sementes nasceram e se viu que era cacau
E o cacau já estava crescidinho
e saía com uma força...
e saía com um forção
que benza-te Deus meu pé de feijão!
mas ele dava na gente a tirar broto de cacau
deu facão a caboco para tirar broto de cacau

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e o cacau desbrotado ficou parrudo


e bonito como danado.
(COSTA, 2001, p. 37).

Percebemos assim o surgimento do cacau. E, assim, com a chegada


do invasor “Tupã-Cavalo”, nome da mitologia indígena que representa uma
divindade hostil que arrasa com seu raio, as florestas. Isto, tal qual o invasor
que destrói a mata virgem para cultivar o cacau. Por isso, o “Tupã” junta-se ao
“cavalo”, o que fica evidente a mescla de motivos mitológicos, indígenas e
helênicos. “Tupã-Cavalo, o centauro invasor” (PAES, 1979, p. 7), personagem
principal da obra que representa o colonizador europeu e sua invasão às terras
brasileiras.
A chegada e as características do invasor é descrita no canto II:

─ Esta anta com cabeça de gente não era anta, meu neto.
Aquilo era cavalo com cabeça de gente.
Era cavalo da Oropa com feição de mondrongo.
Veio da Oropa o danado descobrir este rio.
(COSTA, 1979, p. 33).

O Tupã-Cavalo é quem desencadeia uma mestiçagem resultante da


mistura dos povos, representando também o anti-herói, um ser monstruoso que
dará início ao processo de civilização das terras brasileiras e da implantação do
cultivo cacaueiro na região baiana. Nesse trecho, há uma referência do
descobrimento do Brasil, ou melhor do “achamento”, pela embarcação
portuguesa, mas que desta vez será contada pelo colonizado e não pelo
colonizador. Quando o “fruto de ouro” começa a prosperar e o colonizador
passa a explorar “o manjar dos deuses”, Tupã-Cavalo vai passear na “Oropa”
para se vingar dos que o expulsou daquelas terras.
Quando chegaram às terras brasileiras os europeus exploraram de
todas as formas possíveis o potencial aqui existente, fazendo maldade como
Tupã-Cavalo fez:

Esse bicho da Oropa foi o diabo neste rio,


foi pior do que o chupa arrasando o Papagaio.
Ele fez guerra com espingarda aos cabocos do mato

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e venceu os cabocos e escorraçou o Pai-do-mato


e ficou no lugar dele e se chamou dono da gente.
(COSTA, 1979, p. 34).

Esse monstro se tornou o dono de tudo, inclusive da Iara, que foi


estuprada e desse estupro nasceu a Iararana. O episódio da violação é
descrito em um “samba malicioso”, glosa popular que ali representa a luxúria
com a expressão “olha o fogo no canaviá” (COSTA, 1979, p. 41). A partir dessa
violação ele despertou o ódio por parte dos verdadeiros donos da terra: “ Não
vê que esse bicho era filho do diabo? [...] Mas caboco com ódio o chamou
Tupã-Cavalo/ pois tinha corpo de cavalo e andava de quatro pés/ e só era
gente, lá nele, até o imbigo, pode crer” (COSTA, 1979, p. 34).
Essa descrição faz lembrar a figura mitológica do centauro que, na
mitologia grega, é um ser metade homem, metade cavalo. Com relação ao
nome Tupã, ele representa na mitologia indígena o Deus do trovão, assim,
Tupã-Cavalo é a hibridização entre a mitologia grega com a mitologia nativa.
Este, é ainda a representação da virilidade de tipos sociais que compõem a
economia cacaueira do sul da Bahia do século XX, tais como o coronel e o
exportador do fruto de ouro.
O processo de criação de fábulas mitológicas teve a sua origem na
Grécia antiga, tendo por costume a narração das mesmas em público. A
gênese dessas histórias de divindades representava uma realidade vivenciada
por aquele povo, respondia aos processos naturais e explicava o
comportamento humano, seus sentimentos e anseios. Havia, neste universo
mítico, um elo entre os heróis, o homem e a excelência moral. Para o
historiador e mitólogo Mircea Eliade (1972, p. 9) “mito conta uma história
sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo
fabuloso do "princípio"”. E é a partir desta influência das mitologias gregas e da
cultura popular brasileira que as personagens da Iararana vivenciam o
processo de miscigenação do índio e do europeu, ou seja, o da criação seja ela
de uma nova raça ou da assimilação dessa cultura local.
Tupã-Cavalo é um centauro que veio da “pontinha da Oropa”, ou seja,
de Portugal, tal qual é descrito no poema, depois de ter sido expulso da Grécia,
para chegar aqui no Brasil e fazer “guerra com espingarda aos caboclos do

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mato”, escorraçando o “Pai-do- Mato”, mas que ao mesmo tempo este “deu
facão a caboco” e “ensinou a tirar broto de cacau”; implicando aí a dupla face
da colonização.
O avô na narrativa sobre o passado do centauro diz que “ o cavalo com
a cabeça de gente”, nasceu “na Oropa num lugar muito bonito,/mas porque era
ousado demais/ quis roubar a mulher mais bonita de lá”, e foi expulso por um
“bicho com cabelo de cobra”, ou seja a figura mitológica da Medusa.
O uso da mitologia grega está vinculado ao propósito de versar a
origem do cacau, recorrendo à origem da civilização ocidental como ponto de
partida. Observamos, portanto, que Sosígenes Costa se apropria de lendas,
mitos e sentidos de outras culturas para criar, recriar e ressignificar
personagens da nossa cultura popular. Vale ressaltar que o belmontense não
utiliza apenas arquétipos de personagens da mitologia grega, já tão
assimilados por nossa cultura ocidental, mas também se mune de animais
emblemáticos e passagens bíblicas a fim de compor uma visão lúdica com
inúmeras espécies a partir de um jogo permanente de contrastes.
A poética sosigeniana traz em sua rima um apelo quase
despropositado que beira a ironia. Esta na qual já nos antevia Paulo Paes, em
Pavão, parlenda, paraíso (1977, p. 25), ao afirmar que há em sua escrita um
“[...] choque entre encantamento e ceticismo, entre magia e artificialidade,
induz em nós, seus leitores, o sentimento de humor, e percebemos então que o
poeta quer dizer sempre algo mais que à primeira vista parece ter dito”. Pois,
em seu universo criativo a ironia é apenas um jogo, um simulacro. Nesse
sentido, Sosígenes Costa busca a “desconstelização”:

“Desconstelizar” significa aqui, destruir a constelação de conotações


solenes, a aura de sacralidade que envolve figuras e fatos da História
para traze-los de volta às dimensões do cotidiano. Essa destruição se
efetua por meio da anacronia em que se transfere o dado histórico
para um contexto temporal ou referencial que não é o seu próprio.
(PAES, 1977, p. 25).

Ideia de desmitificar templos, imagens sacras, remontar lugares,


histórias fantásticas e improváveis, seguiu ratificada por Paes (1977) como a
“desconstelização do solene”, assumida como estratégia ou técnica de desvio.

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Para Marcos Aurélio Souza (2012), esta soa como um tratamento diferencial da
história pelo qual caracteriza-se uma espécie de “renegado começo” (SOUZA,
2012, p. 51) na escrita do belmontense, ou seja, “de uma força dispersiva da
origem que opera no espaço entre o conhecido e o alheio, o próximo e o
distante, o lugar e o não-lugar” (SOUZA, 2012, p. 51).
A Iararana funciona como uma das narrativas que constituem a
identidade também pela estratégia de mito fundacional. Sosígenes Costa parte
de uma narrativa mítica para explicar o surgimento de elementos regionais que
atualmente são conhecidos como tal devido à presença dos acontecimentos de
origem mitológica. Um exemplo se refere ao rio Belmonte que teria esse nome
devido aos ossos de Tupã-Cavalo terem sido depositadas no rio:

E a ossada está lá no fundo do rio.


Mas a mãe-dágua está lá viva e amarrada.
Ela dorme no fundo do rio.
E nem sucuriúba pode quebrar as correntes.
Só quem descende da mãe dágua pode quebrar as correntes.
E os descendentes dos mondrongos
chamam este rio de Belmonte.
(COSTA, 1979, p. 95).

Além disso, pode-se dizer que a referência a Belmonte funciona como


forma do poeta reviver as memórias da sua infância. Pela organização dessa
narrativa também se reafirma a identidade enquanto sentimento de
pertencimento à realidade nacional.
Em Costa, o uso da visualidade em seus versos cria diversas
possibilidades para estabelecer um paralelo entre realidade e ficção quando,
em seus versos, transfere as paisagens de sua cidade natal para um universo
fantástico, fabular e imaginário. É relevante ressaltar que Belmonte, terra natal
do poeta, é o lugar de suas lembranças de infância e da juventude. Por
conseguinte, a partir dessa multiplicidade de influências absorvidas e por sua
impressão ímpar diante da sociedade que o poeta de Belmonte, através de um
olhar repleto de inspiração e lirismo, revela-nos a postura poética presente em
sua obra. Suas temáticas vão além dos aspectos físicos e das práticas
culturais: passeiam pela cultura afro, pela mitologia, pela religiosidade, além
das vivências cotidianas da cultura popular.

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Cid Seixas (2004) considera o poema Iararana como “[...] um


documento dos anos 30” (SEIXAS, 2004, p. 143), no qual se observa, ao lado
do caráter primitivista, a presença da questão identitária, nos alvores do
hibridismo cultural brasileiro, às margens do Rio Jequitinhonha, no locus do
descobrimento do país. O hibridismo existente nos aspectos fundacionais
dessa cultura pode ser verificado como uma metáfora da interação cultural
contínua entre diferentes povos, sendo possível, entretanto, demarcar
elementos tipicamente locais que caracterizam não somente a diversidade,
mas a habilidade em resistir às dominações exógenas, valorizando as riquezas
independentes e nativas. Passando, assim, a identidade a ser estabelecida por
um repertório cultural expresso por conhecimentos científicos, práticas
religiosas ou artísticas.
Encontramos na Iararana diversas representações da mitologia seja
universal ou de mitos locais: dede personagens advindos da Grécia tais como a
Medusa, a guardiã (monstro terreno), Hebe, personificação da juventude; mitos
africanos representantes do iorubá como Oxum (deusa dos rios), Oxóssi (deus
das matas, o caçador); e, por fim, e não menos relevante, o Caipora que é
originário do tupi e significa “morador do mato”. Deste modo, o poeta recorreu a
mitologia grega para ironizar parodicamente suas simbologias, em
contrapartida, buscou assinalar e fortalecer as imagens indígenas, folclóricas e
africanas na versificação dessa epopeia cabocla.
Sosígenes Costa usa a mitologia indígena como instrumento de luta
contra a herança cultural europeia. Destarte, por esses aspectos mitológicos e
folclóricos serem recorrentes na obra do poeta, estes também contribuem de
forma híbrida para o enriquecimento cultural e histórico da literatura sul baiana.
A Iararana é escrita por Sosígenes Costa como forma de re(contar) a
construção dessa civilização grapiúna e do movimento migratório da saga do
cacau, por meio de uma narrativa, concomitantemente, fantástica cabocla e
grega, articulada através de uma linguagem coloquial e folclórica, capaz de
reinterpretar a história da colonização da Bahia e, consequentemente, do
Brasil. Possibilitando, assim, outras leituras da nossa história, tais como suas
rasuras, pois, como diria Damulakis (1996, p. 54): esta é “uma epopéia [sic]
que pode ser lida em qualquer tempo”.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

REFERÊNCIAS

COSTA, Sosígenes. Iararana. São Paulo: Cultrix, 1979.

DAMULAKIS, Gerana. Sosígenes Costa: o poeta grego da Bahia. Salvador:


Secretaria de Cultura e Turismo, 1996.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FONSECA, Aleilton. Melhores poemas de Sosígenes Costa. São Paulo:


Editora Global, 2012.

MALAFAIA, Jane de Paula. O modernismo singular de Sosígenes Costa.


2007. 141p. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira e Teorias da
Literatura) - Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro: Niterói.

PAES, José Paulo. Pavão, parlenda, paraíso: uma tentativa de descrição


crítica da poesia de Sosígenes Costa. São Paulo: Cultrix, 1977.

______. Iararana ou modernismo visto do quintal: um roteiro de leitura. In:


COSTA, Sosígenes. Iararana. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 3-19.

SEIXAS, Cid. Iararana, um documento dos anos 30. In: MATTOS, Cyro de;
FONSECA, Aleilton. O triunfo de Sosígenes Costa. Ilhéus: Editus, 2004. p.
143-154.

SOUZA, Marcos Aurélio dos Santos. Narrativas da mestiçagem. Vitória da


Conquista: Edições UESB, 2012.

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GRUPO DE TRABALHO: CULTURAS, TERRITÓRIOS E INFÂNCIA

PROPOSITORES: JAQUELINE NASCIMENTO (UNEB) E CLARISSA BRAGA


(UFBA)

Ementa:

Discute a cultura na e da infância nos diversos territórios e contextos; a

interlocução dos diversos saberes e das práticas culturais na formação da

criança; jogos, brincadeiras e práticas infantis que contribuam para a formação

do sujeito; registros orais, visuais e audiovisuais e seus significados; literatura

infantil e infanto-juvenil; a dinâmica social e cultural na perspectiva da criança

como protagonista.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A INFÂNCIA COMO INSTRUMENTO DE DENÚNCIA DO PROCESSO DE


FORMAÇÃO IDENTITÁRIO ANGOLANO

DIANA GONZAGA 47 (UFV)

O percurso indissociável traçado entre a História e a Literatura vem


trazer à tona algumas análises que abarcam discussões pertinentes aos dois
campos validando-os e questionando-os como ciência e como fonte
documental, respectivamente.
Não é tarefa da Literatura se comprometer com a verdade, nem,
entretanto, isentar-se dela. Indiscutivelmente, porém, ela sempre retratará, da
maneira que for, histórias, momentos, contextos que, reais ou fictícios, são,
sempre, registro de um tempo. Neste sentido, a memória, (a memória da
infância) se torna ferramenta de estudos na análise do processo de formação
de identidade, que será o fio condutor deste trabalho. Para Maria de Fátima
Marinho:

É essa memória, geradora de uma busca incessante da identidade,


que vai ter um lugar fundamental nas relações entre a literatura e a
história, sempre que aquela se dispõe a falar desta, isto é, desde que
se percebeu a necessidade de repetir a História, mesmo se de forma
velada ou inovadora. (MARINHO, 1999, p. 137)

Quando se trata da literatura angolana, essa íntima ligação da escrita


com o contexto é bastante evidente já que a maioria de sua produção está
vinculada à história do país e, estando esta, em processo de cicatrização das
feridas de conflitos de toda ordem, é justificável que assim seja, como observa
Carvalho Filho:

47
Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Comumente, era diminuta a distância cronológica entre o referencial


histórico da temática e da data de publicação das obras. (...) Era
comum nos escritos a introdução de episódios vividos ou
testemunhados pelos literatos misturando-se ao imaginado, dando a
estes, uma feição de ficção “realista” ou de realidade ficcionada.
(CARVALHO FILHO, 1992, p. 212)

Os dois autores e as duas obras, José Luandino Vieira e Ondjaki,


objetos de análise neste trabalho, provam e exemplificam o dito. O primeiro,
português que, ainda criança, se muda para Angola, nasceu em 1935 e
participou ativamente do processo de independência do país. Sua estreia na
literatura, ainda sob regime colonial, se dá com o livro de contos A cidade e a
infância, em 1957. O segundo, pseudônimo de Ndalu de Almeida, angolano
luandense, nasceu em 1977, no início do período pós-colonial, e a obra que
nos interessa aqui é também um livro de contos, Os da minha rua, de 2007.
Mais de cinco décadas separam a produção desses autores, mas, suas obras
se entrecruzam ao abordar um tema em comum: a infância.
Neste sentido, a literatura angolana torna-se uma rica fonte que serve
como registro da construção de sua produção artística, e retrata essa íntima
relação entre história e literatura, esta última, ainda muito ligada à história de
Angola que, por sua vez, é atrelada à guerra. É em meio a esse complexo
campo de batalhas que se coloca a infância como fio condutor capaz de
permear grande parte da produção literária angolana, bem como captar e
denunciar as mazelas deste cenário.
Talvez, tenha sido só a partir do surgimento da psicanálise, no século
XIX, que se deu atenção à infância como uma fase que enriqueceria nossos
estudos ou observações acerca do processo de formação do indivíduo,
enquanto sujeitos de um sistema coletivo.
É na infância que se desenvolvem peculiaridades que vão, ao longo da
vida, moldar a nossa individualidade. Sendo assim, esta fase se torna ainda
mais importante, se tomamos como plano de fundo, Angola.
O país se torna independente apenas em 1975, depois de conflitos de
toda ordem e quando, finalmente, se vê livre do colonizador português, ainda
enfrenta um período intenso de guerra civil pela consolidação do poder em
território “livre”.

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A ruptura brusca com o colonizador é sempre vista pelos olhos da


infância, que representa, nesse ínterim, um retorno às origens, um resgate da
memória e um degrau importante na construção da identidade do país
enquanto nação. Esse processo pode ser comparado ao desabrochar da
juventude, que desmascara verdades antes ocultadas pela ingenuidade infantil.
A memória, que era retratada como representação de um momento que
ficou, passa, com a chegada da vida adulta, a ser interpretada como
instrumento de denúncia. Os processos são dolorosos – tanto o de rompimento
entre a infância e a adolescência, quanto o de transição de colonizado para
independente. Esse momento de transição fica preso na infância, como um
estilhaço do que era um povo e do que podem vir a ser, de modo que, a
saudade da infância é constante na produção desses textos, ao ponto de
pretender um retorno ao passado em busca dessa fase perdida em que o
futuro, qualquer que fosse, seria possível.
Em seu livro Exercícios de ser criança, Manoel de Barros afirma que
“com certeza, a liberdade e a poesia, a gente aprende com as crianças”
(BARROS, 1999. s/p.). É provável que essa temática, a da infância, seja
comum a muitas culturas. Grandes nomes da literatura brasileira, por exemplo,
– Manoel de Barros, Drummond, Mário Quintana, Vinícius de Moraes, entre
outros – já escreveram sobre ela.
Começaremos por Ondjaki, contrariando a ordem cultural que sugere “os
mais velhos, primeiro”. A infância retratada pelo autor e narrada pelo menino
Ndalu, o Dalinho, como é carinhosamente chamado, passa-se em um contexto
que podemos entender como o início do processo de formação da identidade
angolana, isto é, pós 1975. As histórias que o menino conta são observações
de sua visão pueril e ingênua dos acontecimentos – nada ingênuos – que
marcaram a reconstrução e a inédita tentativa do país de se afirmar como
nação.
A clara denúncia narrada sobre a guerra civil, instaurada no país após a
ruptura com Portugal, no conto “Os quedes 48 vermelhos da Tchi”, mostra o
menino que deve marchar no dia do trabalhador, 1º de maio, até o largo de
mesmo nome

48
Sapatos em lona e borracha, confortáveis, tipo desportivo. (ONDJAKI, 2012, p. 150)

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No Largo 1º de Maio estava uma tanta gente acumulada, bué de


escolas já em formação, numa curva, todos direitinhos, à espera da
vez de marchar. Na tribuna, bem lá em cima, estava o camarada
presidente, duma camisa azul-clara e um lenço branco a fazer adeus
pioneiros que passavam. Às vezes penso que o camarada
presidente, lá em cima e tão longe, não devia ver o povo muito
bem. (ONDJAKI, 2012, p. 70 - grifo nosso)

É interessante observar a ironia do trecho em destaque, que mostra,


com a simplicidade da linguagem infantil, o que pode ser interpretado como
uma ácida crítica ao posicionamento do governo do país, na figura de seu
presidente. Esta marcha do dia do trabalhador é fixada aos alunos como
demonstração do poder do MPLA – Movimento Pela Libertação de Angola,
liderada pelo presidente Agostinho Neto – que assume o governo contra a
UNITA – União Para a Independência Total de Angola, comandados por Jonas
Savimbi. Os pequenos, que respondiam à voz ao microfone, já são induzidos à
ideologia do partido:

“Pioneiros de Agostino Neto, na construção do socialismo...”


e nós gritávamos, suados, contentes, meio a rir, meio a berrar
“Tudo pelo povo!”
ele continuava
“Um só Povo, uma só...?”
nós de novo
“Nação!” (ONDJAKI, 2012, p. 70)

A Angola da infância das personagens de Luandino, ainda sob domínio


da metrópole, é um pouco mais hostil do que a retratada por Ondjaki. A
presença dos movimentos pela independência e a iminente guerra contra o
colonizador ganhava força, em vários setores do cotidiano. Há muito de
violência, de preconceito, de segregação racial, de pobreza e de miséria
presente nas narrações de seus contos.
Luandino retrata uma infância vista ‘de fora’, isto é, vista com um olhar
adulto saudosista. Há, em seus contos, uma revisitação da infância através da
memória. Por se tratar de um período conturbado, de instabilidade política, há o
que podemos entender como um desejo de regresso ao passado, uma vez que
este, apesar de denunciar o contexto de guerras, demonstra uma visão
esperançosa no futuro. É o que Andreas Huyssen (2002) define, em seu livro

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Seduzidos pela memória, como uma vontade incômoda de deixar de viver o


presente por apego ao passado.
Passagem que vale a pena registrar é a seguinte, retirada do conto “A
fronteira de asfalto”:

_ Marina, já não és uma criança para que não compreendas que a


tua amizade por esse... teu amigo Ricardo não podes continuar. Isso
é muito bonito em criança. Duas crianças. Mas agora... um preto é
um preto... As minhas amigas todas falam da minha negligência na
tua educação. Que te deixei... Bem sabes que não é por mim!
(VIEIRA, 2007, p. 42)

Neste pequeno fragmento, temos a dimensão da questão com a qual


Luanda está lidando. O preconceito mascarado da mãe, que se acovarda pela
represália das amigas, é reflexo do cotidiano que separa negros e brancos no
país. Para Frantz Fanon (2008), esta situação é definida da seguinte maneira:
“uma sociedade é racista ou não é” (FANON, 2008, s.p.).
Esta fronteira, retratada por Luandino, vai muito além de uma fronteira
física, geográfica – representa a segregação, (tensão), não está a serviço da
unidade – é psicológica e está intrínseca nas relações sociais diárias: “do outro
lado da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra
era vermelha. Piteiras. Casas de pau-a-pique à sombra de mulembas” (VIEIRA,
2007, p. 44).
Percebemos a ruptura forçada da ingenuidade da infância, em contraste
com os princípios de inocência dessa fase. O convívio entre as raças é
suportado durante a infância mas, mal visto quando se torna jovem. Embora,
essa amizade, em criança, já tenha seus papeis muito bem estabelecidos: “Eu
era o filho da lavadeira. Servia de palhaço à menina Nina. A menina dos
caracóis loiros” (Ibid. p. 41).
A infraestrutura de Luanda, anunciada na obra de Luandino, retrata a
época anterior ao ano de 1957, data de publicação do livro. No conto “A cidade
e a infância”, é possível encontrar o meninos “deitados na areia amarela das
construções modernas crescendo sobre o terreno onde havia casas de pau-a-
pique (...)” (Ibid. p. 53).

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Aspecto que também merece destaque neste cenário de construções –


concretas e psicológicas – é a naturalidade com que a violência, de forma
explícita, se manifesta.

No passeio, negro João olhava para o amigo que o ensinou a ler, que
lhe ensinou a vida. Calumango calado, o olhar receoso
acompanhando o amigo que não tinha medo dos polícias nem do
cassetete. Nem gritava quando lhe batiam.
Sentiu qualquer coisa dentro de si partir-se. Os punhos cerraram-se.
Não era mais Calumango, rato do mato! Não era mais. (Ibid. p. 97).

Os atos de violência retratados por Ondjaki se configuram de maneira


mais discreta, no ambiente domiciliar:

Começámos a jantar. A tia Maria veio buscar um cinto que


guardava na gaveta da sala e começou a bater na Madalena (...).
Ouvia-se bem na sala o assobio do cinto ritmado com o choro
cantado da Madalena”. (ONDJAKI, 2011, p. 77).

Ambas as situações, dos contos “Companheiros”, de Luandino e “Manga


verde e o sal também”, de Ondjaki, mostram que essa prática de violência não
só é comum, mas se concretiza de maneira explícita. É perceptível que os
níveis de agressões citados anteriormente, são distintos.
Com um olhar contemporâneo, fundado nos Direitos Humanos, essas
manifestações são condenadas. Mas, voltando algumas décadas, ficam claras
as distinções, o grau da violência presente nos dois contos. O primeiro, é o que
Luandino chama de “o medo do negro pelo polícia” (VIEIRA, 2011, p. 43), um
medo infiltrado no cotidiano do negro, constantemente expresso de maneira
abusiva, ao passo que, a violência praticada por tia Maria em Madalena, é vista
apenas como uma correção por um mau comportamento.
A infância dessas duas épocas demonstram que o processo de
formação identitário angolano passa pelo novo com significativa importância,
por ser o início, a esperança de melhor futuro, a perpetuação da cultura. Sobre
isso, Roberta Assis afirma que “a criança, além de representar o novo, o futuro
e a esperança (como ocorre por todo mundo), tem um sentido de
complementaridade, pois, sem ela, o ciclo de renovação da vida não se
realiza”. (ASSIS, 2008, p. 47). Daí, a infância ser tomada como um objeto
recorrente em grande parte, senão em toda a produção literária angolana, com

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maior ou menor ênfase. A busca pela formação da identidade tem, na memória,


uma fonte inesgotável de registros e, a memória, inevitavelmente, nasce na
infância. Sobre isso, conclui Laura Padilha:

Não se trata apenas, porém, de recuperar o tempo do conflito


belicista, vivido ou não, pelo sujeito da grande enunciação. Trata-se,
sobretudo, de resgatar um tempo em que a infância era possível, daí,
o papel que tem a representação da infância em grande parte dessas
obras. (PADILHA In: CHAVES; MACEDO; VECCHIA, 2007, p. 56)

O discurso dominante, como qualquer outro, comporta pluralidades que


os estudos literários, culturais e comparatistas já se dispuseram a analisar. As
obras de Luandino e Ondjaki, se configuram assumindo um caráter de
complementaridade, uma em relação à outra.
A infância da obra de Ondjaki fica presa no tempo da ingenuidade, no
tempo da construção da identidade que permanecerá intacta, que poderá,
sempre, ser revisitada. A de Luandino, é uma infância que passou. É mirada
com olhos saudosistas de quem viveu um tempo bom e que necessita da
memória desse tempo para se constituir enquanto indivíduo.
Vista de fora, com um olhar adulto ou, de dentro, imerso no universo
infantil, a infância é sempre território de denúncia, de memória e de
delimitações de espaços marcados pelas relações de poder. Seja, entretanto,
de maneira intencional, crítica ou ingênua, a literatura, se constrói regulada nos
traços de realidades que se enquadram com o propósito de retratar uma
totalidade estruturada: o texto como registro de um tempo.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Roberta. Descortinando a inocência: infância e violência em três obras


da literatura angolana. Rio de Janeiro: Editora da UFF, 2008.

BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra,


2009.

BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2. ed. Rio de


Janeiro: Imago Ed., 2002.

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. 2. ed. São Paulo: Ática,


1992.

303
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

CARVALHO FILHO, Sílvio de Almeida. O escritor angolano e sua literatura: u


approach ao seu papel político (1975 - 1985). Revista Estudos Afro- Asiáticos.
Rio de Janeiro, nº 25. Dezembro de 1993. p. 207 – 224.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: GOVFBA, 2008.

FERREIRA, Manuel. A libertação do espaço agredido pela linguagem. In:


VIEIRA, Luandino. A cidade e a infância. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,


mídia. Tradução de Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Editora Perspectiva,


Coleção Debates, 1969.

ONDJAKI. Os da minha rua. 6. ed. Alfragide: Editorial Caminho S.A., 2012.

PADILHA, Laura Cavalcanti. Ficção e guerra angolana: a perda da inocência.


In: CHAVES, Rita; MACÊDO, Tânia; e VECCHIA, Rejane. (Org.). A Kinda e a
misanga – encontros brasileiros com a literatura angolana. São Paulo: Cultura
Acadêmica, (São Paulo) / Nzilda (Angola), 2007, p. 55, 56.

TRIGO, Salvato. Luandino Vieira: o logoteta. Porto: Brasília, 1981.

VIEIRA, José Luandino. A cidade e a Infância. São Paulo: Companha das


Letras, 2007.

WELLEK, René. A crise da literatura comparada. In: COUTINHO, Eduardo F.;


CRAVALHAL, Tania Franco. (org) Literatura comparada: textos fundadores Rio
de Janeiro: Rocco, 2011.

304
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A VIVÊNCIA DA CULTURA POPULAR BRASILEIRA ATRAVÉS DE


OFICINAS LÚDICAS: UM OLHAR SENSÍVEL DA CASA DE BRINCAR
ALECRIM

RAFAELA SOUSA GUIMARÃES (CBA)


ANA CARLA NUNES PEREIRA (UNEB)

INTRODUÇÃO

Experenciar fatos, conceitos e conteúdos ao longo da vida, nos forma


sujeitos sociais, principalmente se as vivências se configurarem em memórias
prazerosas e que nos remeta a uma infância de relações estabelecidas entre o
meio ambiente em que transitamos. As crianças colhem do período infantil
subsídios que são importantes ao seu desenvolvimento social, cognitivo e
emocional. Assim, neste transcurso vão se constituindo seres sociais.
A cultura está intimamente ligada à formação social das crianças. É
através dela, que os pequenos se identificam com as tradições, com os valores
e com as manifestações culturais que permite uma organização das referências
de pertencimento a uma determinada comunidade. Sendo assim, as
instituições sociais possuem o papel fundamental de inserção das crianças ao
mundo social e consequentemente ao cultural. As referências culturais
estabelecidas desde a primeira infância, oferece uma identidade e um
sentimento de lugar determinado na comunidade.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Desta forma, entende-se que tanto a família, quanto a escola devem


oferecer possibilidades para que a criança abranja e eleve seu repertório
cultural, se identificando como pertencente a um grupo social. Se tratando do
público infantil, as brincadeiras e os jogos tradicionais se configuram como
veículo de intermediação entre a criança e o mundo social.
Sendo assim, a Casa de Brincar Alecrim oportuniza aos brincantes o
contato com a cultura popular através dos jogos, brincadeiras, cantigas, causos
e lendas, arte, dramatizações e a culinária. Através das oficinas lúdicas
oferecidas aos brincantes, é possível oferecer trocas e interações
estabelecidas através da incorporação de elementos da cultura brasileira,
muitas vezes ainda desconhecidos pelos brincantes. Sem dúvida, o papel
fundamental das instituições educativas é promover a educação do sujeito na
sua totalidade.

Casa de Brincar Alecrim: um espaço de vivências lúdicas


"O brincar da criança é a manifestação mais profunda do impulso que conduz ao fazer, sendo
que nesse fazer o homem tem a sua verdadeira essência humana. Não seria possível imaginar
uma criança que não desejasse ser mais ativa, como o é quando brinca, pois o brincar
representa a liberdade de uma atividade que deseja se libertar do cerne do ser humano"
(Rudolf Steiner).

A Casa de Brincar Alecrim é um espaço lúdico que oportuniza as


crianças da cidade de Amargosa e das cidades do entorno um ambiente que se
destina a ludicidade, ao prazer, às emoções, as vivências corporais e sociais,
ao desenvolvimento da imaginação, da criatividade, da autonomia, da
construção do conhecimento e das habilidades.
Destaca-se que na Casa de Brincar, há o favorecimento para o
conhecimento da cultura brasileira através das músicas, da culinária, histórias,
causos e lendas, dos jogos e das brincadeiras típicas, regionais e locais. Neste
espaço procuramos valorizar a criança lúdica, imaginativa, criativa, sensível,
peralta, arteira e espontânea que existe dentro de cada um dos nossos
brincantes.
As brincadeiras neste espaço são interpretadas de maneira simples e
criativa, ou seja, oferta-se a possibilidade da criança ser autora do seu próprio
brincar. Na Alecrim o que é tecnológico não há espaço, pois entende-se que as

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

brincadeiras precisam ser vivenciadas através do corpo e do movimento e das


construções através das relações estabelecidas com os outros.
Os brinquedos da Alecrim representam o mundo social e cultural dos
brincantes. Brougerè (2010, P.45) expõe que: “Manipular brinquedos remete,
entre outras coisas, a manipular significações culturais originadas numa
determinada sociedade”.
Sendo assim, para que os brincantes pudessem conhecer e estabelecer
relações simbólicas com outros tipos de brinquedos que usualmente não
possuem acesso, foi realizado um trabalho de pesquisa em feiras livres da
Bahia nas cidades de Bom Jesus da Lapa, Salvador, Rio Real, Valença e Porto
Seguro, a fim de expor para as crianças a variedade e o fazer artesanal através
dos brinquedos. O objetivo era trazer para os brincantes a realidade do brincar
de outras localidades a partir de um objeto cultural como sugere Brougerè.
A Casa de Brincar possui uma proposta de um brincar natural, aonde os
brincantes criem suas opções de brincadeiras, seja através da exploração do
quintal, da terra, água, pedras, sementes, gravetos, seja através dos
brinquedos. Assim, os móveis e os objetos são confeccionados a partir da
madeira, que além de ter uma simbologia ambiental, possuiu o fazer humano,
foi criado e confeccionado por artesãos.
A partir do que é essencial para a criança, o brincar, jogar, interagir, com
seus semelhantes e com o meio ambiente que a cerca, começa a estruturar o
seu processo de socialização infantil, ou seja, a criança começa a incorporar
regras do mundo social. Além das regras, incorpora a fala, os símbolos, às
representações artísticas, entre outros. Desta maneira, Brougerè, traz que:

Toda socialização pressupõe apropriação da cultura, de uma cultura


compartilhada por toda a sociedade ou parte dela. A impregnação
cultural, ou seja, o mecanismo pelo qual a criança dispõe de
elementos dessa cultura passa, entre outras coisas, pela
confrontação com imagens, com representações, com formas
diversas e variadas. Essas imagens traduzem a realidade que a cerca
ou propõem universos imaginários. Cada cultura dispõe de um
“banco” de “imagens” consideradas como expressivas dentro de um
espaço cultural. É com imagens que a criança poderá se expressar, é
com referência a elas que a criança poderá captar novas produções.
(BROUGERÈ, 2010, p.41)

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Assim, na Casa de Brincar Alecrim procura-se a cada momento


referenciar a Cultura Popular brasileira, objetivado trazer elementos culturais.
Valorizamos também as manifestações tradicionais em uma linguagem lúdica
apropriada a infância, no intuído de promover um sentimento de pertencimento
e identidade dos brincantes no espaço da Casa de Brincar.

Oficinas lúdicas: uma proposta metodológica diferenciada para promoção


das aprendizagens significativas

Trabalhar conceitos e conteúdos através de oficinas lúdicas é uma


metodologia que reconhece os sujeitos como atores formadores do seu próprio
conhecimento. Através das oficinas, há uma troca dialética do conhecimento
em prol da sua produção.
Na Casa de Brincar Alecrim, as oficinas permeiam a forma do
conhecimento sistematizado, onde os brincantes estão em pleno processo de
construção da sua aprendizagem. Através da arte e cultura, a Casa de Brincar
promove a sistematização do conhecimento para os brincantes.
Nas oficinas de Música, se estrutura um trabalho de musicalização
infantil através de brincadeiras corporais, exploração dos sons, ritmos,
brincadeiras cantadas, estimulação da percepção musical, apresentação dos
sons de diversos instrumentos musicais, assim como sons extraídos de objetos
afins. Durante as oficinas, procura-se regatar cantigas folclóricas, trabalhar com
canções da MPB e valorizar cantores da nossa cultura popular.
A partir das oficinas de Arte, exploramos as sensações, o trabalho com
materiais reciclados, onde se transforma o “lixo” em algo belo feito pelas
crianças, exploramos a pintura, o desenho, a modelagem, o conhecimento de
obras de arte, assim como seus artistas, trabalha-se e explora-se o saber-fazer
artístico.
Durante as oficinas de Culinária, favorece e estimula as crianças quanto
à alimentação saudável, a origem dos alimentos e seu preparo, propomos
atividades que reforcem as características nutricionais dos alimentos, através
do manuseio e observação de cores, formas, cheiros, texturas e sabores
diversos. Assim, deseja-se que as crianças possam aprender de maneira lúdica

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

e prazerosa a importância de comer bem para uma vida saudável. Acredita-se


que oferecer atividades como misturar, bater, picar, enrolar, abrir embalagens,
entre outras, desenvolve a coordenação motora, assim como estimula atitude,
independência e criatividade. Cozinhar exige planejamento, organização,
curiosidade e paciência, além de promover a socialização e a interação entre o
grupo, contribuindo para a formação dos indivíduos. As oficinas de culinária da
Casa de Brincar Alecrim proporcionam aos brincantes momentos lúdicos de
brincadeiras, promovendo trocas e experiências, assim como a degustação de
pratos deliciosos feitos por eles mesmos.
Nas oficinas de Literatura, realiza-se um trabalho de estimulação a leitura, com
o objetivo de formar leitores, estimulando a interpretação dos textos lidos e
ouvidos através do reconto, da arte e da dramatização.

Durante as oficinas de Teatro, trabalha-se o desenvolvimento das


habilidades para a utilização do corpo de forma expressiva, improvisando,
experimentando, estimulando e elaborando a criatividade. Esse trabalho é
realizado através da poesia, letras de músicas populares e eruditas, textos
filosóficos, monólogos, leituras dramáticas, exercícios corporais, auditivos,
visuais, criação de musicais, textos e crônicas.

As oficinas de Jardinagem proporcionam aos brincantes têm contato


com a terra, num trabalho de plantio e cultivo de alimentos. É possível
demonstrar as crianças que o alimento não vem do supermercado, assim como
existe o tempo de plantar e de colher, e para isso, é preciso cuidar e ter
responsabilidade. Quando os alimentos estão prontos para serem colhidos, as
crianças são responsáveis por essa tarefa. Numa roda explora-se o alimento
colhido, assim como a degustação do mesmo (hortaliças e legumes que podem
ser degustados sem precisar do cozimento).
Além das oficinas oferecidas durante a semana, o brincar livre e sem
direcionamento é valorizado. A casa disponibiliza de um quintal amplo, onde as
crianças o exploram da melhor forma possível. Brincadeiras com pneus,
cabanas, terra, água, sementes, balanço ou apenas catar as manguinhas que
caem do pé acontece neste espaço todas as tardes.
Na Alecrim é vivenciado o pensamento de Freud, (2009) quando ele
expõe que: “[...] seria errado supor que a criança não leva esse mundo a sério;

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ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira, e dispende na mesma muita


emoção. A antítese do brincar não é o que é serio, mas o que é real”. Procura-
se a cada dia explorar o brincar, a ludicidade e a simplicidade, valorizando a
criança com o objetivo de promover o desenvolvimento infantil na sua
totalidade.
Desta forma, o espaço da Casa de Brincar Alecrim recorre ao poeta
Manoel de Barros, ''(...) Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do
que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. (...) Assim, as
pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do
mundo. (...)”.

Assim, a Casa de Brincar Alecrim é um espaço que a cada dia promove


a valorização da infância, oportunizando as crianças vivências significativas a
sua formação como pessoa, promovendo momentos prazerosos através da
estimulação dos sentimentos afetivos. Leva-se em conta o estimulo da
sensibilidade para percepção do mundo, aos quais os brincantes vivenciam
tudo isso num universo lúdico, favorável a imaginação, ao sonho e a plenitude
do que é ser criança.

Agosto: Mês da Cultura Popular Brasileira


“As coisas populares são simples e belas, dispensam adornos ou complementos que as façam
realçar, quanto mais simples, mais belo, quanto mais belo mais puro, através do sentimento
popular vamos refletir a vida de um povo, os costumes, de uma raça, a história de um povoado,
vila, cidade, estado ou nação”. Zilda Paim (1999)

O projeto intitulado: Agosto: Mês da Cultura Popular Brasileira, nasce de


uma inquietação pessoal e profissional em verificar a “pobreza” com que as
escolas trabalham e relegam a cultura popular brasileira apenas em um único
dia, o Folclore. É necessária uma abrangência e profundidade para abordar um
tema tão importante dentro das escolas. Marilena Chauí chama a atenção para
a necessidade de alargar o conceito de cultura, tomando-o no sentido de
invenção coletiva de símbolos, valores, idéias e comportamentos, “de modo a
afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres e sujeitos culturais” (1995,
p.81).
Para que essa idéia seja considerada relevante dentro dos espaços
educativos, é preciso reafirmar e resgatar o conhecimento a partir do que é

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

popular e significativo para uma determinada comunidade. É necessário


romper os padrões tradicionais de apresentar as lendas e os mitos
estereotipados para os alunos no Dia Folclore. A Cultura popular perpassa
pela oralidade, pelas expressões materiais e imateriais, pelos fazeres e
saberes populares, num país que possui na complexidade de suas dimensões
históricas, geográficas, sociais, artísticas, a diversidade de um povo. Sendo
assim, é impossível conceber que apenas o Dia do Folclore seja legitimado nas
instituições escolares como Cultura popular.
Desta maneira, Na Casa de Brincar Alecrim a Cultura Popular Brasileira
é vivenciada a partir das oficinas lúdicas. O projeto consistia em apresentar,
significar e promover as vivências das expressões culturais para os brincantes.
Foram expostos artistas como Jackson do Pandeiro, Edith do Prato, Dorival
Caymmi, Dona Dalva Damiana. Expressões artísticas do Samba de Roda,
Dança do Coco, Maculelê e cantigas de roda. Artes plásticas como o
artesanato de Maragogipinho, rendas de bilro e brinquedos de palha. Culinária
regional, oficinas sobre festas populares e o resgate e o repasse de
brincadeiras típicas regionais e locais.
Desta maneira, procurou-se abordar a diversidade, as manifestações, os
saberes e fazeres materiais e imateriais do povo, que traz a referência do povo
brasileiro. Atualmente nos encontramos imersos nos recursos tecnológicos, no
consumismo, na mídia que empobrece nossa forma de agir e pensar, nos
levando a importar uma cultura que em nada referencia nossa essência. É
necessário desde cedo emergir as crianças em ambientes que valorizem uma
educação cultural popular, para que as crianças possam construir o sentido de
pertencimento ao seu lugar de referências que o acompanhará para toda vida.

CONSIDERAÇÕES

Neste artigo foram abordados temas relevantes para a formação de


sujeitos que se referenciam a uma determinada cultura, que se envolve em
manifestações e tradições, a fim de criar um sentimento de pertencimento. É
importante ter em pauta a discussão a cerca da importância da Cultura Popular
nos currículos escolares e não apenas levá-la para dentro das instituições

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educacionais apenas em um único dia. O estereótipo criado a partir da


apresentação das lendas brasileiras em nada contribui para a questão da
identidade cultural de cada um de nós.
A Casa de Brincar Alecrim é um espaço de valorização da arte e da
cultura popular brasileira. Objetiva-se trabalhar, apresentar e significar o que é
essencial na contribuição para formação de sujeitos que se identifica e se
denomina brasileiro. A partir das oficinas lúdicas, que entende-se ser uma
forma metodológica dialética para abordar conteúdos, visa promover
aprendizagens significativas para as crianças e que de alguma forma elas
levem para toda a vida.
Portanto, o projeto de valorização da cultura popular se estenderá como
marca indelével desse espaço, a fim de fomentar sujeitos críticos, criativos,
imaginativos e reflexivos. A educação é feita através de experiências que
marcarão as trajetórias dos seres em uma determinada comunidade,
objetivando a construção do sentimento de pertença a um lugar singular.
Sendo assim, a Alecrim visa a cada dia levar e abordar temas e
conteúdos que permeiam a história cultural do país, auxiliando os brincantes a
se tornarem sujeitos críticos, criativos e sensíveis com os saberes e os fazeres
populares deste país.

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. São Paulo: Estudos


Avançados 9 (23), 1995, p.71-84.

BARROS, Manoel. Memórias Inventadas: A Segunda Infância. São Paulo,


Editora Planeta do Brasil: 2006.

BROUGERÈ, Gilles. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez. 2010.

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CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS AFRO-BRASILEIRAS COM JOGOS


IMPROVISACIONAIS: RELATO DE EXPERIÊNCIA COM CRIANÇAS

LARISSA DE SOUZA REIS 49* (UNEB)

RESUMO

O presente trabalho tece reflexões a respeito das contribuições da literatura


africano-brasileira ao processo formativo do público infantil. Para isso, o texto
expõe um relato da experiência pedagógica ocorrida em 2014, durante a oficina
“Do Conto ao Encanto: teatro e literatura infantil”, realizada com crianças da
educação infantil de uma escola pública de Salvador. Destaca-se que as
atividades foram desenvolvidas na III Unebrinque, evento realizado pela
Brinquedoteca Paulo Freire, localizada no Departamento de Educação do
campus I da UNEB. As contações de histórias envolveram contos afro-
brasileiros e experimentações teatrais por meio de jogos improvisacionais, a
partir do processo dialógico sobre ensinamentos e valores trazidos nas
narrativas. Nesta perspectiva, ressalta-se a importância de práticas
pedagógicas descolonizadoras, de modo a aproximar os territórios da cultura
escolar com os saberes produzidos pela cultura popular que é representada
pela tradição oral africano-brasileira.

Palavras-chave: Contos afro-brasileiros.infância.jogo teatral

1. Introdução

[...] porque arte-educação, no fundo, nada mais é do que o estímulo


para que cada um exprima aquilo que sente e percebe [...] (DUARTE
JÚNIOR, 1991, p. 75).

49
*Pedagoga formada pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB); especialista em Arte,
Educação e Tecnologias Contemporâneas - Universidade de Brasília (UnB) e mestranda do
Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEduC/UNEB).

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O presente artigo traz um relato da experiência pedagógica com


crianças da educação infantil, durante uma oficina direcionada aos contos
míticos afro-brasileiros e práticas improvisacionais por meio do teatro.
Considerando o contexto dos saberes relacionados a cultura popular, aponta-
se que os conhecimentos prévios dos participantes e os ensinamentos
africanos trazidos nas narrativas foram relevantes para o direcionamento das
atividades.
O trabalho citado foi elaborado por meio do viés arte-educativo, com o
objetivo de explorar as possibilidades de dialogar com as linguagens culturais e
artísticas trazidas pelos sujeitos de diversas faixas etárias, além do
entendimento da importância da arte para a aprendizagem das crianças. Neste
sentido, as abordagens culturais trazidas pelo público trabalhado e nos contos
narrados foram essenciais para o processo criativo dos participantes da oficina.
Enfatiza-se que a apresentação dos contos africanos ocorreu seguindo a
natureza da tradição oral, como forma de exploração a oralidade, disseminação
dos conhecimentos e ensinamentos dos valores indicados nas histórias.
Defende-se, nesta perspectiva, a valorização da cultura afro-brasileira e as
possibilidades educativas de dialogar sobre diversas culturas. Com este
movimento, busca-se um ensino voltado para ações de convivência que
reconheçam a diversidade de sujeitos na contemporaneidade.
Neste sentido, o reconhecimento da diversidade sociocultural dos
educandos que participaram das atividades torna-se fundamental, tendo em
vista que, de acordo com Kramer (1999), a reflexão em torno da infância:

[...] entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem


cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira
pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem. Esse
modo de ver as crianças pode ensinar não só a compreender as
crianças, mas também a ver o mundo do ponto de vista da criança.
Pode nos ajudar a aprender com elas (KRAMER, 1999, p. 272).

Compreende-se, neste aspecto, a contribuição do trabalho para o


desenvolvimento de aprendizagens acerca de práticas pedagógicas que tratam
do legado africano-brasileiro e da diversidade humana que precisa ser
dialogada a partir da infância.

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Este artigo possui três divisões: inicialmente, apresenta-se o


entendimento dos jogos teatrais e sua importância para o contexto pedagógico
do universo da leitura; seguidamente, relata-se a experiência desenvolvida,
com a indicação dos materiais e métodos utilizados. A terceira parte, por sua
vez, traz as notas conclusivas do presente texto.

2. Jogos improvisacionais no universo da infância

Os jogos de improviso, também conhecidos como jogos teatrais


representam uma metodologia teatral que tem o improviso como ponto de
partida para as experimentações, sendo relevantes para diversos contextos
educativos, a exemplo das ações pedagógicas que foram realizadas na oficina
a ser relatada. A este respeito, Japiassu (2011) define os jogos indicados
como:

[...] atividades pedagógicas para aquisição, leitura, domínio e fluência


da comunicação por meio do teatro, de uma perspectiva
improvisacional (sem roteiros nem combinações apriorísticas de como
será a atuação na área de jogo e sem textos de sustentação à
representação teatral previamente elaborados) (JAPIASSU, 2001, p.
66).

Pondera-se sobre a pertinência de trabalhar com jogos improvisacionais


no universo da leitura, tendo em vista o espaço para propiciar uma parceria
entre a arte e a educação no processo de contação de histórias a públicos
variados. Em relação ao público infantil, pondera-se que as atividades
corporais são importantes para a exploração dos sentidos e autoconhecimento
corporal pela criança (BOAL, 2011).

3. Do conto ao encanto: um relato de experiência com crianças

O presente relato trata da experiência ocorrida em 2014, com crianças


de 4 a 6 anos, durante a III UNEBRINQUE, evento realizado pela

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Brinquedoteca Paulo Freire, localizada na UNEB do campus de Salvador. A


atividade envolveu a participação das crianças nas leituras, de modo a explorar
suas aprendizagens no campo literário e ao mesmo tempo valorizar suas
expressividades artísticas. Com este intuito, o planejamento foi direcionado à
parceria entre a literatura e as artes, priorizando-se o universo da imaginação e
o improviso para criações por meio da mediação pedagógica.

3.1 Materiais e métodos

A oficina teve a duração de 1h30min e utilizou os seguintes materiais:


caixa de sapato, varal, pregador, imagens, a voz e o corpo. A atividade contou
com a narração de dois contos afro-brasileiros, a saber: “A Vitória do Papagaio”
e “A onça escapa de uma cilada”, ambos do autor Júlio Braga.
Inicialmente, o acolhimento foi realizado com a formação de um
semicírculo no chão e em seguida, a oficineira conheceu aspectos do grupo
infantil indicado: falaram suas idades, seus gostos, um pouco de seus
cotidianos, o que representou o primeiro momento dialógico com o público
trabalhado e contribuiu para a coleta dos conhecimentos prévios dos mesmos
em relação a literatura afro-brasileira. Deste modo, perguntou-se aos
educandos se eles gostavam de ouvir histórias, quais delas eles conheciam, se
eles já ouviram alguma história africana etc.
Seguidamente, narrou-se o conto “A Vitória do Papagaio”, de Braga
(1980), conforme registros a seguir:

Descreve a antiga história que o sol, a lua, o fogo e o papagaio


estavam todos reunidos em luta pelo poder, um querendo ser mais do
que o outro. O papagaio foi o único que fez o ebó determinado. Os
outros disseram que não havia coisa nenhuma que lhes pudessem
modificar as feições. Tendo o papagaio feito o ebó os outros
imediatamente mudaram de lugar. Houve muita chuva, a tal ponto,
que a chuva apagou o fogo e a tempestade, com todos os seus
horrores, fez escurecer as nuvens. O grande vencedor foi o papagaio
que, embora tenha se molhado muito, não perdeu a cor encarnada
que existe em sua cauda (BRAGA, 1980, p. 20)

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A contação da história sobre o papagaio foi realizada por meio de um


varal imagético, com a utilização de materiais como pregadores e uma caixa
decorada: durante a narração, as imagens representativas dos personagens do
conto eram retiradas de dentro da caixa e, seguidamente, pregadas no varal. A
este respeito, utilizou-se imagens coloridas, confeccionadas com os seguintes
materiais: lápis de cor, hidrocor, giz de cera, papel celofane, cola colorida e
glíter. Ressalta-se que a contação tratou de ensinamentos em torno da disputa
pelo poder, tendo como referência os fenômenos da natureza, o que facilitou
para a intervenção das crianças, considerando que as mesmas indicaram
conhecimento prévio acerca da natureza e expressaram a necessidade de falar
com a narradora, de modo a participar da contação.
A curiosidade dos aprendizes foi despertada durante o movimento de
apresentação das imagens, ocorrido forma processual, além da exploração dos
sons emitidos pela voz da contadora, dando espaço para que as crianças
pudessem acompanhar as ações e ao mesmo tempo, com o intuito de
estimular a turma para expressar suas criatividades, o que foi observado por
meio de: frases sobre a atitude dos personagens; citação de uma característica
dos fenômenos conhecidos por eles; aconselhamentos ao protagonista sobre o
que fazer diante da situação apontada etc. Reflete-se que a espontaneidade e
a criatividade das crianças possibilitou o desenvolvimento improvisacional das
mesmas para sugerir um final para a história.
No segundo momento, as crianças ouviram o conto “A onça escapa de
uma cilada” e seguidamente, participaram da experimentação teatral por meio
de exercícios direcionados a imitação dos animais. Durante a encenação, as
crianças exploraram recursos como a voz, o corpo e suas expressividades,
com o intuito de representar os personagens escolhidos e indicando suas
características. Estimulou-se, além disso, a interação entre os pares, de modo
a permitir que os participantes encenassem como se dá a relação entre
determinados tipos de animais quando os mesmos se encontram.
Por fim, a oficina foi encerrada com a coleta das impressões das
crianças acerca das leituras realizadas, de modo a acompanhar as
contribuições e questões que podem ser aprimoradas em trabalhos
pedagógicos futuros.

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4. Notas conclusivas

Assim, defende-se que experiências pedagógicas precisam ser


difundidas entre os profissionais de educação, pesquisadores e interessados, a
fim do compartilhamento de experiências e registro de propostas educativas
que utilizem os jogos teatrais no universo da leitura e, além disso, com a
finalidade de disseminar ações de valorização da cultura afro-brasileira trazida
nos contos míticos.
Sabe-se que o currículo escolar ainda se apresenta desconectado em
relação aos contextos de diversidades culturais presentes no Brasil, o que
fortalece a negação dos estereótipos afrodescendentes. Neste viés, torna-se
essencial o planejamento de atividades e projetos orientados para o trabalho
com a diversidade e a inclusão de diversas culturas, contextualizadas aos
assuntos que se aproximam das identidades dos sujeitos inseridos no
processo.
Conclui-se que o desenvolvimento de ações educativas na educação
infantil precisa considerar a perspectiva das diferenças presentes nas
diversidades culturais imersas na sociedade brasileira, de modo a combater
preconceitos, além de aproximar os territórios da cultura escolar com os
saberes da cultura do povo.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2011.

BRAGA, Júlio Santana. Contos afro-brasileiros. Salvador: Fundação Cultural


do Estado da Bahia, 1980.

DUARTE JÚNIOR, João Francisco. Por que Arte-Educação? Campinas, São


Paulo: Papirus, 1991.

318
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

JAPIASSU, Ricardo Ottoni Vaz. Metodologia do ensino de teatro. Campinas,


SP: Papirus, 2001.

KRAMER, Sonia. Infância e Educação: o necessário caminho de trabalhar


contra a barbárie. IN: KRAMER, Sonia; LEITE, Maria Isabel; NUNES, Maria
Fernanda; GUIMARÃES, Daniela (orgs.). Infância e Educação Infantil.
Campinas, SP: Papirus, 1999.

MÍDIA TELEVISIVA: UM ESPAÇO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA


CRIANÇA?

MARIZETE PINHEIRO DE OLIVEIRA (UFBA)

Desde cedo, ouço dizer que as crianças são o futuro da nação. Diz-se
que o destino da humanidade está em suas mãos. Se isso é verdade, penso
que devemos prepará-las para assumir essa responsabilidade. Assim, investir
em educação científica nos espaços formais e não formais parece ser um
caminho a seguir. Pois, a popularização da ciência e da tecnologia é de
fundamental importância para o desenvolvimento cultural de um povo, além
disso, as pesquisas, experiências e preocupações científicas devem ser
apresentadas ao público para que este possa interar-se não apenas dos
conhecimentos científicos, mas também das decisões que deles decorrem.
Neste sentido, é fundamental incluir toda população na disseminação
do saber científico. Isso significa que as crianças também devem fazer parte
deste processo (BUENO, 2012). Uma vez que, elas produzem conhecimento,
identidade e cultura.
Nessa perspectiva, Sarmento (2003) salienta que as crianças são
seres sociais que participam da construção de sua cultura determinado suas
próprias vidas e, também daqueles que as cercam e da sociedade em que
vivem. Elas são agentes que constroem conhecimentos por meio de interações
com outros sujeitos, com o objeto do conhecimento e consigo mesmo no
momento da brincadeira. Assim, o momento de lazer e entretenimento também
são momentos de aprendizado constante.
Nesse contexto, podemos inseri-las no mundo da cultura da ciência,
sem interferir em seus contextos sociais. Para tanto, a televisão (TV) pode ser

319
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

uma alternativa. Pois, estudos têm mostrado (ARAÚJO e SOUSA, 2015;


FERREIRA, 2013; MOURA, 2015; PEREIRA, 2008) que essa mídia estar
presente em grande parte dos lares brasileiros, participando do cotidiano das
crianças, influenciando suas opiniões, conceitos, consumo e principalmente
seu comportamento.
Nesse cenário, percebemos que a televisão é uma professora pela qual
as crianças têm atração. Assim, o poder que ela exerce sobre estes
telespectadores deveria ser usado para promover uma educação científica de
qualidade. Em vez disso, ela produz programas sem preocupação formativa, de
baixa qualidade intelectual, que muitas vezes mistura ciência com violência
(SIQUEIRA, 2002).
Este pressuposto está sendo evidenciado em uma investigação em
andamento, cujo objetivo é compreender o quanto a mídia televisiva tem
contribuído para a divulgação do conhecimento científico para criança. Esse
objetivo centra-se na perspectiva de promover alfabetização científica em
espaço não formal, divulgando o conhecimento científico para o público infantil,
favorecendo uma aproximação entre o conhecimento científico e o cotidiano,
incentivando os estudos e estimulando o interesse pelas ciências e pelo
desenvolvimento científico. Para tanto, consideramos a criança como

“Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas


cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva,
brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta,
narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade,
produzindo cultura” (BRASIL, 2010, p. 14).

A criança como todo ser humano é um sujeito social e faz parte de uma
organização familiar que está inserida em uma sociedade, com uma
determinada cultura, em um determinado momento histórico (SARMENTO,
2003). É marcada profundamente pelo meio social em que se desenvolve, mas
também o marca. Assim, como acreditamos que a cultura científica não é dada,
e sim construída e que as crianças participam ativamente da sociedade
produzindo cultura, entendemos que elas devem fazer parte do processo de
disseminação do saber científico para que haja a consolidação de uma cultura
científica cidadã.

320
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Seguindo essa perspectiva, a investigação supracitada propôs ouvir as


crianças para compreender sua relação com a TV e como elas relacionam os
programas televisivos que assistem com o seu cotidiano. Para isso, algumas
atividades diagnósticas foram realizadas. Para tanto, dispomos de uma
metodologia participativa da escuta da cultura da infância, com 30 crianças
com idade entre 06 e 10 anos de um projeto social sediado na capital baiana.
Através da compreensão da cultura da infância - definida como a
capacidade das crianças de construírem de formas sistematizadas modos de
significação do mundo e de ação intencional que são distintos dos modos dos
adultos de significação e ação (SARMENTO, 2015) - procuramos entender o
cotidiano das crianças por meio de diálogos e desenhos nos quais,
espontaneamente, elas foram expondo seu dia a dia em casa e na escola.
Em suas falas percebeu-se que, com frequência, cenas de telenovelas,
desenhos animados e outros programas televisivos foram citados.
Evidenciando, dessa maneira, a influência dessa mídia em suas vidas diária.
Em relação aos conhecimentos científicos veiculados pela TV e
relacionados às atividades cotidianas das crianças, em suas falas e nos
desenhos, percebeu-se que elas vêm à ciência como algo distante e
desvinculado de seu dia a dia. Segundo algumas crianças, “a ciência pertence
aos cientistas gênios e a alguns professores inteligentes”. Os desenhos
mostram isto, a ciência restrita aos cientistas que em seus laboratórios
produzem porções mágicas capazes de salvar o mundo.

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Desenhos produzidos pelas crianças

Mesmo as crianças que já têm contato com o conhecimento científico


na escola não conseguiram estabelecer uma relação entre a ciência e seu
cotidiano mostrando que a ciência tem sido apresentada como algo
completamente desvinculado de seu dia a dia (MASSARANI, 1999). Isso pode
ser um indício de que tanto a educação realizada nos espaços formais quanto
aquela feita pelos espaços não formais não têm alcançado sua finalidade.
Os programas citados pelas crianças têm caráter claramente
“deseducativo”, não apenas por desperdiçarem um tempo precioso com
bobagens que nada acrescentam à formação ou mesmo ao entretenimento das
crianças, mas também por apostarem em situações constrangedoras,
humilhantes ou vexatórias (SAMPAIO, 2004).
Tais situações tendem a interferir na formação do individuo. Pois, na
faixa etária entre os 07 e 08 anos, a criança dá início à racionalização de seus
pensamentos, começando a ser preenchidas pelos porquês, procurando
compreender a razão dos problemas e fatos tomando por base os padrões
concebidos pela família e sociedade (Vygotsky, 1994). Muitas vezes, elas se
apropriam dos saberes reproduzindo-os e transformando os conhecimentos
que têm acesso. Além disso, buscam conhecimentos em seu faz de conta,
antepondo-se ao mundo ao seu redor. Essa transposição imaginária das
situações e acontecimentos, segundo Sarmento (2003), é a base da
constituição dos mundos das crianças.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Vygotsky (1994) argumenta que quando a criança reproduz o


comportamento social de um adulto ela está fazendo uma combinação do real
com sua ação fantasiosa, isto porque a criança tem como necessidade a
reprodução do cotidiano do adulto, o qual ainda não pode fazê-lo da maneira
que deseja. Assim, ao interagir com o mundo que as cercam e em que vivem
elas participam ativamente da construção de seus conhecimentos. A TV, nesse
contexto, através de seus programas, contribui para a formação delas. Ao ouvi-
los, elas absorvem lições que contribuirão para o seu desenvolvimento interior.
Por isso, os programas televisivos direcionados às crianças devem
favorecer a construção de seu imaginário, levando-as a um movimento de
mudança e descobertas, instigando-as a criticarem e argumentarem,
contribuindo para um ambiente de aprendizagem.
No entanto, isso não tem acontecido em sua plenitude. Há algumas
emissoras, que se preocupam com a qualidade dos conteúdos direcionados às
crianças, mas nem todos têm acesso a elas. O que prevalece são os desenhos
animados, em sua maioria, provenientes do Japão e dos Estados Unidos.
Estes são agressivos e induz o consumismo exacerbado, sendo um grande
influenciador de atitudes e influências negativas na formação da criança.
Siqueira (2002) salienta que nos programas produzidos para criança há
uma “mistura de entretenimento e informação, sendo que a maior parte das
animações e programas se submete ao caráter comercial”. A autora vai além,
segundo ela, “novas tecnologias são introduzidas, mas os estereótipos, a
violência, o vocabulário vulgar, a competição e o consumo continuam
presentes” (p. 43).
Para o público que busca uma programação diferenciada, que se
preocupa com o desenvolvimento e a formação da criança, essas distorções
são rejeitadas. Contudo, nem todos conseguem perceber essas distorções.
Além disso, grande parte dos programas direcionados à formação é pago e os
que são veiculados por canais abertos pertencem a emissoras menos
populares, ficando restritos a uma pequena parcela da sociedade.
Se as crianças são o futuro da humanidade, já é hora de tratá-las como
tal aproveitando todo potencial inerente a elas. Em vez de oferecer conteúdos
inapropriados e desvinculados de sua realidade, que segundo Torak (2002)

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ameaça a sua capacidade de resolver desafios mundiais, as emissoras


poderiam investir em programações criativas permitindo o estabelecimento de
relações significativas com o ambiente que as rodeia.
Vivemos em uma sociedade permeada pela ciência, tecnologia e com
questões locais e mundiais que precisam de conhecimentos, habilidades e
competências para serem resolvidas. Precisamos de pessoas que sejam
capazes de enfrentar esses problemas e resolvê-los. Para isso, elas devem se
apropriar dos conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos, pois, isso é
um elemento essencial para o exercício da cidadania (ROCHA, 2012). Nesta
perspectiva, a interação e aprendizagem de tais conhecimentos são
fundamentais para o desenvolvimento de uma postura crítica no cidadão que
deve estar atento aos reflexos da ciência na sua vida.
Por isso, é de suma importância que os conteúdos e recursos
disponibilizados na mídia televisiva sejam capazes de ampliar e aprimorar o
conhecimento das crianças aguçando sua curiosidade. Neste contexto, a
divulgação científica direcionada a elas merece atenção especial, pois

As crianças apropriam-se criativamente da informação do mundo


adulto para produzir a sua própria cultura de pares. Tal apropriação é
criativa na medida em que tanto expande a cultura de pares (tal
transforma a informação do mundo adulto de acordo com as
preocupações do mundo dos pares) como simultaneamente contribui
para a reprodução da cultura adulta (CORSARO, 2002, p. 114).

Assim como as crianças incorporam as personagens de desenhos em


suas vidas, se identificando com elas e adotando seus comportamentos, o
saber científico pode ser incorporado e disseminado da mesma maneira. Para
Sampaio (2004, p.40) “o segredo é investir na fantasia, na magia, na aventura,
no faz-de-conta, utilizando temas que versem sobre relações afetivas e
familiares” para divulgar ciência de forma criativa e educativa. Essas são as
estratégias usadas por programas para entreter e induzir o consumismo das
crianças. De acordo com Sampaio (2004)

A partir do que a infância tem de mais próprio – a pureza e a


imaginação – é possível criar conexões entre suas fantasias e o
estabelecimento de hábitos. Procura-se estabelecer assim, através
da posse, aquisição ou utilização dos itens divulgados, autoimagens
ideais que as crianças farão de tudo para possuírem e identificarem
como sendo as suas. (SAMPAIO, 2004, p. 26).

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Se essas estratégias funcionam com produtos consumistas também


podem funcionar com a divulgação do saber científico que são mais valiosos do
que tais produtos. Para isso, precisamos ocupar os espaços da mídia para
fomentar uma divulgação científica de qualidade, onde o espaço de lazer e
entretenimento seja também um espaço de troca e de aprendizado. Neste
sentido, Shamos (1999) argumenta que nos anos de formação

Quando a curiosidade natural das crianças sobre o mundo em torno


delas está no auge, e suas mentes estão tão receptivas a novas
idéias, imaginou-se que seria possível desenvolver uma base
científica que ficaria como uma parte permanente de sua vida
intelectual individual (...) talvez mesmo posteriormente como
membros adultos responsáveis da sociedade (SHAMOS, 1999, p.
129-130).

Refletir, portanto, sobre a importância da inserção da criança na ação


dinâmica da formação de uma cultura científica e propor atividades
diversificadas de divulgação cientifica dirigidas especialmente para elas, é o
primeiro passo para pensarmos em uma sociedade cidadã na qual seus
membros sejam capazes de conhecer e interagir com a ciência. Assim, o uso
da mídia televisiva, recurso usado por todas as classes sociais, pode contribuir
com essa tarefa.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Ana Lúcia Soares da Conceição; SOUSA, Leliana Santos de.


Primeira infância a galinha dos ovos de ouro: reflexões e implicações da mídia
na cultura lúdica infantil. XI ENECULT – Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura. Salvador, V.1, nº 11, 2015. Disponível em:
http://www.cult.ufba.br/enecult/anais/artigos-aprovados/. Acesso: 20 set. 2015.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEB, 2010.

BUENO, Cristiane Cardoso. Imagem de criança, ciência e cientista na


divulgação científica para o público infantil. Dissertação (Mestrado) –
Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas.
Campinas, SP 2012.

CORSARO, W. A. A reprodução interpretativa no brincar ao faz-de-conta das


crianças. Educação, Sociedade e Cultura, Porto, Portugal, n.17, p.113-134,
2002.

325
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

FERREIRA, T. O poder e o papel dos meios de comunicação em massa.


2015. In: <http://cinejornalismoempauta.blogspot.com.br/2008/03/o-poder-e-o-
papel-dos-meiosde. html>. Acesso: 20 Jul. 2015.

MASSARANI, Luisa (1999). Reflexões sobre a divulgação científica para


crianças. Anais do XXII Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação, Rio de Janeiro/BRA, 1999. In: < http://www.intercom.org.
br/paper/xxii-ci/gt11/11c04. PDF>. Acesso: 13 de jul. de 2015.

MOURA, L. T. A televisão na vida das crianças: uma dialética na


contemporaneidade. 2015. Disponível em:
<http://www.novomilenio.br/comunicacoes/1/artigo/13_luciana.pdf>. Acesso: 10
de jul. de 2015.

PEREIRA, S. Crianças e televisão: convergências e divergências de um campo


de estudo. In.: SARMENTO, M.; GOUVEA, M. C. S. (org.) Estudos da
Infância: Educação e Práticas Sociais. Petrópolis, RJ: Vozes. 2008.

ROCHA, Marcelo Borges. O potencial didático dos textos de divulgação


científica segundo professores de ciências. R.B.E.C.T., vol 5, núm. 2, mai-
ago.2012. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br. Acesso em 05 fev. 2015.

SAMPAIO, Inês. Televisão, publicidade e infância. 2. ed. São Paulo:


Annablume, 2004.
SARMENTO, Manuel Jacinto. As culturas da Infância na encruzilhada da 2ª
Modernidade. 2015. Instituto da Infância, Universidade do Minho – Portugal.
In: <http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/textos/encruzilhadas.pdf>
Acesso: 18 jul. 2015.

SARMENTO, M. J. Imaginário e culturas da infância. Cadernos de Educação,


Pelotas, v. 12, n. 21, 2003.

SHAMOS, Morris. The Myth of Scientific Literacy. New Jersey: Rutgers


University Press, 1995.

TORAK, Simon. Falar de ciências para criança: algumas dicas. In:


MASSARANI, L.; MOREIRA, I. C.; BRITO, F. (Org.). Ciência e público:
caminhos da divulgação científica no Brasil.: UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo: MARTINS
FONTES, 1994.

326
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: ANÁLISE DO DISCURSO: AS DIVERSAS


RELIGIÕES NA BAHIA

PROPOSITORES: CAMILA LEITE OLIVERA CARNEIRO (UNEB), EVERTON


NERY CARNEIRO (UNEB) E JORGE NERY (UEFS)

Ementa:

O trabalho com o discurso religioso é também o trabalho com o universo de

significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes. Dessa maneira,

o discurso religioso não deve ser tratado de forma isolada, pois, envolve todo

um processo comunicativo, envolve relações entre linguagem, discurso e

contexto situacional. Nesse sentido, este GT acolherá comunicações que

apresentem a visão religiosa e teológica dos discursos religiosos existentes na

Bahia, tendo como referência as diferentes teorias hermenêuticas, semióticas e

de análise do discurso contemporâneas.

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A INCLUSIVIDADE DO NOVO LOC DA IEAB:


Lex orandi, lex credendi, lex agendi

ADRIANO PORTELA (UFBA) 50

Resumo:

A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) é uma das denominações cristãs


atuantes na Bahia. Foi a primeira igreja cristã não católica-romana a se
estabelecer no Estado e completa 200 anos de presença na Bahia em 2015. O
presente artigo visa realizar a análise do discurso do Livro de Oração Comum
(LOC), principal livro litúrgico dessa denominação cristã, o qual recebeu uma
nova edição, com adoção de linguagem inclusiva. Pautamo-nos em discursos
do Bispo Primaz da IEAB e da Comissão Nacional de Liturgia, bem como em
textos do próprio LOC, no axioma teológico lex orandi, lex credendi, e na
interface discurso/ideologia, segundo M. Pêxeux, para realizar a análise.

50
Mestre em Literatura e Cultura (UFBA). E-mail: adrportela@hotmail.com.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Palavras-chave: IEAB - LOC - Inclusão – Feminismo – Análise do Discurso.

Histórico e natureza do Livro de Oração Comum (LOC)

Partindo da proposta de análise do discurso das diversas religiões na


Bahia, optamos por estabelecer o recorte de nossa pesquisa no discurso
religioso da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (doravante, IEAB),
representada na Bahia pela Paróquia Anglicana Bom Pastor. O recorte justifica-
se num duplo motivo: o primeiro é que, em 2015, os episcopais anglicanos
celebram 200 anos de presença na Bahia; o segundo é que, nesse mesmo
ano, foi lançado o novo Livro de Oração Comum (doravante, LOC), cuja edição
foi motivada pelo desejo de estabelecer uma linguagem inclusiva para as
orações e ritos da IEAB.

Para termos noção da importância dessa iniciativa, cumpre sabermos


que a Comunhão Anglicana, da qual a IEAB é a 19ª Província, apoia sua
unidade não numa autoridade pessoal, não num conjunto de dogmas, mas no
LOC, que teve sua primeira edição em 1549, graças aos esforços reformadores
de Thomas Cranmer, primeiro Arcebispo anglicano de Cantuária 51. Conciliando
a forma católica, com o princípio protestante, o LOC contém desde o calendário
litúrgico, o rito da Celebração Eucarística, os ritos dos demais sacramentos, até
às fórmulas de orações pessoais que os fieis podem fazer em sua casa. Desse
modo, ele orienta toda vida de fé anglicana.

Costuma-se dizer que o que une os anglicanos é o modus orandi


(modo de orar) dado pelo LOC, embora cada Província tenha autonomia para
publicar sua edição típica desse instrumento devocional, litúrgico e
sacramental. Foi exatamente isso que acabou de acontecer nesse ano, na
IEAB: a publicação de uma nova edição do Livro de Oração Comum.

51
A Sé de Cantuária foi fundada a partir da missão romana de Agostinho de Cantuária, que foi enviado à
Inglaterra no séc. VI, pelo Papa Gregório Magno, para unificar o cristianismo de expressão celta à Igreja
Católica Romana. Depois da autonomia da Igreja da Inglaterra proclamada pelo rei Henrique VIII, no séc.
XVI, a Sé de Cantuária se tornou a igreja principal da Igreja Anglicana ou Igreja da Inglaterra, daí que
Tomás Cranmer seja o primeiro Arcebispo Anglicano de Cantuária.

329
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Uma nova edição do LOC para a IEAB

A IEAB tomou a decisão de publicar uma nova edição do LOC, tendo


como motivo principal a adoção de uma linguagem inclusiva, e começou a
praticar o princípio de inclusão pela própria composição da Comissão Nacional
de Liturgia, que foi formada majoritariamente por mulheres e que teve como
Custódia do LOC uma mulher, a Revma. Deã Marinez Rosa dos Santos
Bassoto. Essa peculiaridade, sem sombra de dúvidas, permitiu à Comissão
enxergar os “problemas de exclusão [da mulher] de maneira mais clara – algo
que os homens só vivem em teoria, sem que seja experiência de vida”.

O prefácio da nova edição do LOC sinaliza a adoção da linguagem


inclusiva no trabalho de revisão do livro, ao afirmar:

Sabendo do valor das formas e dos ritos contidos neste livro, os quais
apontam para a identidade da nossa fé e para o fortalecimento da
nossa espiritualidade, buscou-se oferecer uma maneira mais
contemporânea de se relacionar com essa fé a partir da
atualização e da utilização da linguagem inclusiva, que nos envolve
no contexto da adoração, transformando homens e mulheres em partes
integrantes do ato de celebrar a vida e a vida em abundância. (LOC,
2015, p. 19). (grifo nosso).

Diante dessa afirmação oficial, podemos nos perguntar por que e para
quê uma linguagem inclusiva. No artigo intitulado Linguagem Inclusiva? O que
é isso?, a Comissão Nacional de Liturgia (da IEAB), que foi a responsável pela
nova edição do LOC, explicitou o porque da adoção desse princípio:

É preciso que nossa liturgia estenda o entendimento que temos de


Deus e da humanidade, como testemunho de que a humanidade –
independente de gênero – é feita à imagem e semelhança de Deus.

[...] Deus não pode ser encapsulado num só gênero. Deus transcende
a noção de gênero.

O por que, então, se firma na comunicação de duas convicções


teológicas: o ser de Deus está além da noção sócio-histórica de gênero e o ser
humano, seja qual for seu gênero, é imagem e semelhança de Deus e tem
sempre a mesma dignidade.

Já a resposta ao para que, podemos “pinçar” em Uma Palavra do


[Bispo] Primaz do Brasil sobre as mudanças a respeito do matrimônio na Igreja
Episcopal dos Estados Unidos, que aprovou modificações canônicas e

330
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

litúrgicas no matrimônio para permitir o casamento religioso entre pessoas do


mesmo sexo. Dom Francisco de Assis da Silva, atual Bispo Primaz da IEAB,
salienta que “nossa nova edição do Livro de Oração Comum já contempla uma
mudança de linguagem, estabelecendo a neutralidade de gênero que é um
passo significativo de inclusão de todas as pessoas”. Desse modo, a finalidade
da adoção da linguagem inclusiva tem por finalidade estabelecer a
“neutralidade de gênero”, para favorecer a inclusão de todas as pessoas na
missão da Igreja. Essa é uma preocupação “fina” por quanto procura sanar a
exclusão em detalhe tão tácito quanto a linguagem e linguagem estabelecida,
aceita e (aparentemente) blindada pelas formas rituais.

Exempla

Buscando responder o que significa a “linguagem inclusiva” que se diz


ter sido adotada, a Comissão Nacional de Liturgia aponta, em Linguagem
Inclusiva? O que é isso?, que a inclusão se deu de duas formas:

a) No modo de se referir a Deus, evocando a “maternidade de Deus” através


de expressões como “Pai materno,” para evidenciar, teologicamente, “que
Deus tem características paternas e maternas ao mesmo tempo”. De igual
modo, desatrelando a imagem de Deus do gênero masculino, através do uso
de metáforas (figuratizações) como “Fonte, Raiz, Origem”, que fogem à noção
de gênero para comunicar uma visão de Deus. Podemos citar como exemplo
as orações coletas Pela Justiça Social e do Tempo Comum 33,
consecutivamente:

Pai materno, sopro de justiça, socorre tuas filhas que aqui


sofrem em relacionamentos de abuso e sofrimento, desamor,
preconceito e assédio. Implementa na tua igreja a flama do
Santo Espírito, para que, como ventania, sopre nos nossos
corações, converta nossos caminhos, nos encha de coragem
para a luta e derrube as estruturas paternais que dividem as
pessoas por gênero. É o que te pedimos em nome de Jesus
Cristo, em quem não há homem nem mulher, apenas pessoas, à
imagem e semelhança de Deus. Amém. (LOC, 2015, p. 534)

Amor maior, que enviaste a tua Igreja até os confins da terra


para reunir um povo agradável aos teus olhos; concede-nos
fidelidade na Missão, de tal maneira que, mesmo que se abalem

331
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

as estruturas deste mundo, proclamemos que Jesus Cristo, teu


Filho, vive e reina contigo e com o Espírito Santo, um só Deus,
agora e sempre. Amém. (LOC, 2015, 460)

b) Nas orientações sobre os ministros oficiantes dos ritos e orações, através da


menção às ministras leigas e ordenadas nas rubricas, já que a IEAB “estende a
todos os gêneros a possibilidade de acesso às diferentes ordens e ministérios”.
Um exemplo para este caso é o que segue, retirado do Rito de Ordenação
Presbiteral: “O bispo ou bispa ordinante saúda o novo presbítero ou presbítera
e apresenta ao povo, dizendo:” (LOC, 2015, p. 732)

LOC: Lex orandi, lex credendi, lex agendi

Por trás da iniciativa da IEAB de estabelecer uma nova edição do LOC


investida de linguagem inclusiva, está a consciência de que a liturgia é um
lugar teológico privilegiado da vida cristã, por que nele atuam
concomitantemente três princípios: lex orandi, o modo de rezar; lex credendi, o
conteúdo da fé; e lex agendi, o modo de agir.

O lex orandi, lex credendi é um axioma antigo da Igreja, que remonta à


Cipriano de Cartago, Agostinho de Hipona e à Próspero de Aquitânia († depois
de 455), sendo este último aquele que lhe desenvolveu mais. O sentido dado
por ele ao axioma é o de que a norma da oração da Igreja estabelece a regra
do crer, através do qual ele procurou defender a posição de Agostinho (de que
precisamos da graça para a realização do bem) contra a dos semipelagianos
(de que precisamos tomar a iniciativa para obtermos a graça). A partir do
axioma, Próspero provou que, se a Igreja reza pela conversão dos“maus” é
porque, então, ela crê que, se os maus se convertem, é por causa da graça de
Deus. Logo, aí se encontra o sentido do axioma: para que a norma do orar
estabeleça a regra do crer (ut legem credendi lex statuat supplicandi) 52.

No século XIX, Prosper Guéranger († 1875) retomou o axioma,


invertendo-o, de modo que passou a significar também que a lex credendi
determina a lex orandi, isto é, a regra da fé determina a norma do orar. Desse

52
Para saber mais, vide: TABORDA, Francisco. Lex orandi - lex credendi: origem, sentido e
implicações de um axioma teológico. In: Perspectiva Teológica 35, 2003, p. 71-86.

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modo, é que os Papas utilizaram, por vezes, a liturgia para confirmar dogmas
ou incentivar doutrinas. Exemplos disso foi a “Festa de Corpus Christi, na Idade
Média, a da Imaculada Conceição, a partir do século XV, e a de Cristo Rei, no
séc. XX, todas com sentido de inculcar alguma verdade dogmática”
(TABORDA, 2003, p. 80).

Taborda salienta o princípio do lex agendi, que não foi explorado nem
por Próspero nem por Guéranger. A norma do orar, que determina a regra da
fé, ou vice-versa, é determina também a regra do agir, isto é, orienta a práxis
cristã. Segundo Taborda,

A vida cristã apresenta três momentos que lhe são intrínsecos: liturgia
– fé – ética (compreendendo sob esta última a a prática da vida cristã
de cada dia). Se não se leva em consideração a interdependência dos
três momentos, não se esclarecem as relações entre quaisquer dos
outros dois componentes da tríade. Assim como na Trindade não se
podem considerar as relações entre duas pessoas sem levar a sério a
terceira, ou seja, sem considerar as duas pessoas em questão na
perspectiva intratrinitária total, assim também oração – fé – agir são
três aspectos da existência cristã tão fundamentalmente unidos que
toda reflexão sobre a relação entre dois sem o terceiro é inadequada.
(TABORDA, 2003, p. 83).

Nesse sentido, a iniciativa da IEAB não pode ser avaliada à luz apenas
dos elementos tradicionais do axioma – o que já revelaria sua grandeza – mas
também à luz do lex agendi, que é para onde aponta a iniciativa. A revisão do
LOC dentro do princípio de inclusividade serve tanto à ideia de que a norma do
orar determina a regra do crer, quanto à ideia de que a regra do crer determina
a norma do orar (como parece ser o caso!), mas serve, sobretudo, à ideia de
que a norma do orar determina a práxis cristã, um modo de agir dos cristãos no
cotidiano de suas vidas.

LOC: Análise do Discurso

Deparando-nos com a inclusividade linguística do LOC e aquilo que ela


significa teologicamente, sentimo-nos provocados a empreender a análise do
discurso inclusivo do Livro de Oração do Comum. De acordo com Maria do
Rosário Valencise Gregolin (1995, p. 20):

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Empreender a análise do discurso significa tentar entender e explicar


como se constrói o sentido de um texto e como esse texto se articula
com a história e a sociedade que o produziu. O discurso é um objeto,
ao mesmo tempo, linguístico e histórico; entendê-lo requer a análise
desses dois elementos simultaneamente.

Na primeira tarefa da Análise do Discurso, aquela de “entender e


explicar como se constrói o sentido de um texto”, estão postas as perguntas “o
que este texto diz?” e “como ele diz?”, que significa realizar a análise interna do
texto. De algum modo, mesmo que en passant, evidenciamos anteriormente o
modo como o LOC adequou sua linguagem, quando utilizei o artigo da
Comissão Nacional de Liturgia intitulado Linguagem inclusiva? Que é isso?.

A segunda tarefa, aquela de entender “como esse texto se articula com


a história e a sociedade que o produziu”, procuraremos empreender agora
tocando na ideologia presente no discurso inclusivo do novo LOC da IEAB.

De acordo com Gregolin (1995, p. 17), “a ‘ideologia’ é um conjunto de


representações dominantes em uma determinada classe dentro da sociedade.
[...] a visão de mundo [...], a maneira como ela representa a ordem social”. No
caso do LOC, a ideologia é o feminismo, que denuncia a exclusão feminina e
que confronta a ideologia heteronormativa, já que “a linguagem é determinada
em última instância pela ideologia”. (GREGOLIN, 1995, p. 17).

Pêcheux (1990) chama de “formação ideológica” ou “condições de


produção do discurso” aquilo que determina a linguagem. Por sua vez, a
determinação da linguagem é chamada de “formação discursiva”, que não é
nada mais, nada menos, “o que se pode e se deve dizer [e eu acrescentaria o
que não se pode dizer] em determinada época, em determinada sociedade”.
No contexto do feminismo que fecundou a linguagem do LOC, o que se pode e
se deve dizer é a explicitação do sujeito feminino; o que não se pode dizer é
aquilo que invisibiliza ou exclui esse mesmo sujeito, inclusive porque há 30
anos a IEAB já legalizou canonicamente a ordenação feminina ao diaconato,
presbiterato e episcopado.

Dentro da classe social que é a IEAB, a condição de produção dessa


linguagem foi a inclusão canônica das mulheres à ordem, mas isso foi reflexo

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

da Teologia Feminista que se desenvolveu na esteira do Movimento Feminista


que se intensificou na década de 60 do séc. XX e, de algum modo, na Teologia
Liberal gerada na América do Norte e da Teologia da Libertação gerada na
América Latina, por esse mesmo período. Desse modo, na verdade, podemos
falar de “condições de produção”, que se coadunaram modificando o lex orandi,
lex credendi, a ponto de tornar possível uma adequação da linguagem do LOC
às conquistas alcançadas na sociedade e, por conseguinte, na vida eclesial.

Considerações finais

A nova edição do Livro de Oração Comum da Igreja Episcopal


Anglicana do Brasil foi organizada a fim de adequar a linguagem à atual
realidade da Igreja, que a 30 anos já acolhe mulheres no ministério ordenado,
em seus três graus, e que absorveu o discurso feminista em sua teologia,
reconhecendo que a ação de Deus não se restringe a determinado gênero,
mas se estende à humanidade inteira. Resta, como percurso natural da
reflexão, uma futura adequação da linguagem ao matrimônio entre pessoas do
mesmo sexo, que ainda não está previsto nos Cânones Gerais da IEAB(?).

A Teologia Feminista abriu espaço, no mundo cristão, à Teologia


Inclusiva, assim como o Movimento Feminista abriu espaço à Teoria Queer, na
sociedade civil. Isso já se refletiu na adoção do matrimônio entre pessoas do
mesmo sexo, em algumas igrejas, virá, por acaso, a acontecer o mesmo na
IEAB? O lex orandi, lex credendi ganhará novos contornos para um novo lex
agendi?

REFERÊNCIAS

COMISSÃO NACIONAL DE LITURGIA (IEAB). Linguagem Inclusiva? O que


é isso? Disponível em: http://liturgia.ieab.org.br/category/formacao/. Acesso:
18 ago 2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Análise do Discurso: Conceitos e


aplicações. In: Alfa, 39. São Paulo, 1995, p. 13-21.

IGREJA EPISCOPAL ANGLICANA DO BRASIL. Livro de Oração Comum.


Porto Alegre: 2015.

PÊCHEUX, M. Apresentação da AAD. In: GADET, F., HAK, H. Por uma


análise automática do discurso (Uma introdução à obra de Michel Pêcheux).
Campinas: Pontes, 1990.

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as Mudanças a Respeito do Matrimônio na Igreja Episcopal dos Estados
Unidos. Disponível em: http://sn.ieab.org.br/2015/07/22/uma-palavra-do-
primaz-do-brasil-sobre-as-mudancas-a-respeito-do-matrimonio-na-igreja-
episcopal-dos-estados-unidos/. Acesso: 18 ago 2015.

TABORDA, Francisco. Lex orandi - lex credendi: origem, sentido e implicações


de um axioma teológico. In: Perspectiva Teológica, 35, 2003, p. 71-86.

ASPECTOS DA EXPRESSIVIDADE DE SEMINARISTAS EM SITUAÇÃO DE


LEITURA ORAL

AUTORA: ÉRICA AZEVEDO DA COSTA (UNEB)


COAUTORA: ME. FGA RAQUEL APARECIDA SOUSA AZEVEDO SOUZA
(UNEB)

RESUMO

O estudo da expressividade em situação de leitura oral permitiu acessar as


nuances mais sutis provocadas pela linguagem e traçar um movimento
dialógico e construtivo entre a Voz Profissional dentro da Fonoaudiologia e
áreas afins. O ato de ler permite reconhecer traços da identidade do sujeito
enunciador a partir dos recursos vocais, verbais e não verbais e a
simultaneidade de visões presentes diante da mesma prática, pois reflete
atitude, emoção crença, estado físico ou condição social do sujeito enunciador.
O interesse em desenvolver este estudo surgiu a partir da observação das
atividades desempenhadas pelos seminaristas, em sua formação inicial,

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buscando compreender o funcionamento da comunicação oral destes sujeitos


ao receberem o chamado vocacional. Esta pesquisa configura-se em um
estudo do tipo transversal, observacional, descritivo e individuado. A análise
dos resultados da avaliação fonoaudiológica bem como os resultados obtidos
mediante o questionário de autoavaliação evidenciaram como o
desconhecimento a cerca dos recursos de expressividade em atividades de
leitura oral podem comprometer o desempenho comunicativo. Embora o
caminho seja longo, as incursões fonoaudiológicas nesta área já se sustentam
como fundamentais a cada categoria profissional à medida que se busca
conhecer e adequar o fazer fonoaudiológico às necessidades e demandas
destes profissionais.

INTRODUÇÃO
O estudo da expressividade em situação de leitura oral permitiu
acessar as nuances mais sutis provocadas pela linguagem e traçar um
movimento dialógico e construtivo entre a Voz Profissional dentro da
Fonoaudiologia e áreas afins.
Ainda que seja algo tão comum quanto olhar, respirar, ouvir e andar, o
ato da fala é que diferencia o homem de todos os demais animais (RECTOR e
COTES, 2005). A palavra dita, enquanto unidade da linguagem permite o
homem tornar-se humano e o capacita a proferir o seu “eu” (DUARTE JÚNIOR,
2008).
Falar bem não é apenas uma questão de aptidão natural, para tanto, se
faz necessário o domínio completo e uso de estratégias que somadas às
aptidões particulares e experiências anteriores tornará sua fala única (PANICO,
2005).
No discurso religioso, porém, Deus não fala dado ser uma realidade
imaterial, quem fala em seu nome não é dono do discurso. O falante aqui é
apenas instrumento, porta-voz, que interpreta a palavra do Senhor (CITELLI,
2002).
O texto, segundo Bronckart (1999), é uma produção de linguagem
resultante da atividade humana. Esta unidade comunicativa é marcada não
apenas pelo tema discorrido como também na forma como está sua

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

organização e seu estilo (FURLANETTO, 2002). Cada gênero tem a


capacidade de organizar e orientar a comunicabilidade, facilitando a
compreensão mútua entre os integrantes de um determinado evento
comunicativo (BAKHTIN, 1997).
É consensual, que na prática da leitura oral a preparação para uma
dada situação discursiva, que envolve a leitura permite, aparentemente, maior
eficiência durante o processo comunicativo. Segundo Machado (2005), Bakhtin
elabora a noção de texto como um espaço aberto que permite uma
simultaneidade de visões a partir de um olhar extraposto, situando-se para
além de um processo de criação estética e que possibilita possíveis
combinações da linguagem em suas dimensões verbal e extra-verbal.
O ato de ler não perpassa apenas, como assinala Oliveira (2006), por
uma decodificação de palavras ou assimilação de informações. A leitura
permite, portanto, apropriar-se de um produto cultural engendrado
intencionalmente por um ou mais agentes históricos (SANTOS-THÉO, 2003),
considerando quem o escreveu, como e para quem o fez (PANICO, 2005).
Narrar um texto, prática comum durante atividade religiosa, exige
segundo Stier (2005), um desejo que deve surgir antes mesmo que se abra a
boca. Durante a leitura, a identidade expressiva se manifesta, e conforme
Kyrillos, (2004), está para além de se conseguir transmitir uma mensagem de
forma clara, atraente, com credibilidade e energia.
O estudo da expressividade permite o entendimento de que voz, fala,
discurso e corpo favorecem o desenvolvimento do potencial humano. Não há
como pensar em padrões “corretos” ou “incorretos” afinal, a forma de falar varia
de acordo com a possibilidade do discurso (PASTORELLO, 2005).
Kyrillos, Feijó e Cotes (2002), entendem o funcionamento da
expressividade a partir de recursos presentes em três grandes eixos, são eles:
recursos verbais, vocais e não-verbais.
Kyrillos (2004) afirma que os recursos ditos verbais, são vocábulos que
cada falante dispõe e que serão selecionados para cada situação
comunicativa. Os recursos vocais correspondem aos parâmetros
paralinguísticos que compõem a emissão. São elementos deste recurso:
ênfase, pausas, curva melódica ou modulação, ritmo, qualidade vocal e o tipo

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

de voz. Segundo Behlau (2005), outros aspectos como: sistema de


ressonância; pitch e loudness, articulação, velocidade, coordenação
pneumofonoarticulatória (CPFA) e o ataque vocal, devem ser observados.
Os recursos não-verbais envolvem a postura corporal, uso de gestos e
a expressão facial (KYRILLOS, 2004), que devem complementar o que se fala
(MERCATELLI, 2005) tomando o cuidado para que sua ausência, repetição e
até mesmo o excesso de gestos não comprometam a expressividade do orador
e a compreensão do que foi dito (COTES, 2002). Os gestos podem ser:
emblemáticos, ilustradores, reguladores e adaptadores Cotes (2002, 2003).
Segundo Palmeira (2007) a figura tradicional do padre, ou
evangelizador, que tem voz tranquila, suave, com inflexões repetitivas e gestos
contidos mudou muito com o uso dos meios de comunicação de massa, por
isso, é importante que o seminarista perceba que ao atender sua vocação eles
serão também formados como profissionais da voz (PALMEIRA, 2007). A
demanda comunicativa do seminarista varia de acordo com sua etapa de
formação religiosa (VIOLA E LAURINDO, 2000).
Este estudo é uma possibilidade de refletir sobre como a
Fonoaudiologia pode e deve assumir um lugar que também lhe cabe na
preparação de pessoas, especialmente no que se refere à descoberta e melhor
uso de recursos expressivos em favor de suas apresentações aos mais
variados públicos, refletindo não pela busca de um modelo ideal para
intervenção, mas pela melhora da prática, o aperfeiçoamento. Melhora esta
que deverá estar permeada por uma concepção de linguagem e sujeito que
será de fato o diferencial na atuação (SOUZA, R. 2007).

METODOLOGIA
Estudo do tipo transversal, observacional, descritivo e individuado
aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa Monte Tabor – Hospital São Rafael,
sob número nº 13/09 – 19/03/2009. A população selecionada foi composta por
sete estudantes, constituindo turma única, do Seminário Propedêutico de uma
cidade do Recôncavo Baiano, em 2009. A avaliação foi realizada em duas
etapas: 1) questionário de auto-avaliação e 2) avaliação feita por três juízas
fonoaudiólogas com experiência em voz profissional, utilizando Protocolo de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Avaliação Fonoaudiológica, ambos propostos por Mercatelli (2005). As


filmagens foram registradas em câmera filmadora Samsung®, modelo SC –
MX20C.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
O gráfico abaixo registra em frequência simples, as respostas mais
frequentes obtidas no questionário de autoavaliação feito pelos seminaristas.

Figura 1: Gráfico das respostas mais frequentes dos seminaristas


mediante aplicação de questionário (%).

Figura 2: Gráfico das respostas mais frequentes da avaliação da


fonoaudiológica mediante protocolo (%).

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Banca;
Tipo de articulação
Seminaristas Banca Adequada;
Seminarista 71,4%
s; Travada;
57,1%

Seminarista
s;
Adequada;
28,6%
Banca;
Travada;
14,3%

Figura 2. Gráfico comparativo das respostas de seminaristas e da


avaliação das juízas sobre o tipo de articulação.

Figura 3. Gráfico comparativo das respostas de seminaristas e da


avaliação das juízas sobre a velocidade de fala.

Sujeito 1 (S1)
Não foram destacadas alterações no item qualidade vocal, mas
apresentou uma articulação travada e ausência de coordenação
pneumofonoarticulatória (CPFA). Estes aspectos foram também assinalados
por S1 durante aplicação do questionário, revelando a consciência deste sujeito

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sobre os aspectos que se apresentam inadequados para uma situação de


fala/leitura.
A curva melódica está presente com tom descendente e pode
manifestar uma série de sentidos pragmáticos e que afetam todo o sentido do
enunciado, e segundo Pietro (2003). O uso constante de entoações
descendentes marca o fim do tema e, neste caso, pode indicar a ansiedade do
enunciador em terminar o seu discurso.
O ritmo que este sujeito aplicou à sua fala foi considerado
predominantemente monótono. Kyrillos, Cotes e Feijó (2003) ressaltam que a
ausência de variações na loudness e velocidade pode transmitir ao interlocutor
cansaço ou falta de interesse em falar.
No que se refere à avaliação dos recursos não-verbais foi avaliado
como inexpressivo.

Sujeito 2 (S2)
Apresentou voz não-neutra com tendência à rouquidão leve,
possivelmente, produzida por uma irregularidade de vibração das pregas
vocais, como assinala Behlau et al.(2005), não sendo observadas outras
alterações.
A avaliação feita pelas juízas ressaltou a utilização de recursos de
ênfase como tonicidade e prolongamento de vogal bem como, a utilização de
pausas expressivas. Este tipo específico de pausa, segundo Viola (2008) pode
se apresentar com função dramática, enfática e reflexiva.
A curva melódica foi descente e ritmo predominantemente monótono.
Estas características, além de tornar a fala pouco atraente, produzem uma
expectativa de que haverá uma regularidade em sua sucessão (CHUN, 2000).
Sobre as demais variações de loudness, pitch e velocidade as observações
descritas indicaram uso satisfatório deste recurso.
No que se refere aos recursos não-verbais foi observado pouco contato
visual, postura corporal rígida, uso inexpressivo de gestos e realização do
meneio de cabeça na última frase do texto. Esta avaliação revela a
necessidade de utilizar de forma adequada e integrada os recursos da
expressividade, pois, segundo Oliveira (2006), a oralidade não está minimizada

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

à dimensão da voz. O corpo também se evidencia levando em conta o olhar e


os gestos.

Sujeito 3 (S3)
Não houve registro de alterações quanto aos aspectos da qualidade
vocal revelando um padrão básico que o identifica e que cursa com adequação
com o contexto.
Utilizou recursos vocais conscientemente fazendo uso frequente de
pausas e ênfase, aspectos também ressaltados durante a avaliação das juízas,
revelando o uso de tonicidade, prolongamento de vogais e pausas expressiva,
que além de destacar parte (s) do texto, o imprime dada vitalidade às palavras
faladas, conforme assinalam Peter, Camargo e Pinho (2007).
Curva melódica e ritmo, pitch, loudness e velocidade, foram avaliados
como variáveis, mas sem trazer alterações à sua performance durante a leitura.
Sobre os recursos ditos não-verbais observou-se elevação e
abaixamento de sobrancelhas, que segundo Cotes (2003) podem
respectivamente indicar alegria ou mesmo indignação e assuntos ruins, mais
sérios ou mesmo de tristeza.
Sujeito 4 (S4)
Apresentou articulação travada durante a performance de leitura, tendo
também assinalado este item no questionário de auto-avaliação. Segundo
Behlau et. al. (2001), todas as pessoas possuem variações na qualidade da
articulação dependendo dentre outras coisas da confortabilidade da situação
de comunicação e da aceitação mútua.
Os recursos vocais utilizados foram tonicidade e pausas respiratórias
(exclusivamente), curva melódica descendente e ritmo monótono que
associado a muito balanceio lateral com rotação de tronco trouxe prejuízo a
projeção da sua voz. Importante ressaltar, segundo Behlau et al. (2001), para a
fala é o eixo vertical, visto que, possibilita a colocação da voz da forma mais
adequada possível.
Sobre os aspectos conclusivos da juíza para este sujeito mostraram
que requer de intervenção para melhoria da qualidade vocal (foi assinalado
rouquidão leve durante a análise feita pela juíza), amplitude articulatória e

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

velocidade de fala e ajuste para recurso de ênfase. Segundo Penteado (1999)


o desconhecimento das reais potencialidades vocais e o despreparo do sujeito
em relação ao uso da voz são aspectos que podem contribuir para a limitação
da expressividade e do dinamismo.

Sujeito 5 (S5)
A avaliação dos aspectos sobre qualidade vocal deste sujeito mostrou:
rouquidão e soprosidade leves podendo indicar algum comprometimento do
padrão vibratório das pregas vocais, como ressaltam Behlau et al. (2001), além
de ser indicativo de presença de nódulos vocais, conforme Braga et al. (2006).
Demais aspectos encontraram-se adequados e cursaram sem observações.
Quanto aos recursos vocais foi observado emprego de tonicidade, uso
de pausas expressivas, curva melódica ascendente cursando com coerência a
contexto discursivo. O ritmo foi variável e ocorreram variações de pitch,
loudness e pouca variação de velocidade.
Os recursos não-verbais revelaram pouco contato visual e expressão
facial, abaixamento e elevação de sobrancelhas e meneio de cabeça e
manutenção dos ombros rotacionados para frente. Kyrillos, Cotes e Feijó
(2003) assinalam que caso a palavra narrada apresente importância tal, é
permitido associar gestos de mão, meneios de cabeça e expressão facial tudo
ocorrendo simultaneamente à ênfase, como faz este sujeito, segundo avaliação
das juízas.

Sujeito 6 (S6)
Não foram descritas quaisquer alterações quanto a qualidade vocal e
aspectos relacionados Quanto aos recursos vocais foi observado uso de
tonicidade, uso de pausas apenas respiratórias (ou gramaticais) que ao não
coincidiram com pausas expressivas e que tornou o texto de difícil
compreensão. Cotes (2003) ressalta que este respeito à leitura das pausas da
língua escrita pode gerar artificialidade na entoação e prejudicar a
performance.
A curva melódica e o ritmo foram variáveis segundo avaliação das
juízas. Preservar esta melodia à viva voz como ressalta, Gayotto (2002) é

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

perceber a possibilidade de perceber a voz como movimento, ou potência de


movimento.
Sobre recursos ditos não-verbais S6 considera seus gestos contidos e
restritos e a avaliação das juízas foi observado utilização de elevação de
sobrancelhas e postura corporal rígida. Mesquita (1997) ressalta a importância
de se entender o corpo como veículo de mensagem e componente
enriquecedor das mensagens que são transmitidas durante a comunicação.
Os aspetos conclusivos para este sujeito destacam a necessidade de
intervenção para melhorar amplitude articulatória, uso mais rico de recursos de
ênfase, pausas expressivas, expressão facial, gestos e meneios de cabeça.

Sujeito 7 (S7)
Não houve registro de alteração sobre aspectos de qualidade vocal,
exceto para qualidade de voz (não-neutra), velocidade de fala e articulação,
que foram considerados na avaliação do sujeito adequada e travada,
respectivamente. Kyrillos, Cotes e Feijó (2003), descreve a articulação travada
como sendo dentre outros fatores, uma resultante de um controle excessivo
durante a oralização que pode prejudicar a compreensão de alguns
interlocutores.
Quanto aos recursos vocais não ficaram registradas porém, não
conseguiu utilizar de forma adequada os recursos não-verbais tendo sido
observados elevação de sobrancelha - incompatível com o teor da mensagem;
postura corporal rígida; não utiliza gestos e associou o meneio de cabeça ao
recurso de ênfase.
As considerações conclusivas feitas pela juíza, a cerca deste sujeito,
indicam necessidade de intervenção para melhorar tipo de voz (por conta de
rouquidão e soprosidade leves) e velocidade de fala, uso de pausas
expressivas e variações de fala, instrumentalizá-lo ao uso consciente dos
recursos da expressão facial em harmonia com os recursos verbais, adequar
movimentação de tronco e uso de gestos.

Considerações Finais

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A análise dos resultados da avaliação fonoaudiológica bem como os


resultados obtidos mediante o questionário de auto-avaliação evidenciaram
como o desconhecimento a cerca dos recursos de expressividade em
atividades de leitura oral podem comprometer o desempenho comunicativo.
Embora o caminho seja longo, as incursões fonoaudiológicas nesta
área já se sustentam como fundamentais a cada categoria profissional à
medida que se busca conhecer e adequar o fazer fonoaudiológico às
necessidades e demandas destes profissionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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348
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O DISCURSO DA SOLIDARIEDADE NA CANÇÃO NOVA EM VITÓRIA DA


CONQUISTA

Cláudia Madalena Feistauer (UNEB)

RESUMO: A linguagem é um instrumento poderosíssimo de circulação de


informações, de ideologias, está em toda parte, influencia e norteia diversos
segmentos da sociedade. O discurso religioso tem suas peculiaridades, pois
tem a missão de aproximar o sagrado do humano. A religião católica tem sua
base na fé, esperança e caridade. A Canção Nova é uma comunidade católica
brasileira fundada no ano de 1978, seguindo as linhas da Renovação
Carismática Católica. Atuando em Vitória da Conquista desde 15 de agosto de
1997 segue os preceitos da religião católica e dissemina a solidariedade por
meio de ações e também dos discursos proferidos nas pregações das
cerimônias religiosas. Sendo assim, busca-se explicitar “os efeitos de sentido”
(ORLANDI, 2005) presentes no discurso religioso da comunidade Canção Nova
. Considerando que as práticas sociais e as práticas discursivas se entrelaçam,
este trabalho visa analisar o discurso da solidariedade na Canção Nova sob o
aporte teórico da Análise do Discurso da linha francesa. Para tanto, serão
utilizados os postulados da Análise do Discurso, uma vez que a Análise do
Discurso constitui importante ferramenta potencializadora da investigação, pois
permite desvelar as ideologias que se quer inserir na sociedade, portanto, não
se pode prescindir de uma análise que leve em conta a exterioridade e a
historicidade.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Canção Nova, Discurso Religioso.


Discurso da Solidariedade.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Análise do Discurso de linha francesa (AD) considerada um modelo


metodológico surgiu na década de 1960 consiste em analisar a estrutura de um
texto e a partir disto compreender as construções ideológicas presentes no
mesmo.
Os fundamentos teóricos que embasaram Pêcheux e Fuchs (1990) para
a construção do quadro epistemológico da AD engloba três diretrizes do
conhecimento:
a) O materialismo histórico;
b) Os conhecimentos linguísticos, compreendendo uma teoria de
determinação histórica do processo de enunciação; e
c) Os conhecimentos sobre o discurso, compreendendo uma teoria de
determinação histórica dos processos semânticos.

O discurso em si é uma construção linguística atrelada ao contexto


social no qual o texto é desenvolvido. O discurso pode ser entendido como
“efeito de sentidos entre interlocutores” (ORLANDI, 2005). Os sentidos são
construídos socialmente, na medida em que o sujeito coloca-se na perspectiva
do dizível, isto é, na confluência de se dizer o que já foi dito. (ORLANDI, 1999).
Orlandi (2003) define o objeto da Análise do Discurso como o “discurso”.
O vocábulo discurso etimologicamente dá idéia de curso, percurso, de correr
por, de movimento. Fazendo uma analogia com um rio, os discursos são
expressos em enunciações na sociedade. Portanto, devem-se considerar os
elementos que têm existência no social, assim, podendo estar relacionados
tanto à História quanto à Sociologia, a Análise do Discurso vai buscar, na
verdade, o sentido ou sentidos produzidos pelo sujeito ao elaborar um discurso,
as suas intenções e a forma como é recebido por quem ouve ou lê suas
palavras.
A linguagem não é transparente, ou seja, ela é opaca, ela não é uma
instituição abstrata mas o espaço onde a ideologia se manifesta. A língua de
fato não é transparente e homogênea como muitas vezes aparenta ser, ao
contrário é considerada opaca e heterogênea, consequentemente, isto faz com
que ela seja "capaz de equívoco, de falha, de deslizes". (PÊCHEUX, 1997,
p.192). O equívoco é contra a idéia do sentido único do enunciado; este

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

permite leituras múltiplas. O sentido não é inerente a palavra, é um elemento


simbólico, não é fechado nem exato, portanto sempre incompleto; por isso o
sentido flui. O enunciado não diz tudo, devendo o analista buscar os efeitos dos
sentidos e, para isso, precisa sair do enunciado e chegar ao enunciável através
da interpretação. O discurso é esse lugar, ou seja, é o ponto de confluência dos
processos ideológicos e dos fenômenos linguísticos.

A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos


que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de
pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, é um modo
de produção social; ela não é neutra, inocente e nem material, por
isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. [...] Como
elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e
como forma de engajá-lo na própria realidade, a linguagem é lugar de
conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da
sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-
sociais (BRANDÃO, 2004, p. 11)

A AD ao tratar da linguagem, concebe-a como um modo de ação social:


um espaço de conflitos e de embates ideológicos. Assim, a linguagem não se
pode deixar de ressaltar a importância de não se subestimar os sistemas
sociais que a sustenta, ademais o processo de a constituição do discurso e
seus sentidos são histórico-sociais.
A língua demanda uma intencionalidade, um domínio de quem a usa
para provocar a produção de sentidos. A AD trabalha com o sentido e não com
o conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido; pode-se
afirmar que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ideologia +
história + linguagem. A ideologia é entendida como o posicionamento do sujeito
quando se afilia a um discurso, sendo o processo de constituição do imaginário
que está no inconsciente, ou seja, o sistema de idéias que constitui a
representação; a história representa o contexto sócio histórico e a linguagem é
a materialidade do texto gerando "pistas" do sentido que o sujeito pretende dar.
Portanto, na AD a linguagem transcende o texto, trazendo sentidos pré-
construídos que são ecos da memória do dizer. Entende-se como memória do
dizer o interdiscurso, ou seja, a memória coletiva constituída socialmente; o
sujeito tem a ilusão de ser dono do seu discurso e de ter controle sobre ele,
porém não percebe estar dentro de um contínuo, porque todo o discurso já foi
dito antes. Exemplificando, um bebê nasce numa cultura e apropria-se da

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linguagem em contato com a família, numa fala interiorizada. O bebê vai


tornando possível beneficiar-se desse instrumento quando interioriza o sentido
e os valores que a mãe, a família e a comunidade transmitem através de seus
discursos (rituais de trabalho, tipo de vida, religião, etc) com sentidos diferentes
para cada sujeito.
O sujeito é o elemento fundamental para a Análise do Discurso (AD),
pois é a partir dele que os discursos são elaborados, embora o sujeito não seja
o centro do seu discurso e não tenha poder de decisão, escolha e estratégias
de produção discursiva, na concepção da AD. O sujeito age como alguém que
pensa ter o domínio sobre o que diz, mas na verdade, é o inconsciente e as
ideologias de cada um que determinam os discursos.
Entre os diversos discursos que circulam socialmente há alguns que
possuem uma força e alcance maior que outros, a exemplo do discurso político,
publicitário e também o discurso religioso.
No seu longo caminho trilhado, o discurso religioso arrebatou multidões
pela maneira como as informações produzidas eram e são divulgadas e
transformadas por meio de códigos culturais compartilhados que servem de
mediadores entre a produção e recepção das mensagens que tem uma
intenção clara: evangelizar e aproximar as pessoas da igreja.
Numa busca da completude, as pessoas procuram se agrupar nas
instituições religiosas motivadas pela fé e nas palavras dos pregadores buscam
uma conexão com o sagrado.
A noção de discurso religioso é “aquele em que fala a voz de Deus: a
voz do padre – ou do pregador, ou em geral, de qualquer representante seu – é
a voz de Deus” (ORLANDI, 2003, p. 242).
O discurso religioso é proferido por sujeitos sociais e, portanto, como
outros discursos é carregado de ideologias. Os discursos formam uma
estrutura sólida para a produção de representações sociais e para a construção
social da realidade por meio de atribuições de significados.
A Canção Nova é uma comunidade católica brasileira fundada no ano de
1978, seguindo as linhas da Renovação Carismática Católica. Atuando em
Vitória da Conquista desde 15 de agosto de 1997 segue os preceitos da
religião católica e dissemina a solidariedade por meio de ações e também dos

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discursos proferidos nas pregações das cerimônias religiosas. 10 mil pessoas


passam, por mês, no local participando de grupos de oração e eventos. Às
segundas-feiras, o grupo São Miguel Arcanjo reúne cerca de 1.300 pessoas;
Às terças-feiras, o grupo de oração de cura interior com uma média de 100
pessoas; 600 pessoas que participam do grupo da quinta-feira feira
de adoração.
Fé, esperança e caridade são as máximas postuladas pelo apóstolo São
Paulo (1Cor 13). Caridade que se fundamenta no amor fraterno ao próximo e
se expressa na experiência da solidariedade.
As ações solidárias da Canção Nova aliadas ao discurso que prega o
amor fraterno, são direcionadas especialmente aos mais necessitados –
pobres, drogados, crianças de rua, etc.
A materialidade da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é
a língua (ORLANDI, 2003, p. 17), e por meio da língua, os seguidores da
Canção Nova constróem os sentidos da solidariedade não apenas como
assistencialismo, mas como forma de libertação da condição em que esses
sujeitos atendidos se encontram.
Bingemer (1994, p. 301) citado por Silva (2006):

Crescer em solidariedade, viver a solidariedade é, portanto, segundo


a fé cristã e o ensinamento da Igreja, viver uma ética que leva
continuamente ao reconhecimento da dignidade pessoal do outro –
seja qual for seu estado de vida e condição social- em pé de
igualdade consigo mesmo e ao compromisso com a vida de todos,
particularmente dos pobres e dos inimigos.

A solidariedade está presente na Canção Nova em artigos publicados na


página da comunidade. Podemos observar que o discurso conclama a todos
seguidores que vivenciem a solidariedade:
Criemos, ou mesmo, reativemos nossos espaços de solidariedade, de
animação da vida e de vivência concreta do amor em nossos grupos.
É pelo amor entre nós e para com os outros que somos reconhecidos
como discípulos-missionários de Jesus.

O trecho em destaque orienta para ações concretas de solidariedade e


circunscreve os colaboradores a uma posição-sujeito de discípulos-
missionários. Aí a posição do autor do artigo é estabelecida. Trata-se de um

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pregador dirigindo-se aos participantes da comunidade Canção Nova que


atuam como missionários.
Para Silveira (1994), o sujeito é concebido como essencialmente
histórico; razão porque sua fala é sempre produzida a partir de um determinado
lugar e de um determinado tempo e, desse modo, à noção de sujeito histórico
articula-se a de sujeito ideológico. O lugar de onde fala o autor do artigo citado
é de um membro da comunidade Canção Nova que tem uma posição de
liderança.
Assim, o conteúdo da fala do sujeito sempre envolve um recorte das
representações de um tempo histórico e de um espaço social, tratando-se de
um sujeito “descentrado” entre o “eu” e o “outro”: um ser projetado num espaço
e num tempo. O autor expressa sua identidade enquanto sujeito que acredita
nas palavras enunciadas e possui conhecimento adquirido por meio da vivência
e de numerosas fontes de conteúdo religioso e conduz o sentido para que os
leitores sigam essas referências e pratiquem a solidariedade.
Para Silveira (1994), o “outro” compreende não só o destinatário –
aquele para quem o sujeito planeja e ajusta a sua fala no plano intradiscursivo
– mas também envolve outros discursos historicamente já costurados
(interdiscurso) e que emergem em sua fala. No caso do trecho analisado,
quando o autor expressa: “É pelo amor entre nós e para com os outros que
somos reconhecidos como discípulos-missionários de Jesus” fica clara a
alusão ao texto bíblico João 13: 34 “Um novo mandamento vos dou: que vos
ameis uns aos outros; assim como Eu vos amei; que dessa mesma maneira
tenhais amor uns para com os outros”.
Os efeitos de sentido do discurso enunciado são, indicam a união de
todos os colaboradores em trono da solidariedade ao próximo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O discurso religioso é produzido para atingir um grande número de


pessoas. Como todo discurso carrega em si uma intenção. O intento da
Canção Nova ao produzir seus discursos é evangelizar e também aproximar as
pessoas do

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Permite o delinear de novos percursos e a criação de novas imagens e


elementos imaginativos mais adequados às bases da Igreja Católica
Diante do objeto discursivo tomado para análise, é necessário sair da
materialidade linguística para compreendê-la em sua exterioridade, no social,
espaço em que o linguístico, o histórico e o ideológico coexistem em uma
relação de implicância.. O Discurso religioso tem existência na exterioridade do
linguístico, no social, é marcado sócio-histórico-ideologicamente.

REFERÊNCIAS

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103ª ed. São Paulo, Editora Ave Maria, 1996.

BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas:


UNICAMP, 2004.

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Campinas: Pontes, 2003.

PÊCHEUX , M. Análise Automática do Discurso. Campinas: Editora da


Unicamp, 1997.

PÊCHEUX & FUCHS. A propósito da Análise Automática do Discurso. In :


GADET & HAK (org). Por uma análise automática do discurso. Campinas:
Ed. Unicamp, 1990, p.163-252.

Um caminho de comunhão e de solidariedade! 3 de agosto de 2009.


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aproximações e divergências. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 15, jan/jun
2006, p. 326-351.

SILVEIRA, Paulo. Ideologia, indivíduo, sujeito. São Paulo, PUC, 1994.


Cadernos de Subjetividade.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O DISCURSO RELIGIOSO NAS PRÉDICAS DE ANTONIO CONSELHEIRO:


UMA ANÁLISE A PARTIR DOS PRESSUPOSTOS DA AD FRANCESA

ILZA CARLA REIS DE OLIVEIRA (UNEB) 53

Considerações Iniciais

Atualmente, os textos manuscritos de autoria dedicada a Antonio


Conselheiro, encontrados após o fim da guerra de Canudos, compõem uma
importante fonte para o estudo da figura do personagem de Belo Monte que
atraiu para si muitos adeptos e ao mesmo tempo despertou a fúria do governo
e de parte da Igreja. Especialmente no âmbito linguístico, os manuscritos são
bastante relevantes, tanto por serem um registro dos pensamentos de
Conselheiro, quanto por se tratarem de uma fonte histórica dos fatos
contemporâneos à guerra.
A escolha por estudar o discurso religioso nas prédicas de Conselheiro
se deu ainda na graduação, quando se percebeu a necessidade de se
aprofundar a pesquisa em seus manuscritos sob o viés linguístico, haja vista as
diversas possibilidades ainda abertas. Outro fator preponderante na escolha do
objeto de estudo é a relevância do tema de Canudos para a história da Bahia e
do Brasil, além do desejo de contribuir para a sua valorização dentro da nossa
comunidade estudantil que ainda conhece muito pouco a respeito do Arraial
53
Professora Substituta do DCHT, campus XXII, da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

fundado pelo Conselheiro e da Guerra de Canudos que repercutiu


nacionalmente.
Assim, a partir dos postulados da Análise de Discurso de linha francesa,
através dos trabalhos de Orlandi (1993, 2001 e 2003), esse artigo pretende
observar como se caracteriza o discurso religioso de Antonio Conselheiro,
capaz de convencer milhares de pessoas a segui-lo até o fim, partindo-se das
seguintes questões: como se organizam os sentidos no discurso religioso
presente nos manuscritos de Antonio Conselheiro? Qual a relação entre o
funcionamento desse discurso e a mobilização de tantos sertanejos que
constituíam seu séquito?

Como corpus para esta pesquisa, tomou-se três prédicas intituladas


Sobre a obediência, Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antonio,
Padroeiro do Belo Monte e Despedida. A primeira pertence ao primeiro
manuscrito intitulado Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Cristo
para a Salvação dos Homens, datado de 24 de maio de 1895, disponível
apenas em cópia fac-símile no Centro de Estudos Baianos da UFBA e para o
qual pouca atenção foi dispensada, talvez devido ao fato de ainda haver muito
a fazer em termos de uma edição. A duas últimas prédicas constam no
segundo manuscrito, denominado Tempestades que se Levantam no Coração
de Maria por ocasião do Mistério da Anunciação, datado de 12 de janeiro de
1897, editado e publicado por Ataliba Nogueira em 1974 com o título Antônio
Conselheiro e Canudos: revisão histórica. Este último manuscrito é, em boa
parte, uma reprodução do primeiro, porém com acréscimos, principalmente no
que tange às ideias políticas e sociais presentes nas prédicas que tratam da
república e da escravidão.

Inicialmente, expõe-se uma breve apresentação dos manuscritos e das


prédicas que compõem o corpus desse trabalho. Para tanto, buscou-se
apresentar estudos já realizados a esse respeito, fomentados pelas pesquisas
do professor José Calasans (1997), bem como através dos relevantes
trabalhos de pesquisadores, dentre eles Walnice Nogueira Galvão (2002) e
Pedro Lima Vasconcellos (2008). Em seguida, tece-se uma discussão a
respeito das formações discursivas e das condições de produção referentes ao

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

discurso presente nas prédicas, assim como intenta-se demonstrar, por meio
das marcas que emanam do texto, os indicadores próprios do discurso religioso
voltado para a persuasão dos seus seguidores.
Como o estudo partiu de uma prédica do manuscrito de 1895 que ainda
não foi editado, disponível apenas em cópia fac-símile no Centro de Estudos
Baianos da UFBA, ressalta-se que a transcrição foi realizada de modo a
reproduzi-lo fielmente conforme está disposta no manuscrito original
digitalizado, mesmo não seguindo um rigor metodológico da crítica textual.

Os manuscritos

Antônio Conselheiro, segundo relato de historiadores, carregava consigo


dois livros, A missão abreviada e Horas marianas, nos quais fundamentava a
sua pregação religiosa e seu discurso evangelizador. Muitos historiadores
consideram o conteúdo dos cadernos encontrados em Belo Monte (Canudos)
como mera adaptação dessas obras, largamente divulgadas no Brasil daquela
época como eficiente instrumento para o apostolado leigo (GALVÃO, 2002, p.
15). Outros estudos, porém, o qualificam efetivamente como autor,
evidenciando que os dois cadernos apresentam diferenças circunstanciais das
Horas Marianas, por exemplo. Como resultado das leituras desses dois livros
doutrinais, Conselheiro escrevia as suas prédicas no sentido de registrar as
suas ideias acerca da religião e do comportamento do homem sertanejo
(CALASANS, 1997).

Os dois cadernos de Antonio Vicente Mendes Maciel foram achados na


casa chamada santuário, onde ele morava. Terminada a guerra, na tarde de 5
de outubro de 1897, quando se revistava a casa, João de Souza Pondé,
médico da 4ª Expedição militar e um dos identificadores do cadáver de Antonio
Conselheiro, encontrou o volume encadernado de 10 x 14 cm, manuscrito com
letra legível e regular, em tinta preta, intitulado Tempestades que se levantam
no coração de Maria por ocasião do mistério da Anunciação. Tratava-se de
uma coletânea das próprias prédicas que fizera o líder religioso. O caderno,
segundo Nogueira (1997), foi atestado de autoria de Antonio Vicente Mendes

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Maciel depois de confrontado com duas cartas de autoria dele, atualmente


expostas no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
No primeiro caderno, de 1895, assim como no segundo, de 1897,
constam da reprodução dos evangelhos e de diversos textos, nos quais
Conselheiro exibe suas ideias sobre a missa, a confissão, os dez
mandamentos, a justiça de Deus, a fé etc., com exceção das críticas sobre a
República e a escravidão, presentes somente no caderno de 1897. Sobre isto,
Calasans (1997) diz que o manuscrito de 1895 é simplesmente um registro de
conceitos religiosos enquanto a obra de 1897, que em parte é cópia da
anterior, consigna ideias políticas e sociais, “de combate à República, à
escravidão, aos maçons, aos protestantes, aos judeus” (CALASANS, 1997,
p.22). Essa diferenciação pode ser entendida se tomado o contexto no qual o
segundo caderno foi escrito: após a recente instauração da república
acontecem os primeiros desafetos entre os republicanos e os ideais
monarquistas defendidos pelos conselheiristas 54.
Assim sendo, não se tem dúvida de que os manuscritos de Antônio
Conselheiro constituem um relevante material de estudo para se compreender a
Guerra de Canudos, acontecimento marcante na história do Brasil em fins do século
XIX. No entanto, muito do que se disse sobre esse fato baseia-se tão somente no
testemunho de escritores e jornalistas da época, a exemplo de Euclides da Cunha, em
Os sertões. Pouca atenção foi dispensada aos manuscritos considerados de sua
autoria. Os poucos comentários a respeito do manuscrito, particularmente o de 1895
ainda não editado, apresentam-no apenas como transcrições de textos bíblicos ou
colocam em dúvida a autoria das prédicas como sendo do próprio Conselheiro.

Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelha com os


mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar
o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam
tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antonio
Conselheiro; e, lendo-as põe-se de manifesto quanto eram elas afinal
inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o
que nelas vibra em toda as linhas, é a mesma religiosidade difusa e
incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-
se às tendências messiânicas expostas. (CUNHA, 2006, p. 210)

54
Antonio Conselheiro, descontente com os decretos do município de Bom Conselho que mandou fixar
editais para a cobrança de impostos, autoriza a destruição das tábuas, bradando contra a República e
com isso desperta a fúria das autoridades que pedem reforços ao governo do estado, levando ao
primeiro confronto em Maceté, entre os conselheiristas e as tropas republicanas (CALASANS, 2002, p.
56).

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Somente décadas depois surgiram outras leituras acerca das prédicas, a


exemplo da visão de Edmundo Moniz, quando afirma que “o beato tinha
conhecimentos profundos do Antigo e do Novo Testamento, da Filosofia cristã,
interpretando, a seu modo, a Bíblia” (SILVA, 2005, p. 269). Galvão (2002, p. 14), ao se
referir aos escritos do Conselheiro, afirma o seguinte: “Acrescente-se que ali se ouve a
voz de um sertanejo letrado, apesar de uma gramática por vezes claudicante, sabendo
expressar-se e formular seus argumentos”. Não nos cabe, entretanto, nesse breve
trabalho, encerrar tais discussões, mas ao menos expô-las com o objetivo de
apresentar as diversas possibilidades de interpretação.

AD, o discurso religioso e as prédicas do Conselheiro

Para a Análise de Discurso francesa (doravante AD), o discurso não


circula em qualquer lugar, não toma uma forma por ele mesmo e não é
produzido aleatoriamente. Por isso, não pode ser interpretado de qualquer
maneira. A grande preocupação da Análise de Discurso é disponibilizar
ferramentas para que o interlocutor de um texto, oral ou escrito, seja capaz de
compreender os sentidos que dele emergem. Todos esses aspectos precisam
ser levados em conta na leitura de um texto, pois são eles constituintes dos
sujeitos do discurso, assim como de seus interlocutores.
Como toda leitura emerge da interação entre um sujeito-autor e um
sujeito-leitor, pode-se dizer, então, que há vários modos de ler e,
consequentemente, vários modos de interpretar e entender um texto. Conforme
Orlandi (2001), a leitura depende das condições e dos objetivos em que é
produzida e, claro, lida, e, ainda, dos tipos discursivos em que é fundada.
Portanto, condições de produção e recepção, objetivos da leitura, tipos
discursivos fazem do ato de ler um processo interativo e fazem do texto não um
mero espaço de informações, mas um lugar de significação e sentido.
(ORLANDI, 2001, p. 196)

O interesse de se situar primeiramente a leitura de um texto em relação


aos tipos discursivos tratados e classificados por Orlandi (2001) envolve a
configuração e a estruturação de um modelo de discurso, fruto da cristalização
de um funcionamento – que se fixa e se define como tal na medida em que há

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interação entre as pessoas. Um dos muitos critérios utilizados para constituição


dessas tipologias na análise de discurso é a que reflete as normas e distinções
institucionais, a priori, classificadas em: discursos político, jurídico, religioso,
jornalístico, pedagógico, científico etc. No entanto, a análise de um
texto/discurso não deve somente considerar sua tipologia, porque, antes de
tudo, o que o caracteriza não é o seu tipo, mas o seu modo de funcionamento.
Por exemplo, quando discursos não tidos como políticos funcionam como tal
(ORLANDI, 2002, p 85-86).

Partindo da observação do modo de funcionamento dos tipos


discursivos, Orlandi (2002) chega a uma classificação, considerando o modo
de produção de sentidos, bem como seus efeitos: a) o discurso autoritário – em
que se enquadram o religioso e o didático –, muitas vezes, tende à
monossemia e à paráfrase, contém a reversibilidade e “o objeto do discurso
fica dominado pelo próprio dizer”; b) o discurso polêmico, por sua vez, vive a
tensão equilibrada ou controlada entre a polissemia e a paráfrase; c) o discurso
lúdico, em que a polissemia está aberta, possibilita a inauguração de outras
formas de dizer e de atribuir significado (ORLANDI, 1993, p. 42).

O que caracteriza esses três modos de funcionamento do discurso são a


interação (reversibilidade, troca de papéis entre os interlocutores) e a relação
entre polissemia e paráfrase, isto é, a possibilidade ou não de múltiplos
sentidos presentes no texto, seja oral ou escrito. A autora entende o processo
parafrástico como aquele que reproduz o já dito e instituído, é o discurso do
mesmo, do legítimo; ao contrário do processo polissêmico, que, responsável
pela ruptura com o código conhecido e instituído, provoca a origem de novos e
múltiplos sentidos. Na verdade, não se deve atribuir uma relação categórica e
rígida para os tipos, pois há discursos que tendem para um determinado tipo ou
são produzidos na tensão entre eles.

Para compreender um discurso como religioso é preciso analisar as


características de sua produção. O discurso religioso é comumente embasado
e legitimado pelas escrituras sagradas e o enunciador, sendo apenas porta-
voz, fica protegido na fala divina durante o ato discursivo. Por isso mesmo, o

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discurso religioso tende ao discurso autoritário, segundo os diferentes modos


de funcionamento do discurso delimitados por Orlandi (2002). No entanto, para
compreendê-lo enquanto discurso autoritário é necessário atentar para o que
seja reversibilidade no discurso.
Entende-se por reversibilidade a troca de papéis na interação que
constitui o discurso e que o discurso constitui. A reversibilidade é a condição do
discurso, ou seja, é a interação entre locutor e ouvinte que define o espaço da
discursividade e todas as formas de discurso têm como parâmetro essa
interação. Porém, no discurso autoritário, embora não haja essa reversibilidade
de fato, é o sentimento da reversibilidade que o sustenta. Como qualquer outra
modalidade de discurso, o discurso religioso apropria-se da linguagem e da
ideologia que o permeia, com o objetivo de alcançar a persuasão.
Todavia, neste tipo de discurso, o enunciador coloca-se como porta voz
da palavra Deus. Portanto, trata-se de um tipo de discurso em que a interação
é estabelecida de forma a conter a reversibilidade e cujo sentido fica
aprisionado pelo próprio dizer: único e inquestionável. Isto é o que Orlandi
(2001, p. 247) compreende como a reversão no processo comunicativo,
denominado de “ilusão de reversibilidade”, pois dá a impressão de que o
locutor é o dono da fala quando ele se coloca como um veículo ou porta-voz de
Deus, ou seja, de um emissor inquestionável, só que com impossibilidade de
interação, portanto dogmático.
Tomemos as prédicas constantes nos cadernos de autoria dedicada a
Antonio Conselheiro, particularmente as que compõem o corpus de análise
deste trabalho: elas veiculam, essencialmente, conselhos voltados para o
comportamento humano com vistas a adquirir a salvação da alma. O discurso
apresenta-se como religioso desde a inscrição que abre a segunda parte de um
dos manuscritos (de 1895) – Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei de
Nosso Senhor Jesus Christo para a Salvação dos Homens, – até o seu
conteúdo que contém a reprodução de partes do Antigo e Novo Testamento e
orientações acerca dos dogmas da fé cristã.

A extensa prédica intitulada Sobre o recebimento da chave da Igreja de


Santo Antonio, padroeiro de Belo Monte – que ocupa 16 fólios do caderno
manuscrito de 1897, conforme enumeração editada por Nogueira (1997) –

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como o próprio título já diz – trata, provavelmente, do pronunciamento do


Conselheiro por ocasião da inauguração da primeira igreja construída no
arraial. Nela, observa-se claramente o princípio da não-reversibilidade que se
configura no discurso religioso por meio das fórmulas religiosas usadas
performativamente, isto é, usadas como ação sobre o outro, e por meio da
intertextualidade de que lança mão o autor, principalmente ao citar
personagens e fatos bíblicos para contextualizar seu discurso. Assim, vejamos
o excerto:

Foi o Bom Jesus (nutro a mais íntima satisfação de declarar-vos)


que tocou e moveu os corações dos fiéis para me prestarem as
suas esmolas e os seus braços a fim de levar a efeito a obra do seu
servo. Maravilhosas, como dizia Moisés nos transportes de seus
júbilos, são as tuas obras, justos são os teus juízos. Impossível
seria, fiéis, eu fazer a Igreja de Santo Antonio se o Bom Jesus
deixasse de prestar-me o seu poderoso auxílio. Aqueles, porém,
que concorreram com as suas esmolas e com os seus braços,
podem estar certos que o Bom Jesus os recompensará
generosamente [...] (MACIEL, 1897, p. 539-540, grifo nosso).

Aqui, o sujeito do discurso agradece aos “fiéis” pela colaboração na


construção da igreja, com “suas esmolas e seus braços” e afirma
repetidamente que toda ajuda recebida se deve a atenção do pedido feito pelo
Senhor (linhas 1 e 2)), atendido pelos fieis e que Ele é quem os recompensará,
pois ele (Conselheiro) é somente “o seu servo”. Logo, quando o enunciador se
apresenta como porta-voz de Deus, dá a impressão de que é o próprio Deus
quem fala e que, portanto, não pode ser questionado nem refutado. O discurso
religioso, assim, utiliza-se de expressões características, tais como fé,
salvação, obediência, conversão, dentre outras, que embasam esse tipo de
discurso. Esse grupo de vocábulos já viabiliza uma relação de condição, em
que para alcançar alguma coisa (salvação) também é preciso algo (fé,
conversão e obediência). Isto pode ser observado, inclusive, já no título de uma
das prédicas que trata da obediência, na qual o Conselheiro expõe aos fieis a
submissão à hierarquia da Igreja como uma das condições necessárias para
que haja a “harmonia universal”:

Sobre a obediência

A criatura deve estar sempre pronpta a obedecer, nunca afrouxá


nem desanimá. Na tristeza, e na alegria, na consollação e no

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soffrimento, louva e bem diz igualmente aquillo que fere e cura


segundo os divinos conselhos em penetráveis a humana criatura. Se
attenttação vem prova-lo peleja, resiste com animo soccegado, por
que não conta sobre suas próprias forças, e espera a Victoria do
auxillio que vem do alto. Se alguma vez cai, levanta-se logo sem
turbação, humilhado mais não a batido.

[...]

Conhece sua fraqueza, e a deplora, cheio de confiança na graça que


o sustentará, se for fiel. Desapegado da terra e de suas vaidades,
que chamam bens, que quer elle? O que Deus quizer, não tem outra
vontade nem outro desejo. Se o filho de Deus se fez obediente até a
morte, e morte da cruz, que homem há que recuse obedece-lo? No
mundo não há ordem nem vida senão pela obediência: ella é o laço
dos homens entre si e com seu autor, ofundamento da paz e o
principio da harmonia universal. A família, a cidade, a igreja não
subsistem senão pela obediência, a mais alta perfeição nas
criaturas não é mais que uma perfeita obediência: ella só nos
preserva do erro do pecado.

[...] (MACIEL, 1895, p. 718-720, grifo nosso)

Observa-se, assim, que nesse tipo de discurso o poder divino é


sustentado, desde seu início e origem, pela desigualdade de papéis e de
lugares. Expressões como “autor” e “criaturas” funcionam também para
estabelecer os lugares no discurso religioso: de Deus (criador) e dos homens
(criaturas). Dessa assimetria, decorrem várias outras sempre dicotômicas
(imortalidade/mortalidade; onipotência/submissão; criador/criatura. A presença
da conjunção adversativa “senão” dá o sentido de que “não há ordem na vida”
nem subsistência da família, da igreja e da cidade [a não ser] pela obediência,
o que também reforça a ideia de incondicionalidade imposta pelo discurso
religioso.

O mesmo efeito é provocado pelo uso da conjunção subordinativa


condicional “se” na expressão “se for fiel”. Logo, não resta alternativa para a
salvação, senão pela fé. E esta é, segundo Orlandi (1987), um dos parâmetros
em que se assenta o princípio da exclusão: para os que creem, o discurso
religioso é uma promessa; para os que não creem, é uma ameaça. Assim
sendo, toda a argumentação do Conselheiro é baseada na vontade divina e no
âmbito da fé, pois a disposição em obedecer é oriunda do ato de crer. O
mesmo também pode ser observado no trecho da prédica Sobre o recebimento
da chave da Igreja de Santo Antonio, Padroeiro de Belo Monte:

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[...] além das perseguições que eles fazem à religião do Bom Jesus,
nunca eles hão de triunfar, porque Deus protege a sua obra. Jesus é
a única esperança da nossa salvação, fora dele não há salvação em
parte alguma. (MACIEL, 1897, p. 548-549)

Como se pode constatar, a linguagem religiosa está revestida de um


sentido de autoridade daquele que representa Deus, que fala em seu lugar,
mas que também não é Ele. Na verdade, o discurso é estruturado por meio de
uma interação ilusória entre Deus e seu representante aqui na terra. O
representante de Deus fala em nome de, e seu interlocutor ouve/lê/dialoga com
Quem ele representa, ou seja, com a sua representação. No caso específico do
discurso religioso, portanto, trata-se de uma dupla representação (o que reforça
a ilusão). Por isso, é muito comum que esse tipo de discurso faça sempre
referência acerca do que é dito como “palavra de Deus” e não de homens.
Esse recurso é bem presente nas prédicas do líder conselheirista, a exemplo
do que ocorre na prédica Despedida que, provavelmente, registra as últimas
palavras do Conselheiro dirigidas ao seu séquito: “Outra cousa, porém, não é
de esperar de vós à vista do fervor e animação com que tendes concorrido
para ouvirdes a palavra de Deus, o que é uma prova que atesta o vosso zelo
religioso” (MACIEL, 1897 apud NOGUEIRA, 1997, p. 195, grifo nosso).

Percebe-se, deste modo, que o discurso religioso exime da


responsabilidade aquele que fala, pois o que é dito não vem dele mesmo, mas
do próprio Deus. Por isso, o recurso ao intertexto (através da retomada aos
excertos bíblicos) concede autoridade à fala do locutor, o que lhe garantiria
maior aprovação, maior aceitação e adequação às palavras de Deus, conforme
atesta trecho da prédica Sobre a obediência – “Se o filho de Deus se fez
obediente até a morte, e morte de cruz, que homem há que recuse obedecê-
lo?” (MACIEL, 1895, p. 719) –, em que a passagem da morte de Jesus no Novo
Testamento é retomada para reforçar os benefícios que receberão os que
como Ele forem obedientes.

O discurso autoritário, como o religioso, reproduz um saber já


“conhecido” e esperado pelo interlocutor. Os lugares sociais representativos
acabam por estabelecer padrões de conduta – humanas e linguísticas. Quem
fala ou escreve o faz de um lugar para alguém previamente situado; quem ouve

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ou lê, também o faz de um lugar já delimitado. O séquito daqueles a quem o


Conselheiro dirigia seu discurso, convém lembrar, era composto por ex-
escravos, escravos fugidos, sertanejos explorados pelos coronéis, andarilhos,
ex-agricultores etc. Muito deles com um alto grau de religiosidade e temor a
Deus, como é comum ao homem do sertão, especialmente naquele contexto
de predominância do catolicismo. No entanto, havia também, entre os
moradores do arraial, os que não compartilhavam do mesmo senso de
religiosidade, mas que eram obedientes às regras de vida daquela
comunidade.

É preciso ressaltar que o objetivo da Análise de Discurso, pelo que


preconiza Orlandi (2002), ao tomar um texto oral ou escrito para análise é o de
possibilitar ferramentas para compreensão do funcionamento discursivo em
relação as suas determinações histórico-sociais e ideológicas e não
simplesmente enquadrar os discursos neste ou naquele modelo. O que
significa dizer que não há um discurso somente autoritário, o que há é uma
tendência deste à paráfrase – não abertura a múltiplos sentidos – ou a
polissemia – quando possibilita uma maior abertura a construção dos sentidos.

Portanto, ao apresentar o discurso do Conselheiro como essencialmente


religioso, dizemos que este tende à paráfrase – isto é, ao discurso autoritário –
visto que suas prédicas veiculam conselhos relacionados à fé, à obediência a
Cristo e à sua Igreja, bem como o arrependimento dos pecados, como
demonstra a breve análise anterior. Contudo, como bem nos lembra Orlandi
(2002, p. 88), ao caracterizarmos seu discurso como autoritário o que se quer
não é compreendê-lo pela carga ideológica de significação que o vocábulo
“autoritário” carrega em nossa sociedade, tampouco tecer um juízo de valor,
mas descrever o funcionamento desses discursos, ou seja, encontrar o modo
como se organizam os sentidos nele.

Se, inicialmente, afirmamos que a leitura é um processo de interação, e


que depende das condições, dos objetivos e do tipo de interação em que é
produzida, mesmo na leitura do tipo parafrástica podem-se fazer diferentes
interpretações. Com isso, conclui-se por hora que no caso do discurso religioso

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presente nas prédicas de Antonio Conselheiro – mesmo não se tratando de


uma análise da totalidade dos dois cadernos manuscritos– a estruturação mais
adequada em termos de funcionamento discursivo é por meio do processo
parafrástico, ou seja, do instituído, portanto legitimado, pois é essa recorrência
ao já dito (pela Igreja e pelos textos canônicos) que o torna persuasivo.

No entanto, se a construção parafrástica é um meio para o autor


conseguir a adesão do leitor, essa adesão se dá de formas bastante diversas,
uma vez que os sentidos construídos na perspectiva religiosa estão, de certo
modo, também submetidos à atitude interior dos sujeitos. Por esse motivo é que
o mesmo discurso não funcionou da mesma forma para todos os contemporâneos da
guerra de Canudos. De um lado, os sertanejos seguidores do Conselheiro,
profundamente religiosos, que aderiram ao seu discurso. Do outro, os militares e os
simpatizantes da recente República, que viam no líder conselheirista um fanático,
louco e subversivo.

Considerações finais

A leitura e a análise das três prédicas que compuseram o corpus desse


trabalho permitem inferir que se trata de um discurso fundamentalmente de
cunho religioso que, como já referido anteriormente, tende à monossemia e à
paráfrase, por se tratar de um discurso essencialmente autoritário, com poucas
possibilidades de construção de sentidos. No discurso religioso,
caracteristicamente, o seu enunciador (Antonio Conselheiro) fala em nome de
Deus e está fechado, dessa forma, a interação, já que o que diz não vem dele
mesmo, mas de quem ele representa, ocorrendo o que Orlandi (2002) chama
de ilusão de reversibilidade.
O discurso do Conselheiro é perpassado pelo discurso do Antigo e do
Novo Testamento, da Filosofia cristã, e ainda pelo teor do texto da obra Missão
abreviada, o qual, como se sabe, carregava consigo e foi encontrado junto a
seus pertences no fim da guerra. O texto, ao se referir a fé, a salvação, a
sofrimento e a agrura, demarcou que quem fala, desenvolve sua argumentação
baseando-se em conhecimentos dos textos religiosos e fala de um lugar de
pregador para um povo marcado por estes sentimentos, mas que suporta tudo
em nome da fé.

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A guisa de conclusão, porém longe de considerar finalizada a análise


das prédicas, observa-se que a compreensão de como as prédicas produziram
sentido e de seus efeitos sobre os interlocutores também é possível
observando-se como a linguagem reflete e refrata as condições de produção,
trazendo na materialidade dos enunciados as marcas das formações sociais,
ideológicas e discursivas daquela época e daquela sociedade: uma região do
país marcada pela extrema religiosidade de seu povo que encontra em Belo
Monte uma alternativa para a seca e o esquecimento das autoridades
litorâneas.

REFERÊNCIAS

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CUNHA, Euclides da. Os sertões. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

FONSECA, Aleiton. Os sertões: as prédicas de Antonio Conselheiro e a poesia de


Canudos. In: Olho da História. Bahia: UFBA, 1996, v. 1, n. 3, Dez. 1996. Disponível
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GALVÃO, Walnice Nogueira. Piedade e paixão: os sermões do Conselheiro. In:


GALVÃO, Walnice Nogueira; PERES, Fernando da Rocha (Org.). Breviário de
Antonio Conselheiro. Salvador: EDUFBA, 2002.

MACIEL, Antônio Vicente Mendes. Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor


Jesus Christo para a Salvação dos Homens. (Apógrafo do evangelho e
outros textos). Manuscrito de 1895. Salvador: Universidade Federal da Bahia –
Centro de Estudos Baianos, 2001. 1 CD-ROM.

NOGUEIRA, José Carlos de Ataliba. Antônio Conselheiro e Canudos:


revisão histórica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1997.

ORLANDI, Eni Pulcinelli (Org.). Palavra, fé, poder. Campinas, SP: Pontes,
1987.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do


discurso. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4.


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ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1993.

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SILVA, José Maria de Oliveira. Guerra de Canudos – as prédicas em debate.


Projeto História, São Paulo, p. 265-276, jun. 2005. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/volume30/15-Artg-pdf>. Acesso
em: 15 set. 2009.

VASCONCELLOS, Pedro Lima. Antonio Conselheiro, autor. Revista Outros


Sertões: Bahia, 2008, v. 1, n. 2, p. 45-61, Dez. 2008.

TEOLOGIA E CULTURA: UMA CONVERSA COM CARVALHAES

EVERTON NERY CARNEIRO /


Docente UNEB. Doutorando em
Teologia (EST) / Mestre em Teologia
(EST) / Apoio CAPES.
ecarneiro@uneb.br

Resumo

Temos como tema o eixo "Religião, Arte e Literatura", buscando estabelecer


uma conversa entre a Teologia e a Cultura, apresentando como ponto de
partida um diálogo com Carvalhaes em seu texto "Teologia e Cultura: para
início de conversa". Para esta conversa são convidados os seguintes autores:
Heidegger, Orlandi. Todos eles fazem parte dessa conversa, estando sempre
abertos, pois, entre aquilo que foi dito e aquilo que se está a dizer. Tendo por
objetivo primário a conversa entre Teologia e Cultura, pensamos na seara dos
objetivos secundários que estes se vinculam a discutir sobre a
interdependência entre a teologia e a cultura, pensar a relação entre teologia e
cultura a partir do par subjetividade-imprevisibilidade, perceber a compreensão
de Tillich nessa relação, posicionando na conversa Heidegger e Orlandi.
Quanto ao método utilizamos o da correlação de Tillich e para ele a expressão
correlação pode ser usada de três formas: como correspondência de dados;
interdependência de conceitos e também como interdependência autêntica de coisas
ou acontecimentos, buscando mostrar a relação entre Filosofia e Teologia. Assim,
pensamos existir um nexo ontológico entre teologia e cultura, onde é preciso romper
as amarras da teologia, acenando para os marginalizados e excluídos, entendendo
que todos e todas são convidados e convidadas a não desconsiderar sua própria
cultura e história, mas sim percebê-las por outra perspectiva. Incontestavelmente,
Tillich pode trazer uma nova realidade para o povo sofrido e, sobretudo escravizado
por atitudes desumanas de certas tradições religiosas. Tillich é coerente quando dizia

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que a história da religião e da cultura é a história de permanentes deformações


demoníacas da revelação e de confusões idólatras entre Deus e o homem.
Palavras-chave: Teologia; Cultura; Conversa.

Para iniciar a conversa

Iniciamos a conversa pelo início da conversa de Carvalhaes, “conversar


sobre um tema fascinante: teologia e cultura”. Quando ele fala em “Teologia e
Cultura”, percebemos aí a presença da partícula “e” que o próprio afirma:

E a letra "e"? A partícula "e" de "teologia e cultura" denota não a


divisão entre teologia e cultura, mas sim a inter-relação e a
interdependência entre estes dois campos, mostrando que eles não
são estranhos e autônomos. E como vamos trabalhar dentro desta
interdependência? Como faremos isso? Bem, vamos conversando...
(CARVALHAES, 2010).

A partícula “e” em “Teologia e Cultura” não significando uma divisão


pode significar uma inter-relação e interdependência entre esses dois campos?
Analisemos a expressão, em particular o “e”. Em um dado sentido esta
partícula apresenta uma divisão entre os campos citados. Teologia de um lado
e cultura do outro, sem existir nenhum cordão entre ambos. Entretanto em
outro sentido, pode significar uma inter-relação e interdependência entre os
mesmos, como nos apresenta Carvalhaes. A fronteira aqui é tênue, o terreno
sobre o qual esse edifício esta assentado é movediço. Heidegger aborda a
partícula “e” na expressão “Ser e Tempo” como um nexo ontológico entre “Ser”
e “Tempo”. Será que o “e” em “Teologia e Cultura” pode representar um nexo
ontológico? Se puder ou se assim o for, significa dizer que é mais que inter-
relação ou interdependência é uma ligação visceral, onde um não existe sem o
outro, ou seja, não podemos falar de teologia sem falar de cultura. Sobre isso,
Carvalhaes faz dois grupos de observações:

Em primeiro lugar, acho importante dizer que pretendo citar


constantemente nomes, livros, obras artísticas, lugares e referências,
permitindo ao leitor que busque se aprofundar nos temas abordados
por si mesmo. Em segundo lugar, já quero alertar os leitores que os
temas aqui desenvolvidos estarão sempre se movendo, em
processos tanto lineares quanto de interrupção, ou seja, tanto de
certezas quanto de dúvidas e isso porque Deus também trabalha na
imprevisibilidade e na fraqueza da vida.( CARVALHAES, 2010).

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Em primeiro lugar “se aprofundar nos temas abordados por si mesmo”


(CARVALHAES, 2010) significa um grau de subjetividade, ou para além, uma
inter-subjetividade. O que temos aqui não é tão somente um texto, mas um
inter-texto, para em segundo lugar dizer que sejam “tanto lineares quanto de
interrupção”(CARVALHAES, 2010), pois podemos fazer uma vinculação entre a
linearidade e a certeza (percepção cartesiana). Entretanto, não podemos fazer
esta mesma vinculação entre a interrupção e a dúvida. Esta última não
interrompe, não impede a continuidade, mas sim catapulta, amplia
dinamicamente os processos.

Precisamos continuar conversando, dialogando com Carvalhaes e


quando ele diz: “Deus também trabalha na imprevisibilidade e na fraqueza da
vida.”(CARVALHAES, 2010). Pode aí estar implícito a ideia de que Deus
também trabalha na previsibilidade e na força da vida, que é imanente sem
perder/descartar o aspecto transcendente, pois a força da vida não reside na
previsibilidade ou na imprevisibilidade tão somente, mas sim naquilo que se
esconde e se revela, ou seja, naquilo que se pode prever ou não.

Ao convidar Tillich nesta primeira parte, isto nos leva a comentar que
este teólogo apresenta em sua obra A história do pensamento Cristão, que
aparece num momento em que a compreensão da história tornou-se tarefa
central e problema urgente da atual reflexão teológica, evidenciando a maneira
como o próprio Tillich utilizava a história. Para ele o passado carregava em si o
presente, e seu estudo era como uma alameda aberta para o futuro. Só se
pode viver no presente plenamente, aberto para o futuro, em diálogo com o
passado, interpretando-o e compreendendo seus movimentos. Tillich
demonstra o poder da história para um teólogo que jamais mergulhou no
passado para escapar do presente. Nitidamente aqui, percebemos uma
influência do pensamento heidegariano sobre a leitura que Carvalhaes faz de
Tillich.

Pensar esta construção é de fundamental importância para a


compreensão de todo esse processo, inclusive da própria partícula “e”. Como
assim? Tanto a teologia como a cultura são construções históricas, portanto
são carregadas de historicidade. Desta forma o ser humano, este ser-no-

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mundo, este ser-com-o-mundo, este ser-para-a-morte é um ser histórico, sendo


não somente objeto ou sujeito, mas plenamente objeto e sujeito. Isto significa
um discurso e nos remete a Orlandi, quando Carvalhaes assim diz:
“desenvolveremos uma teologia feita entre exclamações, interrogações, ponto-
e-vírgulas e reticências.” (CARVALHAES, 2010). Assim afirma Orlandi:

Em relação ao discurso, é preciso considerar as posições do sujeito, a


regionalização dos sentidos, a projeção histórica, política, ideológica
sobre a linearidade no confronto do político e do simbólico, no exercício
da interpretação. (ORLANDI, 2005, p.110)

Fazendo-se esta abordagem sobre o discurso, precisamos buscar


arrastar/vincular as percepções de história, de político e de ideologia para o
setor dos estudos da linguagem, pois este setor, que não é transparente, assim
como não são transparentes a história e o sujeito, nos faz ver que um
mecanismo como o da pontuação pode nos oferecer subsídios para a
compreensão do político e do ideológico no funcionamento discursivo em que
nos salta a questão da interpretação. Aliado a tudo isso precisamos entender
que um texto tem em suas margens muitos outros textos, e que o espaço
textual aqui é abordado como espaço de sentido e a pontuação representa
relações de sentidos, construindo na materialidade do texto, as pausas, as
ligações e mediações. Nas palavras de Orlandi podemos ver:

Pela maneira como a estou considerando, a pontuação atesta um


duplo trabalho do simbólico: se, de um lado, ela é marca – traços
empíricos, signos diacríticos – de outro, ela indica a textualização do
discurso, sendo assim índice de sua materialidade, ligando o real ao
imaginário. (ORLANDI, 2005, p. 112)

Neste caminho, não poderíamos ficar indiferentes da posição de


Carvalhaes, pois todo discurso é incompleto, assim como são incompletos os
sujeitos e os sentidos. Assim, “Poucos serão os pontos finais”(CARVALHAES,
2010), ainda porque o ponto final funciona imaginariamente como um signo de
acabamento, que é impossível.

Nesta de continuar nossa conversa com Carvalhaes, pensamos nesta


gramática teológica “que tenta dizer o indizível e definir o indefinível, estamos
sempre fadados ao fracasso”(CARVALHAES, 2010). Qual o limite entre o

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dizível e o indizível? Para Wittigenstein, sobre aquilo que não se pode falar,
deve-se calar. Mas a teologia é uma voz, e não quer calar, pois é “um jeito de
falar de Deus” (CARVALHAES, 2010). Este falar sobre Deus acontece entre o
real e o imaginário, sendo, portanto uma questão de fronteira. Esta última é a
casa do sonho, é onde reside a utopia, é o não-lugar, é a cruz, é a morada de
Deus, é o símbolo onde “as palavras sempre vão nos faltar” (CARVALHAES,
2010) e estamos sempre com um trabalho por terminar. Portanto, não um
trabalho pronto, um ser-pronto, mas sim um trabalho por fazer, um ser-por-
fazer. O trabalho se faz fazendo, o ser se é sendo e sendo é. Sempre é na sua
incompletude e possibilidade de ser. Neste sentido o “é” é especificidade do
ser, não do tempo ou da teologia ou ainda da cultura. Enquanto o ser “é”, o
tempo temporaliza e a teologia “teologa”, a cultura se vivencia. Ela é vivenciada
historicamente por seres históricos:

Estamos sempre diante de uma aporia, um lugar onde o falar de Deus


torna-se impossível e nada podemos fazer, nem falar nem ficar em
silêncio; um lugar estranho onde o Espírito revolve para além de nossa
capacidade de entendimento e, muito menos, de
definição.(CARVALHAES, 2010)

Depois de colocar tudo isso dentro de um imenso caldeirão de


possibilidades, de certezas e incertezas e tendo utilizado o já citado texto de
Carvalhaes, vamos continuar nossa conversa com ele.

Meio da conversa

Em “Teologia e Cultura II: continuando a conversa” 55, Carvalhaes faz um


breve comentário biográfico de Tillich acrescentando que o pensamento deste
filósofo e teólogo era marcado por duas influências filosóficas principais: o
essencialismo e o existencialismo.

De acordo com Carvalhaes, Tillich buscou trabalhar com essas questões,


“de maneira consistente a relação entre a teologia e cultura naquilo que ele
mesmo chamou de método da correlação.”(CARVALHAES, 2012). Segundo
Carvalhaes este método:
55
Disponível em < http://www.ibjequiezinho.com/site/2012/05/02/teologia-e-cultura-ii-continuando-a-
conversa/ Acessado em 04 de maio de 2014.

373
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Cria uma mediação entre o que se pensa e o que se experimenta, a qual


se dá através da cultura humana. Pelas manifestações da cultura,
podemos ver a forma dos conteúdos religiosos da vida humana e aquilo
que lhe é não só pertinente, mas de maior importância, de valor e
sentido último. (CARVALHAES, 2012)

Carvalhaes continua da seguinte forma:

A religião será sempre aquilo que tece e estrutura a cultura, e esse


incondicional da cultura se dá nas formas e manifestações concretas
dessa cultura. Assim Tillich definiu sua teologia da cultura: “Religião é a
substância da cultura e a cultura é a forma da religião.”(CARVALHAES,
2012)

Para entendermos esta discussão e em particular o significado de


teologia da cultura é necessário pesquisar sobre o conceito de cultura na
Alemanha no final do século XIX e início do século XX, assim como pensar a
relação entre teologia, igreja e cultura neste país, pois o que Tillich parece se
propor a fazer é corrigir uma tendência oriunda do idealismo de dissipar a
religião na cultura, confundindo-a com os valores éticos burgueses. Assim,
tentou-se salva-guardar, ao mesmo tempo, o que é específico da religião e a
autonomia da cultura.

A negatividade que a cultura alemã deixou explicitar para Tillich, fez com
que ele percebesse uma tendência derivada do idealismo que tentava dissolver
a religião na cultura. Com efeito disso, a religião ficava inevitavelmente
domesticada, tornando-se uma arma contra as outras culturas diferentes.
Nesse caso, parece bastante explícito que os valores religiosos se confundiam
com os interesses da burguesia vigente. Inconformado com tal visão, Tillich
tenta mostrar, simultaneamente, a especificidade da religião e, sobretudo a
autonomia da cultura.

Pensamos aqui nesta direção e deixamos espaço para a discussão, para


as reticências, para a incompletude e continuaremos a conversar com
Carvalhaes no que se refere a teologia da cultura de Tillich, entretanto, primeiro
veremos Alvarenga:

374
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

...a teologia deveria cuidar para que nenhuma forma da cultura se


identificasse com esse incondicional e tomar o lugar do sagrado. Esse
incondicional assume diferentes formas na cultura humana, mas não se
engessa nem se deixa aprisionar por elas.(ALVARENGA, Fut-Baal – A
56
relação entre futebol e religião)

...se usarmos o método da correlação de Tillich, poderemos entender a


relação entre teologia e cultura ao passarmos os olhos pela cultura e
vermos por onde as pedras andam falando de Deus...( CARVALHAES,
2012)

Esta conversa nos leva inevitavelmente a pensar junto com Carvalhaes, quando
ele afirma que “Toda teologia é cultural”57, abordando que a nossa historicidade deixou
de lado as diversas vozes das minorias e etnias, abandona as especificidades
culturais.(CARVALHAES, 2008)

Precisamos neste momento entender o conceito de historicidade e este é


crucial para o entendimento da história, seja ela considerada ‘ciência’ como
queriam os estudiosos do século XIX, ou ‘narrativa verídica’. Jameson assim
propõe uma definição:

A historicidade, de fato, nem é uma representação do passado, nem


uma representação do futuro (...) ela pode ser definida, antes de mais
nada, como uma percepção do presente como história, isto é, como
uma relação com o presente que o desfamiliariza e nos permite
aquela distância da imediaticidade que pode ser caracterizada
finalmente como uma perspectiva histórica. (JAMESON, 1991, p. 235)

De historicidade, buscamos entender o conceito de história, e fazemos


isso a partir de Heidegger. Este filósofo assumiu a história como motivo
decisivo da interrogação filosófica desde o princípio. Em Ser e Tempo
Heidegger reflete sobre a historicidade fundamental do Dasein e sobre a
exigência hermenêutica da destruição da história da ontologia, tarefas que não
podem ser compreendidas isoladamente. Desde então, ele se esforçou por
delinear o caráter intrínseco da relação entre filosofia e história. O ser humano
é histórico e filosófico simultaneamente, de modo que não se deve reduzir a
filosofia à história, como determina o historicismo, ou a história à filosofia, como

56
Em < https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/COR/article/view/1685/1681>
Acessado em 05 de maio de 2014.
57
Disponível em <http://www.vidanova.com.br/> Acessado em 23 de outubro de 2008.

375
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

o fazem as filosofias da história. Em Ser e Tempo, Heidegger busca determinar


a relação entre história e filosofia recorrendo a uma reflexão de tipo
fundacional: critica-se a determinação do caráter histórico da filosofia e da
metafísica com base no argumento de que ambas se manifestam
historicamente no curso do tempo. Agora, entretanto, já não interessa mais
reconduzir a temporalidade cronológica a uma estrutura ontológica do Dasein.
O fundamental parece ser o pensamento de que apenas a filosofia e a
metafísica podem instituir as próprias épocas históricas, ao determinar como se
dá em cada momento histórico a relação essencial entre o homem e o ser. A
partir dos anos 30, portanto, a história deixa de ser pensada como estrutura
existencial para ser pensada como a própria abertura do ser.

Fazer esse exercício é perceber a existência de uma teologia importada


e esta é uma teologia que nos foi imposta como coloca o próprio Carvalhaes:

As formas de se adorar a Deus, os valores universais buscados nos


evangelhos e mesmo as aspirações que os evangelhos nos trazem têm
muito mais de norte-americano do que de universal – e menos ainda de
brasileiro. (CARVALHAES, 2008)

Para Carvalhaes, se desejamos fazer uma teologia brasileira,


precisamos:

Romper com esse modelo europeu e norte-americano de fazer teologia,


que não leva em conta os dramas locais da vida humana, as
experiências únicas de comunidades, suas lutas e sonhos, e atentar
criticamente para aquilo que nossa cultura nos direciona, incita e
oferece. Precisamos de uma teologia cultural que atente para a nervura
social brasileira com suas especificidades, suas contingências e seu
rosto índio, negro e europeu, que vai se tornando um rosto tomado pela
globalização em suas escolhas e delimitações. (CARVALHAES,2008)

Uma teologia brasileira legítima abordará: diversidade e respeito; um


povo que crê e respeita o sagrado; perspectiva dialética; a marca da
esperança; a dimensão estética; questões sociais; enfoque existencialista e
o elemento comemorativo. Estes elementos se misturam, se mesclam,
dialogam, constroem e difundem novos e esperançosos espaços teológicos e
de vida. A cultura é um tablado onde teologia e política se pautam,

376
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

pois,“Nenhuma cultura vive, acontece ou se relaciona sem inferências políticas


e teológicas”(CARVALHAES, 2008), e veja-se: Pero Vaz de Caminha e sua
Carta do achamento; nos Estados Unidos, o macartismo; o ensinamento de
que no Brasil comunistas comiam criancinhas e eram os terroristas da época;
Cartas da prisão de Bonhoeffer; os movimentos de resistência negra nos
diversos quilombos espalhados pelo país; os inconfidentes; e os que lutaram
contra a ditadura militar; os “felicianos” etc. Para Carvalhaes:

É preciso saber que as estruturas da nossa cultura têm muito a ver com
os jeitos com que a gente acredita no Evangelho e o vive diariamente, e
também com as opções políticas que fazemos ou deixamos de fazer. É
muito grande nossa responsabilidade.( CARVALHAES, 2008)

Nossa responsabilidade é grande e não podemos nem devemos fugir ou


nos afastar dela, pois precisamos continuar pensando, teologando, agindo e
discutindo caminhos, vias, trilhas para o encontro com o sagrado a todo
instante em todo lugar, em todas as culturas, pois elas são os campos da
diversidade, da identidade e da alteridade. Ajudam-nos a reconhecer o Outro
enquanto sociopoliticamente iguais e autônomos, e culturalmente diferentes.
Sendo assim, religião e Estado devem conservar-se radicalmente apartados. O
Estado não deve se comprometer com nenhum tipo de religião, pois é
importante que seja laico, tendo como função cuidar e gerar a liberdade e as
condições indispensáveis para que a diversidade e a justiça social, religiosa,
cultural, étnica, etária e sexual aconteçam.

Pensamos que religião e cultura se interpelam, não estão uma ao lado


da outra, pois se assim o fosse haveria diversas analogias. Isso, sem dúvida,
para Tillich, não significa que o secular como tal seja espiritual, mas constitui
que ele está aberto ao impacto do Espírito, mesmo sem mediação de uma
igreja. (TILLICH, 1987, pp.572-573) Assim, o Espírito tem a liberdade de usar
formas anti-religiosas, com o intuito de modificar não apenas a cultura secular,
mas sobretudo a igreja.

Portanto, o secular torna-se um tipo de corretivo necessário do sagrado,


quando as igrejas reivindicam a exclusividade da realidade última. O mais belo
de tudo é que, “o secular é levado à união com o sagrado, uma união que na

377
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verdade é uma reunião, porque o sagrado e o secular se pertencem


mutuamente” (TILLICH, 1987, pp. 573-574). Ou seja, é impossível a existência
do sagrado sem o secular. Ele precisa, necessariamente dessa categoria para
existir.

Para concluir provisoriamente a conversa

Estas são parte de nossas considerações, que até aqui tocam, roçam as
afirmações de Carvalhaes. De qualquer forma não se fecham ao diálogo, pois
nosso trabalho como cristãos é duplo: por um lado, temos que invariavelmente
romper as amarras da Teologia quando ela é feita refém de interesses
obscuros, pessoais ou de certos grupos religiosos¸ quaisquer que sejam, ou
quando ela é usada como palavra divina, independente de qualquer criticismo.
De outro lado, temos que permanecer indicando uma Teologia que olhe pelos
marginalizados, pelos negros, pelas mulheres, pelos idosos, pelos que são
descartados pelo sistema econômico, religioso, social e cultural.

O resgate da teologia da cultura de Tillich pode trazer uma nova


realidade para o povo sofrido e, sobretudo escravizado por atitudes desumanas
de certas tradições religiosas. Tillich é coerente quando dizia que a história da
religião e da cultura é a história de permanentes deformações demoníacas da
revelação e de confusões idólatras entre Deus e o homem. Portanto, a
imposição de qualquer cultura religiosa sobre participantes de outras culturas
jamais terá caráter final não obstante desejar alcançar os corações humanos,
mas sempre será passageira e condicionada, porque apenas aproveita em seu
benefício o caráter soberano da religião.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-ALVARENGA, Leonardo Gonçalves de. Fut-Baal – A relação entre futebol e


religião. Disponível em < https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/COR/article/view/1685/1681> Acessado em 05 de maio de 2014.

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-CARVALHAES, Claudio. Teologia e Cultura: para início de conversa.


(2010) Disponível em <http://www.claudiocarvalhaes.com/articles-pt-br/teologia-
e-cultura-para-inicio-de-conversa/> Acessado em 04 de maio de 2014.

-________. Teologia e Cultura II: continuando a conversa.(2012) Disponível


em < http://www.ibjequiezinho.com/site/2012/05/02/teologia-e-cultura-ii-
continuando-a-conversa/ Acessado em 04 de maio de 2014.

-________. Toda Teologia é cultural – Um início de discussão. Disponível


em <http://www.vidanova.com.br/> Acessado em 23 de outubro de 2008.

-HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback.


12 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

-JAMESON, Frederic. Pós-modernismo. A Lógica cultural do capitalismo


tardio. São Paulo. Ática. 1991.

-ORLANDI, Eni. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos.


Campinas, São Paulo. Pontes, 2ª Edição, 2005.

-TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 2. ed. Trad. de Getúlio Bertelli. São


Paulo: Paulinas; São Leopoldo, RS: Sinodal, 1987.

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UMA ANÁLISE DOS PONTOS DE PRETO VELHO E ORIXÁ DA UMBANDA

LEILIANE RODRIGUES DE ARAÚJO*

RESUMO

Este trabalho apresenta por analise e identificação o que revelam os pontos de


caboclos e orixás da Umbanda. Esta é uma religião essencialmente brasileira,
fundada no Rio de Janeiro na década de 1930, por Zélio de Morais. Sua liturgia
possui elementos de três matrizes culturais distintas: a ameríndia, a cristã
ocidental de linha kardecista e a do Catolicismo romano; a afro-brasileira,
representada pelos orixás do Candomblé. Essas divindades são divididas em
linhas, falanges e legiões. Na liturgia da Umbanda, os orixás e os pretos velhos
são invocados a partir de cantos chamados pontos. Suas letras são em
português, mas possuem abundante léxico de procedência iorubana e tupi. A
importância deste trabalho está em ele questionar e desconstruir o preconceito
social dirigido contra essa religião, historicamente constituída neste país e
representante de suas varias nações e línguas.

Palavras-chave: Umbanda. Pontos. Pretos Velhos e Orixás.

ABSTRACT

This work identifies and analyzes what hymns reveals about ancient Indian
spirits and orìśá of Umbanda. This is an essential Brazilian religion, founded in
1930 by Zelio Moraes. In it liturgy, there are elements belonged to three
different culture basements: the Brazilian Indian, the western Christian
(Kardecist and Roman Catolic one) and the Afro-Brazilian, represented by
Candomblé orìśá. These divinities are divided into different groups called lines,
sub-lines and legions. In it liturgy, orìśá and a sort of divinity called “preto velho”
(old black dad) or “preta velha” (old black mom) – ancient old black spirits – are
invocated by a kind of hymn called “ponto”. Lyrics are in Portuguese, filled of
words belonged to ioruba and tupi languages. The relevance of this work is that
it relativize and desconstruct preconceptions directed against this religion, that
is representative of many nations and languages of this culture diverse country.

Key-words: Umbanda. Hymns. Ancient old black spirits and orìśá.

___________________________________________________

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*ARAÚJO, Leiliane Rodrigues de (2011). Uma análise dos pontos de preto velho e orixá da
umbanda. [Monografia de Conclusão de Licenciatura em Letras]. [Orientador: Prof. Dr. Ricardo
Tupiniquim Ramos]. Barreiras: Universidade do Estado da Bahia/ Departamento de Ciências
Humanas, 53 p.

*ARAÚJO, Leiliane Rodrigues de (2011). An analysis of umbanda hymns of ancient African


spirits and orìśá. [Monographic Composition for Conclusion of Under Graduation Course on
Letters]. [Conducted by Prof. Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos]. Barreiras: Bahia State University/
Humanities Department, 53 p.

1 – INTRODUÇÃO

Este trabalho propõe compreender o que revelam os pontos de caboclo


e orixás da Umbanda acerca do discurso dessa religião afro-brasileira.

O conhecimento sobre a Umbanda está implícito nos aspectos de sua


liturgia presente nos pontos. A existência de lacuna à discriminação
historicamente dirigida às manifestações culturais afro-brasileiras, em geral, e,
principalmente, às religiosas. Nesse sentido, na medida em que pretende
esclarecer aspectos da liturgia da Umbanda, esse trabalho pode ser um
instrumento de desconstrução de preconceitos, revelando, assim, sua
relevância social.

No Brasil, domínio do catolicismo trazido pelos portugueses, os


escravos foram obrigados a seguir a doutrina cristã, já que sua rica e variada
ritualística africana passou por perseguições e excomungações. Segundo
Prandi (2003, p. 16), “para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e
principalmente depois, sendo negro livre, era indispensável antes de mais nada
ser católico”.

As religiões originárias da África herdaram o panteão, aqui


reorganizado, as línguas rituais, de significado esquecido, os ritos, as
concepções e valores místicos. A religião dos caboclos, dos orixás, dos voduns
e dos inquices reconstituiu simbolicamente no Brasil do século XIX a África que
os negros perderam com a escravidão.

Ao longo da história brasileira, deu-se o encontro entre o universo


religioso cristão, as inúmeras praticas religiosas indígenas e as religiosidades

381
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africanas; na década de 1930, essas crenças e manifestações religiosas deram


origem à Umbanda.

Constituída de linhas falanges e legiões, caracteriza os orixás


explicando sua formação religiosa e como os pontos cantados e riscados são
importantes dentro dos rituais.

__________________________________

1PRANDI, Reginaldo (2003). As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. Civitas, 3(1). Porto
Alegre: junho.

Em sua liturgia, essa religião brasileira traz a presença de caboclos e


orixás, reverenciados através de danças e cantos chamados pontos. Segundo
Souza et al (2005, p.62) “Os ritos são modos através dos quais se saúda e se
recebe a força dos orixás”.

Ao analisar o texto dos pontos, identificando os elementos de culto das


diferentes matrizes culturais e a relação entre eles, que identificaremos o léxico
de procedência indígena e africana presentes nos pontos. O léxico desses
pontos são reflexos da cultura de um povo e revela o resultado da evolução de
uma sociedade. O léxico, portanto é o resultado da experiência sócio-cultural
que envolve cada língua ou dialeto.

Sendo a única religião essencialmente brasileira não só por essa


origem, como também pela presença, em sua liturgia, de elementos de três
matrizes culturais distintas: a ameríndia, representada por caboclos, espíritos
ancestrais indígenas; a cristã ocidental, representada por elementos do
espiritismo de linha kardecista (o contato com espíritos e a orientação deles
advinda, a crença na reencarnação) e do Catolicismo romano (a presença de
imagens de santos nos centros); a afro-brasileira, representada por divindades
do candomblé (orixás).

Na liturgia da Umbanda, orixás e caboclos são invocados a partir de


cantos chamados pontos. Suas letras são em português, embora nelas se
encontre abundante léxico de procedência iorubana e tupi, o que embasa e
desenvolve esse trabalho revelando através da liturgia discursiva encontrada
nos pontos de caboclo e orixás da Umbanda.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

_______________________________________

2 SOUSA, Ana Lucia Silva [et al.] (2005). De olho na cultura: pontos de vista afro-brasileiros.
Salvador: Centros de Estudos Afro-Orientais/ Fundação Cultural Palmares.

2 – REVISÃO DE LITERATURA

2.1 A Umbanda

Ao lado do Catolicismo e Protestantismo, desenvolveram-se no Brasil


as religiões afro-brasileiras, muito relevantes no panorama da cultura brasileira.
Essas religiões se formaram em diversificadas regiões e estados do Brasil,
quando os negros passaram a viver nas cidades, num processo de interação e
liberdade de movimento que antes não conheciam. Surgiram rituais e
diferentes mitos derivadas de tradições africanas diversificadas, como também
adotam nomes próprios diferentes: Candomblé na Bahia; Xangô em
Pernambuco e Alagoas; Tambor de Minas, no Maranhão e no Pará; Batuque
no Rio Grande do Sul e Macumbaria, depois Umbanda, no Rio de Janeiro. Até
meados do século XX, esses cultos funcionaram como ritos de preservação
cultural dos costumes de diferentes grupos étnicos negros que compunham a
população dos antigos escravos e seus descendentes.

No Rio de Janeiro, em 1930, Zélio Fernandino de Morais fundou a


Umbanda, uma religião verdadeiramente brasileira, por reunir elementos da
cultura indígena, africana e europeia. Nesse sentido, ela se diferencia dos
demais cultos, genericamente denominados Candomblé, por não se preocupar
com a preservação das raízes africanas, por ser, desde o inicio, visivelmente
multiétnica, com uma forte presença de brancos em seus terreiros, inclusive
entre os pais-de-santo. Ela não só dispensa de seus rituais o uso de idiomas
africanos (o iorubá, o jeje, o quimbundo e o quicongo, línguas litúrgicas nos
diferentes candomblés), como evita os sacrifícios de sangue e os processos
iniciáticos demorados e caros. Segundo RAMOS (2005, p.370):

383
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A regra, hoje, é o sincretismo com o espiritismo, o catolicismo e os


próprios cultos negros de origem sudaneses. Todos os santos
católicos, espíritos das mesas Kardecistas e orixás sudaneses
aparecem nestas linhas dos terreiros ou “centro” de influência banto.

(RAMOS, 2005, p.370)

____________________________________________

3 RAMOS, Artur (2005). “Linha da Umbanda”. In. CANEIRO, Edson (Org.). Antologia do negro
brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 269-72.

Os cultos são geralmente realizados em terreiros ou casas de santos,


que possuem geralmente uma antessala para os convidados. O interior da
casa é dividido entre o local reservado para a consulta e o outro para o
posicionamento dos filhos-de-santo ou médiuns, em duas filas, homens à
direita, mulheres à esquerda, todos com vestimenta branca, as mulheres com
saias e os homens de calça. O inicio do culto se dá pela invocação ao santo
protetor daquele terreiro. Segundo Ramos (2005), as reuniões começam, em:

[...] roda, dos pais e filhos-de-santo num ato de macumba, a fim de


receberem ou cultuarem um santo, chama-se “gira”. Formada a “gira”,
o sacerdote canta o “ponto do defumador” para a limpeza do terreiro.
Pontos são os cantos dedicados a cada “santo”, que vai descer do
seu gongá ou altar; significam também os sinais simbólicos de cada
santo. Há por isso os pontos cantados (os cânticos a cada santo) e os
pontos riscados (os símbolos escritos, a pemba: signo de Salomão,
círculos, flechas etc.). (RAMOS, 2005, p.371)

Os vários pontos cantados pelo pai-de-santo e seus médiuns são


puxados pelos cambondo e marcados pelas palmas e instrumentos de
percussão (cuícas, tamborins e tambores) para que os espíritos se manifestem
e desçam nos médiuns.

Do Kardecismo, a Umbanda preservou as concepções de carma,


evolução do espiritual e comunicação com os espíritos. Incorporaram-se alguns
elementos da cultura africana, mas excluíram outros, como o sacrifício de
animais, as danças, as bebidas alcoólicas, o fumo e a pólvora, elementos
podem ser utilizados à parte, no momento em que se justifique uma ação e
vibração anestésica e fluídica devido a sua evaporação, o que propicia as
descargas (limpezas) das pessoas ou objetos que esteja com fluidos pesados
ou negativos. Daí alguns terreiros usarem, além dos pontos cantados e

384
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

riscados, do pombo ou charuto, do ponteiro ou punhal pequeno de funções


mágicas, fundango ou tuia (pólvora), do fumo ou macaia, da marafa ou otin
(cachaça), da maza ou mazia (água) etc.

_________________________________________________

4 RAMOS, Artur (2005). “Linha da Umbanda”. In. CANEIRO, Edson (Org.). Antologia do negro
brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 269-72.

5 RAMOS, 2005, p.371

Silva (2001, p. 43) destaca que, para invocar os espíritos,

A Umbanda preservou uma característica das religiões de origem


banta, a de ser um sistema aberto à incorporação de influencias local,
como o culto aos caboclos (espíritos ameríndios), aos santos
católicos e a outras entidades de origem popular brasileira.

A Umbanda sofreu muito preconceito, sendo chamado de religião


distante de nossa realidade, o baixo espiritismo, pois ao mesmo tempo em que
embranquecia os valores africanos, manchava os valores do Kardecismo. Por
ser uma religião essencialmente brasileira, nascida aqui, refletia os anseios de
reconhecimento dos segmentos marginalizados (negros, índios, prostitutas,
estivadores, pobres em geral) e com estes aspectos sofreu discriminação.

Seus pontos cantados para invocar os caboclos e orixás são textos são
em português, embora neles se encontrem abundante léxico de procedência
iorubana e tupi. Esses pontos podem ser considerados hinos, cantos “em
louvor aos Deus” (MOISÉS, 1978, p.274-5), “de tema religioso, [ ] histórico,
destinada a fazer o louvor de uma figura importante na história das religiões, de
uma divindade” (CEIA, 2010).

2.1.1 Orixás da Umbanda

Os orixás são divindades ou semideuses criados por um Deus


supremo, situado entre o céu e a terra e nomeado diferentemente, conforme a

385
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

tradição do culto: Olorum, segundo a nagô-keto (iorubana), Zambi, segundo a


congo-angola. Eles são guardiães dos elementos da natureza e representam e
dominam a terra (ayê), o plano físico onde vivemos. Existem orixás não
considerados deuses, mas entidades intermediárias, ancestrais divinizados
após a morte. Entre eles, na Umbanda, estão os caboclos e pretos velhos.

________________________________________

6 SILVA, Vagner Gonçalves da. Artigo definido na Revista Historia viva: grandes religiões
cultos afro. BOLETIM. São Paulo: DUETTO, 2001, nª 6,p.34-39.

Na Umbanda, os orixás estão divididos em linhas. Toda linha tem um


orixá “chefe”, um espírito superior responsável por orientar os que trabalham
nessa mesma linha. Aluivaiá e Bombagira são os guardiões entre o mundo
material e espiritual; Omolu/Obaluayê a manifestação da transformação
(senhor da vida e da morte); Ogum o responsável pelas guerras batalhas e
demandas, sincretizado por São Jorge; Oxossi, a manifestação do sustento, o
rei das matas; Oxum, a manifestação da candura do amor, da pureza e
bondade, deusa das águas doces; Yemanjá, a manifestação da procriação, da
restauração e das emoções, a mãe de todos os bakurus/orixás; Iansã, a deusa
dos ventos e tempestades e comandante dos eguns; Nanã, a manifestação da
purificação astral; Xangô, a manifestação da justiça, poder e força; Oxalá, a
manifestação cósmica do céu, da terra, da luz, da paz e do amor. Embora
existam outros orixás, esses são os mais conhecidos e cultuados na Umbanda
e compõem o Panteão de Naomé, segundo lendas africanas.

Segundo a classificação de Bastide (1975 [1943]), a Umbanda se


divide em sete linhas, cada uma delas dividida em falanges ou legiões,
conforme demonstra o Quadro 1:

Quadro 1: Linhas da Umbanda (com seus respectivos orixás e santos) e suas


falanges ou legiões

ORÍXÁS SANTOS LEGIÕES

Legião de Santo Antônio

Legião de São Cosme e Damião

Legião de Santa Rita

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Oxalá Jesus Cristo Legião de Santa Catarina

Legião de Santo Expedito

Legião de São Benedito

Legião São Francisco de Sales

Legião das Sereias - chefe: Oxum (deusa Iorubá)

Legião das Ondinas - chefe: Nànã-Buruku (deusa iorubá)

Legião dos caboclos do Mar - chefe: Indaiá (espírito de índio)

Iemanjá Virgem Maria Legião dos caboclos dos rios - chefe: Iara (espírito de índio)

Legião dos Marinheiros: chefe - Tarmá (espírito de índio)

Legião dos Calungas - chefe: Calunguinha (deus banto)

Legião da Estrela da Guia - Maria Madalena (santa católica)

Legião dos hindus - chefe: Zarta

Legião dos médicos - chefe: José de Arimatéia

Legião dos árabes - chefe:Jymbaruê

Oriente São João Batista Legião dos japoneses, chineses, mongóis e esquimós - chefe:
Ory

Legião dos egípcios, astecas, incas - chefe: Inhoarairy

Legião dos índios caraíbas - chefe: Itarayacy

Legião dos gauleses, romanos e outros europeus -


chefe:Marcos I

Legião dos Urubatão

Legião de Caboclos das Sete Encruzilhadas

Legião de Araribóia

Oxóssi São Sebastião Legião dos Peles-Vermelhas

Legião dos Tamoios

Legião dos Caboclos Jurema

Legião dos Guaranis

Legião de Inhacê

Legião do Caboclo do Sol e da Lua

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Legião da Pedra Branca

Xangô São Jerônimo Legião do Caboclo do Vento

Legião do Caboclo das Cascatas

Legião do Caboclo do Tremor da Terra

Legião dos Negos

Ogum Beira Mar, Ogum Iara, Ogum Rompe-Floresta, Ogum


Megê, Ogum Naruê, Ogum Malê (mulçumano), Ogum Nagô
Ogum São Jorge

Legião do Povo da Costa - chefe: Pai Cabinda

Legião do Congo- chefe: Rei de Congo

Legião de Angola - chefe: Pai José

Africana São Cipriano Legião de Benguela - chefe: Pai Benguela

Legião de Moçambique - chefe: Pai Jerônimo

Legião de Loanda - chefe: Pai Francisco

Legião de Guiné - chefe: Zan-Guiné

A primeira linha se compõe de espíritos de diversas nações, mas


principalmente de negros que formam na terra bons católicos. A segunda
protege os marinheiros ou as mulheres. A terceira se compõe de espíritos
asiáticos e europeus. A quarta e a quinta, de espíritos de caboclos. A sétima,
de espíritos ainda muito próximos da matéria e dos desencarnados dos povos
da África. Nessa hierarquização das linhas da Umbanda, pode-se perceber
uma sobrevivência do preconceito de cor, na medida em que os espíritos
africanos se encontram na mais baixa das sete linhas.

Essa classificação se refere a como as linhas e falanges da Umbanda


eram vistas na época em que a religião foi fundada. Com o tempo, para facilitar
o entendimento, novas pesquisas trouxeram outras propostas de classificação
das sete linhas, como a de Corral (2008):

1. Linha de Oxalá
2. Linha das Águas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

3. Linha dos Ancestrais (Yori e Yorimá)


4. Linha de Ogum
5. Linha de Oxossi
6. Linha de Xangô
7. Linha do Oriente
__________________________________________

7 BASTIDE, Roger (1975). As religiões africanas no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Pioneira.

8CORRAL, Janaina Azevedo (2010). Sete linhas da umbanda. São Paulo: Universo dos Livros.

Pode-se perceber que a ordem de classificação de Corral se diferencia


de Bastide e nos apresenta fatores hierárquicos importantes. Em sua ordem, a
Linha dos Ancestrais vem em terceiro lugar, sendo o comum ela vir por último,
junto com a linha do Oriente. Isso acontece porque o que se aprende sobre as
sete linhas não está relacionado a um quesito religioso da Umbanda, mas à
ordem em que os orixás são recebidos nas casas de Candomblé durante os
rituais. Corral (2008, p. 34) afirma que essa questão de ordem que permanece
e pela qual, muitos aprendem está “associada à ordem de Xirê (gira) do
Candomblé, de acordo com a entrada dos orixás no ritual”. A Umbanda
baseou-se neste quesito. Embora todas as linhas estejam em pé de igualdade,
vale dizer, embora nenhuma seja hierarquicamente superioridade da outra,
exceto talvez a de Oxalá, que sempre vem em primeiro lugar, o que a difere é
sua área de atuação e vibração.

A Linha de Oxalá trata de assuntos relacionados a praticamente todos


os aspectos da vida, mas exatamente para questões de familiares e de saúde,
casamento, filhos, afinal Oxalá é o pai da Criação. A Linha das Águas também
se relaciona às questões da família, pois Iemanjá e Oxum são mães e filhas
dedicadas, representam a feminilidade, a vaidade, o cuidado e fertilidade. A
Linha dos Ancestrais – também conhecida como Linha das Almas –, é regida
pelos Ibeji (Yori e Yorimá) e representa a juventude do homem, a infância, e
zela por aspectos como pureza, castidade, educação e crescimento; trata da
saúde, das doenças e do fim da vida e é regida por Omolu, simbolizando o
principio e o fim da vida.

389
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Logo após vem a Linha de Ogum que rege a luta ou batalha, física ou
espiritual, tudo que precisa ser forjado, construído a ferro e fogo. Já a linha de
Oxossi se relaciona com a caça, a agricultura e a agropecuária. Ele é a
divindade que rege a natureza intocada ou pouco modificada. Em penúltima
vem a Linha de Xangô, o rei, relacionado com a justiça e a lei, é a ele que se
deve recorrer para obter justiça. Por ultimo vem a linha do Oriente, regida por
Iansã, a senhora dos ventos, percorrendo os lugares mais distantes do mundo.

___________________________________

CORRAL, Janaina Azevedo (2010). Sete linhas da umbanda. São Paulo: Universo dos
Livros.

10 Corral (2008, p. 34)

Essas são as sete linhas da Umbanda caracterizadas de acordo com


cada orixá, os que regem e estruturam, dando assim origem a cada linha.
Dentro de seus rituais e giras que se subdividem as falanges.

2.1.2 Caboclos e pretos velhos

Entidades de grande evolução espiritual, muito respeitadas na


Umbanda por fazerem parte de suas primordiais raízes, caboclos e pretos
velhos são espíritos ancestrais. Segundo Corral (2008, p. 37), há quem
considere os caboclos mais evoluídos, “há quem diga que são os pretos
velhos”; contudo, ambas categorias são de muita importância para a Umbanda,
porque são sua essência brasileira, por mais que sejam tachados de espíritos
de pouca evolução por outras religiões.

Os caboclos são nossos ancestrais índios pertencentes às tribos tupis


e guaranis. Esses índios não utilizavam de vestimenta, apenas de alguns
enfeites de penas, andavam nus e apreciavam as deformações no corpo. De
acordo com sua origem, os índios são ótimos caçadores e utilizam dos
recursos naturais para sobreviver. Os índios acreditam que tudo acontece de
acordo com as leis da natureza, segundo Luciano (2006, p.173) “uma planta
por mais simples que seja, possui seu espírito, geralmente conhecido como

390
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

‘mãe’, uma espécie de ancestral protetor”; para eles tudo é relacionado à


natureza e quando o homem a provoca, ela reage. Assim, deve haver sempre
um equilíbrio entre o homem e a natureza. O conhecimento que possuem
sobre as ervas eram utilizados para curar as doenças, pois para eles as
doenças sempre são adquiridas e nunca passadas geneticamente.

______________________________________

11CORRAL, Janaina Azevedo (2010). Sete linhas da umbanda. São Paulo: Universo dos
Livros.

12Corral (2008, p. 37)

LUCIANO, Gersem dos Santos (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos
indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/ SECAD/ LACED/ Museu Nacional.

Os caboclos da tribo tupi são os mais frequentes nos terreiros de


Umbanda. Os caboclos dessa tribo usam armas e peças que incorporam o seu
figurino de caça têm como armas, arcos, flechas, tacape ou borduna, badoque,
escudos de couro e também colares de dentes de animais e cocares de pena
de pássaros. Segundo D’Ósósi (2010) os espíritos de caboclos são:
São espíritos de uma força muito grande e, por estarem ligados as
matas, têm um campo muito extenso para a cura e para a
homeopatia além de um conhecimento de ervas medicinais.

(D’ÓSÓSI, 2010, p. 25-26)

Assim como os pretos velhos, os caboclos possuem o dom de manipular as


ervas medicinais e, quando incorporados nos terreiros, utilizam-se de seus
conhecimentos para curar as pessoas necessitadas e descarregar as más
energias, pelo ato de defumar. O caboclo extrai das plantas as energias
necessárias para curar as pessoas que necessitam de auxilio espiritual.

Os pretos velhos são espíritos de velhos africanos ou afro-brasileiros


escravizados que, majoritariamente, morreram no tronco, de tanto trabalhar ou
mesmo de velhice. Trazidos da África em navios negreiros e escravizados no
Brasil, eles trouxeram em sua religiosidade a força dos orixás. Possuem o
poder da cura pela manipulação das ervas e da sabedoria:

Os pretos velhos são sábios, ternos e pacientes, dão o amor, a fé e a


esperança aos “seus filhos”. São entidades desencarnadas que
tiveram, pela sua idade avançada, o poder e o segredo de viver
longamente por meio de sua sabedoria, e apesar da dureza do
cativeiro demonstraram fé para suportar as amarguras da vida.

(CORRAL, 2008, p. 111)

391
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

São guias que alcançaram a evolução espiritual de acordo a sua vivência


nesse mundo e, depois de desencarnados podem transmitir suas experiências
através dos médiuns. Possuidores de muitos segredos ensinam a ter paciência
e assim a elevada sabedoria e calmaria.

__________________________________________

15 D’ÓSÓSI, Gilberto; Tata (2010). Omolokô: uma nação. São Paulo: Ícone.

14 CORRAL, Janaina Azevedo (2010). Sete linhas da umbanda. São Paulo: Universo dos Livros.

15 Corral (2008, p. 111)

Os pretos velhos geralmente são lembrados pelo instrumento muito


utilizado, o cachimbo. Ficam sentados em banquinhos apenas perscrutando,
fumando seu cachimbo, e suas baforadas servem de limpeza e harmonização;
valem-se de outros recursos, como ervas e galhos de arruda para rezar as
pessoas, ou o terço de lagrimas de Nossa Senhora para aspergir água, além
de outros sortilégios.

Essas entidades são chamadas nos terreiros de pretos velhos os tios e


tias, pais e mães, avós e avôs, todos com a forma do idoso, do escravo. Que
possui a experiência, um ex-escravo que traz a humildade e a simplicidade em
sua benevolência, e a crença no poder divino “Deus”, que salva o corpo e o
espírito. Entidades que auxiliam aos encarnados são guias de luz.

O nome de alguns pretos velhos comuns de que tem noticia são Pai
João, Pai Joaquim de Angola, Pai José de Angola, Pai Francisco, Vovó Maria
Conga, Vovó Catarina, Pai Jacó, Pai Benedito, Pai Anastácio, Pai Jorge, Pai
Luis, Mãe Maria, Mãe Cambinda de Guiné, Mãe Sete Serras, Mãe Cristina,
Mãe Mariana, Maria Conga, Vovó Rita e outros. O mais comum era chamar de
“Pai” e “Velho”, fazendo referencia a duas figuras de extrema importância
dentro da senzala, pois o pai era o reprodutor, aquele que fazia filhos para o
senhor de engenho; e o velho aquele que suportou os castigos e sobreviveu, o
mais velho da senzala. Já a classificação feminina os nomes de “Vó” e “Tia”,
porque os escravos eram separados/vendidos para outras fazendas ou lugares
e as outras escravas eram sujeitas a criarem esses órfãos de mães vivas.

392
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

2.1.3 Os pontos de caboclos e orixás

A Umbanda traz uma energia positiva invocada e transmitida através


dos pontos. São muito comuns nos centros umbandistas os médiuns e
participantes e ogãs (a pessoa responsável pelo toque de tambor no ritual)
cantarem para receber as entidades de luz, normalmente esses pontos são
cantados de forma espontânea, o guia ensina os pontos que se espalham
ligeiramente por vários terreiros, por causa da migração dos médiuns.

Os pontos são sempre cantados em português, ocorrem casos em que


o guia (pretos velhos e caboclos) canta os em sua língua de origem, por ser a
primeira vez que incorpora no médium (é necessário que se cante na língua de
origem) ou por não frequentar sempre o terreiro não domina a língua
portuguesa.

Os pontos de Umbanda na maioria das vezes são pequenos. Não


existe um ponto para cada guia, mais cada entidade tem um ponto preferido ou
mais cantado em sua chegada. São passados de geração em geração através
dos cultos, mas não existem muitos registros,assim como as plantas que são
catalogadas de acordo com sua categoria e origem,segundo d’Arruda (p.56)
trabalhos como de N. A. Molina “que listam centenas deles, servem de registro
histórico da letra quando não há quem lembre da música” ,quando isso ocorre
diz-se que o ponto fica mudo e esses registro ajudariam. Essa também é uma
forma de não deixar cair no esquecimento determinados pontos. Ainda citando
d’Arruda pode-se verificar que é frequente alguns pontos sofrerem
modificações, o ponto de Almas ou de Caboclos passar para Exus e vice-
versa.O autor faz inferência a esses pontos chamando a atenção,percebe-se
que a melodia encontrada em determinados terreiros pode ser a mesma,mas
a intenção/invocação pode ser distinta, como pode-se perceber:

Outra mutação é o ponto servir para uma coisa aqui e outra lá. Um
ponto cantado em gira de Pretos Velhos, Capim d’Angola, por sinal
com a melodia de conhecido ponto de Exu Caveira, num lugar é só
dos Pretos Velhos, noutro é ponto de advertência quando há algo
errado na gira destes. (D’ARRUDA, 2010, p. 56-7)

393
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Pontos são à força do orixá, no entanto em alguns casos eles são


invertidos, existe mutação, ou seja, na falange dos Pretos Velhos aquele ponto
tem uma função iluminadora que transmite uma determinada mensagem; já na
falange dos Exus, há uma relação diferente, apesar de a melodia ser igual à
função do ponto naquele contexto refere-se a situações que divergem.

Os pontos representam a força do orixá, seja ele cantado ou riscado,


contém aspectos de origem lexical africana e ameríndia importantes para a
criação de palavras com variações lingüísticas que deram origem a tantos
campos lexicais na língua portuguesa. Propomos a analisar e identificar a
identidade deste cruzamento linguístico.

____________________________________

16 D’ARRUDA, Gisela (2010). Umbanda Gira/Gisela d’Arruda. Rio de Janeiro: Pallas.

Nos terreiros de Umbanda, nem sempre são riscados pontos porque


não o dar tempo de fazer, não haverá consulta apenas vibração de limpeza e
luz. Os pretos velhos caboclos e crianças,assim como os boiadeiros gostam de
riscar os pontos,para isso utilizam de pemba (é um artefato de origem africana)
branca. Por ser um artefato de origem africana não deveriam ser utilizados por
guias de origem indígena, por vez os boiadeiros que são mestiços possuem a
influencia da pemba. Mas deixando de lado esse esclarecimento voltemos a o
ponto riscado.

Este ponto pode ser interpretado por varias camadas porque cada
elemento utilizado para formá-lo possui pelo menos um significado, assim pode
ter varias interpretações, ainda citando d’Arruda (2010, p. 61) “o ponto riscado
corresponde à personalidade de quem baixou ali”. Mais alguns guias firmam
seu ponto se utilizado muitas vezes de objetos ritualísticos como: bengalas,
velas, fitas e outros que assinam seu nome como se fossem pontos. Alem
desses guias já citados acima podemos enumerar vários outros como os Exus
que também utilizam pontos riscados para firma seu nome naquele terreiro,
assim que o orixá vai embora o ponto deve ser apagado pelo chefe da casa ou
algum médium.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Os pontos riscados, assim como os cantados influenciam na força


recebida pelo orixá enquanto permanece no terreiro. Este trabalho tem por
objetivo desvendar o que revelam esses pontos cantados, por serem de uma
importância exibicionista e exploratória não passando despercebido em
nenhuma reunião umbandista.

2.2 A palavra e o discurso

Todo discurso é uma construção social e não individual, por isso,


em sua analise é importante considerar o contexto historico-social. Para
compreender o que revelam os pontos de caboclos e orixás, é
imprescindível utilizar a liturgia como objeto de analise, pois os pontos
revelam a característica de cada entidade, e assim, a função naquele
dado momento em que são invocadas. Podemos analisar o discurso
social como nos diz Orlandi (apud Fernandes, 2008, p. 14): ”A palavra
discurso, etimologicamente, tem em si idéias de curso, de percurso, de
correr por, de movimento”. O discurso nos pontos, na Umbanda, se
modificou através da fusão das três matrizes culturais distintas que
socioideológicamente foram se integrando a cultura do nosso país,
através da Umbanda.
Estes elementos linguísticos são vocábulos de origem tupi e ioruba que
se incorporaram dentro do discurso litúrgico da Umbanda e que hoje servem de
objeto de analise como afirma Fernandes (2008, p.13) “o objeto da Analise do
Discurso, não é a língua, nem texto, mas necessita de elementos lingüísticos”,
proporcionando efeito de sentido por meio da linguagem, através de elementos
históricos, sociais e ideologias, que acompanham a evolução e transformações
da língua. Os léxicos são como um conjunto arbitrário de palavras de uma
língua.

Localizar estas estruturas lingüísticas dentro dos pontos permite


identificar palavras com raízes de procedência indígena e afro-brasileira. E,
assim, compreender o que os pontos de caboclos e orixás da umbanda

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

revelam através das características lingüísticas, aspectos culturais da religião,


historicamente fundamentados dentro dos pontos, para desconstruir
preconceitos sociais é preciso entender a ideologia do discurso.

A Umbanda se caracteriza dentro do tripé base que alicerça está


pratica religiosa: amor, caridade e humildade. Praticam-se dentro da umbanda
preceitos básicos de fraternidade transmitida através da experiência dos preto-
velhos e caboclos. Essa experiência só é adquirida pelo umbandista de acordo
com sua assiduidade em desempenha as suas funções no terreiro/centro, de
acordo a os preceitos básicos.

O discurso é constituído através do tripé que rege a lei, as regras de


cada terreiro, que cada pai ou mãe de santo denomina. De acordo com a
índole e a responsabilidade que o chefe carrega em seu intimo, de bondade e
amor. Porque a umbanda assim como o centro Kardecista possui fluidos de
muita bondade para vencer as forças do mal.

___________________________________

17 D’ARRUDA, Gisela (2010). Umbanda Gira/Gisela d’Arruda. Rio de Janeiro: Pallas.

18 FERNANDES, Cleudemar Alves (2008). Analise do Discurso: reflexões introdutórias, São Carlos:
Editora Claraluz, 2ª ed.

19 Fernandes (2008, p.13)

20Fernandes (2008, p.14)

Segundo Pinheiro (2006, p. 67), tem que está “conscientes de que a


bondade divina se manifesta conforme os instrumentos de que dispõe para
trabalhar”, em um momento de necessidade o médium tem que esta ciente de
que o enfermo deve ser tratado e para isso não necessariamente tem que ser
no centro Kardecista ou Umbandista, o importante é tratar, orientar e auxiliar a
pessoa que esta sofrendo. Pode-se perceber isso trabalhando com fé,
conforme os preceitos e conceitos da Umbanda ou do Espiritismo Kardecista.
Como podemos verificar no livro Tambores de Angola de Robson Pinheiro, pelo
espírito Ângelo Inácio, que nos leva a refletir, através de suas iluminadas
palavras:

Nos terreiros de umbandistas encontramos igualmente os recursos


necessários para atuarmos junto aos nossos irmãos. Conhecendo
pessoalmente espíritos de extrema lucidez que militam juntos aos

396
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

nossos irmãos umbandistas, no serviço desinteressado do bem. Os


problemas que às vezes encontramos não se referem à umbanda
propriamente, como religião, mas à desinformação das pessoas, ao
misticismo e à falta de preparo de muitos dirigentes, o que, aliás,
encontramos igualmente nas casas que seguem a orientação
Kardecista. (INACIO, 2006, p. 68.)

É importante entender que a umbanda assim como espiritismo


Kardecista possuem fluidos positivos, e qualquer uma das duas religiões
podem auxiliar o irmão necessitado, certo que ambas tem formas diferenciadas
de trabalhar, mas possuem o poder da caridade, e o médium deve buscar
conhecer os fundamentos de sua religião para que não seja confundido com
pessoas mal intencionadas, que busca a religião (umbanda) com a intenção de
prejudicar e fazer mal a outras pessoas.

Assim como outras religiões, a Umbanda é usada por algumas pessoas


com a finalidade de adquirir fins lucrativos, e essa não é a característica dos
verdadeiros conceitos. Mas sim, de ajudar a expandir o tripé que rege os
fundamentos e os ensinamentos transmitidos através dos orixás. Essa forma
erronia de pensar sobre a umbanda, leva a os próprios médiuns desavisados,
muitas vezes a desenvolverem sua mediunidade em terreiros, ao qual o pai de
santo não é preparado.

___________________________________

21INÁCIO, Ângelo [espírito] (2006). Tambores de Angola: romance mediúnico. [Psicografado


por Robson Pinheiro]. 2ª ed. Contagem: Casa dos Espíritos.

22Pinheiro (2006, p. 67)

O que é muito ariscado, pois se for mal desenvolvido pode ter ao seu
lado a presença de espíritos obsessores e não de orixás e caboclos, fazendo
assim com que ele trabalhe de forma errada e prejudique a si próprio e os
outros. É a manifestação que designa o exterior, visto que o “outro” como diz
Authier-Revuz e Lacan (apud Fernandes, 2008, p. 31) “refere-se ao desejo do
outro como constitutivo do desejo do “eu”, assim constata-se que o desejo
oculto do médium desencadeia a manifestar pensamentos positivo-negativo e
bom-mau, que são administrados de acordo a índole do médium. Ainda citando
Inácio (2006, p. 69), “a umbanda inspira-nos profundo respeito pelos seus
397
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ideais: trabalhemos para que alcance um grau de entendimento maior das leis
da vida...”, essa pratica religiosa requer muito respeito, pois é uma
manifestação que traz a verdade em sua essência.

Não podemos conhecer uma única pratica religiosa e nos fecharmos a


ela, o conhecimento requer alcançar além das fronteiras. No Brasil, existem
varias expressões religiosas que tem como base o mediunismo, que advém de
nossas raízes africanas e ameríndias, as quais deveram destrinchar as
ramificações e quebrar o preconceito, viver a experiência deixada por nosso
povo. Conhecer, para depois criticar ou julgar. Pessoas inescrupulosas utilizam
e manifestam-se de sentimentos religiosos, e abusam da fé alheia, sejam eles
protestantes, católicos, espíritas, espiritualistas, exotéricos e também
umbandistas não estão livres do comercio e do uso das almas alucinadas. A
umbanda, por se manifestar, na maioria das vezes, para aquelas pessoas
possuidoras de alma simples, de uma fé menos exigente, se torna alvo fácil, de
pretensos sábios e donos da verdade, que rotulam a umbanda, uma
manifestação de sincretismo religioso, antifraterno e anticristão de uma minoria.
Preconceito estabelecido, contra os rituais, o vocabulário e as devoções.

_____________________________________

23Fernandes (2008, p. 31)

24 Inácio (2006, p. 69)

O discurso segundo alguns autores é um léxico constantemente


utilizado pela população para estabelecer referencia a os pronunciamentos
políticos, a textos acadêmicos, a frases produzidas de forma eloqüente em
outras situações proferidas em alguns contextos no dia a dia, mas de acordo
com Fernandes (2008 p.13) ”o discurso não é a língua (gem) em si, mas
precisa dela para ter existência material e/ou real.” Precisa de elementos
linguísticos para existir, pois o objeto não é a língua, a fala e o texto. Podemos

398
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

dizer que o discurso é exterior, acontece de dentro para fora em cada individuo,
na relação social estabelecida entre o “eu” e o “outro”. Essa troca de
conhecimento é estabelecida através de aspectos ideologicamente sociais e
envolvem questões de cunho estritamente linguísticos.

Autores e antropólogos estudam o fenômeno cultural e social, da fase


de desenvolvimento da religião, visto que a Umbanda é multicultural, de raízes
essencialmente brasileiras. Para que as manifestações e os rituais
expandissem e fosse considerada como religião, esse processo deveria
provocar nos fiéis mudanças de idéias e de desejos, modificando seu sistema
religioso e a legitimando-se. Para Fernandes (2008, p. 14) ao falarmos em
discurso, precisamos considerar os elementos que existem no social, as
ideologias e a história. Levando em consideração que o discurso não é fixo,
sofrem modificações políticas e sociais, os intelectuais aproveitaram o Estado
Novo liderado por Getulio Vargas para legitimar a Umbanda como religião. Não
adotaram uma política de afrontamento, mas estabeleceram estratégias dentro
dos regulamentos estabelecidos.

Os lideres do movimento apropriaram de elementos discursivos de


caráter estadual para implantar o discurso umbandista na sociedade, sem
sofrer repressão política e utilizando a identidade de caráter cientifico da
religião kardescistas, deixando de ser considerada como seita, macumbaria ou
baixo espiritismo.

Considerando que a palavra religião sócioideologicamente vem


carregada de sentidos, podemos analisar que o enunciado das práticas e
rituais umbandistas são apropriados de uma pluralidade de sentidos integrante
e decorrente de

________________________________________

25Fernandes (2008 p.13)

26Fernandes (2008 p.14)

399
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diferentes discursos. Para Robin (apud Fernandes 2008, p. 46), “os discursos
são governados por formações ideológicas, que refletem na formação social”,
formando uma heterogeneidade própria a coexistência e miscigenação das
diferentes forças sociais que nasceram a Umbanda.

O que não se sabe é que a umbanda é uma religião que utiliza de


muitos valores morais para desenvolver seus rituais, sofreu mutações ao longo
de sua história, caracterizando o discurso de acordo a ideologia e aprendizado
de cada pai ou mãe de santo que recebeu o dom da mediunidade para ajudar e
prestar a caridade a outros irmãos que necessitam de auxilio espiritual.

Lança mão de um discurso legitimado através do lexema religião, que


emana forças de diferentes doutrinas recorrentes a história das religiões.
Surgiu dentro da doutrina do catolicismo, ameríndia, afro-brasileira e de
fundamento da religião kardescista. Com a fusão destas matrizes nascem
contradições e discussões sobre a legitimidade dos cultos afro-brasileiros que
como assegura Foucault:

A contradição funciona, então, ao longo do discurso, como o principio


de sua historicidade [...] O discurso é o caminho de uma contradição
a outra: se dá lugar às que vemos, é que obedece à que oculta.
Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as
contradições; é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é
manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou empresta-
lhes corpo, ou emprestar-lhes fugidia aparência.

(FOUCAULT apud FERNANDES, 2008, p. 59)

Perceber que o discurso é a chave para o conhecimento, através de


sua historicidade as religiões afro-brasileiras,assim como a Umbanda podem
identificar a legitimidade de sua doutrina representada nos rituais,pontos, linhas
e falanges que dão corpo a sua estrutura religiosa através do poder da palavra
enunciada em seus cultos. Esse cruzamento acontece pela interioridade da
linguagem, exteriorizada pelo falante e revelando a constituição teórica da
linguística.

____________________________

27 Fernandes 2008, p. 46)

28 FERNANDES, 2008, p. 59)

400
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

2.3 Aportes lexicais ameríndios e africanos na formação do léxico do


português do Brasil

A língua é utilizada para estabelecer comunicação, com o objetivo


obter relação entre as pessoas, lugares, idéias etc. Seja está relação de
natureza real ou imaginaria que as pessoas de uma determinada língua têm a
sua disposição para expressar-se oralmente ou por escrito. O sistema lexical
de uma língua transmite as experiências culturais acumulada por uma
sociedade ao longo do tempo, considerado um patrimônio vocabular de uma
comunidade lingüística. Basílio (2004, p. 9) se refere ao léxico como uma
função de extrema importância para a língua, nos discurso(s) enunciados: “O
léxico é uma espécie de banco de dados previamente classificados, um
deposito de elementos de designação, o qual fornece unidades básicas para a
construção do enunciado”.

Quanto maior for o vocabulário do usuário, maior é a possibilidade de


escolha das palavras mais adequadas para se expressar, pois ainda segundo
Basílio a palavra é a “unidade que compõe o enunciado” e que o usuário utiliza
desse léxico em seu idioma para a formação de seu vocabulário para a
expressão na hora da fala e da escrita. É através desse leque que propomos
analisar e identificar léxicos de procedência ameríndia e africana nos pontos de
orixás e caboclos da Umbanda. Ocorreu uma expansão de valores lingüísticos
que estimularam a formação e o aparecimento de novos vocábulos que se
incorporaram ao português europeu.

Por se originar nas três matrizes a umbanda carrega a essência e o


tripé lexical da formação do português brasileiro. Por volta do século XVIII,
através das pesquisas realizadas por antropólogos como Silvio Romero e Nina
Rodrigues pode-se contatar que a língua sofreu influencia ameríndia e africana
na fala verbal, tendo redução de flexões de plural na fala popular, isso ocorreu
porque os portugueses tinham pressa em comunicar-se com os nativos e
escravos nos primeiros séculos de colonização.

Como mencionado anteriormente trabalharemos aspectos indígenas


que influenciaram a língua, aparte da língua Tupi-guarani que influenciou o
português na época da colonização, muito utilizada pelos Jesuítas e implantada

401
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

no primeiro momento como uma língua geral que mais tarde foi substituída e
constituiu-se o português como língua oficial. Consequentemente com a
chegada dos portugueses os índios foram escravizados e logo após os negros
recém chegados da África.

As pesquisas de Nina Rodrigues feitas na Bahia mostram que a


população africana que desembarcou em portos brasileiro tinha nacionalidade
de varias localidades da costa de Angola e de outras colônias africanas, assim
o Brasil possuía em seu território varias etnias africanas, dentre elas podemos
citar dialetos de origem do Congo, banta, nagô e iorubá. Nesse trabalho
propomos a identificar e analisar léxicos de origem iorubana presentes nos
pontos, cantados nas liturgias umbandistas, enfatizaremos a língua; ainda
mencionando Rodrigues apud Castro (p.51) a língua iorubana já
impressionava, ele relata que a língua “gozava de prestígio da escrita e de
chegar a ser ensinado a negros baianos que aprenderam a ler e a escrever
essa língua em Lagos (Nigéria)”, esse dialeto era mais presente nos cultos
africanos, no Candomblé em especial que já era cultuado na Bahia e
apresentava em sua liturgia termos iorubanos.

Apesar de exaltar a língua iorubá não podemos deixar de mencionar


que as outras línguas de origem africanas são extremamente importantes para
a formação lingüística do país; Rodrigues limitou as suas pesquisas a Salvador
(Bahia) e, ao falar da língua ioruba, se refere à do candomblé nagô-queto: “Os
termos em iorubá estão associados ao candomblé nagô-queto, cujas praticas
litúrgicas se valem de um repertorio lingüístico de larga procedência africana,
mais aparentemente de base ioruba”. (CASTRO, 2001, p. 52)

O fato de que a língua iorubá de procedência lingüística africana


prevalece nas praticas litúrgicas do Candomblé permite entender a importância
das religiões afro-brasileiras e que através delas antropólogos e lingüistas
concentraram suas observações nos terreiros, por metodologias que
desenvolveram e interpretaram aportes africanos no Brasil, numa perspectiva
iorubana, que constatou uma formação histórica do português do Brasil.

________________________________________

402
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

29 BASILIO, Margarida (2004). Formação e classes de palavras do português do Brasil. São


Paulo: Contexto.

30 CASTRO, Yeda Pessoa de (2001). Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-


brasileiro. 2ª Ed. Topbooks.

Alguns pesquisadores acreditam que a língua sagrada das religiões afro-


brasileiras é o nagô, por ser um dialeto muito utilizado para denominar os
falares africanos nos terreiros de Candomblé. Esse falar africano da língua
nagô encontrada nos terreiros tem um significado importante dentro do culto,
por se tratar de um dialeto genérico que denomina os falares africanos, ainda
mencionando a autora Castro (2001, p.68) faz uma síntese enquanto a
utilização interna apresentada pela tradição etnoreligiosa colocando-a como; 1)
um sistema de crenças e ritos ancestrais africanos de tradição iorubá,que é
cultivado por grupos inclusivos de natureza etnoreligiosa,conhecido por “nação
de Candomblé”, no caso em questão, denominada nagô-queto; 2) um sistema
lexical baseado em diferentes línguas africanas que foram faladas no
Brasil,com predominância de um repertorio de base iorubá,meio de expressão
simbólica dos valores religiosos tradicionais do grupo,sem que esse
conhecimento signifique competência lingüística em iorubá,muito menos em
iorubá moderno.Procedimentos assim ocorrem em outras nações de
Candomblé,na nação nagô-iorubá canta-se para os orixás.

Enquanto ao léxico é imprescindível identificar que a língua portuguesa


européia sofreu “aceitação” de algumas palavras que se incorporaram ao falar
e a escrita, pode-se salientar palavras como, abadá, axé, orixá, Xangó e
Iemanjá que possuem base iorubá. Essas palavras de herança africanas
incorporaram-se ao falar e a escrita do português,assim como outros lexemas e
vocábulos provenientes de nações africanas,sem considerar sua variedade
étnica, lingüística e cultural que se fundiram à cultura européia e ameríndia.
Formando uma sistematização de aportes lexicais no grau de integração
morfossintático e fonológico do português do Brasil.

Com a fundação da Umbanda, na década de 1930, percebe-se a


influencia das línguas presente no culto.

403
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3 – ANÁLISE DE DADOS

3.1 Aportes lexicais africanos nos pontos de pretos velhos e orixás da


Umbanda

Os aportes lexicais encontrados nos pontos de pretos velhos e orixas


da Umbanda vêm carregados de procedência lexical da língua nagô-queto
(yorubá). Para identificar aportes lexicais no culto começaremos explicando a
origem da palavra “orixá” dentro do culto, citando uma passagem do livro de
Junior (2011, p.21) escrita pelo médium Norberto Peixoto e ditado por Vovó
Maria Conga e Ramatís, percebe-se a importância de entender sobre a liturgia
dos pontos, pois: o orixá de cada individualidade não tem a ver com uma
entidade extracorpórea, mas com uma essência primordial e básica, energética
e vibratória, que influencia o modo de ser e o destino de cada espírito,seja
encarnado ou desencarnado,demarcando profundamente a mônada (centro
vibratório do espírito) do ente individualizado. Assim etimologicamente
entender que orixá significa a divindade que habita a cabeça (em ioruba, ori é
cabeça, enquanto xá,rei,divindade),associado ao diversificado pateão africano.

A liturgia traz a influencia, essência e a força desses orixás através dos


pontos cantados e riscados, estes são carregados de energia vibratória,
emanadas através dos tambores, palmas e da melodia das letras encontradas
nos textos. Esses vocábulos de origem africana são perceptíveis e cada orixá
relaciona-se a pontos de sua natureza os quais também são pontos de força de
sua atuação no terreiro.

Dentro do pateão africano pode-se caracterizar mais de 400 orixás


conhecidos na tradição iorubá, as diferentes concepções e qualidades de cada
entidade, existem na Umbanda vários orixás, mas analisaremos os pontos dos

404
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

mais conhecidos que são: Oxalá, Oxossi, Oxum, Iemanjá, Xangó, Ogum,
Obaluaiê, Iansã, Nana, Exu e os Ibejis. E os pretos velhos da linha das Almas.

______________________________

31 INÁCIO, Ângelo [espírito] (2006). Tambores de Angola: romance mediúnico. [Psicografado


por Robson Pinheiro]. 2ª ed. Contagem: Casa dos Espíritos.

32 Junior (2011, p.21)

A liturgia religiosa da Umbanda traz em seus pontos, aportes lexicais com


características funcionais que identificam a identidade que cada ponto possui sobre o
determinado orixá, linha falange ou legião.

Definição dos pontos dos orixás e analise de seus nomes,


característica iorubana de Oxalá (Ori: luz, reflexo; Xá:senhor, fogo; Lá: Deus,
divino) assim Orixalá: a luz do senhor Deus; Iemanjá (Ye: mãe, principio
gerante; Man: mar, água, Lei das Almas; Yá: matriz, maternidade) a senhora da
vida,as demais iabás Oxum,Iansã, e Nana pertencem a mesma linha de
Iemanjá; Xangô (Xá:senhor,dirigente;Angô:raio,alma) senhor dirigente da
alma;Ogum (Og:gloria,salvação;Aum:fogo,guerreiro) o guerreiro cósmico
pacificador,o fogo da gloria;Oxossi(?);Yori (Yo:potencia,ordem,principio;
Ri:reinar,iluminado; Ori:luz,esplendor) potencia dos puros,potencia da pureza.

Podem-se caracterizar as funções dos pontos, à parte da identificação


de vocábulos aportes lexicais iorubas, conforme demonstram os Quadros 2 e 3:

Quadro 2: Funções dos Pontos Cantados na Umbanda (com seus respectivos


orixás) e o aporte lexical

função ORIXÁ

identidade Oxalá, Iemanjá, Oxum, Iansã, Nanã, Xangó, Ogum, Oxossi, Ibejis,
Obaluaê

proteção Oxalá, Iemanjá, Oxum, Nanã, Ogum, Oxossi

saudação Oxalá, Oxum, Iansã, Nanã, Xangó, Oxossi, Ibejis, Obaluaê

respeito Oxalá, Oxum, Iansã, Nanã, Xangó, Oxossi, Ibejis, Obaluaê

vencer Iemanjá, Oxum, Ogum, Ibejis

405
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

demanda

canto de Ibejis, Obaluaê, Xangô, Obaluaê


chegada

canto de subida

invocação Iemanjá, Xangó, Obaluaê

oferenda Ibejis, Iemanjá

Quadro 3: Funções dos Pontos Cantados na Umbanda (com seus respectivos


pretos velhos) e o aporte lexical

função PRETO VELHO (NP) PRETA VELHA (NP)

identidade O8, 03, 04, 02, 09, 12, 13, 16, 07, 10, 14, 15, 17, 18, 21, 24,27,
20,22, 23, 24, 25, 27, 28, 29, 28, 32, 34, 36, 38, 39, 43,45
30, 31, 36, 37,39, 40, 41, 42,
43, 45, 46, 47, 48, 49,50

proteção 24, 28, 44, 48,50 01, 15, 17, 19, 24, 28, 34,44

saudação 24,29, 30, 35, 36, 39, 40, 41,42, 24,32, 35, 36, 38, 39,43
43, 47, 49,50

respeito 13, 29, 31, 36, 39, 40, 41, 34, 36, 38,39
42,48, 49,50

vencer 11, 20, 24, 25, 37, 39, 43,44, 05, 06,15, 18, 24, 32, 34, 38, 39,
demanda 46,48 43,44

realizar 23 09,10
feitiçaria

canto de 24, 27, 32, 43,45 24, 27, 43,45


entrada

canto de subida 19 21

correr gira 37, 45,48 45

invocação 24 24

A língua do povo de santo tornou-se um centro de resistência e defesa


dos valores e da cultura afro-brasileira no Brasil. Cada terreiro é dirigido por

406
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sacerdotal (pai ou mãe de santo), descendente de uma nação uma norma de


comportamento religioso idealizado aparte de arquétipos africanos. Cada
liturgia adota um ritual padrão adequado a origem de sua divindade padroeira
(o orixá chefe do terreiro), aparte de um repertorio linguístico de base africana
encontrada em seus pontos.

A linguagem cerimonial carrega particularidade do vocabulário de sua


nação de origem, no caso da Umbanda a nação nagô-keto (ioruba). Como
afirma Castro (2001, p. 99), entre os aportes lexicais mais frequentes figuram
formas de saudação, reverência, permissão, autorização, benedição; formas de
exorcismo, interdição, consentimento, negação; nomes referentes a objetos,
substâncias, locais, flora, fauna, conzinha ritualística; nomes de parentesco
religioso e da hierarquia de cada grupo; nomes iniciáticos, o nome-de-santo;
nome das divindades e saudação respectivas. Todos esses itens possuem
aspectos linguísticos morfossintaxe e fonológicos integrados ao português de
santo através de expressões ou cânticos da Umbanda.

Os aportes são “empréstimos” linguísticos que integram uma língua


existente (aqui o Português) recebendo e utilizando uma unidade ou traço
linguístico existente (aqui, cada língua africana) que antes não possuía os
vocábulos orixá, samba, dendê, calunga, muamba, zumbi e muitos outros
encontrados na língua de santo. Para denominar uma noção ou objetos são
chamados de decalque, destacando e manifestando adição de vocábulos de
uma língua para a outra, como acontece com a palavra despacho, cujo sentido
de envio tomou talvez aquele de oferenda por decalque dos itens africanos
bozó e ebó (fon-iorubá), Castro (2001, p.106) afirma que existem os seguintes
tipos de aportes vocabulares: os simples (samba, ialorixá), compostos (Ganga
Zumba, Nanã Borocó); decalques ou aportes por tradução: simples (despacho,
terreiro), composto (mãe-de-santo, língua-de-vaca) e os Híbridos: simples por
derivação nominal (andu/dendê [zeiro]), por derivação verbal ([des]
ponga/bunda); os compostos (Xangó/Oxum [menino/menina],azeite-de/escola-
de[dendê/samba]).

São vocábulos encontrados na língua portuguesa e que derivados das


línguas africanas trazidas para o Brasil e presentes na língua de santo, como

407
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

se constata através dos cantos e da comunicação usual participativa do


repertorio lingüístico do domínio religioso nos terreiro. Os pontos de orixás e
pretos velhos acima citados comprovam a realidade litúrgica e sua função
característica da divindade a que se canta.

O contexto sociocultural encontrado nos terreiros também ocasiona


transformações semânticas frequentes e os casos mais encontrados é a
polissemia e a homonímia, este segundo (HAUGEN, 1950 apud CASTRO,
2001, p.111-12), uma extensão lógica e gradual no sentido do termo importado,
como no seguinte exemplo ebó (kwa) e bozó (banto), oferenda propiciatória
enviada aos deuses, e despacho (português), o envio. Que passaram a ser
denominadas de “feitiçaria”, uma conotação pejorativa e anti-religiosa
fortalecida sociologicamente através da ideologia do cristianismo. Alguns
pontos de pretos velhos analisados encontram em sua liturgia essa
terminologia discursiva produzindo um salto no sentido do item importado, na
homonímia parecem ocorrer com menor freqüência em termos como xibungo e
benjamim, esse em direção contraria possui vocábulos do português que
sofrem alteração provocada pela importação africana, que quer dizer “o mais
moço dos filhos”, perdeu esse sentido por influência da palavra banta caçula,
mais corrente e socializadora.

Os pontos de pretos velhos apresentam um falar rudimentar, por ser o


mesmo utilizado na época da escravidão; o português dos vovôs e vovós da
Umbanda traz fragmentos e vocábulos de um extinto dialeto crioulo de base
banta que emergiu das senzalas e não atribuiu, portanto, origem sobrenatural.

A liturgia religiosa preservou aspectos das línguas africanas e através


desses vocábulos pode-se analisar e identificar aportes lexicais de procedência
iorubá, permitindo apontar expressões originárias e carregadas de sentido que
transmitem a realidade discursiva de um povo ou nação.

3.2 Análise do discurso religioso da Umbanda a partir da letra de pontos


de pretos velhos e orixás

408
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Os orixás e pretos velhos são entidades que vem a terra transmitir


ensinamento e sabedoria ao ser humano. São ancestrais divinizados, que
incorporam conforme a ancestralidade, as afinidades e a coroa de cada
médium. Esse povo quando chega ao terreiro vem trabalhar em prol de ajudar
a evoluir o espírito e passar a sabedoria medicinal popular. São guias e
protetores na Umbanda, eles são espíritos desencarnados de muita luz. Como
se pode perceber no ponto abaixo, em que diz:

________________________________

33 CASTRO (2001, p. 99)

34 CASTRO ( 2001, p.111-112)

Preto Velho senta no toco

E faz o sinal da cruz

Pede proteção a Zambi

Para os filhos de Jesus

Cada conta do seu rosário

É um filho que ai está

Se não fosse os Pretos Velhos

Não sabia caminhar (BARBOSA JR., 2011, p.83)

Através dos ensinamentos e da proteção, como nos revela o


ponto, os pretos velhos ensinam o caminho da verdade, bondade, amor e
humildade. Os pontos revelam:

A) identidade

a) se é um (a) preto (a) velho (a):

409
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

01) A vovó me deu

02) Preto Velho

04) Sou Preto, sou Preto

05) A fumaça do cachimbo da vovó

06) Vovó cochila

14) Vovó não quer

15) Lá vem vovó descendo a serra

16) Tem Preto Velho no gongá

17) Preta Velha que fuma cachimbo

19) Oh, já vai Preto Velho

34) Sou baiana, sou baiana de terreiro

38) Chega vovó, chega vovó;

b) o povo ou nação, seus chefes ou simplesmente porque traz seu


nome no ponto:

03; 23) Benedito é Preto, calunga

07) Vovó Catarina

09) Ô Zé Miromba

10) Vovó Luiza que chora miromga

11) O meu Pai Antônio

12) Pai Joaquim ê ê

13) Pai Joaquim cadê Pai Mané

18) Filha de Congo é Maria Redonda

20) Pai Benedito

21) É vovó Carlota

27) Arriou na linha de Congo

28) Com todo povo de Angola

29) Aruê minha São Benedito

410
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

30) E ora vamos sarava Seu Rei de Congo

31) São Benedito na linha de Zambi

32) Preta Mina que vem lá da Bahia

34) Eu sou baiana,sou baiana de terreiro

37) Meu Santo Antônio pequenino

40) Minha Pai é Congo

42) São Benedito é santo maior

43) Povo da Costa é povo bom

45 Congos e Cambindas

46) Pai Antônio é um Preto

47) Ô Mujongo

48) Santo Antônio era menino

49) Sarava seu Jacutá

50) Pai Antônio quando vem da Bahia

Alguns vocábulos identificam se o ponto é de saudação, proteção,


vencer demanda, realizar feitiçaria, canto de subida, canto de chegada,
respeito ou de correr gira, através destas funções é perceptível a analise e
identificar a sua funcionalidade na invocação da entidade ou guia. O ponto é
hino ou uma oração que quando cantado revela características do preto velho e
os objetos que ele traz para auxiliar e atender as pessoas.

Em alguns trechos, percebe-se essa relação, ao saudar um guia existe


uma formalidade de respeito e carinho pela permanência dele no terreiro,
começaremos a definir cada ponto:

B) saudação:

29) Aruê minha São Benedito

30) E ora vamos sarava seu Rei de Congo

32) Para salvar nossos irmãos

35) Minha galinho cantou

36) Samba rê,rê Maxicorê

411
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

38) Chega vovó é de Ganga Maior

39) Que tem orobi, que tem orobô

40) É Rei de Congo

41) O poder de Nosso Senhor

42) São Benedito é santo maior

43) Povo da Costa é povo bom

47) Olha Mujongo no mar

49) Sarava, meu Pai Antônio

50) Foi nosso Pai Oxalá.

O discurso presente nestes pontos permite identificar a saudação e a que povo


pertence a entidade: ao Povo da Costa chefiada por Pai Cambinda; ao Povo do
Congo, por rei Congo; ao Povo de Angola, por Pai João de Angola; ao Povo de
Benguela, por Pai de Benguela; ao Povo de Moçambique, por Pai Jerônimo de
Moçambique; ao Povo Luanda, por Pai Francisco de Luanda; ao Povo de
Guiné, por Zum Guiné ou Pai Antônio de Guiné.

C) Objetos e mandingas que os pretos velhos trazem para Proteção:

01) Um galhinho de arruda

15) Ela traz a pemba

17) Preta Velha que cheira rapé

19) Cobrindo com o véu

24) Força divina

28) Com Deus e Nossa Senhora

34) Com meu balaio pra salvar

44) Á procura de uma rosa

48) Corre, corre Santo Antônio

50) Ele traz Estrela Guia no peito.

D) Alguns utensílios, objetos e plantas usados para Vencer demanda:

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

11) Ele vence demanda

15) Ela traz a pemba

18) Quem combate demanda

20) Cortando guiné

24) Vem nós ajudar

25) Quebra coco

32) Traz o rosário de Maria

34) Sou baiana, sou baiana feiticeira

37) Correr Umbanda sem parar

39) Que tem orobi, que tem orobô

43) É pra todo mal levar

44) Á procura de uma rosa

46) Que não bambeia

48) Eu quero ver quem corre mais.

E) Realizar feitiçaria

09) Tocando macumba

10) Vovó Luiza que chora mironga

23) Se ele é feiticeiro, calunga.

F) Ponto de Subida:

19) Oh já vai Preto Velho

21) Que já vai embora.

G) Ponto de Chegada:

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

24)Vem cá, vem cá, vem cá

27)Arriou na linha de Congo

32) Preta Mina que vem lá da Bahia

43) Ora baixa meu povo baixa

45) Todos vem pra trabalhar.

H) Respeito:

13) Não bata com o pé

29) Auê, auê, auê

31) São Benedito na língua de Zambi

34) Com minha faca na cintura eu desafio

36) Minha sete zi cambone/mucama

38) Chega vovó é de Ganga Maior

39) Macumba ioiô

40) É Rei de Congo

41) O poder de Nosso Senhor

42) São Benedito é santo maior

48) Corre, corre Santo Antônio

49) Ele é dono de terreiro

50) Pai Antônio quando vem na Bahia.

I) Correr Gira:

37) Corre Umbanda sem parar

45) Todos vem pra trabalhar

48) Corre, corre Santo Antônio.

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Os pontos analisados revelam segredos e a magia existente nas casas


de Umbanda através da sabedoria dos Pretos Velhos quem vem trabalhar
cantarolando sua mirongas e feitiçarias. Assim realiza suas giras e protege as
pessoas vencendo as demandas enviadas por seus inimigos, mas os pontos
também são cantados para receber as entidades de luz, normalmente esses
pontos são cantados de forma espontânea, o guia ensina os pontos que se
espalham ligeiramente por vários terreiros e são sempre cantados em
português, ocorrem casos em que o guia (pretos velhos) canta os em sua
língua de origem por não domina a língua portuguesa.

Os pontos de Umbanda na maioria das vezes são pequenos. Não


existe um ponto para cada guia, mais cada entidade tem um ponto preferido ou
mais cantado em sua chegada, representam à força do orixá, na falange dos
Pretos Velhos aquele ponto tem uma função iluminadora que transmite uma
determinada mensagem. Contêm aportes lexicais de origem africana (mironga,
gongá, macumba, calunga, miromba, pemba, dumba, cafio, rapé, marafo,
congo, sarava, orobô, cambinda, marola, mujongo, guiné) todos são vocábulos
encontrados na língua portuguesa e que derivam das línguas africanas trazidas
para o Brasil e presentes na língua de santo, como se constata através dos
cantos e da comunicação usual participativa do repertorio linguístico do
domínio religioso nos terreiro. Os pontos de orixás e pretos velhos acima
citados comprovam a realidade litúrgica e sua função característica da
divindade a que se canta.

Assim como os pontos de caboclos e pretos velhos, os orixás também


possuem hinos próprios que denominam e caracterizam a sua relação e decida
no terreiro, qual é a função do ponto. Por existirem vários, foi analisado apenas
um ponto de cada orixá, identificando as funções, pois elas se denominam
como: abertura de gira, defumação, bater cabeça, elevação, chamada,
despedida e encerramento. Por não estarmos analisando os diversos pontos
existentes na Umbanda não foi possível caracterizar cada função destas citas,
apenas aquelas relacionadas aos pontos de alguns orixás e dos pretos velhos.

Assim como os dos pretos velhos, os de orixás funcionam revelando:

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A) Identidade: Oxalá (Mensageiro de Oxalá), Iemanjá (Pra Iemanjá),


Oxum (É d’Oxum), Iansã (Meu Pai veio de Aruanda), Nanã (Pra toda a sua
nação iorubá), Xangó (Xangô, Xangô, meu Pai), Ogum (Mas Ogum ta de
frente), Oxossi (Oxossi, filho de Iemanjá), Ibejis (Cosme e Damião), Obaluaê (O
meu pai Oxalá);

B) Proteção: Oxalá (A ti peço proteção), Iemanjá (Todas as forças do


mar), Oxum (A força que mora n’água), Nanã (Ela vem no som da chuva),
Ogum (Tenho o meu corpo fechado), Oxossi (A jurema é a árvore sagrada).

C) Saudação: Oxalá (Meu divino Espírito Santo), Oxum (Eu vou


navegar), Iansã (Sarava Iansã), Nanã (Oxumarê me deu dois barajás), Xangó
(Xangô, Xangô, meu Pai), Oxossi (Divindade do clã de Ogum), Ibejis (Bate
palma sereia do mar), Obaluaê (Atotô Obaluaê).

D) Respeito: Oxalá (Rezo esta prece), Oxum (Não faz distinção de cor),
Iansã (É Xangô e iemanjá), Nanã (A Velha deusa da águas), Xangô (Xangô,
Xangô, meu Pai), Oxossi (Divindade do clã de Ogum), Ibejis (Vadeia no mar),
Obaluaê (É o Rei).

E) Vencer Demanda: Iemanjá (E com todos os encantos), Oxum (Toda


essa gente irradia magia), Ogum (Querem destruir o meu reinado), Ibejis
(Vadeia Cosme, vadeia), Obaluaê (Venha me valer).

F) Canto de Chegada: Xangô (Xangô, Xangô, Xangô), Ibejis (Damião


mandou chamar), Obaluaê (Atotô Baba).

G) Invocação: Iemanjá (Eu vou a praia riscar ponto na areia), Xangó


(Xangô, Xangô, Xangô), Obaluaê (O meu pai Oxalá)

H) Oferenda: Iemanjá (Levar botões de rosa/pente de ouro), Oxossi


(Axoxó, feijão preto, camarão, amendoim), bejis (vem comer caruru/Duas
camisinhas azul).

Esses são os pontos da Umbanda, carregados de aportes vocabulários


de origem africana que permitem a invocação dos orixás através de simbologia
predominantemente rica de mistério e magia. Os pontos são considerados
orações, hinos que transmitem um discurso religioso, a liturgia, melodia dos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

pontos podem ser comparados com poemas literários, por ser praticado desde
o Renascimento, goza de considerável liberdade formal e guarda visíveis
marcas de aliança originaria entre a poesia e a música, podendo, inclusive, ser
cantado, ao contrario da ode, como afirma Moisés (1978, p.274-5).

Tudo depende da etimologia religiosa e como esses elementos


clássicos, recolhem formas de invocação e saudação que entraram facilmente
na pratica de devoção e são de fácil memorização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho permitiu esclarecer e conhecer mais sobre essa religião


que ainda sofre preconceitos. Saber como se define as linhas da Umbanda,
quais orixás regem cada uma delas e como se subdivide as falanges e legiões.
O objetivo era identificar e analisar os pontos de caboclos e orixás, mas por ser
uma religião nascida nas três matrizes distintas: a ameríndia, a cristã ocidental
de linha kardecista e do Catolicismo romano; a afro-brasileira, representada
pelos orixás do Candomblé em nosso país. Não foi possível desenvolver um
trabalho que abarcasse todos os pontos e falange existentes na umbanda, por
serem diversos pontos, as pesquisas ficaram limitadas a uma classe de orixás,
o que foi uma difícil escolha porque todos possuem uma base litúrgica rica de
aportes, vocábulos e entidades que merecem ser exploradas em seu discurso.

Na liturgia da Umbanda, foram apontados apenas aportes lexicais


africanos na formação do léxico do português do Brasil, dentro dos pontos dos
orixás como: Pretos Velhos. Esses pontos revelaram a essência e a ideologia
da religião, pois em seu discurso existem vocábulos que não são utilizados no
cotidiano, apenas na linguagem de santo do português. Onde o antropólogo
Nina Rodrigues e outros pesquisadores definem como o berço do nosso país,
por existirem as raízes socioculturais de um povo. A Umbanda tem fundamento
e características que definem essa evolução ao logo do tempo, deixando de ser
considerada uma religião do baixo espiritismo e conservando sua filosofia,
ideologia e hoje ser considerada uma religião afro-brasileira.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A Umbanda possui história e uma grandeza espetacular, dentro do


tripé base que alicerça está pratica religiosa: amor, caridade e humildade. São
transmitidos através da experiência dos preto-velhos e caboclos. Essa
experiência só é adquirida pelo umbandista de acordo a sua assiduidade no
terreiro/centro,assim caboclos e pretos velhos podem transmitir conhecimento
e sabedorias existente em suas ervas e nos conselhos.O que são os pontos
riscados e cantados, em que momento é utilizado nas cerimônias, desde a
invocação ate a subida dos orixás e guias.Mas a sua liturgia possui mais
elementos que definem o discurso religioso.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Wlamira R. de; FILHO,Wagner Fraga (2006). Uma história


do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais/ Fundação
Cultural Palmares.
AZEVEDO, Janaina (2008). Tudo que você precisa saber sobre Umbanda. São
Paulo: Universo dos Livros.
BARBOSA JR, Ademir (2011). Dermes. Curso Essencial de Umbanda. São
Paulo: Universo dos Livros.
BASILIO, Margarida (2004). Formação e classes de palavras do português do
Brasil. São Paulo: Contexto.
BASTIDE, Roger (1975). As religiões africanas no Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Pioneira.
CÂMARA CASCUDO, Luiz da (1999). Dicionário do folclore brasileiro. 9ª ed.
Rio de Janeiro: Ediouro.
CASTRO, Yeda Pessoa de (2001). Falares Africanos na Bahia: um vocabulário
afro-brasileiro. 2ª Ed. Topbooks.
CORRAL, Janaina Azevedo (2010). Sete linhas da umbanda. São Paulo:
Universo dos Livros.
D’ARRUDA, Gisela (2010). Umbanda Gira/Gisela d’Arruda. Rio de Janeiro:
Pallas.
D’ÓSÓSI, Gilberto; Tata (2010). Omolokô: uma nação. São Paulo: Ícone.
FERNANDES, Cleudemar Alves (2008). Analise do Discurso: reflexões
introdutórias, São Carlos: Editora Claraluz, 2ª ed.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

SILVA, Vagner Gonçalves da. Artigo definido na Revista Historia viva: grandes
religiões cultos afro. BOLETIM. São Paulo: DUETTO, 2001, nª 6,p.34-39.
ILARI, Rodolfo (2003). Introdução ao estudo do léxico: brincando com as
palavras, 2ª ed. São Paulo: Contexto.
INÁCIO, Ângelo [espírito] (2006). Tambores de Angola: romance mediúnico.
[Psicografado por Robson Pinheiro]. 2ª ed. Contagem: Casa dos Espíritos.
LUCIANO, Gersem dos Santos (2006). O índio brasileiro: o que você precisa
saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/ SECAD/
LACED/ Museu Nacional.
PERUCCE, Antônio Flávio (2005). “As religiões no Brasil.” In: GARDER.
Jostein; HALLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 300-23.
PRANDI, Reginaldo (2003). As religiões afro-brasileiras e seus seguidores.
Civitas, 3(1). Porto Alegre: junho.
RAMOS, Artur (2005). “Linha da Umbanda”. In. CANEIRO, Edson (Org.).
Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 269-72.
SOUSA, Ana Lucia Silva [et al.] (2005). De olho na cultura: pontos de vista afro-
brasileiros. Salvador: Centros de Estudos Afro-Orientais/ Fundação Cultural
Palmares.

APÊNDICE

“As palavras foram sempre invertidas pelas classes superiores, não indicam um
significado, impõem uma interpretação”.

Michel Foucault

“Para bem conhecer uma coisa, é preciso tudo ver, tudo aprofundar, comparar
todas as opiniões, ouvir os prós e os contras”.
Allan Kardec

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[Revista Espírita, setembro de 1866]

HINO DE UMBANDA

Refletiu a luz divina


Com todo o seu esplendor
Vem do reino de Oxalá
Onde há paz e amor
Luz que refletiu na Terra
Luz que refletiu no mar
Luz que veio de Aruanda
Para tudo iluminar
Umbanda é paz e amor
Um mundo cheio de luz
É força que nos da vida
E a grandeza nos conduz
Avante filhos de fé
Com a nossa lei não há
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá

ANEXOS

Anexo A: Pontos de Orixás da Umbanda

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

01 Ponto de Oxalá

Pombinha branca

Pombinha que corta o ar

Meu divino Espírito Santo

Mensageiro de Oxalá

Reza esta prece

A ti peço proteção

Para os filhos de Umbanda

Paz, Amor e União

02 Ponto de Iemanjá

Eu vou à Praia Grande

Eu vou pro mar

Levar botões de rosa

Pra Iemanjá

Eu vou à praia

Vou riscar ponto na areia

Vou pedir à Mãe Sereia

Todas as forças do mar

Que nos proteja

Com seu manto todo branco

E com todos os encantos

Que tem as das do mar

421
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Eu vou à praia vou riscar meu ponto na areia

E pedir à Mãe Sereia

Pra ajudar a quem tem fé

Pente de ouro

Oferta a mãe das águas

Pra que cure as minhas magoas

Poderosa como é

03 Ponto de Oxum

É d’Oxum

Homem, menino, menina, mulher

Toda essa gente irradia magia

Presente na água doce

Presente na água salgada

E toda cidade brilha

Seja tenente ou filho pescador

Ou um importante desembargador

Se der presente é tudo uma coisa só

A força que mora n’água

Não faz distinção de cor

E toda cidade é d’Oxum

Eu vou navegar

Eu vou navegar nas ondas do mar

Eu vou navegar

04 Ponto de Iansã

422
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Deixa a gira girar

Meu pai veio de Aruanda

E a nossa Mãe é de Iansã

O gira deixa a gira girar

Deixa a gira girar

Sarava Iansã

É Xangô e Iemanjá, iê

Deixa a gira girar

O gira, deixa a gira girar

05 Ponto de Nana

Oxumarê me deu dois barajás

Na festa de Nana Burukô

A velha deusa das águas

Quer mungunzá

Seu ibiri enfeitando com fitas e buzius

Um ponto pra assentar

Mandou cantar

Ê salubá!

Ela vem no som da chuva

Dançando devagar se ijexá

Senhora da Candelária, aba

Pra toda a sua nação Iorubá

423
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

06 Ponto de Xangô

Xangô, Xangô, Xangô

Xangô, Xangô, meu Pai

O senhor mesmo disse

07 Ponto de Ogum

Querem destruir o meu reinado

Mas Ogum ta de frente

Mas Ogum ta de frente

Eu sou filho de Ogum

Tenho o meu corpo fechado

Eu sou filho de Ogum

Mal nenhum vai virar pro meu lado

08 Ponto de Oxossi

Oxossi,filho de Iemanjá

Divinda do clã de Ogum

É Ibualama,é Inlé

Que Oxum levou pro rio

E nasceu Logunedé!

E sua natureza é de lua

Na lua Oxossi é Ode Odé Odé Odé Odé

Rei de Keto caboclo da mata Odé Odé

Quinta-feira é seu ossé

424
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Axoxó, feijão preto, camarão, amendoim

Azul e verde, suas cores

Calça branca rendada

Saia curta estampada

Ojá e courança prateada

Na mão ofá, iruquerê

Okê, okê, okê aro, okê

A Jurema é a árvore sagrada

Okê aro,Oxossi,okê okê

Na Bahia é São Jorge

No rio,São Sebastião

Oxossi é quem manda

Na banda do meu coração

09 Ponto de Obaluaê

O meu pai Oxalá

É o rei

Venha me valer (bis)

E o velho Omulu

Atotô Obaluaê. (bis)

Atotô Obaluaê

Atotô Baba,

Atotô Obaluaê

Atotô é Orixá.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Anexo B: Pontos de Pretos Velhos da Umbanda


01

Um galho de arruda

A vovó me deu

Um galhinho de arruda

Pra me proteger

Eu agradeço a essa linda Preta Velha

Um galhinho de arruda

Ela me ofereceu

Eu agradeço a essa linda Preta Velha

Pois em suas orações

Ela nunca me esqueceu

02

Preto Velho
Vem de Minas
Caminhou o ano inteiro
Carregou o ano inteiro
Carregou sete calungas
Para salvar o Terreiro
Êêêê
Êêêêa
A banda é boa
Banda de Minas Gerais

03

Benedito é Preto,calunga
Eu também sou Preto ,calunga
Ora viva os Pretos,calungas
Eu também sou Preto,calunga
A minha Terra é de Preto,calunga
Eu também sou Preto ,calunga

04

Sou Preto, sou Preto

426
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Sou preto só na cor


Na alma,na alma
Sou filho de Nosso Senhor

05

A fumaça do cachimbo da vovó


Sobe bem alto
Só não ver quem não quer
O cachimbo da vovó tem mironga
Na barra da saia
Na sola do pé

06

Vovó cochila
Seu cachimbo cai no chão
Vovó cochila
Seu cachimbo cai no chão
É no sopro da fumaça
Que seus inimigos vão
É no sopro da fumaça
Que seus inimigos vão

07

Vovó Catarina
É dona do reino
Vovó Catarina
É dona de gongá
Ela já está no Terreiro
Ora vamos todos sarava

08

Sou Preto velho macumbeiro


Que me importa que falem de mim
Sou Preto velho macumbeiro
Com meu pai e minha mãe eu aprendi
Sou Preto velho macumbeiro
Minhas filhas cadê minha gongâ
Sou Preto velho macumbeiro
Minha filha olha cobra coral

09

O Zé Miromba
Cadê sua duma
Ta lá nas matas
Tocando macumba

10

Vovó Luiza que chora mironga


Chora Luiza,mãe de Benguela

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Vovó Luiza que chora mironga


Chora Luiza,mãe de Benguela
Agora que eu quero ver
Vovó Luiza com a cuia na mão
Apanhando água no rio Jordão

11

O meu Pai Antônio


O meu Pai Antônio
É um preto de fama
O meu Pai Antônio
O meu Pai Antônio
Ele vence demanda
Eu tenho fé
Na Virgem Maria
O meu Pai Antônio
Seja o nosso guia

12

Pai Joaquim ê ê
Pai Joaquim ê a
Pai Joaquim chegou de Angola
Pai Joaquim é de Angola,Angola

13

Pai Joaquim cadê Pai Mané


Ta lá nas matas apanhando guiné
Diga a ele que quando vier
Que suba as escadas
Não bata com o pé

14

Vovó não quer


Casca de coco no Terreiro
Vovó não quer
Casca de coco no Terreiro
Traz lembranças com saudades
Dos tempos do cativeiro

15

Lá vem Vovó descendo a serra


Com sua sacola
Ela trás a pemba
Ela trás a toalha
Ela vem de Angola
Eu quero ver Vovó
Eu quero ver Vovó
Eu quero ver filho de Umbanda
Tem querer

428
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

16

Com o poder de minha Pai


Minhas cafio
Não há quem possa duvidar
Minhas cafio
Foi o poder que Deus te deu
Mnhas cafio
Ê, ê, ê, minhas cafio
Tem Preto Velho no gongá
Ê, ê, ê
Minhas cafio
Prá todos filhos sarava

17

Preta Velha que fuma cachimbo


Preta Velha que cheira rapé
Preta gosta de marafo
Preta Velha Saracondé
Ô, viva Saracondé
Ô, viva Saracondé

18

Quem vem lá
Quem combate demanda
Filha de Congo é Maria Redonda

19

Oh já vai Preto velho


Subindo pro céu
E Nossa Senhora
Cobrindo com véu

20

Na beira da praia
Cortando seu guiné
(bis)
Pai Benedito
Conhecido no Terreiro
Por gostar de moça branca
Amansador de feiticeiro

21

Filho de Umbanda
Por que tanto chora
Filho de Umbanda
Por que tanto chora
É vovó Carlota
Que já vai embora

429
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

....
Que já foi embora
22
Tatá na Aruanda
Eu na Calunga
(bis)
Olha quanta dumba

Zig, zig, zig

Eu sem nenhuma

23

Benedito é Preto, calunga

Mora no roseiral

Se ele é feiticeiro, calunga

Chefe de gongá

24

Bahia ou África

Vem cá, vem cá, vem cá

Força baiana

Força africana

Força divina

Vem nos ajudar

25

Na Bahia

Ninguém pode com baiano

(bis)

430
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Quebra coco

Arrebenta sapucaia

Vamos todos sarava

26

Oh meu Senhor do Bonfim

Valei-me São Salvador

Vamos salvar nossa gente

Povo da Bahia chegou

27

Arriou na linha de Congo

É Congo, é Congo aruê

Arriou na linha de Congo

Agora que eu quero ver

28

Eu corro a minha gira

Com Deus e Nossa Senhora

Eu corro a minha gira

Com todo povo de Angola

29

Aruê minha São Benedita

431
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A coroa de Zambi

Tem gongá

Auê, auê, auê

A coroa de Zambi

Tem gongá

30

E ora vamos sarava Seu Rei de Congo

E ora vamos sarava Seu Rei de Congo

Sarava ele pequenino que ele seja

Seu Rei de Congo ora vamos sarava

31

São Benedito na língua de Zambi

Também sabe ler ê,ê,ê,ê,ê

Se Mucambo é bom

Também sabe ler

(bis)

32

Preta Mina que vem lá da Bahia

Quem, quem

Traz o rosário de Maria

Quem, quem

É o rosário azul e branco

432
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Quem, quem

Para nossos irmãos

Quem, quem

33

Minha agulha, minha didá

Quem não tem agulha

Pra que quer didá

(bis)

Minha ponto é seguro no fundo do mar

Minha ponto é seguro Mamãe Iemanjá

Minha ponto é seguro no fundo do mar

Minha ponto é seguro meu Pai Oxalá

34

Eu sou baiana, sou baiana de Terreiro

Eu sou baiana, sou baiana feiticeira

Com minha faca na cintura eu desafio

Com meu balaio pra salvar

Todos meus irmãos

35

Minha galinho cantou

Minha galinho cantou

Minha galinho cantou

433
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Ki qui ri

Minha galinho cantou

36

Venho de longe

Venho de Minas

Samba rê, rê Maxicorê

Minha sete zi cambone

Minha sete zi mucama

Samba rê, rê Maxicorê

37

Meu Santo Antônio pequenino

Corre Umbanda devagar

Meu Santo Antônio pequenino

Corre Umbanda sem parar

38

Não tem saia, não tem saia

Não tem saia, mas tem paletó

Chega Vovó, chega Vovó

Chega Vovó é de Ganga Maior

39

434
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Na Bahia tem, que tem orobi

Que tem orobô

Que tem orobi, que tem orobô

Pimenta da Costa

Macumba ioiô

40

É Congo, é Congo, é Congo

É Rei de Congo

É Congo, é Congo, é Congo

Minha Pai é Congo

41

Olha branco que sabe ler

Olha branco que sabe escrever

Olha branco que ainda não sabe

Qual o dia que vai morrer

Olha branco que sabe, sabe

Olha branco que é sabedor

Olha branco que ainda não sabe

O poder de Nosso Senhor

42

Santo Antônio é santo de mesa

São Benedito é santo maior

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Quero ver, quero ver

Na mesa de Umbanda eu quero ver

43

Ora baixa meu povo baixa

Ora baixa devagar

Quando o povo chega no reino

É pra todo mal levar

Povo da Costa é povo bom

Ele é povo de maçada

Quando chega na Aruanda

Fica todo ensarilhado

44

Eu venho de longe

Sem conhecer ninguém

À procura de uma rosa

Que na roseira tem

45

Congo e Cambinda

Todos vem pra trabalhar

Olha Congo vem por terra

Cambinda vem pelo mar

436
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

46

O vento deu no mar

E a marola deu na areia

Pai Antônio é um Preto

Que não bambeia

47

Os quindins, os quindis, os quindins

Ô Mujongo

Olha lá no mar

Olha lá no mar ô Mujongo

Olha Mujongo no mar

A sua Terra é muito longe

Ô Mujongo

Ninguém pode ir lá

Ninguém pode ir lá, ô Mujongo

Olha Mujongo no mar

48

Santo Antônio era menino

Oi Benedito era rapaz

Corre, corre Santo Antônio

Eu quero ver quem corre mais

49

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Ele é dono de Terreiro

Já firmou gongá

Sarava meu Pai Antônio

Sarava meu Jacutá

50

Pai Antônio quando vem da Bahia

Ele traz Estrela Guia no peito

(bis)

Quem deu, quem deu

Quem deu, quem dará

Foi nosso Pai Oxalá

AGRADECIMENTOS

Primeiro agradeço a Deus, incomparável e inconfundível em sua infinita


bondade, me guiou, me protegeu, me deu força ao longo desta caminhada,
imprescindivelmente para que eu pudesse alcançar mais essa etapa em minha
vida.
A minha mãe Maria Ozanir Nunes Rodrigues de Araújo, in memoriam,
que apesar de não esta diariamente comigo apoiava os meus estudos.
Ao meu padrinho Adonias Xavier de Oliveira, in memoriam, e a minha
tia Maria Nunes, que apostaram nos meus ideais e me apoiaram,incentivando a
prosseguir na jornada.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A Médium Laurinda Antonia dos Santos e ao Babalaorixá e orientador


espiritual Jailson C. Miranda (Templo Umbandista Pai Oxalá) pela paciência em
esclarecer as duvidas, alertar sobre os riscos e caminhos em que deveria
concentra as minhas pesquisas.
Ao professor Dr. Ricardo Tupiniquim Ramos por ter acreditado e
apostado que seria capaz de desenvolver este trabalho, orientando com
dedicação e aceitando minhas limitações.
Ao mestre Zé Pelintra, Rei de Congo, Zé Carlos e demais orixás que
compartilharam de minha persistência em realizar este sonho, me direcionando
os caminhos que deveria trilhar para alcançar as respostas.
E a todos os meus irmãos, sobrinhos, primos e amigos que acreditaram
que conseguiria desempenhar uma meta, através dos estudos e da sabedoria
transmitida pelos orixás que amadurecem e enriquecem a cada dia as minhas
experiências sobre as riquezas que possui esta religião, que não se apaguem
da lembrança.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: A POTÊNCIA DA MULTIDÃO: DIÁLOGOS ENTRE


OS VETORES DA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA NA LITERATURA E NO
CINEMA BRASILEIRO E/ OU AFRICANO

PROPOSITORES: VANESSA BASTOS LIMA (UEPB)

Ementa:

Atualmente, podemos encontrar diversas narrativas literárias e

cinematográficas contemporâneas brasileiras e/ou africanas que possuem


como lócus as periferias dos grandes centros urbanos, entre outros tipos de

comunidades periféricas. Na maioria destas obras, podemos perceber uma

constante: a perspectiva do caráter múltiplo do espaço urbano e de seus

atores. Trata-se de narrativas, tanto na literatura quanto no cinema brasileiro e

ou/africano, repletas de personagens que trazem à baila discussões sobre a

relação negritude, pobreza e subalternidade/marginalidade, visando criticar, ou

por vezes, reafirmar velhos estigmas. E, para trilharmos os caminhos dessa

multiplicidade, é necessário analisar, além dos personagens principais que

compõe esse mosaico diverso na literatura e no cinema afro-brasileiro e /ou

africano, também os personagens secundários, por vezes esquecidos pela

crítica literária. É através desses personagens invisibilizados, marginalizados e

estigmatizados que encontramos terreno propício para nossas análises, de


modo a perceber a potência oralizante da multidão que povoa estas narrativas

literárias e cinematográficas.

440
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

OS CINEMAS AFRICANOS COMO PRODUTO DAS INDEPENDÊNCIAS: A


IMPORTÂNCIA DO FILME LA NOIRE DE... DE SEMBENE OUSMANE

MÁRCIO PAIM (UFBA)

As independências como ponto de partida para o entendimento do


cinema na África

O período compreendido entre as décadas de 1950 e 1975 está


marcado como uma fase de transformações sociais, políticas, econômicas,
culturais, que devem ser entendidas como a reverberação de séculos de
hegemonia colonial europeia. A independência do Egito em 1952 58, seguida
pela independência da Costa do Ouro em 1957 (N’KRUMA, 1977, p.15-22)
devem ser entendidos como marco referencial (e/ou estopim) de um período
marcado por questionamento e contestações que, em um curto espaço de
tempo, libertaram os países africanos do domínio neocolonial. Dessa maneira,
a descolonização africana – 1952-1975 – é o espaço temporal onde estará
localizado um amplo processo de reelaboração social que será reproduzido de
diferentes formas em variados segmentos das sociedades africanas.

Ao nos referimos às independências na África (M’BOKOLO, 2011: 523-


596), devemos nos deter no recorte temporal (1952-1975) por entender que
este é o período o qual a imagem de inferioridade difundida no/pelo ocidente
em relação ao continente africano, será fragilizada. Juntamente com esse juízo,
dissipou-se o pressuposto da incapacidade das populações africanas
governarem a eles mesmos. Embora a libertação africana possa ser entendida
como um marco na reformulação das estruturas sociopolíticas, o banimento do
domínio colonial pelas populações africanas, trouxe desafios inéditos para as
elites no poder (M’BOKOLO, 2011, p.523-596).

. Um das implicações importantes do processo independentista


africano, mas que, recebe atenção reduzida, diz respeito à construção dos
corpos diplomáticos nos países africanos independentes, já que, as relações
entre as antigas metrópoles passaram a ser redefinidas por este segmento

58
Ver: MANSFIELD, Peter. Nasser e a revolução egípcia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1967.

441
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

governamental (SARAIVA, 1996, p. 21-50). Além destas atribuições, a


necessidade de se posicionar perante as tensões geradas pela guerra fria
(HOBSBAWM, 1995, p.223-253) bem como, a necessidade de inserção no
contexto da globalização (VISENTINI, 2011, p.155-169) somam-se como
fatores que, além de ser um elo para o estabelecimento de relações entre as
elites governamentais africanas, pudesse ser um instrumento capaz de manter
as solidariedades reivindicadas pelas populações durante a luta de libertação.

Tais reivindicações foram responsáveis por edificar uma multiplicidade


de respostas, começos e soluções que reverberaram em diversos segmentos,
movimentos e expressões sociais, econômicas, políticas e culturais
(M’BOKOLO, 2011, p.523-596). No que diz respeito à cultura, a descolonização
dos países africanos estendeu para o âmbito das artes a perspectiva de
mudança – e em certos exemplos, como a Tanzânia, para uma reafricanização
(KIPRÉ, 2010, p.449-489) renovação que dominou a cena política do início do
processo emancipatória nos anos 1950 (VANSINA, 2010, p. 712-775). A
televisão, o teatro, a dança, a música e o cinema, estimulados por uma série de
políticas culturais adotas pelos países independentes, além de proporcionar
notoriedade inédita ao segmento da cultura, entendendo-o como estratégia
eficiente de transformação, consolidou a transposição das idéias de libertação
política para o âmbito cultural (VANSINA, 2010, p. 712-775).

Dessa maneira, as descolonizações na África, assim como as políticas


culturais implementadas por alguns dos estados independentes, estimulou,
criou e ampliou o contexto político necessário para que o cinema e outras
experiências artístico-culturais africanas pudessem florescer pontuando a
contribuição artística africana na produção artística mundial ( Idem, 2010, p.
712-775).

Os cinemas na África e a importância do filme La noire de... de Sembene


Ousmane

Duas observações devem ser feitas ao dar início a uma reflexão sobre a
produção cinematográfica no continente africano. A primeira delas, diz respeito
à questão de ordem cronológica. Embora o estímulo às artes e ao cinema, de
maneira geral, tenha se intensificado a partir das descolonizações e da

442
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

implementação das políticas culturais pelos estados independentes, não é


correto pensar que, antes deste período, não tenha havido experiências de
produções fílmicas no interior do continente. Logo, o filme Ghezal: a filha de
Carthage (1924) apresenta-se como evidência de que produções africanas
mais antigas já tinham lugar (VANSINA, 2010, p. 712-775).

A segunda observação, diz respeito ao que se define como cinema


africano. Cinema africano não pode ser confundido – equívoco que ocorre com
frequência - com cinema holiwoodiano de temática negro-africana. Entendemos
como cinema africano toda e qualquer produção cinematográfica escrita,
dirigida, roteirizada e editada por indivíduos e grupos de nacionalidade
africana, e não filmes produzidos por diretores não africanos, que utilizam as
tensões do cotidiano africano e das populações diaspóricas para alcançar as
exigências e os lucros proporcionados por Hollywood (BALOGUN, 2007,
p.191). Os filmes Hotel Ruanda 59 e Diamante de Sangue 60 são alguns, dentre
outros exemplos, dos equívocos da conceituação mencionada. Dessa maneira,
essa crítica não tem o objetivo de reduzir os méritos e esforços das equipes de
produzem esses filmes, nem retirar a importância histórica das mesmas.

Feitas estas observações, a introdução do cinema na África apresenta-


se como eixo central da discussão proposta. O rádio, a televisão e o cinema
são formas de comunicação que mais se aproximam da tradição oral africana
(BÂ HAMPÂTÉ, 2003). Quando comparado o potencial comunicativo presente
na oralidade, tanto a televisão, quanto o cinema transcendem o impacto visual
ausente nas palavras faladas (e/ou escritas) e no rádio. O cinema, em relação
à televisão e ao rádio foi o meio que demonstrou maior distanciamento em
relação à tradição oral pela espontaneidade existente na produção de suas
imagens (VANSINA, 2010, p. 712-775).

O avanço acarretado pelo pioneirismo cinematográfico passou a ter


notoriedade na África com a exibição de filmes estrangeiros no Egito a partir de
1905 e na África ao sul do Saara, a partir de 1920. As exibições destas

59
Hotel Ruanda. Direção: Terry George. Itália, Reino Unido e África do Sul. Lions Gate Films (LGF) /
United Artists (UA), 2004. (121mim.), color. 35mm
60
Diamante de Sangue. Direção: Edward Zwich. Estados Unidos. Wornner Bros, 2006. (143 mim.),
color. 35 mm

443
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películas tiveram receptividade positiva se considerado a “pouca compreensão”


do público em relação aos filmes projetados. O número reduzido de africanos
que “compreendiam” estas películas contribuiu para que os diretores
produzissem filmes mais didáticos com o objetivo de alcançar os africanos
“esclarecidos”. Logo, é importante pontuar a participação das elites africanas
no período inicial da difusão do cinema no continente (VANSINA, 2010, p. 712-
775).

O filme Ghezal: a filha de Carthage (1924), assim como, Leila (1926) e


Zainab (1926) apresentam-se como evidências do pioneirismo de filmes
produzidos e dirigidos por africanos. De origem egípcia, esses filmes
caracterizaram-se por marcar, no período inicial da difusão cinematográfica, a
proximidade entre cinema e teatro, proximidade esta, que no transcorrer da
década de 1920 foi ampliada, após as convenções teatrais que norteavam as
primeiras produções fílmicas, fossem abandonadas. O abandono das técnicas
de teatro, assim como, a inauguração dos Studios Misr (1934) no Egito deu
início ao fortalecimento do cinema africano com a produção de uma variedade
de filmes por ano. Logo, é importante ressaltar que os temas e títulos dessas
primeiras produções africanas estiveram sob as restrições da realidade colonial
(Idem, 2010, p. 712-775).

Qual a influência das restrições e regras da colonização na produção


cinematográfica no continente africano? Para explicar esse questionamento, é
necessário partir do pressuposto da necessidade comercial da produção
fílmica, ou seja, um dos objetivos do filme é a empresa comercial. Visando este
fim, é fundamental um incentivo considerável de recursos para produção, assim
como, esses filmes depois de finalizados carecem de uma rede de distribuição,
construção ou adaptação, já que, as exibições de filmes africanos no que diz
respeito às legendas, imperam um tratamento diferenciado (Idem, 2010, p. 712-
775).

Esses capitais, entendido no ambiente cinematográfico, como


investimentos, não podem ter sua captação garantida na ausência de
bilheterias que possam fornecer o capital de giro para ser reinvestido na
produção. Esse recurso adquirido tem o objetivo de quitar as dívidas pelos

444
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

“alugueis” das salas de cinema e as companhias pelo fornecimento dos filmes


exibidos. Cabe ressaltar que, do total dos 56 países africanos, somente o Egito
foi bem sucedido na experiência de construção de uma indústria
cinematográfica nacional e autofinanciada. Dessa maneira, inúmeras
estratégias para captação de recursos e produção fílmica foram
experimentadas na África (Idem, 2010, p. 712-775).

A garantia de patrocínios e financiamentos por parte dos estados


descolonizados é o exemplo de uma das estratégias utilizadas para o
fortalecimento do cinema na África. Embora a carência de verbas seja
apontada como um dos obstáculos ao fortalecimento do ambiente
cinematográfico africano, nada impede – norteado pelas estratégias apontadas
- a criação de redes modestas em países como o Marrocos e a Nigéria. No
caso do Senegal, a responsabilidade de incentivo à cultura assumida pelo
então presidente Leopold Senghor, criou condições propícias para que este
país – uma exceção entre os demais no continente – estabelecesse uma
cadeia de distribuição e exibição chegando próximo à autossuficiência
cinematográfica (VANSINA, 2010, p. 712-775).

A estreita relação entre o cinema e a política, no contexto das


independências, fica explicitada na Argélia, Burkina-Faso, Mali e Tunísia, onde
os governos independentes utilizaram-se dos filmes – feitos sob encomenda –
como um meio de conscientizar politicamente suas populações. Cabe ressaltar
que, tais encomendas não contemplavam os filmes de longa-metragem
(M’BOKOLO, 2011, p.686-687). Desse modo, a relação de proximidade
existente entre o cinema e a política no contexto das independências na África
criou oportunidades para que os diretores pioneiro pudessem tirar proveito
desse “ambiente favorável” no que dizia respeito a captação das verbas
necessárias a produção (Idem, 2011, p.523-596).

Após a década de 1970, a consolidação da televisão juntamente com a


construção de estúdios televisivos contribuiu para evolução do ambiente
cinematográfico no continente ao cooperar com o aumento da produção fílmica,
no fornecimento de equipamentos e na edificação de um mercado consumidor
para este “novo” produto. O estímulo dado ao cinema pela consolidação da

445
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

televisão e pela construção dos estúdios televisivos não foi suficiente para
convencer os dirigentes africanos de que o cinema não se constituía como um
veículo de comunicação de massa, se comparados ao alcance do rádio e da
televisão. Logo, partes significativas dos governos africanos independentes
recearam investir uma soma de recursos nesse segmento (VANSINA, 2010, p.
712-775).

As independências dos países africanos produziram iniciativas de


nacionalização - seguidas por uma africanização de quadros – que se
notabilizou no rompimento das relações entre metrópole e colônia. No âmbito
cinema, a ruptura dessas relações foi evidenciada pela quebra do monopólio
dos distribuidores estrangeiros que, em 1969 explicitou o abismo existente na
produção cinematográfica africana. Um dos exemplos da conjuntura
cinematográfica africana no pós-indpendência, pode ser percebido na situação
do Burkina Faso (antigo Alto Volta), onde após a quebra do monopólio de
distribuição estrangeira apenas dez salas de cinema existiam em todo país. O
Gabão com 8 salas de cinema em 1986, não pode deixar de ser mencionado
(VANSINA, 2010, p. 712-775).

No contexto destas dificuldades, o Senegal destacou-se como exceção.


Dotado da mais perfeita estrutura de produção cinematográfica da África
tropical, composta por 80 salas de cinema, estas, atraiam por ano, cerca de 13
milhões de telespectadores. Cabe destacar que, estes números, se
considerado o ineditismo do cinema no contexto das independências e os
obstáculos para a consolidação deste no continente, devem ser entendidos
como uma experiência exitosa. Dessa maneira, a experiência cinematográfica
senegalesa mostrou-se como evidência contrária à afirmação de parte dos
dirigentes africanos de que o cinema não poderia ser considerado um veículo
de comunicação de massa ( Idem, 2010, p. 712-775).

O maior sucesso de exibição no cinema africano foi à película


Nyamaton dirigida por xeque Omar Sissoko (Idem, 2010, p. 712-775),
apresentada no Festival Pan-africano de cinema (FESPACO) (BAMBA, 2007,
p.77-107) e em 1986 e reunindo cerca de 35 mil espectadores em duas

446
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semanas, porém, se compararmos esses números aos milhões (ou bilhões?)


de indivíduos que assistem televisão todos os dias, o que isso significa?

O Cinema na África ocidental francesa: a importância do filme La Noire


de... de Sembene Ousmane

As primeiras produções fílmicas da África ocidental francesa datam da


metade da década de 1950. Ao contrário do que se idealiza, esses filmes foram
realizados de forma pioneira na França e, só posteriormente em Dakar,
Senegal. La Noire de..., longa-metragem pioneiro, dirigido por Sembene
Ousmane em 1966 sobrepujou a atmosfera cinematográfica da África de língua
francesa (Idem, 2010, p. 712-775). Nascido em 1923 em Ziguenchor, na região
de Casamance no Senegal, Sembene iniciou sua trajetória como pescador
depois seguindo para École de Céramique et Marcassoum. Logo, transferiu-se
para Dakar onde trabalhou como encanador, carpinteiro e aprendiz de
mecânico 61.

Durante a segunda guerra mundial fez parte de um dos batalhões de


soldados africanos que combateu o exército alemão nas fileiras do exército
francês. Ao findar o conflito, retornou a França tornando-se estivador e líder
sindical em Marselha. Ansioso em realizar suas próprias produções
cinematográficas buscou auxílio financeiro com Jean Rouch e outros cineastas,
não sendo bem sucedido em sua iniciativa. De passagem pela União Soviética
(URSS), estudou cinema – durante um ano - com o diretor pró-Stalinista Mark
Donskoi. Dessa maneira, sua formação na escola russa o ajudou a criar uma
característica ímpar em suas produções audiovisuais, ao utilizar as imagens
como forma de expor os problemas e desafios da África pós-independente 62.

Sembene foi o criador de uma retentiva intelectualizante. Um das


características marcantes do conjunto da obra cinematográfica de Ousmane é
a visibilidade dada às contradições entre a cultura europeia colonial e a cultura
africana tradicional. As representações da negritude, as divergências entre as
classes sociais africanas, o nacionalismo, bem como, o marxismo são algumas

61
SPASS, Lieve. Crítica: trabalho doméstico feminino e política do terceiro mundo em La noire de.
Disponível em: http://cine-africa.blogspot.com.br/
62
Idem.

447
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das temáticas em sua filmografia. Assim, sua obra fílmica pode ser entendida a
partir de três períodos (RIESCO, 2012, p.101-129).

O primeiro período, localizado entre 1962 e 1970, é marcado pela


presença do neorrealismo italiano onde Sembene utiliza suas possibilidades e
limitações. O segundo período situa-se entre 1971 e 1976 e é considerado pela
crítica como a etapa mais produtiva de sua trajetória como diretor de cinema. A
crítica à multiplicidade dos contextos africanos que envolvem a História, o
passado e o presente apresenta-se como principal marcador do recorte
temporal mencionado. É desse período um de seus principais filmes: Emitai
(1971) película na qual Ousmane demonstra o espaço ocupado pelas religiões
durante a ocupação francesa no Senegal (Idem, 2012, p.101-129).

O terceiro período - após uma temporada de ociosidade - situa-se entre


1988 e 2007, ano da morte de Sembene. Diferente das fases anteriores, essa
etapa que, se por um lado deixa de ser notabilizada pela produção de películas
não experimentais, por outro, continua a ser distinguida pela sua narrativa
clássica, bem como, pela maestria e inteligência peculiares em suas
produções. Estão inseridos neste recorte temporal os filmes Camp de
Thiaroye 63 (1988), longa metragem em que Ousmane narra a revolta dos
soldados africanos retornados da segunda guerra mundial contra o tratamento
dispensado pelos oficiais franceses e Moolaadé 64 (2004), película na qual
Sembene destaca o espaço ocupado pelas mulheres – o debate de gênero - na
religião islâmica (RIESCO, 2012, p.101-129).

Diante da proficuidade de sua produção fílmica, uma notável contradição


deve ser mencionada na obra ousmaniana. Com extensa trajetória de
protagonismo social, carpinteiro, pedreiro, mecânico, militar, líder sindical,
comunista e militante anti-colonial (sendo seus filmes um incomodo para
colonização francesa no Senegal) Ousmane destacou-se por ser o único diretor
de cinema a reunir a quantidade de recursos suficientes para o financiamento
de suas produções (VANSINA, 2010, p. 712-775).

63
Camp De Thiaroye. Direção: Ousmane Sembene. Senegal. Filmi Domi Reew, 1988. (153min.),
color.35mm
64
Moolaadé. Direção: Ousmane Sembene. Senegal. Filmi Domi Reew, 2004. (120 mim.), color. 35 mm

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A importância do filme La noire de

Motivado por um conto escrito por Sembene - com o mesmo nome do


filme – publicado em 1961, narra a trajetória de uma jovem senegalesa
empregada doméstica (em Dakar) de uma família francesa pertencente a elite
europeia na África e que, transferida para França, é confrontada com embate e
as diferenças culturais entre os mundos africanos e europeu a partir do
tratamento dispensado por seus patrões. O racismo, a questão das
ressignificações das identidades, o debate de gênero implícito no assédio sexo-
moral do patrão sobre a trabalhadora africana, são alguns dos temas tratados
por Ousmane nessa película.

Ao pensarmos no contexto em que o cinema africano deu inicio as suas


produções, o filme produzido por Sembene adquire valor diferenciado. Para
compreender essa relevância, é importante ressaltar as ambiguidades das
interconexões entre o recente cinema produzido por diretores africanos com o
cinema europeu colonial. A formação do primeiro grupo de diretores africanos –
Sembene Ousmane, Ababacar Samb Makharam (Senegal), Mustapha
Alassane (Nigéria), Souleymane Sissé (Mauritânia-Mali) entre outros –
formados nas instituições ocidentais, russas especificamente, contribuiu para
que esses diretores se familiarizassem com as técnicas utilizadas por seus
colegas no ocidente.

Esse “intercâmbio” das técnicas cinematográficas estimulou os estados


independentes que optaram pelo cinema como uma estratégia de
conscientização política a reelaborarem os procedimentos propagandísticos
cinematográficos ocidentais adaptandos-os a diversidade de contextos
africanos. Um exemplo ilustrativo dessa reelaboração foi à utilização de
procedimentos inéditos utilizados pelo etnólogo e sociólogo francês Jean
Rouch, considerado um catedrático do cinema realista produzindo cinema na
África, desde a segunda guerra mundial.

A partir desse contexto de transformações, a importância do filme La


noire de... de Ousmane pode ser percebida sob três pontos. O primeiro ponto é
que, partindo do pressuposto de que, com algumas exceções – Egito e Tunísia
- o cinema africano durante a primeira metade do século XX esteve restrito a

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

exibição e reprodução de filmes de origem europeia, o filme de Sembene


marca a inserção do continente africano no ambiente da cinematografia
mundial. O segundo ponto, talvez o mais importante, é que, considerando que
a totalidade dos filmes europeus exibidos ou produzidos no continente africano
até os anos de 1950 – até mesmo os de Jean Rouch – La noire de marca um
viragem na cinematografia mundial ao representar a África a partir de um ponto
de vista africano, ou seja, o continente africano abordado do seu interior.

O terceiro e último ponto, está relacionado à conscientização política das


populações africanas sobre a dimensão do colonialismo. Nesse sentido, a
película La noire de ao contribuir para explicitar o que alguns governos
independentes esforçaram-se em ocultar. Ao apontar para o mundo ocidental
os abusos de poder e os desmandos das elites europeias através do
colonialismo, Ousmane usou o cinema como uma estratégia para superação de
um dos problemas que afligiram (em) a África na contemporaneidade: o
analfabetismo. Dessa maneira, objetivando a conscientização política das
populações de forma geral e, especificamente, do seu grupo étnico (wolof),
Ousmane tentou atingir o maior número de indivíduos possíveis.

Conclusão

A promulgação do decreto 4228 de 13 de maio de 2002, além de inserir as


relações raciais na agenda governamental brasileira, deu início a uma série de
leis e decretos que visam combater o racismo e reduzir as desigualdades
raciais no país. A obrigatoriedade do ensino da história da África – leis 10.639 e
11.645 – o estatuto da igualdade racial, a lei da política de cotas nas
instituições de ensino são alguns dos avanços que podem ser constatados
desde a conferência de Durban, África do Sul, reunião inédita que envolveu os
chefes de estados de todo mundo que colocou o racismo como um problema
mundial. Se por um lado a obrigatoriedade do ensino da História da África e da
cultura afro-brasileira pode ser entendida como um avanço, por outro, ela pode
ser interpretada como um retrocesso. Por que motivo? Se desde que o Brasil
foi invadido pelos europeus, em 1500, até os dias correntes, as elites europeias
e seus descendentes no poder não tiveram a preocupação de reconhecer o
espaço ocupado pelo continente africano no desenvolvimento do país através

450
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

de sua inserção nos bancos e currículos escolares, agora, com o advento das
leis 10.639 e 11.645, de onde se iniciará esses estudos? Quais os referências
que serão utilizados como ponto de partida para o ensino da história da África?
Quais serão os autores? Qual a metodologia que será utilizada? Qual
epistemologia será usada como referência? É nesse sentido que se encaixa a
construção do artigo proposto, como uma metodologia alternativa para o ensino
da História da África. Considerando o fértil terreno das relações raciais
instituído a partir da conferência de Durban e o número reduzido de trabalhos
que exploram a relação entre a História e o cinema - principalmente o cinema
africano – é objetivo desse artigo, além de traçar o panorama histórico do
cinema na África e sua relação com o processo das independências,
apresentar a importância do diretor Sembene Ousmane e de seu filme La noire
de... no sentido de que, ambos, possam vir a ser utilizados como referências no
ensino da História da África, contribuindo para o conhecimento dos referenciais
africanos de maneira a atender os pré-requisitos exigidos na reelaboração dos
conhecimentos da História da África e da cultura afro-brasileira.

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452
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

REALISMO LITERÁRIO E O “CHOQUE DO REAL” NA OBRA O


INFERNO DE PATRÍCIA MELO.

ANDRÉ ÂNGELO DE MEDEIROS ARAUJO (UEPB)

Realismo contemporâneo: estética do “choque” na representação.

A exploração da violência e do choque, tanto na mídia


quanto nas artes, é entendida como procura de um “real”, definido
como impossível ou perdido, que não se deixa experimentar a não
ser como reflexo, no limite da experiência própria, como o avesso da
cultura e como aquilo que só se percebe nas fissuras da
representação e nas ameaças à estabilidade simbólica.
(SCH0LLAMMER, 2009, p.115)

No romance do século XIX, a verossimilhança ficcional, era o “canivete


suíço” que permitia ao artista driblar a descrença do público. No romance
realista os eventos rotineiros, o enredo dramático, os conflitos psicológicos e as
descrições metódicas eram permeados pelo efeito do real, que assegurava ao
espectador a representação plausível de uma realidade apresentada. Em
distintas nuances, o realismo do século XIX, como já fora esclarecido,
apresentava retratos críticos de uma sociedade. Contudo, este desnudamento
da realidade era apoiado numa linguagem que muitas vezes se afastava da
realidade e das simbologias sociais que estava pintando. Isso porque existia a
prerrogativa de imparcialidade do narrador; em favor de um labor estético
verossímil e distanciamento emocional da materialidade narrada. O efeito do
real, contemporaneamente atualizado, não depende mais apenas do
detalhamento verossímil, mas da acentuação dos contornos de uma imagem
representada, em outros dizeres, de uma intensificação da representação que
ensaia tornar a realidade mais intensa e interpretável.

Os novos modelos estéticos do realismo contemporâneo não angariam


o mesmo cânone imagístico, identidade simbólica e labor técnico das narrativas
realistas de outrora: preocupados em camuflar seus inatos artifícios de
ficcionalização. As descrições detalhadas, e por vezes enfadonhas, do
ambiente burguês e suas crises, que marcavam o realismo do século XIX, são
nessa nova perspectiva (contemporânea) de representar o social, preteridas
em favor de uma prosa versátil e ágil, que “delineia o personagem e seu mundo
através da fala ou da ação” (JAGUARIBE, 2010, p.8).

453
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Podemos afirmar, que a nova postura da produção literária se afasta do


ideal romancista, no que concerne ao objetivo da arte, como aponta Tânia
Pellegrini em seu ensaio No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de
hoje (2004), quando esta faz uma leitura crítica de Antonio Candido 65,
analisando como este se remete a “nova literatura brasileira”:

Se nos ativermos à afirmação de Candido, vamos perceber


que, de fato, trata-se de mudar a perspectiva, abandonando uma
definição romântica da função social da cultura baseada na ideia de
que esta deveria ser veículo da ‘graça, da beleza, e da harmonia’,
aceitando a prevalência de uma possível função social que, de algum
modo, leve em consideração esse impacto trazido pela representação
da violência [...] frutos do mal-estar das sociedades contemporâneas
em geral, agudizado no Brasil por suas condições sócio-culturais
específicas. (PELLEGRINI, 2004, p. 31, apud CANDIDO, 1987,
p.214)

Pellegrini observa uma mudança conceitual em relação à expressão


“função social”, que na acepção do realismo do século XIX, referia-se a uma
forma de expressão canônica e homogênea, baseada na harmonia da forma e
propulsora da beleza estética. Enquanto que na contemporaneidade esta
“função social” liga-se às formas de representar a violência, de modo a
denunciar as mazelas cotidianas vivenciadas pelas sociedades da
modernidade tardia, por muitos sociólogos e críticos culturais já percebidas e
discutidas. E, como Pellegrini bem esclarece, pano de fundo das novas
produções cinematográficas e literárias realistas do Brasil.

Desta forma, o ponto de que caracterizava o narrador onisciente do


século XIX, assegurando sua imparcialidade, e assim também, a autoridade
oriunda de sua ambição totalizante, própria no narrador realista do passado, é
hoje comumente substituído por uma voz narrativa que cede lugar a primeira
pessoa, rica em subjetividade, visando intensificar a verossimilhança através
do apelo catártico, presente na representação fragmentada dos setores sociais
marginalizados, dos quais, o autor, que muitas vezes é também personagem,
os conhece e faz parte.

65
Ver “A nova narrativa”, In: A educação pela noite e outros ensaios, São Paulo, Ática, 1987.

454
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Sendo assim, a despeito das breves diferenças e similitudes até aqui


elencadas, entre novas e velhas estéticas do realismo – diferenças que foram
gradualmente se acentuando com o afloramento das tecnologias visuais –
podemos identificar um traço comum as duas vertentes, a clássica e a
contemporânea, que é a prerrogativa de que as narrativas realistas buscam
retratar a realidade tal como ela é apreendida pelo sentido comum social e
secular 66. Desde o surgimento, estas narrativas vêem nos mostrando o cenário
de um mundo sórdido e violento; uma realidade pouco digestível, mas
inteiramente compreensível. Ao lado disso, o seu valor e função social.

O impacto do “choque do real”: efeito catártico, sociedade e mídia

Os novos códigos estéticos do realismo contemporâneo visam cada


vez mais suscitar um efeito de realce na representação artística da realidade. O
objetivo do realce, de uma realidade que esta performatizada, é causar um
sobressalto catártico no leitor ou espectador. Este, podemos afirmar, já está
familiarizado as performances realistas; uma vez que a estirpe das
experiências do cotidiano humano acontecem de forma realista. Ninguém vive
ou expressa suas experiências utilizando um código fantástico ou surreal.
Esse efeito catártico é o responsável pelo “choque da realidade”. O
qual flui da representação de algo que não é estupendo ou inimaginável, mas
excitante, violento, revoltante e escarnecedor. Esse código estético, concebido
doravante como “choque do real”, termo cunhado pela ensaísta Beatriz
Jaguaribe 67, debatido em sua obra, O choque do real: estética, mídia e cultura
(Rooco, 2007) é comumente encontrado nas narrativas ficcionais urbanas, na
fotografia e no cinema nacional contemporâneos:

O choque do real é produzido pelas estéticas do realismo


literário e cinematográfico que visam dar conta das conflitivas
experiências da modernidade urbana no Brasil. Nem todas as
narrativas e imagens realistas fazem uso do ‘choque do real’, mas
esse efeito dramático e estético possui uma particular relevância na

66
Op. cit., p.o9
67
Beatriz Jaguaribe é doutora em literatura comparada pela Universidade de Stanford,
professora da Escola de Comunicação da UFRJ, e desenvolve trabalhos na área dos estudos
culturais, estudos midiáticos, literatura e cultura urbana.

455
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retratação da violência social [...] e (na) intensificação do ‘efeito do


real’ pelo uso do choque. (JAGUARIBE, 2007, p.99).

A intensificação catártica provocada pelas cenas de situações


violentas, de pobreza, de terror ou de exacerbação do sexo, é aguçada de
forma tão verossímil que existe uma suspensão no julgamento 68 que o
leitor/espectador pode fazer a respeito das imagens que lhes vêem aos olhos.
E isso decorre do caráter ficcional do que está sendo narrado: uma sociedade
globalizada e as vítimas do seu desmanche social. Ao leitor ou expectador, não
convêm indagações sobre o valor de verdade do que está sendo apreciado,
isso porque, sem apresentar-se como o “real em si”, a prosa contemporânea
simula uma experiência com o real e é justamente nesse aspecto que se
apresenta a dimensão subjetiva da prosa (SANTINI, 2012, p.98). Por isso,
podemos inferir que “mesmo que um romance traga fatos concretos, não se
torna, de alguma forma, verdadeiro,”. O fato de se tratar de um romance
“garante que não examinemos tais declarações pelo seu valor de verdade”
(EAGLETON, 2005, p.130). Desta forma, o leitor/espectador não esboça um
valor de julgamento quanto ao código artístico ou técnico utilizado para
representar, importa mais o conteúdo dramático da representação, e a relação
desta com o que se desenrola no cotidiano social. O choque, que exacerba
uma cena violenta, não passa pelo filtro critico da verossimilhança equilibrada
que caracteriza o realismo do século XIX.
O choque se acentua quando uma realidade (social) que é ignorada ou
absorvida mecanicamente torna-se, por instantes, vívida e insuportável, sem
cair nas apelativas sensacionalistas das imagens exibidas na mídia
diariamente, erigidas sob o “efeito do real” (JAGUARIBE, 2003). Afirmamos que
o choque do real não está, puro e simplesmente, na espécie de vida
representada através da arte, e sim na maneira como uma realidade social é
performatizada. A fim exemplificar o que foi dito, podemos citar produções
cinematográficas como Carandiru (2003), O invasor (2001), Cidade de Deus
(2002), Amarelo manga (2002), O Invasor (2011) e Tropa de Elite (2007), obras
que traduzem claramente o que aqui está sendo esclarecido.

68
É importante frisar, que para autores contemporâneos não existe a preocupação de maquiar
os processos de ficcionalização como ocorrera no realismo clássico.

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O inferno de Patrícia Melo: choque do real, emparedamento e tragédia.

A romancista, Patrícia Melo, vem despontando no cenário nacional,


como expoente da nova geração de escritores que apresentam em sua obra a
crueldade da vida nos grandes centros populacionais. Dotada de uma sintaxe
enxuta e um vocabulário comum, a escritora, em sua obra O Inferno (2000),
nos traz a intrigante saga de um personagem negro e pobre, José Luiz Reis,
vulgo Reizinho. Morador de uma favela do Rio de Janeiro, o morro do
Berimbau. Quando criança ele sofreu angustiosa crise familiar oriunda de
espancamentos rotineiros e da ausência de um pai que nunca conhecera.
Residia em um barraco insalubre, dividia o mesmo com Carolaine, sua irmã, e
com uma resignada empregada doméstica que trabalhavam dia e noite, sua
mãe, Alzira.

Reizinho nunca dera ouvidos a sermões. Jamais se vira senão como


um futuro grande traficante. Sonhava com o dia em que ganharia muito
dinheiro, sairia daquela vida miserável e se encontraria com o pai. Freqüentaria
restaurantes e outros lugares de alto prestígio social.

Depois de passar messes na rua, usando drogas e roubando, sem


nenhum tipo de controle, Reizinho tem a oportunidade de retornar para o
Berimbau. Pode novamente trabalhar para Miltão, traficante de renome e
amante de Suzana, vizinha e protetora de Reizinho. O tempo passa e a voz da
marginalidade faz do nome “Reizinho” o mais cotado entre os traficantes à
provável sucessor de Miltão. O chefe do morro dos Marrecos e pai de Marta,
Zequinha Bigode, facilita a tomada do morro do Berimbau. Miltão morre pelas
mãos de José Luiz, que agora se torna o dono do morro.

Apesar de muito satisfeito pelo título de líder que então ostentava, José
Luiz sabia que Zequinha Bigode, pai de sua amada Marta, nunca iria permitir o
romance. “Rezinho do pó”, como era conhecido, passara a sentir-se então
inseguro e contava cada vez mais com o apoio de três companheiros
inseparáveis, que com ele estiveram durante toda sua trajetória de vida; Fake

457
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um DJ e amigo de infância, Leitor um “intelectual” que o orientava nas questões


comercias, e o dono do bar, o velho Onofre.

O amor proibido entre Reizinho e Marta, filha do seu concorrente e ex-


parceiro, o traficante Zequinha Bigode, teve como consequência uma guerra
entre os morros, dando vazão a uma intrincada rede de intrigas. A morte de
vários companheiros, dentre estas, a do seu amigo de infância Fake, que
acusado de traição foi morto injustamente pelo próprio José Luiz – o qual
posteriormente soubera que o amigo nunca o havia traído, e, portanto, o
matara injustamente – gerou uma angústia que consumia Reizinho: “matei meu
amigo por sua causa Marta”, lamentava.

O fato de tornar-se líder de morro trouxera a Reizinho uma série de


problemas e conflitos. Ele já não era o mesmo. A crueldade já o consumia por
completo. Assim também a angústia pelas atrocidades que já havia cometido
durante sua trajetória. A guerra entre os morros é trágica e chocante. Vários
homens do bando de Reizinho morrem. Mesmo com baixas em seu grupo,
José Luiz mata o seu sogro, e líder do morro dos Marrecos. Reizinho, com a
morte de Zequinha Bigode, passa a comandar dois morros. É ovacionado por
todos por onde passa. Já pensa em ir buscar drogas em outros países, pensa
em crescer ainda mais.

Contudo, Marta nunca entendera a atitude cruel de Reizinho, ajudada


pela irmã e a avó, a esposa inconformada arquiteta um plano. Reizinho é
preso. Marta assume os negócios no tráfico.

Durante sua estadia na cadeia, José Luiz descobre com ajuda da mãe
de Suzana, agora morta por Marta, que sua prisão foi uma armadilha
arquitetada pela própria esposa. Ajudado pelos amigos, Reizinho foge da
prisão e vai viver em Roraima com sua ex-namorada, e amiga dedicada, Kelly.
O tempo passa, Kelly o abandona para viver com outro. Reizinho volta para o
Rio de Janeiro. Subindo o morro, Reizinho sente um vazio, não reconhece mais
os garotos de agora, ele próprio não se reconhece.

O exíguo panorama exposto, já nos permite identificar a presença do


Realismo na obra de Patrícia Melo. Apresentada ao espectador em suas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

características contemporâneas, a estética realista presente em O Inferno,


sustenta também, as influências do realismo do século XIX, que devido ao
desapego às idealizações românticas, passou a valorizar a idéia de “real”: de
representação objetiva da vida como ela é. E, apresenta também, o aspecto de
denúncia social e engajamento político, que tão assiduamente marcou o
realismo da década de 30.

Percebemos assim, que existe a perpetuação de alguns valores


artísticos de outrora, que coadunando com a perspectiva contemporânea do
choque, nos faz categorizar como realista, o romance de Patrícia Melo. A
presença do choque do real, marca do realismo contemporâneo, é uma
constante na obra. Em inúmeros momentos o leitor é surpreendido pela forma
como as situações dramáticas são performatizadas. A realidade é desnudada e
aproximada do leitor, este já a conhece através das vivências cotidianas e
reportagens espalhadas pelos diversos aparatos midiáticos.

O choque do real, através do espanto catártico, “insere” o leitor dentro


de uma realidade cruel sem o tirar do seu lugar de conforto. Desperta o senso
crítico e promove a denúncia social. Fatores estes, que vem favorece a quebra
da neutralidade do leitor em relação à realidade perfomatizada. Na obra O
inferno (2000) temos o momento onde Reizinho é pressionado a executar um
traficante delator:

Reizinho mirou a cabeça de Duque e disparou. Errou o


primeiro tiro. Foi só naquele momento que o garoto olhou de verdade
parra sua vítima. Os olhos gritavam, pedindo penico. [...] O segundo
disparo acertou na bochecha de Duque e fez um buraco do tamanho
de um tomate. [...] O negócio estava feito. Por alguns segundo, todos
os traficantes em silêncio, ouvindo o som abafado dos soluços e
engasgos da vítima, sangue saindo pela boca e ouvidos. (id., p.110)

O emparedamento do protagonista exemplifica a tendência desta


situação dramática já corriqueira na prosa contemporânea de cunho realista.
Podemos lembrar o personagem Maíquel, do romance O matador (1995),
autoria da mesma escritora. Maíquel é vítima da pressão social e econômica. A
tragicidade do assassinato e enterro clandestino de sua esposa Cledir, também
ilustra como um sujeito marginal se entrega ao porvir sem relutar, isso porque
não lhe resta uma opção. Ele não é bom nem mal, tudo que lhe acontece é

459
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trato do destino. Não existe uma rotulação maniqueísta de bem e mal. É


“apenas” a lei da sobrevivência na sociedade da exploração, a crueldade é
ferramenta justificável, é a única solução que resta a Maíquel.

Na obra cinematográfica Cidade de Deus (2002), em situação análoga,


temos o emparedamento do personagem “Filé com Fritas”, quando este é
convidado a executar um grupo de garotos da sua idade. Na novela de Marçal
Aquino, O invasor (2002), podemos identificar a presença do choque do real
em várias situações dramáticas, dentre estas, no desfecho da obra, quando o
personagem, o engenheiro Ivan sentindo-se pressionado por situações
adversas, denúncia seu parceiro e sócio à polícia, o também engenheiro Alaor.
Ivan, estarrecido, percebe que o delegado, que deveria proteger e ser exemplo
de caráter, pára a viatura na frente da casa do falecido sócio Estevão, e desta
saem Alaor e Anísio, um pistoleiro. Ivan quando percebe o que está realmente
acontecendo, e escuta a conversa entre o sócio e o delegado Noberto. Ivan
nota todo um esquema arquitetado para encurralá-lo, ou seja, todos estavam
mancomunados; a própria polícia não era mais confiável. Ele estava dentro da
viatura e seus algozes a sua frente planejando sua morte a alto e bom som.

Seriam inúmeros os exemplos que aqui poderiam constar. Os sujeitos


contemporâneos em geral, não só os residentes das comunidades carentes,
mas também aqueles que pertencem à classes sociais mais elevadas vivem
em situação semelhante, emparedados. Reclusos em seus condomínios
fechados e posicionamentos políticos e ideológicos. Não lhes resta outra
opção, ou estarão à mercê da barbárie: a cultura da violência e do medo é a
protagonista de tudo isso. Importante é frisar, que as “situações limite”
comumente colocam os sujeitos a mercê do seu destino; muitas vezes
imprevisível, como ocorrera a Reizinho ao ter que executar Duque para poder
galgar um “lugar de conforto” na sociedade que explora, e cala a voz do
desfavorecido. A presença do choque do real, comumente esta presente em
cenas que performatizam situações onde os sujeitos são “forçados” a tomar
atitudes drásticas de conseqüências imprevisíveis, como percebemos nas
obras citadas anteriormente.

460
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Na narrativa de Patrícia Melo, assinalando a presença do choque do


real nas situações limite ou de emparedameto, destacamos o momento no qual
Reizinho é coagido a executar o traficante que ele tanto tinha por estima,
“Miltão era seu amigo. Confiava nele. Não iria apunhalá-lo pelas costa” (p.161).
Entretanto, o protagonista não teve alternativa. Matou o amigo e se tornou o
novo líder do morro.

Os soldados de Miltão se renderam quando as tropas de


José Luíz atingiram o alto da favela. Não houve resistência. Só Miltão
continuou atirando pela janela, de um dos cômodos de seu barraco.
Foi o próprio José Luíz quem o matou, e isso não lhe deu nenhum
tipo de satisfação nem sensação de vitória, embora seus
companheiros não parassem de elogiar seu desempenho. (Ibdem.,
p.215)

A vida Reizinho representa um cotidiano muito conhecido através


ficções e de noticiários que tratam dos problemas sociais nos grandes centros
urbanos. A vida conturbada das populações marginalizadas, quando
ficcionalizada, trás em seus repertorio dramático, além das situações limite, o
aspecto “trágico” da vida de personas embrutecidas, as quais lutam como
podem para sobreviver em um “presente sem futuro”. No decorrer da narrativa
O inferno, como esta exemplificado acima, podemos identificar a presença do
trágico oriundo da desmedida das ações do protagonista, pela escolha mal feita
e suas conseqüências. Em outro momento, Reizinho, mal orientado por Marta,
mata o melhor amigo pesando estar sendo traído, mas só depois descobre a
verdade através de sua amiga Suzana:

Quero que você se foda. Não te conheço mais. [...] Você


matou seu melhor amigo injustamente, espero que se lembre disso
todos os minutos do que resta da sua vida miserável. [...] José Luiz
ficou sozinho alguns segundos, antes que Kelly entrasse na sala e o
encontrasse caído, [...] José Luiz abraçou as pernas de Kelly com
força, sentia-se tão desgraçado [...]. (Ibdem., p.313)

Reizinho sentiu-se desgraçado e incapaz. Fake fora acusado de traição


injustamente, e ele fora o seu carrasco. Em várias cenas poderíamos identificar
o aspecto trágico, realçado través do choque, na narrativa de Patrícia Melo.
Relembremos a morte do pai de Marta na sala de estar de sua própria casa.
Sabendo da derrota eminente, Zequinha Bigode não fugiu – não tinha essa

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opção, essa era a vida de traficante, fugir nunca – seu destino estava selado,
ele morreu pelas mãos do genro, Reizinho. Podemos perceber, nesse breve
apontamento, como o aspecto tragédia torna-se um recurso eficaz na
representação realista da violência. Podemos também inferir como ela está
afastada da sua proposta clássica de premiar os bons e castigar os maus. O
que se apresenta é a luta pela sobrevivência, não existe o lado “certo”, como
adverte Tânia Pellegrine, em ensaio no qual identifica o mecanismo trágico na
prosa realista contemporânea:

A gramática da tragédia foi alterada: não há bons ou maus,


culpados ou inocentes; nem deuses, nem heróis, só mendigos (ou
sujeitos marginalizados, grifo nosso), em estado de natureza, iguais
na miséria e na ausência de qualquer princípio que não seja o instinto
de sobrevivência [...] (PELLEGRINE, 2012, p.46).

A exposição trágica de vidas miseráveis, intensificadas através do


choque do real, fisgam o leitor/espectador no seu “calcanhar de Aquiles”. A
iminência de um destino hobbesiano 69 é a verdade que assombra, ao mesmo
tempo, que é a mercadoria que diverte. Pellegrine reflete a respeito da moeda
de troca que tornou-se a tragicidade no mercado midiático, “Adorno advertia há
muito tempo que a indústria programa para o trágico um lugar fixo na rotina da
produção, já transformado em aspecto aceito e calculado do mundo”. (Ibdem., 157).

O Brasil conhecia todos os detalhes das batalhas


sangrentas por meio de artigos como aquele e das reportagens de
TV, que divulgam com destaque imagens de corpos esquartejados,
mutilados, carbonizados, cemitérios clandestinos e traficantes em
poses de herói, disparando suas metralhadoras para o alto.
(PELLEGRINE, 2012, p.50)

Assim, a tragédia tem lugar garantido “parra o espetáculo da indústria


cultural, do qual a violência direta ou simbólica é um dos autores mais bem
pagos” nesta espetacularização de uma sociedade globalizada que não
procura amenizar o sofrimento de seus pares, mas transforma-o em mote para
entretenimento das massas. É importante destacar que todo este trabalho
desenrolou-se no entorno de uma abordagem verificável, dentre inúmeras
outras que seriam possivelmente verificáveis. Acrescentemos ainda, que como
a presença da violência, não é forçoso afirmar, é uma constante na formação
simbólica do imaginário cultural de países que sofreram exploração durante o

69
Lembremos o pensamento de Thomas Hobbes, com este aponta “o homem como lobo do
homem”.

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processo de colonização, ela é também uma promissora mercadoria de


consumo, não é difícil perceber seu papel de destaque no mercado de
entretenimento midiático e também turístico. A divulgação dos “imaginários do
medo” é o retrato contundente do desmanche social e do emparedamento dos
sujeitos metropolitanos; a violência é conservada nos meios midiáticos, que ao
mesmo tempo em que a condena, a promove.

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histórica?, Buenos Aires: Lunaria, 2000.

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Silva, Guacira Lopes Louro-11. ed.- Rio de janeiro: DP&A, 2006.

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DALCASTAGNE, Regina (Org.). Ver e imaginar o outro: alteridade, desigualdade,
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In: Revista de estudos brasileira contemporânea. n.39, jan/jul. 2012, p.37-55.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneo: expressões da literatura brasileira no século


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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: POÉTICAS AFRO-BRASILEIRAS: LITERATURA,


CORPO E MÚSICA

PROPOSITORES: MARIELSON CARVALHO (UNEB), CRISTIAN SOUZA DE


SALES (UNEB), JOABSON LIMA FIGUEIREDO (UNEB) E MOISÉS OLIVEIRA
ALVES (UNEB)

Ementa:

A partir de pesquisas em estudos culturais e pós-coloniais sobre afro-

etnicidades, tanto em literatura e cultura brasileiras quanto afro-latinas e

africanas, as intervenções teóricas deste grupo assumem o gesto político de

produzir (des)leituras sobre as relações étnico-raciais, de gênero, de

sexualidades, aliando-se crítica e epistemologicamente com subjetividades e

poéticas dissidentes nos territórios que ocupam no Atlântico Negro, a começar

por suas produções culturais, midiáticas e artísticas. Os suportes simbólicos e

materiais a partir dos quais essas pesquisas se desdobram possibilitam

entender a dinâmica das textualidades diaspóricas em contexto de intenso

trânsito cultural entre as Américas e as Áfricas, como a produção literária

baiana e da ideia de baianidade que emerge de suas narrativas, tanto quanto

na poesia de autoria negro-feminina caribenha, na sexualidade do corpo negro-


masculino em pornografias e na performance musical, ativista e intelectual de

artistas africanos.

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AFRICANIDADES E CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS NA


INVENÇÃO DO POPULAR EM ASCENSO FERREIRA

LIANA DANTAS DE MEDEIROS (UFRN) 70

“Ascenso Ferreira, Ascensão, Ascenso Grandão, voz grossa


de sapanta-boiada, chapelão de carro de bois no alto do metro e
noventa de estatura, coroando mais de cem quilos bem pesados”
(CASCUDO.1939)

Ao primeiro contato com a poética de Ascenso Ferreira na titulação da


trilogia dos livros Catimbó, Cana Caiana e Xenhemhém (FERREIRA, 2008) um
olhar mais aguçado aponta para a verve do pesquisador do popular em suas
invencionices carregadas de africanidades neste universo “encantado” de uma
poética pra lá de popular. Pela bússola do poeta-marujo, percorremos a viagem
que parte do limiar entre os sertões pernambucanos aos mangues recifenses -
com passagem pelas casas-grandes e canaviais dos senhores de engenho ao
movimento das senzalas - rumo à mãe África. Essa movimentação cristaliza - a
uma análise mais profunda - a busca da identidade atirada ao oceano dos
navios negreiros que de África partiam para em nossos portos atracarem.
Nessas idas e vindas da diáspora africana em terras da maior colônia
portuguesa, nasceu o Brasil das africanidades e negritudes. De nossa
ancestralidade diversa, colorida, impregnada de aromas e sabores aqui
desembarcados por milhares de africanos de variadas etnias que, em solo
brasileiro, formaram esse mosaico cultural que deu origem à nossa identidade
afro-brasileira. A presença do léxico africano incorporado ao português do
Brasil está batizada e registrada glamourosamente na poética aparentemente
despretensiosa de Ascenso Ferreira e é presença sobremaneira marcante em
seus poemas. Neste escopo, seus poemas cuja temática remete ao universo
afro-brasileiro, traduzem esse sentimento de construção identitária no Brasil.

Emblematizada pelos modernistas da década de 20, movimento que


vem amalgamar a expressão cultural, artística e literária desse Brasil afro-
tupiniquim-europeu simbolizado na personagem metonímica de Macunaíma, o
herói brasileiro, de Mário de Andrade, marco desse projeto de “entidade
nacional”, assim defendido pelo autor. Desse ideário modernista, que,
contagia o poeta pernambucano, floresce e brota a poética da invencionice do
popular em Ascenso Ferreira, proclamado por seus leitores e críticos, como a
própria metonímia do Nordeste e de seu povo, assim definido por Luiz Luna
(LUNA, 1971,p.14) Ganha fôlego, expressão e cores próprias o movimento
modernista regionalista, adoçado com o açúcar e as rapaduras produzidas

70
MEDEIROS. Liana Dantas. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. UFRN

466
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pelo povo africano em terras pernambucanas e cujas marcas levam a poética


Ascenciana ao limiar entre a poesia e a música. Nos poemas de temática
afro-brasileira, a combinação do léxico africano com a cadência dos
maracatus sob os sons dos atabaques e ingonos. O poema abaixo personifica
o universo encantado do popular simbolizado pelo eu-lírico em busca de sua
identidade:

MARACATU

Zabumba de bombos,

Estouro de bombas,

Batuques de ingonos,

Cantigas de banzo,

Rangir de ganzás...

— Luanda, Luanda, onde estás?

Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes

De espelhos luzentes,

Colares e pentes,

Queixares e dentes

De maracajás...

— Loanda, Loanda, onde estás?

Loanda, Loanda, onde estás?

A balsa do rio

Cai no corrupio

Faz passo macio,

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Mas toma desvio

Que nunca sonhou...

— Loanda, Loanda, onde estou?

Loanda, Loanda, onde estou?

No poema Maracatu, o eu-lírico busca situar-se nessa ancestralidade


dele arrancada e fragmentada aos ventos das naus que de lá vinham com
sua gente que aqui, em contato com outras etnias, assim como a dos
colonizadores e indígenas, deu origem ao nosso povo afro-tupiniquim-
europeu. O universo poético margeado entre a poesia e a musicalidade
encontra na associação do léxico africano ao ritmo dos batuques e tambores
africanos que criaram o maracatu, expressão genuinamente afro-brasileira,
nascida da diáspora dos povos africanos que, nas senzalas da zona da mata
canavieira de Pernambuco, reinventam sua cultura que dá origem a cultura
afro-brasileira. O poeta brinca com a invencionice do popular e recita a voz
do povo cravada pelas palavras, sons, ritmos, religiosidade, rituais africanos
fincados em nossos costumes e hábitos. O entusiasmo ora identificado,
todavia, deixou escapulir à maioria, o legado de sua obra. Apesar da
constatação da força sonora da poética Ascensiana, ícone do modernismo
regionalista da década de 20, somente Mário de Andrade e Manuel Bandeira
adentraram na análise da musicalidade e do ritmo que o poeta fez uso no
jogo de formas musicais como cocos, maracatus e sambas de rodas,
expressões cristalizadas em nossas afro-brasilidades. O poema abaixo
expõe os vieses aqui citados:

XANGÔ

A dor de viver
do branco humilhada
mudou em zoada
da raça a oração:

- EXU!
Tirili para bebê!
Tirili lônão!

No som dos ingonos


Há sombras de sonos
Que a mundos sem donos

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Nos fazem levar:


ODÉ! ODÉ!
Bomilê!
Paruafá!
Bomilê!
ODÉ!

Há sombras de sonos
vindos de liamba
de que é o samba
sonho singular:
-IAMANJÁ!

Naquela mulata
De gestos disformes
Há coisas enormes
Nem é bom falar:
- IAMANJÁ!

Ná!
Safirêê!
IAMANJÁ!

Ninguém compreende
Sua exaltação,
Com os olhos no chão,
Traçando com a mão
hipérboles no ar:
-Mariolá!
Mariô!
OGUM!
Balaxô!

Ah! Basta que a entendam


As sombras de sono
dos tristes ingonos
que a mundos sem donos
nos fazem levar...
.............................................
As sombras de sonos
que a mundos sem donos
nos fazem levar...
-Caô!
Cabecilé!

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XANGÔ! XANGÔ!

Ler Ascenso Ferreira no contexto de quem protagoniza o popular com


o requinte de quem combina: musicalidade, oralidade, rima, métrica,
presentes em seus versos de inspiração popular, nascidos tanto da
observação, estudos e, especialmente, no convívio íntimo e diário da vida do
poeta, criado nos limites da zona da mata canavieira de Pernambuco. Seus
versos de originalidade e força transmitidas sobremaneira no viés das afro-
brasilidades e do trabalho poético de excelência, que se revela na
manipulação magistral de sua poética embaladas pelo léxico africano, tão
miscigenerado ao português do Brasil, quanto às suas etnias que formam
essa identidade afro-brasileira. Donde podemos reviver cenas do passado
dos nossos afrodescendentes perpassando esse fio condutor imanente na
poética Ascensiana, partindo de nossa contemporaneidade, ao presente do
Modernismo brasileiro ao passado africano, para reconstruirmos nossas
identidades afro-brasileiras dentro do movimento histórico, apontando seus
lugares de emergência e seus contextos de desenvolvimento;
reconstruirmos nosso passado histórico em nossos ancestrais africanos. O
antropólogo Kagembele Munanga (2009,p.12) afirma que a questão da
identidade negra que hoje se apresenta é muito complexa, pois há de se
considerar a diversidade contextual na construção de uma identidade ou de
um personalidade coletiva. Munanga defende a ideia de que entre os fatores
essenciais a essa construção está o fator histórico predominantemente, uma
vez que é ele o cimento cultural que une os elementos diversos de um povo
através do sentimento de continuidade histórica.

A leitura da poética das africanidades presente nos versos de


Ascenso Ferreira recepciona o reencontro do fio condutor que nos liga ao
nosso passado ancestral ainda lá nos braços da mãe África. Stuart Hall
(2011,p.63) problematiza o conceito de identidade. Afirma ele que “este é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco
compreendido na ciência social contemporânea. As velhas identidades
estabilizaram o mundo social que mantinham o sujeito engessado na
unicidade”. O surgimento dessa identidade fragmentada do indivíduo
moderno, composta de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou
não-resolvidas, encontra no Brasil a ressonância de um povo que se
reconhece apenas pela identidade eurocêntrica, considerada a legitimadora,
de prestígio, renegando nossos outros rizomas, ratificando a subalternidade
e o silenciamento das africanidade e afro-brasilidades.
A leitura da poesia de Ascenso Ferreira desloca-se das histórias locais
do passado colonial e pós-colonial para a contemporaneidade, na qual a
problematização da identidade brasileira permanece ainda no passado
colonial, embora maquiado pelo mundo moderno tão colonizado quanto no

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

passado histórico. E a esse sentido ou percepção, a obra Ascensiana


dialoga com as questões identitárias da contemporaneidade brasileira e
globalizada, na qual as questões étnicas encontram-se nas fronteiras do
embate e jugo racista de dominação e opressão.

. Esse movimento segue até nossa contemporaneidade e a olhar o


olhar do poeta sobre o subalterno representado em sua poética no léxico,
nas manifestações culturais, na invencionice do popular, como também em
seu banzo pelo passado além-mar, pode ser um primeiro momento para
revisitarmos a poesia de Ascenso Ferreira. Analisar sua obra baseada nos
pensadores e teóricos da modernidade e pós-modernidade que amparam
questões como a busca de uma identidade nacional, deflagrada pelo
movimento modernista, na década de 20 do século passado e da qual o
poeta tornou-se ícone de sua geração no Nordeste, tendo assim contribuído
para alavancar o ideário de uma identidade brasileira que chega até nossa
contemporaneidade. Nessa construção identitária, a presença africana faz-
se imperiosa por ser ela um dos componentes mais vivos e fortes de nossa
brasilidade. Isto é, buscar no Brasil e em nosso povo, filhos das
ancestralidades afro-tupiniquim -europeia a face dessa miscegeneração, em
cores e trejeitos verde-amarelo, na tentativa de romper o padrão
eurocêntrico para adentrarmos em nós mesmos; na movência dessa
identidade para várias identidades, como defende Hall; ou a fragmentação
identitária, fenômeno consequente das diásporas, assim como desses
tempos líquidos de pós-modernidade, tecnologia e da globalização: o fixo é
etéreo. Sendo, pois que, desvalidam o conceito eurocêntrico herdado pelo
Iluminismo de identidades fixas, concepção do sujeito do Iluminismo. Essa
(des) leitura do eurocentrismo Ocidental e consequente validação como
padrão cultural do Brasil revela que nos mantemos ainda colonizados aos
preceitos do Velho Mundo. Não nos descolonizamos, mas sim vivemos em
constante processo de colonização ideológica e intelectual. Ler Ascenso
Ferreira sob o escopo da busca e formação identitária de afro-brasilidades
na contemporaneidade amparada, no olhar e na análise do léxico africano
em sua poética, corrobora para a quebra do paradigma do poeta do
regionalismo; portanto, a poética Ascensiana está margeando o erudito – o
que propicia a (des)leitura do texto literário engessado pelo olhar
acentuadamente pitoresco da invencionice do popular que o poeta utiliza
para marcar a presença africana em seus poemas, inspirado nas gentes,
costumes e tradições do povo nordestino - para uma leitura de cunho crítico,
que focalize a conexão dessas poéticas como as naus nas quais o poeta
busca navegar da modernidade ao passado histórico, à ancestralidade, em
busca de referências históricas, sociais, antropológicas, culturais que
contribuem para sedimentar a identidade afro-brasileira em um país por ela
impregnada, formada, mas que a renega.

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A (des)leitura da poética de Ascenso Ferreira na perspectiva do


regionalismo para a leitura da poética de Ascenso Ferreira como parte dos
estudos culturais que alavancam a construção identitária de afro-brasilidades
traz para a experiência de leitura em sala de aula a desconstrução e quebra
de preceitos e preconceitos para a reconstrução de conceitos amparados no
diálogo da literatura com outras áreas de conhecimento das ciências sociais
e humanas. Assim como enriquece o estudo do texto literário revisitado sob
novo enfoque e perspectiva amparado pelo encantamento e fascínio que a
poesia nos causa sempre que a lemos e relemos e que dela possamos
extrair ancoragens de leituras amparadas na criação poética multifacetada
da obra Ascensiana. Novas leituras surgem imanadas no pensamento que
permeou os modernistas e, em especial, os modernistas regionalistas,
deslocando-os para a contemporaneidade, na qual continuamos a buscar as
faces de um Brasil que é em toda sua essência afro-tupiniquim-europeu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Ascenso. Catimbó, Cana Caiana, Xenhemhém. São Paulo.


Marins Fontes.2008

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo. DP&A


Editora, 2011.

LUNA, Luiz. Ascenso Ferreira: menestrel do povo. Rio de Janeiro: Paralelo,


1971.

MUNANGA, Kagenbele. Usos e Negritudes. São Paulo. Autêntica


Editora.2009
VAINSENCHER, Semira Adler. Ascenso Ferreira. Pesquisa Escolar Online,
Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível
em:http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar. Acesso em: 08 de dezembro
de 2015.

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AS CONTRIBUIÇÕES DE OSCAR DA PENHA (O BATATINHA) PARA O


SAMBA BAIANO
OYAMA DOS SANTOS LOPES 71

Resumo: Este trabalho objetiva pesquisar a vida e obra do compositor e cantor


Oscar da Penha, O Batatinha, além de também analisar as letras de algumas
das suas principais músicas. No primeiro momento, o samba foi o enfoque
principal, tratando a sua trajetória, suas características distintas e que
influencia ritmos novos criados em todo o país, principalmente na Bahia. Já no
segundo momento trata-se de conhecer a importância de Batatinha, compositor
baiano,assim como investigar nas letras algumas de suas canções o viver
brasileiro, as desigualdades sociais e o samba lamento de tristeza inserida
nessas canções.

Palavras Chaves: Samba – Batatinha – Modos de Vida.

Historicidade do Samba

Algumas pesquisas sustentam que a música popular brasileira foi


intensamente influenciada por ritmos, sons, instrumentos, cantos e melodias de
origem africana. Os ritmos e danças da África, embalados ao som da música
dos negros eram acompanhados de instrumentos de percussão misturados aos
ritmos que originaram o samba atual.

Esse trabalho se concentra no reencontro com o samba original que


surgiu da mistura de práticas e elementos musicais de origem africana e
brasileira em fundos de quintal das casas alugadas pelas tias baianas que
foram trabalhar na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. “a maneira
de falar, natural e despreocupada, que determina às vezes em absoluto
sucesso de melodia - o samba - nasceu na Bahia e foi adotado pelo Rio de
Janeiro” (VIANA, 2010). Ainda sobre essa correlação entre Bahia e Rio de
Janeiro, quando da referência ao nascedouro do samba, Tinhorão afirma que

71
Mestranda do Programa de Pós- Graduação em Crítica Cultural pela Universidade do Estado
da Bahia (UNEB)
E-mail: oyama.lopes@yahoo.com.br

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“aos fundos, e no quintal os brabos amantes da copoeira e da pernada,


divertiam-se em roda de batucada ao ritmo de estribilhos marcados por palmas
e percussão” (TINHORÃO, 2010, p. 293-294).

O samba de roda nascido no Recôncavo Baiano em meados do


século de XIX tem características de uma roda de capoeira, um solista
acompanhado por instrumentos como o reco reco, pandeiros, atabaques viola e
violão puxa um refrão e logo é seguido por um grupo de pessoas que começam
a dançar, essa manifestação serviu de referência para o samba carioca.

Com relação às referências ao samba como sendo de origem


baiana, Aquarone explica que

Foram as numerosas famílias baianas que fixaram residência no


velho Rio que, ao reproduzir aqui as cerimônias típicas com que no
seu Estado festejavam certas épocas do ano, os santos da sua
devoção católica ou os orixás de sua crença africana introduziram na
cidade o germe da nova forma musical. E em fins de 1916 uma
composição famosa, trazendo pela primeira vez (grifo nosso) a
designação de SAMBA (AQUARONE, 1946, p.292).

O primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone, no ano de


1917, música composta por Donga e Mauro de Almeida e cantado por Bahiano
já há alguns anos depois, o samba ganha as ruas e difundes-se pelos
carnavais do Brasil.

Seja de origem baiana ou dos redutos cariocas, o samba é tido como


um dos principais referencias de identidade musical brasileira, visto que as
referências identitárias do Brasil foram estabelecidas através das diversas
manifestações produzidas pelo povo mestiço dessa terra, não sendo diferente
com a cultura e a música, sobretudo com o samba em que a sua autenticidade
legitima a identidade brasileira, pois Segundo Hall (1999, p.49) “As culturas
nacionais, ao produzir sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais
podemos nos identificar, constroem identidades”.

Com esse percurso de apropriação, resultando num processo de


legitimação do samba enquanto elemento de unidade nacional é possível
compreender que esse processo foi significativo para uma evolução da cultura
musical brasileira através de uma demarcada massificação. Segundo Tatit
(2008, p.91) “Estudar a cultura brasileira equivale a considerar inevitavelmente

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os seus processos de mistura que jamais se restringem ao campo étnico”. A


identidade musical brasileira, tendo como exemplo o próprio samba, é
resultado de uma verdadeira hibridização de ritmos e arranjos musicais toda
essa característica singulariza a musicalidade nacional, retomando Tatit (2008,
p.104) “(...) “a canção popular brasileira tem (grifo nosso) um equilíbrio estético
nem sempre presentes em outras culturas musicais.

Grandes compositores e intérpretes surgem na década de 40 e 50, como


Waldeck Arthur de Macedo, o Gordurinha; José de Assis Valente, compositor
que alimentou os sucessos da carreira de Carmem Miranda, mostrando para o
mundo o samba, ‘o que é que a baiana tem?’. É que o samba passou a integrar
o repertório musical da sociedade brasileira, na década de 60 e a marca baiana
– o samba marcado no pandeiro, no prato-e-faca e na palma da mão – passou
por um processo de refinamento, o que pode ter proporcionado a incorporação
de elementos sonoros que possibilitaram novos arranjos.
É possível compreender essa inovação de arranjos como demarcadora
do surgimento do chamado samba-canção (samba mais lento) na voz do
baiano Dorival Caymmi. Concomitantemente, outras variantes do samba
passam a integrar o “leque de dicções” 72 que componentes do universo musical
do samba: o samba fossa na voz de Maysa Matarazzo, o sambalanço no
teleco-teco de Elza Soares, Miltinho e outros, bem como o samba ‘misto de
maracatu’ de Jorge Ben Jor. Segue-se a essa sequência de partícipes de
73
um “reencontro músico-cultural” , visando incluir e analisar a
contribuição do cantor e compositor baiano Oscar da Penha, conhecido
no meio artístico como Batatinha, levando-se em consideração os
principais aspectos de sua obra, contribuinte direto para a música e
cultura baiano-brasileira.

Batatinha: Um Ancestral do Samba


O samba baiano teve em Batatinha um dos seus maiores poetas e
compositores. Esse ícone possui mais de 100, sendo que muitas delas foram
gravadas.
72
Termo utilizado sob empréstimo de interessante capítulo da obra O século da Canção, de Luiz Tatit,
2008.
73
Referente ao termo utilizado por VIANNA, 2010.

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O gráfico Oscar da Penha, ou melhor "Batatinha", nasceu em Salvador,


em 05 de agosto de 1924. Filho de família pobre, morava na antiga rua dos
Campelas, hoje 3 de Maio, no Pelourinho, bairro onde residiu durante toda a
sua vida. Sua identidade sociocultural preservada no Pelourinho, patrimônio
histórico-cultural que se reveste de grande importância para o sambista, por se
tratar de um símbolo da memória histórica dos afros-descendentes. Segundo
Santos (2007, p. 82) “O território em que vivemos é mais que um simples
conjunto de objetos, mediante os quais trabalhamos, circulamos, moramos,
mas também um dado simbólico”. .

Desde os 15 anos já compunha suas músicas, mas começou na carreira


artística no rádio, inicialmente como cantor em 1944, no programa de auditório
Campeonato do Samba que era realizado no Cine Guarany. Gravou suas
primeiras composições na Rádio Sociedade da Bahia. Dizia para todos que
suas canções eram feitas por outros compositores, na esperança de que o seu
trabalho como intérprete fosse mais valorizado. A artimanha acabou não dando
muito certo, mas foi o suficiente para encantar alguns radialistas, entre eles
Antônio Maria, que lhe deu o apelido que acabaria o acompanhado pelo resto
de sua carreira – “Batata”, na gíria da época, significava para ‘gente boa’.
Seu primeiro samba composto foi o Inventor de Trabalho (1943), que só
seria registrado no seu primeiro LP, é a representação da temática da
malandragem, cujo personagem central é o trabalhador marginalizado, mal
pago “Mas há tanta gente no mundo / Que trabalha sem nada obter/ Somente
pra comer / Trabalhar e batalhar por uma nota curta”.

Inteligentemente, ‘com referência ao inventor do trabalho’, ele faz uma


ironia, culpando a “Dona Necessidade /é senhora absoluta da minha situação”.
Analisando essa música e também outras canções do compositor não se pode
deixar de lado as questões que levaram o trabalhador negro, no processo de
marginalização em todos os campos (na política, na educação, na saúde e
também no trabalho, presente desde o período colonial. E, “em vez de ser
encarado como atividade humanizante e regeneradora, o trabalho é percebido
como sacrifício que se impõe aos que vivem a luta pela sobrevivência”
(PARANHOS, 2004, p.19).

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Batatinha tinha mágoas naturais, de quem havia vivido na pobreza, e


não conseguia se encaixar no mercado da música popular brasileira (MPB) e
da cultura de massa. Chegou a reclamar de terem tentado enquadrá-lo como
cantor de samba de roda, mas ele relutava em ser cerceado a algo mais
limitado. Fazia questão de se fazer samba de origem africana, do semba
angolano, mas com influência do samba-canção urbano brasileiro. Pertencente
à Irmandade do Rosário dos Pretos, foi devoto dos sambas concisos,
despretensiosos, mas nunca destituídos de ambição estética.

Com um jeito singular de compor, de uma caixa de fósforos brotava-lhe


inspiração para letras elaboradas de sentimento e ironia. Esse instrumento de
criação lhe servia para cantar e batucar como mostra na canção Ministro do
Samba, quando diz que “Eu que não tenho violão/ Faço samba na mão”.

O seu primeiro samba gravado de sucesso foi Jajá da Gamboa


interpretado pelo sambista carioca Jamelão. A letra relata com um raro humor,
as histórias de um malandro chamado Jajá que se relacionou com uma coroa
rica da sociedade soteropolitana e arrancou toda sua grana e até sua
dentadura de ouro. Embora a música tenha sido sucesso, não rendeu ao
compositor Batatinha somas em dinheiro, mas sim reconhecimento. Com sua
simplicidade, alegava que o dinheiro não lhe atraía.

Pode-se afirmar que Batatinha foi um compositor criativo que procurou


manter viva, sua raiz africana contribuindo para isso, no que sabia fazer de
melhor: compor. Neste sentido inovou ao criar o primeiro o samba - receita,
notabilizado na canção O Vatapá, e introduzindo alguns elementos da capoeira
na canção popular nos anos 50. A capacidade criadora e inteligente do artista,
sensível a percepção do ritmo e do jogo corporal dos jogadores de capoeira,
Batatinha compôs em 1951, Samba e Capoeira que foi executado em 1954.
O compositor utilizava a letra das suas músicas para contar as histórias
de um povo e de sua cultura que segundo Lima, “ ponto integrante dessa
cadeia que aqui não termina nem se esgota, e a partir dele restaura um veio
perdido da memória pessoal” (2005, p. 28).
Considera-se as décadas de 60 e 70 aos anos 90, como o período em
que Batatinha teve reconhecimento internacional iluminado por uma das suas

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mais refinadas composições chamada Diplomacia e já com pouco mais de 40


anos de idade e é neste sentido, alguns autores afirmam que, valendo-se de
todos os instrumentos disponíveis, a luta do negro brasileiro por sua identidade
cultural encontrou maior fôlego na religiosidade, nas expressões artísticas
principalmente na dança e na música, como diz Colombo “sua identidade de
sujeito rememorante”(1991, p,108) e é na música (Samba) que Batainha
consegue destacar a sua identidade.

O samba Diplomacia foi inserido na trilha sonora do primeiro filme de


Gláuber Rocha, Barravento. Neste filme, essa canção é interpretada pelo
personagem de um pescador. E, quem quer que conheça o dia a dia de um
pescador, sabe que o mar lhe reserva grandes perigos. “Luto por um pouco de
conforto/ Tenho o corpo quase morto” esse trecho da letra de Diplomacia é a
história de luta de um pescador e que se iguala a do trabalhador afro-brasileiro
na letra confessional do samba.

Em Direito de Sambar, a letra revela a nuance de um compositor a expor


sua face sensível em plena avenida de carnaval: "É proibido sonhar/ Então me
deixe o direito de sambar/... Já faz dois anos/ que não saio na escola/ e
saudade me devora/ quando vejo a turma passar". Com música e samba no
sangue, o carnaval era uma das paixões do compositor Oscar da Penha
(Batatinha) e para o carnaval, havia sempre uma música para concorrer, porém
nunca eram selecionadas por se tratar de composições que inspirava
sentimento de tristeza.

Maria Bethânia, cantora nascida em Santo Amaro (região do recôncavo


baiano), seria o primeiro grande nome da MPB a gravar, em 1964, os sambas
Diplomacia, Toalha da Saudade, Imitação e a Hora da Razão nos shows do
Teatro Opinião e no show do álbum Rosa dos Ventos. Segundo Bethânia, ele
era um compositor que tocava a Tristeza, referindo-se as misérias sociais,
exclusão social e a corrupção política.

Em 1966, com o sambista baiano Ederaldo Gentil, Batatinha participa da


trilha da peça de teatro musical "Pedro Mico" de Antônio Callado. Ele compõe o
samba Espera que foi gravado pela cantora maranhense Alcione. Ainda
participa, em 1967, de uma produção de um vídeo-documentário da TV italiana

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estatal RAI sobre o samba brasileiro, além de também participar do filme


Jubiabá, longa metragem baseado no romance Jubiabá de Jorge Amado,
fazendo o personagem Zé Camarão amigo do negro Antonio Balduíno cujo
sonho é ter a vida contada em verso, num folheto biografado de cordel
chamado ABC. A exigência do autor para o Batatinha ser o Zé Camarão deve-
se ao tipo característico do personagem malandro, poeta do samba, o sabedor
da cultura popular, é possível de ser identificada no trecho do livro abaixo:

Outro que se juntava ao grupo, era o malandro Zé Camarão, tocador


de violão e contador de histórias sobre cangaceiros. O menino o
admirava e era seu melhor aluno de capoeira. Desejava, ainda,
aprender a tocar violão com o mestre. Essa era a forma de educação
que recebia, acreditando que, quando crescesse, certamente teria
suas aventuras narradas num ABC. A vida no Morro do Capa Negro
era difícil. Viviam das tarefas no cais, carregando cargas pesadas ou
do trabalho em casas ricas. As crianças já sabiam seu destino; o
trabalho no cais ou em fábricas enormes. Enquanto isso, os meninos
ricos iam ser médicos, advogados, engenheiros, homens ricos.
Também, podiam ser escravos desses ricos. Antonio Balduíno queria
outro destino, desejava ser livre como Jubiabá e Zé Camarão
(AMADO, 1986).

Em 1973, a Bahia recebeu a visita do compositor Paulinho da Viola, para


uma temporada no estado, aqui conviveu durante um período com os
sambistas locais. De volta para o Rio de Janeiro, divulgou os nomes do grupo
de sambistas baianos. Essa atitude de Paulinho da Viola mereceu de Batatinha
uma justa homenagem ao samba e ao sambista, elegendo-o a agenda política
no combate às desigualdades e representante do povo no planalto do samba
na música Ministro do Samba. A divulgação dos sambistas baianos na capital
do sambódromo, por iniciativa de Paulo Lima e da gravadora Polygram, lança o
disco Samba da Bahia com direção de Edil Pacheco em 1973, através de seu
selo Philips Fontana Especial, desse compositor aos 49 anos de idade.

Em 1976, Batatinha grava o primeiro e único álbum-solo, Toalha de


Saudade, que trás a regravação do samba Espera, sucesso na voz de Alcione.
A letra do samba é um exemplo nítido da faceta de uma melancolia herdada do
lamento dos escravos misturada com a alma portuguesa é o recorte lamento,
de um sambista negro baiano de rara sensibilidade poética. Batatinha nunca
desistiu de promover o samba como expressão artística do povo brasileiro.
Incentivou e promoveu diversos eventos ligados ao gênero, como a "Segunda
do Samba" e o "Dia do Samba", no Largo do Santo Antônio. Essas festas

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sempre contaram com o prestígio e presença de nomes da MPB, como Chico


Buarque e Luís Melodia, graças à admiração que eles nutriam pelo organizador
do evento.

Batatinha morre em 1997, para a tristeza do samba baiano. Contudo,


resta ao povo baiano a certeza que, sempre será lembrado, pelo menos
durante o carnaval ao conferir as novidades musicais no Circuito Batatinha,
trecho como é chamada uma das áreas mais importantes do carnaval baiano
que é a do Pelourinho e muito conhecida do compositor, pois lá nasceu,
morreu, e lá está também, todas as marcas da história do negro escravo e
liberto. Local onde hoje reúne intelectuais negros para abordarem a questão
negra; ponto de referência à identidade e à memória dos diferentes elementos
étnico-culturais formadores da sociedade baiana; espaço religioso e plural para
se divertir, rezar e fortalecer uma identidade social comum.

Como um afro-descendente da rua 03 Maio, Batatinha retratou em suas


composições como o negro é, como vive, guardada na sua ancestralidade nas
ruas de Salvador. Era um cronista da vida do povo com um grau de poesia, A
obra de Batatinha tem uma grande dimensão e é uma expressão da harmonia
com o mundo interior do poeta.

Considerações Finais

Identificando Batatinha como um grande sambista baiano, foi possível


conhecer a relação e os sentimentos do afro-descendente ao longo da sua
afirmação histórico-cultural em algumas das suas composições como a Hora
da Razão, “se eu deixar de sofrer, como é que vai ser para me acostumar”.

O estudo mostrou também a preferência dos elementos do cotidiano


baiano (música, dança, religião e culinária), baseado na cultura e na tradição
dos antepassados, que revelam a continuidade de aspectos sociais e
econômicos resistentes há décadas, além de inconscientemente preservando o
seu patrimônio cultural.

A pesquisa mostrou como Batatinha se relacionou bem com outros


músicos baianos de renome internacional, alimentando uma relação próxima

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com seus admiradores e delineando uma imagem pública de um


afrodescendente, que viveu enfrentando as desigualdades sociais.

As letras de suas músicas que compõem a pesquisa revelam a própria


imagem de Batatinha, como boêmio, mestre do samba, tocador de violão,
freqüentador de terreiro de candomblé e desiludido com a estrutura social e
política dominante, a exemplo da música Diplomacia.

Suas composições, o samba lamento, é pronunciado por uma música


triste ao som de pandeiro, violão e caixa de fósforo. Batatinha soube tocar as
pessoas por conseguir poeticamente, através da música, identificar formas
populares de viver e dão um sentido à vida, da mesma forma que seus irmãos
antepassados trabalhadores agrícolas, barbeiros, vendedores de feiras livres,
jornaleiros e etc, laços tão fortes que não conseguiram tirá-lo do Pelourinho,
palco das lutas e vivências do primeiro capítulo da História da Bahia.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

DO BENIM À BAHIA: O ATLÂNTICO AFRO-BAIANO DE ANGÉLIQUE


KIDJO

MARIELSON CARVALHO (UNEB) 74

Aburo, orè ni gbogbowa, ewa ka


lolé
Aburo, ibi kan ni wao, kamura si
ifè
Ouidah ni ilé ti Bahia
Ti émin mon wa, ri yin lénin o

(A Bahia está tão longe da Terra Mãe


Mas o espírito ainda está vivo
Um dia nós estaremos juntos
Eu quero atravessar essa ponte
75
Que liga Ouidah à Bahia)

“Bahia”, de Angélique Kidjo e Jean Hebrail,

Os versos da epígrafe anterior iniciam a letra da canção “Bahia”, do


álbum Black Ivory Soul (2002), de Angélique Kidjo, 55, cantora e compositora
nascida em Ouidah (Uidá), Benim. O contexto de criação dessa letra tem um
significado especial no seu projeto artístico, pois representa sua memória
pessoal e coletiva de uma diáspora africana no Brasil. A letra foi escrita em
iorubá, cujos elementos simbólicos e materiais referências no disco são
bastante recorrentes e com destaque por sua ligação à história de ex-escravos
retornados da Bahia para a África.
Black Ivory Soul é o segundo álbum de uma trilogia que faz uma
celebração à música negra nas Américas (o primeiro foi Oremi, 1998, sobre os
Estados Unidos; e o terceiro, Oyayá, 2004, sobre o Caribe). Neste trabalho,
Angélique contempla a música brasileira e seu porto de chegada é a Bahia. A
partir de referências historiográficas, musicais e orais, a cantora faz uma
viagem transatlântica às suas próprias origens para mostrar o quanto que a
escravidão não apagou as tradições beninenses nas Américas e sobre as quais

74
Professor Assistente (UNEB-Campus XVI-Irecê) e Doutorado em Literatura e Cultura
(UFBA)
75
Tradução de versão em inglês.

483
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ela construiu sua carreira artística, sendo hoje uma das mais importantes
cantoras africanas do mercado fonográfico e show business internacional.
A ponte a que se refere Angélique na canção liga margens de rotas de
fluxo e refluxo de tráfico de escravos, mas não só aquelas entre Ouidah e
Bahia. Essa referência geográfica se torna um território de expansão para a
cantora reinscrever textualidades e narrativas por todo o Atlântico negro em
termos de produção artística, intelectual e ativista. Em um dos versos,
Angélique e seu marido Jean Hebrail, ambos compositores da letra, ressaltam
a importância (ou dádiva divina) da Bahia como um desses enclaves de
tradução africana no mundo: “Oluwa foun wa ni ayé, edjè ka du kpè/ Bahia kpa
gbogbowa kpo, iréti wa lonan” 76
A escolha da Bahia para a produção de seu álbum tem a ver com esta
referência na letra: “A Bahia para mim é a face gêmea da África e
principalmente do Benim, porque é o único lugar do mundo – fora do meu país
– onde encontro mais negros que brancos. (...) A nível musical, trabalhei
pensando que um dia ou outro iríamos nos reencontrar nesse destino” (KIDJO,
2006, p. 71). É interessante pontuar o que isso representa na carreira de
Angélique, na medida em que para que essa travessia fosse completa ela tinha
que passar pela Bahia, onde parte de sua história familiar e de criança estão
relacionadas.
Seu pai é de origem fon, o principal grupo étnico do Benim, e sua mãe,
iorubá. Segundo Angélique, o lado materno tem raízes na Nigéria, onde os
iorubanos são em maior número. Um desses ancestrais, possivelmente seu
bisavô, foi um dos ex-escravos retornados da Bahia. Pouco se sabe da
trajetória desse parente de Angélique no Brasil, mas a oralidade circulante
dessa herança também afro-baiana em sua família dá conta de uma
identificação possível em sua memória, embora falar de escravidão na África
para alguns seja um tabu, na medida em que essa história pode revelar
envolvimento direto de familiares antigos do sistema, como traficantes ou
negociantes. Essa família inter-étnica resultou uma formação linguística,
cultural e religiosa singular na vida da cantora, na medida em que elementos
de suas identidades constituem a essência de sua visão de mundo como

76
“Deus nos dá a vida/ Sejamos gratos pela Bahia manter as tradições vivas que nos une./ A
recompensa de estarmos juntos ainda está por vir”.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

mulher, negra, africana e beninense. Mesmo uma falante colonizada em


francês, devido ao sistema educacional no Benim, Angélique não esqueceu
sua ancestralidade aprendida e cultivada em casa com os pais. Nas ruas de
Ouidah, convivia também com os agudás, como eram chamados os
“brasileiros” do Benim.
Segundo Milton Guran (1999), a maioria desses africanos são
descendentes de escravos ou de comerciantes e traficantes oriundos da Bahia
e que formaram uma comunidade com traços culturais portugueses
marcadamente afro-baianos, católicos ou não, numa espécie de hibridismo
etnorracial já em formação no século XVIII e XIX em Salvador, período maior
de tráfico e, consequente, de retorno ou viagem deles à África. Essas
referências até hoje são praticadas em manifestações religiosas e sociais. A
presença “brasileira” está também nos nomes e sobrenomes de origem
portuguesa, referência de batismo desses africanos escravizados ao chegarem
à Bahia, assim como na arquitetura de igrejas e casas em Ouidah. Inclusive o
nome “agudá” supõe-se ser uma corruptela de Ouidah, nome francês para a
forma aportuguesada Uidá, que por sua vez remete ao Forte São João Baptista
de Ajuda, edificado na cidade no século XVII por negociantes e doado à Coroa
portuguesa.
Angélique se lembra bem dos agudás festejando a bourian, um tipo de
folguedo popular originário da Burrinha, variante baiana do Bumba-meu-boi,
cuja performance dos brincantes envolvia dança e música, muito parecido com
o samba de roda. A musicalidade da Bahia a contagiou da mesma forma que
se interessou pelos vínculos religiosos entre Salvador e Ouidah. Jorge Amado
(1912–2001) já tinha lhe falado sobre o culto dos orixás no Candomblé em um
encontro anos antes na Embaixada do Brasil em Paris, mas sua principal fonte
de pesquisa foi o fotógrafo francês Pierre Verger (1902–1996).
Radicado em Salvador desde 1946, Pierre Verger tornou-se um dos
principais pesquisadores do Candomblé baiano, usando a fotografia como
técnica etnográfica. Angélique Kidjo, além de saber nos livros do francês como
o tráfico ocorreu, também conheceu em suas fotografias parte da história de
seu próprio país das décadas 1940 e 1950, período de pouco registro visual
das cerimônias tanto de orixás quanto de vodus, assim como a vida cotidiana

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dos beninenses (à época, o país era chamado de Daomé) nas ruas das
cidades.
Para sua felicidade, ela reconheceu uma tia paterna em um desses
negativos, flagrada em uma praça de Ouidah, em meio a um grupo de
mulheres. A imagem de sua parente era marcante em sua lembrança de
criança, porque era ela quem lhe contava muitas histórias e lendas de sua
família. Reconheceu também o lugar como perto da casa onde sua família
guardava a memória de seus ancestrais e do mercado onde passava o tempo
conversando com suas tias, enquanto elas vendiam tecidos e mercearias. A
memória reinscrita de Angélique na foto de um estrangeiro no Benim e que
mais de cinquenta anos depois é revelada na Bahia, onde a ancestralidade
dela se reencenava a partir de sua visita, foi uma das muitas experiências
diaspóricas da cantora em Salvador, talvez a mais afetivamente forte pelo laço
de parentesco e por ninguém de sua família ter uma foto dela dessa época que
somente ele teve a sorte de ver.
Africanos de línguas ewe-fon e iorubá em Salvador foram
preponderantes na formação do Candomblé baiano, constituído por “nações”
de diferentes ou amalgamados cultos religiosos desses dois grandes grupos
étnicos, além dos de origem banto, de uma outra área que hoje abrange Congo
e Angola, assim como de países limítrofes na costa atlântica e do Índico, como
Moçambique (CASTRO, 2001). Orixás e vodus constituem divindades de povos
que, em sucessivas migrações devido a guerras ou mesmo ao próprio tráfico,
se estabeleceram no Golfo do Benim, ou Costa dos Escravos, como eram
conhecidos no século XIX os territórios de Togo, Gana, Benim e Nigéria. Até
hoje, mesmo influenciadas pelas línguas europeias e religiões cristãs, essas
etnias praticam suas ritualidades, o que fez de Angélique Kidjo, que sempre
conviveu em ambiente inter-étnico, a ser tornar mediadora/tradutora dessa
tradição cultural na Bahia.
Ela narra um episódio ocorrido em visita a um terreiro, cujo babalorixá
da casa, Balbino Daniel de Paula, cantou uma música para Exu em iorubá, que
segundo ele é uma das mais conhecidas e cantadas pelas mães-de-santo de
Salvador, mas que mesmo assim, ele não compreendia seu sentido
completamente. Quando ela traduziu os versos da letra, o pai-de-santo se

486
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emocionou ao ponto de vir lágrimas nos olhos. Angélique ficou surpresa como
aquela música tinha sobrevivido por séculos fora da África e ter ficado intacta
com todas as suas palavras e sons. (KIDJO, 2014, p. 156)
Em outro contato com o mundo do Candomblé, ela disse que, mesmo
não sabendo falar português antes de uma cerimônia para qual foi convidada,
sentiu-se em um ambiente familiar quando as músicas sagradas começaram a
ser executadas: “I had the feeling there were two of me, one who was there
listening to the people around me speak Portuguese, and, at the same time,
one who was hesring the traditional songs in Yoruba and following the entire
sequence of the procession and the trance, just as if I was at home”. 77 (KIDJO,
2014, p. 156)
É interessante como Angélique usa o termo home (casa) como
representação de lugar de intimidade e acolhimento espiritual, onde ela mesma
se sentia estrangeira pela língua que não falava. No entanto, a língua como
dispositivo simbólico de identidade se materializou em outros elementos
sensoriais, cujas referências culturais se desdobravam a cada passo em que
ela dava em Salvador, como os gestos e as falas das pessoas; a vegetação, o
clima e o cheiro da cidade: “With the very first whiff of air, I breathed, I thought,
‘This isn’t possible. I can’t be home’. But, in some ways, I was” 78 (KIDJO, 2014,
p. 151-2).
A língua é um registro de vozes dispersas, mas que através dos signos
em rotação se atualizam à medida que algum som ecoa memórias, narrativas e
poéticas. É o que Paul Zumthor chama de “intervocalidade”, ou uma rede de
vozes que se movem a partir da performance de seus intérpretes numa escala
de tempo e espaço largo e indefinido, latente de reinscrição, entreaberta ao
imprevisível e à criação contínua: “A tradição, quando a voz é seu instrumento,
é também, por natureza, o domínio da variante. (...) O dado tradicional existe,
virtualidade tanto poética quanto discursiva, na memória do intérprete e,
geralmente, na do grupo a que ele pertence” (ZUMTHOR, 1993, p. 144)

77
“Eu tive a sensação de que eram duas de mim. Uma que estava escutando as pessoas ao meu redor
falando português e, ao mesmo tempo, uma outra que estava ouvindo as canções tradicionais em iorubá
e acompanhando a sequência inteira do cortejo e do transe, como se eu estivesse em casa”.
78
“Com o primeiro cheiro de ar que eu respirei, eu pensei: Não é possível. Eu não posso estar em casa.
Mas, de alguma maneira, eu estava”.

487
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O contato de Angélique com artistas baianos para produzir seu álbum é


a própria reconfiguração dessa intervocalidade. A movência resultou esse
encruzilhamento de vozes no Atlântico negro, no qual a parceria de Carlinhos
Brown é parte importante da ponte idealizada por ela. Cantor, compositor e
multi-instrumentista, Brown já era uma das referências de música negra
brasileira para Angélique quando escutou sua participação no álbum Brasileiro
(1992) do músico Sérgio Mendes, vencedor do Grammy de melhor ábum de
world music em 1993. A forma intensa e criativa como o baiano compunha
suas músicas a impressionou muito e ambos, envolvidos no clima desse
intercâmbio sonoro entre a Bahia e o Benim, fizeram três letras para o disco:
“Tumba”, “Okan bale” e “Iemanjá”.
Como sua passagem pela Bahia ocorreu próximo ao Carnaval, a
experimentação em cima do trio elétrico do que produziram juntos foi para
Angélique uma experiência artística inenarrável pois, sob o comando de
Carlinhos Brown, o grupo de percussionistas da Timbalada tocou com ela
“Tumba”, que é como se chama a conga no Benim. Em ritmo excitante,
amplificado pela batida forte dos timbaus, a letra foi feita em fon para
homenagear o público, que prestigia o artista e que se integra/entrega à sua
proposta musical: “Tumba, tumba, wamininyi dou ou wé lo/ Tumba, tumba,
n’doté kpon wé wa la” 79.
A música é incluída no roteiro de suas apresentações, momento este no
qual convida o público para dançar com ela no palco no encerramento do
show. A sensação de cantar no Carnaval foi a de que estava numa ilha,
enquanto todo o restante era um mar de pessoas contagiadas pela música.
Essa experiência da participação do público na folia com os seus artistas
preferidos a impressionou muito, cantando e dançando todos juntos suas
músicas ao longo de quilômetros e horas sem parar. “Tumba” foi inspirada
nesse sentido de unidade e pulsação coletiva baiana, que ela reencena em
seus shows há mais de dez anos e é um dos pontos altos de sua performance.
Cabe ainda destacar que, tanto a parte musical de “Tumba” feita com
Carlinhos Brown em sua casa, quanto à letra, somente escrita por Angélique
onde estava hospedada em Salvador, assim como o próprio circuito do

79
“Tumba, tumba, prepare-se para dançar/ Tumba, tumba, estou esperando por você”

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Carnaval onde a música foi cantada, tinha o mar como cenário constante. E
não podia ser diferente quando se trata de Salvador, cujo mito fundacional está
assentado nesse imaginário marinho/praieiro de simbologias católicas,
tupinambás e africanas. E Angélique percebeu essa energia do mar à sua
volta. Como fazem no Benim seus ancestrais iorubanos, ela reverenciou
Iemanjá em uma linda e comovente canção, também composta com Carlinhos
Brown. A ponte de Angélique não poderia deixar de estar também fundeada em
águas profundas de Mami Wata, como Iemanjá é chamada em fon, cuja
religião, o vodu, é discriminada como prática maléfica e bizarra. Ao contrário
dessa interpretação, as religiões tradicionais do Benim dividem o mesmo
propósito de amor ao próximo: “Having a Fon dad and Yoruba mom put me in a
special place. It gave me access to so much culture and music. The songs and
dances and the cerominies are diferent, but they have coexisted for hundreds of
years”. 80 (KIDJO, 2014, p.29)
Nesta canção, esse sentido de paz que o orixá simboliza é evocado:
Yemandja eyin nin iya gbogbo wa/ Edjadé, èdjadé ké wa djo, kpèlou wa, I
manifesta/ I manifesta maman, I manifesta èdahoun o. 81 Angélique, em
entrevista sobre a gravação do álbum, destacou que esta música fala de
Iemanjá como exemplo de união e que os homens têm sempre que chamá-la
para juntos celebrarem a paz. “We need that. We never can have enough of
that, right?”82
Esse aprendizado de lidar com a harmonia na diferença a partir do
contato com as diversas crenças no Benim tem importância na produção
artística de Angélique Kidjo. O fato de muitas divindades coexistirem em sua
vida social, além da referência católica como elemento sagrado, embora
protocolar em contexto familiar devido ao influxo colonial, deu à cantora a
medida possível de como lidar com o binômio, sempre pensado como
opositivo, entre tradição e modernidade. Angélique rasura esta lógica e cria
uma terceira via que se transforma em um tipo de liame genealógico para sua
performance. Seus trabalhos traduzem uma tradição, lidando assim com a

80
“Tendo um pai fon e uma mãe ioruba me colocou em um lugar especial. Isso me deu acesso a muita
cultura e música. As canções e as danças, além das cerimônias são diferentes, mas eles tem coexistido
há centenas de anos.”
81
“Iemanjá, você é a mãe de todos nós/ Venha, venha por favor e dance conosco/Manifeste-se, Mama/
Nós precisamos dessa paz no coração que você está nos dando”.
82
“Nós precisamos disso. Nós não precisamos nada mais do que isso, certo?”

489
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ativação de uma filosofia ou pensamento ancestral africano, que insere seu


intérprete não entre dois mundos separados, mas em torno deles, acionando
dispositivos de leituras sempre intensificadores e renováveis de identidade.
Anthony Appiah (1997, p.146-147) em seu livro discorre sobre como
saberes locais e universais se confrontam no mundo globalizado, do qual a
África faz parte, mas ainda discriminada por ter chegado atrasada a essa era,
portanto primitiva, e agora subsidiária a ela por ser dependente. Ele pontua, por
exemplo, sobre a própria ideia de “legado inadulterado” das crenças de povos
que tiveram contato com colonizadores ou mesmo com outras etnias africanas,
questionando se o que os ancestrais cultuam/praticam/orientam seria mais
valioso do que os contemporâneos desta mesma linhagem/comunidade
interpretam. Ou seja, uma forma de concedê-las um “status especial” anularia
uma interpretação crítica e possível dessas tradições na atualidade e entender
como o pensamento africano pode se inscrever como outra forma de mundo
conceitual ao pensamento ocidental, demarcando assim um território sem
comparativo de credibilidade ou validação dado por outros, mas tão-somente
de afirmação da existência de uma realidade/verdade própria.
O canal de comunicação de Angélique é a música e, nesse campo
artístico, ela integra territórios simbólicos e materiais diversificados, mas sem
deixar de estabelecer limites provisórios de atuação entre esses mundos. O
trânsito que ela opera, especialmente no uso de línguas diferentes, já é uma
estratégia performática de dupla consciência, na medida em que lida com
repertórios históricos cujos sistemas de interação social e cultural exigem
compartilhamentos específicos, próprios de sua trajetória pessoal e
profissional. Anthony Appiah inclusive fala sobre o consumo de bens culturais
em contexto pós-colonial a partir de uma lógica de procura e oferta de
mercadorias transnacionais criada por uma “intelectualidade comprista”, que é
como ele chama ao grupo de escritores e intelectuais, de estilo ocidental e
formação ocidental, que no Ocidente são conhecidos pela África que oferecem,
da mesma forma que os africanos os conhecem pelo Ocidente que eles
apresentam à África e “por uma África que eles inventaram para o mundo, uns
para os outros e para a África” (APPIAH, 1997, p. 208).

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A esse grupo de que fala Appiah podem ser acrescidos outros membros,
como artistas, políticos... Angélique foge desse rótulo de mediação
institucional, mas sem perder de vista uma outra clave de agenciamento
intelectual, ou seja, fora do mainstream acadêmico e político. Ela atua na
perspectiva de uma dicção crítica de desmonte desta generalização criativa
africana, especialmente na música, e descende de uma linhagem que tem Fela
Kuti, cantor e músico nigeriano, como exemplo questionador disso. Agente
local e diaspórica, cuja relação se dá entre cultura tradicional e cultura de
massa, Angélique é crítica do rótulo world music, ela mesma ganhadora de três
prêmios pelo Grammy nessa categoria. Considera essa classificação um
equívoco. A indústria fonográfica como não consegue dar conta da
complexidade musical fora dos Estados Unidos e Europa reúne tudo em um
rótulo só. É um guarda-chuva musical que inclusive não cabe todo mundo, que
é muito maior do que se idealiza/classifica. A África é prova disso, com sua
profusão/explosão de musicalidades.
Anthony Appiah fala desse tipo de relação de consumo musical na
África:

Há distinções de gênero e de público nos tipos de música africana e, para vários fins
culturais, existe algo a que chamamos música “tradicional”, que ainda praticamos e
valorizamos; mas tanto os habitantes das aldeias quanto os moradores urbanos,
burgueses e não burgueses, escutam em discos e, o que é mais importante, no rádio, o
reggae, Michael Jackson e King Sonny Adé. (APPIAH, 1997, p. 208)

É interessante pontuar que as referências musicais estrangeiras de


Angélique Kidjo sempre foram negras, africanas ou norte-americanas, como
Miriam Makeba, Bela Bellow, Jimi Hendrix e Aretha Franklin, porque em sua
família os discos desses artistas circulavam como uma forma de aprendizado
musical pela diversidade cultural ao mesmo tempo em que se ouvia a “música
tradicional” africana das cerimônias religiosas e festivas.

Todos os aspectos da vida cultural africana contemporânea – inclusive a música e


algumas esculturas e pinturas, e até alguns textos com os quais o Ocidente quase não
tem nenhuma familiaridade – foram influenciados, amiúde poderosamente, pela
transição das sociedades africanas pelo colonialismo, mas nem todos são, no sentido
pertinente, pós-coloniais. (...) Em muitas áreas da vida cultural africana – daquilo que
veio a ser teorizado como cultura popular, em especial – não estão preocupadas em
transcender dessa maneira o colonialismo (em ir além dele). (APPIAH, 1997, p. 208,
grifos do autor)

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Black Ivory Soul traz uma experiência de interação com aquela filosofia
ancestral africana para um contexto de mercado fonográfico em expansão a
partir dos anos 1990, especificamente 1992, quando o Grammy inseriu pela
primeira vez a categoria de Best World Music Album em sua premiação anual.
O exótico, o étnico, o sui generis em tempos de abertura de mundos outrora
divididos entre Oeste e Leste; ou Primeiro, Segundo e Terceiro mundos, ou
mais ainda Centro do Mundo e Resto do Mundo (colonizados, descolonizados,
pós-colonizados...) ganharam outra forma de domesticação com a imposição
de gravadoras por um mundo “diferente” de se ouvir para alimentar o “novo”, o
“curioso”, o “multicultural”, por isso essa “invenção” de que fala Anthony Appiah
que, em princípio, aponta as literaturas africanas anglófonas e francófonas
como precursoras deste filão décadas atrás.
O contato de Angélique Kidjo com a música brasileira efetivamente
aconteceu em Paris, em 1983, para onde migrou, por ser contrária ao governo
ditatorial de seu país. Lá, a cena musical era marcada pela diversidade de sons
e ritmos de artistas das ex-colônias francesas na África e no Caribe, além de
imigrantes de outras nacionalidades, como os brasileiros. O jazz era a base da
fusão que se processaria a partir desta experiência reversiva de ocupação no
Centro. A própria Angélique confessa: “I loved jazz because it helped me
understand the connections between classical music, pop, and African
rhythms” 83 Ela participava de jam sessions em clubs ou de festivais, como de
Jazz de Montreaux ou Fête de La Musique, nos quais a presença de músicos e
cantores brasileiros era constante. Gilberto Gil compunha essa onda sonora em
ebulição com seu trabalho afro-pop brasileiro. Ao ouvi-lo pela primeira vez
disse: “Hey, this is my music; it comes from where I come from”. 84
Uma das músicas de Gilberto Gil que marcou Angélique foi “Refavela”,
do LP homônimo de 1977. A identificação imediata com a música de Gil revela
uma proximidade tanto sonora quanto social. A letra foi escrita após sua
participação no 2º FESTAC – Festival Mundial de Arte e Cultura Negra em
janeiro daquele ano, em Lagos, na Nigéria. A concepção de continuidade de

83
“Eu amava o jazz porque ele me ajudou a entender as conexões entre música clássica, pop e ritmos
africanos.”
84
“Ei, esta é minha música. Ela vem de onde eu venho”.

492
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Refazenda (1976), de aprofundar “a questão da revisita” a territórios periféricos


(o rural foi o primeiro) ficou mais evidente para Gil na África. Ele já tinha
pensado a favela brasileira como esse outro antípoda do centro da civilização,
mas ao conhecer Lagos e sua caótica infra-estrutura urbana, especialmente o
alojamento construído pelo governo nigeriano à época para receber os
milhares de africanos no evento, o mundo negro de lá e de cá foi aproximado e
revisitado, a partir de um gosto seu de unir elementos da sociologia, da política
e da antropologia em nível popular e pop. Segundo Gil, “reencontrei uma
paisagem sub-urbana, (...) uma espécie de vila olímpica com pequenas casas
feitas com material barato e um precário abastecimento de água e luz, que
reavivou em mim a imagem física do grande conjunto habitacional pobre [do
Brasil]”. (GIL, 2016).
A versão em fon de Angélique para a canção reproduz a mesma
percussividade africana que a mão afro-baiana de Gil incorporou em seus
arranjos, ancestralidade musical que está inclusive no próprio LP Refevala,
com “Ilê Ayê” (Paulinho Camafeu), “Babá Alapalá”, “Balafon” e “Patuscada de
Gandhi”, os três últimos de sua autoria. Ela enfatiza a mensagem de
renovação/renascimento das pessoas que vivem nas favelas da letra original. A
refavela que revela, que emerge do ostracismo social usando seus próprios
valores de resistência negra, como a música, na versão africana a
solidariedade é o tema. Em versos como “Alodo towé lo/ Noun nonzo towé la/
Wayi blo, manlin o wayi tchité. / Ho dido soukpo din / Ma dio nou dé lé”85,
Angélique alerta para que façamos nossa parte para ajudar o próximo, ou seja,
as pessoas que necessitam e que vivem em situação de pobreza. Ou seja,
parar de falar e agir, fazer nossa parte.
Em sua passagem por Salvador, ela visitou dois projetos sociais de
educação musical para crianças de bairros pobres: Pracatum, de Carlinhos
Brown, no Candeal; e Bagunçaço, nos Alagados, de Joselito Crispim. A
preocupação de Angélique Kidjo com questões humanitárias nessa época
ainda não fazia parte de sua agenda oficial como embaixadora da UNICEF,
assim como não tinha criado sua ONG Batonga, de apoio à educação de
mulheres no Benim, mas ela já pensava em pautar através da música um

85
“Sua ajuda a um irmão/ tem que ser feito e não pensar no que fez/ Muita conversa não muda nada./
Apenas levante-se e faça sua parte”.

493
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discurso em prol dos direitos humanos e consequente emancipação de negros,


especialmente crianças e jovens, na África.
“Black Ivory Soul”, a canção que dá nome ao álbum, já tinha sido feita
três anos antes da produção do CD, mesmo período em que Angélique veio
pela primeira vez a Salvador e teve contato com Daniela Mercury, e com quem
posteriormente escreveu e gravou “Dara” (Sol da Liberdade, 2000). 86
Inspirada na expressão “black ivory” (marfim negro) dada nos Estados Unidos
ao sucesso “Soul Makossa” (1972), de Manu Dibango, instrumentista e
compositor camaronês, o título também remete à ideia do “soul music” como
gênero de música negra, para além das fronteiras de seu status de criação e
recepção, mas ainda assim pontuando sua trajetória na afirmação de uma
identidade sonora sem protocolos ou validações de mercado, como foi o ritmo
contestador “afro-beat” de Fela Kuti, músico nigeriano, ritmo o qual Angélique
recria nos arranjos desta canção, assim como na letra, o seu tom crítico às
imposições coloniais: “Where ever you live/ You’ll find no one can take away/
Whatever you feel inside/ Your black ivory soul.” 87
A palavra “soul” (alma) inclusive potencializa o sentido de experiência
afirmativa do negro nos Estados Unidos que Du Bois (1999) abordou em seu
livro As almas da gente negra. Um dos pontos mais importantes, a reflexão
sobre realidade psíquica do negro, ou de uma “dupla consciência”, até hoje tem
efeito no conceito de uma rede global de narrativas musicais negras que Paul
Gilroy (2001, p.13) descreve como Atlântico negro: “As culturas do Atlântico
negro criaram veículos de consolação através da mediação do sofrimento. Elas
especificam formas estéticas e contra-estéticas e uma distinta dramaturgia da
recordação que caracteristicamente separam a genealogia da geografia, e o
ato de lidar com o de pertencer”.
A vontade cada vez maior de retornar à Bahia, com a construção de
uma ponte, ligando uma terceira diáspora àquelas já cruzadas no Atlântico
negro por seus ancestrais, foi ganhando força. Desejo que não era apenas por
uma necessidade profissional, pois estrearia com este álbum uma nova fase de

86
Daniela inclusive já tinha feito em 1994 para seu trabalho Música de Rua uma versão de “Batonga”
(“Saudade”), sucesso de Angélique do disco Logozo (1992).
87
“Onde quer que você viva / Não vai ter ninguém que lhe tire / Tudo o que você sente dentro de/ Sua
alma de marfim negro”.

494
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sua carreira no mercado fonográfico, em uma multinacional e poderosa como a


Columbia, mas também tinha um componente íntimo e afetivo que mesmo que
não fosse numa gravadora major, ainda assim com sua personalidade
independente e corajosa faria em qualquer outra, como tem sido todos os seus
projetos, sempre exitosos pelo diferencial estético e conceitual.
Black Ivory Soul é um álbum afro-fon-iorubaiano e exemplifica como a
música pop africana tem sido uma ponte para reconfigurações identitárias
negras no mundo. A partir de suas memórias, Angélique interpreta sua África
para o mundo, mas como uma artista-mediadora, suplementada por sua
atuação intelectual e social. A música que ela produz tem um caráter de
interconexão que Paul Gilroy acentua como

ruptura da inércia que surge na infeliz oposição polar entre um essencialismo enjoativo
e um pluralismo cético e saturnal (...). Ela é vivida como um sentido experiencial
coerente (embora nem sempre estável) do eu [self]. Embora muitas vezes seja sentida
como natural e espontânea, ela permanece o resultado da atividade prática: linguagem,
gestos, significações corporais, desejos. (p.208-09)

Na contracapa do encarte do álbum, Angélique reproduz uma frase de


Roger Bastide, retirada de um texto, Dieux d’Afrique, de Pierre Verger: “In the
sacred ground of Bahia, I saw a tree whose trunk was covered with seashells
and whose roots were pushing beyond the ocean as far as the African land”. 88
Na foto, ela está vestida de azul e branco, cores de Iemanjá, encostada de
perfil a uma parede, do lado oposto às palavras de Bastide, e com um olhar
distante, como se estivesse da África, através do mar, observando o solo
sagrado (e fértil) da Bahia, cujo um dos ramos de sua árvore familiar lhe fez
brotar uma identidade diaspórica afro-baiana, o elo para que o círculo de sua
vida fosse completado. (KIDJO, 2006, p. 71)

REFERÊNCIAS

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura.


Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

88
“No solo sagrado da Bahia, eu vi uma árvore cujo tronco estava coberto de conchas e suas raízes se
expandiam para além do oceano até a terra africana”.

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CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-


brasileiro. Rio de Janeiro: Topbooks; Academia Brasileira de Letras, 2005.

GIL, Gilberto. Refavela. Disponível em:


http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=13. Acesso em: 17 Jan.
2016.

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência.


Tradução Cid Knipel. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade
Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GURAN, Milton. Agudás: os brasileiros do Benim. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2000.

KIDJO, Angélique. “Angélique Kidjo: africana universal”. Revista Palmares,


ano II, número 3, dez. 2006. Entrevista concedida a Ubiratan Castro de Araújo.

KIDJO, Angélique. Angélique Kidjo: music is not only emotion and groove. It's
something that speaks for a culture and its people”. Disponível em:
http://www.angelfire.com/ak3/oremiforever/bis.htm. Acesso em 10 jan. 2016

KIDJO, Angélique. Black ivory soul. New York, NY, U.S: Sony Music
Entertainment/Columbia, 2002. 1 CD.

KIDJO, Angélique. Spirit rising: my life, my music. New York, NY: Harper
Design, 2014.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amalio


Pinheiro; Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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É PRA DESCER QUEBRANDO: INSURGÊNCIA, PAGODE E NEGRITUDE.

IVANILDE [IVY] GUEDES DE MATTOS (UEFS/FIRMINA) 89

Por vezes, as razões que nos levam a investigar determinado objeto não
se conformam com as razões geralmente esperadas pelos ditames
acadêmicos. Sendo assim, volta e meia me vejo questionada pelas não razões.
Sabendo-se que o objeto em questão, o “pagode” baiano, já deriva de uma
conotação musical frequentemente rotulada de “lixo cultural”, e que pelas letras
já se observa o repúdio de uma parcela feminina, procuro entre outras razões
aquelas não colocadas em questão, os nós de uma trama complexa e de
narrativas performáticas próprias.

O que procuro é desenvolver um direcionamento contrário em relação a


essas produções culturais, ou seja, é decodificar essas performances próprias,
e seus discursos reveladores da juventude negra e pobre de Salvador, as
manifestações de identidade e de comunidade que operam no âmbito do
público, do formal, do lúdico e do lazer.

Um dos lugares de enunciação a que me detenho nessas reflexões são


as relações de identidade e de comunidade estabelecidas a partir de ritmos
musicais que estão à margem, condenados a juízos de falsos moralismos.

Vou provocar desse modo um exercício interessante: a Idade Média e o


Renascimento, na obra de Rabelais, introduzidos por Bakhtin (1987), e o
pagode na Bahia no século XXI. A relevância do cruzamento entre a teoria
Bakhtiniana e o fenômeno pagode baiano permite redimensionar o espírito do
carnaval. A especificidade na obra de Rabelais se dá pelo caráter lúdico e
altamente crítico do ponto de vista das instituições normativas. Certamente,
existem outras obras importantes que tratam do carnaval; no entanto, é sob a
perspectiva Bakhtiniana que me interessa analisar alguns conceitos recorrentes
nessa pesquisa, como: liberdade, sexualidade, corpo, ritmo e movimento
expressos no carnaval do passado e no carnaval presente da Bahia, este de

89
Doutora em Educação e Contemporaneidade;Docente do curso de Lic. Em Educação Física da UEFS;
Líder do Grupo de Pesquisa FIRMINA-Pós Colonialidade, Educação, Corpo e Ações Afirmativas; Membro
da Comissão da Marcha do Empoderamento Crespo de Salvador. Email: ivyfirmina@gmail.com

497
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forma mais fixa e explícita. Ouso dizer que, em Salvador, vivemos numa
atmosfera carnavalesca permanente. Para esse argumento, precisamos trilhar
uma linha temporal imaginária sobre o que representava o carnaval no passado
e o que representa o carnaval contemporâneo na cidade do Salvador-Bahia.

Na Idade Média, o princípio do carnaval se dava com o “cômico” e se


convertia como a segunda vida do povo. O carnaval tinha o caráter de
contrariar as festas religiosas e oficiais, o que lhe tornava o espaço-tempo da
liberdade. Segundo Bakhtin (1987, p.09),

Nas festas oficiais, com efeito, as distinções hierárquicas, destacavam-se


intencionalmente, cada personagem apresentava-se com insígnias dos seus
títulos, graus e funções e ocupava o lugar reservado para o seu nível. Essa
tinha por finalidade a consagração da desigualdade, ao contrário do
carnaval, em que todos eram iguais e onde reinava uma forma especial de
contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida
cotidiana pelas barreiras instransponíveis da sua condição, sua fortuna,
seus empregos e sua situação familiar.

Seja na Idade Média ou na Contemporaneidade, o princípio da liberdade


se estende não só para quem brinca o carnaval, mas para aqueles que o
assistem. É fato que o carnaval, em dias atuais, apresenta aspectos bastante
diferenciados no que diz respeito à “liberdade”. Pode-se dizer que temos uma
liberdade vigiada, preocupada com a violência gerada pelo frenesi do carnaval.
Além disso, temos o gozo de certa permissividade dada às transformações
culturais e à afirmação de novos grupos sociais, dentre eles os gays, travestis,
lésbicas e outros.

Temos consciência de que, no presente, talvez apenas pela mudança


dos personagens oficiais (reis e rainhas), somos espectadores de uma cena
hierárquica durante as festividades do carnaval (políticos, artistas, cantores e
celebridades globais). Contudo, reconhecemos que tanto na Idade Média
quanto na Contemporaneidade, nos dias destinados aos festejos do carnaval, o
“povo” é o maior beneficiado, entenda-se aqui pelo espaço de liberdade fora
das cordas que delimitam o carnaval em Salvador. Segundo Souto Maior
(1974, p.81),

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Como não poderia deixar de ser, o Carnaval chegou ao Brasil por


intermédio do português colonizador, de quem herdamos hábitos,
costumes e tradições. Era anteriormente conhecido como entrudo,
intróito, introdução, desde 1595, compreendendo os três dias que
precedem a quarta-feira de cinzas, período em que, até os nossos
dias, pobres e ricos, velhos e moços, homens e mulheres, pretos e
brancos, esquecem as diferenças de ordem social e econômica
existentes nos outros dias do ano, para uma dedicação total aos
festejos carnavalescos.

Vejamos o que disse Bakhtin (1987, p.10) sobre a festa do carnaval:

Ela caracteriza-se principalmente pela lógica original das


coisas “ao avesso”, ao “contrário”das permutações constantes
do alto e do baixo (“a roda”) da face, do traseiro, e pelas
diversas formas de paródias, travestis, profanações,
coroamentos e destronamentos bufões.

Retomando a ligação conceitual da definição elaborada por Bakhtin


sobre o carnaval, referencio-me da citação para reelaborar o que estou
identificando como relacional entre o pagode e uma crítica corporal. Parto da
ideia anteriormente concebida de que o carnaval “põe a vida de ponta-cabeça”
para que o povo se liberte das posturas e condutas sociais estabelecidas pela
sociedade. Nesse caso, o pagode, que é de fato uma expressão própria do
carnaval baiano, revela-se através do que a sociedade cristã rotula de
degradação apelativa e imoral.

No pagode, a dança e a performance corporal são suas


manifestações mais visibilizadas e também mais contestadas. O ritmo do
pagode proporciona ao corpo dançante uma certa “malemolência” 90, o que
permite uma intensa relação entre música e corpo com um grau elevado de
liberação de endorfina, causando momentaneamente um êxtase em que o
dançante deixa de operar com a racionalidade e se entrega ao prazer. E nesse
prazer, a letra da música passa a ser secundária e o ritmo a necessidade

90
Ritmo gingado, característico da interpretação de certos cantores de samba, dançarinos, ou modo
característico de portar-se dos antigos malandros; molejo.

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primária para entrar no clima da festa. Segundo Sekeff (2010, p.37), “além de
sua característica aconceitual, a música é dotada de uma dimensão onírica,
inconsciente e sexual, o que possibilita acesso ao nosso eu”.

É com esse raciocínio que identifico na obra de Rabelais uma relação


extremamente forte sobre a descrição da realidade grotesca, desenvolvida por
Bakhtin. Consigo perceber um traço descolonizado no dialogismo conceituado
por Bakhtin que, ao seu modo específico, buscou descrever o significado que
tem para o povo uma festa cujo objetivo é a ocupação espacial dos de “baixo”,
livres de formalismos, na maior festa popular que é o carnaval.

Essa incursão pelas Teorias Rabelaisianas reorganizam o que


buscamos denominar de descolonização do conhecimento, ou seja, a partir do
objeto em foco, permitirem o encontro e o confronto sobre as representações
do carnaval para pensar as construções sociais e culturais contemporâneas em
Salvador. Assim, estou diante desse nó destrinchando esse emaranhado
complexo, usando lentes livres de armação para discutir sob outra ótica o
significado do carnaval, do baixo corporal e do pagode baiano para a juventude
preta e pobre da cidade do Salvador.

Existe de fato uma ideia sobre o carnaval de rua de Salvador que parte
de uma memória daquilo que já foi um dia, quando as pessoas se despojavam
de suas condutas sociais mais disciplinadas e esbanjavam alegria,
contrariando a rotina a que estavam envolvidas no cotidiano. Fantasiadas ou
não, as ruas eram o espaço da liberdade, como já foi muito bem descrito por
Bakthin. O contraponto se dá em torno da liberdade no carnaval. Nesse caso, é
como a maioria pobre em Salvador é tratada, e como essa maioria, ao mesmo
tempo, vê-se representada pelos animadores do carnaval, no caso os artistas
das bandas que tocam no circuito da folia.

A presença da população negra no carnaval de Salvador é,


notoriamente, muito maior que a população que integra os blocos, os “de
dentro” das cordas. São os blocos que reúnem uma massa de foliões pagantes
que optam por brincar o carnaval dentro de um espaço delimitado pelas cordas
laterais que “separam” os foliões do bloco dos foliões pipocas. As cordas são
sempre levadas por cordeiros que fazem uma espécie de barreira humana

500
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

impedindo, de forma austera, a penetração de pipocas. Para o folião do bloco,


entende-se pagar para brincar com segurança, ainda que dentro do espaço das
cordas aconteçam muitas atitudes violentas, como brigas e assédios morais.
Falo de uma realidade concreta e incontestável, dado o valor que se paga
pelos abadás. O carnaval é a alegria do povo, como diz a música. Certamente
o é para negros, brancos, pobres e ricos, dadas as suas devidas dimensões
socioeconômicas e espaciais.

A relação entre Rabelais e o pagode baiano começa a se fazer a partir


daqui, quando entra em cena um gênero musical que se consagrou nos
carnavais de Salvador no “Circuito Osmar”, reconhecido como o circuito da
massa que não pode pagar camarote e se aperta por entre becos e passeios
públicos para admirar os trio-elétricos, seus artistas mais queridos, e sair atrás
como pipoca quando finda a corda e ainda se pode ouvir a banda tocando e
assim curtir do jeito que der.

Lá vem o pagode baiano, que ao descer a Avenida Sete, no circuito


Osmar, arrasta uma multidão ao lado das cordas, atrás das cordas e à frente
das cordas, transformando o circuito numa grande onda negra esfuziante,
desconcertante e assustadoramente empolgante, “quebrando” as limitações
impostas pelo sistema. É a verdadeira expressão de uma liberdade crítica,
afrontando o instituído pelo poder da burguesia.

Partindo dessa realidade de preconceito e discriminação à cultura


subalterna produzida por esses artistas negros, é que vejo o pagode baiano
como uma cultura autêntica de sua forma vernacular. Pensando sob os
auspícios da Pós-Colonialidade, compreendo o pagode baiano como uma
crítica performática contra o instituído, suas normas de condutas sociais e usos
do corpo pela elite dominante.

Exatamente como na Idade Média, quando na festa do carnaval


prevaleciam as linguagens obscenas, a profanação, os sacrilégios e as ações
provocadoras que nesse período festivo eram permitidas, pois eram vistas
como brincadeiras, é aí que evidencio as semelhanças e diferenças entre os
aspectos desse propósito brincalhão. Podemos considerar que o carnaval em
Salvador, de certa forma, fixou categorias expressas na Idade Média,

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principalmente as de uso do corpo. É reconhecido que o carnaval é o espaço


da liberdade dos corpos nus, seminus, pintados ou grafados, não sendo
privilégio dessa ou daquela região do país onde o carnaval tem sua expressão
mais midiática.

Há sim uma especificidade no carnaval de Salvador, quanto ao uso das


linguagens corporais. Predominantemente, o pagode é um ritmo de corpos em
movimento, suas danças e coreografias acompanham as músicas e são, na
sua maioria, marcadas pela sensualidade de gestos e movimentos eróticos
(rebolados, retroversão dos quadris, agachamentos e alongamentos próximos
ao chão) exacerbados em malemolência e tremor dos glúteos, descortinando a
sexualidade para os olhos da audiência. Ainda que eu tenha o conhecimento
da cultura corporal do movimento como concepção pedagógica da Educação
Física, confesso que descrever o movimento dançante do pagode dificilmente
alcançará a dimensão do prazer que o mesmo proporciona.

Segundo Bakthin (1987) e Sohiet (1998), o “rebaixamento”, ou seja, a


transferência ao plano material e corporal de tudo que é elevado leva o
indivíduo a debochar da sociedade e da sua suposta seriedade através do riso.
A minha re-interpretação do “rebaixamento”, no atual contexto sócio-
econômico, cultural e, racial da cidade do Salvador se configura não apenas no
carnaval, como era na Idade Média, mas nele e fora dele, através do pagode.
Esse gênero musical já foi absorvido como cultura musical local, e não mais
como um ritmo casual de um calendário de festas, cuja participação da
população negra e pobre, ainda que de forma desorganizada, porém
intencional, dissemina pela cidade o grito dos excluídos, sendo usado para
expressar o que o baiano tem de mais precioso, a sua criatividade.

Dentre as mais diversas formas de expressão criativa, no pagode, o


apelo ao baixo-corporal tem sido recorrente pelas bandas, sejam as bandas
rotuladas de “baixaria” ou aquelas mais “light”. A expressão corporal
performática dessas bandas é, sem dúvida, a representação do seu grande
público de ouvintes e fãs. Não há dissociação entre o artista e o público nesse
caso; afinal, segundo o mapeamento das bandas eleitas para esse estudo, a
maioria vem das camadas populares da cidade do Salvador.

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Portanto, busco no conceito de “rebaixamento” de Bakthin (1987)


estabelecer uma conexão mais contemporânea sobre os usos do corpo no
pagode, para além das coreografias sensuais e provocantes, mas também
como uma crítica corporal e tentando decodificar essa narrativa expressa pelo
pagode que, associado ao ritmo, às letras e à harmonia possam estar pondo
para fora a revolta dos sujeitos oprimidos e excluídos da cidade do Salvador.

O riso, o deboche e a obscenidade, na verdade, não são manifestações


somente de alegria e contentamento, como querem definir as elites, cunhando
para Salvador o título de “terra da felicidade”; não vivemos essa felicidade no
cotidiano, sequer a tal democracia racial, dado que Salvador é,
indiscutivelmente, a cidade fora do continente africano com o maior número de
negros. Mas a publicidade insiste nessa paisagem pitoresca da qual a cultura
negra é guardiã, e esses descendentes de escravos, com elevado potencial
para as artes, música, dança, teatro e outras manifestações performáticas que
mantêm viva e pulsante essa cidade não são seus maiores beneficiados.

Portanto, através das minhas experiências acumuladas no âmbito da


área de Educação Física, permito-me arriscar a tecer essa relação sobre o uso
do corpo e o “rebaixamento” no pagode, cuja performance expressa através da
dança não revela somente alegria; ela transcende e faz uma crítica estética ao
que está posto pelas elites dominantes, nesse caso, o “lugar” do negro na
capital baiana. O riso, o deboche e a obscenidade são, portanto, categorias
analíticas de resistência presentes na dança do pagode. Desse modo,
compreendo o pagode como a narrativa mais próxima de um discurso crítico
que a juventude negra em fase de escolarização busca utilizar para contestar.
A apropriação do corpo a partir do pagode se revela como uma forma de
subversão, seja dentro da escola ou fora dela, nas festas, nas ruas, no
carnaval, nas praias, em todo lugar. Corrobora esse pensamento Castro Junior
(2009, p.17) quando diz que,

Dançar, pular e brincar pelas “rotas de passagem”, seja atrás dos


Filhos de Gandhy ou do trio elétrico, entre as cordas (ou não), é um
espaço feroz onde os corpos abrindo e fechando os cotovelos lutam
pela sua visibilidade na festa. Sendo assim, o corpo no festejo não é
apenas um simples adereço, ele é a expressão viva das relações
sociais de poder. As manifestações contraditórias, entre estes,

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expressam um recorte global, o que acontece em Salvador é apenas


um pequeno retalho de toda uma sociedade excludente e perversa.

Para Sodré (1998, p.22), o dançar é mais que comunicar:

A resposta dançada de um indivíduo a um estímulo musical


não se esgota numa relação técnica ou estética, uma vez que
pode ser também um meio de comunicação com o grupo, uma
afirmação de identidade social ou um ato de dramatização
religiosa.

Mesmo ainda que dominados pelo sistema, encontram na música e na


dança o “entre-lugar” para a insurgência. É o corpo negro se manifestando
critiativamente, ocupando o espaço público, anteriormente proibido pelas
perseguições da polícia aos batuques, à capoeira e aos candomblés.
Seguindo essa linha de raciocínio, a melhor definição para o conceito de
cultura partiu desse lugar:

A crítica pós-colonial é testemunha das forças desiguais e irregulares


de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade
política e social dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas
pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do
Terceiro Mundo e dos discursos das “minorias” dentro das divisões
geopolíticas de Leste, Oeste, Norte e Sul (BHABHA, 1998,p.239).

Percebe-se que, mesmo adquirindo elementos da cultura europeia, as


manifestações culturais negras sempre foram tidas como marginais, obscenas
e anti-morais frente aos comportamentos idealizados como padrão pela elite
brasileira. Ainda que,

Paradoxalmente, a festa negra também constituía uma atraente


opção de lazer para muitos brancos proprietários de escravos, como
acontecia nas fazendas e engenhos isolados.“As senhoras chegavam
muitas vezes para a roda, assim como os homens, e assistiam com
prazer as danças lúbricas dos pretos, e os saltos grotescos dos
negros”, escreve Freire Alemão, em 1859, sobre um batuque que
presenciara em Pacatuba,Ceará (DIAS, 2004,p.43).

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A penetração da cultura negra musical na sociedade brasileira se deu


através da mistura, pois como já dissemos anteriormente, a cultura musical
negra no passado escravista sofreu com as perseguições do poder público,
que via como desviantes os artistas e músicos. Paulo Dias (2012, p.03)
apresenta a distinção dos grupos étnicos que aqui deixaram suas marcas:

Em grandes linhas, podemos assim resumir o percurso da


musicalidade dos dois principais grupos étnicos da diáspora africana
no Brasil: os sudaneses jêje-nagôs da África Ocidental concentrados
principalmente em zonas urbanas do Nordeste deixaram sua marca
cultural quase exclusivamente nos domínios da religião afrobrasileira
(candomblés), enquanto os bantos da África Centro-Meridional,
fixados em sua maioria em áreas rurais, com maior densidade no
Nordeste e sobretudo no Sudeste brasileiro, impregnaram vivamente
com sua música festejos populares de diversas ordens, sejam eles da
religião afrobrasileira, do catolicismo popular ou de celebrações
profanas nas cidade ou no campo, além da música popular urbana.

Desse modo, a contribuição de Napolitano é a reafirmação de que a


cultura musical negra é resultado das mais variadas formas de hibridização, e
que a sociedade brasileira precisa conhecê-la. Acredito que o fato dos negros
trazidos para o Brasil não dominarem a língua e menos ainda a escrita tenha
sido um dos fatores para a não legitimidade dos ritmos genuinamente
africanos.

Mas a vida musical das ruas, senzalas e bairros populares era


intensa, embora tenha deixado poucos registros impressos ou
escritos. Seu legado é basicamente oral e preservado através das
canções folclóricas, festas populares e danças dramáticas
(NAPOLITANO, 2002, p.44).

Portanto, a mistura/hibridismo foi, sem dúvida, uma das estratégias de


resistência para a manutenção e resgate dos rastros/resíduos dos ritmos
africanos, como também uma forma de negociação entre a cultura dominante
do colonizador e as expressões de resistência dos mais variados grupos
étnicos escravizados. Tais reflexões são suportes históricos necessários para a
releitura da importância da música e de suas características nos processos de

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formação da sociedade brasileira. Ao reconhecer a importância da Lei 10639-


03 como obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro
Brasileira, podemos considerar tais conhecimentos sobre a cultura musical
negra como importante conteúdo a ser dado nas escolas, ressaltando os
diversos aspectos que envolvem temas ligados à musicalidade, como: a
emoção-estética, a produção de endorfina (hormônio produzido quando
sentimos alegria/felicidade), a forma lúdica de aprender e apreender outras
leituras sobre a presença dos negros escravos no Brasil e suas contribuições
para a cultura nacional.

Já em tempos mais recentes, próximo da década de 90, há um novo


reboliço nesse caldeirão cultural que se tornou o carnaval da Bahia, ainda sem
dar conta de contemplar de forma igualitária os seus maiores produtores, ou
seja, as/os compositores, intérpretes, cantores e diretores dos blocos afros. O
carnaval da Bahia não para, o seu movimento criativo é incomparável, como já
descrevi antes. Se existe algo em que efetivamente os baianos são potenciais
é nas suas formas mais criativas de lidar com as dificuldades do cotidiano, e a
arte de reinventar as coisas através da música e da dança lhe são peculiares.

Desse modo é que recorro ao Bloco Olodum, o Ilê Ayê, à Timbalada e


ao Araketu para chamar atenção sobre as suas transformações estéticas.
Notadamente tratam-se de três grupos que marcaram as mudanças no
carnaval de Salvador. Podemos dizer que eles são destaque na
profissionalização dos sujeitos ocultos que fazem o sucesso da música baiana
em território nacional e internacional.

Mas o que na verdade estou chamando atenção é para o hibridismo com


que se fecundam as novidades da música baiana através da inserção de novos
instrumentos, do próprio sampler e das novas tecnologias em instrumentos
musicais. Os seus representantes João Jorge (Olodum), Carlinhos Brown
(Timbalada) e Tatau (Araketu) são, portanto, porta-vozes de uma nova geração
que tem suas raízes na “blackatitude”, fortalecendo as simbologias africanas no
seu gestual, na sua música, na performance e no instrumental de base.

Destaco que, mesmo com suas recriações, o pagode seguramente tem


a sua matriz na modalidade do samba de roda.

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É desse universo multicultural que renova e reinventa a cultura musical


negra que chego a esse ritmo denominado “Pagode”, diferenciado no meio
musical como pagode baiano.

Nesse caminho de novas aprendizagens, percebemos que a crioulização


nas Américas não apenas influenciou a criação de novas formas de cultura,
mas, também, foi apropriada pelas elites locais que forjaram suas origens
nomeando e classificando principalmente os ritmos e danças africanas à sua
moda

Reconhecemos que a música e dança sempre estiveram implicadas


como formas de lazer entre os povos, e, para os africanos escravizados, foram
também a maneira de suportar a dor física e simbólica.

Diante dessa forma híbrida que o pagode apresenta enquanto um ritmo


musical descendente do samba e de outras variações, é que Glissant corrobora
quando fala sobre a crioulização nas Américas, e as formas como os negros,
através da música, misturaram-se a outros tantos ritmos. Na literatura
consultada, não foi possível definir se a Síncopa tem origem africana seria um
risco fazer tal afirmação. No entanto, seguindo os rastros de Sodré(1998, p.11)
é possível compreender que:

[...] a síncopa, a batida que falta. Síncopa, sabe-se, é a ausência no


compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto
repercute mais forte. A missingbeat pode ser o missing-link
explicativo do poder mobilizador da música negra nas Américas. De
fato, tanto no jazz quanto no samba atual, de modo especial a
síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a
marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo
que também falta no apelo da síncopa.

A memória e a oralidade são para os rastros/resíduos da música


como tradução da resistência da cultura africana nas Américas. Isso porque a
língua foi perversamente silenciada pelos colonizadores e o ingresso na escola
também foi tardiamente conquistado, promovendo, desse modo, entre os povos
africanos nas Américas, outras formas de comunicação. Para nosso

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

embasamento discursivo, Gilroy (2001; 2005) é uma referência teórica densa,


provocadora e atualizada para análise desse conceito analítico chamado
música na diáspora. Mas antes, quero dizer que vou me valer de um
pensamento de Glissant (2005) para usar com frequência a “repetição”, pois,
segundo ele, quanto mais se repete, mais podemos avistar os indícios de uma
novidade que começa a aparecer: a musicalidade negra, como uma cultura de
característica acústica, tem na repetição o formato mais peculiar, seja no
samba de roda, de caboclo, nas expressões do axé music, do pagode e do
arrocha, o que diretamente ativa a percepção pelo ouvido e,
consequentemente, favorece o fácil aprendizado.

A música, definitivamente, para as populações negras, fala de um lugar


de liberdade, do contato com a natureza, da relação com a sua ancestralidade.
Gilroy (2001, p.160), diante disso, traz a seguinte análise: “A música se torna
vital no momento em que a indeterminação/polifonia linguística e semântica
surge em meio à prolongada batalha entre senhores e escravos”. Azevedo
(2001, p.37) afirma que, “vivenciadas desse modo, a música e a dança
permitiram manter uma dimensão estética de um ser negro”.

Certamente, para as populações negras da cidade do Salvador em


especial, a manutenção dos seus mais caros signos e símbolos ancestrais não
permitiu que se hegemonizasse a tradução da música e da dança africana.

REFERÊNCIAS

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contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. Brasília:
Editora HUCITEC, Universidade de Brasília, 1987.

DIAS, Paulo. Diásporas Musicais Africanas no Brasil. Disponível:


http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=
article&id=297:diasporasmusicaisafricanasnobrasil&catid=80:escritos&Itemid=8
9. Acesso em 16.03.2012

GILROY, Paul. Entre Campos, nações, culturas e o fascínio da raça. Trad.


De Célia M. Marinho de Azevedo et al. Editora Anablume. São Paulo, 2007.

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____________ O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência.


Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Afro-
asiáticos, 2001.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução de


Enilce do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora. Editora: UFJF, 2005.

JUNIOR, Luis V. Castro de.; JÚNIOR, Flávio Cardoso dos Santos et. Al. A
lavagem do Bonfim. In:Lumina, Revista do Programa de Pós-graduação em
Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora / UFJF. Vol.5, nº2,
dezembro. 2011.

MATTOS, Ivanilde G. de. Estética Afirmativa: corpo negro e o ensino da


educação física. Salvador: EDUNEB, 2009.

NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular.


Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

SEKEFF. Maria de Lourdes. Da música, seus usos e recursos. 2ª ed.


Revisada e ampliada. São Paulo: Editora da UNESP, 2007.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Mauad,


1998.

SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da


Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
Vargas, 1998.

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NAVIOS NEGREIROS: SOLANO TRINDADE, CASTRO ALVES E O JOGO


DA REPRESENTAÇÃO

VITOR RAFAEL OLIVEIRA ALVES (UFBA) 91

Introdução

Este artigo procura explorar aspectos da relação entre Literatura Negra


Brasileira e Literatura Brasileira, analisando comparativamente dois poemas
localizados nesses dois sistemas literários. Explora-se o modo pelo qual um
desses poemas, “Navio Negreiro”, de Solano Trindade (1961), retoma
parodicamente “O Navio Negreiro”, de Castro Alves (1869) e, por esse meio,
suscita, além de questões relativas à representação do negro na Literatura
Brasileira, questões pertinentes à própria noção de representação literária.
Serão centrais ao argumento que se pretende desenvolver os conceitos de
simulacro (DELEUZE, 2003), de semelhança e similitude (FOUCAULT, 2008).

Navios Negreiros

Solano Trindade foi um poeta negro brasileiro, atuante também em


outras frentes, como o teatro, dos anos trinta aos anos sessenta do século
passado. Em 1961, publicou o poema “Navio Negreiro”, transcrito a seguir:

Lá vem o navio negreiro

Lá vem ele sobre o mar

Lá vem o navio negreiro

Vamos minha gente olhar...

91
Mestrando do Programa de Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia

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Lá vem o navio negreiro

Por água brasiliana

Lá vem o navio negreiro

Trazendo carga humana...

Lá vem o navio negreiro

Cheio de melancolia

Lá vem o navio negreiro

Cheinho de poesia...

Lá vem o navio negreiro

Com carga de resistência

Lá vem o navio negreiro

Cheinho de inteligência...

(TRINDADE, 2008, p.44)

Nos versos acima, a paródia apresenta características da poética


modernista. Retoma-se um texto pertencente ao cânone da literatura nacional
para sublinhar-lhe o adjetivo, ressignificando-o. Compostos em linguagem
simples e direta, põem em perspectiva a linguagem do seu outro. Esta, atraída
para a comparação, se mostra, então, como um conjunto de excessos e
floreios, uma ostentação de retórica bacharelesca. A dicção do poema de
Solano é já comentário sobre certos valores associados ao adjetivo “nacional”,
eixo sobre o qual se sustentava o romantismo tardio de Castro Alves e do seu
tempo.

O “Navio Negreiro” de Solano Trindade imita a estrutura do de Castro


Alves: a uma primeira parte em que o poeta romântico se deslumbra entre o
céu e o mar e faz tudo confluir para a sensibilidade deste “eu” (“Esperai!
Esperai! deixai que eu beba / esta selvagem, livre poesia!”, Canto I, verso 33),
opõe um singelo “Vamos minha gente olhar...”. Com isso, força e estimula a

511
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interpretação do poema romântico a se dobrar sobre si mesma. O entusiasmo


que elevava o poeta aos céus, a evocar a “águia do oceano” e antes dela uma
linhagem representativa da tradição ocidental, torna-se, investido pela
perspectiva da paródia, desaviso (“Mas que vejo eu aí... Que quadro
d'amarguras!”). A primeira parte do poema de Castro Alves então se abre, ela
própria, para a leitura paródica. O poeta sensível e culto tomado pela
inspiração do momento é confrontado com a futilidade de sua experiência ante
as cenas que está prestes a presenciar. O arrebatamento pela paisagem de
repente parece deslocado, ou então é a perspectiva, o “quem fala” do poema
parodiado que se desloca na leitura provocada pela perspectiva parodiante. A
“distância crítica” (HUTCHEON, 2000) que constitui um como paródia se aplica
como chave de leitura para o outro. É como se a voz do poema fosse cindida
em duas: uma que fala, outra que comenta o modo como esta primeira fala. O
poema torna-se leitura paródica de si mesmo. Efeito que se intensifica pelo
contraste entre o tom exclamativo dos três primeiros cantos e a reticência na
entrada do Canto IV.

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!

Desce mais... inda mais... não pode olhar humano

Como o teu mergulhar no brigue voador!

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral!… Que tétricas figuras!...

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

512
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Horrendos a dançar...

(ALVES, 2007, p. 30)

O “Navio Negreiro” de Solano Trindade foi publicado em 1961, quando


“modernismo”, já designava um período datado. Afirmar que o poema é uma
paródia “à maneira modernista” estimula nele um modo de operar que não é
programático, pelo menos não explicitamente, mas que verticaliza o corte que
os modernistas desejavam no seu projeto de interpretar a nação. Nesse
mesmo movimento, emerge como aquilo que o modernismo não alcançou no
seu desejo e na sua interpretação. Dessa forma, o poema, ao retomar
modernamente talvez o texto mais conhecido da literatura brasileira em que o
negro é representado, surge na produção literária brasileira com a potência do
recalcado.

Paródia, Recalque e Simulacro

Uma relação extremamente produtiva entre paródia e recalque no


contexto da construção do nacional pode ser extraída daí, quando se
estabelece como traço de união entre ambos a noção de simulacro, tal como a
desenvolve o filósofo Gilles Deleuze. Partindo de Nietzsche, segundo o qual a
tarefa da filosofia do futuro é a “reversão do platonismo”, Deleuze lança bases
para o pensamento sobre a representação na contemporaneidade. Reverter o
platonismo requer identificar, na motivação de Platão, não o desejo de
representar uma lógica do mundo a partir da dicotomia entre essência e
aparência, mas o interesse em estabelecer um método de divisão que no fim
irá separar os que merecem dos que não merecem (o bom do mau
pretendente). A lógica da representação segundo o platonismo, mais do que
um sistema em torno do qual orbita o discurso filosófico, tem presidido há
séculos as percepções, as concepções, os modos de pensar, a visão de

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mundo e os valores do senso comum. O aspecto dessa lógica cuja força se


percebe tanto na filosofia quanto no senso comum é aquele que leva o
pensamento a diferenciar original e não original, estabelecendo entre eles uma
hierarquia. Um modo de pensar e de organizar a percepção do mundo que
busca apreender os objetos remetendo-lhes a uma origem, a um outro que os
fundamentaria. A reversão do platonismo teria o sentido de, explicitando a
vontade platônica de hierarquizar por meio da diferenciação entre o mais
próximo e o mais distante do modelo, a boa e a má cópia, afirmar a diferença
como um “em si”, independente do original e da origem. Para Deleuze, o
desejo do platonismo é “recalcar o simulacro” (DELEUZE, 2000, p. 262).
Caberia à filosofia do futuro trazer o simulacro à superfície.

Platão aplicava a sua definição de simulacro às artes para impedir que


os artistas vivessem entre os habitantes da República. Como imitação da
cópia, afastada dois pontos da ideia, a arte promovia a disseminação da ilusão
e assim dificultava o acesso à verdade. Do ponto de vista platônico, qual não
seria o status da paródia, algo como uma imitação rebaixada da imitação? Do
ponto de vista deleuziano, quão maior não é a capacidade deste simulacro de
“se imiscuir e se insinuar por toda parte” (DELEUZE, 2000, p. 261)?

A definição de paródia tem uma longa história, à qual se refere de forma


bastante detalhada Gérard Genette (1989). O primeiro uso da palavra é
registrado em Aristóteles, precisamente quando este se propõe a pensar as
formas de imitação. Segundo a classificação que ele propõe, aparentemente o
termo paródia se refere à imitação de ação rebaixada em forma narrativa. O
recurso à Aristóteles demarca apenas um começo, um ponto de partida para
refletir sobre a definição de uma forma literária de resto sujeita às
transformações do tempo. A definição de paródia está em geral associada à
produção do efeito cômico, à derrisão do texto parodiado com base no ridículo.
Linda Hutcheon (2000), no entanto, defende, para caracterizar as
manifestações artísticas modernas, uma definição mais ampla: para que haja
paródia, bastaria a um texto que retomasse outro, diferenciando-se dele por
meio de um distanciamento crítico. Tanto os estudos de Hutcheon quanto os de
Genette já supõem na paródia, de forma mais ou menos pronunciada, essa

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habilitação para se liberar da relação hierárquica com o texto original (para


Genette, a paródia já esta inscrita na epopeia como texto possível).

Liberada do recalque que a organização do mundo baseada no


platonismo quer impor a ela, a paródia é uma figura à qual se franqueia, então,
o potencial reprimido de se “insinuar por toda parte” (DELEUZE, 2000, p. 262).
Esse potencial de insinuação pode ser lido em Michel Foucault (2008) nos
termos de uma propensão, inerente à similitude, à repetição em pequenas
diferenças. No seu conhecido ensaio sobre Magritte, Foucault (2008, p. 60)
opõe semelhança e similitude como modos ligados, respectivamente, à
representação e ao simulacro.

Assemelhar significa uma referência primeira que prescreve e


classifica. O similar se desenvolve em séries que não têm nem
começo nem fim, que é possível percorrer num sentido ou em outro,
que não obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propagam de
pequenas diferenças em pequenas diferenças. A semelhança serve à
representação, que reina sobre ela; a similitude serve à repetição,
que corre através dela. A semelhança se ordena segundo o modelo
que está encarregada de acompanhar e de fazer reconhecer; a
similitude faz circular o simulacro como relação indefinida e reversível
do similar ao similar.

Foucault identifica nos quadros de Magritte a instituição de um regime da


similitude, em que a referência em direção única da representação a um
modelo é substituído por um jogo em que “o simulacro corre sobre a superfície
num sentido sempre reversível” (FOUCAULT, 2008, p. 61-62).

Afirmações diferentes, que dançam juntas 92

Reversibilidade, superficialização, repetição e diferença são traços que,


partindo do pensamento que gera a crise da representação, podem servir para
interpretar o que faz o “Navio Negreiro” de Solano Trindade quando se produz

92
FOUCAULT, 2008, p. 64

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como acontecimento literário. A sua forma (o título, o léxico, a estrutura) indica


a intenção de chamar à baila “O Navio Negreiro” de Castro Alves. Estabelece-
se uma relação intertextual. Mas já investido da potência da paródia como
simulacro, não é a semelhança que vai balizar esta relação. O poema de
Solano Trindade não vai remeter ao de Castro Alves, mas trazê-lo a uma
superfície – no sentido que Foucault dá ao termo – em que agora habita. Tanto
Solano Trindade poderá ser lido por meio de Castro Alves quanto Castro Alves
será lido por Solano Trindade. Instaura-se um jogo de perspectivas no lugar da
verdade única. Enfim, a representação em Castro Alves, a relação entre signo
e mundo que ali se enuncia, será “descoberta como máscara” (DELEUZE,
2000, p. 262), pela perspectiva que o “Navio Negreiro” de Solano Trindade
introduz.

O modo pelo qual essa relação se engendra talvez possa ser apreendido
numa aproximação à análise do quadro Representação, de Magritte, realizada
por Foucault. Segundo Foucault, as duas representações justapostas de um
jogo de bola na composição do quadro põem em curto-circuito a própria
representação, ao depor a estrutura da semelhança, que relaciona as coisas no
esquema hierárquico modelo-cópia, e instituir o regime da similitude, baseado
na incessante reversibilidade entre os componentes. A representação deixa de
remeter a seu modelo na realidade ou no mundo, perdendo, com isso, a própria
qualidade de representação.

O “Navio Negreiro” de Solano Trindade promove esse deslocamento no


de Castro Alves. O processo pelo qual a representação do negro no seu poema
remeteria a uma impossível realidade total do negro é denunciado. Os
mecanismos que faziam o signo apontar para o mundo são redirecionados não
para outro lugar do mundo, mas para outro texto: o “Navio Negreiro” de Solano
Trindade busca se fixar como referência para o de Castro Alves. Como lugar
para onde os signos do “Navio Negreiro” devem apontar. É o “Navio Negreiro”
moderno, e não mais o mundo, que se propõe como o outro termo da relação,
quando surge a pergunta sobre o problema da representação no “Navio
Negreiro” romântico. Por esse meio, o poema paródia de Solano Trindade faz
participar, na interpretação do jogo intertextual, sua condição de simulacro.

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Assim faz girar ainda mais os sentidos possíveis de identidade nacional que o
poema de Castro Alves suscita.

Navio Negreiro, Literatura Brasileira, Literatura Negra Brasileira

O “Navio Negreiro” de Solano Trindade é uma paródia, figura que


encarna as reflexões de Foucault e Deleuze sobre a representação e o
simulacro. Mas não é só por apresentar a forma da paródia e funcionar
segundo essas características que o poema engendra sentidos centrais à
discussão sobre representação. Na verdade, atribuir os significados que ele
mobiliza, as inversões e os redirecionamentos que desencadeia e o jogo que
propõe apenas ao fato de que seus conteúdos se apresentem sob a forma da
paródia seria passar ao largo de aspectos que conferem a este poema a sua
especificidade.

Há algo, no modo como a Literatura Negra se constitui, que torna a


paródia um instrumento eficiente para algumas de suas intenções.
Comentando a presença da paródia na literatura negra antilhana, Zilá Bernd
(1988) a justifica por uma restituição do “eu” abafado pelo sistema colonialista.
O negro deixa de ser “aquele que é olhado” para se tornar “aquele que olha”
(BERND, 1988, p. 29). Na mesma esteira, a pesquisa sobre a Literatura Negra
Brasileira tem identificado como um dos traços característicos desta literatura o
que alguns decidiram descrever como a passagem do negro, nos textos nos
quais ele é representado, da condição de objeto da enunciação à de sujeito. O
sujeito negro assume posição ativa no espaço instaurado pela enunciação.
Entre as posições de enunciador e enunciado que a enunciação põe em jogo,
ele é, na literatura, aquele que fala, não mais apenas aquele de quem se fala.

Castro Alves representa o negro como vítima (PROENÇA FILHO, 1994).


É a literatura sobre o negro e não do negro (BERND, 1988). Por mais que o
poema denuncie o tráfico negreiro, a violência, o tratamento cruel e desumano
reservado aos escravos, afirmando-se como peça do abolicionismo, o negro
não surge ali como protagonista. Aos escravos descritos no poema não se

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confere vontade (PROENÇA FILHO, 1994) ou densidade psicológica. A


potência de agir, de determinar os acontecimentos, está sempre associada a
algum outro elemento, seja ele o capitão, Deus, a Musa, a bandeira, Colombo
ou as ondas do mar. Ora, não seria essa exatamente a condição de
escravizado? Estar despojado de poder, de desejo, de vontade, da voz, do
corpo, de projetos, de possibilidades de ação?

Perguntas de senso comum, estruturadas de acordo com a armadilha da


representação. Julgar a “correção” de um modo determinado de ordenar o
sentido procurando nele uma correspondência com a “realidade”. Obviamente,
isso não significa que a ordenação de sentidos não tenha qualquer ligação com
a “realidade”, pois ela também a constrói, sendo ela mesma “realidade”. Mas
sendo essa “realidade” fruto de ordenação, a pergunta que talvez deva ser
feita, nesse caso, e o poema de Solano Trindade a estimula, é: quem ordena
os sentidos?

O “eu” do “Navio Negreiro” aborda e, com isso, constitui o negro como


outro. Nessa “visão distanciada” (PROENÇA FILHO, 1994), um estereótipo –
apesar do possível anacronismo de se aplicar a figura ao caso – se manifesta.
Esse “eu” do poema certamente é o “eu” do romantismo, ocupado, embora
nessa fase não tão explicitamente como na primeira, com os desígnios da
nação. Não por acaso, o drama dos escravizados e a condenação da
escravidão surgem no texto carregados do sentimento da nacionalidade. É a
infâmia para o espírito da nação que o poema vaticina quando chega ao fim. É
como uma mancha (um “borrão”) na história da longa tradição de humanismo
citada, que desemboca em Colombo e da qual seríamos herdeiros, que a
prática da escravidão do negro fica marcada. Haveria uma analogia possível
entre esse “eu” que fala no poema e a consciência nacional, na qual a
escravidão e, por consequência, a presença do negro, ao qual não se franqueia
a humanidade, funcionou e continua funcionando como o recalcado?

O “eu” do “Navio Negreiro” se comisera, se compadece, declara em tons


românticos sua indignação. Deseja que as cenas que presencia não
ocorressem, ou, se possível, que fossem apagadas.

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Ó mar, por que não apagas

Co'a esponja de tuas vagas

Do teu manto este borrão?

(ALVES, 2007, p. 31)

Há uma lógica da indignidade em ação, segundo a qual não seria digno à


jovem nação buscando se constituir como tal sob os auspícios do ideário
iluminista que permitisse as atrocidades ligadas ao escravismo. De fato, a
indignação ante as provas de desumanidade fornecidas pela própria
humanidade é tipicamente iluminista. E como poderia uma consciência
nacional formada sob esse ideário suportar a ideia de que sua vida se
sustentasse sobre a escravidão e o racismo, senão recalcando seus efeitos,
seus sentidos, suas vítimas? “O Navio Negreiro” fala do negro, mas não deixa
o negro falar (BERND, 1988). O “eu” do poema encena a condição da
consciência nacional, limitada a se referir ao negro sempre como o outro.

Quando emerge, esse outro surge com a força do recalcado. Se


apresenta ante a consciência nacional nessa condição, capaz de, por isso,
impor a ela sua própria sombra, revelando subterrâneos que ela teria
constantemente se esforçado por manter nessa condição. Revela-lhe também
todo um universo que lhe era desconhecido, o universo do outro, ou, com mais
ênfase, o Outro do Brasil. O Brasil inventado por aqueles que sempre tiveram a
hegemonia da voz, a autoridade de falar e no seu falar o outro, negavam
sistematicamente a existência de sua voz.

A fórmula que a pesquisa propõe para descrever a Literatura Negra (a


passagem de objeto a sujeito da enunciação) contém, em síntese, a sua
característica de promover essa fissura na consciência nacional. Ela deve se
tornar outra depois que o reprimido força passagem para ser reconhecido.
Aquele conjunto de obras, autores, valores e temas que se constituiu como
Literatura Brasileira, uma das mais proeminentes manifestações da consciência
nacional, tendo se arrogado em momentos decisivos de sua história o papel de
construí-la, não pode mais se referir aos acontecimentos que circunscrevia,

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senão sabendo que não abarcava uma série de outros acontecimentos,


certamente também constituintes do “corpo da nação”. A perspectiva da
Literatura Negra subtrai ao modo como se concebe a Literatura Brasileira a
pretensão de representar uma “nação una e coesa” (DUARTE, 2004, p. 1),
acrescentando a ela o traço de seu recalque: Literatura Brasileira é tanto
aquela em cuja tradição praticamente não constam escritores e escritoras
negras quanto aquela em que, salvo raríssimas exceções, o negro, quando
aparece no texto, está em posição de objeto da enunciação 93.

O poema de Solano

Em relação às definições do conceito de Literatura Negra Brasileira, o


poema de Solano Trindade é uma espécie de protótipo: nele se encontram
materializadas, como evidências, as “leis fundamentais” (BERND, 1988) dessa
literatura.

A emergência do eu-enunciador (BERND, 1988), ou do ponto de vista


(DUARTE, 2009), é talvez a marca mais significativa na conceituação, isto é,
aquela que mais consequências gera na análise do conceito de Literatura
Negra pelo discurso acadêmico, pois é nela que todas as outras características
se fundamentam. Os textos inscrevem uma visão de mundo reprimida na
tradição literária, e como efeito desse ato questionam essa tradição e os
mecanismos de representação que ela instituiu. Mais especificamente, a
Literatura Negra marca posições de fala.

Há indícios textuais mais fortes ou mais fracos que assumem esse papel
em cada texto. No “Navio Negreiro” de Solano Trindade, os versos “Cheinho de
poesia...” da penúltima estrofe, “Com carga de resistência” e “Cheinho de
inteligência...” da última, são indícios fortes da voz que se pronuncia. Neles é

93
Essa condição se mantém na literatura contemporânea. Pesquisa estatística de Regina
Dalcastagné (2009) demonstrou que escritores e escritoras negras têm presença extremamente
reduzida nas grandes editoras brasileiras. Segundo a autora, esse déficit pode explicar por que, na
maioria dos romances contemporâneos, o negro é representado de forma estereotipada.

520
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que o “quem fala”, que vinha marcando sua diferença já pela figura da paródia,
se delinea, se define e se especifica.

Nessa especificidade reside o outro deslocamento que a análise do


poema de Solano Trindade, da qual podem-se extrair conclusões mais ou
menos atinentes à Literatura Negra como uma unidade, provoca no tema da
representação. Mais uma vez, não é mais para o mundo, mas para o sujeito da
enunciação que o texto aponta. Do político ao estético, esse texto é inseparável
desse sujeito que enuncia. A palavra aponta para seu autor, porque é nele – no
autor negro – que ela ganha sua consistência. Aqui, sim, a autoria requer seu
peso para que o texto funcione como tal. Para que o texto engendre os
sentidos da experiência estética que nele está em potência, é indispensável a
reconstituição, pelo leitor, desse espaço de enunciação no qual se ouve a voz
desse autor. A Literatura Negra, assim, vai responder a pergunta-mote de
Foucault na sua conhecida conferência sobre o autor: importa quem fala? Um
dos efeitos desta literatura é justamente responder à pergunta com uma
afirmação contundente. O “Navio Negreiro” de Solano Trindade escancara essa
dependência do texto do lugar que o enuncia, pois é esse lugar que ele afirma.
Como resultado, fica também exposto o lugar de enunciação do “Navio
Negreiro” romântico e todos os traços que o caracterizam socialmente. O
próprio texto passa a ser visto pelo que expressa de prática social.

Sob a luz dessas marcas fortes do lugar de enunciação, outros trechos


do poema, que poderiam passar despercebidos, adquirem também um
investimento de sentido tributário desse lugar, como uma clave de leitura que
vai se revelando à medida que o trabalho de interpretação avança. Por
exemplo, o verso “Trazendo carga humana...”, ponto de correspondência com a
perplexidade do “eu” poeta do “Navio Negreiro”, ao ser interrompido em seu
momento de elevação poética.

O Canto II, que antecede esse corte, é uma longa evocação de um


topos, o da virtude humana, visível em valores como a coragem, a aventura, o
engenho, ligados à história da navegação ocidental. Ao cantar as glórias
passadas de homens nacionais, que, somadas, compõem um fundo comum da
virtude humana (e respondem todas aos heróis últimos da navegação, os

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

helênicos) o “eu” se vê como herdeiro dessa tradição. Tradição evocada para


expressar a humanidade do homem. O verso de Solano recoloca a questão da
humanidade e num lance só inverte o seu lugar, atribuindo-o àqueles aos quais
ela não era franqueada e negando-o àqueles que se julgam autênticos
representantes dela. A inversão de valores, a criação de uma nova ordem
simbólica e a construção da epopeia negra (BERND, 1988) seriam as outras
“leis fundamentais” que o poema de Solano realiza, com mais ou menos
intensidade. À representação que pelo estereótipo desumanizava o negro se
opõe outra por esses versos, desta vez com a legitimidade da voz que fala e na
qual se nota a presença de “uma comunidade de situação que impõe sua
estrutura a cada voz individual” (BAJEUX apud BERND, 1988, p. 22).

Os versos “Cheinho de poesia...” e “Cheinho de inteligência...”, instigam


essa leitura do verso “Trazendo carga humana...”, que, de resto, talvez
passasse como uma constatação do já conhecido. O percurso do sentido se
completa com a volta àqueles primeiros versos e o enriquecimento recíproco
entre as palavras “humana” e “poesia”, “humana” e “inteligência”. A “carga” que
o navio negreiro vai desembarcar no Brasil é também uma “carga” de poesia e
de inteligência. Um mundo de significados, veiculados pelo discurso poético,
fica sugerido aqui, a começar pela contestação do estereótipo (“A tribo dos
homens nus...”, Canto V, verso 24).

Mas não só. Poesia e inteligência são duas capacidades fortemente


ligadas à língua e à fala. A questão da voz reprimida e de tudo que passa (ou
não passa) por ela vem para o centro na interpelação que o “Navio Negreiro”
de Solano Trindade dirige ao de Castro Alves. Mais importante ainda: assim
como Castro Alves evoca a sua linhagem na tópica da virtude do homem do
mar, Solano está, com estes versos, estabelecendo a sua linhagem a partir
desses homens e mulheres que vieram ao Brasil “cheinhos de poesia”. O poeta
se identifica ao fazer alusão a uma tradição e uma história silenciadas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

REFERÊNCIAS

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<http://seer.bce.unb.br/>. Acesso em: 20 abr. 2014.

DELEUZE, G. Patão e o simulacro. In:______. Lógica do sentido. São Paulo:


Perspectiva, 2000. pp. 259-271.

DUARTE, E. de A. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: Literatura e


Afrodescendência: Antologia Crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

______. Literatura e Afrodescendência. In: Portal Literafro. FALE-UFMG,


[2004]. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/>. Acesso em: 16 de
agosto de 2014.

FOUCAULT, M. Os sete selos da afirmação. In: ______. Isto não é um


cachimbo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. pp. 57-72.

HUTCHEON, L. Defining Parody. In: A Theory of Parody: The Teachings of


Twentieth-Century Art Forms. Illinois: First, 2000. pp. 30-49.

GENETTE, G. Palimpsestos. Madrid: Taurus, 1989. pp. 17-19.

PROENÇA FILHO, D. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: Estudos


Avançados [on-line], São Paulo, v. 18, nº 50, jan./abr. [2004]. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo> . Acesso em 21.05.2014.

TRINDADE, R. (org.). Solano Trindade: o poeta do povo. São Paulo:


Ediouro, 2000.

0082008200 Prantos Editora, 1999.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

QUEM PRECISA DAS BAIANIDADES?


(REFLEXÕES SOBRE AS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DA BAHIA)

POR: JOABSON LIMA FIGUEIREDO(UNEB/UFBA)


ALVANITA ALMEIDA SANTOS(UFBA) 94

“Ô Bahia
Bahia que não me sai do pensamento”
Ary Barroso
Resumo:

Busca-se nesse estudo introdutório refletir sobre a construção definida como


baianidades e a sua importância hoje, no mundo cosmopolita e fragmentado, e
que não podemos olvidar os seguintes questionamentos à própria subjetivação
que o discurso apresenta em sua formulação: quem precisa definir-se dentro
de uma ou várias identidades baianas? E que baianidades estamos falando? E
como não pensar em baianidades quando temos a pertença aos Territórios
Identitários Culturais tão divergentes? Muitas perguntas, que se buscará aqui
refletir às possíveis respostas.

Palavras-chave: Literatura baiana; Representação Cultural; baianidades.

Introdução

A tomar de empréstimo - e com o devido trocadilho – o título do estudo


de Stuart Hall no livro organizado por Tomaz Tadeu da Silva e Identidade e
Diferença (2000) constata-se que entendemos que a discussão é pertinente ao
momento contemporâneo, onde o eu fragmentado se insere num mundo
marcado pelas redes sociais, pela liquidez identitárias e simbólicas dos
processos do sujeito, com insurgências do local sobre o mundo
homogeneizado global e não é gratuito o assalto diligenciado ao texto
supracitado – essa lógica será a tônica e o esteio – e de propósito, utilizaremos
a formulação do teórico para identidade:

94
Professor-assistente da Universidade do Estado da Bahia – Campus – XVI –Irecê e
pesquisador da Literatura Baiana. Discente do programa de Pós-Graduação em Literatura e
Cultura, orientado pela professora-doutora Alvanita Almeida Santos. (UFBA).
jfigueiredo@uneb.br

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O conceito de identidade aqui desenvolvido não é, portanto, um


conceito essencialista, mas um conceito estratégico e posicional. [...]
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas;
que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e
fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente
construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se
cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma
historicização radical, estando constantemente em processo de
mudança e transformação (HALL, 2000, p.108).

Busca-se nesse estudo introdutório refletir sobre a construção definida


como baianidades (já delineando aqui que a identidade baiana é múltipla por
isso a escolha do plural do termo) e a sua importância hoje, no mundo
cosmopolita e fragmentado, e que não podemos olvidar os seguintes
questionamentos à própria subjetivação que o discurso apresenta em sua
formulação: quem precisa definir-se dentro de uma ou várias identidades
baianas? E que baianidades estamos falando? E como não pensar em
baianidades quando temos a pertença aos Territórios Identitários Culturais e
quando estes são representados tão divergentes sobre o mesmo signo? Muitas
perguntas, que se buscará aqui refletir às possíveis respostas.

Em principio, o termo baianidade, foi proposto e definido ao longo do


século XX, e pode ser conceituado em linhas gerais:

Expressão frequentemente usada para definir características do


“modus vivendi” dos baianos, mais especificamente, dos que nascem
em Salvador e no Recôncavo da Bahia. Inserido no contexto da
construção de tradições e de discursos identitários, como forma de
produzir coesão e consenso sociais, o conceito de baianidade
representa uma imagem da Bahia, dos baianos e suas
especificidades, adequando a busca da modernização capitalista,
que, neste verbete, se refere à industrialização ocorrida a partir da
segunda metade do século XX (NOVA et FERNANDES, s/d, p.01).

Como definição, concorda-se com a cronologia posta aqui, mas,


sabemos que como discurso representativo, a problemática se apresenta
desde os primeiros viajantes europeus no século XVI e teve sua emergência no
século XIX, e sua definição sempre foi vinculada a identidade construída e
significada à Bahia do Recôncavo sendo a vitrine principal a capital baiana –
Salvador. Cidade-síntese dessa identidade, principalmente por ser vinculada a
cultura afro-baiana.

No entanto, a Bahia, geográfica e antropologicamente, por que não dizer


também por razões históricas, tem no seu espaço geopolítico divergências

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

culturais que a identidade do Recôncavo não se impõe ou justifica seu lastro


por todo o Estado, que se originou da província e de três capitanias
hereditárias – a primeira divisão geopolítica da território – ou seja, praticamente
¼ da colônia portuguesa na América arregimentou-se no mesmo espaço
transformado em província no Império, e Estado na República, e por questões
políticas e econômicas, o nome da capitania mais importante: Bahia – e capital
da Colônia Portuguesa – foi alçada ao nome que identificam-se até hoje
territórios culturais tais divergentes.

Essa divergência, principalmente de identidades díspares, como a do


recôncavo – totalmente construída sobre a égide da cultura afro, com as cores,
sons e totalmente dentro do signo dionisíaco; entra em um descompasso brutal
colocado no mesmo tônus da sertaneja, que é a uma identidade
diametralmente oposta, marcada pelas ausências. A começar com o próprio
discurso de sertão baiano começa na década de 40 do século XX, um longo
hiato sobre a configuração de um discurso e outro sobre a Bahia. E não
podemos esquecer que o mesmo, se configura como o histórico primordial da
brasilidade que surge na Bahia. Três discursos inventados que ressurgem e
formam uma tradição coligida sobre um signo maior que, com efeito, ainda na
esteira de Hall:

[As identidades] surgem da narrativização do eu, mas a natureza


necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma
alguma, sua eficácia discursiva, material ou política, mesmo que a
sensação de pertencimento, ou seja, a “suturação à história” por meio
da qual as identidades surgem, esteja, em parte, no imaginário (assim
como no simbólico) e, portanto, sempre, em parte, construída na
fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático
(HALL,2000 , p.109).

Um discurso edênico e telúrico, do inventário à Invenção, da identidade


nacional, que depois se disseminará por todo período colonial e que marca até
hoje a capital baiana 95. Uma narrativização que registra uma cartografia cultural
com um discurso macro de Bahia, que de maneira fantasmática dialogam e se
singularizam.

95
Não é singelo lembrar o slogan da Prefeitura Municipal de Salvador em 2014: “Salvador: primeira
capital do Brasil” e do governo do Estado da Bahia é “ Bahia: terra-mãe do Brasil”.

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A guisa de explicação, temos, portanto, quatro discursos sobre as


baianidades, a saber: o primeiro que chamaremos aqui de histórica que se
origina nos textos dos cronistas do século XVI e perfaz o período colonial em
que a própria identidade baiana marcará a construção de pátria; o segundo que
seria o da baianidade cosmopolita, o da capital e Recôncavo, com influência da
cultura afro-baiana e litorânea, fortemente explorado nos estereótipos culturais;
e o terceiro o da baianidade sertaneja, com as configurações do sertão baiano
e seus índices dentro de uma própria ideia de nordestinidade, com um forte
lastro de artefatos culturais marcadas pelas condições sócio-econômica. E por
fim, o discurso da blacktude, em que o negro torna-se autor do discurso
artístico e cultural, um discurso contemporâneo com uma cena que reescreve a
cultura afro-baiana com artefatos culturais em especial um movimento coletivo
com artistas performáticos e que o urbano periférico se escreve na cena
cultural das cidades em especial, Salvador. (...) Uma construção de Bahia
ainda a margem dos grandes artefatos culturais, mas, que corresponde a maior
parte do seu Território Identitário Cultural. Com efeito, podemos inferir ainda
para refletir essa condição da representação da cultura baiana e as suas
legendas:

Tratando da cultura baiana, o mais importante é salientar o fato que


ela não é homogênea. A cultura do litoral extremo-sul da Bahia, da
região cacaueira, é muito diferente do interior, por exemplo, da região
do rio São Francisco. Até para um estrangeiro que visita esta zona,
as diferenças entre as regiões visitadas na Bahia são nítidas. A
culinária de cada lugar na Bahia tem seu sabor próprio, o sotaque dos
baianos difere de um lugar para outro, assim como a música tocada
nas ruas tem seus ritmos variáveis. ( Zrníková, 2007, p.08)

Essa cartografia de identidades para a ideia de Bahia se destaca


principalmente na literatura, e o desejo de construir uma representação de
Nação e suas capilaridades por outras artes. E dentro da literatura o destaque
para o ethos baiano será o romance. Principalmente, da geração de 30 / 40 do
século XX, romancistas tais como Jorge Amado e Herberto Sales, apresentam
em suas obras romances que abordam as várias identidades moventes do
Estado. A própria provocação de refletir e ressignificar a sociedade. A partir dos
anos 60 do século passado, através do apelo midiático temos uma construção
identitária para o trade turístico e politico do Estado. Um agenciamento da

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

cultura para disseminar uma proposta de Bahia como uma oposição ao espaço
moderno e civilizatório do Brasil, uma manifestação do conservadorismo e
tradição reificada pela burguesia comercial baiana que por motivos
econômicos, travava o símbolo mais característico da modernidade, a indústria
– e em nossas vastas solidões (principalmente a solidão cultural que Bahia
mergulhou-se) o desejo de se singularizar-se construiu marcas próprias na
cultura do Estado. Mas, vamos falar um pouco de cada identidade que
buscaremos problematizar aqui.

A baianidade histórica seria uma invenção a partir de um passado


grandioso e mítico da Bahia. Retroalimentado pela áurea tradicional e telúrica à
formação do Brasil. Sendo que, a matriz para essa construção era a cidade da
Bahia – Salvador.

Tal proposta é tão emblemática que as armas da cidade baiana


apresenta em sua heráldica uma pomba com o ramo de oliveira, e a expressão
em latim Sic illa ad arcam reversa est (Assim ela voltou à arca) que possibilita
e dá a medida da proposta – representar analogicamente um novo mundo, um
sendo a grande arca da América, o grande símbolo para impulsionar as
identidades da novo mundo – todos que saem da arca para povoar a terra, e
carrega em seu bojo os espectros do Velho mundo para forjar uma nova
cultura.

Essa identificação que acontece principalmente por uma busca atual de


um esplendor ao tempo que Salvador era uma das cidades mais importante
abaixo da linha do Equador. Como primeira capital do Brasil, e centro
efervescente cultural dos primeiros séculos da colônia. Ainda apresentando as
primeiras manifestações nativistas fortemente impresso com o olhar cristão/
eurocêntrico: os textos basilares dos primeiros cronistas e em especial os
poemas de Gregório de Matos, Manuel Botelho de Oliveira e os sermões do
Padre Vieira, dentre outros. Esse misto de encantamento com o modus vivendi,
com uma sexualidade para os colonos - totalmente amasiados – ao contato
com os escravizados nativos ou africanos, vistos desde os primeiros relatos
sobre Caramuru, como um povo cordial e bem receptivo do outro lado do
Atlântico Sul. O olhar etnocêntrico à formatação de um novo agrupamento

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

social sendo a cidade da Bahia nos séculos XVI e XVII, ou seja, Salvador, era
a maior cidade europeia fora da Europa, mas também o maior agrupamento
africano fora da África, ou seja um entre-lugar cultural e Identitário em busca de
uma comunidade imaginária que nas palavras de Hall nunca é dada, sempre
adquirida. Nessa encruzilhada cultural assentam-se várias tradições, sendo o
desejo de permanência um ideal a ser adquirido.

A outra identificação emblemática a Bahia, a cosmopolita, começa no


século XIX, com às manifestações sociais e políticas tais como a revolta dos
búzios, Guerra de Canudos e as próprias lutas pela independência da Bahia,
que o destaque das cidades do Recôncavo e definido como o local mais
emblemático na luta contra os portugueses. Sendo o espaço geográfico de
concentração urbana, e com uma influência forte da cultura afro-baiana em sua
diversidade. De chofre, essa identidade tornou-se a panaceia da cultura
baiana, sendo o modelo standard, exportada e importada pelo vários canais da
cultura que foram solidificadas no século XX.

Como decorrência, destacam-se ainda os papéis fundamentais das


obras artísticas de Caymmi, Verger e Jorge Amado para a consolidação dessa
identidade. Com artefatos culturais pautadas na cultura popular com destaque
a elementos afro-baianos. Sublima-se uma imagem da Bahia valorada pela
natureza exuberante, um local idílico e dentro de uma miríade de sensações de
prazeres e gozos. Nas palavras de Eneida Leal Cunha (2007):

O êxito dos bens simbólicos elaborados a partir da afrodescendência


e postos em circulação pela usina cultural baiana (...) não atenuam o
racismo que se traduz – na Bahia e no Brasil – em marginalização,
violência e até extermínio da população negro-mestiça e/ou pobre.
(CUNHA 2007, p. 46)

Essa identificação, embalada pela as ondas do rádio e do cinema – sem


esquecer as sendas literárias – foi exportada como um contraponto ao Brasil
industrializado e modernizante, guindada pela locomotiva paulista de pensar o
país pelo seu estuário representativo. Um contraponto que fora do Brasil (não
podemos esquecer o fenômeno Carmem Miranda nessa leitura) coloca o ir à
Bahia, como ir ao verdadeiro Brasil, ou seja, ao coração de um corpo ciborgue,
Tomando o ciborgue como “um organismo cibernético, um híbrido de máquina
e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ficção”. (Haraway, 2000, p. 40) Através deste conceito – que não vamos
aprofundar aqui – coloca-nos perante uma relação de duplo hibridismo, já que
o mesmo é apresentado tanto como um híbrido de máquina e organismo
(popular e máquina cultural), como um híbrido de realidade e ficção. E que se
destaca para uma chave de leitura da representação que investe na ginga e na
sensualidade desse corpo, estratégico discurso para um corpo em desejo de se
renovar, mas, a sustentar em suas partes anteriormente montadas em dobras
sobrepostas com novas engrenagens discursivas. E destaca-se que essa
sensualidade vai ser explorada a exaustão no imaginário nacional pela figura
da mulher baiana.

Antropofagicamente a Bahia deglute o Brasil, e coloca sobre suas hostes


uma identidade mais colorida e vibrante, mesmo contrastando com a realidade
– não representada diretamente nos artefatos culturais emanados dela.
Contraste que, aparece já no século XIX dos viajantes, que através de um olhar
estrangeiro, mister de espanto e preconceito, destacavam esse espaço como
uma terra diferenciada sobre o signo da divergência. E mais tarde – já nos
últimos extertores do século XX, prolongada pela ótica dos turistas, ávidos pelo
carnaval, exaustivamente disseminado pelo país como a maior festa do mundo,
que entre os vários ensaios e pós- festas pelo Brasil afora (micaretas?) a
marca mais emblemática é a corda que segrega grupos e camarotes que
separam mundos. Uma Baianidade cosmopolita que é esquematizada dentro
de uma sutura entre o local e o global.

Com efeito, o signo da diferença assola essa imagem da Bahia, nas


palavras de Albergaria:

Existem duas teorias de construção da baianidade. Uma diz que


existe uma Bahia “endógena” e a baianidade emerge de baixo para
cima. Existe o ethos baiano, uma alma da cidade que se constituiu
depois de 400 anos de sincretismo, da mistura afro-luso-tupi. Nos
últimos 20 anos vêm se constituindo outra teoria, dizendo que isso é
um mito constitutivo da identidade, mas não passa de um mito.
Segundo essa teoria, a Bahia foi construída de fora para dentro
porque, em primeiro lugar, ela é uma imagem opositiva daquilo que
foi o Rio de Janeiro no século antepassado. O Rio tornou-se a
metrópole, capital do Brasil, e a Bahia tentou se construir por
oposição. Portanto, diferentemente do Rio de Janeiro, vai representar
a tradição, o passado, as raízes e também a negritude. Na primeira
metade do século XX a metrópole cultural e industrial brasileira
desloca-se para São Paulo e nesse momento também São Paulo vai

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

produzir uma forte imagem da baianidade, colocando em oposição a


crescente megalópole, que representa a civilização, o trabalho, a
modernidade, a civilidade e a razão, e a Bahia com seu anacronismo,
preguiça, passado, exuberância e mística (ALBERGARIA, s/d, p.03)

A discussão proposta por Albergaria dialoga diretamente com a invenção


discursiva da baianidade standard. Uma representação fechada ao discurso da
capital e do Recôncavo como a única via da baianidade, que é vista e
sintetizada fora do Bahia. Essa leitura torna-se um modelo ao pensar a
identidade baiana, mas, pode-se ver em várias representações culturais outras
cartografias baianas que dialogam e negam esse discurso, sendo que, a
baianidade não é discurso datado ou superado, apenas movente às novas
representações e em novas linguagens.

Ainda nas palavras de Eneida Leal Cunha, temos uma observação muito
arguta ao discurso das comunidades imaginadas e suas implicações no
contexto:

O estímulo globalizado à valorização do local e da diferença cultural


que atinge todas as camadas sociais, dada a eficácia da mídia e da
indústria cultural, fazem a Bahia assimilar, no sentido positivo, a
explosão criativa dos negros, sobretudo a dança e a música, como
‘retrato da baianidade’, como marco identificador da sociedade.
(CUNHA 2007, p. 49).

Paralela à construção da identidade urbana e litorânea, surge a partir da


década 40 um discurso marginalizado dentro das identificações baianas que
seria a baianidade sertaneja. Uma construção identitária que se descola de
uma ideia geral da Bahia, mas, que corresponde a maior parte de seu território
geográfico e cultural. Advinda do interior do Estado, de comunidades que
ficaram a margem de todo um processo de invenção e simulacro de Brasil – e
paradoxalmente, consegue ser um dos símbolos da Nação, por ser justamente
o sertão uma construção simbólica forte no imaginário nacional. E sua invenção
é uma ressignificação plasmada mais pela as ausências (simbólicas, políticas e
econômicas) em contraste ao litoral vasto de urbanidade e potencias
ideológicas. As vastas solidões do sertão baiano, ao transpassar bandeiras,
semiáridos e chapadas.

O sertão baiano, já plasmado no imaginário nacional desde o


monumento literário de Euclides da Cunha, volta à cena em dois momentos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

bem emblemáticos na cultura brasileira. Primeiramente, nos romances dos


anos 40 da Geração de 30 da literatura brasileira, nas obras dos baianos tais
como Herberto Sales e Jorge Amado. E nas palavras de Valter Guimarães
Soares:

Sertão: espaço outro, em tudo diferente do Recôncavo: no seu modo


de vida, na sua economia, nos seus códigos culturais. Sertão bruto,
despojado, sem os estardalhaços do litoral; lugar de nobreza
verdadeira, de homens ásperos e rudes como a própria vegetação. A
própria imagem do sertão como coração, lugar amoroso, maternal e
de pulsação da vida, indica uma forma de representar com sinal
positivo, destoando assim das recorrentes associações de sertão com
seca, miséria, cangaço, messianismo. Esquivando-se de fórmulas
deterministas (embora às vezes escorregando nelas, pois é uma obra
de transição), tensionando a relação homem-natureza, faz um lugar-
sertão emergir como região humana, como espaço de relações bio-
psicossociais, território de práticas e representações da vida e da
realidade do mundo. O sertão é assim exibido como lugar de cultura e
sabedoria, o que traduz um deslocamento de certas associações
entre miséria material e pobreza cultural, muito comum no imaginário
euclidiano e posteriormente no romance de 30. (SOARES,2009, p.
36)

Nota-se no texto operatório de Soares, e na invenção do sertão pela


arte, um alto teor representativo da sociedade, pelo biopoder e outras latitudes,
em busca de afirmações identitária por um lado, e por outro lado em busca de
uma pertença. Ainda nessa esteira, temos o segundo momento com o Cinema
Novo de Glauber Rocha. Espaço que simboliza e materializa o discurso do
homem em estado natural, embrutecido e reificado pela fome (todas: físicas,
imagináveis e intangíveis) dentro de uma construção idealizada e obstruída
pelo progresso que não toca ou simboliza o mapa Identitário baiano.

Com o adendo de que em todas as identificações da Bahia destacam-se


os pontos de suturas o desejo de representar o espaço social emergente
(festejos, religiosidades, signos). Ainda nas palavras de Hall:

[...] a abordagem desconstrutiva vê a identificação como uma


construção, como um processo nunca completado – como algo
sempre “em processo”. [...] a identificação é, ao fim e ao cabo,
condicional; ela está, ao fim e ao cabo, alojada na contingência. Uma
vez assegurada, ela não anulará a diferença. a fusão total entre o
“mesmo” e o “outro” que ela sugere é, na verdade, uma fantasia de
incorporação (HALL,2000, p.106)

A sutura ganha um novo desenho com o advento do tropicalismo, em


especial nas obras de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Artistas que se utilizam

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

desse rico arsenal proposto aqui por Hall em seus projetos artísticos que
aproximam e aglutinam todos os discursos (o popular e o erudito o litoral e o
sertão o novo e o tradicional, o afro), a deixar em como o símbolo da
baianidade do século XXI a desconstrução subjetiva ou icônica, temos os
registros e pertencimentos. Não podemos ler a baianidade, ou as baianidades
como um projeto politico de uma gestão, nem como mero apelo turístico,
apesar de tais atores sociais fazerem o agenciamento dela para suas
conveniências econômicas e eleitorais. Seria uma leitura demasiadamente
singela de um discurso que atravessa quase cinco séculos em movimento por
todo imaginário de um povo, uma nação e um território que escreve em
palimpsesto sua cultura.

E assim, ainda poderíamos lançar mão de mais um discurso da


baianidade – que poderia ser um desdobramento contemporâneo do discurso
cosmopolita – a identidade da blackitude, um coletivo de artistas negros que
apresentam um novo fluxo cultural na capital baiana, vozes periféricas que
buscam de maneira coletiva uma desconstrução da cena cultural baiana,
marcada por exclusões e silenciamentos. Sendo um dos principais
articuladores dessa tessitura o poeta Nelson Macca, que em suas palavras.

Mudei para Salvador em 1989. Simbolicamente, esse foi meu retorno


à minha África possível. Gostaria muito de não me mudar mais daqui.
Não sei se assim será, mas amo de fato cada palmo da Bahia Preta
que aprendi a conhecer por trás das faixadas turísticas e das várias
categorias de imagens estereotipadas que vendem a cidade como a
boa terra da alegria.[...] Normalmente, interessa-me relatar,
principalmente, as razões e imagens da Blackitude: Vozes Negras da
Bahia como uma experiência compartilhada. Em Salvador, ouço
sempre a expressão Movimento Blackitude, para se referir a nós ou
aos nossos eventos. (MACCA, 2010,s/p.)

Destaca-se nessa citação a necessidade do autor paranaense vir à


Bahia para construir sua identidade cultural, e descortinar as rasuras possíveis
com o discurso estereotipado. As aproximações e divergências com o discurso
cosmopolita merece um capítulo a parte, que em linhas gerais – figura a
posição do negro no discurso, deslocando de objeto a sujeito da oração. E que
em suas ações não aparecem mais de maneira subordinadas, e sim
coletivamente coordenadas para uma inserção híbrida na sociedade. Entre a

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mídia e academia. A construir mais uma chave de leitura sobre a Bahia e suas
cartografias culturais identitárias.

E a buscar – sendo apenas considerações iniciais sobre a temática – se


deter neste ponto, há mesmo necessidade de sermos baianos? Dentro do
mesmo ponto, alinhavamos o popular, o tradicional, o estereotipo, o marginal e
o mítico, as representações rizomáticas de uma mesma ideia diferenciada
cartográfica e politicamente, com bens simbólicos distintos, mas que absorvem
a mesma fonte.

[...] todas as identidades funcionam por meio da exclusão, por meio


da construção discursiva de um exterior constitutivo e da produção de
sujeitos abjetos e marginalizados, aparentemente fora do campo do
simbólico, do representável [...], o qual retorna, então, para complicar
e desestabilizar aquelas foraclusões que nós, prematuramente,
chamamos de “identidades” (HALL, 2000, p.129).

A movência discursiva das baianidades se resolve justamente pela


impossibilidade de fixidez, ou seja, nesse mundo globalizado ao definirmos
com algo pertencente à Bahia (lavagens, vestimentas,carnavais, etc.) sabe-se
que se exporta uma cornucópia de símbolos que se desconstroem em
simulacros e avatares de uma Bahia irreal, plasmada em um imaginário, mas
que é sólida em nossa identidade fantasmagórica. Por outro lado, ela
representa na construção da nacionalidade uma raiz, uma busca ao
antepassado, uma insígnia à formação da nacionalidade.

Com efeito, ela simula uma primazia que chancela a essas identidades a
um espaço de atualidade ao termo, justamente porque ainda não se resolveu
sua problemática operatória ao termo, nem se esgota ao final desse texto,
apenas uma primeira reflexão de pensar uma invenção para além do
estereótipo e suas representações. Um debate que surge da proveniência ao
conceito e suas capilaridades através do contemporâneo. Logo, a pergunta do
título fica se justifica e sua resposta seria mais sintomática e não somente
epistemológica, e apresentamos em síntese que as baianidades são forças
potencializadoras de discurso, que se erige nos poderes simbólico e politico, e
precisam-se usar agenciamentos para entra-se no mundo, e provocar novas
rupturas e recortes culturais ao local, o regional e o cosmopolita. Um fenômeno

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de refletir as territorialidades nos estudos pós-coloniais, e por uma cartografia


cultural para ampliar a ideia de Bahia e sua identidade.

Esse jogo das baianidades, que são identidades em movimento,


marcadas pela ambivalência, como um dispositivo que salva e, em
concomitância , também perde, responde ou corresponde à idéia do
phármakon leitura basilar proposta por Derrida do texto platônico, na medida
em que ela suscita os diversos significados de remédio, veneno, droga, filtro,
por exemplo. E aí se coloca também a condição das baianidades, remédio
quando se coloca no desejo de escritura de um território com suas marcas
populares e tradicionais, reinventadas e atualizadas em vários formatos
contemporâneos. E na mesma medida, um veneno quando cai no rótulo do
estereotipo e discursos comerciais que anulam à necessidade da sua própria
existência. Ocorre ainda, que mesmo o remédio em exagero pode ser letal,
logo, as identidades aqui provocadas são pensadas em articulação, e quem
precisaria se definir dentro de uma ou mais baianidades, que pelas suas
características, são representações culturais que se complementam na
coletividade.

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VOZES DE INTELECTUAIS AFRO-CARIBENHAS: SOBRE PIEL Y PAPEL,


DE MAYRA SANTOS FEBRES.

CRISTIAN SOUZA DE SALES (UFBA/UNEB)96

RESUMO

Este artigo busca evidenciar o posicionamento intelectual agenciado pela


escritora afro-caribenha Mayra Santos Febres, frente às questões de raça e
gênero, no ensaio Confesiones de una mujer lucía (2010). O intelectual é um
sujeito que examina, reflete ou especula acerca de ideias e questões, de modo
que este uso possua uma relevância social e atenda às demandas coletivas.
Exercendo essa função, Santos Febres constrói um horizonte ético-político no
qual descortina motivações ideológicas, potencializando outra interpretação
para as narrativas tradicionais. A escritora é uma intelectual que se apresenta
comprometida e preocupada com mudanças sociais radicais, assumindo o
compromisso de representar um grupo e de, principalmente, conscientizá-lo.
Na América Latina e nas Ilhas do Caribe, na segunda metade do século XX,
tem sido significativa a presença de intelectuais negras produzindo obras
ficcionais (romances, contos, novelas, peças de teatro e poemas) e não
ficcionais (ensaios e artigos) que buscam refletir e problematizar o processo do
escravismo colonial ocorrido no século XIX. São textualidades que questionam
e interpelam a própria escritura dessa história, vista como espaço de realização
de um discurso de poder elaborado por uma cultura hegemônica, falocêntrica e
eurocêntrica. Assim, por meio desse trabalho, procuro compreender o
agenciamento dessa voz intelectual afro-caribenha que se pronuncia, nesse
espaço-tempo, munida de um engajamento político dissonante, tendo em vista
as situações de exclusão vivenciadas pelas mulheres negras em Porto Rico.
Para tanto, recorro aos seguintes referenciais teóricos: Hooks (1996), Hall
(2003), Said (2003), Setenta (2008), Glusberg (2009), entre outros.

Palavras-chave: intelectuais afro-caribenhas; agenciamento; gênero; raça

Doutoranda em Literatura e Cultura, no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura, da Universidade


96

Federal da Bahia-UFBA, na linha de pesquisa Documentos da Memória Cultural. Bolsista da Fundação de Amparo e
Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB. É integrante do Grupo de Pesquisa Traduzindo no Atlântico Negro,
coordenado pela Profa. Dra. Denise Carrascosa França.

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Mayra Santos Febres: uma intelectual afro-caribenha.

[...] Una mujer lucía atenta contra las fibras más profundas del tejido
social. Porque una mujer lucía molesta. No se sabe comportar como
una señora, silenciosa, recatada, un tanto elusiva y formal,
elegantemente lejana. Una mujer lucía no se taparía la boca.
(SANTOS FEBRES, 2010, p.13).

Transgredir as normas impostas pelo tecido social, questionar as suas


regras e determinações geradas no interior de ideologias falocêntricas e
etnocêntricas, movimentar-se fora dos padrões hegemônicos que obliteram a
participação política de grupos considerados minoritários, reagir contra as
desigualdades de raça, gênero e classe 97. Organizar discursivamente outro
imaginário para as mulheres afro-caribenhas, resgatando memórias e histórias
silenciadas. Produzir caminhos de enunciação alternativos para literatura de
autoria negra em Porto Rico. Esses são alguns dos desdobramentos
resultantes de um amplo quadro de perspectivas teórico-críticas tensionadas
pelos textos ensaísticos da intelectual afro-caribenha Mayra Santos Febres.

Devido às circunstâncias histórico-culturais vivenciadas e experimentadas


pelas mulheres afro-caribenhas, Santos Febres que nasceu na Ilha Caribenha
de Porto Rico, em 1966, na cidade de Carolina, tem buscado contestar e
oferecer resistência ao processo de exploração-dominação de gênero e raça,
reverberando o poder de dizer e de se dizer 98. E, nesse tenso jogo de poder
(es) e de disputa (s), a sua escrita investe em mecanismos de resistência para

97
O termo gênero passou a corresponder às afirmações que compreendiam as relações desiguais entre homens e
mulheres como construções a partir de um discurso social que explica as funções destinadas a cada uma(um).
98
De acordo com Otávio Ianni (1987, p.22), em A Questão nacional na América Latina, Porto Rico é uma nação
atravessada pela geopolítica norte-americana. Uma geopolítica que não compreende apenas o Caribe e, sim, o
conjunto da América Latina. Trata-se de uma população “obrigada” a organizar o seu modo de vida e trabalho
conforme as exigências externas. Lá, há um jogo entre forças sociais e raciais, compreendendo grupos e classes,
movimentos e partidos que configuram um estado-nação: “soberano, subordinado e associado com uma cultura
mestiça, com fortes raízes hispânicas e africanas”, revelando um intrincado jogo de pertencimentos identitários.

Assim, a Ilha Caribenha vive um paradoxo. A ausência de soberania política fez de Porto Rico uma nação em busca
de sua identidade. Para um estrangeiro, chama atenção à defesa intensa dos valores culturais porto-riquenhos e
caribenhos e, ao mesmo tempo, a permanência da situação colonial, exaltando os efeitos da relação
exploração/dominação que sobrevive até 2015. Em Porto Rico, o que se vê é uma população dividida, entre aceitar
a interferências dos norte-americanos ou se tornar um país livre dessa forma de dominação.

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superar as mais diversas formas de opressão, desilenciando vozes, corpos e


narrativas, a fim de observar estratégias de esquecimento, silenciamento ou
reprodução de estereótipos.

Desde a sua estreia em 1984, publicando as suas produções em


diferentes revistas e periódicos nacionais e internacionais, Santos Febres
escreve poemas, contos, novelas e romances, os quais têm feito circular, não
apenas em Porto Rico, mas em países como Argentina, Brasil, Cuba e
Espanha, além de traduções nos Estados Unidos, na Itália e na França.

Movendo-se em diferentes espaços como ensaísta, contista, novelista e


romancista, Santos Febres também é professora da Cátedra de Literatura
Latino-Americana e Caribenha da Universidade de Porto Rico, com doutorado
e pós-doutorado em literatura, atuando como professora visitante na Harvard
University, Cambridge e Cornell University, e em algumas universidades na
América Latina, a exemplo da Univerisdad Autónoma de Yucatán, no México.

Em sua trajetória intelectual, aparecem vários prêmios internacionais de


literatura, tendo em vista que as suas obras chamam atenção a partir de um
conjunto de textualidades reconhecidas como literatura caribenha
contemporânea. Dentre as premiações recebidas, destaco o Juan Rulfo
Internacional de Contos, por seu relato em Oso Blanco, concedido pela Radio
Internationale de París (1996). Em 1991, Anamú y manigua arrebatou elogios e
foi considerado um dos dez melhores livros de poesias. Já El orden escapado,
foi premiada pela Revista Tríptico, entre outros títulos.

Além das produções já mencionadas, a escritora afro-portoriquenha


publicou também os seguintes livros: Pez de vidrio (1994); El cuerpo correcto
(1996); Tercer mundo (2000); a novela traduzida para o inglês, francês e
italiano intitulada Sirena Selena Vestida de Pena (2000); Cualquier miércoles
soy tuya (2002); Sobre Piel y Papel (2005); Nuestra Señora de la Noche
(2006); Fe en disfraz (2009); e, finalmente, a obra de título sugestivo Tratado
de Medicina Natural para Hombres Melancólicos (2011).

São narrativas, memórias, reflexões e histórias que seguem o fluxo das


águas dos oceanos. Elas migram de um espaço geográfico a outro, de um

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continente a outro, formando laços simbólicos com várias / outras diásporas.


No Brasil, Santos Febres aparece em duas publicações. O conto Resinas para
Aurélia foi traduzido para o português no livro Terras de Palavras (2010). Já em
2010, o ensaio intitulado Mas mujer que nadie, cuja análise está na centrada na
personagem afrodescendente do conto A menor mulher do mundo, de Clarice
Lispector (1977), pode ser lido na Revista da Associação de Pesquisadores
Negros (ABPN).

Nas obras mencionadas, reverberando discursivamente um estado de


consciência de si quanto suas às raízes ancestrais, culturais e o seu
pertencimento de gênero, Santos Febres exercita a sua liberdade de expressar
conteúdos relacionados às mulheres afro-caribenhas e latino-americanas,
imprimindo em seus textos uma linguagem, cujos atos de fala, em sua eficácia
performativa, obriga – violenta e arbitrariamente – os espaços de
inteligibilidade, de regulação e de legitimação do poder, especialmente em
Porto Rico.

A escritora afro-caribenha vincula a sua produção intelectual às questões


político-ideológicas que movem o seu processo criativo, desnudando as
ideologias presentes em discursos racistas e sexistas, o que possibilita a
desconstrução do modelo patriarcal nas formas de representação da figura
feminina e as circunstâncias a elas relacionadas. É uma atividade intelectual
construída na diáspora a partir das problematizações construídas por Bhabha
(1998) e Hall (2003), no que diz respeito à dispersão, à subjugação, à
sobrevivência, à negociação, à crise de identidade, à desumanização, à nova
consciência, bem como ao preconceito racial, aos deslocamentos e ao
hibridismo.

Considerando o ponto de vista proposto por bell hooks (1996)99 e Edward


Said (2003), no que referem à função de um intelectual em uma sociedade,
Santos Febres procura enfrentar o poder de autoridade com uma
“personalidade poderosa, corajosa, persuasiva”. (SAID, 2003, p. 21).

bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora afro-americana, que escolheu esse
99

apelido para assinar suas obras como uma forma de homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó.
Grafo o seu nome em letras minúsculas, atendendo ao pedido da própria autora que afirma o seguinte:
“o mais importante em meus livros é a substância e não quem sou eu”.

540
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Evidencia-se, em sua escritura de cunho revisionista, marcada por seu lugar de


enunciação, a elaboração de um conjunto de ferramentas discursivas que
operam simbolicamente outros modos de representação para as mulheres afro-
caribenhas.

De acordo com Zaira Rivera Casellas (2011, p. 99), em La poética de la


esclavitud, as obras de Mayra Santos Febres recuperam os processos sociais
e culturais construídos durante o escravismo colonial, do século XIX, na
América Latina e no Caribe. Tanto a sua escrita ficcional, assim como a sua
escrita não ficcional, apresenta um traço estilístico em seu caráter reversor,
pois desestabiliza significados da escravidão e da emancipação a partir de um
discurso organizado para “representación del esclavo y la esclava... en uso
particular del linguaje en las configuraciones de las identidades raciales”.

Confirmado o que observo, Casellas diz que a literatura feminina afro-


caribenha de Porto Rico está centrada “en las vivencias de la esclavitud”. São
produções literárias que tratam do rompimento do silencio “del pasado para
reconfigurar hechos reales con un objetivo particular: presentar uma versión
propia de la historia y elaborar nuevas imágenes asociadas a su ser”.
(CASELLAS, 2011, p. 99).

Quanto ao trabalho intelectual de Santos Febres, mais uma vez, a


pesquisadora evidencia: “[...] su aguda capacidad intelectual le ha permitido
teorizar sobre su propia labor creadora y justificar los móviles de su escritura en
relación a las representaciones literarias de la mujer negra”. (CASELLAS, 2011,
p.110).

De um modo geral, no tecido do texto, os gestos enunciativos de Santos


Febres procuram dar voz a estilos de vida e dinâmicas sociais importantes que
constituem o seu projeto político, flagrando experiências de sujeitos que
performatizam e exibem corpos-fala que gingam, dançam, reverenciam os
orixás, vodus e inquices, afirmam no crespo do cabelo a sua diferença estética
de identidade e posição política de gênero e raça.

É uma intelectual afro-caribenha que carrega dentro de si um passado –


como cicatrizes de feridas difíceis de serem curadas. As feridas não

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cicatrizadas parecem servir de elementos para práticas diferentes, como visões


potencialmente revistas de uma memória individual e coletiva, como se torna
exemplar o ensaio Confesiones de uma mujer lucía.

O seu posicionamento teórico-crítico desmonta jogos discursivos,


interpelando as metáforas, não mais e apenas pela subversão paródica de
seguir o modelo, mas para, em uma operação de caráter reversor, excedê-lo
ou ironizar seus significados. O seu olhar pós-colonial reler e desler as
tradições hegemônicas munida de sua visão estereotípica quanto aos papeis
desempenhados pelas mulheres afro-caribenhas em Porto Rico.

Interessa, portanto, desse lugar que ocupa como intelectual, e que


intencionalmente a colocamos nesse artigo, construir gestos performativos de
gênero e de raça que falem a “verdade ao poder da autoridade”, seja através
de um romance, de um conto, de uma poesia, de um artigo ou em formato de
ensaio, aproximando através da linguagem, as fronteiras entre o literário e não
literário. (SAID, 2003, p.36).

Confesiones em Sobre Piel y Papel

[...] Ella está consciente de que enseñar más de lo permitido por la


moda y la moral es asunto serio que puede terminar en agresión. Se
percata del riesgo que corre. Ella sabe que transgrede y que ser una
mujer transgresora es ser una mujer criminal. Pero a ella le gusta el
peligro. (SANTOS FEBRES, 2010, p.13).

O ensaio Confesiones de uma mujer lucía integra a coletânea intitulada


Sobre Piel y Papel, publicada em 2010, pelas edições Callejón 100. Nele, Santos
Febres reúne vinte e cinco textos de sua autoria, chamando atenção para as
mais variadas temáticas, dentre elas, aponto algumas: questões ligadas à

100
A maior parte circulou na imprensa de Porto Rico, nos periódicos Claridad, The San Juan Star e El Nuevo Día e El
Vocero, considerados como importantes veículos de comunicação de seu país. Os textos da antologia foram
publicados em diversos países: Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Cuba e Holanda.

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produção literária nas ilhas caribenhas; formação do cânone; o espaço


destinado à produção de autoria negra em Porto Rico (modos de produção e
circulação); identidade nacional e cultural; tensões de raça e classe; o
feminismo negro; a violência de gênero; o acesso à educação; as crescentes e
importantes estratégias de empoderamento da mulher no Caribe
contemporâneo, entre outras.

A obra é dividida em três momentos intitulados, respectivamente: Labia


(falar/saber falar/ter astúcia/saber/reconhecer), Piel (pele/cor/raça/etnia) e
Papel (escrever/pensar/refletir/propor). Labia apresenta oito ensaios, seguido
de Piel também com oito ensaios e Papel com onze. Ao interpretar cada
expressão, situando-as historicamente em seu espaço-tempo, penso que elas
potencializam múltiplos significados e intenções da autora, uma vez que
mencionam de forma implícita e política, a importância do uso da voz e da
escrita para as mulheres afro-caribenhas em Porto Rico.

Em Labia, são publicados oito ensaios, entre eles, Confesiones de uma


mujer lucía. Nessa seção, Santos Febres agencia reflexões sobre o feminismo
negro, estratégias de empoderamento, travestismo, corpo, erotismo,
performatividade intelectual, violência de gênero e raça, acesso ao mercado de
trabalho e à educação em Porto Rico.

Na segunda seção, designada de Piel, a escritora analisa a problemática


racial no Caribe Hispânico e em Porto Rico, revelando as suas tensões e
conflitos, conforme leio em um dos fragmentos: “[...] en la literatura porto-
riquenha casi todo es posible”. (SANTOS FEBRES, 2010, p. 67). “[...] Los
Orígenes del miedo a lo negro son lós causantes... de la historia negra de
Puerto Rico permanezca silenciada y oculta. (SANTOS FEBRES, 2010, p.137).

Por outro lado, em Papel, a autora trabalha a relação entre literatura e


memória. Todos os textos encerram com uma crítica ao eurocentrismo e ao
cânone literário. Ela busca problematizar o espaço destinado à literatura de
autoria negra em Porto Rico e, além disso, desconstruir episódios do
escravismo colonial, trazendo à tona narrativas e corpos silenciados: “[...]
elevar a la categoria de héroe a la gente común que pelea”. (SANTOS
FEBRES, 2010, p. 178). “[...] Tenemos que aprender a convivir con la

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diferencia, a buscar comunalidades, a descentralizar el discurso excluyente de


la identidade”. (SANTOS FEBRES, 2010, p. 220).

Dessa forma, a coletânea de ensaios mescla textos que evidencia os


gestos performativos dessa intelectual afro-caribenha, conforme nos lembram
respectivamente Said (2003) e Setenta (2008). Nessas produções, a
performatividade é gerada por uma necessidade de mudanças porque se refaz
a cada tentativa de resposta às inquietações que aparecem no procedimento
de constituição de sujeitos/sociedades. Trata-se de uma produção discursiva
que desloca o presente e traz nele marcas do passado e indica, no mesmo
presente, marcas futuras. Assim, a escrita performativa de Santos Febres se
concentra “na descentralização de poderes, crenças” e normatizações.
(SETENTA, 2008, p. 83).

Já Jorge Glusberg (2009, pp.90-91), observando as questões de


performance no campo da cena teatral, em A arte da performance, diz que elas
vão ter tanto um valor de denúncia, quanto de um demonstrativo dramático de
gestos, “adquirindo o estatuto privilegiado de enfrentar-se com o óbvio, o
simples e o natural”. Elas detonam simbolicamente novas alternativas, pois
abrem novos panoramas para a concepção do corpo como matéria discursiva
bastante significante, por meio de “significados múltiplos”. Dessa forma, as
performances permitem, graças a um trabalho de liberação e libertação dos
estereótipos, aumentar as possibilidades de ação em um percurso desalienante
e bastante abrangente. (GLUSBERG, 2009, pp.92-93).

Nesse sentido, cito ainda outros ensaios presentes no livro em estudo,


Sobre Piel y Papel, os quais podem ser lidos como ecos ou ressonâncias da
performatividade intelectual de Santos Febres, cuja prática evidencia um estilo,
a produção de subjetividades, explicitando as experiências do sujeito autora e
leitora com as desigualdades de gênero e de raça nas ilhas caribenhas: Sobre
cómo hacerse mujer, Más mujer que nadie, Ser una negra pública, Raza en la
cultura portorriquenha, Voy a comprarme un amor, Los usos de eros en el
Caribe, entre outras.

Em Confesiones de uma mujer lucía, embora seja um texto não literário,


Santos Febres constrói uma personagem feminina que, nas tramas de sua

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escrita performativa de gênero e raça, busca transgredir as normas impostas e


liberar as mulheres afro-caribenhas do discurso normatizador da tradição
patriarcal:

[...] Una mujer lucía atenta contra las fibras más profundas del tejido
social. No se sabe comportar como una señora, silenciosa,
recatada, un tanto elusiva y formal, elegantemente lejana. [...] El
recato y la propiedad no son atributos celosamente cuidados por la
mujer lucía. (SANTOS FEBRES, 2010, p. 13, grifos meus).

Para Santos Febres, no contexto caribenho, a presença de uma mulher


“lucía” desempenha um papel bastante significativo, pois ela é capaz de
mergulhar nas camadas mais profundas do tecido social e desconstruir
representações de gênero estabelecidas por ideologias falocêntricas. No
ensaio, chama atenção à importância de uma consciência política, cuja
potência fornece os elementos necessários para desestabilizar categorias
tradicionais de comportamento fixadas pela dominação masculina: “[...] una
mujer lucía... no se sabe comportar como una señora, silenciosa, recatada, un
tanto elusiva y formal, elegantemente lejana”. (SANTOS FEBRES, 2010, p. 13,
grifos meus).

Por meio de sua escrita ensaística, Santos Febres desvia-se da


imposição e do controle exercido por certas palavras e expressões, produzindo
novos sentidos de existência para as mulheres afro-caribenhas. É por meio
dessa ação constituída de linguagem que a intelectual experimenta outras
maneiras de pensar e escrever, tentando desvencilhar a “mujer lucía” das
regulamentações instituídas pelas relações do poder do patriarcal.

Contudo, Santos Febres assume os riscos de sua visão transgressora: “la


mujer lucía está consciente de que enseñar más de lo permitido por la moda y
la moral [...] Se percata del riesgo que corre”. “[...] Ella sabe que transgrede y
que ser una mujer transgresora es ser una mujer criminal. Pero a ella le gusta
el peligro. (SANTOS FEBRES, 2010, pp. 13-14)”.

A apropriação da escrita, por parte das mulheres afro-caribenhas, é


fundamental nesse processo de rompimento de um silêncio imposto a estas, ao

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longo da história. Assim, essa escritura é marcada por uma alteridade que lhe é
peculiar, pois, a partir do comparecimento da voz feminina, guiada por uma
linguagem repleta de subjetividades, observo que existe o entrelaçamento da
vivência com a experiência, do individual e o coletivo, do político e o intelectual.

A transgressão na escrita de Santos Febres pode ser flagrada através


da ironia utilizada como recurso discursivo para falar a “verdade ao poder”. A
ironia desloca o sentido do pensamento falocêntrico e perturba as suas
convenções. Como intelectual, a escritora age em termos do que diz Said, pois
ela se recusa em “aceitar fórmulas fáceis ou clichês prontos, ou confirmações
afáveis, sempre tão conciliadoras sobre o que os poderosos ou convencionais
têm a dizer e sobre o que fazem”. (SAID, 2003, p.36). [...] Ella sabe que
transgrede y que ser una mujer transgresora es ser una mujer criminal. Pero
a ella le gusta el peligro. (SANTOS FEBRES, 2010, pp. 13-14, grifos meus).

De acordo com Said, o intelectual precisa assumir o perigo, uma vez que
este “deve ser capaz de falar a verdade ao poder”. Ele deve ser um “indivíduo
ríspido, eloquente, fantasticamente corajoso e revoltado”, para quem nenhum
“poder do mundo é demasiado grande e imponente para ser criticado e
questionado de forma incisiva”. (SAID, 2003, p. 23). “O importante é causar
embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável”. (SAID, 2003, p. 27).

Para Hooks (1996), vivendo em uma “sociedade fundamentalmente anti-


intelectual e difícil para os intelectuais comprometidos e preocupados com
mudanças sociais radicais”, é preciso afirmar sempre o trabalho e o ativismo
que as mulheres negras desempenham tem “impacto significativo” e peculiar,
especialmente contra a violência de gênero e de raça. (HOOKS, 1996, p. 464

No ensaio Confesiones de una mujer lucía, Santos Febres reflete quanto


à condição da mulher e, em particular, das mulheres afro-caribenhas,
mobilizando considerações teórico-críticas que revelam a maneira como uma
visão engendrada pelos debates influenciados pelas questões de gênero e
raça, faz as suas escolhas, concebe o mundo e decide vivê-lo. A autora
salienta que as normas e os hábitos aceitos pela sociedade podem ser
transformados: “[...] la mujer lucía se convierte en otra manifestación chata de

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la mujer alienada, la mujer dominada por su rol social”. (SANTOS FEBRES,


2010, p. 16).

Conforme hooks, o pensamento crítico de Santos Febres deve ser usado


a serviço da sobrevivência, operando como uma força curativa para desalienar
o corpo das amarras do racismo e do sexismo. A desalienação do corpo é um
movimento necessário para “as pessoas oprimidas e/ou exploradas”, “sem
jamais pensar no trabalho intelectual como de algum modo divorciado da
política do cotidiano”. O trabalho intelectual deve ter uma ligação com a vida
real ou com o domínio da experiência concreta. (HOOKS, 1996, pp. 466-467).

Observando a função do intelectual proposta por hooks, a escrita de


Santos Febres ameaça o status quo do patriarcalismo. Para ela, “[...] ese
atrevimiento necesario para imaginarse un mundo diferente. (SANTOS
FEBRES, 2010, p.17). Daí, a necessidade de uma escrita atrevida que
reinterpreta um campo de representações e transgride as fronteiras discursivas
porque a ensaísta afro-caribenha “sente a necessidade de fazê-lo”. (HOOKS,
1996, p.468).

De acordo com a cultura de uma sociedade, as leis e os costumes são


estabelecidos, bem como relações de poder entre opressor (a) e oprimido (a).
Na ilha caribenha de Porto Rico, a situação política e cultural revela um país
que possui um referencial patriarcal, sexista e racista, no qual se propaga uma
dita inferioridade ou vulnerabilidade da mulher em relação ao homem, da
mulher negra em relação ao homem branco, da mulher negra em relação à
mulher branca, sustentada por uma interpretação das diferenças biológicas e,
juntamente, a inferiorização da raça segundo o gênero. Essas visões
hierarquizadoras são questionadas por Santos Febres, pois são colocadas no
ensaio como construções.

Para Santos Febres, a contestação desses valores deve ocorre com “[...]
la presencia de una mujer lucía que desestabiliza los roles sexuales asignados
por la sociedad. Ella [...] desmonta toda distinción entre decencia e indecencia,
propiedad e improperio. El mundo entero participa de ese gran simulacro de
libertad. (SANTOS FEBRES, 2010, pp. 13-14, grifos meus).

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Segundo hooks, o conceito ocidental sexista/racista de quem é um


intelectual, elimina a possibilidade de nos lembrarmos de negras como
representativas de uma vocação intelectual. Na verdade dentro do patriarcado
capitalista com supremacia branca toda a cultura atua para negar as mulheres
ocupar este lugar de poder. Conforme lembra hooks, só através da “resistência
ativa” é que se pode exigir o direito de afirmar uma presença intelectual.
(HOOKS, 1996, p.468).

Por meio de um senso crítico perspicaz e irônico, no ensaio Confesiones


de una mujer lucía”, Santos Febres é capaz de resistir aos estereótipos, de
desenterrar o que estava esquecido, de “fazer ligações que eram negadas,
mencionando, em sua escrita, caminhos alternativos”. (SAID, 1993, p. 35).
Contudo, la “[...] mujer lucía también tiene que enfrentar la ira de los hombres”.
(SANTOS FEBRES, 2010, p.16).

Para intelectual afro-caribenha, seu “ensayo nos prepara y tonifica los


músculos del atrevimiento; ese atrevimiento necesario para imaginarse un
mundo diferente, donde haya espacio hasta para bailar sobre las mesas de
billar, libres al fin”. (SANTOS FEBRES, 2010, p.17).

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Red Utopia & Jitanjáfora Morelia Editorial, 2001.
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GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva,
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HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
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SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade.
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SOTOMAYOR, Aurea M. Hilos de Aracne: Literartura puertorriqueña hoy. Rio
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papel: ensayos. 2ª edición. Ediciones Callejón, 2010, pp-13- 17.
SANTOS FEBRES, Mayra. Por boca propia. In: Sobre Piel y papel: ensayos. 2ª
edición. Ediciones Callejón, 2010, pp-67-71.

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GRUPO DE TRABALHO: LITERATURA E DIVERSIDADE: O DESVELAR


DAS IDENTIDADES NEGRAS E INDÍGENAS

PROPOSITORES: IZANETE MARQUES SOUZA (IFBAIANO), LUÍS


HENRIQUE ALVES GOMES (IFBAIANO) E DANIELA MARIA BARRETO
MARTINS (UNEB)

Ementa:

Discute a presença da diversidade étnico-racial, cultural e linguística nas obras

literárias escritas em língua portuguesa enquanto estratégia de desvelamento

das identidades dos povos negros e indígenas na produção africana e

brasileira. Estuda ainda as articulações ideológicas libertárias e discriminatórias

presentes nas obras literárias em análise enquanto processo antagônico de

denúncia dos problemas sociais

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AFIRMAR PELA DIFERENÇA, (RE)CONHECER PELA IGUALDADE: A


ASSINATURA ÍNDIGENA NA LITERATURA BRASILEIRA

ANA CLAUDIA PACHECO DE ANDRADE (UNEB)


CELESTE MARIA PACHECO DE ANDRADE (UNEB)

RESUMO: O artigo faz uma discussão acerca da literatura dos povos indígenas
e sua importância para a valorização da diversidade cultural, implicando aí a
valorização da diferença e do Outro. Nesta compreensão, o objetivo do texto
reside em destacar como escritores indígenas utilizam de suas narrativas para
manifestar uma cosmovisão de mundo no bojo da construção de suas
identidades/alteridades. Essas singularidades repercutem na forma de valorizar
o Outro e reconhecê-lo como sujeito, assim como no reconhecimento de novas
visões estéticas no que diz respeito à produção das narrativas indígenas. Neste
caso, (re)conhecer a literatura indígena significa entrar em contato com esse
Outro que foi silenciado por longos períodos na história da literatura brasileira,
porém sempre provocou e ainda provoca, a possibilidade de pensarmos nossa
relação com o mundo e problematizar nossa identidade. O estudo finaliza com
algumas considerações chamando a atenção para a necessidade de assegurar
o que garante a Lei nº 11.645/2008, que determina a inclusão da disciplina
História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo escolar das
instituições públicas e particulares brasileiras, medida legal que não foi capaz
de reverter o desconhecimento da literatura indígena no país, visto que o
ambiente escolar ainda insiste em enaltecer um conjunto de conhecimentos
históricos e literários de acordo com os cânones da perspectiva ocidental.
Palavras-chave: literatura, diversidade cultural, narrativas indígenas.

Introdução
A literatura de autoria indígena mesmo reconhecida como constituinte
da cultura brasileira, ainda é vista de forma marginal em nossa historiografia.
Sempre presente nos textos que noticiaram o “descobrimento” da América,
como se tais terras desabitadas fossem, os índios — assim denominados em
virtude de um erro de cálculo do navegador Cristóvão Colombo que acreditava

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ter chegado às Índias — desde o início da colonização tiveram presença


marcante na literatura referente ao Brasil, embora essa mesma literatura não
registrasse a diversidade cultural dos povos indígenas que aqui habitavam.
O olhar do europeu desde o período do descobrimento do Brasil
(século XVI), voltado para o “índio”, se resumia como aquele que não possuía
cultura, religião ou qualquer conjunto de saber organizado. A partir dos
primeiros contatos a atitude do colonizador se expressou como se os
habitantes da terra se constituíssem como um ser disponível para ser
civilizado, catequizado, o que justificou o violento projeto de escravização que
resultou no homicídio de diversos povos indígenas e marcou a memória dos
povos remanescentes. Os séculos seguintes não significou mudança nessa
forma de representação e relação de ausência do indígena na escrita sobre as
terras brasileiras.
No século XIX, observa-se a preocupação de escritores brasileiros em
escrever uma literatura verdadeiramente nacional, a qual se fez inspirada
inicialmente na natureza e nos primeiros habitantes do Brasil. Aliado a isso,
observa-se também o desejo de construir um projeto nacional para a literatura
brasileira longe das influências de Portugal. Isso direcionou aqueles os
escritores a explorarem a paisagem natural do país como característica
principal. Esta postura permitiu elaborar um conjunto de representações com
base na criação de personagens, aspectos culturais e um sistema de valores e
crenças que se diferenciou da tradição europeia.
Este foi o marco para representação do indígena como um ser cuja
essência reside na natureza, na liberdade e na tranquilidade espiritual,
caracterização esta que o coloca em harmonia com o universo. Porém, o
condena a carregar um aspecto simbólico e mítico, sem conferir-lhe o poder de
lutar pela demarcação de suas terras, a preservação de sua língua e da sua
cultura.
Essencial ao pensamento da cultura brasileira, mas frequentemente
ameaçado por formações históricas de dominação — e, por esta razão, não
integrado à sociedade brasileira como um todo, especialmente no que se refere
ao processo desenvolvimentista nacional da década de cinquenta, do qual
estava alijado — o indígena foi protagonista de mudanças em momentos

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seguintes. Ao final da década de setenta, assistiu-se ao engajamento de povos


indígenas que criaram movimentos de luta por direitos sociais, referentes à
posse da terra, saúde e educação, que apoiados por estudiosos, líderes
políticos e órgãos internacionais, iniciaram redes de cooperação. Isso
contribuiu para ampliarem a sua participação no cenário político, a exemplo de
representação na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988,
conseguiram assegurar direitos e garantias tais como: respeito aos seus
costumes, língua, tradições, organizações sociais e direitos sobre a terra.
Consolidados com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os direitos
e garantias sinalizaram de modo único na história do Brasil o reconhecimento
dos povos indígenas na afirmação da sua identidade pela diferença.

1. A literatura indígena na perspectiva indígena


Conhecer a literatura produzida em nosso país implica conhecer textos
elaborados pela literatura de muitos povos e nisto prevalece a diversidade
cultural e não apenas a valorização de textos canônicos. Nisto, é preciso
atentar para o fato de que o Brasil possui distintas culturas e com elas, muitas
vozes, entre as quais enfatizamos as vozes nativas por meio de expressões
que fazem parte da literatura indígena. Essa literatura engloba textualidades
oriundas de muitas culturas e comunidades indígenas, as quais necessitam
encontrar leitores, indígenas ou não, visto que o acesso a essa literatura
oportuniza o conhecimento da pluralidade cultural do país, já inserindo aí um
aspecto de suma importância, a promoção da liberdade e igualdade de
expressão aliado ao exercício de cidadania. Efetivada esta etapa, acreditamos
que o contato com a literatura indígena permita o fim de discursos reprodutores
de estereótipos sobre o Outro.
O contexto histórico-social no qual se insere a reflexão sobre literatura
indígena dá-se a partir da última década do século XX, período em que
começamos a assistir uma crescente produção de obras literárias indígenas no
Brasil, com autores de variadas etnias obtendo reconhecimento pela qualidade
de suas obras por meio de premiações relevantes. Mesmo assim, é lamentável
observar que a circulação da literatura indígena ainda é limitada, se
compararmos com as publicações de autores indígenas de outros países, o

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que concorre para que a comunidade leitora dessas produções também seja
reduzida.
Isso aponta para a necessidade de reconhecer o valor da literatura dos
povos tradicionais em nosso país, ao mesmo tempo em que deixa à mostra a
relevância dos textos produzidos por esses mesmos povos na formação da
literatura brasileira. Vale observar ainda, que a produção de textos dos povos
indígenas a que estamos nos referindo compreende aquela submetida à escrita
alfabética trazida pelos conquistadores/colonizadores. Realizar tal
reconhecimento significa identificar grupos indígenas como protagonistas,
como sujeitos que possuem e produzem conhecimentos e experiências, os
quais exigem para a sua compreensão, respeito e visibilidade, o que implica na
construção de uma nova relação social entre indígenas e não indígenas. A
respeito dessa relação recorremos ao pensamento de Daniel Munduruku, que
assim expressa:

Nesse quadro de diferentes situações, povos indígenas inteiros têm


sofrido as consequências de viver em contato permanente com uma
sociedade que lhes prendem em conceitos que os tornam menores e
marginalizados. A isso se inclui a negação da identidade cultural. Se,
por um lado, manter-se indígena é condição fundamental para o
reconhecimento étnico — pois assim a sociedade complexa pode
manipulá-lo —, aprender e conviver com a sociedade em igual
condição é considerado um abandono de identidades. [...] Ser
indígena, na lógica ocidental, é manter-se no atraso cultural
(MUNDURUKU, 2010, p. 67).

Se por um lado o encontro de povos indígenas com os portugueses


desde o início da colonização baseou-se, como revela o trecho acima, na
construção de estereótipos no que diz respeito à ideia de índio, por outro lado,
nada disso não foi capaz de evitar que esses povos “[…] deixassem de resistir
e lutar pelo que consideravam realmente importante para a manutenção de
suas culturas tradicionais” (Munduruku 2010, p. 68). Como fruto dessa
resistência, viu-se surgir na década de oitenta, movimentos indígenas
organizados, os quais tiveram e ainda têm fundamental importância no tocante
às relações estabelecidas entre a comunidade indígena e a sociedade
brasileira.
Na perspectiva de Munduruku (2010), o período da década de oitenta
pode ser visto como um marco, vez que a saída de jovens indígenas de suas

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comunidades em busca de estudos na cidade, provocou novas posturas de


comportamento entre comunidade indígena e o governo brasileiro. Ainda
segundo Munduruku, inicialmente os jovens indígenas reivindicavam questões
de ordem prática como demarcação de terras e direitos básicos a exemplo do
direito à saúde e educação, bem como o desenvolvimento de projetos voltados
para a economia alternativa. Resultante dessas conquistas e com uma nova
geração de lideranças fortalecidas, verifica-se outra perspectiva que envolve a
formação universitária. Vejamos na expressão de Munduruku:
Mais tarde, e com uma nova geração de lideranças, houve uma
preocupação para promover a formação técnica e universitária dos
indígenas, o que vem ocorrendo até os dias atuais. Nesse ínterim,
surgiram os primeiros ensaios de uma literatura essencialmente
indígena. Isso se deu justamente pela constatação de que os
indígenas, apesar do avanço político obtido, não conseguiam ainda
falar por si mesmos. Eram sempre representados por estudiosos,
antropólogos, cientistas. Esses parceiros assumiam um papel de
paladinos dos direitos indígenas, mas acabavam tornando-se uma
barreira para o aparecimento de vozes nativas (MUNDURUKU, 2010,
p. 68-69).

Disto podemos inferir que as obras indígenas surgiram como forma de


dar lugar às vozes nativas. No entendimento de Munduruku (2010), as obras
que surgem em meados da década de oitenta dirigem-se às escolas existentes
nas comunidades e são resultado de oficinas de texto e escrita, realizadas por
igrejas ou associações. No entanto, os escritos de autoria indígena passam a
ter maior expressão na década de noventa e gradativamente ganham força,
sendo que a sociedade brasileira se mostra receptiva a esse tipo de produção.
A esse respeito recorremos mais uma vez a Munduruku que esclarece:

Essa abertura acontece mais significativamente a partir de 2002, com


o crescimento da demanda por textos de autoria indígena,
principalmente em função da atuação, no movimento indígena, de
pessoas mais comprometidas com a memória escrita. Livros
premiados no Brasil e no exterior também foram fundamentais para
que o mercado editorial enxergasse um potencial econômico
favorável, o que ajudou a expandir essa literatura (MUNDURUKU,
2010, p.69).

Estando aberta à literatura indígena, resta à sociedade brasileira


compreendê-la como um conjunto de manifestações que engloba preservação
da memória, rituais, cantos, pinturas, danças, desenhos, rezas, entre outras, as
quais não se encontram atadas à ideia de literatura apenas como expressão

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escrita. Nesta direção, trazemos o pensamento de Edson Kaiapó que assim


expõe:

[...] é possível perceber que a literatura indígena tem uma lógica


específica. Difere, por exemplo, da literatura indianista, que quase
sempre vitimiza o indígena ou, de alguma forma, referenda a ideia de
derrota, extermínio e imposição do modelo colonizador sobre os
povos indígenas. Lembrem-se de Iracema…
A literatura indígena reafirma o nosso jeito de ser, demonstra que os
antepassados estiveram abrindo o caminho, e que hoje estão
iluminando o caminho no presente e indicam o caminho para o futuro
de nossos povos. Nossa literatura põe nossas tradições em
movimento pleno, demostrando que não somos e nem poderíamos
ser os mesmos indígenas que os portugueses encontraram em 1500.
Nossas tradições se atualizam e reatualizam constantemente
(KAIAPÓ, 2013, p, 32).

Diante do exposto, é possível observar que o autor reafirma a


relevância que a literatura indígena tem para desmontar prejulgamentos
históricos, o que permite, através desse desmonte, uma nova mirada para a
história do país e a diversidade de seu povo, sobre a qual necessário se faz
salientar, é anterior a presença dos portugueses, e detentora de movimento
próprio. O mesmo Kaiapó afirma que:
Nossa literatura indica que ser indígena não pressupõe ficar isolado
de tudo e sem acesso aos bens produzidos pela humanidade.
Usaremos celulares, computadores, internet, faceboock, carros, arco,
flecha, bordunas, zagaia e rituais. E ainda assim continuaremos
sendo Kaiapó, Karipuna, Guarani, Munduruku, [...] (KAIAPÓ, 2013, p
30-31).

Seguindo essas considerações, outra observação relevante sobre


literatura indígena que merece destaque, é feita por Graça Graúna ao
problematizar o que é ser indígena na atualidade, a visão da história e cultura
indígena e as singularidades da literatura indígena. Entre outras questões,
enfatiza:
A questão da especificidade da literatura indígena no Brasil implica
um conjunto de vozes entre as quais o(a) autor(a) procura
testemunhar a sua vivência e transmitir ‘de memória’ as histórias
contadas pelos mais velhos, embora muitas vezes se veja diferente
aos olhos do outro [...]. Essa percepção da memória, da autohistória e
de alteridade configura um dos aspectos intensificadores do
pensamento indígena na atualidade (GRAÚNA, 2008, p. 04).

Defendemos que a literatura que propomos refletir só tem sentido se


entendida como aquela que é produzida por povos indígenas, conferindo a

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autoria de suas próprias histórias, e neste exercício observar como tal autoria
fornece empoderamento aos grupos. Além disso, refletir sobre a literatura de
autoria indígena, significa empreender uma caminhada que busca entender o
Outro com o propósito de viabilizar o espaço para a diferença coexistir entre as
culturas.
Com isto queremos chamar atenção para a experiência literária de
autoria indígena como lugar para a instalação de outras perspectivas ora
estéticas, ora políticas, ora (po)éticas, as quais deslocam o espaço já
consagrado do que se entende por cultura e promove novos olhares para
modos de existir descolonizados.
Conforme esse entendimento, ousamos ainda dizer que a literatura de
autoria indígena proporciona (não sem a luta pela conquista desse novo lugar),
um espaço para novos atores sociais onde o diálogo que aí se estabelece,
permite experimentar formas de saber (ancestrais) com vistas à construção de
uma autoria na perspectiva indígena que reposiciona a sua própria identidade,
a sua própria história. Nisto, nos orientamos pelo pensamento de Olívio
Jekupé:

[...] faz tantos séculos que o Brasil foi dominado pelos jurua kuery,
não índios em guarani, e desde aquela época tudo o que se fala
sobre nossos parentes é escrito por eles. Eu não via isso como algo
interessante, porque nós temos que contar nossas histórias para
nossos filhos e se tiver que ser escrita, por que não pelo próprio
índio? (JEKUPÉ, 2009, p. 11).

Ao fazer uso da palavra escrita para criar uma narrativa própria, os


povos indígenas quebram com a lógica do silenciamento conduzida pela
cultura dominante, permitindo-nos observar o tecer de suas histórias que
fortalecem a manutenção das culturas indígenas, pois constroem alteridades e
afirmam suas identidades, possibilitando com isso, dar continuidade a suas
tradições. Nisso se localiza a importância da voz indígena na literatura
brasileira, visto que sem esta presença ou reconhecimento, a literatura nacional
corre o risco de ficar incompleta.

2. Vozes em escrita: entre autores–atores

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A escrita indígena se configura como um instrumento de luta política


que imprime o respeito às manifestações culturais de um povo, daí é possível
ler falas ancestrais, ensinamentos e memórias. Isso mostra o quanto
necessário se faz desenvolvermos uma sensibilidade para perceber nas
produções indígenas toda a riqueza que nos é oferecida e igualmente ignorada
pelo contexto acadêmico e escolar. Quanto a isso, Eliane Potiguara adverte:

Povos indígenas, povos ressurgidos, emergentes, índios


descendentes, índios desaldeados, ‘desplazados’ e migrantes grupais
ou migrantes individuais não podem ficar à mercê de análises
antropológicas burguesas, insensíveis e intolerantes de governos
racistas, preconceituosos e autoritários, seja esse ou aquele. As
almas dessas pessoas devem ser respeitadas porque têm a história
de seus antepassados, têm a história das mulheres e homens
decididos (POTIGUARA, 2004, pp. 92-93).

A autora provoca uma reflexão sobre o reconhecimento de vozes


indígenas. Articulado a essa preocupação, ainda é possível identificar outras
problematizações, como por exemplo, a necessidade de conhecimento da
história do Outro, do seu repertório como modo de tratar esse Outro com
dignidade, salvaguardando a diversidade de sua cultura perante uma
sociedade caracterizada pela homogeneização que desencadeou um modelo
perverso e racista.
A força desta literatura está em fazer dessa política voz, um caminho
para questionar a cultura na qual está inserida, no nosso caso, a cultura
brasileira. Agregado a isso, a manifestação dessa voz evidencia também a
necessidade de sair do silêncio e dos muitos mecanismos criados para
invisibilizá-la, a fim de criar situações de enfrentamento e ocupar cada vez mais
espaços pertinentes à cultura.
Reforçamos que a voz politica e (po)ética lançada por Eliana Potiguara,
representa um tipo de iluminação para ver mais claramente as injustiças e
violências praticadas contra os indígenas, vez que retira da obscuridade as
condições de vida de seu povo e as expõe, revelando as suas condições na
sociedade atual ao reivindicar sua dimensão histórica e o direito de viver sua
identidade enquanto cidadão, isto é, um ator social, sujeito e não sujeitado:

Que faço com a minha cara de índia?/E meus cabelos/E minhas


rugas/E minha história/E meus segredos? [...] Que faço com a minha

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cara de índia?/E meu sangue/E minha consciência/E minha luta/E


nossos filhos?/Brasil, que falo com a minha cara de índia?/Não sou
violência/Ou estupro/Eu sou história/Eu sou cunha/Barriga
brasileira/Ventre sagrado/Povo brasileiro (POTIGUARA, 2004, pp. 34-
35).

Mais uma vez observamos com o trecho do poema acima, que à


literatura indígena cabe um papel essencial para compreendermos modos de
viver a identidade em sintonia com a sociedade contemporânea, sem que esse
elo induza à perda das referências ancestrais por parte dos povos indígenas.
Vale salientar que não é mais possível fechar os olhos a essa questão, no
sentido de que a literatura indígena se instalou como um instrumento autêntico
para que comunidades indígenas possam representar a si próprias e o seu
universo na cultura nacional, oportunizando desta maneira que sejam ouvidas,
lidas e sentidas diversas línguas e identidades, as quais compõem a nação dos
povos indígenas, reclamando o reconhecimento desta literatura como
integrante da cultura brasileira.
Sabido que a escritura literária constitui dimensões sociais e políticas
que afetam a percepção dos sujeitos no tocante à posição que ocupam e os
papéis que assumem, defendemos que a literatura indígena carrega uma
concepção de compartilhamento de histórias em que o conjunto de elementos
que as compõem legitima a existência de cada grupo étnico. Sendo assim,
consideramos que a construção identitária que se dá com o confronto das
representações do Eu e do Outro, criam no campo da literatura um espaço
para a introdução da imagem do Eu no bojo da história. Ao inserir-se
historicamente em um contexto literário, escritores indígenas criam por meio de
suas narrativas, um ponto de referência para continuar empreendendo lutas e
edificar conquistas.
Sobre isso e para ilustrar a relação autor-ator social, recorremos a
Edson Kaiapó (2013), que defende a escritura indígena como missão, uma
responsabilidade ao mesmo tempo grandiosa e nobre:

Nós, escritores indígenas, estamos dotados de uma missão que


numa perspectiva espiritual nos autoriza a sermos porta-vozes dos
nossos antepassados. Nesse sentido, a nossa missão está muito
além de rever a opressora história oficial brasileira. Buscamos contar
“outras histórias” para afirmar que estamos aqui [...]. Portanto, os
escritores indígenas têm uma responsabilidade grandiosa e nobre.
Desmontar e remontar a história do Brasil, desnaturalizando os

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preconceitos contra os nossos povos, entre os quais estão as falácias


de que somos preguiçosos, cachaceiros, bagunceiros, sodomitas,
ladrões... A literatura indígena tem uma tarefa ainda mais grandiosa,
que tem a ver com a construção da paz, do respeito à diversidade
dos nossos povos e à segurança da continuidade da vida no planeta
(KAIAPÓ, 2013, pp. 30-31).

Assim, o conjunto de vozes autorais que assumem a construção de


uma identidade indígena, vem realizando uma produção diferenciada, cujo
corpo de autores desde o final da década de oitenta vem atraindo um público
expressivo de leitores, e um número significativo de pesquisas acadêmicas,
eventos literários, atenção de algumas editoras e recebendo prêmios
relevantes. Dentre estes autores, destacamos os seguintes nomes: Daniel
Munduruku, Graça Graúna, Eliane Potiguara, Olivío Jekupé, Kaká Werá
Jecupé, Yguarê Yamã, Edson Kaiapó, Jerá Giselda, Lia Minapoty, Naÿ-Niná,
Rosi Waikhon, Thiago Hak’y, Cristiano Wapichana, Uziel Guaynê, Severiá
Idioriê, Carlos Tiago Hakiy Saterê-Mawé, Ely Macuxi, Elias Yaguãg, entre
muitos outros.
Utilizando as palavras de Edson Kaiapó (2013), frisamos que
reconhecer a literatura de autoria indígena é reconhecer, portanto, a
possibilidade do “reencantamento do mundo”. Essa possibilidade de nos
reencantarmos, permite firmar relações de respeito entre “pessoas, terra,
animais, vegetais, ar, águas e espírito”, nos ensinando assim que outra
humanidade pode ser construída em busca de uma vida mais equilibrada.

Considerações finais
Após essa reflexão em torno da afirmação da cultura indígena a partir
de uma literatura indígena, consideramos pertinente abordar sobre uma
questão da atualidade e que expressa o reconhecimento da diversidade que
caracteriza nosso país, dada a sua pluralidade sócio-cultural. Estamos nos
referindo à aprovação da Lei nº 11.654/08, precisamente no seu artigo 26-A.
Esta lei altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei
no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, determinando as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino de todo o
país a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena”.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A obrigatoriedade do ensino da temática pode ser entendida como uma


possibilidade de resgatar as contribuições desses dois grupos étnicos —
africanos e indígenas — para a formação da história do país. Faz-se relevante
porque traz um amparo legal de caráter inclusivo, ao mesmo tempo em que
oportuniza por via da educação, uma forma de combater o preconceito étnico-
racial e a visão eurocêntrica ainda presente no ensino.
Nisso, é preciso chamar atenção para o cumprimento da lei nos
currículos escolares, (visto que muitas instituições de ensino ainda se mostram
omissas) sobre o assunto especialmente nas áreas de conhecimento
destacadas na Lei 11.645/08, ou seja, educação artística, literatura e história
brasileiras, o que impacta também na formação de professores no sentido de
incluir nos currículos conhecimentos relacionados com temas da história e
cultura indígena em sala de aula. Outro aspecto a ser considerado refere-se ao
conteúdo e material didático disponível para o ensino do tema proposto pela lei,
ainda em estágio inicial de produção. A respeito dessas questões e sinalizando
a literatura indígena como tema de discussão pertinente sobre a história e
cultura indígena no espaço escolar, trazemos a posição do escritor indígena
Olívio Jekupé:

[...] minhas obras todas mostram um conhecimento, e sei que poderá


ajudar muito os professores, assim como os livros de outros autores.
Pois o mundo indígena tem que ser conhecido mesmo, por isso, é
que falo que a lei 11.645 está aí, os professores são obrigados a
falarem sobre os povos indígenas, mas o que eles irão falar? E como
hoje existem vários escritores indígenas, é importante que as
secretarias de educação possam conhecer os escritores indígenas
que tem no momento, índios que são da cidade e os índios das
aldeias, e que irão mostrar conhecimento do seu povo, isso é, cada
índio escritor pertence a uma nação, por isso sei que ele seguirá o
seu costume (JEKUPÉ, 2015).

Percebe-se que o autor tem clara compreensão da importância das


suas obras e de outros autores indígenas para a abordagem da temática
indígena no ambiente escolar, o que reforça o uso da literatura indígena como
acesso a esse Outro desconhecido. Outra preocupação importante em torno do
tema que permite a reflexão sobre a literatura indígena no âmbito do contexto
escolar é o acesso da comunidade indígena a conhecimentos sobre sua
própria cultura como manifesta a Lei nº 11.645/08, que segundo Olívio Jekupé:

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

[...] essa é a missão da literatura nativa como falo, trazer


conhecimento pra todos os brasileiros, e que possa valorizar ainda
mais os povos indígenas, porque aqui no brasil (sic) a discriminação é
muito grande e muito por falta de conhecimento, e com nossos livros
chegando nas mãos dos brasileiros eu acredito que isso vai mudar
aos poucos. E ao mesmo tempo, é importante que chegue nas
aldeias também, porque os governos dos estados enviam livros direto
pras aldeias, mas eles enviam livros que não tem nada a ver com a
cultura indígena e isso é mal, porque enquanto os brasileiros estudam
a cultura indígena, os indígenas estão estudando literatura dos não
indígenas, e as crianças nas aldeias precisam estudar cultura
tradicional. Sei que hoje no Brasil temos muitos escritores indígenas
até famosos no mundo internacional e nacional, e sei que isso faz
com que a sociedade valorize ainda mais o nome indígena que é tão
maltratado pela sociedade (JEKUPÉ, 2015).

Com esta afirmação, o autor revela a literatura indígena como forma de


conhecimento, a qual permite conhecer a própria História do país e valorizar os
povos nativos. Contudo, alerta para a necessidade da educação voltada para
as aldeias, sobretudo no que se refere ao material didático encaminhado pelas
secretárias de educação, visto que é preciso ter uma sintonia entre o que é
disposto pela lei e o que é ensinado.
Assim, reforçamos a tese de que a literatura indígena bem como seu
acesso e valorização, é uma das possibilidades de se construir conhecimentos,
desconstruir estereótipos, especialmente desfazer o caráter exótico e primitivo,
frequentemente associado às produções literárias dos povos indígenas. Nesta
perspectiva, defendemos que o ensino de cultura e história indígena em
atendimento aos dispositivos da Lei nº 11.645/08 devem ser guiados
considerando um conjunto de aspectos capaz de envolver instituições de
ensino superior (pois são responsáveis pela formação de professores), escolas
de ensino fundamental e médio, reorientação curricular, gestores de educação,
secretarias de educação e politicas públicas relacionadas à diversidade cultural
e étnica.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em 10
de julho de 2009.

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GRAÚNA, Graça. Literatura Indígena: desconstruindo estereótipos, repensando


preconceitos. Disponível em: <http:// http://ggrauna.blogspot.com.br/>. Acesso
em: 08 de dez de 2015.

JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo: Scortecci,
2009.

JEKUPÉ, Olívio. Entrevista concedida a PINDORAMA. Disponível em


<http://www.pindoramahistoria.wordpress.com>. Acesso em: 08 de dez de
2015.

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. São Paulo: Global, 2004.

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A NARRATIVA DAS CONTRADIÇÕES: UMA ANÁLISE DO ROMANCE A


GLORIOSA FAMÍLIA, DE PEPETELA

Vilma Santos da Paz (UFBA)


1 Introdução

Este trabalho é fruto de um esforço para compreender as contradições


e estratégias dos sujeitos envolvidos nas relações entre dominador e
dominado, que tanto estão presentes no romance de Pepetela, A Gloriosa
Família, quanto nas relações existentes dentro da sociedade brasileira. Essas
mesmas contradições dão conta do estar além do próprio local de fala, do
senso do estranho, e da sensação de reconhecer as próprias máscaras usadas
na construção ou encenação das identidades que constituem as sociedades
em questão. Pretende-se, também, apreender como se dá a relação entre
dominador e dominado, em um sistema de aproximação e repulsão −
metáforas da relação entre colônia e metrópole. Essas metáforas podem ser
visualizadas na imagem narrada no romance, referente ao discurso da
personagem Baltazar Van Dum, a “[...] árvore maravilhosa, que bastava sacudir
para caírem as moedas de ouro” que “[...] na Índia era coberta de especiarias,
enquanto em África era coberta de escravos” (PEPETELA, 2001, p. 17). Essa
imagem é uma das chaves para pensarmos a relação entre senhor e escravo,
e a noção do segundo como propriedade, ouro preto adquirido pelo dominador
(seja este branco europeu ou de etnia africana distinta e rival daquele que é
capturado, estigmatizado e vendido como peça para alimentar o sistema
escravagista). Mas, ao mesmo tempo, o quanto essa metáfora da árvore
também não faz parte das relações subjetivas do imaginário da baianidade,
ligada especificamente ao mercado consumidor do “exótico”? Relações de
poder e poderes periféricos, identidades problemáticas que participam de uma
barganha social: eu exótico e eu invisibilizado nas malhas de uma sociedade
racista.

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2 Narrando as contradições

A Gloriosa Família inscreve-se como narrativa de um imaginário


nacional angolano, ao começar com a frase incômoda − “o meu dono Baltazar
Van Dum...”, dita pela personagem de um escravo mudo, essa narrativa se
propõe a reescrever a história oficial, a partir da voz do subalterno. Ainda que
na posição de dominado, esse sujeito dá conta de outra narrativa sobre a
história da nação angolana. A frase é incômoda duplamente, pois, além de
tomar o “outro” como objeto, a mudez desse escravo representa uma tentativa
de aculturação imposta aos povos dominados. A frase é atribuída ao narrador,
personagem protagonista, filho de uma escrava lunda e de um missionário
napolitano. Apesar de a narrativa potencializar a voz do subalterno,
problematiza esse sujeito ao mostrar os conflitos de sua formação, pois esse
sujeito ironiza a sua descendência branca como um diferencial, um grau de
importância dado pelo dominador: “[...] eu, uma das suas propriedades mais
preciosas, filho de uma escrava lunda, é certo, mas também de missionário
napolitano” (PEPETELA, 1999, p. 24). A fala da personagem se refere ao início
das atividades comerciais de Baltazar Van Dum que, além de conseguir
enganar a rainha Jinga Mbandi, negociando cativos, recebe esse escravo de
presente. Notamos que o termo dominador, ao qual o narrador se refere,
pertence a um campo duplo interracial (branco e negro): Baltazar e Jinga. A
rainha também ocuparia o campo de colonizado, mas, em relação a um poder
periférico, preenche também o campo de dominador.
O fato de o narrador ser um escravo dá a medida de sua negação
como sujeito. O olhar do dominador aprisionará a visão do corpo do cativo sob
o cunho da subjugação e da inferiorização, tornando-o, dessa forma,
invisibilizado como sujeito. Ser escravo e mestiço é também falar de uma
situação fronteiriça, de um entre-lugar: a periferia entre a metrópole e a colônia.
Têm-se um sujeito híbrido que participa das trocas culturais, também, ao estar
ao lado de Baltazar Van Dum (outro elemento do entre-lugar, das identidades
problemáticas, mas no papel do senhor e não do cativo).

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A narrativa do romance é constituída sob a perspectiva do vencido, do


escravo. Essa (a narrativa) não será europeia nem africana, se tecerá na
fronteira, no palco das trocas culturais e dos hibridismos. Será realizada em um
momento presente, no local desse sujeito deslocado, estrangeiro dentro da
própria casa, na qual negação é também afirmação. Sobre essa questão afirma
Bhabha:

A atividade negadora é, de fato, a intervenção do ‘além’ que


estabelece uma fronteira: uma ponte onde o ‘fazer-se presente’
começa porque capta algo do espírito de distanciamento que
acompanha a re-locação do lar e do mundo – o estranhamento
[unhomliness] – que é a condição das iniciações extra-territoriais e
inter-culturais. (BHABHA, 1998, p. 29).

A narrativa tecida nesse entre-lugar será a forma de resistência do


narrador: sobreviver para contar, contar para sobreviver. Essa forma de
resistência será organizada no sentido de obedecer às ordens do dono, ou
seja, seguir os passos de Baltazar por onde ele for e, ao mesmo tempo, estar
livre para subverter a ordem do sistema, ou ao menos causar um pequeno
abalo sísmico em sua estrutura. É o que acontece quando o personagem-
narrador entrega o neto de Van Dum à escrava fugitiva Dolores, subvertendo a
ordem da obediência.

[...] levantei Gustavo e o sentei em cima do portão, para que ele e a


mãe se vissem. Dolores se aproximou, com lágrimas nos olhos. A
criança reconheceu-a e estendeu os bracitos, gritando. Que podia eu
fazer? Não entreguei o Gustavo, juro que não, apenas não fiz muita
força nas mãos que o seguravam. (PEPETELA, 1999, p. 371).

A subversão só é possível devido à estrutura rígida e violenta do


sistema escravagista, esse sistema permite, no seu bojo, que ocorram as
“brechas” que serão preenchidas pela negociação entre senhores e escravos.
No que se refere às brechas nas relações da sociedade escravagista brasileira,
afirma Eduardo Silva, na introdução do livro Negociação e Conflito: “Ao lado da
sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de
barganhas quanto de conflitos” (SILVA, 1989, p.7). Completando o raciocínio
sobre as brechas do sistema escravagista, Silva nos diz que “[...] na defesa de
suas instituições e de si próprios, os escravos inventaram e levaram à quase

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perfeição uma singular astúcia pessoal na exploração das brechas do poder


escravocrata.” (p.48).
No caso do romance em estudo, a barganha do narrador de A Gloriosa
Família é contar a história do dono, pois, fazendo isso, estará, ao mesmo
tempo, contando a sua própria história. O escravo está negociando com seu
senhor à medida que cumpre as suas ordens. Ele se apropria de uma espécie
de “mimese do poder” do dono, escapando aos trabalhos pesados e aos
castigos dados aos outros escravos, pelo capataz Dimuka. Só Baltazar Van
Dum terá poder sobre seu corpo escravo, da mesma forma que ele (cativo) se
apropriará da vida dos Van Dum, durante sua narrativa. Obrigar-se a construir
uma história que exponha todas as contradições dessa família e sua
inseminação futura no imaginário angolano é estar atento às relações de poder
que perpassam a sociedade angolana, exposta no romance. Construir essa
narrativa é uma relação de posse, esse sentimento que perpassa o
relacionamento entre senhor e escravo. Na realidade, trata-se de uma dupla
posse, na qual objeto e sujeito permutam os lugares, marcada na frase inicial:
“o meu dono Baltazar Van Dum”.
Narrar é ao mesmo tempo estabelecer um ciclo místico no gérmen do
imaginário angolano, trazendo ecos de outros imaginários, a exemplo da Baía
de Todos os Sonhos, análoga à imagem da Baía de Todos os Santos. Existe
mesmo um entrelaçamento entre as histórias das sociedades angolana e
brasileira, evidenciado historicamente no que Alencastro chamou de
“colonização dos colonos”, termo relacionado aos interesses luso-brasileiros,
envolvidos também no tráfico negreiro:

[...] o trato negreiro não se reduz ao comércio de negros. De


consequências decisivas, na formação da história brasileira, o tráfico
extrapola o registro das operações de compra, transporte e vendas
de africanos para moldar o conjunto da economia, da demografia, da
sociedade e da política da América portuguesa (ALENCASTRO,
2000, p.29).

Porém, essas relações entre África e Brasil aos poucos foram sofrendo
um processo de apagamento, pois a elite da sociedade brasileira do século XIX
e início do XX, principalmente, optaram pela política de supressão das marcas
da escravidão do histórico nacional. Como sempre, na idealização de uma

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identidade nacional, tenta-se apagar as marcas de violência deixadas pelo


processo de colonização. A miscigenação está relacionada a essa violência,
não podemos esquecer que a fusão entre povos africanos e americanos com
os colonizadores europeus é marcada também pela violência, seja ideológica,
seja física. “Visível como parte degradada do povo, o negro foi ignorado por
movimentos de feição nativista que fizeram do índio o símbolo da identidade do
país” (FONSECA, 2000, p. 90). A elite brasileira procurou, portanto, na
miscigenação, o branqueamento da população, cortando o negro desse
imaginário nacional. É necessário ressaltar, ainda, que o índio apenas aparece
como pano de fundo do imaginário nativista, sua situação é também marginal.
A Bahia se insurge no cenário da resistência a esse apagamento, contra o ideal
de miscigenação como eugenia dos negros.
Por outro lado, a Baía de Todos os Santos é o braço da Bahia africana,
pensada no imaginário baiano e brasileiro como a África no Brasil, enraizada
na tradição africana, a imagem da Bahia negra, tradicional, da natureza
mística, incentivada também pela literatura de Jorge Amado e pelas músicas
de Dorival Caymmi. Um conjunto de narrativas místicas que dão conta de uma
terra onde teoricamente as diferenças convivem harmoniosamente, sem
discriminação, ou seja, um mascaramento da realidade brasileira e baiana. Não
é estranho, portanto, que a personagem que representa essa relação com o
Brasil, no romance em questão, seja Angélica Ricos Olhos, personagem
mestiça, de olhos estrábicos, exilada do Brasil por assassinato, cujo olhar se
estende para lados opostos, lados diferentes, e nunca em uma mesma direção
apenas.

2.1 A diferença dentro da construção do imaginário nacional

Se o olhar da personagem Angélica nunca se lança em uma única


direção, ao menos conjuga opostos, pois esses lados diferentes terão que
conviver em um mesmo corpo. Essa diferença está marcada em todos os
personagens que se situam na condição de fronteira, a exemplo do narrador e
dos filhos de Baltazar Van Dum − os filhos dos europeus com os nativos.

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Reconhecer a diferença é estar consciente dos valores impostos pelo


dominador aos dominados. No caso do romance A Gloriosa Família, a
diferença se traduzirá em repulsão e atração, ao mesmo tempo. Os filhos de
Baltazar Van Dum serão alvo de discriminação, mas, estando no papel de
dominadores, saberão também como exercer seu poder no trato com os
escravos. Reforça-se a ideia de que as relações de poder existentes nessa
sociedade não estão resumidas ao campo racial, dizem respeito também a
uma hierarquização do poder, que determina cada papel representado dentro
dessa sociedade. A diferença é apreendida como uma problematização da
questão racial, que, no mesmo momento que problematiza o conceito de raça,
afirma essa mesma diferença através da questão social e através do olhar que
aprisiona o “outro”, olhar potencializado pela mesma discriminação. É dessa
forma que a diferença será introduzida na sociedade brasileira, por exemplo, e
é dessa forma que aparece também na sociedade angolana representada no
romance em questão.
Baltazar reconhece na condição mestiça de seus filhos um empecilho
às relações sociais com os europeus presentes em território africano, com
exceção da personagem Matilde que consegue circular muito bem nesse
contexto. De qualquer maneira, a imagem que fica da personagem Matilde é o
estereótipo da mulata exuberante, que só é quebrado pela sua autonomia
intelectual e, até certo ponto, política. O fato de se tratar de uma família que se
constrói e se vende como tradicional não impede que haja uma apreensão da
diferença sob um aspecto negativo. É através do olhar que exercemos o
preconceito, o racismo se constrói dessa forma. A outra moeda dessa diferença
é a possibilidade da condição mestiça dos filhos de Baltazar aproximá-lo de
outros esquemas de poder. Isto está presente, por exemplo, na relação de
Baltazar Van Dum com D. Agostinho Corte Real, um representante do rei do
Congo (mais um representante do poder periférico na relação entre dominador
e dominado).
Ao fazer o casamento de Rodrigo e Cristina Nzuzi, filha de Corte Real,
Baltazar aumentará sua estratégia de diminuição dos riscos no trato com os
holandeses, realizando as atividades comerciais, políticas, além das atividades
de informante (tanto com os portugueses quanto com os holandeses, ainda que

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os dois grupos não saibam claramente de suas estratégias). Assim como o


narrador, a estratégia de Baltazar é uma questão de sobrevivência: “Agora
estava com os holandeses, lhes diria tudo o que quisessem saber sobre os
portugueses. Mas não numa bodega, onde toda a gente podia ficar a saber ele
era um informador” (PEPETELA,1999, p. 37).
O narrador, ao se reconhecer como mestiço e identificar os filhos do
seu senhor como tal, está se colocando e colocando os filhos de Van Dum na
mesma posição do diferente, do “outro”. Sem esquecer que a hierarquia do
poder os coloca em lados opostos − senhores e cativos. O fruto dessa
consciência é a sua constante inquietação sobre o que é ser escravo, ora
admitindo-se apenas como “peça”, propriedade (afirmação permeada por uma
aguda ironia), ora problematizando o fato de Baltazar ser seu senhor,
evidenciado no jogo da dupla posse, no qual seu senhor pode atuar tanto como
objeto da narrativa do cativo (“o meu dono”) quanto como sujeito. Isso pode ser
demonstrado nas citações a seguir: “Um escravo não tem direitos, não tem
nenhuma liberdade. Apenas uma coisa lhe não podem amarrar: a imaginação.
Sirvo-me sempre dela para completar relatos que me são sonegados, tapando
os vazios.” (PEPETELA, 1999, p. 14). E “Os filhos todos eram mulatos, como
eu, mas havia tonalidades diferentes e uns tinham olho azul, outros verde, e
ainda outros castanho.” (PEPETELA, 1999, p.21).
As relações da família Van Dum são permeadas pelo desejo da
“mistura”, o ideal de branqueamento tão comum à sociedade brasileira no
século XIX e XX, a preocupação com uma identidade nacional hegemônica,
teoricamente, ameaçada pela pluralidade étnico-racial. Novamente a
miscigenação, como eugenia do elemento negro, servia como um ideal à
construção identitária brasileira. Voltando ao romance, muito embora a
narrativa traga a voz do subalterno como uma subversão, traz também, no
campo das relações interraciais, ideias racistas. Convivem, no romance, vozes
contraditórias. Baltazar e sua esposa dona Inocência, representantes da
construção da sociedade angolana, preferem que os filhos tenham
relacionamentos interraciais. D. Inocência enxerga, nessas relações, uma
“evolução” da sua raça. Outros relacionamentos apenas serão aceitos quando
estiverem ligados ao poder. Daí o destino trágico do envolvimento entre o

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escravo Thor e Rosário, e os ganhos políticos de Baltazar no casamento de


seu filho Rodrigo com Cristina Nzuzi.

3 Considerações finais
O que nos atrai no outro e o que nos causa repulsa é aprisionado pelo
olhar. É dessa forma que são construídos os preconceitos. Porque o “outro”,
quando pensado sobre a questão da pele, da cultura, da diferença, nem
sempre é considerado nos discursos do imaginário nacional, a não ser quando
essa diferença serve a outros propósitos, sejam eles políticos ou comerciais.
No romance, esse outro se coloca a luz que desmascara toda uma sociedade
que vive de aparências, mostrando os silenciamentos que foram operados
nessa mesma sociedade. O mudo é aquele que fala, aquele a quem
impuseram uma mudez cultural e política. É o corpo que descreve na sua
miscigenação toda a violência política e ideológica que marca as relações das
sociedades que viveram sob o subjugo da escravidão. É o corpo que
desmascara as relações de poder existentes nessas mesmas sociedades.

REFERÊNCIAS

ALBERGARIA, Roberto. Entrevista. In: Revista SBPC Cultural- Bahia, bahia, que lugar
é esse?, 2001, p. 49-55.

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O aprendizado da colonização. In: O trato dos


viventes: a formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p.11-42.

BHABHA, Homi K. Locais da cultura. In: O local da Cultura. Tradução de Myrian Ávila,
Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1998, p. 19-42.

__________________. Interrogando a identidade: Frantz Fanon e a prerrogativa pós-


colonial. In: BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Tradução de Myrian Ávila, Eliana
Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998,
p. 70-104.

CUNHA, Eneida L. Entrevista. In: Revista SBPC Cultural- Bahia, bahia, que lugar é
esse?, 2001, p.18-22.

571
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Visibilidade e ocultação da diferença: imagens do


negro na cultura brasileira. In: Brasil Afro-Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Autêntica,
2000.

MUNANGA, Kabengele. Racismo, mestiçagem versos identidade negra. In:


Rediscutindo a mestiçagem no Brasil − identidade nacional versus identidade negra.
Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2004, p. 121-140.

PEPETELA. A Gloriosa Família: o tempo dos flamengos. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 1999.

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura no


trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000, p. 9-
26.

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Raça como negociação: sobre teorias raciais em finais
do século XIX no Brasil. In: Brasil Afro-Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Autêntica,
2000.

SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e Conflito: a resistência negra no


Brasil escravista. São Paulo: Editora Companhia da Letras, 1989.

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LITERATURA E DIVERSIDADE: O DESVELAR DAS IDENTIDADES


NEGRAS E INDÍGENAS

IZANETE MARQUES SOUZA (IFBAIANO/UNEB)


LUÍS HENRIQUE ALVES GOMES (IFBAIANO)
DANIELA MARIA BARRETO MARTINS (UNEB)

Resumo: Neste trabalho, analisamos a presença da diversidade étnico-racial,


cultural e linguística em obras literárias escritas em língua portuguesa enquanto
estratégia de desvelamento das identidades dos povos negros e indígenas na
produção africana e brasileira. Também estudamos as articulações ideológicas
libertárias e discriminatórias presentes nas obras literárias em análise enquanto
processo antagônico de denúncia dos problemas sociais, especialmente nos
contos de Mia Couto, publicados no livro “Vozes anoitecidas”, nas ilustrações
do Jornal Foia dos Rocêro, dentre outros escritos, numa perspectiva
multicultural.

Introdução
A língua... uma forma específica
organizada entre duas substâncias,
a do conteúdo e a da expressão...
(Hjelmslev apud Hénault, 2006, p.79)

Na epígrafe acima, na qual o autor parafraseia Ferdinand de Saussure


temos a tônica para a análise das identidades negras, desveladas nos contos
de Mia Couto apresentados na coletânea “Vozes anoitecidas”, na qual o próprio
José Craveirinha, em prefácio à edição brasileira declara, em outras palavras,
se ver na e reviver a história de luta contra o racismo, contra a escravidão,
contra a dominação política dos europeus.
Publicado em Moçambique na década de 1980, “Vozes anoitecidas”
representa, para Craveirinha, a terceira geração de uma literatura
autenticamente nacional para a literatura moçambicana, na qual seus
precursores são João Dias (1950) e Luís Bernardo Honwana (1960). Nessa
coletânea, a personalidade dos moçambicanos é identificável nas simbologias,
nos desfechos, nas reações e nas “codificações de um fatalismo místico e

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ritualista, aparentemente imaginado, mas extraído da própria vida.”


(Craveirinha in COUTO, 2013).
Procurou na penumbra o braço do marido para acrescentar força
naquela tremura que sentia. Quando a sua mão encontrou o corpo do
companheiro viu que estava frio, tão frio que parecia que, desta vez,
ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera.
(COUTO, 2013. A fogueira)

Ao ler os contos “A fogueira” e “O dia em que explodiu Mabata-bata”


podemos interagir com a narrativa “A explosão” do escritor modernista e
angolano, João Tala, na qual as sequelas deixadas pelos horrores da guerra
impede à protagonista do conto – Josefa – de se entregar inteiramente ao amor
conjugal e maternal. Essa analogia dá-se devido à forma como o narrador
expressa a solidão e a pobreza das personagens principais do primeiro conto
da coletânea, em que os idosos – cujas características reforçadas pelos
adjetivos substantivados: o velho e a velha – sofrem com as ausências,
ausência de recursos, ausência de vizinhos, ausência dos filhos mais novos
que saíram e não mais voltaram. Esta última ausência pode ser a expressão de
um conteúdo bastante presente na vida dos africanos: a separação entre os
jovens e suas famílias em decorrência da participação na guerra armada e do
êxodo em busca de melhores condições de vida, coadunando com a afirmação
de Craveirinha de que os fatos presentes nas narrativas de Mia Couto são
“extraídos da própria vida”.
Ainda em “A fogueira”, é possível notar o foco na miséria
socioeconômica das personagens, expressando esse conteúdo através das
descrições de uma moradia isolada no meio do mato, a esteira como cama: “A
fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o
nada, mesmo o vento estava sozinho.” Aliado a isto está a rústica
“preocupação” do marido com a franzina força física da mulher, hora
aparentando receio com o devir na vida dela sem ele ali, hora sendo rude com
as palavras, o que conduz o leitor a questionar se essa aridez nas palavras era
uma demonstração de sentimento de inferiorização da mulher (“a velha”) ou se
era a única forma de demonstrar carinho conhecida pelo “velho”.
Ao mesmo tempo, o enredo de “A fogueira” nos remete a uma reflexão
sobre gênero: a mulher é o sexo frágil que precisa ser cuidada pelo marido a
quem ela idolatra e de quem acata todas as decisões sem questioná-las? Ao

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dizer que abriria uma cova para a “velha”, estaria o “velho” preocupado com o
bem estar da esposa ou consigo? Ao intentar e concretizar a abertura de uma
cova, já previa a própria morte ou realmente tinha a intenção de matá-la? Seria
a esposa uma mulher conformada ou uma sábia líder que comandava a
relação sob o disfarce do conformismo e da submissão? Para nenhum desses
questionamentos teremos respostas categóricas, uma vez que a interpretação
da arte, e também da vida, depende do ponto de vista de quem olha. A miséria
socioeconômica vista pelo povo urbanizado representa a riqueza dos povos
indígenas primitivos os quais não estão representados pelo “índio” Peri em O
Guarani, de José de Alencar. Na verdade, Peri representa muito mais os
cavaleiros medievais e a vassalagem amorosa presente nas cantigas de amor
na qual se pressupunha uma monogamia e o desejo deliberado de se tornar
um fidalgo para conquistar a mulher amada, propagando a suposta supremacia
do branco sobre o índio e o negro.

O papel da arte na vida humana

A arte sempre ocupou um lugar especial na vida do ser humano desde


os primórdios da História, representando um elemento de controle das forças
da natureza. Assim, o tipo de respostas dadas às questões de gênero,
identidade e alteridade dependerá ainda do contexto em que estiver inserido o
leitor. José Craveirinha se identificou com os contextos dos contos do livro
“Vozes Anoitecidas” porque seu contexto de vida foi semelhante, como ilustra
nos versos iniciais do poema “África”:
Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

No conto “O dia em que explodiu Mabata-bata” é possível observar os


perigos vividos pelos habitantes dos países africanos falantes da língua
portuguesa durante a guerra pela libertação. Tanto o escritor angolano quanto
o moçambicano utilizam a explosão como metáfora das guerras políticas
vivenciadas por estes povos. Em ambos, percebemos o desejo de liberdade e
de mudança de vida, mimetizados através do esvaecer da fumaça na qual se

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pode perceber uma junção de mística e de realidade representada


artisticamente, pela busca simultânea pela liberdade espiritual e social, pelo
anseio por condições humanizadas como respeito, moradia, dignidade,
educação. Tudo isso atrelado ao princípio moral latente na nossa
ancestralidade negra – o respeito e a reverência aos anciões, claramente
representado na fala da avó Carolina: “- O Azarias vai negar de ouvir quando
chamares. A mim, há de ouvir.” (Couto, 2013, p.45).
Portanto, o desejo de acesso à educação pode representar o desejo de
liberdade pulsante em Azarias. Ele desejava ser tratado como filho, ter a
chance de viver a sua infância, de receber carinho, de ter uma família que o
amasse. Nesse compasso, sua avó Carolina e seu tio Raul, personagens
nominalizadas (ao contrário das personagens de “A fogueira”) podem
representar a expressão os algozes africanos – os colonizadores europeus,
enquanto Azarias é a mimese dos negros e negras explorados, escravizados,
cujas vidas foram roubadas, a liberdade ceifada. É o grito pela independência
da África enquanto continente e da África, enquanto personificação dos negros
e negras expatriados seja no Brasil, seja em outros países fora do continente
africano.
As “Vozes anoitecidas” prosseguem retratando o cotidiano moçambicano
através de “O último aviso do corvo falador”, “Os pássaros de Deus”, “A história
dos aparecidos”, “A menina de futuro torcido”. Vozes essas “anoitecidas” pela
dor, pela má administração pública, pela alienação religiosa, pelo sonho de
riqueza, pelas desgraças do cotidiano, pelos acidentes fatais.
Numa linha contrária a essa representação identitária carregada de
popularidade, de lutas e conquistas, temos a imagem da “mulata véa”.
Veiculada em “A Foia dos Rocêro” 101, um periódico de cunho jornalístico que
circulou na Bahia/Brasil entre 1899 e 1968, no qual o redator utilizava, uma
linguagem rural estereotipada, com a finalidade de camuflar suas intenções
políticas. Tal camuflagem possibilitava a utilização frequente de metáforas e
pseudônimos, para apresentar críticas aos governantes da Bahia de 1900 e,
também, às condições pelas quais o Estado da Bahia estava passando.

101
Essa análise do Jornal Foia do Rocêro foi feita de forma ampliada na tese de Doutoramento
do coautor Luís Henrique Alves Gomes.

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O jornal utilizava-se de uma forte influência imagética para satirizar a


política da época e do local, comparando-a, frequentemente, com a política do
início da república no Brasil e veiculava notícias de localidades afastadas da
capital da “Província” da Bahia, contando histórias e “causos” do interior
baiano, que, por vezes, envolvia grandes personalidades da época. Por meio
de charges e sátiras, o redator da” Foia dos Rocêro” do ano de 1900 retratava
a imagem do Estado da Bahia profundamente desgastado, doente, usurpado e
fragilizado. Nessas charges, a Bahia é caracterizada pela representação de
uma senhora negra, desgastada, doente, usurpada de suas forças e
fragilizada: a “mulata véa”.
A partir das imagens veiculadas, destacando-se a “Mulata Véa”, a
manipulação do imaginário coletivo se dava para a consecução de variados
fins, por exemplo, manipulação política, práticas higienistas e consolidação de
símbolos.

A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de


qualquer regime político. É por meio do imaginário que se pode
atingir, não só a cabeça, mas, de modo especial, o coração, isto é, as
aspirações, os medos e as esperanças de um povo. É nele que as
sociedades definem suas necessidades e objetivos, definem seus
inimigos, organizam seu passado, presente e futuro. O imaginário
social é constituído e se expressa por ideologias e utopias, sem
dúvida, mas também, por símbolos, alegorias, rituais, mitos. Símbolos
e mitos podem, por seu caráter difuso, por sua leitura menos
codificada, tornarem-se elementos poderosos de projeção de
interesses, aspirações e medos coletivos. Na medida em que tenham
êxito em atingir o imaginário, podem também plasmar visões de
mundo e modelar condutas. A manipulação do imaginário social é
particularmente importante em momentos de mudança política e
social, em momentos de redefinição de identidades coletivas.
(CARVALHO, 2005, p. 10)

Os editores da “Foia dos Rocêro,” no que tange ao uso de imagens,


buscavam, através da sátira, atingir todos os objetivos citados por Carvalho
(1990). Por isso, atacava as elites políticas dos grupos opostos ao ideário do
jornal, e colocava a Bahia numa condição de pouco desenvolvimento em
relação ao cenário nacional, haja vista que o final do século XIX, início do
período republicano, é marcado por um forte discurso desenvolvimentista
fomentado pela "Ordem e pelo Progresso", insculpido no símbolo maior
nacional, qual seja, a bandeira brasileira. Por outro lado, veiculava o reforço ao

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imaginário humano que colocava, e ainda coloca, o negro como uma “raça”
inferior, carregada de características pejorativas.
São frequentes, na “Foia dos Rocêro,” as referências a um processo
inacabado de transição para o período republicano por culpa da ingerência dos
governantes da Bahia. O vocativo utilizado para referir-se ao Estado da Bahia,
por exemplo, era “Mulata Véa”, como uma forma depreciativa, mostrando o
esgotamento político e administrativo do Estado baiano. Nesse contexto,
portanto, a comparação com a mulher negra envelhecida reforça a imagem do
negro como propriedade particular, instrumento de trabalho que perde a sua
valia quando desgastado, sendo logo substituído por outro, com melhores
condições de produção econômica.
Figura 1: parte de fac-símile da edição de no 25, do mês de Junho de 1900 da A Foia dos
Rocêro.

Fonte: Arquivo da Associação Baiana de Imprensa

Observando a capa da edição de número 25, do 1º domingo do mês de


junho de 1900, figura 01, perceberemos que essa ilustração retrata o antigo
governador Luís Viana deixando a Presidência da “Província” da Bahia. À
esquerda, o ex-governador beija a mão de uma senhora, uma mulata, cuja
identidade negra é revelada pelos trajes e vestimentas apresentadas na
xilogravura. Tal mulata é uma metáfora alusiva à Bahia, a “mulata véa” do
Império. A Província que produziu muito em tempos passados e que,
gradativamente, deixou de ter a mesma produtividade de outrora. À direita, o
ex-governador Luís Viana foge, levando uma mala, deixando a “mulata véa”
desesperada, pois a saída sugere um roubo, ou melhor, um rombo nos cofres
da Província da Bahia, personificada na mulata. Assim, nesse topoi a
representação do negro muda de configuração.

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Nesse contexto, a “mulata véa” é a representação da honestidade, da


luta pela justiça social, usurpada pelos algozes escravagistas ilustrados na
figura pública do Governador Luís Viana. O reforço à condição de
subalternidade e exploração da Bahia é personificado pela senhora negra,
sempre explorada pelos seus governantes e pela própria elite baiana de 1900.
Contudo, mesmo após a abolição da escravatura, a composição do imaginário
sobre o negro permanece inalterada.
Essa manutenção do imaginário social sobre negro pode ser claramente
percebida no romance O Cacau, de Jorge Amado, no qual o autor representa a
realidade dos trabalhadores da região cacaueira da Bahia na década de 1930.
Nele, os “alugados”, inclusive o “trabalhador branco” da Fazenda Fraternidade,
José Cordeiro, vivenciam condições de trabalho semelhantes a de escravidão,
nas quais o que ganham dá apenas para garantir uma alimentação precária,
comprada no armazém da fazenda, onde a “conta” nunca reduz, só aumenta.
Na região do cacau na Bahia, os trabalhadores da década de 1930, assim
como os negros escravizados até o século XVIII, dormiam em construções
rústicas ou de taipa, coletivas, com piso de chão batido, onde o mobiliário se
resumia a esteiras ou a giraus (camas de varas) assim como a realidade do
casal do conto “A fogueira” de Mia Couto.
Retornando às imagens utilizadas nos periódicos na segunda metade do
século XIX e primeiras décadas do século XX, estas serviam para além do
mero entretenimento e dos objetivos comerciais. José Murilo de Carvalho, em
sua obra A formação das almas: o imaginário da república no Brasil, 2005,
demonstrou os usos que os republicanos brasileiros fizeram das imagens e das
alegorias herdadas, principalmente da revolução francesa 102. Desse modo, a
república francesa, representada por uma imagem feminina, de grande
102
Nesse período de início de república no Brasil, Zenha (2006, p. 367) descreve a produção numerosas
imagens do Brasil para a construção de um ideal identitário: "Uma produção numerosa de imagens
pitorescas do Brasil, impressas dentro e fora do país, disseminaram-se pelo planeta durante o século XIX.
Esse conjunto iconográfico inseriu-se num processo de criação de identidades nacionais que vinha
ocorrendo na Europa desde o século VIII e que incluía, entre outras representações, aquelas identificadas
por Thiesse como paisagens típicas de uma nação e os lugares ícones nacionais (hauts lieux).
[...]
A partir da segunda metade do século XIX, quando a produção de imagens impressas sofreu significativo
impulso no Brasil, litogravuras e fotografias representando o desenvolvimento do progresso e da
civilização do país ganharam espaço, principalmente entre os produtos subsidiados pelo Estado ou pelos
soberanos brasileiros. Embora relatos de viagens continuassem a gozar do relativo sucesso,
principalmente na Europa, esse tipo de iconografia perdeu a exclusividade no que se refere à
representação da paisagem nacional brasileira".

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exuberância nas formas físicas, figura 2, especialmente nos seios e de cor


alva, representa o ideário da etnia branca sobre os negros. Tal imagem foi
apropriada pelos republicanos brasileiros que, do mesmo modo, cunharam a
imagem da república brasileira como uma bela dama branca e de seios fartos.

Figura 2: A liberdade guiando o povo - Eugène Delacroix, Louvre Fonte: Jornal O Globo.

Portanto, fica claro que a opção do redator da “Foia dos Rocêro”, do ano
de 1900, ao escolher uma mulher negra, franzina, empobrecida e doente, não
se deu por acaso, mas sim motivado por um debate nacional e por um
movimento igualmente amplo de representação das novas repúblicas e do
ideário de liberdade da revolução francesa.
Vejamos agora a Figura 3 e a edição do fac-símile:

Figura 3: parte de fac-símile de A Foia dos Rocêro. Fonte: Arquivo da Associação


Baiana de Imprensa

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Coluna: Legenda de imagens de capa Data/Edição: 1900/ 4º domingo de junho/


o
anno I / n 28
Tipo de Texto:Legenda Fonte: Associação Baiana de
Imprensa

M. V. Ai!... ai!... Sivi. meu fio. me salve pul’amor de Deus. ││ S. Coitada da Mulata
Véia!... tá padicendo de quebradeira na caixa do intriou! ││ Tome minha Véia, o vinho
de Sirva Lima qui todos toma, pru sê ua bôa meizinha pra arri- ││ cuntitui as força
pirdida: pruque tem kola. quinium fosfatado de fosfato.

Em tom jocoso, a “Foia do Rocêro” satiriza o acontecimento com o


sucessor de Luís Viana, o governador Severino Vieira (este antes era
correligionário de Luís Viana), dando remédio à “Mulata Véa”, que se encontra
deitada à cama, com um penico próximo, demonstrando um conjunto de
características bastante reveladoras. Assim, através da sua etnia negra, que na
época compunha um segmento mais desprivilegiado na sociedade brasileira,
seu corpo franzino e as reiteradas aparições nas quais lhe faltam a saúde e a
“vitalidade da liberdade francesa e da república brasileira”, o redator do
periódico ilustrava a situação de atraso e desmandos à qual estava sujeito o
Estado da Bahia e ao mesmo tempo reforçava o imaginário social que colocava
o negro na condição de não intelectual, de trabalhador braçal, de escória da
sociedade brasileira.

Considerações finais

Desse modo, percebemos o quanto o imagético colaborou para a


construção de cenários políticos e das críticas aos governantes, como também
contribuiu para reforçar o estereótipo da representação do negro nesse folhetim
“quase” literário no século XIX. Nessa mesma linha, a representação do negro
enquanto ser social explorado por uma sociedade muitas vezes, maniqueísta e
que luta constantemente pela concretização de uma “revolução proletária” é o
alicerce ideológico desenhado nas narrativas literárias de língua portuguesa,
especialmente em “Vozes anoitecidas” de Mia Couto e em “Cacau” de Jorge

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Amado, opondo-se ao imaginário identitário desenhado em “Foia dos Rocêros”


e no romance “O Guarani”.
Enfim, é possível identificar as articulações ideológicas libertárias e ao
mesmo tempo discriminatórias presentes nas obras literárias em análise
enquanto processo antagônico de denúncia dos problemas sociais. Essas
articulações possibilitam que os negros e os índios sejam tema e também
protagonistas nas obras literárias, o que contribui para a elevação da
autoestima dos afrodescendentes, brasileiros ou africanos, enquanto o
processo de protagonismo literário indígena ainda se encontra em construção.
Contudo, o mais importante é que uma literatura pautada numa ideologia
libertária promova a reflexão e até mesmo o convencimento de negros e índios
violentados psicologicamente – e que por isso não assumiram, ainda a sua
identidade negra ou indígena – assim como aos demais brasileiros e africanos,
cujo pensamento cauterizado lhes impossibilita de combater conscientemente
as práticas de discriminação racial.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José. O Guarani. 20. ed. São Paulo: Ática, 1996.

AMADO, Jorge. Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da


República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

COUTO, Mia. Vozes anoitecidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

CRAVEIRINHA, José. África. In: CRAVEIRINHA, José. Xigubo. Maputo:


AEMO, 1995.

DANTAS, Neuma. Foia dos Rocêro: a cobertura jornalística sátiro-política


da Revolta dos Caixeiros. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-
nacionais-1/encontros-nacionais/6o-encontro-
20081/Foia%20dos%20Rocero.pdf. Acesso em 20/09/2015.

HÉNAULT, Anne. História Concisa da Semiótica. São Paulo: Parábola


Editorial, 2006.

GOMES, Luís Henrique Alves. Foia dos rôcero: um jorná na Bahia no limiar
do século xx : Sociohistória, edição de orientação conservadora e

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

levantamento da escrita etimologizante como indício de letramento. Tese


(Doutorado em Letras). Universidade Federal da Bahia: Salvador, 2014.

GUIMARÃES, Valéria. Ascensão e queda do jornal. Revista História Viva,


São Paulo, n.100, a. 9, p. 80-85, fev., 2012.

PELINSER, André Tessaro. Cacau, de Jorge Amado: poética, ideologia e


mito na região. Revista Literatura e Autoritarismo: dossiê. Cascavel, n. 06,
Janeiro de 2012 – ISSN 1679-849X . Disponível em:
http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie06/RevLitAut_art02.pdf. Acesso em
20/09/2015.

TALLA, João. Os dias e os tumultos. Luanda: União dos Escritores


Angolanos, 2010.

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GRUPO DE TRABALHO: IMPACTOS DA LEI 10.639/03 NO PNBE E


MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO

PROPOSITORA: DANIELA GALDINO (UNEB)

Ementa:

Este GT se propõe a articular Pesquisadoras/es interessadas/os em analisar

as repercussões da lei 10.639/03 na constituição de acervos do Programa

Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), bem como de editoras brasileiras

(especializadas e não especializadas). Infere-se que a referida lei (associada

ao conjunto de ações destinadas à sua implementação) provocou alterações na

cadeia criativa e produtiva do livro, interligando as dimensões da escrita,

distribuição, mediação e leitura literárias. Nesse sentido, serão aceitos

trabalhos acadêmicos que se dediquem à análise das textualidades literárias

afro-brasileiras, à visibilidade de escritoras/es negra/os no contexto da lei

10.639/03 e também a experiências de mediação da leitura literária a partir do

acervo afro-brasileiro.

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LEI 10.639/03: DISCURSOS DA REVISTA NOVA ESCOLA (2004-2014)

ADRIANA DOS SANTOS (UESC) 103

Este estudo tem por objetivo analisar as publicações da Revista Nova


Escola referentes à Lei Federal 10.639, de 10 de janeiro de 2003, a qual tornou
obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica, e
as possíveis implicações deste periódico nas ações docentes, para que os
conteúdos propostos pela Lei sejam contemplados adequadamente em sala de
aula. Compreendemos que tal periódico é uma ferramenta muita utilizada na
formação dos docentes.
A importância da Lei alia-se ao reconhecimento da mesma como uma
oportunidade de superação das desigualdades históricas vividas por grupos
étnico-raciais não hegemônicos. Fruto de reivindicações dos movimentos
sociais, de uma pauta de políticas exteriores do Brasil, meio universitário e
áreas ligadas à educação, a Lei 10.639/03 modificou de forma significativa e
atribuiu novas dimensões à pesquisa e ao ensino sobre África realizados no
Brasil. Antes da regulamentação pouco constava quanto ao Ensino de História
Africana e Afro-brasileira nas escolas e até mesmo nas Universidades, as
representações mais comuns acerca destes conteúdos pautavam-se numa
visão homogênea, estereotipada, precária e tribal.
Como exemplo dessa má tradução, desinformação e do senso comum
acerca do continente africano, temos a declaração em uma visita à Namíbia do
ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, responsável por sancionar
a Lei abordada nessa investigação, o qual diz: “Quem chega em Windhoek não
parece que está em um país africano. Poucas cidades do mundo são tão
limpas, tão bonitas arquitetonicamente e têm um povo tão extraordinário como
essa cidade”.
A fala do ex-presidente da república relatada no artigo de 2007 do
historiador e professor doutor Flávio Gonçalves dos Santos, intitulado: História
e Cultura Afro-Brasileira na Educação Básica: Origens e Implicações da Lei
103
Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Aluna do curso de
Especialização em História do Brasil pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

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10.639/2003, demonstra que apesar do avanço da regulamentação da Lei, são


necessários novos e maiores esforços para que se desconstruam os
estereótipos e análises superficiais que a historiografia brasileira criou acerca
do continente africano e seus descendentes.
Para tornar possível o cumprimento da Lei nas escolas outra ação
tornou-se fundamental, o investimento na formação docente, inicial ou
continuada, para garantir o trabalho efetivo nas escolas. A Resolução CNE/CP
1/2004 estabeleceu que os cursos destinados à formação de profissionais para
a educação, nas licenciaturas e pedagogia, tratem das temáticas que envolvam
a História e Cultura Africana e Afro-descendente. (MONTEIRO, 2006, p. 123).
Compreendemos assim, que para tornar possível a criação de novas
interpretações que abordem a experiência de sujeitos históricos antes
marginalizados, vistos como minorias, excluídos de direitos e de
representação, são necessárias novas práticas e debates vinculados ao
exercício contínuo de romper com perspectivas tradicionais e culturalmente
consagradas pela história. O cerne da discussão está em questões
fundamentais como “o que”, “quando” e “como ensinar”.
Acerca desta questão, Nilma Lino Gomes, em artigo intitulado “Educação
cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da diversidade”, argumenta que:

Ainda nos falta muito para compreendermos que o fato de sermos


diferentes uns dos outros é o que mais nos aproxima e o que nos
torna mais iguais. Sendo assim, a prática pedagógica deve considerar
a diversidade de classe, sexo, idade, raça, cultura, crenças, etc.,
presentes na vida da escola e pensar (e repensar) o currículo e os
conteúdos escolares a partir dessa realidade tão diversa. (...) A
construção de práticas democráticas e não preconceituosas implica o
reconhecimento do direito à diferença, e isso inclui as diferenças
raciais. Aí, sim, estaremos articulando Educação, cidadania e raça
(GOMES, 2001, p. 87)

O pesquisador e historiador Antonio Simplício de Almeida Neto (2011, p.


159) afirma que na atenção para as demandas da formação docente devem-se
contemplar preocupações com conteúdos, possibilidades e dificuldades sobre o
saber histórico, propostas interdisciplinares, construção de projetos, pesquisas
e utilização de recursos didáticos mais adequados.
Com base na exposição de Almeida Neto, é possível relacionar a
complexidade da prática docente, com o fato da Revista Nova Escola, nosso

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objeto de investigação, ser um veículo de informação e formação tão utilizado


pelos docentes. Tendo em vista a fragilidade da formação inicial, a
superficialidade da formação continuada, associados aos obstáculos e desafios
do cotidiano escolar, tais como carga horária excessiva com jornadas que
ultrapassam quarentas horas semanais, muitas vezes conciliadas em duas
redes, encontrar então uma “aula pronta”, “projetos sugeridos”, “teoria passada
a limpo” e “transformada em práticas de sucesso comprovado” com tudo
explicado passo a passo no discurso típico da revista possam parecer o ideal.
A revista Nova Escola, criada em setembro de 1985, é editada pela
Fundação Victor Civita entidade, que por sua vez é mantida pelo Grupo Abril;
tem por justificativa a proposta de “valorizar e qualificar o professor da
Educação Básica em todo o Brasil”. Desde sua origem, tal periódico é
distribuído gratuitamente a um número significativo de escolas públicas,
através de uma parceria do Grupo Abril e o Ministério da Educação e Cultura, e
também vendido segundo seus editores, a preço de custo.
Para a realização da pesquisa investigamos vinte exemplares que
abordam como tema central a Lei 10.639/03, publicações ocorridas a partir de
2004, ano posterior à criação da Lei ao ano 2014; foram visitados exemplares
impressos e online. A preocupação com a Revista Nova Escola surgiu através
do diálogo que este periódico se propõe a fazer com os docentes, tendo em
vista que estes, por sua vez, são mediadores do conhecimento e um dos
responsáveis por uma atuação adequada da escola, de modo que esta cumpra
sua função social, que perpassa pelo processo de socialização e criação de
sabares, crenças e valores aos seus discentes.
Acerca da prática docente SILVA afirma,

O professor é um ser social, constituído e constituinte de seu meio.


Como pessoa, age e sofre as ações de sua sociedade: ele constrói e
é constituído por ela. A sociedade é feita por ele e ele é feito por ela;
portanto, o professor é um construtor de cultura e de saberes e, ao
mesmo tempo, é construído por eles. Quando ele vai para o curso de
formação inicial, ele é alguém que, em sua trajetória de vida como
filho e como aluno, já passou pela escola e já construiu expectativas,
crenças e representações. (SILVA, 2000, p. 25)

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A publicação da Lei nº 10.639/2003 ocorreu em um contexto educacional


amplo, determinada pelas transformações advindas da promulgação da Lei de
Diretrizes e Bases nº 9.394, de 1996, na qual se afirmam modificações
educacionais importantes, como a flexibilidade curricular, a conscientização e o
valor da inclusão e da diversidade na educação. Assim, a revista Nova Escola
é vista como objeto cultural, criadora de mudanças e posturas políticas-
pedagógicas, cujo discurso jornalístico contribui para a materialização dos
professores.
A revista Nova Escola destaca-se por conseguir atingir uma determinada
hegemonia na área de revistas educacionais e de manter um constante diálogo
com o leitor. Trata-se de um veículo de propagação e legitimação das
propostas educacionais vivenciadas por professores e demais órgãos
envolvidos na educação brasileira. Os argumentos expostos procuram
condicionar o interlocutor a assumir determinadas posturas ou persuadi-lo a ter
representações específicas sobre mundo e a sociedade.
As propostas curriculares inseridas junto às práticas recomendadas e os
discursos estabelecidos na revista reforçam o atendimento às Leis Decretos,
Deliberações, Indicações que se fazem presentes nos níveis federal e estadual.
A revista Nova Escola tem como um dos seus objetivos ser um periódico a
serviço da divulgação e implantação da legislação vigente, sugerindo ao
professor que através da leitura da revista é possível ser conhecedor de seu
papel e das expectativas que lhe são conferidas no contexto educacional.
O discurso da Revista direciona o trabalho em sala de aula e destaca as
competências e habilidades a serem desenvolvidas em atividades com os
alunos. Neste sentido, utiliza-se do discurso jornalístico para a difusão do
currículo apresentado pelas políticas públicas. Percebe-se, que o periódico
estabelece parcerias entre os saberes ideológicos presentes no discurso das
publicações e as políticas públicas. A atenção focada especialmente nas
seções da revista: Reportagem de Capa e Entrevistas; Carta ao Leitor, Caro
Professor e Caro Educador, as quais, respectivamente, apresentam discurso
interpretativo, informativo e os dois últimos opinativo, indicam uma amostra dos
reflexos da política educacional vigente direcionada a consolidar opiniões nos
leitores que fazem parte de um contexto específico.

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O contrato temático entre as publicações e o leitor fica evidente no


desenvolvimento dos assuntos, assim como a presença das mudanças
sugeridas pelos órgãos governamentais, que se mostram presentes nas
páginas da revista através dos depoimentos dos professores e teorias
pedagógicas.
Os textos expressos no periódico, impresso ou online, são veículos de
expressivas marcas na produção de significados para a prática do professor. A
revista passa a fazer parte da história da educação, uma vez que segue os
momentos e acontecimentos relevantes do contexto educacional. O contato
inicial com o professor aparece nas intenções iniciais da revista, declaradas
pela Fundação Abril, responsável pela revista:

Revista Nova Escola Lançada em março de 1986, é a maior revista


de educação do Brasil e a principal iniciativa da Fundação Victor
Civita: seu objetivo é contribuir para a melhoria do ensino
fundamental, divulgando informações que contribuam diretamente
para a formação e o aperfeiçoamento profissional dos professores.
Com a revista Nova Escola, os professores têm acesso às novidades
da área e às experiências dos maiores especialistas em educação do
Brasil e do exterior. Encontram idéias para aulas, entram em contato
com novas teorias e sistemas didáticos, aprendem a confeccionar
material pedagógico de maneira simples e de baixo custo além de ter
um espaço para mostrar trabalho, talento e competência.
(PUBLIABRIL, 2008).

Trabalhar para a implementação da lei é fundamental para a construção


de uma educação em que todos possam compreender a diversidade como
contribuição na busca da igualdade. Assim, a lei 10.639/03 necessita ser
assimilada tanto pelos professores quanto pelos gestores nas Unidades de
Ensino. O avanço nesta percepção assinala uma quebra com um tipo de
postura pedagógica que não reconhece as diferenças oriundas do nosso
processo de formação nacional (UNESCO, 2008). Nesse contexto, a Revista
Nova Escola tornou-se um artefato da cultura midiática (RAMOS, 2009) de
ampla circulação entre os profissionais da educação, é fundamental destacar
as abordagens, posturas e práticas pedagógicas propostas pela Revista para
auxiliar as escolas a cumprirem a lei.
Este periódico chega na maioria das vezes até o docente através de um
convênio com as secretarias de educação estadual e municipal. Tais
mecanismos de circulação e divulgação da revista autorizados pelas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

secretarias supõem indicar que a revista Nova Escola carrega uma mensagem
oficial, ou seja, aborda versões do currículo e ensino definidas pelos órgãos
responsáveis, servindo como meio e instrumento de viabilização do que é
estipulado por estes órgãos para que o docente conheça e desenvolva como
“mecanismo de regulação coletiva” (SILVA e FEITOSA, 2008, p. 185).
Associado ao conceito de “regulação coletiva”, não podemos deixar de
destacar o processo de evolução da Revista Nova Escola e como esta segue
assumindo o propósito de ser o apoio do ensino de qualidade, criando uma
identidade vinculada às políticas educacionais implantadas pelos órgãos
oficiais de ensino. Segundo Silva e Feitosa (2008, p. 185), “de 1998 a 2000,
após a aprovação da Lei 9392/96, a chamada Nova LDB, a Revista assume um
novo slogan ‘A Revista do Ensino Fundamental’. Em 2000 a Revista assume o
dístico: ‘A Revista do Professor’”.
Do ano de 2004, posterior a regulamentação da Lei 10.639, ao ano de
2014, a Revista Nova Escola buscou viabilizar o trabalho do professor como
veremos posteriormente, auxiliando através dos conteúdos propostos, práticas
pedagógicas a serem seguidas para a efetivação do ensino de História e
Cultura Africana e Afro-brasileira em território nacional.
Nos anos de 2004 e 2005, o periódico supracitado dedicou poucos
exemplares para as temáticas que se relacionam com a Lei, apresentando para
seu público-alvo, por meio das categorias, como: currículo e formação docente;
reportagens, projetos institucionais, planos de aula, listas de livros publicados,
recursos multimídia, que poderão contribuir para a execução do trabalho
docente na escola. Entre 2008 e 2009, a temática, ainda que reduzida, esteve
presente nas edições da Revista Nova Escola, no entanto, no ano de 2010,
com a proximidade da Copa do Mundo de Futebol, sediada na África, este
assunto foi contemplado de forma mais ampla nas edições e prometeu se
tornar a “A Bola da Vez” (FUNDAÇÃO VICTOR CIVITA, 2010, capa).
Em dezembro de 2010, a Assembleia Geral da ONU declarou 2011
como o Ano Internacional dos Afrodescendentes (ONU, 2010). Porém, a
Revista Nova Escola, nas dez edições de 2011, dedicou apenas em duas de
suas edições, um pouco mais que três páginas para a História e Cultura
Africana e Afro-brasileira. Ainda assim, as matérias foram limitadas a discussão

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

da questão do currículo e a formação docente. Dentre os oito planos de aula


apresentados na revista no ano de 2011, em apenas um podemos perceber
que o ensino da História e Cultura Africana e Afro-descendente foi
contemplado.
Para as matérias de 2011, a Revista Nova Escola escolheu o mês de
outubro, um mês antes ao dedicado à consciência negra no Brasil para abordar
as temáticas propostas na Lei, foi na seção “Sala de aula” destinada à exibição
de planos de aula, sequências didáticas, e passo-a-passo para o docente
conhecer e aplicar os conteúdos apresentados. O artigo de 2011 abordou o
tradicional assunto da escravidão no Brasil, a revista ofereceu ao docente
através da consulta online uma sequência sobre os fatores que levaram à
opção pelo escravo africano como Mão de Obra no Brasil. Nos anos de 2013 e
2014, não tão diferentes das publicações dos anos anteriores, os conteúdos
sugeridos pela Lei foram apresentados de maneira reduzida e com debates
ligados à escravidão e mão de obra.
Com base na bibliografia que discute a Revista Nova Escola,
compreendemos que este periódico não é muito bem recebido pelos
acadêmicos, por ser comercial, além de conter um discurso jornalístico,
midiático e apresentar determinados conteúdos de maneira padronizada.
Percebe-se nas edições da revista um vocabulário simplificado, acompanhado
de várias ilustrações, que na maioria das vezes, expõe professores e alunos
sorridentes, os problemas educacionais são apresentados de maneira a induzir
o professor a acreditar que para tudo ser resolvido basta que cada um faça sua
parte.
Sobre a revista Nova Escola BUENO (2007) afirma,

Em termos gerais, prevalece em Nova Escola uma visão operacional


da realidade pedagógica, manifestada segundo dois aspectos
principais. 1) Voluntarismo e estereotipia. Os problemas educacionais
são reiteradamente reduzidos a questões a serem resolvidas
individualmente pelo professor, o qual é pressuposto como um ser
dotado de inesgotável força de vontade, permanentemente disposto a
se superar no cumprimento de sua missão.1 Esse tipo de Os
antagonismos próprios ao campo educacional, que refletem as
contradições da própria sociedade, desaparecem na maior parte das
reportagens e artigos da revista, prevalecendo uma visão operacional
amparada na iniciativa pessoal como recurso suficiente para a
resolução dos problemas pedagógicos. Os profissionais da área
pedagógica são esvaziados de sua especificidade como possíveis

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agentes problematizadores das tensões sociais, e reduzidos


exclusivamente à dimensão prática de seu ofício. (BUENO, 2007,
p.304).

Esta exaltação do voluntarismo fica evidente na execução concurso


anual “Prêmio Victor Civita – Professor nota 10”, promovido pela Fundação
Victor Civita. O concurso tem como objetivo premiar experiências de boa
qualidade no ensino infantil e fundamental, oferecendo premiações em dinheiro
e troféu similar ao Oscar da Academia de Cinema de Hollywood.

O prêmio Victor Civita Professor Nota 10 beneficia os professores que


buscam alternativas de metodologia de ensino. Parabéns a todos que
participaram do concurso, em especial aos 50 classificados na
primeira etapa – escolhidos entre mais de 3.200 inscritos. Esses
educadores nos mostram que o esforço, a criatividade e a vontade de
exercer o magistério têm de ser colocados acima de tudo. Não há
prêmio maior do que a consciência do dever cumprido. (Revista Nova
Escola, 2009. p. 9).

Após a investigação sobre a revista Nova Escola, no tocante à Lei


10.639/03, percebe-se que esta ferramenta de formação docente não cumpre
bem o seu papel, pois, apresenta receitas prontas e imposições de padrões a
serem seguidos, porém, é um subsídio que pode ser utilizado pelo docente,
desde que este domine os conceitos básicos da disciplina que ministra, possua
conhecimento acerca do seu campo de atuação, engajamento profissional,
como também tenha bem definido para si o sentido do que ensina.
.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA NETO, Antonio Simplicio de. Saber histórico escolar e novas


demandas da formação docente. In: LAILA, Maria Aparecida de; SILVEIRA,
Maria Lucia da; SZMYHIEL, Adriana (orgs). A universidade e a formação
para o ensino de história e cultura africana e indígena – desafios e
reflexões. Anais do II Fórum de Ensino Superior. São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2011, pp. 158-159.

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BUENO, Sinésio Ferraz. Semicultura e educação: uma análise crítica da


revista Nova Escola – Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 35,
maio/ago. 2007.

FUNDAÇÃO VICTOR CIVITA. A Bola da Vez. Revista Nova Escola. São


Paulo, ano XXV, nº. 232, mai. 2010.

GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça: o trato pedagógico da


diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (org.) Racismo e anti-racismo na
educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

MONTEIRO, Rosana Batista (org.). Licenciaturas. In: BRASIL, Governo do.


Ministério da Educação/ SECAD - Secretaria da Educação Continuada.
Orientações e ações para educação das relações étnico-raciais. Brasília:
SECAD, 2006.

RAMOS, Márcia Elisa Teté. O ensino de história na revista nova escola


(1986-2002): cultura midiática, currículo e ação docente. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná. Tese de Doutorado, 2009.

SANTOS, Flávio Gonçalves dos. História e Cultura afro-brasileira na


Educação básica: origens e implicações da lei 10.639/2003. Salvador.
Cadernos do CEAS, janeiro/ março, 2007.

SILVA, Marcos; FEITOSA, Lucineia dos Santos. Revista Nova Escola:


legitimação de políticas educacionais e representação docente. Revista
HISTEDBR On-line. Campinas, nº. 31, set. 2008, pp.183 -198.

SILVA , Rita de Cássia da Silva. O professor, seus saberes e suas crenças. In:
GUARNIERI, Maria Regina (Org.). Aprendendo a ensinar: o caminho suave
da docência. Campinas: SC; Araraquara, SP: Autores Associados, 2000.

UNESCO; BRASIL, Governo do. Ministério da Educação. Contribuições para


a implementação da Lei 10639/2003. Brasília, 2008. Disponível em
http://portal.mec.gov.br/pdf.

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O QUE AINDA PRECISA MUDAR? DOZE ANOS DA PROMULGAÇÃO DA


LEI 10.639/03

JUSSARA OLIVEIRA DE SOUZA (UNEB)

No Brasil, a história da população negra foi amplamente documentada


por sua condição escrava. Mas do que isso, na literatura sobre escravidão
predominou uma visão que insistiu em circunscrever os negros e negros, de
formas estereotipadas. Tomando consciência, de forma tardia, entendemos a
importância de levar essa abordagem ao ensino de História, que, desde 1996,
com a LDB e os PCNs em 1997, já sinalizavam a importância dos temas
transversais, das questões étnicas e pluriculturais do nosso país e que em
2003 é tornado lei que obriga, nas instituições escolares o ensino de História e
cultura Afro-brasileira. Em janeiro de 2015 completou doze anos a promulgação
da Lei Federal 10.639/03 que estabelece diretrizes para incluir no currículo
oficial de ensino do país, em todas as séries do ensino básico, a
obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Em 2008 a lei foi
modificada, surgindo uma nova Lei, a 11.645/08, que assegura, além dos
conteúdos relativos a história da África e dos africanos no Brasil, o estudo da
temática indígena. Ambas alteram a lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional104.
O objetivo da Lei 10.639/03 é justamente corrigir a ausência de
conteúdos significativos sobre a história da África e dos africanos nas unidades
escolares oficiais e particulares, nos níveis de ensino fundamental e médio das
escolas brasileiras. Vale mencionar que foi somente com a promulgação da Lei
10.639/03 que se passou a estudar aspectos positivos da história e cultura
africana e surgiu a necessidade de implementar políticas públicas para ampliar
os conhecimentos dos docentes. No entanto devemos questionar até que ponto
a criação dessas leis e sua implementação nas escolas tem realmente o apoio
das políticas educacionais que regulamentam a educação no Brasil.

104
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB, normatiza a base comum na Educação Básica ou Ensino
Fundamental e Médio, que inclui crianças e jovens dos 6 aos 14 anos, matriculados nas redes pública e
particular de ensino.

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O presente artigo tem com o objetivo analisar as relações existentes


entre a escola e a lei 10.639/03, de que forma essa relação interessa à
indústria do livro e como ela é realimentada pelas ações do Estado. Para este
trabalho foram analisados os livros didáticos de História, adotados na rede
estadual de Santaluz, bem como autores que discutem as questões
relacionadas com o Ensino de História, estudos da cultura negra e do
continente africano.
No município de Santaluz, distante 261 km da capital baiana 105, os livros
didáticos representam 95% dos materiais para ensino e aprendizagem nas escolas da
rede estadual. Segundo Lins (1977), o “povo” recebe, através dos livros
didáticos, informações que não condizem com suas realidades, deixando de
106
conhecer as histórias e funções da ciência. Costa (2009) chama a atenção
dos pesquisadores para que não se detenham aos fatores explícitos, ou seja,
107
às ideias dos autores. É de fundamental importância o entendimento das
questões implícitas, parte dos silêncios destes autores. Em sendo o livro
didático um “espelho”, pode ser também uma “tela”, revelando-se de forma
significativa para entender as representações e ideias dos autores. Conforme
Perruci (1989), os livros didáticos trazem grandes confusões, notadamente
quando associam os africanos à condição de escravos. Os negros brasileiros,
em geral, são trazidos à tona sob formas negativas, e em alguns aspectos,
108
destituídas do protagonismo e da condição de sujeitos.
É de suma importância que os livros didáticos estejam em diálogo com
as Diretrizes, ou seja, que eles proporcionem através de suas situações de
ensino e aprendizagens que favoreçam a desconstrução dos mitos de

105
OLIVA, Anderson de Oliveira. Tese de Doutorado. Lições sobre a África: Diálogos entre as
representações Ocidental e o ensino da história da África no mundo atlântico, Programa de Pós-
Graduação em História. UNB, 2007; OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares.
Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n. 3, 2003, p. 421 –
461; CAMPOS, Paulo F. S. O Ensino, a História e a Lei 10.639. In: História e Ensino. Londrina: Editora UEL,
2004. Vol. 10. Sobre a lei 10639 em Alagoinhas, ver: ARAUJO, Edson Silva de. Entre o macro e o micro: a
lei 10.639/2003 entre o Brasil e Alagoinhas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) –
Universidade do Estado da Bahia, campus II - Alagoinhas, 2013.
106
LINS, Osmar. Do ideal e da Glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: summus, 1977.
107
COSTA, Warley da. Olhares sobre olhares: representações da escravidão negra nos livros didáticos.
Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso: 09 de novembro. 2009. P-5.
108
PERRUCI, Gadiel. O negro no Brasil: história e Ensino. In: JUREMA, A.C.L.A (Org). seminário do livro
Didático: descriminação em questão. Anais... Recife: Secretária de Educação, 1989.

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inferioridade e superioridade que legitimaram as relações étnico-raciais na


sociedade brasileira, que até hoje perdura.

Para Delizocaiv, os livros didáticos:

(...) atingiram os cursos de formação, consequentemente os


professores e sobretudo a produção de livros-texto comerciais. Estes
sim atingiram a sala de aula e se constituem cada vez mais no
instrumento básico de trabalho dos professores, sempre impregnados
com traços daquelas tendências. De alguma forma a contribuíram
também para a falta de discussão, numa perspectiva mais crítica, não
facilitando uma visão mais acabada do conhecimento cientifico e do
109
trabalho dos cientistas.

Implementação da lei 10.639/03

O continente africano só se tornou parte dos conteúdos dos livros


didáticos após a promulgação da lei 10639 110. Por mais que seja lamentável o
fato de que determinados temas estejam inseridos na escola por força de uma
lei, foi ela que garantiu e possibilitou que conteúdos alusivos ao continente
africano fossem inseridos nas matrizes curriculares, e desta forma, se
tornassem objeto nos livros didáticos. Apesar de já existir há mais de doze
anos, os artigos inseridos à Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional,
propostos pela Lei 10.639/034 ainda não foram totalmente assimilados.
Algumas dificuldades ainda são sentidas.
De acordo com Roger Chartier (1990, p. 17), as práticas sociais são
produzidas por representações pelas quais os sujeitos e os grupos dão sentido
ao seu mundo. Assim, as representações são resultados da leitura que os
sujeitos fazem do mundo. O autor salienta que na formação das
representações sociais não existem discursos neutros, pois esses são

109
DELIZOICOV D. Metodologia do ensino de ciências. São Paulo: Cortez, 1992, p. 68.
110
Art 1° - A lei 9.394/1996 passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos 26-A e 79-B: “Art 26-A- nos
estabelecimento de ensino fundamental e médio, oficiais e particulores, tornan-se obrigatório o ensino
sobre Historia e Cultura Afro-Brasileira § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste
artigo incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à
História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de Educação Artística e Literatura e História do Brasil. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o
dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra.” Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data
de sua publicação. Brasília, 9 de janeiro de 2003.

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produzidos para legitimar e impor as vontades, as percepções sociais daqueles


que as divulgaram. De modo que a pretensão de analisar quais foram às
representações sobre a África construídas pelo discurso da lei 10639.

E notável o a visão eurocêntrica na lei em questão, concretamente a


situação não é simétrica. Isso ocorre em alguns pontos (incisos), entendendo-
se que os negros e negras se constituem em descendentes naturais do
continente africano; a história do continente africano e a história da “cultura
afro-brasileira”; negro como sinônimo de África. Não se pode negar os
aspectos positivos da lei, graças a promulgação da lei 10639/03 que foi
implantado nas matrizes carrilares o ensino da História da África.

O “desconhecimento e o silêncio” sobre os países africanos


não é algo sem interesses, e sim, que ajuda a abarcar o conjunto
ideológico que construiu um estereotipo em relação a África e os
africanos, desenvolvendo o “afro-pessimismo” 111.

Segundo Serrano 2007, o afro-pessimismo é uma estratégia que


consolidam as políticas que tem perpetuado a estagnação em vastas partes do
continente. E no que tange a imagem reproduzida e que os meio de
comunicação (TV, revistas, jornais, etc.) remete sobre a “África” são
reportagens dantescas referente a fome, AIDS, guerras, “etnocídios”, atraso,
calamidades naturais, doenças endêmicas etc.

Livros didáticos: abordagens preliminares

De acordo com a proposta da lei 10.639/2003 que trata da


obrigatoriedade em trabalhar a história dos africanos e a História dos escravos
no Brasil. Faz-se necessário, algumas indagações a respeito de como a escola
e os livros didáticos têm sido pensadas nos últimos anos, quais as mudanças

111
SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória D´África. A temática africana em sala de
aula. São Paulo, Cortez, 2007, PP. 32-35; 281-283.

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que o currículo tem sofrido. Como a formação docente tem colocada em


prática, quais avaliações têm sido feitas para reconhecer alguns avanços,
como a sala de aula tem sido pensada e se a educação brasileira continua
sendo etnocêntrica. Portanto, a sala de aula é um espaço de construção de
identidades.

Segundo Silva (1996, p. 11)

O livro didático é uma tradição tão forte dentro da educação brasileira


que o seu acolhimento independe da vontade e da decisão dos
professores, sustenta essa tradição o olhar saudosista dos pais, a
organização escolar como um todo, o marketing das editoras e o
próprio imaginário que orienta as decisões pedagógicas do educador.

No entanto, os livros didáticos são um dos principais suportes


pedagógicos utilizados nas escolas brasileiras e para muitas crianças e adultos
assume status de verdade ou, parafraseando Marc Ferro, podem deixar
marcas para o resto da vida.

Apesar dos avanços conquistados, ainda encontramos em alguns livros


didáticos, o povo africano em condições isoladas, inferiorizada ou de
submissão, contribuindo para a construção de imagens distorcidas no
imaginário dos alunos. Com isso, conhecimentos e informações importantes
sobre a história do povo africano e de nossa própria história são ignorados,
desrespeitando-se assim as origens das populações negras e mestiças.

Desse modo, é necessário ler as linhas e, sobretudo, as entrelinhas da


estrutura do livro didático, numa tentativa mais apurada de se realizar a melhor
leitura possível, neste caso específico, das representações do continente
africano e dos seus povos no referido material de pesquisa. Estabelecendo um
paralelo entre as representações dos africanos e dos negros brasileiros, esta
pesquisa deverá também se subsidiar nas contribuições da História Cultural,
uma vez que ela viabiliza a ampliação de metodologias:

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A questão do negro no Brasil e, mais especificamente, como ela


aparece nos livros didáticos é, sem duvida, muito complexa e não se
esgota na consideração do trabalho escravo oi na mera existência do
preconceito de cor, embora seja quase certo que o preconceito tenha
112
sido produzido pela escravidão, através de séculos de historia.

O ensino de história, numa perspectiva historiográfica, é marcado, entre


outras questões, por leituras dotadas de representações estereotipadas, e em
alguns casos preconceituosas, a exemplo dos negros e negras do Brasil. Um
dos objetivos deste projeto, portanto, é o de identificar como as culturas dos
povos do continente africano, bem como dos negros e negras do Brasil, vem
sendo retratada nos livros didáticos de história do ensino médio da rede pública
estadual de ensino.

CONSIDERAÇÕES

A Lei 10639/2003 “obriga” a inclusão de conteúdos da história e da


cultura da África e afro-brasileiro nas disciplinas de História, Língua portuguesa
e de Artes na escola. Com a promulgação tem aparecido um numero
significativo de produções didáticas voltadas para o Plano Nacional de
Implementação da referida Lei. A produção deste artigo é um analise do reflexo
da ausência de material especifico, de professores comprometidos. Mas do que
isso, o silencio dos intelectuais sobre o continente africano e da forma
preconceituosa como é tratado o “negro”.

Apesar de mais de doze anos de implementação, a Lei 10.639/03 ainda


não foi plenamente incluída nos Currículos e Projetos Políticos Pedagógicos
das escolas, pois muitas ainda a ignoram, por desconhecimento, falta de

112
PERRUCI, Gadiel. O negro no Brasil: história e Ensino. In: JUREMA, A.C.L.A (Org). Seminário do livro
Didático: descriminação em questão. Anais... Recife: Secretária de Educação, 1989.

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interesse ou por achar que não se faz necessário tal abordagem. Há também
ausência de cursos de formação continuada para professores e uma revisão
nos currículos de algumas licenciaturas, especialmente os cursos de História,

que deveriam incluir nas suas grades curriculares disciplinas que abordem a
história da África e dos africanos no Brasil.

É necessário ressaltar que a sociedade brasileira traz consigo, de forma


muitas vezes velada, os anacronismos maléficos do racismo, que tem
provocado disparidades sociais nos quais os indicadores sociais de níveis mais
baixos têm sido legados aos negros, quando comparados aos brancos.
Também é preciso reconhecer que o modelo econômico e social existente tem
sido injusto com as populações menos favorecidas economicamente, e que
entre esses excluídos da vida social encontra-se grande parte de descendentes
de africanos que desembarcaram aqui como escravizados.

No que diz respeito aos “docentes, os livros didáticos e á mídia”, tem-se


a percepção de que eles utilizam de forma imprópria, a partir do momento em
que, ao invés de informar o cidadão, utilizam do poder para desinformar,
manipular e prejudicar.

Uma escola com profissionais bem (in)formados sobre o continente


africano e diversidade cultural pode ser mais democrático e justo e o mais
importante “romper” como discurso hegemônico. A proposta de educação
étnico-racial estabelecida pela Lei Federal 10.639/03, busca apresentar e
investigar uma história que não foi contada, e quando estudada, foi vista de
forma distorcida. É necessário reconhecer o verdadeiro valor do povo africano
que aqui viveu ajudando a construir essa nação.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Brasília: MEC/SEPRIR, 2004.

600
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FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de
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HALL, Stuart. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo
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LIMA, Ivaldo Marciano de França. Todos os negros são africanos? O Pan-


Africanismo e suas ressonâncias no Brasil contemporâneo, n. 01, 2011.

OLIVEIRA, Itamar Freitas. de Livro didático de História: definições,


representações e prescrições de uso. In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de;
OLIVEIRA, Almir Félix Batista de. Livros didáticos de História: escolhas e
utilizações. Natal: EDUFRN, 2009, p. 11-19.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 4 ed. São Paulo, Cortez, 1999.
SALLES, André Mendes. Ensino de História, um campo de pesquisa: reflexões
sobre os livros didáticos. Cadernos do Aplicação, Porto Alegre, v. 23, n. 1,
2010, pp. 13-33.
SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória D´África. A temática
africana em sala de aula. São Paulo, Cortez, 2007, p. 32-35; 281-283.
SILVA, Marcos. Desavir-se, reaver-se. História e Ensino de História: interfaces
ou intrafaces? Textos de História, Brasília, vol. 15, no 1/2, 2007, p. 275 – 288.

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GRUPO DE TRABALHO: MÚLTIPLOS OLHARES DO CONTEMPORÂNEO:


FRICÇÕES ENTRE LITERATURA E OUTRAS ARTES

PROPOSITORES: NERIVALDO ALVES ARAÚJO (UNEB), ANDRÉA BETÂNIA


DA SILVA (UNEB), JOÃO EVANGELISTA DO NASCIMENTO NETO (UNEB)

Ementa:

Abrange discussões sobre literatura contemporânea, inclusive as

manifestações de cunho oral e popular, a partir de suas fricções com as demais

artes, tais como o cinema, o teatro, a música e a dança.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A REPRESENTAÇÃO DO ANTI-HERÓI NO LIVRO E FILME HOMÔNIMOS


“TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA”

MARCELA FERREIRA LOPES (UNEB) 113

Resumo: Este trabalho contém um estudo comparativo entre o texto teatral


“Toda nudez será castigada", de Nelson Rodrigues e o filme homônimo de
Arnaldo Jabor com a intenção de analisar como a figura do anti-herói é
trabalhada em ambas as produções. Para tanto, parte-se da idéia de que livro e
filme dialogam não na relação binária original versus cópia, mas numa
perspectiva de complementaridade e expansão dessa caracterização do anti-
herói que o filme proporciona a partir dos pontos de contato e distanciamento
que mantém com o livro. A escolha por fazer a análise sobre a adaptação da
peça em filme a partir de um personagem específico se dá em virtude deste
personagem ser, à primeira vista, trabalhado de modos distintos nessas
produções. Entre o referencial teórico dispensado a essa análise, incluem-se
Terry Eagleton e Linda Hutcheon.

Palavras-chave: Adaptação. Anti-herói. Cinema. Literatura.

Introdução

O exame de qualquer adaptação cinematográfica costuma buscar


referências na obra da qual a história se origina. A fórmula mais comum é
estabelecer distinções entre original e cópia, principalmente quando se trata de
livro (original) e filme (cópia). A ideia é submeter ambas as produções a uma
investigação minuciosa que comprove a autenticidade do original, como se se
tratasse de caso de plágio. Isso porque a literatura é tratada como uma
entidade autônoma dotada de uma superioridade inalcançável que a coloca
acima de qualquer filme adaptado. Tal abordagem é limitadora, na medida em
que induz o analista a referendar uma verdade instituída, previsível, que ignora
a relevância dos processos criativos inerentes a toda obra, ainda mais quando
se trata de releituras.
Há outros caminhos possíveis. No campo literário, o estudioso Terry
Eagleton (2006) é um dos que questionam a literatura por dentro de seus
termos. A respeito do valor literário, por exemplo, uma categoria comumente
acionada para provar que um texto é literatura e, portanto, se destaca entre
outros, o autor mostra que tudo não passa de mera convenção. Para ele,

113 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural UNEB. E-mail. mfl.marcela@gmail.com


/

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Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si,
a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso.
“Valor” é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado
como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo
com critérios específicos e à luz de determinados objetivos
(EAGLETON, 2006, p. 17).

No campo da teoria da adaptação, Linda Hutcheon (2013) mostra que


uma adaptação não será vista como uma obra de menor prestígio se for
instituído outros parâmetros de análise, excetuando-se os empregados para
definir a originalidade do texto literário. Para a autora, uma história pode ser
adaptada com diferentes propósitos:
É claro que há uma ampla gama de razões pelas quais os
adaptadores podem escolher uma história em particular para então
transcodificá-la para uma mídia ou um gênero específico. [...] o
propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e
artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar os valores
estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de
prestar homenagem. [...] Qualquer que seja o motivo, a adaptação, do
ponto de vista do adaptador, é um ato de apropriação ou
recuperação, e isso sempre envolve um processo de interpretação e
criação de algo novo (HUTCHEON, 2013, pp. 44, 45).

É pensando nos modos de produção inerentes a uma adaptação, que o


filme e livro homônimos “Toda nudez será castigada” serão analisados neste
artigo. Ambas as produções serão tratadas como obras distintas que dialogam
entre si não na relação binária original versus cópia, mas numa perspectiva de
complementaridade e expansão das características do anti-herói que o filme
proporciona a partir dos pontos de contato e distanciamento que mantém com
o livro. Em linhas gerais, “Toda nudez será castigada” conta a história de
Herculano, um pai de família que, depois de ficar viúvo, resolve casar-se
novamente, mesmo contra a vontade de seu filho Serginho. Insatisfeito com a
decisão de Herculano, o garoto decide vingar-se do pai. Observando Hutcheon
(2013, p. 43) quando afirma que “os adaptadores são primeiramente
intérpretes, depois criadores”, pretende-se mostrar alguns detalhes de como
Arnaldo Jabor mobiliza essa história no filme.

A adaptação

Alguns aspectos passíveis de comparação entre obras adaptadas


podem ser encontrados em Robert Stam (2006) que os elencou no chamado
Modelo prático/analítico de análise de adaptações. O autor destaca que é

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possível fazer esse tipo de análise observando aspectos formais, como os de


ordem, duração e frequência; e de conteúdos, observando aspectos como
temporal, censura, ideologia e discursos, ambientação da história.
A análise do filme mostra que Arnaldo Jabor mexe em pelo menos três
aspectos estruturais da história: a) reorganiza os cenários; b) elimina
personagens secundários; c) reveste o anti-herói de onipresença. Enquanto no
livro, a mãe de Serginho, já falecida, é rememorada apenas nos discursos e
comportamentos das personagens. No filme, Jabor a materializa por meio da
exibição da lápide onde está enterrada, com uma fotografia dela à vista. Isso
reforça tanto a necessidade da família em manter viva a memória da mulher,
como é um indício de que há muitas questões familiares não resolvidas. Outro
cenário que sofre mudanças é o local de trabalho de Geni, futura esposa de
Herculano. No filme, além de ser garota de programa, ela também canta na
boate. Dessa forma, Patrício, irmão de Herculano, tem mais argumentos para
convencer o irmão a contratar os serviços de Geni. Jabor optou por mostar
Geni gravando o áudio em que revela a Herculano todos os fatos excusos da
família e o modo e local onde ela morre. No livro, o leitor apenas sabe que ela
está morta através da gravação. Entre os personagens excluídos estão o padre
(embora a igreja permaneça) e o médico com quem Herculano costuma buscar
conselhos na área para vencer a resistência do filho e demais parentes.
O filme segue a ordem básica da história de Nelson Rodrigues, os
personagens têm os mesmos nomes e personalidades e a história não sofreu
alterações expressivas. Alguns aficionados pela história escrita pode sentir falta
de um ou outro texto, como a frase final de Patrício que evidencia a intenção
dele de levar até as últimas consequências o plano de destruir o irmão: “Hei de
ver Herculano morrer! Hei de ver Herculano morto! Com algodão nas narinas e
morto!”

O anti-herói Patrício

A rivalidade entre pessoas próximas é uma forma de conduzir as


narrativas ficcionais, principalmente quando se tem um fim trágico. Dessa
forma, as personagens são postas em lugares antagônicos para instaurar a
dicotomia bom e mal. O anti-herói tem a função de atiçar as demais

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personagens, obrigando-as a saírem do seu curso habitual e introduzindo


outras possibilidades. No caso de “Toda nudez será castigada” pode-se dizer
que todos os personagens são, em agluma medida, vilões uns dos outros, uma
vez que cada um age segundo seus próprios interesses, independente de
como o outro será afetado por isso. No entanto, Patrício é o anti-herói mais
acentuado, pois é ele quem conduz a ação dos demais. Ele tem consciência de
que pode mudar o curso da vida de cada um à sua volta e usa todos os
recursos disponíveis para fazê-lo. A vantagem de Patrício sobre os demais está
justamente na forma como ele observa os fatos.
PATRÍCIO (exaltando-se) – Eu sou o cínico da família. E os cínicos
enxergam o óbvio. (p. 16)
PATRÍCIO (berrando) – Herculano! O ser humano é louco! E ninguém
enxerga isso, porque só os profetas enxergam o óbvio! (p. 53)

Ele utiliza da licença dos loucos e profetas para agir. O louco pela não
aderência às convenções e o profeta, por ser visionário. Dessa forma,
prevendo que a família poderá ter um fim trágico em virtude da forma como se
organiza, ele tira vantagem da situação em seu próprio benefício: faz
Herculano beber para procurar Geni no bordel, induz Geni a se apaixonar por
Herculano, excerce total controle sobre o sobrinho, como fica evidente na
conversa que tem com Geni quando ela se recusa a fazer o que ele quer:
PATRÍCIO – Geni, você vai me dar o retrato, aquele, o célebre, de
você nua.
GENI – Não te dou retrato nenhum!
PATRÍCIO – Então, não te levo ao Serginho. Ele só faz o que eu
quero. O garoto está maluco. Mas é uma loucura que aderna para um
lado ou para outro, segundo minha vontade. (p. 84)

O início de ambas as versões é bastante similar. Neles, Patrício aparece


agindo pessoalmente para que as demais personagens façam a sua vontade. A
diferença está no modo como a história é desenvolvida a partir do momento em
que Herculano decide manter um relacionamento amoroso com Geni. Na peça,
Patrício manipula diretamente todas as ações do incío ao fim da trama. Sua
participação é bastante incisiva e o leitor pode notar que ele é de fato o
antaganista da história, na medida em que determina até mesmo o que cada
um deve falar e em que situação, a exemplo da conversa que tem com Geni
ensinando-a a conquistar Herculano de vez:
PATRÍCIO – Sei, sei. (mais vivamente) Por isso mesmo. Você tem
que se valorizar. Senão o cara te chuta. Será que você não percebe?

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GENI – Agora eu descobri que tenho nojo de você. Nojo! E vê se não


me dá mais palpite!
PATRÍCIO (gritando) – Você diz. Diz. (muda de tom) Só toca em mim
casando! Só casando. Diz isso à besta do Herculano. (põe-se a
chorar) Só casando! (p. 36)

No filme, a vontade de Patrício está disseminada nas ações dos demais


personagens, como se cada um agisse por conta própria. Depois das cenas
iniciais nas quais ele promove o encontro entre Geni e Herculano, sua
presença torna-se desnecessária e ele sequer tem uma conversa direta com
Serginho. Mesmo assim, o espectador também sabe que ele continua
conduzindo a história quando, por exemplo, ele envia a Serginho uma cópia da
fotografia de Geni.
É nesse sentido que Jabor reinventa o personagem, mostrando outra
forma de ser antagonista. No filme, Patrício assume uma versão mais sutil. Por
ser semelhante a um profeta, ele não precisa agir diretamente em todos os
momentos, basta apenas estimular o desejo certo no outro para que os fatos
transcorram naturalmente conforme planejado. A onipresença de Patrício se
traduz na capacidade que ele tem de controlar os demais, mesmo não lidando
diretamente com todos nos momentos-chave da narrativa, como acontece no
texto escrito. Sem que isso se caracterize como uma perda, ao invés de
concentrar os acontecimentos em torno das vontades de um personagem, os
fatos passam a ser determinantes per si. Com isso, a narrativa ganha uma
dinâmica diferente, na medida em que as ações têm vários pontos de partida e
não dependem mais de um único personagem para acontecerem.
É dessa forma que, após ver a fotografia de Geni, Serginho passa a
arquitetar sozinho o plano de vingar-se do pai. É ele quem tem a ideia de
aceitar o casamento de Herculano com Geni e tornar-se amante dela
posteriormente, enquanto na peça, essa ideia é de Patrício. Dessa forma,
permanece a cena idealizada por ele, na qual a família está reunida para uma
refeição comum e Serginho deve afrontar o pai na frente de todos, revelando a
traição, embora nada, de fato, aconteça. Diferente da versão teatral, Geni
descobre por conta própria que Serginho viajou com o ladrão boliviano, assim
como Herculano enfrenta a rejeição do filho sem a suposta ajuda de Patrício.
Robert Stam vê com naturalidade as alterações ocorridas entre textos
adaptados para o cinema. Argumenta o autor,

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Uma adaptação é automaticamente diferente e original devido à


mudança do meio de comunicação. A passagem de um meio
unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado
como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e
faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens
fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma
Fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de
indesejável. (STAM, 2008, p. 20)

É mais proveitoso analisar um filme adaptado observando o que ele tem


de original enquanto produto em si e não enquanto cópia, uma vez que a
obrigatoriedade de ser fiel ao texto que o precede inviabilizaria as adaptações,
fato que comprometeria inclusive a consolidação de inúmeros textos.
A originalidade de Jabor está na interpretação que faz da história de
Nelson Rodrigues e na autonomia empregada para mobilizar o enredo de modo
criativo ao invés de seguir estritamente sua fonte. Dessa forma, o filme aquire
uma identidade própria, com estruturas formais e de conteúdos pertinentes à
linguagem cinematográfica e não à literária como o rigor à fidelidade faz supor.

Considerações finais

Não é demasiado afirmar que as personagens são a alma das


narrativas. São elas que dão vida às histórias contadas e, no caso da história
apresentada em “Toda nudez será castigada”, a vitalidade é revelada de
variadas formas. No texto teatral, o anti-herói Patrício executa diretamente os
principais acontecimentos, conduzindo toda a família para o desfecho trágico
anunciado desde o início da trama. No filme, a história continua acontecendo à
sua mercê, mas, sabendo que as pessoas podem ser induzidas a
determinados comportamentos sem necessidade de condução direta, ele
adquire uma importância secundária e, na maioria das vezes, apenas observa
os fatos. Com isso, Patrício não apenas consegue êxito em seus planos, como
também transforma os demais em co-responsáveis pelos fatos, uma vez que
cada um parece agir por conta própria.
Do ponto de vista da adaptação, a comparação tradicional original
versus cópia não dá conta dos vários aspectos envolvidos no processo, a
exemplo dos relacionados à forma e ao conteúdo, elencados por Stam. Além
disso, é necessário considerar também que qualquer texto é adaptado a partir
da interpretação e da criação de algo novo pelo adaptador, ou seja, mesmo

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sendo baseado em algo já existente, o filme precisa ser visto como uma obra
distinta e independente da anterior.
No caso do filme, as alterações mais expressivas promovidas por
Arnaldo Jabor estão relacionadas aos cenários, à eliminação de personagens
e, principalmente, ao modo como Patrício manipula os personagens e conduz o
desfecho da narrativa.

REFERÊNCIAS

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Valtensir


Dutra. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2 ed.


Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.

RODRIGUES, Nelson. Toda nudez será castigada: obsessão em três atos. 3


ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

STAM, Robert. “Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à


intertextualidade”. In: Ilha do desterro. Florianópolis, n. 51. p. 19-53, jul./dez.
2006.

____________ A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da


adaptação. Trad. Marie-Anne Kremer. Glaucia Renate Gonçalves. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008.

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EuNO RITMO DA PISADINHA, ENTRE GIROS E UMBIGADAS: POÉTICA


DO CORPO E PERFORMANCE NO SAMBA DE RODA DAS MARGENS DO
VELHO CHICO

NERIVALDO ALVES ARAÚJO (UNEB)

Dentro de todo um universo performático, o corpo assume um lugar de


destaque na poética oral ribeirinha. As cantigas do samba de roda se
completam da performance corporal para retratar as identidades, manter vivas
as tradições do povo das margens do Velho Chico. Este corpo passa a se
constituir, juntamente com as cantigas e suas letras, como um lugar de
memória, de preservação das tradições, de avivamento de emoções. Através
de seus movimentos, de suas danças, este corpo passa então, a atuar como
um ativador da memória, podendo ser tido como um espaço motivador de uma
memória, que, muitas vezes, pelas circunstâncias, é esquecida.

A memória, conforme aponta Bergson (1999), não consiste, em


absoluto, num retorno do presente ao passado, mas, sim, numa forma de
progredir do passado ao presente. Este passado configura-se como ponto de
partida de um “estado virtual”. Ainda para o referido autor, isto se dá através de
uma série de planos de consciência diferentes, até o momento em que esta
virtualidade dá lugar a um estado presente e atuante, num plano extremo de
consciência em que se desenha o nosso corpo.

Sendo assim, no grupo de samba É na pisada ê, o corpo registra, no


presente, uma memória reescrita em gestos, giros e pisadas, cujas emoções
são as gestoras deste translado do passado virtual ao presente atuante, pois o
tempo é outro, a realidade é outra, e as intenções também podem não ser
exatamente as mesmas.

A memória desenhada pelo corpo – que samba, requebra, gira e se


realiza dentro de um cenário contextualizado – permite, através da repetição, a
perpetuação das tradições, as quais jamais serão cópia exata do que se
guarda na memória, mas um conjunto de lembranças que se reinventam e se
reconstroem no presente, em meio a intenções e ideologias.

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As sambadeiras e sambadores trazem, no corpo, a memória de um


passado que, em suas performances, presentificam-no como parte de uma
ancestralidade coletiva. A umbigada, por exemplo, é uma presentificação desta
memória que permanece nas rodas de hoje, adequando-se à realidade, ao
contexto, embora venha de uma tradição antiga, de povos ancestrais, neste
caso, de afrodescendentes.

Na cantiga em que se representa a dança da piranha, brinca-se com a


imitação de uma piranha agitada e sua maneira voraz e eufórica de atacar a
presa, de devorar o alimento. A brincadeira é, portanto, encerrada com a
umbigada para convidar a outra sambadeira ao centro, como tradicionalmente
era feito, desde o surgimento da dança na região. Na referida cantiga, percebe-
se a presença da umbigada como marca da memória corporal:

Dançou, dançou, piranha


Tornou dançar, piranha
Com a mão na cabeça, piranha
Com a mão na cintura, piranha
Dá um jeitinho no corpo, piranha
E uma umbigada na outra, piranha

Os próprios giros em torno do corpo, a “pisadinha” e a formação em


rodas também são marcas de uma tradição do passado que se concretiza no
samba de roda nos dias atuais. A própria composição literária é um espaço de
memória que dá vazão às emoções, pois os temas, muitas vezes, retratam
fatos do passado, lembranças que permanecem vivas em um presente festivo
e alegre.

Todo o corpo, em sua mais singular expressão, carrega, em si, durante


as apresentações das rodas de samba, a memória de ancestrais, servindo,
nesses momentos, como um instrumento, por meio do qual, esboça-se o
retrato das identidades de sua gente. As palmas, em ritmos sincopados,
marcados, permanecem também na memória deste corpo. A própria voz e a
sonoridade, ao entoar as cantigas, são aspectos que também ajudam a
construir a poética do corpo no samba de roda. É o corpo, através da sua
memória, que produz a voz, a melodia, a poesia e o seu modo de expressão.

Através dos seus movimentos nas danças, o corpo passa a ativar a

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memória do sambador, agindo como um motivador das lembranças que


emergem destas águas poéticas na região de Xique-Xique, fazendo que
venham à baila outros passos, outras performances, outras representações da
tradição. Esta memória representa a própria vida, pois, conforme Nora (1981),
memória é vida carregada por grupos vivos, mantendo-se sempre em
evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de
suas deformações, vulneráveis a usos e manipulações.

As marcas da ancestralidade permanecem no corpo através da sua


memória. Logo, este corpo, que samba nas margens do Velho Chico, permite
reviver um passado, muitas vezes, marcado pela discriminação e pelo
desmerecimento. Por trazer, em sua constituição etnicorracial, a origem
africana, os povos ribeirinhos da região de Xique-Xique, cuja colonização se
deu com a presença de africanos escravizados, não deixam de apresentar uma
memória corporal de um tempo de humilhação e sofrimento. Todavia, o corpo
afrodescendente apresenta uma trajetória que parte da dor e da
subalternização para adotar práticas de resistência, de superação. A memória
destes corpos, então, reinventa tradições para vencer o preconceito, o
desmerecimento ainda presente na contemporaneidade como consequência de
uma ideologia do branqueamento, implantada por um processo de colonização
mental pelo branco europeu.

A ginga da capoeira, a pisada, o giro das rodas de samba e o ritmo das


suas palmas mantiveram-se na memória corporal como estratégia de
sobrevivência de uma cultura que vem sofrendo com as estratégias de
apagamento, através da manipulação da própria memória. Conforme destaca
Candau (2011, p. 167),

No Brasil, a manipulação da memória pelos brancos consiste em


manter a memória da escravidão, pois esta é concebida como um
meio de inferiorizar os negros, construindo uma identidade americana
ou euro-americana com lembrança “afro”.

Por meio de práticas culturais como o samba e outros gêneros da


poética oral, os integrantes das rodas do samba ribeirinho – em sua maioria,
afrodescendentes – navegam em águas turbulentas, contra esta corrente,
buscando inverter tal realidade. O corpo deixa esquecido, em sua memória, as

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marcas de um passado submisso e de perdas, passando a aflorar a alegria das


cantigas com suas danças, gingados e ritmos. O batuque do samba, a alegria,
a determinação fazem que a cultura das margens se fortaleça gradativamente,
dentro da pluralidade e da movência das memórias.

Dessa maneira, o corpo se move, dinamiza-se para fazer emergir uma


memória, considerada por Candau (2011) como uma escolha, uma adaptação.
Dorme, nesse momento, o corpo objeto, escravizado, oprimido, lúgubre.
Desperta, então, o corpo viril, rebelde, resistente, esperançoso.

O corpo, através de sua performance, entendida aqui como o


desempenho, a maneira de atuar, de realizar e de se comportar durante uma
apresentação, por meio de toda uma poética e política, conforme Lopes (2012),
acaba funcionando para o artista (neste caso, as sambadeiras e sambadores)
como um impulso catalisador, acompanhando o mapa de valores sociais,
estéticos e políticos na tecedura simbólica presente nas várias regiões do
Brasil, a exemplo da região de Xique-Xique.
Não se pode pensar em separar a poética da política, nem a política da
festa, pois, como forma de manifestação da cultura popular, as rodas de samba
e demais apresentações do grupo compõem-se de posicionamentos políticos.
São elas (as rodas de samba e demais apresentações) os próprios atos
políticos, devido ao fato de estar carregadas de intenções, posicionamentos
críticos que acabam agindo na própria conduta social do grupo, na
consolidação e no fortalecimento das próprias manifestações.
O corpo, atuando nestas manifestações, através das práticas
performáticas como danças, gestos e vozes, também se vale do
posicionamento político, numa espécie de política do corpo, pois, nesse âmbito
de representações, o corpo, conforme versa Merleau-Ponty (1999), não é
neutro, mas se encontra carregado de intenções, valores e significações que
ele deixa transparecer ou exprimir. O corpo passa a agir como uma extensão
do mundo, da memória e das tradições, já que, ainda consoante Merleau-Ponty
(1999), o corpo é no mundo, está integrado a ele.
Assim sendo, o corpo insere-se no espaço da poesia oral por meio da
performance, considerada por Zumthor (2005, p. 87), como “uma realização
poética plena: as palavras nela são tomadas num conjunto gestual, sonoro,

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circunstancial tão coerente (em princípio) que, mesmo se se distinguem mal


palavras e frases, esse conjunto como tal faz sentido”.
O canto e a dança se apossam do corpo, elemento indispensável na
configuração performática, para dar vida e sentido à própria poesia oral, já que
esta não poderia existir sem a presença da voz, do gesto, do ritmo, da
entonação e de demais elementos que compõem tal modalidade poética.
Contudo, esse corpo, dentro das manifestações poéticas, passa a ser visto não
apenas como um instrumento indispensável para a configuração destas
manifestações, mas vai além disso, pois o corpo é, nesses momentos, o
próprio texto, carregado de falas, de ideologias e intenções. Consoante
Zumthor (2005), o corpo leva ao nosso conhecimento (ao representá-lo, no
sentido cênico da palavra) o discurso no qual se sustenta a poesia.
A dança assume um lugar preponderante dentro da poética do samba de
roda em estudo, visto que, conforme Zumthor (2010), a dança, quando vem
acompanhada de canto, este chega a prolongar, sublinhar e esclarecer um
determinado movimento. Na dança da piranha, cuja cantiga já foi apresentada
anteriormente, o canto, sincronizado com os movimentos de mexer com o
corpo, colocando a mão na cabeça e na cintura, e dando a umbigada na outra
sambadeira, serve para prolongar, marcar e esclarecer os respectivos
movimentos, gestos e coreografias.
A dança é um detalhamento prazeroso das cantigas, é como se elas
fossem escritas, desenhadas pelo corpo, pelos gestos, pelas coreografias. A
dança traz para a poesia oral toda uma complementação do seu texto poético,
enriquece-o e o faz transcender da marginalidade relegada por águas elitistas e
eurocêntricas, para se tornar expressiva e, cada vez mais, parte fundamental
na composição da grande rede poética que compõe o cenário nacional.
Os versos cantados durante a dança da Sinhá Furrudunga não seriam
os mesmos, não teriam a mesma beleza nem expressividade se fossem
cantados, descontextualizados, fora da representação performática criada com
a utilização das malhas de tecidos coloridos, com seus movimentos circulares e
em espiral, às vezes por cima, às vezes por baixo, como são reforçados os
gestos, pelos próprios versos da cantiga:

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É por cima ou por baixo, Sinhá Furrudunga


É por cima ou por baixo, Sinhá Furrudunga

Toda a roda de samba e demais apresentações se constituem em


grandes momentos de alegria e divertimento, e, sobretudo, de cantar toda uma
história, com seus costumes, suas ideologias, crenças, dores, enfim, de
alimentar a manutenção das tradições. A dança, aliada ao canto, dá mais vez e
voz à poética oral deste samba de roda das margens do Velho Chico, pois

A dança, prazer puro, pulsão corporal sem outro pretexto que ela
própria é, também por isso mesmo, consciência. Tanto a dança de
um só, quanto a de casal ou a coletiva, todos os tipos de dança
aumentam a percepção calorosa de uma unanimidade possível. Um
contrato se renova, assinado pelo corpo, selado pela efígie de sua
forma, liberada por um instante. A dança expande, em sua plenitude,
qualidades comuns a todos os gestos humanos. Ela manifesta o que
se oculta alhures, revela o reprimido; faz desabrochar o erotismo
latente (ZUMTHOR, 2010, p. 226).

Como se pode notar, a poética do corpo se consolida em sintonia com a


dança, com os rituais, com toda a estrutura que se monta numa espécie de
apresentação teatral nas praças, nos salões comunitários, na porta de casa ou
em eventos culturais da cidade. Os passos, os gingados, as pisadas mantêm-
se da forma como manda a tradição, embora venham ocorrendo modificações
pela incorporação de novas formas de dançar, inclusive dos “jeitinhos do corpo
com a mão na cabeça e na cintura” e das “pisadinhas” das sambadeiras,
especialmente das mais jovens.
Nessa poética corporal, a performance atua como algo vivo, que se firma
na incompletude e no improviso. É algo que, como as águas do rio, está
sempre em movimento, tornando-se diferenciada e única a cada apresentação
das sambadeiras e sambadores, os quais buscam transmitir todo um
conhecimento presente na memória coletiva de uma comunidade poética.
Segundo Zumthor (2007), a performance e o conhecimento daquilo que
se propõe transmitir encontram-se ligados naquilo que a natureza da própria
performance afeta o que se conhece, pois, de qualquer maneira, o
conhecimento acaba sendo modificado pela performance com seus elementos
marcantes. “Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando,

615
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ela o marca” (ZUMTHOR, 2007, p. 32).


Através da performance, o corpo fala, grita, silencia-se, traz, em si, as
marcas, os valores, o retrato de uma ancestralidade que se pinta a cada dia,
em meio a uma nova realidade, construindo-se, assim, uma nova tradição, uma
tradição “(re)inventada”. Este corpo que canta e dança adequa-se à sua
realidade, à cultura da qual faz parte e em seu discurso, traz, de modo
subjetivo, a sua história, ideologias e valores. Zumthor (2005, p. 145), a
respeito da voz e do corpo na poesia, também destaca que:

O efeito poético é tanto mais forte quanto melhor soa a voz: nos
interstícios da linguagem imiscui-se, pela operação vocal, o desejo de
se desvencilhar dos laços da língua natural, de se evadir diante de
uma plenitude que não será mais do que pura presença. Os impulsos
deste desejo são amplificados pelo próprio funcionamento da voz na
escuta coletiva: não isolada, não separada da ação, a voz poética é
funcionalizada como um jogo, na mesma ordem dos jogos do corpo,
dos quais ela participa realmente.

Nessas rodas de samba, há um envolvimento coletivo, uma sintonia


instantânea de todos entre si e com a música, o ritmo e a letra. Neste momento
de sintonia, tudo se harmoniza e flui de forma cadenciada, cujas pisadas
firmes, os giros, as umbigadas compõem todo o quadro performático.
Harmonicamente, estes corpos passam a comungar de um discurso coletivo,
mas que só vem a se consolidar nas práticas performáticas individuais de cada
um destes integrantes, fortalecendo, com suas vozes cantadas, o efeito de toda
a sua esplendorosa poética, pois “a performance comporta um efeito profundo
na economia afetiva e, pode ocasionar grandes perturbações emotivas no
ouvinte, envolvido nesta luta travada pela voz com o universo do entorno
(ZUMTHOR, 2005, p. 93). E nesses giros, pisadas e cantos, sambadeiras e
sambadores, inquietam, emocionam e conduzem seus interlocutores pelo
universo ideológico de sua poesia.
Em geral, as cantigas seguem um curso sequenciado, gerando, a cada
nova letra, uma reação de alegria e animação dos participantes. Todos
demonstram felicidade e envolvimento com a dança. Uma felicidade coletiva se
espalha pela roda. Mesmo suados e adentrando a madrugada, o cansaço
parece não chegar.
Segundo Zumthor (2007), essas cantigas do samba de roda, atos de

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comunicação poética, requerem a presença corporal de intérprete (o sambador


ao centro da roda) e de ouvintes (demais participantes). Ainda conforme o
referido autor, neste momento de comunicação, vozes, ouvidos e corpos se
unem em meio a um contexto situacional do qual todos os elementos visuais,
auditivos e táteis se lançam à percepção sensorial, em uma espécie de
representação teatral.
Nesse sentido, faz-se necessário considerar que, conforme versa Nogueira
(2012, p. 54), “a palavra poética convoca a totalidade dos indivíduos presentes
durante a performance, resultando em ação colectiva. O saber transmite-se de
forma viva e, por intermédio do dizer poético, as estruturas da sociedade saem
reforçadas”. Através deste “dizer poético”, durante os atos performáticos, as
ideologias, os costumes, os valores são revelados, enfim o retrato social do
grupo é pintado.
A performance do samba de roda do grupo tem um caráter inclusivo,
pois mesmo não sendo integrante do grupo, qualquer visitante ou pessoa que
esteja nas rodas e apresentações pode adentrar ao centro e sambar
voluntariamente ou através de convite de umas das sambadeiras ou
sambadores. Dessa forma, no samba de roda, conforme registra o Dossiê do
Samba de Roda do Recôncavo Baiano (2006, p. 24), “todos os presentes,
mesmo os que ali estejam pela primeira vez, são, em princípio, instados a
participar, cantando as respostas orais, batendo palmas no ritmo e até mesmo
dançando no meio da roda caso a ocasião se apresente”.
A participação ocorre de forma espontânea ou pelo convite através da
umbigada, marca comum na história do samba, presente nas rodas do grupo. E
assim, neste momento, ao ritmo das palmas, do batuque e dos sons dos
objetos de percussão e demais instrumentos, todos compõem a roda e
demonstram ter o gingado na memória do corpo, uma vez que não se ensina a
sambar. Samba-se por si mesmo, pela memória corporal, repassada através
das gerações
Quando se utiliza a expressão “memória do corpo”, não se tem a
intenção de se referir a uma memória genética, como se o modo de sambar
fosse repassado através de células ou genes, mas a uma memória que habita
nos espaços da cultura, fazendo que, mesmo sem se dar conta, cada

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integrante de uma referida comunidade internalize, memorize os passos, as


pisadas, a maneira de sambar.
Isso ocorre porque, em consonância com Porter (1992), as relações
mente/corpo não são inatas, mas dependem da cultura. E o corpo não pode ser
tratado simplesmente como biológico, deve, sim, ser considerado, conforme o
caso deste estudo, como mediado por sistemas de sinais culturais. É uma
memória cultural que habita o corpo por intermédio das práticas culturais,
sendo transmitida e perpetuada através dos próprios integrantes de geração a
geração.
Fala-se, portanto, de uma memória corporal como uma ligação à cultura,
como uma memória que se consolida pela vivência no grupo cultural. Sendo
assim, pode-se afirmar que a memória corporal é resultante das experiências e
do contato com a cultura e suas práticas, porque:

[...] corpo e memória constituem-se historicamente, sendo


indissociáveis entre povos de matrizes orais. Saberes, costumes,
tradições, produzidos e transmitidos em presença de corpos,
materializam-se em gêneros não-verbais de memórias, emitindo
vozes do corpo prolongadas em artefatos de suas culturas
(ANTONACCI, 2009, p. 104).

Em meio a todo este conjunto performático, os participantes do grupo É


na pisada ê acabam, portanto, praticando, nestas rodas de samba, uma
espécie de batuque, aqui representado, sob a ótica de Siqueira (2012, p. 44-
45), como:

[...] de significado onomatopaico-rítmico, de bater, batuque, batucada


– ação de “bater”, de percutir em tambores, caixas, fragmentos de
madeira, tamborins e até chapéus de palheta, como também de
executar passos “sapateados” na dança. Ao invés do batuque, cujo
significado se vê reduzido, o samba amplia-se e generaliza-se.

O batuque, então, assume uma significação abrangente de toda espécie


de dança, geralmente em círculo, marcada por ritmos e passos africanos que
chegaram ao Brasil, por meio dos negros escravizados e que assume,
conforme afirma Siqueira (2012), outros nomes, inclusive o de samba. Em
geral, a umbigada acompanha todas as apresentações.
Não se pode esquecer, ainda, das vestimentas, dos adornos e adereços
como elementos que contribuem para a composição desta poética corporal,

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constituindo-se, juntamente com o cenário e os instrumentos musicais, numa


espécie de complementação à performance da dança. São também parte
integrante de toda a performance poética, pois, segundo Zumthor (2010), o
gesto, a roupa, o cenário e a voz se projetam no lugar da performance, embora
os elementos que compõem cada um deles, como os movimentos corporais, as
formas, as cores, as tonalidades e as palavras da linguagem passam a compor,
juntos, um código simbólico do espaço.
Os trajes utilizados pelas sambadeiras são compostos de saias coloridas
e rodadas, colares e outros adornos, além de lenços amarrados no pescoço ou
na cintura, flores no cabelo, pulseiras e anéis. A maquiagem é, também,
indispensável para as mulheres, especialmente, o batom. Igualmente, o
perfume. Cores e aromas irmanam-se na composição da cena poética.
Em linhas gerais, os homens sambam na roda poucas vezes, embora
acompanhem o ritual cantando, tocando os instrumentos e batendo palmas.
Vestem-se de maneira comum, alguns de chapéus, uma marca da tradição
local. Assim sendo, como versa Zumthor (2010, p. 225):

Todas as culturas humanas parecem colaborar com algum vasto


teatro do corpo, de manifestações infinitamente variadas, com
técnicas tão diversificadas quanto nossos gestos cotidianos, em cuja
cena a poesia oral aparece, frequentemente, como uma das ações
que ali representam.

O corpo ocupa, portanto, um lugar de destaque nesta teatralidade que


se estabelece durante as apresentações do samba de roda. Às vezes, nestas
manifestações, mesmo que todo o corpo se mova e participe das rodas, há
sempre um de seus gestos que é mais carregado de significação que outros. É
o caso da umbigada ao final da apresentação de cada sambadeira na roda.
Há várias cantigas cujos gestos, performances e danças parecem ser
verbalizados pelo seu texto. É o caso ainda da cantiga da piranha, já
apresentada, cujo texto determina que a sambadeira ponha a mão na cabeça e
na cintura, faça um “jeitinho” no corpo e dê uma umbigada na outra.
Como ocorre nas composições do samba de roda, relações como estas
– entre o texto e o gesto, a dança, a performance – são discutidas por Zumthor
(2010, p. 228), quando afirma que:

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O texto das canções para dançar, determinado por sua função, se


parece com o gesto que ele verbaliza. Breve, curto, reduzido ao
apelo, à exclamação alusiva, à sentença, ou mais amplo, com largos
contornos estróficos, prestando-se às modulações emotivas e às
evocações míticas. A necessária recorrência regular de unidades
rítmicas – gestuais, vocais, instrumentais e, por consequência,
textuais – torna em contrapartida quase impossível a composição de
canções de dança explicitamente narrativas.

Essa forte relação entre corpo, performance e teatralidade irrompe nas


cantigas que representam a sua lida, como quando tecem as redes de pesca:

Ô linha, linhava ô
Eu também sei linhar, ô linhava
Ô linha, linhava ô
Eu também sei linhar, ô linhava

Enquanto cantam – “Ô linha, linhava ô” –, representam o gesto dos


carretéis de linha, como se estivessem tecendo as redes, seus instrumentos de
pesca. Cantam, dançam, ao passo que representam a sua labuta cotidiana na
tecedura das redes de pesca, feitas a partir de uma fibra extraída de algumas
espécies de cipós encontrados na região ou mesmo de um tipo de fios de
nylon.
Além dos passos tradicionais, das pisadas ao ritmo das palmas e do
som dos instrumentos tocados, em maioria, pelos homens do grupo, as
mulheres arriscam coreografias que vão de requebros e de rodadas com a mão
na cintura até a finalização de sua participação na roda com uma umbigada em
outra sambadeira, convidando-a para adentrar ao centro e dar continuidade à
“brincadeira”, como muitos chamam o samba.
Portanto, é possível concluir que no samba de roda das margens do
Velho Chico o corpo constitui-se como elemento indispensável para, através do
canto, da dança e de toda uma conjuntura performática, dar vida e sentido à
poesia oral.

REFERÊNCIAS

ANTONACCI, Maria Antonieta. Corpos negros em zonas de contato


interculturais. In: VELOSO, Monica Pimenta; ROUCHOU, Jöelle e OLIVEIRA,
Cláudia de (Orgs.). Corpo: identidades, memórias e subjetividades. Rio de
Janeiro: Mauad X, FAPERJ, 2009.

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BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o


espírito.São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Tradução Maria Lúcia Ferreira. São


Paulo: Contexto, 2011.
Dossiê do Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília: Ministério da
Cultura, IPHAN, 2006.

LOPES, Cássia. Gilberto Gil: a poética e a política do corpo. São Paulo:


Perspectiva, 2012.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos


Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
NOGUEIRA, Carlos. A poesia oral em baião. Universidade do Minho, Braga:
Edições Vercial, 2012.

NORA, Pierre. (1981), Entre Memória e História: a problemática dos lugares.


Tradução Yara Aun Khoury. IN: Projeto História. Revista de Estudos Pós-
Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo,
PUC.

PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da


história: novas perspectivas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.

SIQUEIRA, Magno Bissoli, Samba e identidade nacional: das origens à Era


Vargas. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. Tradução


Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira,


Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires


Ferreira e Suely Fenerich. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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TRADIÇÃO ENCRUZILHADA: ORALIDADE, CULTURA POPULAR E


CANDOMBLÉ

MAUREN PAVÃO PRZYBYLSKI (PÓS-CRÍTICA/ UNEB/ PNPD/ CAPES)114


LEANDRO ALVES DE ARAUJO (PÓS-CRÍTICA/UNEB/ FAPESB)115

Ivete Walty (2012) pontua que a narrativa fundacional, ou por


excelência o mito, traz em si marcas cosmogônicas e escatológicas e, ao ser
recontada e deslocada, integra uma outra história ou outras histórias, num
movimento rizomático infinito, configurando a história nômade. Por outro lado, e
não sem motivo, Paul Zumthor (1993) afirma que a “predominância das
comunicações vocais se restringe, então, aos meios pobres, zonas
marginalizadas, hoje ligadas à cultura popular”. Assim, e entendendo a
comprovada importância que a oralidade ocupa no candomblé, esta
comunicação pretende enfocar como a cultura popular, a partir das
manifestações das poéticas da oralidade, pode ser elemento de legitimação
dos saberes e fazeres religiosos.
Encruzilhada, segundo o dicionário Aurélio, é o cruzamento de ruas de
uma cidade. No entanto, no universo do candomblé, as palavras: encruzilhada,
encruza ou oritá 116, significam caminhos, encontros, desencontros, portal -
lugar de gestar forças (axé).
É preciso pontuar que existem oralidades e não apenas um tipo de
oralidade. Quando se diz: oralidade afro-brasileira, alguém pode estar se
referindo as inúmeras manifestações da cultura popular que, em alguma
medida, estabeleça entrelaces com a cultura afro-brasileira. Porém, ao
especificar: oralidade religiosa afro-brasileira, fica implícito que tal oralidade
está relacionada a toda uma diversidade de culto afro-brasileiro: Umbandas,
Tambor de Mina, Almas e Angolas e mesmo o famigerado Candomblé. Para
sermos mais precisos, ao analisarmos, por exemplo, a oralidade no
Candomblé, será preciso especificar – de antemão – qual o Candomblé que

114
Doutora em Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas (UFRGS) e Pós-doutoranda no
Mestrado em Crítica Cultural (UNEB).
115
Mestrando em Crítica Cultural (Pós-Crítica/UNEB).
116
Encruzilhada, na língua Yorùbá.

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estaríamos evidenciando. Seria um Candomblé de nação Ketu? Jeje (Mahin,


Pinho, Savalu, Mina)? Angola? Ou ainda, Candomblé Ketu de Salvador? - que
se difere em alguns aspectos do Candomblé Ketu do Recôncavo baiano que,
117
por sua vez, também se diferencia dos Candomblés de outros interiores da
Bahia.
A oralidade no candomblé é um rio caudaloso, cujo leito, negro, se
rizomatiza em vários braços que, por sua vez, amalgamam-se em versos,
malemolências, cores e fé. Retalhos vivos de tradições culturais ancestrais.
Marca indelével, pulsante e movente ao longo de incontáveis gerações,
a oralidade afro-brasileira atravessou um oceano de repressões, maus-tratos e
amordaçamentos, mas, como o xaréu 118, que se ergue além da dor – como
cantou Caetano Veloso 119 -, essa oralidade, acompanhada da sua performance
característica, não coube na escravidão e sobejou à voz que transbordou para
os cânticos, que embalou o corpo e cadenciou o toque, o ritmo, o som, até as
camadas mais profundas da derme - memórias da pele.
Deste modo, vejamos alguns aspectos da oralidade através das
possíveis encruzilhadas discursivas do universo da cultura popular no
candomblé.

Encruzilhada: oralidade e memória

“O candomblé é uma forma de o ser se encontrar com ele mesmo.


Não é de fora para dentro, nem de dentro para fora. O processo do
candomblé é de dentro, para dentro, para fora”.
Tata Mutá Imê

No momento em que ocorre a diáspora Afro-Brasileira, a oralidade,


como sabemos, assenta-se em uma colônia de exploração portuguesa, sob a

117
As discussões que permeiam este trabalho, estão ligadas – sem maiores especificações –
ao Candomblé da Bahia de nação Ketu.
118
Peixe de hábito migratório, presente na costa africana e na região Nordeste do Brasil.
Medindo cerca de 1 metro de comprimento, possui uma coloração que do prateado ao marrom-
escuro, tendo o primeiro espinho da nadadeira dorsal geralmente sob a pele.
119
Caetano Veloso, nos versos de sua canção (1985) “Milagre do Povo”, elaborou uma
metáfora entre o peixe xaréu e os africanos escravizados que vieram para o Brasil.
Características do xaréu - sua coloração (escura), localização e trajeto geográfico percorrido
(Oceano Atlântico) e o seu espinho sob a pele (a dor da escravidão, mas também a sua
resistência) - entrelaçam-se, poeticamente, não apenas com a história da escravidão dos
africanos, mas também com a oralidade religiosa africana e afro-brasileira. (Grifos meus).

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imposição de outras tradições culturais, inclusive a escrita. Os luso-europeus já


haviam iniciado a exploração do homem indígena, destituindo-o de sua língua
nativa e tradições que compunham sua cultura. Em igual natureza extintiva, o
tráfico transatlântico e o sistema de escravidão perpetrada pelos portugueses
aos africanos imprimiram, dentre outras coisas, uma cultura de alfabetização,
eurocêntrica, a fim de dominá-los e submetê-los com mais facilidade aos
ditames econômicos vigentes.
A base da tradição oral no candomblé é a transmissão de
conhecimentos “face a face”. Esta transmissão se dá devido à valorização das
questões sociais do grupo. Tudo o que a sociedade consegue canalizar por
meio da palavra, a fim de construir lógica e sentido, será refletido em suas
atitudes e ações. Deste modo, torna-se importante abordar os aspectos sociais
porquê são eles que refletem o estilo de vida das pessoas influenciando a
noção de tempo e espaço e, em seguida, os objetivos em escala social, natural
e sobrenatural. Forma-se, então, uma cadeia de conversações entre os
membros do grupo onde todas as crenças e valores são elencados formando
uma teia de assimilação e reprodução num processo contínuo (RIVAS NETO;
RIVAS; CARNEIRO, 2014).
A memória ganha um papel central neste sentido. Ela compreende a
relação entre símbolo e referente presente em toda a comunicação entre os
indivíduos não letrados. Os processos humanos são influenciados pelas
preferências conscientes e inconscientes das informações e pelo
esquecimento. Em cada geração, a memória cumpre o seu papel de registro e
compreensão do real, quando acessada através da herança cultural. Ela
adapta os conhecimentos ancestrais à nova realidade social na qual estão
inseridos. Tudo o que não for utilizado será esquecido, talvez utilizado, quando
surgirem situações que as evoquem.
A ‘Diáspora Africana’ ou ‘Diáspora Negra’, evidenciou a importância da
memória como um símbolo mantenedor de identidade. Os africanos
escravizados que aqui chegaram, interagiam entre si, rememorando os mitos
que compunham a base de sua cultura para reinstalar a sua organização social
e estrutural. Com os novos nascimentos houve a necessidade de contrair toda
a herança cultural para ser passada genealogicamente aos seus

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descendentes. Os mitos continham todo um “mapa social” necessário para este


reajuste. Traziam o retrato social de tempos passados e de continuidade já em
África. Aqui, em outra conjuntura social e territorial, esta necessidade se fazia
ainda mais premente.
A adaptação das tradições africanas em novo solo não significa uma
invenção das tradições como pode parecer. Os elementos bases e
orientadores da cultura africana continuam em vigência em outra conjuntura.
Hobsbawm (1994) em: A Invenção das Tradições, vai dizer:
Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas
ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer
continuidade com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM;
RANGER, 1994, p.10).

Como apontou Xavier (2004), as realidades distintas do Brasil,


adaptaram os conhecimentos ancestres (guardando as devidas proporções)
preservando, sem alterações, suas estruturas internas com um “jogo
permanente de simetrias profundas e assimetrias superficiais”. A memória
trazida com os primeiros africanos, somente possível por conta da oralidade
ancestral, mantiveram seus saberes no novo cenário instalado. Ao longo do
tempo, através das anciãs(os) – principalmente as sacerdotisas e sacerdotes
da “nova” religião: o candomblé -, a memória, trazida pelos mesmos,
modelaram - em suas dimensões cosmológicas, sociológicas e pedagógicas - e
reordenaram o universo civil das tradições africanas no ocidente.
O que ocorreu com a tradição oral afro-brasileira foi uma adaptação aos
novos padrões sociais e ideológicos, não uma reinvenção. Reis, rainhas,
princesas e súditos de uma estrutura organizacional milenar foram cooptados
desumanamente de sua terra natal e tiveram que se restabelecer como nação
em uma colônia. A imposição, também religiosa, aspecto que melhor
compreende esta elucubração, modificou (em certa medida) até mesmo o culto
aos seus ancestrais e divindades.

Encruzilhada: oralidade e sincretismo

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O candomblé, então, surgiu desta necessidade de manter viva a sua fé e


dinâmica religiosa. Quando lhes apresentaram o Deus cristão e os santos
católicos que deveriam ser devotados eles automaticamente identificavam a
natureza votiva de cada um deles assemelhado aos seus de origem e os
cultuava, surgindo assim, o sincretismo religioso. O famigerado sincretismo,
desse modo, não diminuiu a essência das tradições ancestrais trazidas de
Áfricas. O mesmo se configurou em um mecanismo “subversivo” encontrado
para perpetuar as suas tradições religiosas, empoderando, de algum modo, os
sujeitos/autores desta cultura. Como podemos ver na citação (Slide) de Pierre
Verger:
[...] Das pequenas casas construídas há muitos anos atrás saiam
mulheres negras, cobertas de branco, com saias de rodas, rendadas,
contas, colares e pulseiras, e uma altivez de “rainhas africanas”. O
quadro fez lembrar Pierre Fatumbi Verger, ao dizer que quando orixá
se manifesta numa dessas mulheres e vai embora, fica um rastro de
magnitude do axé da deidade. Faxineiras, cozinheiras, lavadeiras,
domésticas, tornam-se soberanas pelo poder de transformação do
axé. (FATUMBI, Pierre apud, Xavier, 2004, p.02).

Ao longo das “densas trevas do tempo”, o candomblé resistiu/resiste. É


bem verdade que não saiu ileso (e nem poderia) deste processo opressor. Mas
continua sendo a principal referência da memória ancestral (africana) do povo
negro brasileiro. Como podemos constatar através da fala da Ìyálòrìsà Mãe
Beata de Yemonjá:
Candomblé é o meu empoderamento. É a minha posse! É a minha
vida. É a fonte que eu bebo. A minha água em qualquer momento. É
a luz dos meus olhos. É o som que eu ouço. É o canto dos pássaros.
É o lamento das nossas crianças do morro, da periferia, dos
homossexuais. É a minha estrada. É a encruzilhada que eu nasci. É o
rio do recôncavo, Cachoeira do Paraguaçu. A fome que eu passei
criança. A boneca que eu não tive o direito de ter. O candomblé é pra
isso que me deu oportunidade de tudo isso. A minha cultura, a minha
vida. [...] Meu pai me tirou do colégio no 3° ano que, filha dele não
aprendia a ler pra não fazer bilhete pra mandar chamar homem pra
detrás da casa. E eu aprendi a ler com papel velho do lixo. Então
candomblé pra mim é isso, é a minha cultura, é o sangue do meu
povo. (YEMONJÁ, 2015).

Encruzilhada: oralidade e tempo

A noção de “tempo”, equalizador dos métodos de apreensão de


conhecimento, existe nas duas tradições culturais (africana e ocidental), porém,
se diferenciam quanto ao seu controle. Enquanto que a oral entende o tempo

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como cíclico, alíneo, sem concepção de passado, presente e futuro, seguindo o


tempo natural, a tradição ocidental parte sempre de um mesmo ponto
específico localizado no tempo, apesar das diferenciações de locais, línguas e
contextos.
Nesta mesma direção, a pesquisadora Cleidiana Ramos (2010),
descreve:

Quando se passa pelos portões do Terreiro de Mutá Lambô ye


Kaiongo, localizado no bairro de Cajazeiras XI, em Salvador, fica-se
com a sensação de que aconteceu um recorte no tempo cronológico.
Ali, as horas parecem não seguir o mesmo ritmo das que marcam a
rotina do mundo que fica do lado de fora. Além disso, os limites entre
o mágico e o real ficam, temporariamente, suspensos. (ALVES, 2010,
p. 47).

A ausência de um tempo cronológico, ocasionou a diferenciação nas


mais diferentes Casas de culto afro-brasileiro. Em cada espaço que ela se
localiza há uma interação imediata com meio social e suas particularidades;
auferindo a cada Terreiro - desde que as bases litúrgicas passadas através da
oralidade -, retornem sempre ao conhecimento passado geração após geração
por seus antepassados.

Encruzilhada: o poder da palavra

“A palavra corta, fere, modela, modula. A palavra perturba,


enlouquece, cura ou simplesmente mata. Ela eleva ou abaixa
segundo sua carga, ela excita ou acalma a alma”.
Provérbio Bantu.

Hampâtá Bâ (1982) concebe o poder da palavra como poder vital na


grande escola da vida.
A fala tem força pelo que põe em trânsito. Gera o movimento e o ritmo,
consequentemente, ação e vida. A palavra assume o poder criador, de certo
modo, também possui a função de fazer existir e de destruir. Por excelência, os
candomblés, tem a fala como agente ativo, uma magia Africana, onde a
transmissão desta fala obedece princípios e circunstâncias extremamente
específicas, como observou Xavier:

A transmissão oral do conhecimento é considerada na tradição iorubá


como o veículo do axé, o poder, a força das palavras, que permanece
sem efeito em um texto escrito. As palavras, para que possam agir,

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precisam ser pronunciadas. O conhecimento transmitido oralmente


tem o valor de uma iniciação pelo verbo atuante, uma iniciação que
não está no nível mental da compreensão, porém na dinâmica do
comportamento. É baseada mais em reflexos que no raciocínio,
reflexos estes induzidos por impulsos oriundos do fundamento
cultural da sociedade. (VERGER, Pierre, 1995 apud, XAVIER 2004,
p. 43).

Como condutora da palavra sagrada, os enunciados litúrgicos


preservaram com alto grau de fidelidade os traços “originais” africanos. A
memória coletiva foi mobilizada para readaptar cada conhecimento ancestral à
realidade americana. Mitos, histórias, cantos, rezas, poemas e fragmentos da
memória viva foram marcados pelo “barro da nova terra”. As pressões das
novas condições impostas – econômicas, políticas, sociais e culturais –
condicionaram, romperam, fragmentaram a linha de continuidade atada pelas
narrativas orais. “Os pedaços semânticos” perdidos foram recompostos com
novos fragmentos, mas foram preservadas as bases matriciais das
experiências africanas. Os pedaços de memória coletiva mantidos pela
oralidade foram a argamassa de ligação. (XAVIER, 2004, p. 43-44).
Ao entoar canções rituais e outras fórmulas de encantos, a fala
materializa-se através da cadência. A importância e o cuidado com a fala
revelam o motivo pelo qual a mentira seria símbolo de desaprovação moral
entre os Africanos. Não é simplesmente um defeito, mas uma interdição ao
ritual, uma violação que impossibilitaria o cumprimento de uma função. Para os
tradicionalistas, a fala utiliza do sagrado - o seu poder operador -, podendo
conservar ou romper com a harmonia do humano e do mundo ao seu redor.
Ivete Walty (2012, p. 25) pontua que a narrativa fundacional por
excelência, o mito, traz em si as marcas cosmogônicas e escatológicas e, ao
ser recontada e deslocada, integra uma outra história ou outras histórias, num
movimento rizomático infinito, configurando a história nômade. Seguindo ainda
a reflexão apresentada por Walty, a pesquisadora diz:

E não interessa que em todos os países do mundo haja histórias


orais, nem que as narrativas de um país estejam presentes em outra,
ou melhor, é isso o que interessa, já que o corpo fragmentário não
tem origem estabelecida, assim como as narrativas orais não têm
autores. A circulação dessas histórias entre nós são, paradoxalmente,
movimento de resistência e espaço de interseção, como nossos
espaços que se assumem híbridos e plurais. Ao reclamar a terceira
margem, o lugar das relações, o espaço latino-americano se
reivindicaria oral, no sentido em que não se quer fixo, não se quer

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uno, sabe-se simulacro, sabe-se fragmentário. Nesse sentido, tanto a


ficção latino-americana como sua crítica podem ser lidas como
espaço de oralidade enquanto espaço de troca, de interação, de
encontro de fragmentos deslocados e deslocadores. (WALTY, 2012
p.35).

Destarte, percebe-se que a oralidade do Candomblé se constitui de


encruzilhadas ancestrais que, conforme vimos, não se extingue; antes, se
mantém viva, dinâmica e entrelaçada no interior de cada Casa/Terreiro, bem
como nas reinvenções das práticas e/ou relações no cotidiano dos seus
adeptos.

REFERÊNCIAS

ALVES, Aristides (Org.). A Casa dos Olhos do Tempo que fala da Nação
Angolão Paquetan Kunzo Kia Mezu Kwa Tembu KisueluKwa Muije.
Salvador: Asa Foto, 2010.

HAMPATE BÂ, Amadou. A tradição viva. In: História Geral da África:


Metodologia e Pré-História da África. São Paulo: Atica; [Paris}: UNESCO, 1982.
Páginas 181-218.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence Ranger (orgs.). A invenção das


tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 9-23, 1984.

RIVAS NETO, F.; RIVAS, Maria Elise Gabriele Baggio Machado; CARNEIRO,
João Luiz. Teologia da tradição oral. São Paulo: Arché, 2014.

WALTY, Ivete Lara Camargos. Textualidade e territorialidade no discurso oral.


In: LEITE, Eudes Fernando; FERNANDES, Frederico (Org.). Trânsitos da voz:
estudos de oralidade e literatura. Londrina: EDUEL, 2012.

XAVIER, Juarez Tadeu de Paula. Versos Sagrados de Ifá: núcleo ordenador


dos complexos religiosos de matriz Ioruba nas Américas. São Paulo, 2004.
329 f. Tese. (Doutorado em comunicação). Orientador: Kabengele Munanga.
Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, USP, São
Paulo, 2004.

YEMONJÁ, Mãe Beata de. Mãe Beata discute o Candomblé no Espelho.


Disponível em <http://canalbrasil.globo.com/programas/espelho/materias/mae-
beata-discute-o-candomble-no-espelho.html. Acesso em: 14 abr. 2015.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo:


Companhia das Letras, 1993.

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VOZ POÉTICA E EXPERIÊNCIA NO DOCUMENTÁRIO INDÍGENA.

PROFª DRª MAUREN PAVÃO PRZYBYLSKI (UNEB) 120


MESTRANDO FRANCISCO GABRIEL RÊGO (UNEB) 121
MESTRANDA PRISCILA CARDOSO DE OLIVEIRA SILVA (UNEB) 122

Resumo

A voz é um objeto de experiência, e situa-se no centro de um poder que


representa o conjunto de valores responsáveis pela fundação das culturas.
Além de ser criadora de inúmeras formas de arte, possui um valor simbólico,
abstrato e alcança uma dimensão material. É um modo vivo de comunicação
poética que vai se firmando ao longo dos séculos, uma herança cultural que é
transmitida pela linguagem e outros códigos, por meio dos quais os grupos
humanos constroem suas significações e se reelaboram cotidianamente. Este
artigo pretende analisar a voz, enquanto objeto de experiência, e a auto
representação, como elemento de legitimação de uma alteridade indígena.
Para tanto, utilizaremos como corpus o documentário Mokoi Tekoá Petei
Jeguatá: Duas aldeias, uma caminhada. O texto é dividido em 2 momentos: 1)
breves considerações acerca do conceito de voz, em que enfocaremos a voz
guarani 2) A dimensão oral da representação indígena: o caso do cinema, em
que analisaremos de que forma o indígena se auto representa a partir do
documentário.
PALAVRAS-CHAVE: Voz, Auto representação, Documentário, Mbya-Guarani.

1 APRESENTAÇÃO
Das manifestações humanas, a voz é um objeto de experiência, é o
querer dizer e a vontade de existência. Situa-se no centro de um poder que
representa o conjunto de valores responsáveis pela fundação das culturas,

120
Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, UNEB, / CAMPUS II. Bolsista
PNPD / CAPES. Email:maurenpavao@gmail.com. Coordenadora do Projeto de Pesquisa Os narradores
orais urbano-digitais sob o viés das materialidades da literatura: produção e modos de vida no contexto
nordestino.
121
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, UNEB, / CAMPUS II. Bolsista
FAPESB. E-mail: francisco1gabriel@gmail.com. . Membro do Projeto de Pesquisa Os narradores orais
urbano-digitais sob o viés das materialidades da literatura: produção e modos de vida no contexto
nordestino.
3
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, UNEB, / CAMPUS II. Bolsista CAPES.
E-mail: prioliveira1983@hotmail.com. Membro do Projeto de Pesquisa Os narradores orais urbano-
digitais sob o viés das materialidades da literatura: produção e modos de vida no contexto nordestino.

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além de ser criadora de inúmeras formas de arte; possui um valor simbólico,


abstrato e alcança uma dimensão material. É um modo vivo de comunicação
poética que vai se firmando ao longo dos séculos, uma herança cultural que é
transmitida pela linguagem e outros códigos, por meio dos quais os grupos
humanos constroem suas significações e se reelaboram cotidianamente. A
imagem da voz emerge nas profundezas do vivido e foge a qualquer tipo de
amarra ou fórmulas conceituais, daí aquilo que se destaca como dimensão
material está expressa na existência humana, e suas complexas formulações
que ultrapassam todas as suas manifestações particulares. Em outras
palavras, na sua evocação, a voz “faz vibrar em nós, a nos dizer que realmente
não estamos sozinhos” (ZUMTHOR,2010). A partir disso, urge que se teçam
breves reflexões acerca da voz dentro da cultura guarani.
Na cultura guarani, destaca-se, em especial, as peculiaridades inerentes
a voz, atentando para o papel da oralidade nas manifestações indígenas.
Nesses espaços, voz e memoria aproar-se-iam de modo quase que indistinto.
A memória cumpre a tarefa de profetizar as marcas do que havia se perdido e
que irremediavelmente influi na linguagem e no tempo 123. Falar e transmitir a
memória possibilitam compreender a voz como um produto complexo,
resultado de interações biológicas, intelectuais, emocionais, sociais e
espirituais, já que é o instrumento de trabalho e de comunicação mais difundido
(Franco, 2008). Diante da complexidade ontológica da voz, entra-se no campo
da poesia oral, já que esta circunscreve-se em um vasto e distinto conjunto de
caracteres. Sua formulação ocorreria de forma rigorosa, promovendo indícios
estruturais que se evidenciam em forte sentido de alteridade.
A voz não se esgota naquilo que ela transmite e a oralidade põe em
funcionamento tudo que em nós se destina ao encontro do outro. Isso porque,
nas poéticas orais é que se instauram as formas de sobrevivência,
(re)emergência de um antes, de um ontem, pois muitas práticas da vida social
são explicadas através dela. Percebe-se suas peculiaridades e influências
dentro do cotidiano de toda e qualquer sociedade. Expressa crenças, valores,
presentifica e reatualiza saberes.

123
Memória, aqui, nos interessa quando relacionada ao conceito de voz, como lembrança, recordação e,
por isso, não nos deteremos numa análise mais profunda do conceito.

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A partir do descrito, e da busca pelo sentido de alteridade, pretendemos


observar a representação indígena no cinema, em especial no documentário
Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada (2008) 124. Nosso
intuito é o de apreender o papel da voz e, por conseguinte, das expressões
tradicionais evidenciadas pela dimensão oral, como forma de se perceber o
diálogo estabelecido entre os próprios índios e as expressões diferentes a ela.
Pretende-se apontar esse conceito como um campo complexo e que, no
caso dos indígenas, envolve um forte sentido de alteridade, expressada pela
forma como eles se utilizam do recurso audiovisual, ao abordar suas narrativas
tradicionais - nesse caso, a Lenda da Cobra Grande - desenvolvendo uma
expressão de voz síntese da historicidade dos Mbya-Guarani. Outro ponto
também importante é o sentido do termo representação, que é utilizado aqui
próximo da ideia de suporte utilizado para veicular o representativo. Nesse
caso, voz e a imagem assumiriam uma clara função comparativa, ao
relacionarem-se no produto audiovisual, possibilitando a construção
representacional.
Assim, falar dos produtos audiovisuais que possibilitam uma construção
representacional, nos remete ao projeto Vídeo nas Aldeias125, do qual o
documentário aqui analisado é resultado. Esta produção constitui-se enquanto
um espaço de observação do fenômeno da auto representação, sobretudo
diante de novos incrementos tecnológicos, como a presença dos recursos
visuais e a possibilidade de observarmos como esses recursos são
incorporados por essas comunidades. Além disso, o documentário evidencia as
formas de inserção dos produtos culturais pelos índios, dentro de contexto
ligado à comunicação de massa e das mobilizações coletivas responsáveis por
constituir novas formas de representação. Como a maioria dos produtos
culturais contemporâneos, o filme instaura um espaço de tensão tanto interna
quanto externa, resultante da relação desse produto com seu público, e,
também, do sistema que o abarca, seja por meio da distribuição ou da crítica –

124
Dirigido por Germano Beñites, Ariel Duarte Ortega, Jorge Ramos Morinico, membros das duas
comunidades Mbya-Guarani: “Aldeia verdadeira”, em Porto Alegre (RS), e “Aldeia Alvorecer”, no
município de são Miguel das Missões (RS).
125
Criado em 1986, Vídeo nas Aldeias (VNA) é um projeto precursor na área de produção audiovisual
indígena no Brasil. O objetivo do projeto foi, desde o início, apoiar as lutas dos povos indígenas para
fortalecer suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais, por meio de recursos audiovisuais e
de uma produção compartilhada com os povos indígenas com os quais o VNA trabalha.

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fundamentais para construção dos valores que legitimarão seu status como
expressão cultural.
Poder-se-ia situar a voz no documentário tendo em vista a
potencialidade que o recurso audiovisual oferece aos realizadores. Tal como
um elemento base para a constituição do produto documental, a voz apresenta-
se como um elemento de construção de auto representação, na medida em
que estaria em consonância, de um modo geral, com o falar guarani. Construir
uma auto representação aproxima-se, fundamentalmente, do falar de si para o
outro, apresentando, para o espaço onde o filme se expressa, a cultura de
massa, os sujeitos portadores de um discurso inerente a histórias dos Mbya-
Guarani. Aponta-se, dessa forma, para a relação entre voz e o documentário
como uma ação comparativa que une sujeitos opostos; mas, ainda assim,
ligados dentro do processo de construção subjetiva e dialógica, definida no
espaço da cultura de massa.
O documentário Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma
caminhada começa com uma apresentação dos aspectos que marcam a ideia
de auto representação. Para compreender este conceito, nos apoiamos nas
contribuições de Gonçalves e Head que afirmam a ideia de que tal noção surge
“ como um modo legítimo de apresentar uma autoimagem sobre si mesmo e
sobre o mundo que evidencia um ponto de vista particular, aquele do objeto
clássico da Antropologia que agora se vê na condição de sujeito produtor de
um discurso sobre si próprio” (ALMEIDA, 2013, p.32). Constrói-se, dessa
maneira, uma busca pelo papel determinante dos índios Mbya-Guarani, como
construtores e defensores de suas narrativas.
Nesse aspecto, a imagem do jovem que detém a câmara e a desloca na
comunidade, como um personagem da tribo, é fundamental. Os planos são
construídos, em sua maioria, como recurso da câmera na não. Os movimentos
orgânicos da câmera parecem ressaltar o caráter representativo, ao reforçar a
extensão do local e do espaço como interação de quem filma, reveladora dos
aspectos característicos da tribo, que ganha força, tendo por base os atributos
do povo em consonância com o seu espaço.
Narrado pelos índios guaranis, em sua própria língua, a construção do
discurso fílmico tem, nesse aspecto, um ponto marcante ao evidenciar um

633
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

caráter representativo da própria linguagem. Utilizando-se de recursos como


entrevistas, que na sua maioria ocorrem de forma espontânea, enquanto os
índios estão no seu oficio e trabalho, a capitação do áudio obedece a lógica do
processo de obtenção das imagens utilizadas pela direção, em constante
diálogo com as características espaciais das comunidades representadas.
Esse aspecto é importante por ser um dos pontos objetivados pelo
documentário na construção de um discurso e posicionamento frente ao
processo histórico que situou os indígenas em uma condição de marginalidade
espacial, social e econômica.
Aponta-se, nesse caso, o uso recorrente de contra-plogé 126,
evidenciando uma forma própria de ocupar e relacionar-se com o espaço. O
enquadramento do filme, desta forma, parece seguir a regra de melhor explorar
o objeto, ou seja, as duas aldeias, tendo como recursos principais o uso do
plano médio e da câmera na mão. Chama atenção o uso do ZOOM 127 como
uma forma que diferenciaria o filme de outras produções assentadas em
protocolos vigentes. O papel do ZOOM é interessante pois reforçaria o caráter
de auto representação, que entra no filme como um elemento fundamental para
a construção e legitimação da imagem documental. Outro ponto interessante,
ainda no posicionamento de câmera, é o papel que a câmera ocupa ao ser
posicionada quase sempre, na mesma posição do olho de quem filma. Esse
posicionamento também é importante, pois denota o papel do documentário ao
representar um olhar, desenvolvedora de uma forma de estar na comunidade.
Tal posicionamento é reforçado pelo franco diálogo que se estabelece com
quem está sendo filmado e quem filma, denominado por alguns da comunidade
simplesmente pela alcunha de “câmera”.

A construção da imagem ocorre diante daquilo que F. P. Ramos (2001)


chamou de “transfiguração do real”, em uma imagem possuidora de um traço
especifico, reveladora do gênero documental, em detrimento ao ficcional. A

126
Posição da câmera que resulta na construção de um plano de baixo para cima em direção ao objeto
filmado. Pode ser percebida no filme, pelo posicionamento da câmera no chão, o que resulta em uma
relação desigual ao objeto filmado. No filme, tal posicionamento também resultado em uma maior
profundidade de campo, que é explorado como forma de evidenciar constantemente o que está sendo
filmado e o que não é filmado.
127
Alteração na distância focal da lente durante uma tomada, o que dá ao espectador a impressão de
aproximação ou afastamento do objeto filmado, dentro de um mesmo plano.

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forma como o real é transfigurado para a imagem mediada pela câmera produz
o efeito de uma imagem com caráter de testemunho em relação aos aspectos
típicos dos índios Mbya-Guarani. Por meio da imagem, seria possível perceber
a forma como a câmera desenvolve-se num espaço e no tempo, ao representar
a realidade, na construção da imagem mediada pela câmera. A imagem
documental, por conseguinte, seria reveladora de uma forma específica de
mediarmos a realidade, e da “circunstância de tomada” da câmera 128 ao captar,
registrar e de “estar” no mundo, marcas e traços do sujeito portador da câmera,
mediação capaz de construir uma presença e ausência.
À vista disso, a tônica do documentário estará expressa em um dos
registros de vídeo: “Para falar por nós próprios”, o que evidencia na reprodução
documental a possibilidade de construção de uma enunciação por parte dos
Mbya-Guaranis. Nas duas localidades o papel das narrativas tradicionais
Guaranis são elementos substanciais na construção do realismo no filme. As
narrativas de origem cosmogônicas narradas são apresentadas pelas vozes
testemunhadas pelo olhar mediado pela câmera, apresentado aos demais da
aldeia, relatado pelos índios mais velhos. O papel dessas narrativas
desenvolve-se tendo por base o sentido do espaço, sobretudo, pela
propriedade que a natureza adquire na sua relação com o humano. Na maioria
das representações indígenas, de forma abundante e orgânica, a natureza é
trabalhada no documentário pela sua forma mais precária, resultado do
processo de desfazimento do índio, pela desqualificação e empobrecimento do
seu espaço. É diante da dificuldade do trato com a terra que o índio passa a se
relacionar com o espaço urbano, com a finalidade de vender utensílios e
produtos decorativos como, cestos, animais em madeira, arcos e flechas,
objetos que aproximam e separam aldeia da cidade, os índios

2. A dinâmica narrativa e poética no documentário

128
Como afirma Ramos (2001),“ A circunstância de tomada, para sermos mais específicos, é algo que
conforma a imagem-câmera de um modo singular no universo das imagens. Por circunstância da tomada
entendemos o conjunto de ações ou situações que cercam e dão forma ao momento que a câmera capta o
que lhe é exterior, ou, em outras palavras, que o mundo deixa sua marca, seu índice de, no suporte de
câmera ajustada para tal”.

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Nessa perspectiva, faz-se necessário evidenciar a potencialidade da


oralidade no documentário, como uma forma de se observar o papel da voz
tradicional, presente no narrador que conta a Lenda da Cobra Grande 129. Na
medida em que desenvolve sua narrativa faz uso de uma série de mecanismos
e técnicas que são apreendidos e incorporados ao longo de sua vida. Saberes
ancestrais passados de geração a geração. A tradição oral perpetua uma
organização textual dinâmica, interativa, que implica num jogo de
transformações, que se dá entre o discurso anunciado e enunciação; o
entrecruzamento do tempo e do espaço e suas infinitas possibilidades
performativas. A narrativa possui implicações e nelas há tendências que se
incorporam a esse novo suporte de circulação presente no documentário. No
entanto, é preciso frisar o tributo à transmissão oral dos conhecimentos
armazenados na memória humana, e a utilização desta, de forma revigorada
no documentário, já que o passado se reapresentaria nela através dos
processos de criação, adaptação e circulação.
Sendo assim, o narrador assume um tom político e questionador ao
relatar com maestria a lenda. Ele se coloca como porta-voz do seu povo,
definindo-se como autor e protagonista da sua história. Fala dos seus
antepassados, porém incluindo sua descendência, ao mesmo tempo em que
narra, revive sua memória, atualizando-a quando diz: Eles nos levavam,
quando não nos matavam faziam a gente trabalhar sem comer. Se a gente
adoecia, eles matavam, e nem enterravam. Ao mesmo tempo em que conta ele
invoca as vozes silenciadas e dizimadas de seu povo, os Mbya-Guaranis,
fazendo ressurgir, desta maneira, uma outra história, que questiona um lugar
de fala, usurpado dentro da conjunta social dominante. Ou seja, por meio da
lenda ele desconstrói discursos hegemônicos e assim, como pela sedução das
palavras, faz fluir os sons encantatórios carregados de poética e modos de vida

129
“A Lenda da Cobra Grande, surgiu com o término das Missões Jesuíticas no Rio Grande do Sul.
Atravessou o tempo na boca do povo dizendo que na guerra contra os invasores, os índios, comandados
pôr um grande guerreiro Sepé Tiaraju, lutaram bravamente mas acabaram sendo vencidos. A maior parte
deles foi dizimada ou feita prisioneira. Na Missão de São Miguel ficaram apenas os velhos, mulheres e
crianças, que tão logo tivessem alguma serventia eram levados pôr estrangeiros como escravos. Pôr
consequência, o mato foi crescendo e avançando, invadindo a Missão. Com o mato veio a Cobra Grande,
que subiu as escadas do templo e se alojou na torre da igreja. Quando sentia fome, enroscada nas cordas
que pendiam do alto, atirava-se a badalar…badalar”… Carlos Carvalho ( in:
http://cbtij.org.br/mboiguacu-lenda-da-cobra-grande/)

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que corroboram suas tradições e as legitimam: Mas uma pessoa escapou, e


eles não conseguiram pegar. Quando não se ouvia mais nada por aqui, ele
voltou pra cá. E ficou sentado no pátio com algumas crianças. Por esta
perspectiva, se a história oficial tenta apagar as vozes dos índios, deixando-as
à margem, é por meio da lenda, pelo contar que o povo Guarani reinventa seu
papel no contemporâneo, ao remontar a tradição, buscando trazer para o
centro os dilemas presentes em sua história.
Pode-se dizer que o enfoque documental da lenda, carrega a
vocalidade, como afirma Zumthor (1993) 130, porque em suas origens há uma
criação coletiva e oral das vozes do passado, vozes estas que são trazidas
para a contemporaneidade. As mediações que circulam os dias atuais são
carregadas de novos artifícios, modernidades, adaptações, contudo, a força
das histórias contadas se sustenta na memória vocalizada, traço este que não
se perde mesmo ao longo dos séculos. Tal fato compõe um processo germinal
muito grande: esse movimento de transferência e complementação, oferecido
ao público atual, através da captação audiovisual num compasso entre
oralidade viva para a oralidade mediatizada, e é esse movimento que dá vida à
obra.
O documentário, ao abordar a lenda, volta-se para a potencialidade da
voz Mbya-Guarani. Para isso, enquanto é feito o relato as cenas são
reapresentadas em desenhos fotografados. O próprio narrador testifica a sua
narrativa e faz referência a esse mecanismo imagético incorporando-o a sua
versão: Estava tudo tomado de mato, como na foto lá do museu. 131 Aqui, a
produção audiovisual se deixa conduzir pelo ato narrativo. A análise da lenda
aliado ao mecanismo tecnológico promove um diálogo que confirma a hipótese
de um entrelaçamento que contempla formas de expressão distintas. Ainda
sobre a representação documental da narrativa é possível escutar uma voz que
se manifesta em performance graças a riqueza da tradição que se deixa
transmutar em outros meios, nesse caso pela realidade transfigurada em
imagem documental.

130
Zumthor (1993) descreve vocalidade como a historicidade de uma voz: seu uso. Uma longa tradição de
pensamento, é verdade, considera e valoriza a voz como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz
se articulam as sonoridades significantes. (p. 21).
131
Idem.

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Para que uma produção cultural permaneça segura em si, muitas vezes,
ela pode absorver elementos do domínio da cultura de massa o que
potencializa suas produções, devido a sua hibridez característica. Em algumas
culturas essas incorporações são associadas às tradições e dessa forma,
contribuem para sua permanência e realizações. Zumthor (2010) explica que
uma narrativa deverá ser examinada sobre suas constantes e mutáveis
relações, das quais resultam o encadeamento de seus elementos e a produção
de infindáveis sentidos. Destaca-se “pela ausência de artifícios refreando as
reações afetivas; a predominância da palavra em ato sobre a descrição; os
jogos de eco e de repetição; o imediatismo das narrações, cujas formas
complexas se constituem por acumulação; a impessoalidade, a
intemporalidade”. Essas são características que se apresentam na Lenda da
Grande Cobra e que nos faz percebê-la como um texto oral que veicula grande
carga expressiva, pois evidencia identidades culturais, discursivas e políticas.
Dessa forma, o texto oral focaliza-se em performance: “A arte poética
consiste em assumir esta instantaneidade, em integrá-la na forma de seu
discurso. Daí a necessidade de uma eloquência particular, de uma facilidade
dicção e de frase, de um poder de sugestão: de uma predominância geral dos
ritmos” (Zumthor, 2010, p.139). O ouvinte/espectador segue este
encaminhamento ao assistir o vídeo documentado, nesta condição, não há
possibilidade de retorno, desistência. A mensagem em performance atinge seu
objetivo e o efeito desejado do imediato.
Tomando como referência o estudo desenvolvido pelo teórico Frederico
Fernandes (2007) em seu livro intitulado “A voz e o sentido, poesia oral em
sincronia”, aponta dois conceitos que podem ser analisados e incorporados
para efetivo desenvolvimento de nossa análise: 1) Relato- “que constitui um
feixe de histórias a que se somam acidentes, desilusões, aventuras,
esperanças, saudades, engendra-se pelo exercício do olhar”. Neste caso, o
espectador guia-se pelo olhar do narrador, que vislumbra os acontecimentos e
os readapta por meio da oralidade no documentário. Os relatos são
documentos que reapresentam o passado, porém como uma possibilidade de
se compreender o viver no presente; 2) Narrativa- “sendo constituída com base
num passado próximo, o exercício mnemônico que a viabiliza não pressupõe a

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descrição do convencional, isto é, daquilo que já se apresenta assimilado no


mundo percebido de quem articula”. Relocando o conceito de narrativa
desenvolvida pelo autor acima citado como um deslocamento espacial e
temporal que se insere na descoberta pelo que é “o novo”, o “desconhecido”, é
possível analisar a lenda por esta perspectiva, por meio do “novo” e do
“desconhecido” que se instauram em meio às diversas reinterpretações do
espectador/ouvinte, que também compartilham desta curiosidade pelo inusitado
que se revela na narração.
Por conseguinte, a lenda é marcada por pensamentos inconclusos, mas
não menos significantes. No vídeo é possível perceber a presença marcante
dos gestos que assinalam uma comunicação presentificada e pela ausência de
divagações psicológicas, além claro, da audiência dos seus pares que
observam, atentos, o desenrolar narrativo. O fator marcante da poesia oral é o
tempo e espaço em que ela é comunicada. O autor explica que a comunicação
não está no vazio do tempo, mas encontra-se em um presente que sofre
interferência de um passado para dessa forma projetar o futuro. É um encontro
cíclico que nunca finda. Ele ainda discute sobre a principal diferença entre a
comunicação espacial aquela movida pelo delimitar de um lugar, objeto,
códigos, canais e pessoas, da qual engendra a poesia oral, esta se apresenta
pelo contato direto com o receptor e o retorno a memória oral, possibilitando
que se estabeleça um evento comunicacional entre os pares que se fazem
presentes em performance.
Outro fator preponderante que se deixa sobressair na lenda é o aspecto
religioso, bem demarcado em seu espaço cultural, do qual podemos extrair
elementos que se encaixam perfeitamente ao mundo mítico das tradições
indígenas. Mas quando Nosso Deus Tupã vê algo errado acontecendo, Ele se
transforma em tempestade. Então um raio explodiu o sino, e fez a cobra cair.
Assim, o autor materializa, por intercâmbio do visual, um mundo imaginário
coberto de costumes, magia, fé. Ele se apropria de inúmeras combinações e
alcança desta forma, “um suporte cultural preexiste” (FERNADES, 2007).
Interessante perceber que o narrador percorre sua própria cultura para
“desenhar” a lenda e reapresentá-la perante a câmera. Traça em sua
composição um movimento de ir e vir que evidencia um repertório composto

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por pontos de vista e ideologias. Nesse sentido, o documentário está a serviço


de comunicar e registrar as realidades vividas pelos membros da comunidade,
mas também por outras pessoas, seja no presente ou de outrora. Assim, a
lenda ganha notoriedade e se faz presente não apenas em seu contexto de
produção, mas de toda uma população que possa ter acesso ao vídeo, hoje
disponível em canais de youtube e/ou distribuída em DVDs.
A todo instante da narrativa, o realizador indígena está presente,
mediando a relação de sua cultura com o exterior. Como alguém que constitui
um elo entre dois mundos, os Mbya-Guaranis trazem para o plano da
representação documental, aspectos de sua cultura, manipulando as
ferramentas audiovisuais com o intuito de inserir-se nos espaços da
comunicação de massa. No gesto de reafirmação de sua natureza, ao dialogar
com o campo e antecampo, estaria subjacente um certo caráter afirmativo do
poder dos índios como porta-vozes de um processo de esquecimento vivido na
história, reposicionando-os frente a cultura de massa. É diante do processo de
constituir vozes esquecidas, que o filme desenvolve seu processo de filmagem.
Dessa forma, as lendas e o falares dos índios estão completamente ligados ao
processo de feitura do filme. Interessante notar como as vozes tem um papel
preponderante ao revelar os conjuntos das narrativas próprias da tradição em
contato com às reivindicações Mbya-Guarani.
Nos dizeres do índio acerca da lenda estaria implícita uma outra forma
de observar o surgimento das ruinas. A lenda da cobra grande, como uma
explicação das origens históricas dos guaranis, recoloca as ruinas como um
espaço próprio para a resistência dos Mbya-Guarani. A lenda surge como uma
reafirmação perante ao mundo já recontado pelas narrativas vigentes; tendo,
agora, nas vozes dos indígenas, uma explicação que trouxesse a marca da
exclusão e do empobrecimento das fontes naturais da vida dos índios. Nesse
sentido, narrativa e história se aproximam como forma de apontar o papel
prevalente do extracampo no documentário, ao potencializar as narrativas
como reafirmação dos atributos dos Mbya-Guaranis, reposicionando suas
vozes não somente para o cinema, mas para as lutas e a perpetuação dos
seus modos de vida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MOKOI TEKOÁ PETEI JEGUATÁ. Documentário, drama. Direção: Germano


Beñites, Ariel Duarte Ortega, Jorge Ramos Morinico. Tecnologia digital.
Colorido, estéreo. 63 min. Brasil, 2008.

ADORNO, T. W. A indústria cultural (reconsiderada). In: Theodor W. Adorno.


Cohn, G(org). São Paulo:Editora Ática, 1994.

BRASIL, André, Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo”


em Pi’õnhitsi e Mokoi Tekoá Petei Jeguatá. Revista Significações. São
Paulo. N° 40. 2013. P. 245 – 267.

RAMOS, F. P. O que é documentário? In: Ramos, Fernão Pessoa e Catani,


Afrânio (orgs), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora sulina,
2001, pp 192/207.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papiros editoras,


2005.

PENAFRIA, MANUELA. Análise de Filmes - conceitos e metodologia (s). In:


VI Congresso SOPCOM, abril de 2009.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.

______. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Primeira
Reimpressão, 2001.

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GRUPO DE TRABALHO: INTELECTUAIS NEGROS E A PRODUÇÃO DE


CONHECIMENTO NO BRASIL

PROPOSITORES: ROSEMERE FERREIRA DA SILVA (UNEB)

Ementa:

As pesquisas das últimas décadas têm demonstrado o avanço de estudos

críticos sobre a produção intelectual negra brasileira e suas interlocuções com

diferentes áreas. A proposta “INTELECTUAIS NEGROS E A PRODUÇÃO DE

CONHECIMENTO NO BRASIL” está articulada à atuação dos pesquisadores

de graduação e de pós-graduação no projeto Literatura e Afrodescendência,

criado na UNEB- Campus V- desde 2013, para ampliar as condições de

trabalho e investimento na investigação historiográfica sobre a relevância das

trajetórias de intelectuais e suas produções para a literatura no Brasil. O grupo

de trabalho em questão tem por objetivo discutir, para além da literatura,

estudos que abordem a atuação de intelectuais negros e/ou negras no século

XIX e/ou século XX, em áreas distintas de conhecimento, relacionadas à crítica

social, política e cultural no Brasil, com base na problematização das relações

etnicorraciais. Neste sentido, é fundamental colocar em evidência o

pensamento desses intelectuais, bem como seus percursos e memórias, em

conexão com práticas e projetos que buscam contribuir para o debate teórico-

metodológico, em torno das funções e intervenções que eles escolhem

exemplarmente representar.

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A FIGURA DA NEGRA NO CONTO UM ESPECIALISTA, DE LIMA BARRETO

MARIA APARECIDA SANTOS DE SOUZA (UNEB)

1 A LITERATURA DE LIMA BARRETO

Tem-se discutido muito sobre a abordagem de aspectos raciais e de


cunho moral presentes em obras literárias, temas esses que por longo período
de tempo eram proibidos de se falar, principalmente se tratando de escrita, pois
não era conveniente que em uma obra literária, onde o objetivo era mostrar o
sorriso da sociedade, abordar assuntos vistos como desagradáveis perante a
burguesia. O artigo analisará como esses aspectos raciais e morais foram
abordados no conto “Um Especialista”, cuja autoria pertence a um dos
escritores e jornalistas brasileiros que marcaram um período histórico, Afonso
Henrique de Lima Barreto. Ele era mestiço e oriundo de família humilde, seu
pai era tipógrafo e sua mãe professora primária, ambos não foram escravos,
mas sua avó e bisavó foram escravizadas, dessa forma, seu histórico de vida o
levou a sofrer preconceito constante e assim denunciar as mazelas sociais
através de sua obra.
Na juventude, o autor ingressou no curso de engenharia, na escola
Politécnica, no entanto, não prosseguiu porque seu pai adoeceu e Lima Barreto
teve que trabalhar como funcionário público para sustentar a família, a partir
daí ele começou, ao mesmo tempo em que trabalhava, escrever vários jornais
do Rio de Janeiro, local onde o mesmo nascera. Sua literatura foi alvo de
muitas críticas por ser deslocada dos padrões literários da época, longe dos
modelos considerados tradicionais para serem seguidos. Mesmo com tantos
obstáculos, sua escrita continuou explorando as injustiças sociais, o modo de
vida das classes populares e marginalizadas e as dificuldades das primeiras
décadas de República.
Lima Barreto escrevia contra a hostilidade dos escritores e do público
burguês, utilizava uma linguagem flexível, impregnada de empréstimos de
diversos gêneros textuais, isso também contribuiu para que alguns literatos da
época afirmassem que aquela escrita não se classificava como literatura.
Algumas de suas obras com traços autobiográficos, com interrupção do

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narrador e com comentários do autor eram confundidas com a biografia do


próprio Lima Barreto, o que desencadeou uma série de julgamentos pejorativos
em relação a sua obra. O acúmulo de críticas negativas, seu inconformismo
com a mediocridade da época e a ausência de resultados voltados para os
problemas sociais abordados por ele fizeram com que Lima Barreto se
entregasse ao álcool, chegando à depressão e, conseqentemente, a falecer em
1922, com 41 anos de idade. Deixou uma vasta coleção de obras literárias, que
durante um período foi censurada e hostilizada pela classe dominante,
proibindo que chegasse até as livrarias e as escolas. No entanto, hoje essa
mesma obra serve de respostas à muitos questionamentos, tendo por vista a
construção crítica em relação a diversas situações sociais.
Cuti (2011) faz um panorama geral dessa vasta obra de Lima Barreto e
chega a conclusão de que ela traz uma multiplicidade de abordagens, sendo
aberta e estimuladora. Aberta no que tange a possibilidade de o leitor
preencher os vazios com interpretação mais concreta, e estimuladora no que
se referem as características, as quais não tem forma fixa, podendo, portanto,
migrarem de um texto para outro, o que prova que Lima teve uma visão social
de produção textual diferente de sua época. Dessa forma, também fica
evidente que o autor envolve o leitor nos seus temas narrados, provocando-nos
um incômodo psicológico.

2 O NEGRO NA LITERATURA: ABORDAGENS E DISCUSSÕES

Durante quase quatro séculos a literatura brasileira obedecia aos


paradigmas europeus, tanto na forma de escrita como no conteúdo, isso foi
reflexo da manipulação e omissão de ideias propagadas por parte dos grupos
privilegiados, principalmente, em relação a questão racial. Lima fez o oposto,
pois usava a literatura como um meio de “pelo imaginário selecionar conteúdos
e vivências da realidade e fixá-los no tempo por meio da perenidade da
linguagem escrita.” (CUTI, 2011, p. 16). Assim trouxe a tona questionamentos a
cerca da imposição da hierarquia racial, através das ações de seus
protagonistas negros. Desmistificou estereótipos e conceitos veiculados na
sociedade da época, revelando os agravantes que contribuíam para a
subalternidade do negro e para o embranquecimento cultural, pois não

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comungava com os ideais de literatura impostos, uma vez que esses


reproduziam em suas obras valores racistas, bem como ressalta Cuti:
A maioria dos intelectuais concordava com a ideia de superioridade
congênita da chamada raça branca, tese que legitimara para a
sociedade todo o processo escravista no estatuto colonial a
discriminação no período pós-abolição. (CUTI, 2010, p. 17).

Para entender a questão racial em nossa literatura é necessário antes


compreender algumas abordagens históricas e culturais em relação ao tema,
feitas por alguns estudiosos da área. Abdias do Nascimento (2002) aborda o
embranquecimento da cultura brasileira como uma estratégia de genocídio, há,
portanto, uma tentativa de destruição total ou parcial da herança negra em
território brasileiro, para isso o autor exemplifica como essa herança é
idealizada na Bahia, funcionando como aliada na continuidade da negação
africana e na reprodução de estereótipos:
Até mesmo aqui (Bahia), onde a cultura africana deitou raízes
seculares, um descendente africano, para ter acesso em qualquer
degrau de escala social, é porque já não é mais um negro: trata-se de
um assimilado que deu as costas às suas origens, ou seja, “um negro
de alma branca”. (NASCIMENTO, 2002, p. 146)

É notório que Nascimento (2002) mostra, de fato, como a maioria das


pessoas enxerga um afro-descendente que ocupa um lugar de destaque na
sociedade brasileira, é como se ele não mais pertencesse ao seu grupo racial
de origem, é como se a melhoria da posição social o embranquecesse e o
fizesse esquecer seu passado de exclusão. No entanto, deve-se ter em mente
que a superação da situação subalterna, situação a qual nos foi imposta,
funcione como meio de autofirmação da identidade racial e, assim, desconstruir
a ideologia da hierarquização de raças que muitos acreditam existir.
Outro fator que aponta para discussões referentes à questão racial no
Brasil é a miscigenação, pois durante um período esta foi tratada de maneira
pejorativa, como algo que “ao produzir uma agente degenerada, condenaria o
novo país ao subdesenvolvimento perpétuo” (Telles, 2003, p. 43). Dessa forma,
o miscigenado não teria a totalidade das características primárias nem do
branco nem do negro e se tornaria um ser, na ideologia racista, superior ao
negro e inferior ao branco, e mesmo com esse ideal permaneceria numa escala
social marginalizada em referência aos brancos. A miscigenação também foi
vista por alguns estudiosos como a solução para o extermínio da raça negra no

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nosso país, dando início ao branqueamento através da mistura entre brancos e


não-brancos. Segundo Edward Telles (2003), a elite do período pós-abolição
acreditava que o grande contingente de imigrantes europeu trazido para o
Brasil em função da substituição da mão de obra escrava, subsidiaria com êxito
o embranquecimento da população brasileira, com uma perspectiva de que em
algumas décadas não mais existissem pessoas da pele totalmente escura no
território. Contemporaneamente, é visível que essa hipótese de
embranquecimento através da miscigenação se perdeu no tempo,
concretizando-se como falácia de eugenistas, pois mesmo com tantas
ideologias de hierarquização racial, o resultado da mistura entre raças apontou
para uma vertente mais complexa, onde não é possível distinguir o indivíduo
como sendo objeto resultante numa raça específica. Lima Barreto demonstra
essa busca inalcançável pelo branqueamento em uma de suas obras literárias,
Clara dos Anjas, onde a protagonista nega a própria identidade racial e vê a
possibilidade de clareamento através do envolvimento sexual com um homem
branco, e assim ter seus filhos também brancos, reproduzindo, então, a
ideologia da miscigenação como extermínio da raça negra.
Nesse patamar de abordagens sobre raças, Gilberto Freyre (1938, apud
Alfredo Guimarães, s.d.) aponta a miscigenação como sendo sinônimo da
harmonia das relações interraciais:
Há, diante desse problema de importância cada vez maior
para os povos modernos– o da mestiçagem, o das relações de
europeus com pretos, pardos, amarelos – uma atitude distintamente,
tipicamente, caracteristicamente portuguesa, ou melhor luso
brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nos torna uma unidade
psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez
se possa dizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica
e ao mesmo tempo social, mais significativas do nosso tempo: a
democracia social através da mistura de raças.(Freyre 1938, apud
GUIMARÃES, p. 5).

Dessa forma o autor constrói a imagem de um país sem definição de cor


e ao mesmo tempo a ideologia de um Brasil longe do racismo. Vale ressaltar
que o sociólogo costura essa linha de pensamento numa perspectiva de
alcançar a democracia racial através da mistura entre raças, no entanto, a
concretização desse ideal configurou numa mistificação, pois o comportamento
entre os sujeitos envolvidos na construção da identidade brasileira viaja num
histórico-cultural oposta da idealizada por Freyre (1938). Para alguns

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estudiosos, essa abordagem mítica serviu de aporte para a compreensão da


cultura brasileira.

3 VIAGEM RACIAL E SOCIAL NO CONTO “UM ESPECIALISTA”

A literatura de Lima Barreto surge como uma forma de participação na


sociedade, através da crítica a elite dominante, aos costumes vigentes e a
alienação, surge também como forma de reflexão dos valores sociais. O literato
assume a questão racial como um projeto de identidade escrita, pois esta
transportava a denúncia contra as várias formas de camuflagem da
discriminação racial e de classe. Segundo Brookshaw (1983), com esse estilo
de produção, Lima Barreto é teoricamente classificado na terceira opção: “... o
escritor negro apresenta uma forma de protesto contra opressão econômica,
política e preconceituosa da sociedade brasileira”. (BROOKSHAW, 1983 apud
LEITES, 2012, p. 97). Para tanto, o protagonista da obra barretiana passa a ter
características e ações opostas aos da literatura clássica, configurando o anti-
heroísmo radical, já que esse personagem principal passa a espelhar a
realidade das pessoas comuns, principalmente as dificuldades cotidianas
enfrentadas por elas. Vale lembrar que mesmo cometendo uma falta e
demonstrando fragilidade, esse protagonista ainda permanece grandioso, pois
esse fato funciona como uma denúncia, segundo Cuti (20011, p. 37 e 38). Tal
colocação é facilmente visível no conto “Um Especialista”, de Lima Barreto,
onde a personagem principal da narrativa de 3ª pessoa é uma jovem mulata
que, desde que sua mãe morreu na mesma sorte, enfrenta as dificuldades da
vida de uma mulher negra e pobre, restando-lhe a suposta prostituição como
meio de sobrevivência e mesmo assim a protagonista demonstra dignidade,
vaidade e orgulho próprio em sua fala:

--- Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho
rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o diabo
amassou. Passando de mão em mão, ora nesta, ora naquela, a
minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido três
homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles!
- só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam,
espancavam-me, maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um
sargento do Regimento de Polícia, ele chegou em casa embriagado,
tendo jogado e perdido tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-
réis, fosse como fosse. Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro
das roupas que eu lavava, só chegava naquele mês para pagar a

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casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-me. Ofendeu-me. Por fim,


cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço, esbofeteou-me, deitou-me
em terra, deixando-me sem fala e a tratar-me no hospital. Um outro -
um malvado em cujas mãos não sei como fui cair - certa vez,
altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da qual ainda
tenho sinal.! Tem sido um tormento... Bem me dizia minha mãe: toma
cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso
corpo por segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos
quartos, quando não nos roubam como fez teu pai comigo...
(BARRETO, 2004, p. 79 e 80)

A narrativa é centralizada em espelhar a relação confusa entre a mulata


Alice e o comendador branco português, este idealiza a mulher mulata como
objeto de consumo, a ponto de colecionar várias delas como amantes. E foi
com essa façanha que em época de caixeiro-viajante desonrou outra jovem
mulata na capital de Recife e sumiu no mundo carregando uma pequena
herança que a jovem tinha herdado de seus pais, deixando-lhe uma
descendência sem assumir. Passadas quase duas décadas e meia, em um de
seus encantamentos por mulheres miscigenadas, o comendador descobre,
através dos traços fenótipos similares aos seus e por meio da história de vida
contada pela própria protagonista, que esta pode ser sua filha, fruto de sua
mau conduta, praticada há anos atrás.
Por meio de “O Especialista”, Lima Barreto ataca o falso moralismo da
burguesia e cria o efeito do choque moral, pois expõe ao público os desvios
sociais que, na maioria das vezes, eram mascarados por uma elite hipócrita.
Pode-se perceber nesse conto que, além da moralidade, há uma abrangência
de questões, as quais perpassam pelo viés da raça, do gênero, do estético e
do histórico, no entanto segue aqui como ponto crucial, não descartando essas
outras questões, a colocação do negro na literatura barretiana. É visível que o
fato de Alice ser negra e pobre a leva a diversas situações subalternas, o
racismo gela e congela socialmente sua vítima, ridicularizando-a numa ação
marginalizada que se configura em prostituição. Dessa forma, há também um
intencional da protagonista em se expor para firmar sua própria existência, tal
fato, aparece no enredo através da exaltação dos fenótipos negro-
descendente, pois Alice é vista pelos homens como uma mulher mestiça de
beleza admirada e desejada.

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— A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é,


enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os
portugueses, desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar.
[...]
— É uma cousa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi
mulata igual. Como esta, filho, nem a que conheci em Pernambuco
há uns vinte e sete anos! Qual! Nem de longe !. Calcula que ela é
alta, esguia, de bom corpo; cabelos negros corridos, bem corridos:
olhos pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado,
mas bom! E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns
lábios roxos, bem quentes... Só vendo mesmo! Só! Não se descreve.
(BARRETO, 2004, p. 73 e 75)

Nesse mesmo patamar de exaltação, fica subentendida a concepção


escravista de que o branco usufrui de prazer com o negro sem nenhum
compromisso com as conseqüências, porém numa linha de provocações
reflexivas em decorrência das conseqüências que as ações emitem para
ambos, tanto para quem é usufruído (mulher negra), quanto para quem usufrui
(homem branco). Lima Barreto aponta em “O Especialista” uma ação social
perversa, oriunda da trágica falta cometida pelo personagem branco com o
negro, condenando o psicológico dos dois personagens e ao mesmo tempo
provocando o desconforto social, pois “a questão racial quando ficcionalizada
fere” (CUTI, 2011, p. 93). O texto surpreende os personagens na ação de má-
fé e flagra-os no passo dado em falso, tal como explicita um trecho abaixo:
Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu,
maliciosamente observou:
— Parecem pai e filha.
E essa reflexão de pequeno alcance na boca que a proferiu, calou
fundo no ânimo do coronel.
Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas, também;
o ar, um não sei quê de ambos assemelhavam-se...
[...]
— Meu Deus! É minha filha! (BARRETO, 2004, p.78 e 81).

Pode-se perceber também que, como revela Cuti (2011), na literatura os


elementos da realidade produzem um efeito de convencimento, mediante sua
semelhança, mediante comparações que fazemos com aspectos da vida que
se revelam na ficção. E assim há possibilidades de os sujeitos leitores
construírem seu próprio espelho, apontando para mudanças nos paradigmas
sociais que nos são impostos.
Outro aspecto preponderante no conto, referente a questão racial, é que
a protagonista Alice vivencia, em parte, a solidão social, configurada,
principalmente, pela ausência do matrimônio. Segundo Cuti (2011) essa

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solidão social é definida como isolamento da vítima, associado ao efeito


traumático de uma situação vivida, tendo como refúgio e autodefesa si próprio.
Dentre muitos aspectos da solidão social citados por Cuti, os mais eficientes do
racismo são o silenciamento e ocultação de suas consequências, a falta de
contato verdadeiro entre as pessoas e a solidão matrimonial. A personagem
mulata de “Um Especialista” é marcada parcialmente por esses três traços, que
em algum momento da narrativa são deixados transparecer. As consequências
que a mulher negra (protagonista) enfrenta desde que perdeu sua mãe parece
não existir perante o meio social, são omitidas pelo sistema opressor de uma
sociedade racista e machista, e mesmo que a moça dialogue sua situação, o
que lhe resta como alternativa é a comercialização do próprio corpo como meio
de sobrevivência e realização dos seus objetivos. Tal fato é convertido no
segundo aspecto da solidão social -- a ausência de contato verdadeiro entre as
pessoas -- uma vez que, cada homem que passou na vida de Alice funcionou
apenas como subsidio para que ela saísse de determinada situação, não
havendo a construção de sentimentos entre pessoas envolvidas numa mesma
relação, produzindo o efeito da troca entre parceiros eventuais. Esse processo
dá direção ao terceiro aspecto do racismo, que é a solidão matrimonial, pois a
jovem mulata reproduziu o mesmo destino de sua mãe, que pela condição de
exclusão racial e social, permaneceu descabida de casamento e passando a
ser objeto sensual entre os homens. Mesmo com todos esses embates, é
notório que a figura da negro-mestiça não se deixa abater perante as situações
de crueldade que a vida em sociedade lhe oferece, pois ela não é pacífica
diante da condição subalterna e tenta tirar o máximo de proveito para superar
as dificuldades de raça e de classe, tal como ressalta Cuti:

O recurso dos personagens discriminados de Lima Barreto


está em exporem sua vida, fazerem dela uma dimensão discursiva,
mesmo que balbuciada. Pode parecer pouco, mas os aspectos mais
eficientes da discriminação racial são o silenciamento e a ocultação
de suas conseqüências. (CUTI, 2011, p. 64 e 65)

Sem dúvidas, Lima Barreto abordou as questões de raça e de classe


numa perspectiva diferente do seu tempo, deu vida a literatura negra,
apresentando em ficção os problemas que a população desfavorecida enfrenta

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na realidade. Ele humanizou os personagens negros, retratando a situação da


raça marginalizada por um viés histórico-cultural que apontou para um futuro
positivo, diferente do passado que nos foi imposto. Dessa forma, Lima
promoveu através da literatura, a reflexão no leitor perante determinadas
situações, numa intencionalidade de desintoxicação da superioridade racial.
Esse fato contribuiu e ainda contribui para que o processo de desintoxicação
da superioridade racial continue a se efetivar na mente das pessoas e se
configure em ações que promovam a igualdade social entre raças, com
respeito as diferenças de cada uma.

REFERÊNCIAS

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outros contos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2004.

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LEITES, Marlene Hernandez. A questão da raça e da diferença: um olhar


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NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Salvador: CEAO,


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TELLES, Edward Eric. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva


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A TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO NEGRO BRASILEIRO: DO PÓS


ABOLIÇÃO A CONTEMPORANEIDADE

LUCAS LIMA DE ANDRADE (UESB)*

RESUMO

No Brasil, os primeiros episódios sobre a Mobilização Negra, organizada em


um movimento, se deram logo após um ano da abolição do trabalho escravo,
com a chamada Guarda Negra (1088-1889). Formada por libertos no Vale do
Paraíba, a Guarda reivindicava a responsabilidade dos proprietários de
escravos em relação àqueles nascidos livres e beneficiados pela lei que previa
destinar impostos para a educação dos filhos dos libertos. Mas suas lutas não
se resumiam tão somente a isso. Nas primeiras décadas do pós-emancipação,
outras entidades viriam fortalecer a mobilização, com a FNB (1936) e o MNU
(1976) e ainda, algumas associações regionais de menor visibilidade. A partir
de então, a população negra passou a enfrentar uma intensa batalha na luta
por autonomia, terras, moradia, reconhecimento de direitos, melhores
condições de vida e trabalho. Através disso, a presente comunicação almeja
analisar a trajetória do Movimento Negro brasileiro e seus processos de
resistência até a constituição do Movimento Negro contemporâneo, dando
relevo às reações deste com as diversas práticas sociais com que interage,
como também suas formas de combate ao racismo e aos estigmas que cercam
a população negra brasileira há séculos.

Palavras-chave: Anti-racismo, Movimento Negro, Pós-emancipação, Racismo.

THE TRAJECTORY OF THE BRAZILIAN BLACK MOVEMENT: AFTER


ABOLITION CONTEMPORANEITY

Lucas Lima de Andrade (UESB)

ABSTRACT

In Brazil, the first episodes about the Black Mobilization, organized into a
movement, came shortly after a year of abolition of slavery, the Black Guard
(1088-1889). Composed of Freedmen in the Paraíba Valley, claimed the
responsibility of the owners of slaves in relation to those born free and benefit
from law which provided for allocating taxes for educating the children of
Freedmen. But their struggles were not only that. In the first decades of pós-
emancipação, other entities would strengthen the mobilization, with the FNB
(1936) and the MNU (1976) and some regional associations of less visibility.
From then on, the black population went on to face an intense battle in the fight
for autonomy, land, housing, recognition of rights, better conditions of life and
work. Through this, the present communication aims to analyze the trajectory of
the Brazilian black movement and their resistance until the Constitution of
contemporary black movement, giving relief to the reactions of this with the
various social practices with which it interacts, but also their ways of combating
racism and stigmas surrounding the Brazilian black population for centuries.

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Keywords: Anti-racism, the black movement, after emancipation, Racism.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como finalidade apresentar as mobilizações organizadas


pelos negros no Brasil contemporâneo, sobretudo após a fundação do
Movimento Negro Unificado (1978). Entretanto faz-se necessário conhecer
suas trajetórias, e as demais entidades que o representam, para compreender
suas ações de luta que visam defender a população negra física e
culturalmente.
Primeiramente deve-se abordá-lo enquanto movimento social que de
acordo com SCHERER-WARREN apud DOMINGUES (2007), constitui-se
como um “grupo mais ou menos organizado, sob uma liderança determinada
ou não; que possui pautas, objetivos ou plano comum; baseando-se numa
mesma doutrina, princípios valorativos ou ideologia; visando um fim específico
ou uma mudança social”. Nesse sentido pode-se então analisar as
reivindicações do Movimento Negro, sabendo que este tem causas especificas
e inteiramente legitimas através do combate ao racismo, visando a integração
do negro à sociedade.
A partir das reflexões de Francisco Cardoso (2008) pode-se entender o
“Movimento Negro como uma luta, um conjunto de práticas e discursos anti-
racistas que produzem, para tanto, subjetividades múltiplas capazes de
construir e desconstruir identidades na luta de combate ao racismo contra os
negros”. Sendo assim, esta definição serve bem para o que será tratado ao
longo deste artigo, que além desta introdução, está divido em mais três seções,
onde se trata das primeiras mobilizações e em seguida do Movimento Negro
contemporâneo, no que se refere às reivindicações políticas e as lutas
enfrentadas pela população negra; por fim faz-se algumas considerações
acerca do que foi apresentado.

AS PRIMEIRAS MOBILIZAÇÕES

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Há muito a historiografia apresentou a história do povo negro no Brasil,


numa perspectiva de sujeitos passivos, tanto no que se refere ao período do
regime escravista, quanto da pós-emancipação, fortalecendo assim, mesmo
que inconscientemente, as praticas racistas e discriminatórias que cercam a
população negra há séculos. Nesse sentido é preciso desconstruir estes
estigmas, sabendo que, as lutas do povo negro não se deram somente depois
do período pós-emancipação.
O que a nova historiografia vem trazer, de acordo com Reis (1996), é
que durante todo o regime escravista no Brasil, o povo negro interferiu
diretamente nos acontecimentos que culminariam na abolição do trabalho
escravo no país, através da resistência que se traduzia nos conflitos,
negociações e principalmente nas rebeliões, sendo os negros sujeitos ativos
neste processo.
A exemplo disso, logo após um ano da abolição do trabalho escravo no
Brasil, momento em que a desigualdade ganhou força e argumentos para
sustentar-se 132, foi que os primeiros episódios sobre a Mobilização Negra
organizada em um movimento se deram, com a chamada Guarda Negra (1088-
1889) formada por libertos no vale do Paraíba, que reivindicavam a
responsabilidade dos proprietários de escravos em relação àqueles nascidos
livres e beneficiados pela lei que previa destinar impostos para a educação dos
filhos dos libertos. Mas suas lutas não se resumiam tão somente a isso nas
primeiras décadas pós-emancipação, de acordo com Gomes, entre suas
pautas estavam:
Lutas por terra, autonomia, contratos, moradias e salários — e
enfrentar a costumeira truculência — era reafirmar direitos interesses
e desejos redefinidos, também, em termos étnicos, coletivos e
culturais. Havia muita coisa em disputa. Para a população negra não
era apenas uma aposta num futuro melhor, mas o desejo de bancar o
próprio jogo. (GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-
1937). p.12)

Reivindicações estas, que se confundem com as mesmas lutas que o


Movimento Negro enfrenta recorrentemente, claro que, com maior dificuldade,
pois colocar as questões raciais em debate nos primeiros anos republicanos
não seria uma tarefa fácil.

132
Argumentos econômicos, científicos e ainda o medo da “africanização”. Cf. (GOMES, 2005,
p.10)

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Em 1931 surgia a Frente Negra Brasileira (FNB), transformando-se,


como chamou Flávio Gomes, numa febre, pois atraiu milhares de pessoas, sua
ascensão se deu num momento crise política e econômica no Brasil, o que
contribuiu para que o Movimento ganhasse força. Ainda de acordo com
Gomes, ah estimativas de que naquele momento haviam mais de 100 mil
membros espalhados por todo o Brasil, fazendo com que a FNB 133 fosse, na
primeira metade do século XX a mais importante entidade negra do país,
funcionando também como uma unidade de acolhimento e lazer para a
população negra, não tendo apenas a intenção de incluir a problemática do
racismo como pauta política, mas também promover melhores condições de
vida, saúde, educação e emprego. Como observa também Petrônio Domingues
(2007, p. 106): “A entidade desenvolveu um considerável nível de organização,
mantendo escola, grupo musical e teatral, time de futebol, departamento
jurídico, além de oferecer serviço médico e odontológico, cursos de formação
política, de artes e ofícios, e publicar um jornal, o A Voz da Raça.”
Tratando-se dos periódicos, a chamada “imprensa negra” que se erguia
ao mesmo tempo desses acontecimentos, se constituía numa das
manifestações mais importantes da mobilização negra nas primeiras décadas
republicanas.

Jornais publicados por negros e elaborados para tratar de suas


questões. Para um dos principais dirigentes negros da época, José
Correia Leite, “a comunidade negra tinha necessidade de uma
imprensa alternativa”, que transmitisse “informações que não se
obtinha em outra parte”.12 Em São Paulo, o primeiro desses jornais
foi A Pátria, de 1899, tendo como subtítulo Orgão dos Homens de
Cor. Outros títulos também foram publicados nessa cidade: O
Combate, em 1912; O Menelick, em 1915; O Bandeirante, em 1918;
O Alfinete, em 1918; A Liberdade, em 1918; e A Sentinela, em 1920.
No município de Campinas, O Baluarte, em 1903, e O Getulino, em
1923. Um dos principais jornais desse período foi o Clarim da
Alvorada, lançado em 1924, sob a direção de José Correia Leite e
Jayme Aguiar.13 Até 1930, contabiliza-se a existência de, pelo
menos, 31 desses jornais circulando em São Paulo.14 A imprensa
negra conseguia reunir um grupo representativo de pessoas para
empreender a batalha contra o “preconceito de cor”, como se dizia na
época. (DOMINGUES. 2007. p.104)

133
Em 1936 a FNB viria a se tornar um partido político, porém em 1937 com o Estado Novo de
Getulio Vargas, foram fechados os partidos e associações políticas, frustrando assim, a
intenção de transformar a FNB em um partido com representação nacional.

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Dentro desse segmento, foram surgindo jornais em vários outros


estados do país, tendo a “raça negra”, o preconceito, o pós-abolição e a
situação do povo negro no país.como principais objetos de debate e reflexão.
Havia também a Legião Negra, idealizada inicialmente pelo comandante
civil Dr. Joaquim guaraná de Sant’Ana, que era também integrante da FNB,
tendo praticamente as mesmas invocações desta. Porém num outro contexto,
como mostra Flávio Gomes:
O correio de São Paulo publicou, em 21 de julho, o seguinte
manifesto lançado por Guaraná de Sant’Ana : “Descendentes da raça
Negra do Brasil: Estamos vivendo a hora mais decisiva de nossa
História. Nós os construtores da grandeza econômica da nossa
pátria, que com nosso sangue, a temos redimido de todas as
opressões e com o leite da mãe negra, que a todos nos embalou e
ensinou com suas lendas e canções, o grande amor ao Brasil, somos
neste momento um dos maiores soldados dessa cruzada pelo dever
que temos de defender o imenso patrimônio que durante três séculos
e meio acumulamos. [...] vinde, sem demora, onde já se acham
acantonados centenas e centenas de nossos irmãos negros, formar
com eles batalhões — a Legião Negra.(GOMES, Flávio dos Santos.
Negros e política (1888-1937). p.71-72)

Com isso percebe-se o esforço da Legião Negra em inserir o negro no


contexto político e social do país através do alistamento, e mais do que isso se
evidencia a convocação destes a se unirem pelo ideal de igualdade.
Apesar da difícil conjuntura pós-emancipação, pode-se evidenciar o
esforço despendido destes movimentos em torno de suas causas, fossem elas
sociais, políticas ou recreativas; esforços estes que culminaram em conquistas
significativas e no aprimoramento destas mobilizações; é necessário ressaltar
que além destas apresentadas, outras entidades surgiram nas varias regiões
do país, formadas por libertos e pelo povo negro.

O MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO

Apesar da denominação de “Movimento Negro”, não se pode tratar o


mesmo a partir de uma visão homogênea, dada as especificidades que são
inerentes a cada um desses movimentos. Lélia Gonzalez chama a atenção
para isso quando levanta um importante questionamento: “Movimento ou
movimentos negros?”. A autora segue explicando a importância de se respeitar
a diversidade de cada um desses grupos e dentro deles, quando afirma: “Afinal
nós negros não constituímos um bloco monolítico, de características rígidas e
imutáveis. Os diferentes valores culturais trazidos pelos povos africanos que

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para cá vieram [...], apesar da redução a igualdade, imposta pela escravidão, já


nos levam a pensar em diversidade”.
O início da segunda metade do século XX representou um péssimo
momento para a história do Movimento Negro; com o golpe militar de 1964, o
movimento viu-se desarticulado pela repressão que segundo Gonzalez
“desmobilizou as lideranças negras, lançando-as numa espécie de
semiclandestinidade”, criminalizado e proibindo o debate racial no país, tendo
como principal alegação o mito da democracia racial. De acordo com Cardoso
(2008), “É nesse cenário, complexo e repressivo que surge em Salvador o Ilê
Aiyê, causando um impacto político e cultural sem precedentes, fazendo da
cidade um grande palco de produção de subjetividades, o que tenta expressar
a música “O Ilê Aiyê é um lado da África!”: “minha nação é Ilê, minha epiderme
é negra, tenho vinte e um, sou maior de idade! Lindo é subir o Curuzu, difícil é
chegar na cidade!”.
É somente na década de 1970 que os movimentos retomam o processo
reivindicatório político. Em 1978, com a articulação entre Rio de Janeiro e São
Paulo, posteriormente se estendendo a outros estados, foi onde se deram os
primeiros contatos em que a maioria das questões girava em torno da criação
de um Movimento Negro de caráter nacional. Dando assim as bases para o
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, o MNUCDR, e para
que posteriormente se erguesse o MNU (CARDOSO DA SILVA, 2001). Sendo
este um dos acontecimentos mais expressivos na história do protesto negro:

No plano externo, o protesto negro contemporâneo se inspirou, de um


lado, na luta a favor dos direitos civis dos negros estadunidenses,
onde se projetaram lideranças como Martin Luther King, Malcon X e
organizações negras marxistas, como os Panteras Negras, e, de
outro, nos movimentos de libertação dos países africanos, sobretudo
de língua portuguesa, como Guiné Bissau, Moçambique e Angola.
Tais influências externas contribuíram para o Movimento Negro
Unificado ter assumido um discurso radicalizado contra a
discriminação racial.(DOMINGUES. 2007. p.112)

Os movimentos negros sempre alertaram para a existência do racismo


na nossa sociedade. Entre as reivindicações do Movimento negro
contemporâneo, está o combate a difusão da ideia do mito da democracia
racial, e do racismo no Brasil que de acordo com Cardoso (2008) é tão eficaz,
que se tornou um modelo tipo exportação, sobretudo pela capacidade de
esconder o teor de sua violência. Além disso, hoje em dia o Movimento Negro

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Unificado luta e defende que seja rigorosamente cumprida, as políticas de


ações afirmativas em favor da igualdade racial como as leis 10.639/2003 que
institui o ensino de História e cultura afro-brasileira nos currículos escolares,e
ainda a lei 12.711/2012134 que reserva vagas ou cotas para estudantes
negros no ensino superior, visando de fato uma verdadeira democracia racial
para o país.
Segundo Praxedes e Praxedes, “os negros formam cerca de
aproximadamente 52% da população brasileira, e mesmo tendo acesso ao
ensino, por ignorância, preconceito ou má fé, sua aparência, suas origens, sua
história, sua cultura, não são tratadas adequadamente no meio educacional e
mais ainda na sociedade como um todo. Daí a importância das mobilizações e
reivindicações dos movimentos negros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A população negra sofre até hoje com os resquícios da escravidão e do
racismo que os privou do acesso à moradia, ao emprego, à educação, à saúde
pública, à participação política, enfim, em estar totalmente inserido na
sociedade.
No entanto a resistência negra pode ser evidenciada nos diferentes
contextos históricos, não só no que se refere ao período pós-emancipação,
embora seja comum pensar assim, mas também no auge do regime escravista
no Brasil, e como foi mostrado aqui, imediatamente depois do fim deste
sistema, o povo negro articulava-se em associações para cobrar aquilo que era
por direito seu.
Na mediada em que suas ideias foram se propagando pode-se perceber
a proporção que Movimento Negro vai tomando no país, como é o caso da
FNB, e mais recentemente em 1978 surgem varias outras entidades sendo o
Movimento Negro Unificado a mais importante delas, isto permite afirmar,
estando de acordo com Domingues (2007) “que o movimento negro
contemporâneo já acumula experiência de gerações, sendo herdeiro de uma
tradição de luta”.

134
A chamada Lei das Cotas (Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012) obriga as
universidades, institutos e centros federais a reservarem para candidatos cotistas metade das
vagas oferecidas anualmente em seus processos seletivos.

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E é por meio destas entidades e de suas mobilizações que a


desigualdade racial vem sido combatida no país, através de suas estratégias
que vão se renovando de acordo com cada conjuntura histórica, na luta contra
a raiz de toda intolerância, o racismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO DA SILVA, Francisco Carlos. Invenções Negras na Bahia:


Pontos para discussão sobre o racismo à brasileira. Tese de Doutorado
em Ciências Sociais com concentração na área de Antropologia, PUC-SP —
São Paulo: 2008.

__________. Nem para todos é a educação: cotas e Ações afirmativas.


Universidade e Sociedade. nº 46. p. 61-66. 2010

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos


históricos. Tempo. nº 23. p. 100-122.2007

GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937). — Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

GONZALEZ, Lélia e HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro,


Marco Zero, 1982.

LESSA, Sérgio. Cotas e o renascimento do racismo. Revista Crítica Marxista


– São Paulo. nº 24. p. 102-105. 2007

PRAXEDES, Walter Lúcio de Alencar; PRAXEDES, Rosângela Rosa.


Educando contra o preconceito e a discriminação racial. São Paulo:
Edições Loyola, 2014 .

REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1996
SCHWARCZ, L. Moritz. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e
questões Raciais no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das
Letras,1993.

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INTELECTUAIS AFROBRASILEIROS: LUIZ GAMA NA LITERATURA DO


SÉCULO XIX

MEILA OLIVEIRA SOUZA LIMA (PROGEL-UEFS)1

Durante quase todo o século XIX, o Brasil ainda adotava o


sistema escravocrata. Porém alguns negros já eram trabalhadores livres, pois
já haviam conseguido a liberdade de alguma forma. O difícil era encontrar
negros que estudassem ou soubessem ler. O acesso deles em meios brancos
era muito difícil. A sociedade da época o via apenas como escravo, máquina de
trabalho, sem inteligência, como relata Azevedo (1999, p. 54) no comentário
seguinte: “afinal, para a sociedade paulista escravocrata, lugar de negro era
trabalhando para servir aos brancos, e não se metendo a “homem de letras”“.
Apesar dessas adversidades, alguns venceram o preconceito e o
conservadorismo da época e chegaram a circular nos meios aristocráticos. Um
exemplo disso é o poeta e rábula Luiz Gama. Autor do romantismo brasileiro,
Gama se destacou pelos seus escritos e pela sua posição diante dos ricos
fazendeiros e políticos da época. Ele se destacou na sociedade paulista não só
pelos seus versos satíricos, mas também pelos seus artigos em jornais locais,
além de ser conhecido pela sua luta abolicionista, defendo o direito a liberdade
de muitos escravos nos tribunais. Azevedo (1999, p.27) explica claramente a
afirmação racial de Gama:

O poeta negro e abolicionista teria sido, na opinião de Luiz Silva, uma


exceção: um negro que propagandeou a autovalorização racial e que,
apesar do “aculturamento”, ao contrário dos outros poetas negros do
período, não caiu no cultivo da angústia.

Além da sua autoafirmação como negro, Luiz Gama, diferente dos


outros românticos, não exaltou o índio como elemento nacional. Segundo
Azevedo (1999, p. 76) “Enquanto a maioria dos escritores românticos
brasileiros buscavam no indianismo as raízes heroicas da brasilidade, Luiz
Gama elegia a África como parte da nova nacionalidade que, naquele
momento, muitos literatos estavam tematizando”.

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Faz-se necessário conhecer um pouco da vida desse intelectual


brasileiro, já que suas experiências pessoais fizeram dele um revolucionário.
Ele nasceu em Salvador em 21 de Junho de 1830. Luiz Gonzaga Pinto da
Gama, nome completo do autor, sentiu na pele o peso da escravidão. Aos dez
anos, em 10 de Novembro de 1840, foi vendido pelo pai, que era fidalgo
português e cujo nome o autor nunca revelou. Quando vendido, foi levado para
São Paulo e por lá residiu o resto da vida. Sua mãe era uma negra liberta,
oriunda da Costa da Mina, de nação Nagô, Luiza Mahin, era revolucionária,
participando de vários conflitos, como a Revolta dos Malês. Bastide (1985,
pg.104) escreve o seguinte sobre o pai de Gama:

Luiz Gama teve, indubitavelmente, um pai português que poderia tê-


lo educado, mas este não só o deixou na escravidão como ainda o
vendeu a um comerciante que, em seguida, mandaram-no da Bahia
para a província de São Paulo. Foi arrancado de sua mãe a quem
procurou tenazmente durante toda sua vida, sem jamais encontrá-la,
mas da qual guardou culto.

Foi na casa de seu senhor que Gama aprendeu a ler e escrever. Em


1848 saiu da casa de seu amo alegando ter encontrado provas de sua
condição de negro liberto e foi servir na Força Pública. Anos depois, em
contato com a biblioteca da Faculdade de Direito em São Paulo, teve contato
com os livros, passando a entender as leis brasileiras, porém não podia
frequentar o curso regularmente por não ser alfabetizado oficialmente ou por
preconceito racial. Em 1856 ele é nomeado amanuense, uma espécie de
copista ou escrevente, da Secretaria de Polícia.
Luiz Gama se destacou na sociedade paulistana por ser fiel ao
movimento abolicionista, libertando mais de quinhentos escravos. Segundo
Souza; Lima (2006, pg.78) “muitos como Luiz Gama e Cruz e Souza
enfrentaram vários preconceitos por não esconderem as suas origens”. Além
disso, ele criticou duramente a sociedade da época, os ricos, os políticos, e
seus comportamentos, sendo visto em seu poema Quem sou eu? Onde o
poeta coloca todos como bodes, não importando a cor, pois serão sempre
bodes. Suas sátiras foram lidas pelos paulistanos em diversos jornais da
época, como Polichinelo, O Diabo Coxo. Seu único livro foi Trovas Burlescas
(1859), publicado pela Tipografia Dois de Dezembro, e é recheado de críticas,

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sátiras e também algumas liras. Segundo Araújo (2011, p.478) “alternando


sátira e lirismo, as Trovas Burlescas representam perfilamento biográfico,
político, ideológico e estético de seu autor”.
Nos seus versos ele também afirma seu orgulho em ser negro, orgulho
de sua origem e de sua mãe Luiza, dedicando um poema exclusivo para ela. A
força de Luiz Gama no movimento abolicionista foi crucial, como nos diz
Souza;Lima (2006, pg.58) “entretanto, deve ser considerado que para o
sucesso do movimento abolicionista concorreram os esforços dos negros
quilombolas e de outros negros intelectuais resistentes, como o próprio Luiz
Gama e Cruz e Souza”. Anos depois, ao ser despedido do emprego de
amanuense, passa a redigir o periódico humorístico O Polichinelo, além de
passar a viver exclusivamente de sua profissão de advogado, um rábula. Sobre
as Trovas, Azevedo (1999, pg.75) afirma que:

A identidade encontrada nas Trovas, embora tenha sido em parte


elaborada nesta convivência africana, aparece em 1859 em termos
muito mais ambíguos. Se é verdade que ele criava uma identidade
indiferenciada entre os africanos, aproximando-se assim do
radicalismo daqueles que recriavam uma África no Brasil como forma
de luta, Luiz Gama dá a este impulso um sentido muito particular:
resgatando uma origem africana comum, que superava não só as
diferenças étnicas, mas também as distinções entre brancos e negros
criado pelo regime escravista.

Ele se autodenomina o “Orfeu de Carapinha”, no poema Lá vai verso,


pois ao contrário de alguns negros, ele deixou os cabelos grandes, assim como
a barba. Na opinião de Azevedo (1999, p.52),” o termo Orfeu no poema remete
a uma busca por um passado perdido. Este Orfeu seria Luiz numa busca de
recuperar um passado ao qual estava ligado pela mãe africana e pelo ambiente
em que viveu quando com ela morou. Assim, ele pretendia reviver momentos
de sua cultura materna, regatando os mitos africanos”. O Orfeu citado no verso
é de origem grega. Na mitologia, ele é um tocador de lira, o mais famoso e
talentoso de todos. Não tem poderes como os deuses ou semideuses, mas
acalma qualquer um com seu som. Talvez por isso ele adotou o termo.
O grande abolicionista e poeta Luiz Gama faleceu em 24 de Agosto de
1882, às 14 horas, em São Paulo. O comércio fechou em sua homenagem e
muitas pessoas seguiram o cortejo fúnebre. Negros se revezavam para

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carregar o caixão, pois todos queriam levar o grande homem que ajudou
muitos escravos a se libertarem. Luiz Gama muitas vezes abrigou escravos
fugidos em sua casa até conseguir um jeito de libertá-los dos seus senhores.
Por isso foi tão querido pelas classes mais humildes.

Poema “Uma Orquestra”

O poema “Uma Orquestra” (1859), de Luiz Gama, narra uma festa


muito animada, que em certa noite o eu lírico encontrou quando estava
vagando pela rua. O poema de Gama contém trinta e quatro estrofes, com
quatro versos cada uma e rima alternada. A festa negra é percebida ao longo
do poema. Porém neste trabalho serão destacadas algumas partes mais
relevantes. Para iniciar a análise desse poema, destacaremos a terceira
estrofe, onde o autor nos mostra o local da tal festa encontrada por ele. Nota-
se que a casa antiquada pode ser associada às residências dos africanos
libertos que moravam nas periferias da cidade. Essas residências eram muito
simples, devido às condições paupérrimas desses africanos livres (Freire,
1998). Segue a estrofe:

“Além, numa rua,


Em casa antiquada,
Diviso ao luar
De Euterpe morada”.

Na quinta estrofe ele começa a descrever o que vê ao olhar pela janela


da casa. Ele utiliza o termo “velho zangão” para citar o primeiro morador dessa
residência e destaca os primeiros sons encontrados na mesma, através do
instrumento rabecão. O rabecão ou rabeca é um instrumento de cordas
parecido com o violino. Além dos tambores e atabaques, os instrumentos de
corda foram introduzidos nos rituais africanos por influência portuguesa,
segundo Mattos (2012). Na cena descrita, o velho bate com força no
instrumento musical, certamente para obter um som mais vibrante, como
vemos:

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“Mas eis que diviso


Um velho zangão,
Zurzindo raivoso
No seu rabecão”.

Nas sétima e oitava estrofe o poeta descreve as ações do velho


músico e nos dá uma pista crucial de que o tal velho é negro. Vejamos essas
descrições:

Mexia-se todo,
Fazendo caretas;
As ventas fungavam
- Sonantes trombetas.

Na vasta batata,
Que tem por nariz,
Formara seu ninho
Crescida perdiz.

O eu lírico descreve nos trechos acima como o tal velho dançava,


mexendo-se todo, característico das danças africanas que são muito agitadas,
além de descrever o nariz do mesmo, sendo de “batata”, característicos dos
negros bantos trazidos para o Brasil, que além do nariz, tinham lábios grandes
e carnudos, segundo Bastide (1985).Na décima quinta estrofe temos:

“- Formosa deidade,
Galante Ciprina,
- Vestida à romana
–Trajando batina”.

A dona da casa pode ser associada à mãe de santo dos terreiros de


candomblé e a batina, que é o traje sagrado dos padres da Igreja Católica,
pode ser associado à vestimenta usada pela mãe de santo (Yalorixá). Assim
como a batina é a vestimenta padrão dos padres nas missas, a mãe de santo
também usa uma roupa que represente a sua autoridade dentro do terreiro. Na
décima sétima estrofe mais uma personagem entra em cena, a filha. Ela pode
ser associada a uma filha de santo, ou seja, pessoa que foi iniciada no
candomblé e passa a exercer certas obrigações dentro do ritual. No poema, ela

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também participa da orquestra tocando um instrumento musical, sendo


essencial para o ritual. Vejamos a estrofe a seguir:
A filha mais velha
Do tal Corifeu,
Que em flauta dum tubo
Tem fama d’Orfeu.

Na estrofe seguinte, o autor descreve a suavidade (melíflua) que a filha


do Corifeu toca seu instrumento, com harmonia. Vejamos:

Melíflua tocava
No seu canudinho,
A menos prelúdios,
Lundu miudinho.

O autor também mostra qual a dança dos personagens, o Lundu, que


também é conhecida por calundu, dançada pelos negros. Na estrofe seguinte,
vejamos: “Nos pratos batia,/Malhava o zabumba,/Num moto continuo/De
bumba- catumba!”. As palavras são destacadas pelo próprio autor, na certa
indicando pistas ao leitor sobre a festa. Bumba catumba representa a
sonoridade dos ritmos musicais descritos pelo eu lírico. Mas adiante, o tal velho
com “voz de soprano”, como escreve o autor, começa a proferir certas
palavras, com muita alegria e euforia. E na estrofe seguinte ele descreve a
alegria e emoção presente nessa festa, característica dos rituais africanos, que
são envolventes, regados a muita música e danças agitadas, além das
cantorias. Vejamos:

No meio da bulha,
Que os ares feria,
O velho, de gosto,
Contente sorria.

Nas estrofes que se seguem, o autor cita o nome de diversos músicos


internacionais famosos, cita o nome de nações europeias, dizendo que por
mais famosos que sejam esses músicos e quão prestigiados são esses países,
nenhum deles é tão imponente, alegre e melhor que a orquestra do tal velho.
Sendo, assim, infere-se que o autor exalta sua origem africana, e não importa
se as outras têm mais prestigio, ele quer mostrar que a sua tem um valor

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inestimável, e que para ele, é a mais importante. Vejamos a vigésima sexta


estrofe: “ – Maestros famosos/“Da Grécia não temo,/“ Nem Chinas ou
Persas/“Da raça do demo”. Ele afirma que mesmo essas civilizações famosas
nas artes se surpreenderiam com o som dessa festa, tão rica em sons e
danças. Após algumas estrofes, o velho volta a desafiar outros artistas e
países. Vejamos a seguir em uma das ultimas estrofes do poema:

“Oh vinde Maestros


“Da Itália e da França,
“De passo ligeiro
“Dançar contradança!

“Oh vinde Arintino,


“Mozart e Rossini,
“Deixando a rabeca
“Também Paganini.

“Que todos patetas


“Aqui ficarão,
“Ao som retumbante
“Do meu rabecão!
Considerações Finais

Percebemos então, que Luiz Gama é importantíssimo para a difusão e


afirmação da cultura afrobrasileira. Ele mostra em sua obra poética o quanto
ele se orgulha de suas origens e que não se amedronta diante dos poderosos
da época, influenciando outros negros a não terem medo de se mostrarem.
Assim, o autor contempla a sua cultura afrodescendente em relação à
cultura europeia, a cultura de prestígio, disseminada por todo o mundo através
dos colonizadores. Luiz Gama em toda sua obra, no único livro ou nos jornais,
além das críticas sociais e políticas, enaltece os rituais de origem africana, a
cultura de sua mãe, em que mesmo ele circulando nos meios brancos e
fidalgos não renegou, não substituiu pela cultura hegemônica. Ao contrário, ele
sempre se afirmou como negro, como ele mesmo se denomina um “Orfeu de
Carapinha”. Num tempo em que os negros mestiços faziam de tudo para
parecerem com os brancos, utilizando produtos nos cabelos para alisar, tirar o
aspecto crespo ou ainda mantendo-os cortado, assim como a barba sempre
bem feita, Gama simplesmente assumiu sua carapinha.

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REFERÊNCIAS:

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http://www.quilombhoje2.com.br/trovasluisgama.pdf>.Acesso em 20 de Julho de 2014.
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http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/96/textosselecionadosatualizado.pdf
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O TEXTO LITERÁRIO AFRO-BRASILEIRO NO ENSINO FUNDAMENTAL:


UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICACOM A OBRA
QUARTO DE DESPEJO, DE CAROLINA MARIA DE JESUS

MILENA PAIXÃO DA SILVA 135

INTRODUÇÃO

Escolho o PROFLETRAS porque quero encontrar algumas respostas


e,atendendo a dinâmica que a própria pesquisa requer, procuro por novas
perguntas que me possibilitem repensar minha prática e a realidade dos meus
alunos. Acredito que, na maioria das vezes, nos apoderamos das palavras
pintadas em folhas da literatura para melhor enxergarmos a nós e ao nosso
próximo, por isso creio que o texto literário pode suscitar no sujeito o
conhecimento de si a compreensão da sua realidade para que então ela possa
vir a ser transformada.
1 TEMA

Estudo do texto literário afro-brasileiro e autobiográfico, Quarto de


Despejo, da escritora Carolina Maria de Jesus, como resultado de uma
experiência vivida, em que a voz negra autoral aponta para a relevância da
leitura e da escrita e discute o cotidiano de muitos sujeitos contemporâneos
exclusos do processo da formação nacional brasileira.
2 SÉRIE

A proposta apresentada destina-se ao trabalho com o texto literário no 9°


ano do ensino fundamental.

3 PROBLEMA

O texto literário consegue possibilitar ao sujeito, dentre outras coisas,


conhecer-se e estabelecer vínculos com o seu próximo e com sua comunidade.
Sendo plural, ele contribui para a compreensão do mundo e de si, pois marca a
inter-relação entre diversos códigos, inclusive, identitário. Entretanto, por muito
tempo os textos literários que circularam na escola possuíram uma cor
predominante e um conveniente silenciamento das questões etnicorraciais.

135
Mestranda do Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS.

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Manter essas questões negligenciadas não resolve conflitos, ao


contrário, os potencializam. Para transformar essa realidade, a escola não
pode silenciar-se. Ela precisa discutir sobre a formação identitária e as relações
etnicorraciais, o que está hoje garantido pelos dispositivos pedagógicos e
legais. Para isso é necessário introduzir elementos que possibilitem ao sujeito
repensar o posicionamento sobre si mesmo e sua relação com o outro e com a
comunidade.
Compreender a leitura do texto literário como interação em práticas
sociais, é lançar ao leitor, entendido como sujeito ativo, provocações e desafios
para possibilitar uma aprendizagem significativa, e o estudo da literatura afro-
brasileira pode permitir um despertar desse sujeito. Dessa forma, a escola não
pode manter-se indiferente a essas demandas, sendo essencial o
comprometimento na abordagem de questões sobre identidades e sobre as
relações que delas nascem.
4 JUSTIFICATIVA

O inciso segundo do artigo primeiro da Lei 10.639/2003 postula que os


conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira devem ser ministrados,
em especial, nas áreas de educação artística, literatura e história brasileira. Já,
conforme o Parecer CNE/CP 003 de 2004, o sucesso das políticas públicas de
Estado depende também da reeducação das relações entre negros e brancos,
o que é esclarecido no próprio texto como relações etnicorraciais. Esses
dispositivos legais atestam a necessidade de uma pedagogia comprometida
em explorar questionamentos sobre identidades e relações harmônicas entre
diferentes raças e etnias.
Assim como versa a legislação, o texto literário é uma ferramenta
importante para essa tarefa certamente porque proporciona, dentre outros,
autoconhecimento e descoberta. Sendo fruto da vivência empírica em
sociedade, os discursos literários chegam mais facilmente às pessoas que
encontram nos textos tanto o que lhes é semelhante quanto diferente. Nesse
sentido, o estudo dos discursos literários referente à formação e relações
identitárias pode contribuir para o despertar do sujeito e para uma melhor
aprendizagem.

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Propõem-se, dessa forma, o estudo da obra Quarto de Despejo, texto


literário afro-brasileiro de uma escritora autêntica e singular em que pertinentes
abordagens sobre a temática etnicorracial são possíveis a partir do
entendimento da formação identitária do sujeito.

5 OBJETIVO GERAL
Refletir sobre as relações etnicorraciais construídas pela
formação identitária assim como a relevância da leitura e da escrita para os
sujeitos por meio do estudo do texto literário afro-brasileiro Quarto de Despejo
de Carolina Maria de Jesus promovendo discussões, análises e ações que
colaborem para o repensar dessa realidade hoje.

6 OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Introduzir a discussão das relações etnicorraciais na escola, com base
na recomendação da Lei 10.639/2003;
• Sensibilizar os sujeitos educacionais para a importância do
conhecimento, reflexão e discussão da literatura afro-brasileira e da
temática por ela abordada;
• Conhecer o texto literário afro-brasileiro Quarto de Despejo, assim como
a biografia da autora e o contexto social, histórico e político de produção
da obra;
• Analisar criticamente elementos referentes à formação identitária e às
relações etnicorraciais por meio da leitura e discussão do texto indicado;
• Realizar atividades de leitura e interpretação do texto que discuta a
periferia como lugar significativo de produção artística e literária
promovendo ações na escola que contribuam para o reconhecimento
das potencialidades do sujeito e para o fortalecimento da autoestima da
identidade afro-brasileira;
• Relacionar a linguagem da obra com o contexto histórico-social da
autora para desfazer possíveis impressões preconceituosas em relação
à escrita singular da escritora;

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• Repensar o estigma de que muitos sujeitos são intelectualmente


improdutivos por meio dos significados interpretados através da voz
autoral negra e periférica evocada no texto;
• Conhecer as especificidades do gênero textual diário para auxiliar na
compreensão da obra autobiográfica;
• Produzir diário que relate as impressões e aprendizagens construídas
durante a intervenção para o exercício da autoria pelos sujeitos
educacionais.

7 APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA
A inversão de valores vivida na contemporaneidade é um desafio não só
para a família e a sociedade, mas também para a escola. O mundo pervertido
das múltiplas violências e intolerâncias está muito próximo, seduzindo e
atraindo, inclusive por meio dos veículos midiáticos, aqueles que ainda estão
em processo de formação. Transformar essa realidade é um processo
complexo e lento, mas que precisa acontecer. A escola tem o desafio então de
promover discussões e ações que possam ajudar no enfrentamento esse
desafio.
Receitas não há, mas conhecer-se e estar consciente de sua função
dentro da comunidade a que pertence é importante para a vida de todo ser
humano e fundamental para uma convivência harmônica em sociedade. E o
texto literário mostra-se uma ferramenta extraordinária para o conhecimento já
que por meio dele é possível travar confrontos entre realidades diferentes e
questionar poderes, discursos e representações.
Por isso, se o texto literário for também escolar, ele precisa estar
integrado em uma prática comprometida em promover esse conhecimento de
si, do outro e do mundo. O texto escolhido é autobiográfico, representa uma
escrita pessoal, transformada em diário, cuja voz autoral é negra e periférica e
aponta para a relevância da leitura e da escrita e para negligência de
demandas sociais que refletem no processo de formação identitária dos
sujeitos e de suas relações.
Os textos que circulam na escola precisam ter significado não para o
currículo, mas para o sujeito. Seria então pertinente apresentar para uma

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comunidade escolar composta majoritariamente de negros e afrodescendentes


e moradores de áreas afastadas do centro uma obra literária que permita a
visualização de semelhanças entre os cotidianos entrelaçados do
autor/obra/leitor, mas que também permita questionar os significados das
diferenças. Diferenças que transformaram uma mulher negra, semianalfabeta e
favelada em escritora e que, compreendidas, podem ajudar a transformar
sujeitos educacionais em autores competentes de textos e de suas próprias
histórias.

8 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O texto literário é uma das formas que permite ao indivíduo conhecer a


si e a sua realidade. Propicia a ele o poder de ressignificar o tempo, o espaço e
as ações, pois, de posse do texto, o sujeito é convidado a libertar-se das
amarras do cotidiano, refletindo sobre o real, vivendo a experiência de ver a si
próprio pelos olhos do outro e a sua terra pelas viagens ao mundo.
Muitos são os teóricos que buscam o entendimento de conceitos e
funções do texto literário. Bloom, por exemplo, enfatiza que “[...] sem dúvida, o
prazer da leitura é pessoal e não social” (BLOOM, 2001, p. 18). O autor rejeita
que a motivação da leitura parta do social e, certamente, do pedagógico. Para
ele a leitura tem caráter solitário e motivação pessoal de descoberta e deleite.
Enquanto crítico literário entende-se que a leitura abordada por Bloom é,
sobretudo, a do texto literário. Todavia, limitar a leitura literária à motivação
pessoal com finalidade exclusiva de deleite, esquivando-se de interesses
sociais ou pedagógicos parece uma concepção demasiadamente fechada para
um “objeto” tão amplo.
Já para Compagnon “[...] o termo literatura tem, pois, uma extensão mais
ou menos vasta, dos clássicos escolares à história em quadrinhos, é difícil
justificar sua ampliação contemporânea”(COMPAGNON, 2014, p.34). Sobre a
função da literatura, o autor prossegue afirmando que “[...] do ponto de vista da
função, chega-se também a uma aporia: a literatura pode estar de acordo com
a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas
também precedê-lo” (COMPAGNON, 2014, p.37).

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Percebe-se, então, que já em seus conceitos basilares a literatura é


extraordinariamente complexa. A diversidade de concepções ancoradas em
variados pontos de vista permite que cada texto literário também apresente
complexidades de acordo com os possíveis significados que lhe sejam
atribuídos em determinado contexto histórico e social. Mas o que é inegável é o
poder que a palavra inscrita em um texto literário pode ter.
Sobre esse poder da palavra Gnerre (2009) assegura que as pessoas
falam não apenas para serem ouvidas, muitas vezes é para serem respeitadas,
exercendo influência no ambiente em que realizam os atos linguísticos.
Entretanto, não se pode ignorar que essa mesma palavra também pode servir
de ferramenta de dominação se o sujeito não posicionar-se de forma
consciente.
Uma prática pedagógica que não aborde efetivamente discussões
diversas de sentido, poder e consciência não permitirá que o sujeito faça
reflexões sobre sua realidade para compreendê-la e, se achar necessário,
contribuir para sua mudança. Por isso dentro da escola a palavra não deveria
silenciar e sim potencializar-se.
Ao silenciar a palavra contida justamente em um texto literário, a escola
perde a oportunidade de utilizar-se dela não apenas como cumprimento de
carga horária curricular, mas como ferramenta de empoderamento do sujeito.
Nesse sentido, Cândido assegura que:
A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.
Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a
literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos
movimentos de negação do estado de coisas predominante.
(CÂNDIDO, 2004, p. 175)

Enquanto instrumento de empoderamento, o texto literário possibilita


diversas reflexões e discussões, dentre elas certamenteas sobre identidade e
relações etnicorraciais. A abordagem dessas temáticas na escola é garantida
por dispositivos legais, que orientam a promoção de uma pedagogia que
valorize a diversidade brasileira.
O Parecer CNE/CP 003/2004 do Ministério da Educação postula que um
dos princípios que deve orientar o fortalecimento de identidades e de direitos é
o de ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação e sobre

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a recriação das identidades, provocadas por relações etnicorraciais. Em um


país de raças e etnias múltiplas, as estratégias de ensino não podem
negligenciar a temática identitária e das relações construídas por ela.
Para Hall o conceito de identidade é demasiadamente complexo. Essa
concepção aborda as faces internas e externas do sujeito. Interessa, nessa
pesquisa, a face externa que projeta o sujeito em suas identidades culturais,
“[...] aqueles aspectos de nossas identidades que surgem do nosso
‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas, e, acima de
tudo, nacionais” (HALL, 2014, p. 9, grifo do autor). Já Castells afirma que, do
ponto de vista sociológico, toda identidade é construída e diz entender por
identidade “o processo de construção de significado com base em um atributo
cultural ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados [...]”
(CASTELLS,1999, p. 22).
Ao abordar identidades e relações etnicorraciais, é imprescindível trazer
à discussão autores como Fanon que esclarece que “Serão desalienados
pretos e brancos que se recusarão enclausurar-se na Torre substancializada
do Passado. Por outro lado, para muitos outros pretos, a desalienação nascerá
da recusa em aceitar a atualidade como definitiva” (FANON, 2008, p. 187).
Assim, para desalienar é preciso que o sujeito repense e discuta sua realidade
tendo a escola função importante nesse processo. Silva chama atenção
justamente para o aspecto pedagógico da temática:

É um problema pedagógico e curricular não apenas porque as


crianças e os jovens, em uma sociedade atravessada pela diferença,
forçosamente interagem com o outro no próprio espaço da escola,
mas também porque a questão do outro e da diferença não pode
deixar de ser matéria de preocupação pedagógica e curricular.
(SILVA, 2014, p.97)

Se as identidades são construídas, o fortalecimento delas assim como


das relações que elas geram também devem estar em constante processo de
construção. Sendo assim, a escola precisa criar condições para que os sujeitos
educacionais compreendam esses aspectos propiciando autoconhecimento e
valorização. Nesse sentido, Souza enfatiza que “O modo como o indivíduo vê e
acredita ser visto e o fato de os grupos se reconhecerem, ou não, nas imagens
identitárias que lhes são atribuídas será decisivo para delinear a configuração

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das suas reivindicações e os papéis sociais que irão requerer para si” (SOUZA,
2005, p.54).
Para que, então, a configuração dessas reivindicações ocorra são
necessárias ações pedagógicas que discutam o processo identitário e
etnicorracial da sociedade brasileira e a inserção do sujeito no mundo das
letras. Nesse sentido, é pertinente o questionamento dessa temática por meio
de uma formação literária baseada em um texto que conta, através de uma voz
autoral negra, o cotidiano de sujeitos considerados, do ponto de vista
intelectual, desprovidos de potencialidades. É nessa perspectiva que se dá a
escolha do texto literário afro-brasileiro, Quarto de Despejo, de Carolina Maria
de Jesus para que as representações construídas no texto colaborem com a
trajetória dos sujeitos enquanto leitores e autores das suas próprias histórias.
Duarte esclarece que “[...] a literatura afro-brasileira se afirma como
expressão de um lugar discursivo construído pela visão de mundo
historicamente identificada à trajetória vivida entre nós por africanos
escravizados e seus descendentes [...]” (DUARTE, 2014, p.11). Se esse lugar
discursivo não for repensado dentro da instituição que visa à formação
igualitária do sujeito é do lado de fora de seus muros que os conflitos se
intensificarão.
É proposto então, que essa abordagem possa ser desenvolvida na sala
de aula como uma forma de intervenção significativa para os sujeitos
educacionais. Espera-se que o texto literário, com essas características,
possibilite o encontro entre o semelhante e o diferente, e que esses encontros
desemboquem em uma aprendizagem também significativa.

9 DESCRIÇÃO
Por meio do estudo da obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de
Jesus, essa proposta de intervenção visa promover questionamentos
referentes à relevância da leitura e da escrita, à formação identitária e às
tensões provocadas pelas ralações etnicorraciais, assim como realizar ações
que suscitem nos sujeitos educacionais a valorização da autoestima das
identidades afro-brasileiras e periféricas.

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A obra selecionada apresenta-se em formato de diário, esse gênero


então será estudado para propiciar elementos de compreensão da obra e
estimular a produção textual. Será distribuído a cada participante do projeto um
diário previamente providenciado para registro periódico das impressões e
aprendizagens construídas ao longo do processo. De acordo com a dinâmica
das atividades propostas em cada etapa será solicitado o registro ora durante o
tempo pedagógico ora como tarefa de casa.
Inúmeros relatos datados constituem a obra indicada e para atender ao
objetivo desse projeto é proposto reorganizar a sequência cronológica dos
relatos para agrupá-los por subtemas selecionados e que passeiam por toda
obra, visando assim, dar conta da leitura do texto preferencialmente durante o
tempo pedagógico. Os subtemas do recorte desse projeto são: “Conhecendo a
Obra”, “Consciência de Sujeito”, “Relevância da Leitura e da Escrita”,
“Cotidianos”, “Relações Etnicorraciais” e “Valorização e Cidadania”.
Planeja-se a formação de pequenos grupos para a leitura dos trechos
pré-selecionados dos subtemas abordados em cada etapa e discussão das
impressões geradas. As leituras dos demais relatos da obra serão sugeridas
como atividade extraclasse e abordadas em conversas informais nos encontros
subsequentes.
Para que o professor possa ler e fazer considerações dos relatos
produzidos pelos alunos, a estratégia é o recolhimento dos diários quando a
tarefa extraclasse for a leitura de relatos da obra. Essa estratégia
propositadamente produz um rodízio entre leitura e produção das atividades
não realizadas em sala. Como as produções precisam ser valorizadas e
compartilhadas, em algumas etapas acontecerão a troca e a leitura dos relatos
entre os colegas ou o professor selecionará uma para ler para classe.
Essa proposta sugere a seguinte sequência estrutural: primeiro a
avaliação diagnóstica; em seguida a apresentação da obra; constatando que a
obra é um diário, estudo desse gênero textual para subsidiar o início dos
registros nos diários pessoais; compreendendo que o diário é um gênero
autobiográfico, conhecer a autora; sabendo sobre ela, discutir a realidade das
zonas periféricas dos espaços urbanos; percebendo com o estudo da obra que
as diversidades sociais necessariamente não impedem as escolhas dos papeis

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sociais do sujeito e que o apoderamento da palavra pela autora foi fundamental


para o seu contexto, refletir a relevância da leitura e da escrita; como a palavra
contida no texto pode permitir o entendimento do processo identitário e das
relações etnicorraciais, discutir essa temática; e, por fim, pensar nas
transformações que essa cadeia de discussões pode provocar nos sujeitos.
A avaliação acontecerá durante todo o processo e será ancorada na
participação das atividades propostas e na capacidade dos sujeitos em
produzirem textos voltados para suas realidades como caráter de narrativa
pessoal e organizado através de datas, conforme requer um diário. Por isso a
necessidade de estudar, logo nas primeiras etapas do projeto, o gênero em
qual serão produzidos os textos.
Para custos financeiros conta-se com parcerias, as principais delas
representadas pela CAPES por meio da bolsa ofertada e pelos recursos
disponíveis na escola acolhedora desse projeto que consta de 11 etapas.

10 RESULTADOS ESPERADOS

Em um trabalho que visa ao questionamento da temática etnicorracial


explorada em textos literários é esperado que ao final do processo a visão do
sujeito sobre si mesmo, o outro e sua comunidade esteja mais amadurecida.
Que ele compreenda a importância da literatura afro-brasileira, sobretudo da
obra abordada, e que possa perceber o fundamento do texto literário como
instrumento de empoderamento de consciência transformadora.
Que preconceitos sejam vencidos e que relatos da autora, dos
entrevistados e dos próprios alunos ampliem conhecimentos. Espera-se
também que as ações promovidas possam contribuir para o fortalecimento da
autoestima e que as discussões realizadas possibilitem uma aprendizagem
significativa tanto da temática como dos conteúdos abordados.
Espera-se por fim que essa intervenção permita o repensar da condição
de sujeito intelectualmente produtivo e do cotidiano das classes sociais menos
favorecidas não apenas para os sujeitos educacionais envolvidos diretamente
no projeto, mas para toda comunidade escolar.

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REFERÊNCIAS

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trazida à Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei
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REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NO PROJETO MUSICAL


DO DISCO BRASILEIRINHO DE MARIA BETHÂNIA

LUCIVAL FRAGA DOS SANTOS 136

RESUMO

A identidade nacional não existe de modo objetivo, mas enquanto uma


idealização representacional, portanto, por sua natureza político-cultural está
em constante construção. Neste sentido, o presente estudo analisa a
representação da identidade nacional no projeto musical do disco Brasileirinho
(2003) de Maria Bethânia a partir das canções e textos poéticos que compõe o
álbum, buscando estabelecer conexões teóricas no contexto da música popular
e da literatura no século XX, mas precisamente do movimento literário
modernista, observando as formas como estas se articulam para a construção
do “ser brasileiro” na concepção da artista.

Palavras-chave: Música. Literatura. Representação. Identidade Nacional.

INTRODUÇÃO

Notadamente os estudos que dialogam a interface entre música 137 e


literatura têm sido cada vez mais recorrentes no Brasil nas últimas décadas,
sobretudo, no que diz respeito às reflexões sobre as expressões poéticas da
música popular. Entretanto, este não constitui o objetivo deste estudo, nosso
objetivo é analisar de que forma a associação entre as canções e os textos
poéticos selecionados pela interprete Maria Bethânia para compor o disco
Brasileirinho lançado em 2003, fundamentam (ou não) a(s) nacionalidade(s)
brasileira(s). Assim, busca-se durante o estudo problematizar a seguinte
questão: que tipo de nacionalidade Maria Bethânia idealiza e busca “legitimar”
em seu disco?

136
Mestrando do Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos da Universidade
Federal da Bahia. Monitor e pesquisador no Museu Afro-Brasileiro/UFBA. E-mail:
lucivalfraga@hotmail.com
137
Aqui música não é entendida apenas a partir de seus elementos estéticos, mas, em primeiro
lugar, como uma forma de comunicação que possui semelhante a qualquer tipo de linguagem,
seus próprios códigos [...] é manifestação de crenças, de identidades [...] Ao mesmo tempo é
singular e de difícil tradução, quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural.
(PINTO, 2001, p. 3).

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Partimos do pressuposto que a identidade nacional não existe de modo


objetivo, mas enquanto uma idealização representacional, portanto, por sua
natureza político-cultural está em constante construção. Desse modo, é preciso
reconhecê-la como algo estratégico em cada contexto histórico, uma vez que
os símbolos nacionais eleitos para representação da nação não são únicos,
tampouco estáveis, pelo contrário, trata-se de um processo dinâmico, plural e
complexo, no qual os elementos representados são selecionados a partir de
políticas de memória que deem sustentação ao discurso nacional. Nessa
perspectiva, nos interessa explorar os elementos de representação que dão
sentido a nação, bem como problematizar o discurso nacional a partir dos
símbolos presentes nas canções e textos poéticos, observando o contexto
histórico-literário em que foram escritos e o momento histórico em que o disco
foi lançado.
Estruturalmente, iniciamos o texto com uma breve contextualização da
relação entre a poesia e o cancioneiro popular na trajetória da intérprete Maria
Bethânia, seguido da descrição do disco e análise do discurso nacional
presente nas canções e nos textos poéticos, articulando a problematização das
narrativas e/ou discursos com a discussão teórica ponderando as relações
entre nação, memória e reconstituição do passado no disco em estudo.
Em 1965, aos 19 anos a artista ganha visibilidade nacional, quando a
convite de Nara Leão, Bethânia embarca para o Rio de Janeiro e a substitui
numa peça de música teatralizada. Na peça Opinião ao lado de Zé Kéti e João
do Vale, com direção musical de Dourival Caymmi e Augusto Boal, canta e
dramatiza a música Carcará de João do Vale. No mesmo ano, estreia em disco
lançado pela RCA, intitulado Maria Bethânia.
No contexto performático a associação de canções com textos poéticos,
marco da estreia de Maria Bethânia no palco se tornou a principal característica
e diferencial da artista ao longo dos seus 50 anos de carreira. No show a
poesia verte-se em voz e ganha um roteiro dramatúrgico numa performance
teatral que “valoriza a potência acústica da palavra (pela voz) em consonância
com outros signos cênicos como o gesto, a cenografia, o figurino, a iluminação,
a música – elementos que ressignificam o próprio texto” (JUNIOR, 2012, p.64).
No palco as interpretações da poesia cria um contexto de dramaticidade dando

681
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

significação a partir da relação entre som, imagem e movimento que extrapola


os limites da mensagem transmitida, algo que não poderia ser apreendido no
texto escrito.
No final dos anos 1990 e durante a primeira década do século XXI,
muitos intelectuais brasileiros buscaram narrar a história do Brasil utilizando as
diversas linguagens, especialmente a literatura e a música para representar a
identidade nacional e homenagear os 500 anos do país, comemorado nos anos
2000. Neste contexto, em 2003 Maria Bethânia lança o disco Brasileirinho, 39º
de sua carreira, o qual nos provoca a fazer questionamentos, tais como a
questão feita por Achugar (2006) por que insistir em meados de 2003, na
investigação de imaginários, escritas, festas, vozes, heróis e datas dos
Estados-nação que começaram a surgir no hemisfério americano a partir do fim
do século XVIII? O que motiva a artista a construir uma identidade idealizada
do ser brasileiro? As questões são provocações, não é nossa pretensão
respondê-las, mas compartilhar nossas reflexões.
O referido disco é composto por 12 faixas, entre músicas inéditas e
gravadas em discos anteriores, integrando textos poéticos de Mário de
Andrade, Vinicius de Moraes e João Guimarães Rosa, poetas modernistas.
A artista conta com a participação das cantoras Nana Caymmi e Miúcha, da
atriz Denise Stoklos e do poeta Ferreira Gullar (recitação gravada do poema
Descobrimento), além da participação dos grupos Tira Poeira 138 e Uakti 139.
Vejamos na tabela abaixo como o álbum está organizado:

Faix Música Compositor/poeta


a
Poema Descobrimento Mário de Andrade
1 Salve as folhas Gerônimo e Ildásio Tavares
2 Yáyá Massemba Roberto Mendes e Capinan
3 Capitão Do Mato Paulo César Pinheiro e Vicente
Barreto
Cabocla Jurema Tradicional/Adpt. Rosinha de
4 Valença
Ponto De Janaína (participação Miúcha) Tradicional
5 Poema O poeta come amendoim Mário De Andrade

138
O Tira Poeira é um quinteto formado por Henry Lentino (bandolim), Caio Márcio (violão),
Samuel de Oliveira (saxofone), Fábio Nin (violão 7 cordas) e Sérgio Krakowski (pandeiro). Para
saber mais acesse o endereço eletrônico <http://tirapoeira.tnb.art.br/>
139
É formado pelos músicos Paulo Sergio dos Santos, Artur Andrés Ribeiro, Décio de Souza
Ramos e Marcos Antônio Guimarães. Para saber mais acesse o endereço eletrônico <
http://www.uakti.com.br/>

682
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Santo Antônio (com Denise Stocklos) J. Velloso


6 Padroeiro Do Brasil (com Tira Poeira) Ari Monteiro e Irany de Oliveira
7 São João, Xangô Menino Caetano Veloso e Gilberto Gil
Ponto De Xangô Tradicional com Adpt. Ely Camargo
8 Texto Felicidade se acha é em horinhas de João Guimarães Rosa
descuido
Cigarro de Palha/ Boiadeiro Klécius Caldas e Armando
Cavalcanti
9 Sussuarana (participação de Nana Caymmi) Hekel Tavares e Luis Peixoto
10 Senhor Da Floresta René Bittencourt e Augusto
Calheiros
11 Texto Quem Castiga nem é Deus é os Avessos João Guimarães Rosa
Purificar o Subaé /Cantiga para Janaina Caetano Velloso/Tradicional
12 Texto Pátria Minha Vinicius de Moraes
Melodia Sentimental Villa Lobos e Dora Vasconcelos
Fonte: <http://www.cantorasdobrasil.com.br/cantoras/maria_bethania.htm

Quadro teórico de análise

Segundo Renato Forin Junior (2012) o Modernismo Brasileiro,


principalmente a partir da Semana de 22, assume definitivamente o ofício de
formalizar a relação entre música, poesia cantada e literatura. As evidências
desta iniciativa no trabalho de Maria Bethânia estão na escolha dos poetas e
romancistas Mário de Andrade, João Guimarães Rosa e Vinícius de Moraes,
consagrados no cânone da literatura brasileira, sobretudo, no que se refere às
narrativas do projeto de construção da identidade nacional.
Notamos que o álbum constitui uma narrativa que articula a cronologia
da historiografia literária do Modernismo (1ª a 3ª fase), com o contexto político-
cultural do Brasil. De tal modo, a partir da década de 1920 os intelectuais
modernistas impulsionados pelo desejo de construir uma literatura brasileira
que rompesse com as tradições europeias, influenciados por uma nova
concepção de nacionalidade, na qual a Literatura passa a repensar o que é ser
brasileiro (a), introduzindo novos modelos estéticos, adequando-os à estrutura política,
econômica e social do Brasil. De tal modo, tinha como proposta desconstruir o
discurso de identidade nacional do século XIX, agregando a narrativa literária à
realidade brasileira.
Nos textos Descobrimento e O poeta come amendoim de Mário de
Andrade observamos que há preocupação e/ou desejo de construir uma
poética que dialogue com a realidade brasileira, bem como de uma
reformulação de valores estéticos. Vejamos abaixo os textos supracitados:

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Descobrimento O poeta come amendoim


[...] Brasil amado não porque seja minha
[...] Não vê que me lembrei que lá no Norte, pátria,
meu Deus! Muito longe de mim Pátria é acaso de migrações e do pão nosso
Na escuridão ativa da noite que caiu onde Deus der...
Um homem pálido magro de cabelo Brasil que eu amo porque é o ritmo no meu
escorrendo nos olhos, depois de fazer uma braço aventuroso,
pele com a borracha do dia, O gosto dos meus descansos,
Faz pouco se deitou, está dormindo. O balanço das minhas cantigas amores e
Esse homem é brasileiro que nem eu. danças.
Brasil que eu sou porque é a minha expressão
muito engraçada,
Porque é o meu sentimento pachorrento,
Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de
comer e de dormir.

No poema O Descobrimento, Mario de Andrade descreve o espanto ao


“despertar” para existência de um brasileiro diferente de si, um seringueiro
(supostamente indígena) que vivia em condições distintas, não apenas
geográfica, mas sociocultural e economicamente. O seringueiro é o símbolo de
representação da diversidade nacional, em outras palavras, o autor desloca
seu olhar do centro das capitais para outras regiões do país, mostrando que
existem outros “brasis”. Entretanto, explicita aspectos da vida do índio comum
ao contexto histórico do qual faz parte, afastando-se da concepção indianista
dos romancistas do século XIX, no qual o índio não é “primitivo”, mas gentil,
embrionário que tem lugar privilegiado enquanto “fundador” da brasilidade.
Em O poeta come amendoim também se pode perceber um “despertar”
do autor para o contexto da realidade política do país, representadas no texto
pela migração, o amor à pátria, o lado aventuroso/extrovertido do brasileiro, a
dança, a música. Mário de Andrade descreve particularidades que na sua ótica
definem o “ser brasileiro (a)”, construindo um novo discurso: o da pluralidade
cultural do país, a partir de seus estudos sobre o folclore nas regiões
brasileiras. Seria esse discurso do “despertar” uma tomada de consciência
crítica da brasilidade fruto da experiência do poeta na sua relação com o
passado e um rompimento com a tradição literária? Seria um desejo do poeta
construir uma identidade nacional plural que resgate do esquecimento os
sujeitos excluídos pela literatura?
Ao associar o poema O descobrimento com a canção Salve as Folhas,
composição de Gerônimo e Ildásio Tavares acreditamos que Maria Bethânia

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também chama atenção para o “despertar” de um passado esquecido ou


silenciado pela memória coletiva: a sabedoria ancestral e o poder de cura das
folhas, utilizada desde os primórdios pelos ancestrais indígenas, ampliada com
a chegada dos africanos escravizados em solo brasileiro. Na canção a
saudação a orixá Euá (Euê), identifica a religião de matriz africana como
símbolo nacional, divergindo dos poemas que tem o índio (na década de 20) e
a música (samba) na década de 30, como símbolos nacionais, os quais embora
sejam elementos diferentes ocupam o lugar comum no processo de idealização
e desenvolvimento da identidade nacional.
Segundo Stella Bresciani (2001) esse lugar comum atua como ideia
sedutora e excludente de outras possibilidades de interpretação do processo
de construção da identidade nacional. Portanto, é preciso estar atendo ao lugar
de fala, pois no processo de construção da narrativa as memórias são
selecionadas e/ou silenciadas, uma vez que “o espaço da memória é, então um
espaço de luta política [...] é uma oposição entre diferentes memórias rivais
(cada uma delas com seus próprios esquecimentos). É na verdade memória
contra memória (JELIN, apud ACHUGAR, 2006, p.224)”.
Seguindo a análise dos textos literários conforme a organização do
disco, tomamos como objeto os textos de João Guimarães Rosa e as canções
de autoria de Klécius Caldas/ Armando Cavalcanti e Caetano Veloso:

Texto Poético Canção

Cigarro de Palha

Meu cigarro de palha,


Meu cavalo ligeiro,
Felicidade se acha é em horinhas de Minha rede de malha,
descuido. Meu cachorro trigueiro.
Quando a manhã vai clareando,
Deixo a rede a balançar,
No meu cavalo vou montando,
Deixo o cão a vigiar [...]

Boiadeiro

Vai boiadeiro que a noite já vem


Guarda o teu gado e vai pra junto do teu bem
De manhazinha quando eu sigo pela estrada
Minha boiada pra invernada eu vou levar
São dez cabeça é muito pouco é quase nada
mas não tem outras mais bonitas no lugar [...]

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Purificar o Subaé

Purificar o Subaé
Mandar os malditos embora
Dona d'água doce quem é?
Dourada rainha senhora
Qualquer amor já é um pouquinho de Amparo do Sergimirim
saúde, um descanso na loucura. Rosário dos filtros da aquária
Dos rios que deságuam em mim
Nascente primária
Os riscos que corre essa gente morena
O horror de um progresso vazio
Matando os mariscos e os peixes do rio
Enchendo o meu canto
De raiva e de pena

Na associação do texto Felicidade se acha é em horinhas de descuido


com as canções Cigarro de palha e Boiadeiro a artista utiliza a poesia de
Guimarães Rosa para criação de uma imagem simbólica do vaqueiro sertanejo
como escopo na formação da identidade nacional, fundamentando o discurso
da pluralidade brasileira analisado anteriormente na poesia de Mario de
Andrade. A artista articula o segundo texto poético com a canção Purificar o
Subaé construindo uma narrativa literária de cunho social que denuncia os
riscos ao qual a população negra é exposta cotidianamente, evidenciando os
conflitos existentes na sociedade brasileira, portanto, descontruindo a visão
romântica da nação harmoniosa, presente na literatura alicerçada na
concepção da democracia racial de Gilberto Freire.
Podemos observar que Bethânia utiliza a poesia de Guimarães Rosa
para representar outros “brasis” existentes, na medida em que se desloca o
centro da produção literária para o regionalismo (ainda que numa perspectiva
universalista). Entretanto, não se pode deixar de reconhecer que tal exercício é
importante para dá visibilidade as categorias sociais marginalizadas e
possibilitar novas reflexões e/ou discussões.
Encerrando o disco Bethânia associa o texto poético Minha Pátria de
Vinicius de Morais com a canção Melodia Sentimental de Villa Lobos e Dora
Vasconcelos.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Texto Poético Canção

Melodia Sentimental
Minha Pátria
Acorda, vem ver a lua
[...] Se me perguntarem o que é a minha que dorme na noite escura
pátria direi: que surge tão bela e branca
Não sei. De fato, não sei derramando doçura
Como, por que e quando a minha pátria clara chama silente
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a ardendo meu sonhar
água As asas da noite que surgem
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa e correm o espaço profundo
Em longas lágrimas amargas. oh, doce amada, desperta
Vontade de beijar os olhos de minha pátria vem dar teu calor ao luar
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos Quisera saber-te minha
cabelos [...] na hora serena e calma
a sombra confia ao vento
o limite da espera
quando dentro da noite
reclama o teu amor
Acorda, vem olhar a lua
que brilha na noite escura
querida, és linda e meiga
sentir meu amor e sonhar.

É interessante ressaltar a forma como a artista constrói sua narrativa


e/ou discurso sobre a identidade nacional no disco. Inicia com o poema de
Mario de Andrade Descobrimento que explicita o “despertar” do poeta para a
realidade da década de 1920, na qual se propõe a construção de uma nova
concepção de nacionalidade que insira os sujeitos históricos até então
excluídos pela tradição literária e encerra com o poema Minha Pátria de Villa
Lobos que reflete sobre o que seria o Brasil ou ser brasileiro escrito no período
histórico construção do projeto de nação do governo Vargas (1930-140).
A associação das narrativas possibilita a percepção de que ao final da
reflexão Bethânia chega à conclusão de que a identidade nacional é algo em
construção “Se me perguntarem o que é a minha pátria direi: Não sei”. No
entanto, reconhece que mesmo diante da impossibilidade de defini-la e das
memórias históricas que lhe trazem angústia “que elaboram e liquefazem a
minha mágoa”, o amor a Pátria é algo que retroalimenta, sentimento expresso
na letra da canção “querida, és linda e meiga sentir meu amor e sonhar”.
Em linhas gerais, diante da análise das canções e textos poéticos
observamos que tanto a música quanto a literatura que compõe o disco
Brasileirinho atuam no processo de representação da nacionalidade, na qual a
artista busca construir uma realidade reunindo diversas informações da história

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nacional com as quais os sujeitos que as utilizam se relacionam (nesse


contexto nos referimos aos seus fãs). Nessa perspectiva, para compreender a
representação da identidade nacional com a qual dialogamos nesse estudo,
utilizamos a definição de representação social dada por Serge Moscovici.
Segundo o autor “a representação social é um corpus organizado de
conhecimento e uma das atividades psíquicas graças às quais os homens
tornam inteligível a realidade física e social, inserem-se num grupo ou numa
ligação cotidiana de trocas, e liberam os poderes de sua imaginação
(MOSCOVICI, 1978, p. 28)”. Por esta razão as representações não são
homogêneas, e para compreendê-las é necessário adentrar o universo dos
diferentes grupos para conhecer suas especificidades, bem como as relações
que estes estabelecem entre si.
Entretanto, para isso é necessário que retomemos a discussão da
memória fundadora da unidade nacional (individual e coletiva), sob as quais a
artista Maria Bethânia construiu seu trabalho. Primeiramente precisamos
reconhecer que a memória é uma construção cultural, definida por Achugar
(2006) como capital cultural, simbólico e político das comunidades nacionais
que todos ou quase todos querem transmitir, resgatar do esquecimento ou do
silenciamento, no qual segundo o autor, “a memória se constitui num campo de
batalha, onde o presente debate o passado como um modo de construir o
futuro”.
Corroborando com a ideia da memória como campo de disputa, Michael
Pollak em seu texto Memória, esquecimento, silencio, destaca que “o longo
silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência
que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais”
(POLLAK,1989, p.3).

Considerações Finais

Em seu projeto musical a artista busca estabelecer um dialogo entre a


memória coletiva nacional a partir da História Oficial e da literatura com a
memória individual, construindo uma narrativa em que surgem momentos de
tensão ou conflitos, a partir de situações em que resgata do esquecimento

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

fatos e/ou circunstancias que foram silenciadas pela memória nacional. Um


exemplo para ilustrar o presente argumento é a tentativa da artista de
denunciar as condições arbitrarias sob as quais vive o negro na canção
Purificar o Subaé “os riscos que corre essa gente morena, o horror de um
progresso vazio”, buscando descontruir a visão romântica da democracia racial.
Outra questão evidente é a recorrente abordagem da temática da religião de
matriz africana nas canções que compõe o disco.
Neste sentido, se por um lado, o discurso nacional aponta para
hegemonia da memória coletiva que faz uso do passado, conforme os registros
da História Oficial, silenciando as memórias “subterrâneas” dos colonizados e
escravizados, produzindo ou repetindo estereótipos, por outro nos permite
“reler os fatos, discursos e imaginários permite revisar o processo de
constituição dos sujeitos históricos que atuaram e/ou moldaram o século XX e,
sobretudo, permite revisar quais são os sujeitos históricos do presente
(ACHUGAR, 2006, p. 222)”.
Retomando a questão inicial do estudo: que tipo de nacionalidade Maria
Bethânia idealiza e busca “legitimar” em seu disco? Acreditamos que não há
uma identidade nacional definida ou uma única possibilidade de discurso,
existe uma concepção de nacionalidade em construção que nos provoca refletir
sobre diferentes “brasis”, talvez por isso o título do trabalho esteja no diminutivo
“brasileirinho” e não brasileiro. No entanto, devemos estar atentos para o fato
de que ao mesmo tempo em que condensa elementos objetivos e observáveis
em dado momento na memória coletiva da nação a partir da História Oficial e
da Literatura, “distorce”, “inventa” ou generaliza certos aspectos da sociedade
brasileira, uma vez que no processo de construção das narrativas que
fundamentam a memoria nacional existe o silenciamento e o esquecimento de
acordo com os interesses de quem escreve e sobre o que se quer representar.

REFERENCIAS

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Nação na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

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decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975.

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de Maria Bethânia. Boitatá – Revista do GT de Literatura Oral e Popular da
ANPOLL ISSN 1980-4504, Londrina, n. 13, p. 163-184, jan-jul 2012.

KAUSS, Vera Lucia T.; NEVES, Kelly Cristina da Silva. Em busca da


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brasileiro. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades, ISSN 1678-3182,
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brasileira: o caso da obra musical de Carmen Miranda nos anos 1930.
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Sonora. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2001, V. 44 nº 1.

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ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 5º ed. São Paulo:


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POUTIGNAT, Philippe e STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade.


São Paulo: UNESP, 1997.

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São


Paulo: Ed. 34, 1998.

690
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: CULTURAS, MEMÓRIAS E LINGUAGENS: A


PROTEÇÃO JURÍDICA POSSÍVEL

PROPOSITORES: JOÃO BATISTA DE CASTRO JR. (UNEB) E CLODOALDO


SILVA DA ANUNCIAÇÃO (UESC)

Ementa:

A Constituição de 88 inaugurou um tecido normativo que definitivamente

requer maior diálogo dos profissionais do Direito com as perspectivas

conceituais da sociologia e da antropologia e vice-versa. A proteção jurídica

das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das

de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, integra um

núcleo de atualidade permanente da Constituição que convida à reflexão sobre

os institutos disponíveis na legislação e, em muitos casos, à sua revisão como

o meio mais pertinente para satisfazer a exigência constitucional de

preservação, por exemplo, de “formas de expressão”, “modos de criar, fazer e

viver”, bens de natureza imaterial, memórias e identidades. Discussões do

grupo propõem debates sobre know-how das instituições jurídicas (Judiciário,

Ministério Público, Defensoria) nessa perspectiva constitucional.

691
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O DIREITO À MEMÓRIA DO ESPAÇO URBANO: UMA


ANÁLISE DA EFICÁCIA DO TOMBAMENTO NO CENTRO
HISTÓRICO DE SALVADOR

MILENA GUIMARÃES ANDRADE TANURE (UNEB/UNIFACS)

1 Um direito à memória do espaço urbano

Nora (2009, p. 6) afirma que o mundo está experimentando a


emergência da memória. Segundo o historiador, os países, povos e grupos
sociais, ao longo dos últimos 20 ou 25 anos, passaram por profundas
transformações no tradicional modo como se relacionavam com o seu passado.

Esse movimento generalizado e enraizado, ainda de acordo com Nora


(2009, p. 7), ancora-se em duas principais razões. Uma delas diz respeito ao
que ele denominou de “democratização da história”, que compreenderia uma
consequência da emancipação e libertação de povos que passaram a
recuperar seu passado e afirmar sua identidade. A outra refere-se ao fenômeno
por ele denominado “aceleração da história”. Segundo Nora (2009, p.7), isso
significa dizer “[...] que o fenômeno mais contínuo e permanente não é a
permanência e a continuidade, mas a mudança, e uma mudança que está
afetando tudo mais e mais rapidamente”. Uma incerteza do futuro tem sido
capaz de criar no presente uma obrigação de recordar e o dever de que “[...] o
presente acumule assiduamente, de maneira relativamente indiferenciada,
todos os traços visíveis e todos os sinais materiais que constituem evidência e
que vão fornecer evidência do que uma nação, um grupo, uma família é ou terá
sido” (NORA, 1999, p.7). Nesse contexto em que há um obscurecimento do
passado e do futuro, tem-se a recordação como elemento característico do
tempo atual, o “tempo da memória”.

Salvador não ficou indiferente às transformações e ao processo de


modernização vivido pelas cidades ao longo de sua formação. Dessa forma, a
“aceleração da história” também se fez presente aqui, e o centro histórico foi
um dos espaços mais atingidos.

A cidade representa um universo simbólico que é significado e


resignificado a partir das transformações pelas quais passa e do modo como os

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sujeitos com ela se relacionam. É necessário observar, contudo, que os


espaços da cidade recebem significações específicas, seja pela sua função,
por sua criação ou por algum processo histórico.

Um dos espaços mais significativos na constituição de identificação


entre a cidade e o sujeito é a região central. Santos (2008), ao falar do Centro
Histórico de Salvador em sua tese de doutorado de 1958, destacou que, no
passado, o cérebro e o coração da cidade encontravam-se nesse local e
apresentou o processo de modernização vivido naquele momento.

A modernização se impõe à cidade. Assim, ela ocorreu como se nada


pudesse impedir que Salvador se inserisse em um mundo contemporâneo.
Esse fenômeno não respeitou, contudo, o patrimônio que representa o centro
antigo e, assim, destruiu casas e monumentos, como a Igreja da Sé (onde hoje
se encontra a Praça da Cruz Caída).

Em abordagens posteriores, de meados da década 1990, Santos (1995)


destacou a mudança do centro da cidade. O geógrafo coloca em cena como, a
partir dos anos 1960, tem-se a formação de novos espaços que se afastam do
antigo centro por ele estudado

No início, o centro novo ainda competia de algum modo com o antigo.


No entanto, isso ocorria porque as funções e hábitos que hoje existem no novo
espaço central ainda não haviam se instalado definitivamente. Também é
preciso destacar que os recursos públicos se dirigiram para a nova região,
gerando um desnível na cidade (SANTOS, 1995). Em certo sentido
abandonado pelo poder público, o centro antigo assistia ao surgimento do novo
em detrimento da sua deterioração. Desse modo, “[...] o centro novo aparecia
por várias razões como um elemento que levava à ruína mais rápida do centro
velho” (SANTOS, 1995, p. 24).

Hoje, no entanto, é necessário avaliar a situação dos sítios históricos da


cidade e revalorizar esses espaços que fazem parte da identidade baiana.

Como apresenta Giovanaz (2007, p. 237):

Nossa realidade é de destruição dos lugares de memória, de


desenraizamento, de desconstrução dos suportes sociais da memória
coletiva. Todos esses elementos são criadores dos sentimentos de
continuidade, de preservação e com sua paulatina destruição o

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cidadão sente-se progressivamente excluído nos seus sentimentos


coletivos em relação ao passado. Pierre Nora destaca que “os
lugares de memória são antes de tudo restos”. São sobreviventes de
um tempo que já não existe, em uma sociedade onde a positividade
está ancorado no novo e não no antigo, no futuro e não no passado.
Pensando-se a relação entre as subjetividades, a cidade e a
necessidade de se preservar locais identitários, percebe-se como a força
significativa de um espaço urbano em muito se relaciona com as vivências e
experiências nele experimentadas.

Desse modo, é pelo uso que o centro da cidade, por exemplo, é


significado e passa a entrelaçar memórias subjetivas e coletivas. Os
componentes de tal espaço, para além de dar forma à cidade, constituem os
elementos identitários que interligam sujeitos e gerações. Dessa forma, a
memória de cada um dos seus moradores se estrutura tendo como espaço das
narrativas de si a cidade que ele ajuda a moldar pelo seu uso. Nesse mesmo
sentindo, por serem vividas, em sua maioria, na coletividade, as relações entre
sujeitos e espaços compõem memórias que ultrapassam a esfera subjetiva e
passam a dizer respeito a uma coletividade que se identifica, em especial, pelo
espaço em que se desenrolam suas vidas.

Fazendo uma leitura da obra A Memória Coletiva, de Habawachs,


Giovanaz (2007, p. 237) evidencia o modo como esse autor coloca em cena
que a manutenção da memória coletiva dos cidadãos requer uma preservação
dos espaços.

Assim, a preservação do espaço urbano leva à manutenção, também,


das memórias subjetivas e coletivas. É por isso que “[...] destruída a parte de
um bairro onde se prendiam lembranças da infância do seu morador, algo de si
morre junto com as paredes ruídas, os jardins cimentados” (BOSI, 1979, p.
370). Como afirma Habawachs (1990), sendo eliminada ou modificada a forma
ou a orientação das casas ou ruas, os materiais e pedras não irão apresentar
resistência. No entanto, os grupos se oporão “[...] com a própria resistência,
senão das pedras, pelo menos de seus antigos arranjos na qual vos esbarreis
[...]”, uma vez que dela veio a força da tradição local. Isso decorre, em
essência, do fato de que, conforme afirma Habawachs (1990, p. 136), “[...]
quando um grupo humano vive muito tempo em um lugar adaptado a seus
hábitos, não somente os seus movimentos, mas também seus pensamentos se

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regulam pela sucessão das imagens que lhe representam os objetos


exteriores”.

É pensando nisso que Pesavento (2005, p. 16) apresenta a noção de


“patrimonialização do passado da cidade”, a qual consistiria em compreender a
cidade como uma propriedade cultural partilhada. No entanto, isso demandaria
reconhecer a “existência de uma história comum inscrita na cidade”, identificar
em ruas, prédios e praças locais com sentido e distinguir territórios e
temporalidades urbanas que dependeriam do ensino, das ações do Estado e
dos particulares. Tais atitudes implicariam “[...] criar responsabilidades, educar
o olhar e as sensibilidades para saber ver e reconhecer a cidade como um
patrimônio herdado”. Isso não resultaria, contudo, em uma restauração do
espaço urbano na ingênua busca por uma cidade cristalizada no passado. No
entanto, “[...] toda arquitetura pode ser monumento, na medida em que
encerrar uma memória, encarnar um sentido a ser recuperado”.

Em razão dessa relação que se estabelece entre o espaço urbano e


memórias individuais e coletivas, tem-se a necessidade de uma tutela que
assegure o direito à memória. Assim, cabe pensar, agora, de que modo o
ordenamento jurídico pátrio trata a conservação do patrimônio cultural e,
consequentemente, a manutenção dessas memórias.

A partir da Constituição de 1988, iniciou-se uma discussão sobre direitos


culturais, e o poder público sentiu a necessidade de assegurá-los a todos os
brasileiros. Assim, foi possível, como expressão maior da cidadania, a
reivindicação da sociedade ao acesso aos bens culturais.Tratou-se, como foi
possível perceber, de uma constitucionalização da cultura (FERNANDES,
2012).

Nesse contexto, é importante ressaltar como esse cenário permite


afirmar a existência de um direito fundamental à memória. Assim, segundo
Dantas (2010, p. 66), é possível garantir que “[...] o direito à memória existe e
consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e transmitir o patrimônio
cultural, com o intuito de aprender as experiências pretéritas da sociedade e
assim acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo”.

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Ao colocar em cena a necessidade de que seja tutelado um direito à


memória a partir da preservação do patrimônio cultural, a Constituição Federal
pôs em foco institutos específicos capazes de proteger tal direito. Entre os
instrumentos jurídicos para isso, têm-se o Decreto-lei 25/1937, o qual inseriu o
tombamento no ordenamento jurídico pátrio.

2 O particular e o coletivo: considerações sobre os dados obtidos

Ao longo de visitas técnicas ao espaço de estudo, foi possível realizar


observações, entrevistas e conversas casuais com moradores da Rua e do seu
entorno. A pesquisa permitiu que se percebesse como a relação entre as
memórias individuais e coletivas se imbricam e dão lastro à necessidade de
uma tutela de tal espaço.
A princípio, é de grande valia colocar em cena a entrevista, e passeio
guiado pelo bairro, com as senhoras Joselita Gargur Campos e Zilda do Carmo
Almeida da Rocha Lyra, moradoras há anos do bairro e conhecedoras das
modificações experimentadas por aquele espaço. Na entrevista realizada, elas
contaram das práticas de vivência e sociabilidade do bairro ao longo do tempo.
Contaram a vida do Santo Antônio.
Elas relataram, assim, as marcas das memórias individuais e coletivas
guardadas em cada espaço da Rua e as modificações vivenciadas pelo bairro.
Dessa forma, as entrevistadas apresentaram-se como memória viva das
histórias do bairro e das significações dos imóveis, o que, inegavelmente,
evidencia a natureza significa dos bens e do próprio ato de preservar.
No que tange ao conjunto edificado do bairro, a princípio, foi possível
perceber que, em que pese existam edificações de caráter monumental, tais
como os edifícios religiosos, é rara a presença dos grandes sobrados. Em sua
maioria, as edificações do bairro apresentam um porte mais reduzido à medida
que, afastando-se do centro, aproximam-se do largo de Santo Antônio Além do
Carmo (CARDOSO, 2011). Na Rua Direita, o que se viu não destoa de tal
imagem. Em sua maioria, as edificações representam casas de porte mediano,
com laterais coladas umas às outras e com janelas frontais que se debruçam

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sobre a rua e têm o fundo para outras ruas ou debruçadas sobre a baía de
todos os santos.
Ao se analisar o tombamento da rua como espaço integrante de um
conjunto arquitetônico maior que é tutelado pela União, o Centro Histórico de
Salvador, foi possível observar, de logo, que o ato de tombar não representou
suficiente meio para a tutela do espaço. Tal observação é plausível ao se
perceber que, apesar de o tombamento da rua impor a manutenção da parte
externa das edificações, há amplo número de casas cujas fachadas se
encontram manchadas, com rachaduras e claramente agredidas pelo tempo e
pelo abandono do poder público e dos particulares que com elas se relacionam
ou as têm sob sua propriedade.
Em que pese o instituto do tombamento determine que o IPHAN deve
fiscalizar e assegurar a manutenção desse espaço, as visitas ao local
evidenciaram situação diversa. Nesse sentido, é válido colocar em cena a
entrevista com o marchand francês Dimitri Ganzelevitch, morador da Rua
Direita desde 1975 e fervoroso defensor da identidade do espaço. Em seu blog
e em colunas publicadas no jornal A tarde, ele relata a situação de depreciação
do centro histórico da cidade, sobretudo do bairro do Santo Antônio, cobra
atuações do poder público e aponta situações que destoam da verdadeira
prática protecionista que se deve ter diante de tal patrimônio.
Em entrevista em sua casa, reconhecida como Casa-Museu Solar Santo
Antônio pelo Ministério da Cultura em 2008, em razão da manutenção da sua
arquitetura original e pelo acervo artístico montado ao longo de toda uma vida,
o senhor Dimitri nos relatou algumas de suas inquietações sobre a questão
patrimonial na Bahia.
A princípio, o entrevistado relatou o fato de que, para que a UNESCO
reconheça um dado bairro ou região como Patrimônio da Humanidade, é
preciso que haja uma manifestação do Estado solicitando. Dessa forma, ele
destaca que foi o governo brasileiro que, no meio da década de 1980, solicitou
tal reconhecimento. Nesse sentido, conforme afirmado por ele, cabe ao Estado,
por meio do IPHAN, proteger esse espaço de qualquer violação a esse
patrimônio, “mas esse é um papel que ele não faz”.

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Ainda sobre a autarquia, ele afirma que nunca aparece alguém do


IPHAN a fim de realizar uma fiscalização. Assim, cabe destacar o seguinte
desabafo do morador:
Você pode fazer o que quiser na sua fachada. Você nunca terá o
fiscal do IPHAN vindo te incomodar. Por isso que você tem um monte
de puxadinho, que é uma coisa abominável, as fachadas que
modificam a proporção de portas e janelas, colocando acrílicos e
esquadrilhas de alumínio, retiram os azulejos antigo e colocam
industriais [...] fazem qualquer tipo de vandalismo sem que nunca o
IPHAN tome uma medida.

Ele destaca, contudo, que, se o proprietário for pintar a fachada e


solicitar a autorização da autarquia, não a conseguirá, ou a terá com muita
dificuldade, mas, se ele pintar sem informar, nada lhe acontecerá, uma vez
inexistindo fiscalização que coíba tais práticas.
Cabe registrar, ainda, que, conforme assevera o decreto do
tombamento, sem a autorização do IPHAN não é possível a colocação de
edificação, anúncios ou cartazes na vizinhança que impeçam ou reduzam a
visibilidade do bem tombado. No entanto, foi possível observar que o próprio
poder públicopossibilita que seja dificultada e prejudicada a contemplação da
estrutura arquitetônica do espaço ao aceitar que toda a região seja tomada por
um emaranhado de fios de rede elétrica ou telefônica.
Dessa forma, foi possível identificar uma série de casas com suas
fachadas cobertas por fios. Tal situação foi perceptível, por exemplo, na casa
em do senhor Volney Galo, morador do bairro e corretor de imóveis, na qual,
apesar de a parte superior da edificação não poder ser alterada, uma vez
sendo o registro de uma época e compor a fachada do imóvel, é tomada por
fios. Nesse sentido, cabe evidenciar a fala do senhor Dimitri ao narrar que os
turistas tiram fotos do emaranhado de fios e que isso é motivo de gozação para
eles, uma vez que, nas grandes cidades históricas europeias, a fiação não é
visível e não representa um elemento de poluição da imagem
Nesse sentido, é digno de destaque o modo como os fios que se
sobrepõem se colocam ao redor do Oratório da Cruz do Pascoal. Tal oratório,
localizado na parte superior da rua, mais próxima do Convento do Carmo, está
posicionado no meio de um largo de forma triangular e ao redor do qual se
organizam sobrados, em maioria, do século XIX (BAHIA, 1997). O bem, tendo
sido erguido como prova de fé por Pascoal Marques de Almeida em 1743, foi

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tombado pelo IPHAN em 1938, ou seja, muitos anos antes do tombamento do


sítio histórico.
Além de a ambiência do monumento ter sido prejudicada pela colocação
do asfalto que substituiu o piso de pedras irregulares, em 1971(BAHIA, 1997),o
fato de estar rodeado por fios esteticamente destoantes, prejudica a
observação da sua estrutura e obsta a contemplação do conjunto arquitetônico
em que está inserido.
Ademais, cabe registrar a existência de casas com fachadas destoando
da estrutura arquitetônica daquele espaço, uma vez apresentando vagas de
garagem, andares superiores em construção, azulejos modernos e grades de
alumínio. As intervenções nos espaços tombados, conforme visto a partir do
estudo do decreto-lei nº 25/1937, não poderiam ser feitas sem a autorização do
IPHAN, e, em verdade, tais alterações, uma vez descaracterizando o sítio que
se tutela, não poderiam ser realizadas.
No que tange às intervenções destoantes, foi possível identificar, na fala
dos moradores da região, que, além de o órgão competente para realizar as
devidas fiscalizações, o IPHAN, não se mostrar atuante nessa atividade, por
vezes, dificulta a intervenção dos particulares sobre a propriedade. Assim, pela
fala de moradores, há uma relação um tanto conflituosa com a autarquia e com
o próprio instituto do tombamento.
Alguns moradores, ao narrarem uma inexistência de fiscalização,
ressaltaram a burocratização para a realização de intervenções em suas casas
quando noticiadas ao IPHAN.Nesse sentido, é possível citar a entrevista com o
senhor Volney Galo. Segundo o morador, o IPHAN, IPAC, e a própria
Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Município
(SUCOM), preocupam-se apenas com a fachada, não havendo impedimentos
para obras no interior das residências.
O morador relata que, uma vez inexistindo a presença de profissionais
do IPHAN para fiscalizarem a preservação de tal patrimônio, muitos moradores
realizam intervenções sem que a autarquia seja noticiada e libere a realização
da obra, conforme assevera o decreto-lei ora estudado. Acrescenta, ainda, que,
em uma época próxima ao período de chuvas, desejou realizar o retelhamento
da residência. Para tanto, encaminhou solicitação ao IPHAN, o que lhe causou

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um grande aborrecimento, uma vez que a resposta a ser encaminhada pela


autarquia demorou muito para ser dada, tendo ele de acionar a autarquia por
algumas vezes a fim de poder realizar a intervenção necessária no imóvel.
Ademais, salientou que tamanha burocratização deu-se apenas por meio de
requerimentos, sem que um técnico competente para avaliar o bem e a obra a
ser realizada.
O entrevistado colocou em cena, ainda, o fato de que as limitações
dizem respeito às obras na fachada, sendo possível realizar modificações no
interior dos imóveis. Destaca-se, contudo, que, os imóveis em que foi possível
adentrar, não apresentam modificações que descaracterizem o ambiente, uma
vez havendo a manutenção, por exemplo, dos pisos de madeira antiga, os
móveis rústicos e as escadas originais. Nos imóveis residenciais, a
manutenção de tais elementos aparenta decorrer, sobretudo, do fato de que os
moradores do bairro, de modo geral, atravessaram gerações naqueles imóveis.
No que se refere aos imóveis comerciais, por sua vez, tal fato aparenta se
associar a uma preservação de um ar rústico que, caracterizando tal espaço,
atrai os turistas.
Ainda no que tange às alterações feitas nos imóveis, o morador
evidenciou que certas intervenções necessárias, como a abertura de espaços
para a ventilação, lhes parecem prudente. No entanto, relatou estranhar a
existência de obras nos imóveis para a colocação de novos andares, ainda que
recuados da fachada, para a ampliação do edifício, tal como um mezanino.
Nesse sentido, ele expôs duas casas em frente à sua que estavam fazendo tal
obra, uma com placa da SUCOM e outra sem qualquer placa. De fato, tal
situação nos leva a questionar o cabimento, ou não de tal tipo de intervenção,
uma vez que alterando, de fato, a fachada do imóvel.
Sobre tais intervenções, o senhor Dimitri apresenta críticas, ainda, à
última pintura das fachadas realizadas pela CONDER, na proximidade da copa
do mundo, junho de 2014, uma vez que teriam sido utilizadas tintas acrílicas
que em muito se afastam das cores originais, como em uma das casas pitada
de um exagerado tom de rosa. Em razão disso, ele apresentou denúncia no
Ministério Público da Bahia, em seu Grupo de atuação especial de defesa do
patrimônio público e da moralidade administrativa (GEPAM), mas não obteve

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resposta. Conforme relatou, as tintas acrílicas foram utilizadas sem que


houvesse uma pesquisa das cores originais, as quais nunca foram dessa
forma, mas de tintas d’água com pigmentos naturais.
Há que se destacar, ainda, o relato do senhor Volney no sentido de que,
apesar de o órgão competente não fazer a fiscalização dos imóveis e, assim,
manter a integridade das fachadas, os moradores percebem, no dia-a-dia, tais
alterações. Questionado se, diante disso eles tomam alguma atitude, relatou,
com pesar, que o IPHAN não aceita denúncias anônimas e, em verdade,
sobretudo pelo pequeno tamanho da rua e o fato de todos se conhecerem,
ninguém, identificando-se, desejará denunciar o vizinho.
Identificou-se, ainda, casas em deploráveis condições cuja fachada
apresentavam placas de “vende-se”. A lamentável situação física nos leva a
questionar, e constatar, o não atendimento ao que determina o decreto do
tombamento quando este permite a intervenção da autarquia no imóvel para
resguardá-lo, seja pela impossibilidade do proprietário em fazê-la ou a não
atuação do particular por motivo diverso.
Ademais, é clara a constatação do modo como a região foi tomada pelo
mercado turístico, e sobretudo pelos investidores estrangeiros que passaram a
residir na região e nela construir pousadas e restaurantes.
Nesse sentido, é válido destacar a presença de suntuosas edificações,
nas quais funcionam pousadas de grande porte, ao lado de casas em estado
de deterioração, aparentando tanto não mais possuir uma área interna, quanto
com uma fachada manchada e em estado de degradação. Tal situação permite
que questionemos a imagem turística negativa ao se confrontar os imóveis é
resguardado.
A presença dos empreendimentos hoteleiros de luxo na região evidencia
a presença de uma a especulação imobiliária que tem deixado como marca o
abandono do espaço urbano por aqueles que nele sempre moraram e a
tomada dos edifícios por empreendimentos comerciais cada vez mais
estranhos aos seus moradores.

3 Considerações finais

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A presente pesquisa apresentou como tema a tutela de um direito à


memória do espaço urbano a partir do tombamento. Dessa forma, objetivou-se
questionar a eficácia do tombamento do Centro Histórico de Salvador e, para
tanto, delimitou-se ainda mais o corpus da pesquisa ao selecionar a Rua Direita
do Santo Antônio Além do Carmo como espaço para a análise.
A pesquisa evidenciou que o tombamento, por meio de um dos textos
legais mais antigos do sistema jurídico brasileiro, representa relevante instituto
do Direito Administrativo e impõe importantes efeitos ao Estado e aos
particulares a fim de resguardar o patrimônio nacional. Dessa forma, restou
claro que, sem o tombamento, muitos dos bens constitutivos da identidade e,
consequentemente, da memória baiana e brasileira, teriam sucumbido aos
processos de modernização.Foi possível perceber, contudo, que o tombamento
não se mostra suficientemente eficaz para uma árdua tarefa, a salvaguarda de
bens de importância nacional ou local.
No âmbito de uma política de preservação do patrimônio, preservar
ultrapassa a simples proteção dos bens em sua feição material, uma vez que
as coisas compreendem mediação para a atividade de preservar, não a sua
justificativa, qual seja, o interesse público, ou seu objeto último, os valores
culturais (FONSECA, 2005). Em verdade, a necessidade que se apresenta é
de se reconhecer o tombamento como via não de proteção de pedras e tijolos,
mas de valores culturais simbolicamente relevantes para uma coletividade e
para a constituição de identidade.
O valor a ser preservado se apresenta no bem e é por meio dele que é
apreendido, no entanto, os significados não estão contidos ou são inerentes ao
bem. Trata-se de valores atribuídos em razão das relações estabelecidas entre
atores sociais, motivo pelo qual se faz necessário pensar “o processo de
produção, reprodução, de apropriação e de reelaboração desses valores
enquanto processo de produção simbólica e enquanto prática social”
(FONSECA, 2005, p.41).
Nesse contexto, a educação patrimonial se apresenta como uma via de
reconhecimento da natureza significativa de tal espaço, uma vez sendo
entendida
[...] como suporte de conhecimento a promover no indivíduo a
noção de cidadania, desenvolvendo, assim, de modo coletivo,

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o sentido de pertencimento e apoderamento, elementos


basilares para sensibilização da sociedade e geradores do
orgulho e da auto-estima, que fazem elevar o senso de
preservação do patrimônio cultural (UMBELINO, 2012, p.5)
Trata-se, em síntese, de um reconhecimento não do significado do
tombamento como instituto jurídico, mas dos elementos culturais por ele
tutelados, o que, por óbvio, será capaz de gerar um reconhecimento e uma
atuação popular hábil a proteger até mesmo aqueles bens que, em que pese
ainda não sejam objeto de tutela via tombamento, representam patrimônios a
serem protegidos.

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705
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

PROBUS: UMA ASSOCIAÇÃO DO SERTÃO PRODUTIVO NA CENA DA


AÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIAS

JOÃO BATISTA DE CASTRO JUNIOR (UNEB) 140


CAIO COÊLHO DE OLIVEIRA (UNEB)141

Cultura, sociedade e proteção jurídica.

A Constituição de 1988 trouxe profundas articulações entre Direito e


Sociedade, tema objeto de tantas abordagens teóricas, no âmbito das quais
era recorrentemente lamentada a ausência de sensibilidade dos profissionais
do Direito para com os problemas culturais.

Nesse assunto, a CF 88 inovou de forma espetacular, melhor dizendo,


de maneira monumental, já que o espectro da proteção cultural é vasto,
imponente.

As reflexões sobre esse edifício constitucional passaram a identificar


quem poderia dar conta da efetividade de tantas esperançosas promessas.
Sem muita dificuldade, logo assomou o Ministério Público, “ instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis” (art. 127, da Constituição).

No desenrolar dos fatos, nada se tornou mais adequado para qualificar a


intenção do Constituinte do que dizer que ele criou um monumento. Mas,
parafraseando Kierkegaard, que disse que Hegel, com seu sistema
especulativo, criara um palácio suntuoso para habitar um casebre, pode-se
dizer que o tamanho do faraônico bangalô que o Ministério Público passou a
habitar o tem impedido de usufruí-lo plenamente.

Já se podia antever uma decalagem entre o propósito do Constituinte,


estimulado pela participação efetiva de sociólogos e antropólogos munidos de
pesquisas e estudos, e a capacidade operacional do Ministério Público em dar

140
Professor Auxiliar do Curso de Direito da UNEB, Campus XX – Brumado. Mestre e Doutor em
Linguística Histórica, com ênfase em Linguística Cultural e Antropológica. Juiz Federal. Ex-Promotor de
Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
141
Acadêmico de Direito da UNEB, Campus XX – Brumado. Ex-estudante de Engenharia Sanitária
(UFBA).Estudante visitante Universidad de Sonora - México.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

conta da tarefa, ainda mais pela exclusividade deste em instaurar inquérito civil
público. Por outra, deram-se-lhe atribuições que o estão asfixiando na tarefa de
se desincumbir delas por falta de absoluta capacidade estrutural.

Daí já ter sido dito, de dentro da própria Instituição, que “não obstante a
responsabilidade entregue pelo constituinte e algum avanço, a estrutura
material e humana do Ministério Público não teve o mesmo progresso que suas
atribuições (...). Apresenta carências generalizadas, como insuficiência de
membros, de funcionários (...) Enfim, não condiz com sua responsabilidade
constitucional, mas com a realidade daquela Instituição a quem incumbia,
basicamente, a persecução penal que vinha estampada em inquéritos policiais
e a intervenção opinativa em alguns feitos cíveis” (SCHIRMER, 2007).

Pela investidura que lhe foi conferida para “proteção do patrimônio


público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”
(art. 129, III), pareceu bastar que qualquer de suas iniciativas fosse etiquetada
com “interesse coletivo ou difuso” para que sua legitimidade prontamente
aflorasse.

O gigantismo dessa legitimidade, para além das balizas constitucionais,


embora em momentos jurisprudenciais ganglionares, talvez encontre boa
tradução nas palavras de Sepúlveda Pertence, quando se despediu da função
de procurador-geral da República: “Eu não sou o Golbery, mas também criei
um monstro”.

Do interior da Instituição passou a nascer a preocupação com essa


hipertrofia em detrimento dos eixos capitais de atuação: “(...) ao lado desse
crescimento, alargou-se o abismo entre o ‘legal’ e o ‘real’, ou seja, entre aquilo
que o ordenamento jurídico, explícita ou implicitamente, preconiza como
atribuição do Ministério Público e aquilo que a instituição efetivamente produz
em termos de resultados concretos, prestáveis ao resgate de seu múnus
constitucional. Pode impressionar, estatisticamente, o número de pareceres e
de processos cíveis e criminais deflagrados. Mas, senão insuficiente, tem-se
mostrado ineficaz para, no plano real, impedir, por exemplo, o aumento da
violência e da corrupção, garantir a dignidade e a presteza dos serviços
públicos e proteger o meio ambiente. O abismo persiste. Logo, o Ministério

707
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Público está em débito com a sociedade brasileira — política e juridicamente”


(ALBERTON, 2007).

Como consequência, têm sido propostas revisões conceituais: “A


racionalização impõe a compreensão de que, diante da pluralidade de temas
remetidos ao Ministério Público, é preciso revisar e filtrar quais as intervenções
que, qualitativamente, merecem manter-se incorporadas ao campo de
interesse institucional como instrumentos eficazes para implementar positivas
transformações na realidade social” (MOURA & BERCLAZ, 2008)

Reconhece-se internamente ainda, como escreve Macedo Júnior, que


“este Ministério Público de hoje não tem assegurado um futuro evolutivo, de
expansão ou ‘aperfeiçoamento’. (...) A sua eventual decadência poderá ser
gerada pelo surgimento de novas instituições (estatais ou não-
governamentais), mais modernas e aptas a atender as demandas de seu
tempo” (2000: 330).

Enquanto essa reconfiguração não ocorre, a instituição tem aberto o


flanco a críticas, a exemplo daquela disparada pela Anistia Internacional, em
agosto deste ano, no lançamento do relatório “Você Matou Meu Filho”,
acusando de omisso o Ministério Público na apuração de mortes em ações
policiais.

Tem-se receado que, “em último grau de possibilidade, o Ministério


Público poderá perder sua utilidade social, tornando-se irrelevante e
descartável, assim como outras instituições que, por se negarem a
acompanhar os avanços do mundo e a dar respostas que a sociedade almeja e
precisa, passaram a cumprir papel menor no cenário político" (GOULART,
2000).

As associações na arena das práticas públicas e jurídicas de discussão.

Nesse ponto da complexificação da trajetória institucional do Ministério


Público é que se põe o papel das associações, como parte da engrenagem da
participação política e da defesa cidadã de franquias constitucionais.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Sua importância, na história recente das evoluções legislativas, tem sido


prestigiada pelo ordenamento jurídico, como se vê da Lei 7.347/1985, que
estabelece que a associação, desde que “esteja constituída há pelo menos 1
(um) ano nos termos da lei civil” e “inclua, entre suas finalidades institucionais,
a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à
ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos
ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico”, se apresenta com legitimidade para postular em juízo. (A lei não
seleciona tipos associativos, de maneira que, mesmo que não se trate de uma
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, regulada pela
Lei 9.790, de 23 de março de 1999, nem por isso a legitimação processual
sofre qualquer tratamento limitador.)

A relevância desse papel jogado pelas associações de um modo geral


tem sido reafirmada e estimulada por ações governamentais, como fez o
Governo Federal ao editar o Decreto 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que
aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3. Dentro do
“Objetivo Estratégico II” de “inclusão da temática da Educação em Direitos
Humanos nos cursos das Instituições de Ensino Superior “, ele prevê, como
ação programática “elaborar relatórios sobre a inclusão da temática dos
Direitos Humanos no ensino superior, contendo informações sobre a existência
de ouvidorias e sobre o número de associações e instituições dedicadas ao
tema e com as quais os docentes e pesquisadores tenham vínculo”.

Convém deixar claro que as associações não têm que necessariamente


ter uma lógica identitária para que sejam constituídas. Esse tipo de ideia de
representação ressente-se de um confinamento ideológico que diminui a
participação política na busca por estruturas sociais menos desigualizantes.
Daí Young dizer, com muita propriedade, que “a representação de grupos não
deve ser concebida somente por referência a atributos compartilhados por
pessoas, assim como não consiste na manifestação de algum conjunto de
opiniões, interesses ou experiências que todos os membros do grupo
compartilhem” (2006:172). Por outro lado, prossegue a autora, “os indivíduos
são mais bem representados quando os organismos de representação são
plurais e quando os indivíduos têm relacionamentos plurais com os

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

representantes, tanto nas associações civis quanto nas organizações políticas”


(p. 173).

A racionalidade aí está na possibilidade de debates e discussões. Como


lembra Chambers, a “racionalidade é ancorada essencialmente em práticas
públicas de discussão” (1996: 90). Sendo assim, uma associação, dentro da
modelagem prevista na Lei 7.347/1985, atua dentro da chamada esfera pública
política, que Habermas conceitua como “uma estrutura intermediária entre o
sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida”
(1997:107).

A invocação de Habermas prende-se a que, como se sabe, ele dá à


sociedade civil uma força axial, preconizando que a espontaneidade discursiva
está muito mais originalmente nítida fora dos organismos políticos formais.
Lembram bem Maia e Fernandes que, “coadunada com tal perspectiva, uma
crescente literatura vem apontando o modo pelo qual os movimentos sociais,
lidando com questões práticas da existência ou da identidade, fazem surgir
impulsos promissores para a revitalização de práticas e instituições
democráticas (Cohen e Arato, 1992; Melucci, 1996; Castells, 1997; Alexander,
1998)” (2002: 158).

Ainda segundo elas, “as associações voluntárias e as redes cívicas


contribuem para ampliar o debate público, seja por meio de críticas a projetos
específicos do aparato estatal administrativo e de busca de soluções
alternativas aos problemas comuns enfrentados por seus participantes, seja
mediante a tematização da impropriedade de certas barreiras morais que
impedem a participação política de grupos ou parcelas da população no jogo
político” (ib.)

Young vai no mesmo embalo ao dizer que “uma sociedade é mais


plenamente democrática quanto mais possui fóruns patrocinados pelo Estado e
fomentados pela sociedade civil para discussões sobre políticas, e pelos
menos alguns deles devem influenciar procedimentalmente as decisões
governamentais” (op.cit., p. 144).

710
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

À representação e aos discursos junta-se, no caso da Lei 7.347/85, a


prática jurídica na forma associativa, que passa a exercer legitimidade
processual similar à do Ministério Público, que, pelo que já se viu, tem sido
reputado até agora, mesmo com sinais de cansaço, como centro de gravidade
do exercício da defesa de direitos coletivos e difusos.

Bem analisada a questão da colegitimidade entre Ministério Público e


outras entidades, ela termina alvissareiramente por tornar latitudinário o debate
da esfera pública, aumentando a riqueza das interfaces e de atuação. Adverte
apropriadamente Young que “as coisas são similares sem serem idênticas e
são diferentes sem serem contrárias entre si, dependendo do ponto de
referência e do momento em um processo” (op.cit., p. 148). Por isso,
acrescenta ela, “as atividades autônomas e plurais das associações civis
propiciam aos indivíduos e aos grupos sociais, em sua própria diversidade,
uma inestimável oportunidade de serem representados na vida pública” (p.
187).

Ensino jurídico: envelhecimento e inquietação renovatória.

A função primacial da Universidade como produtora de conhecimento,


dito verdadeiro, em contraste com o religioso para a qual foi criada há um
milênio, tem atraído para o âmbito das reflexões ideias renovadoras, até
porque é responsável pelo processo de criação e difusão de novos
conhecimentos através de pesquisa básica e pesquisa aplicada, o que remonta
a uma perspectiva iluminista de libertação, de promoção e de construção de
uma sociedade justa e racional.

Nesse conhecimento entra o “campo jurídico”, ou seja, “forma particular


de capital cultural, predisposto a funcionar como capital simbólico, que é a
competência jurídica”, escreve Bourdieu (2011:121). Apesar da importância
desse capital simbólico que são as estruturas normativas, no neorama
universitário nota-se que o estoque de conhecimento produzido nos Cursos de
Direito de Universidades Públicas 142 ressente-se de uma compreensão social

142
“No entanto, categoricamente, pode-se afirmar que, no Brasil, instituições privadas de ensino superior
que se dedicam à pesquisa científica são raras exceções, ficando a produção de conhecimento científico a
cargo principalmente das universidades públicas”, lembram Chiarini e Vieira (2012:18)

711
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e, por via de consequência, de aplicação social, mesmo estando eles


fundamentalmente radicados em recursos humanos não desprezíveis, que
constituem o eixo das soft sciences no Brasil.

Não é fora de propósito lembrar que as Ciências Sociais Aplicadas,


Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes detêm a maior parcela de
grupos de pesquisa registrados no CNPq (19%), seguido por Ciências Exatas e
da Terra (17%) e Engenharias (13%), como anotam Chiarini e Vieira
(2012:126). Ainda assim existe um incontornável gap entre a produção de
conhecimento jurídico e sua aplicação social a partir da Universidade em
movimento. Falando dos cursos jurídicos, Joaquim Falcão salienta que, “além
de inexistir uma mentalidade de pesquisa, ou quando existe é uma mentalidade
individualista, que dispensa a moderna metodologia científica, inexistem, na
maioria das faculdades, bibliotecas atualizadas, salas apropriadas ou recursos
específicos, sobretudo, para a pesquisa empiricamente fundamentada”
(1984:119).

Acusados, e com razão, de não compreenderem muitas vezes a


polifonia e a poliedria dos conflitos sociais, os atores jurídicos da academia
amargam dados lastimáveis: “90% dos pedidos de bolsas de pesquisa no
CNPq, na área de Direito são rejeitados de pleno por falta de rigor
metodológico, certamente não é por outra razão senão que os projetos são mal
formulados, com objetivos inconsistentes e fundamentações teóricas
inaplicáveis”, aponta José Eduardo Faria (2002:1).

Aurélio Wander Bastos, a partir de documentos expedidos pelo CNPq e


pela CAPES no período de 1977 a 1984, anotou que o que o ensino jurídico
“tem feito é trabalhar com categorias tradicionais, modelos fechados, visões
formalistas e soluções abstratas. O direito transformou-se num mero
instrumento casuístico do poder (autoritário) e pragmaticamente dirigido para
remover obstáculos e interceptar o processo de consolidação democrática”
(2000: 325).

Em razão disso, afirma Faria, “tornou-se incapaz de identificar e


compreender a extrema heterogeneidade dos novos conflitos sociais, a enorme
complexidade técnica das novas formas, a interdependência cada vez mais

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presentes no funcionamento da economia, os valores, as demandas e as


expectativas por ela gerados na sociedade e a emergência de um sem-número
de novas fontes de Direito com a preeminência dos conglomerados
transnacionais como atores internacionais” (p. 2)

Bastos imputa aos programas de Pós-Graduação “estudos acadêmicos


apenas comprometidos com a advocacia tradicional e não com a defesa dos
interesses sociais e a construção de uma nova ordem jurídica”, como salientam
Kokol e Meneghetti (2010).

Segundo Marcos Nobre, “o problema que vem sendo sistematicamente


identificado nas análises sobre a questão é o fato de o ensino jurídico estar
fundamentalmente baseado na transmissão dos resultados da prática jurídica
de advogados, juízes, promotores e procuradores, e não em uma produção
acadêmica desenvolvida segundo critérios de pesquisa científica. O que, por
sua vez, já parece mostrar que não se pode separar o problema do isolamento
do direito em relação às demais disciplinas das ciências humanas, da peculiar
confusão entre prática profissional e elaboração teórica, que entendo ser
responsável pela concepção estreita de teoria jurídica que vigora na produção
nacional” (2003).

Fragale Filho e Veronese (2004) questionam essa causação provocada


pelo isolamento e se perguntam se de um modo muito corporativista outras
áreas das ciências humanas não estão recebendo patrocínios
significativamente maiores por serem as pesquisas jurídicas consideradas
menos atraentes que as de economia e administração, por exemplo. Também
aventam a possibilidade de que os objetivos da Pós-Graduação em Direito
estão mais focados na formação dos docentes do que na formação de
pesquisadores.

Não se pode dizer que o ensino jurídico se funde mais numa arte
beletrista como costumava ser no século XIX, conforme apontaram Reiter e
Castro Jr. (2008), mas ela ainda é livresca e circular, faltando-lhe pesquisa e
metodologia apropriadas.

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Afinal, o que seria essa pesquisa jurídica? “Pesquisar juridicamente


significa identificar nos fenômenos sociais emergentes as vertentes suscetíveis
de proteção legal e as formas e vias de se instrumentalizar a sua aplicação no
contexto geral da ordem jurídica, bem como significa identificar na ordem
jurídica consolidada e nos seus instrumentos de viabilização as fraturas,
vazamentos e calcificações que impedem a sua intercomunicação com a
sociedade”, escreve Bastos (op.cit., p. 331).

Bastos indiretamente tocou num ponto que tematiza este estudo: a


criação, por docentes e discentes, de uma associação a partir do interior do
Curso de Direito da Universidade do Estado da Bahia que, em si, seja fórum de
discussão e ação, com inspiração parcial na law in action, no ponto conceitual
em que as investigações focalizam como o Direito afeta as pessoas na vida
social. Mas vai além ao buscar produzir reflexos na pesquisa e extensão e
também ser capaz de, identificando problemas sociojurídicos de ordem
coletiva, agir na sua proteção com os instrumentos legais disponíveis no
ordenamento jurídico.

A crição da PROBUS no CAMPUS XX da UNEB

O Curso de Direito do Campus XX da Universidade do Estado da Bahia


ainda não tem autonomia, tendo estado atrelado, até setembro de 2015, ao
Departamento de Camaçari em regime de cooperação interdepartamental
regulada pela Resolução 899/CONSU.

Sua turma mais antiga está no VII semestre. Apesar dessa juventude do
Curso, ele tem uma pegada sociológica fundamentalmente dada e mantida
pelo Professor Adjunto Paulo Cezar Borges Martins, bacharel em Ciências
Sociais pela Universidade de Brasília (1973), bacharel em Direito pela
Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1979), Mestre em Ciência
Política pela Universidade de Brasília (1993) e Doutor em Sociologia pela
Universidade de Brasília (2004).

Fomentador de fortes discussões zetéticas e de pesquisas, com projetos


em curso, não deixou que o Curso em Brumado entrasse no sono da letargia

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

dogmática, dando lugar, em seu âmbito territorial, a uma revisão conceitual de


ensino e pesquisa.

Na esteira dessa mentalidade inaugurada por ele, surgiu a ideia da


ambientação da PROBUS em Brumado. Fruto de amplos debates entre
docentes e discentes que a integram, é composta por dois Professores da
própria UNEB, respectivamente nos cargos de presidente e vice-presidente:
Eunadson Donato de Barros, graduado em Pedagogia, além de ter cursado
História, ambos na UNEB, graduado em Direito pela Universidade Católica de
Salvador, Advogado e Professor Auxiliar do Curso de Direito de Brumado, e
Fausta Porto Couto, Pedagoga, Mestre em Educação, Professora Assistente
do Campus XII. Todos os demais cargos estão distribuídos entre discentes.

A atuação da PROBUS pretende estar em sinéquia funcional com o


Curso de Direito, elegendo para si as tarefas de identificar problemas
sociojurídicos de traços coletivos e submetendo-os a escrutínio dos seus
membros para aquilatar a ação, judicial ou extrajudicial, cabível.

Há, entre seus membros, duas convicções muito nítidas: a primeira de


que, sendo a Universidade um centro de produção de conhecimento, como já
dito, a faceta do Curso de Direito de Brumado catalisa a criação desse fórum
de discussão e de aplicação, tendo na retaguarda a proposta pedagógica da
pegada sociológica.

A segunda decorre da observação sobre a atual fragilidade operacional


do Ministério Público na atualidade, o que, pelo menos na Bahia, traz consigo
um dado agravante: a regionalização das Promotorias nos polos desproveu as
pequenas comarcas de um representante efetivo, ficando dependentes de
comparecimentos quinzenais ou mesmo mensais de Promotores de Justiça
vindos de Salvador, estimulados pela gratificação de substituição.

Aliada a isso está a constatação da nenhuma efetividade empírica na


legitimidade dada aos Municípios para proporem ação civil pública na defesa
dos mesmos direitos difusos e coletivos: em levantamento na Justiça Federal,
que tem uma subseção em Vitória da Conquista, com competência jurisdicional
sobre 34 municípios, inclusive Brumado, e mais de 2 milhões de pessoas,

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detectaram-se apenas quatro ações civis públicas 143: todas propostas com o
fim exclusivo de permitir que uma gestão municipal nova responsabilize a
antecessora como forma de afastar a restrição cadastral que impede a
celebração de novos convênios com órgãos federais.

No âmbito da ação popular, um democrático meio de participação do


cidadão na vida jurídica das instituições, encontraram-se apenas três delas: em
uma 144, um ex-vereador buscou impedir a liberação de recursos pela Caixa ao
Município de Guanambi para fins de pavimentação, tendo sido o pedido julgado
procedente em razão dos pesados ônus que o erário local suportaria para
pagar a dívida no futuro. Em outra 145, relativa ao Município de Maetinga, a
autora imputou aos réus omissão na construção de um posto de saúde na zona
rural, tendo sido o pedido também julgado procedente. Na mais recente 146,
pretende-se a nulidade de contratação de serviços hospitalares entre União e
Município, de um lado, e empresa privada de outro.

Não se encontrou, portanto, nenhuma ação popular que visasse à


proteção de patrimônio histórico, estético, cultural ou ambiental. Na verdade,
uma leitura mais acurada revela, nesses autos processuais, que as motivações
dos impetrantes, conquanto socialmente benéficas, giram sempre em torno de
disputas políticas locais.

Nesse quadro de apatia popular, associativa e dos outros legitimados,


por um lado, e insuficiência do Ministério Público pela sua fragilidade estrutural,
por outro, o surgimento de uma entidade associativa, com amplo repertório de
teses jurídicas acadêmicas, com capital acadêmico a propelir iniciativas de
estudo, trato e ação jurídicos, pode ser alvissareiro, tanto pelo formato de
sociologia jurídica quanto pela abertura processual que a Lei 7.347/85 dá a
associações.

O Município onde está sediado o Campus XX é conhecido por ter sua


economia com suporte principal na mineração, a começar do minério de

143
ACP 673-78.2012; ACP 7500-71.2013.4.01.3307; ACP 4895-55.2013.4.01.3307; ACP 291-
85.2012.4.01.3307.
144
Ação Popular 2166-22.2014.4.01.3307
145
Ação Popular 5278-38.2010
146
10 Ação Popular 5640-64.2015.4.01.3307.

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magnesita, possuindo a terceira maior mina do mundo a céu aberto, como se


gosta de divulgar. Além disso, tem grande produção de talco, que tem uso
polivalente como ingrediente para tintas, cosméticos, indústria cerâmica,
farmacêutica, papel e borracha, material corretivo para lonas, pastilhas,
sapatas de freio e outros dispositivos de fricção para as indústrias de máquinas
e veículos, insumo corretivo para a fabricação de papel, tintas e vernizes,
impermeabilizantes, explosivos, defensivos agrícolas, fármacos, perfumaria,
sabões, velas, matérias plásticas, têxteis, produtos alimentares, refratários e
polímeros, como Salienta Aragão (2012).

Além desses minérios, a região produz vermiculita, dolomita, cristal de


rocha e granitos. Possui também cerâmicas às margens do Rio do Antônio,
fábrica de cimento e fábricas de postes.

Esse panorama é, todavia, também convidativo de certa apreensão,


nomeadamente ambiental, pois, localizada em plena caatinga baiana, a região
possui matas ciliares às margens de rios, córregos e nascentes em razão da
localização no Extremo Sul da Chapada Diamantina. A expansão da agricultura
e da pecuária, a produção de carvão para alimentar as atividades ceramistas e
a abertura de minas têm sido um inimigo da preservação desses nichos
ambientais, produzindo desequilíbrio ecológico.

Quanto à exploração mineral, é preciso escrutinar, da perspectiva


jurídica, a condição de eficiência de Pareto, com que se busca um ponto de
equilíbrio entre produção e poluição/degradação, uma vez que a melhora
socialmente econômica muitas vezes anunciada, na defesa do aumento da
exploração, pode implicar a piora de outros agentes, impondo-se que esse
equilíbrio seja buscado pelo desenvolvimento sustentável, que, salienta Derani,
“é a tradução do ótimo de Pareto a ser encontrado entre desenvolvimento
econômico e a proteção dos recursos naturais. Sua lógica abstrata pode ser
aplicada no seguinte parágrafo: O crescimento econômico precisa ser avaliado
criticamente com relação aos critérios gerais ligados ao bem-estar, uma vez
que não se pode deixar de observar especialmente os efeitos ambientais do
crescimento como medida para o aumento do bem-estar” (2008, p. 113).

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Em qualquer atividade econômica dessa natureza, entram em cena o


que se conhece por externalidades negativas. Segundo Oliveira, “podemos
dizer que há uma externalidade negativa quando a atividade de um agente
econômico afeta negativamente o bem-estar ou o lucro de outro agente e não
há nenhum mecanismo de mercado que faça com que este último seja
compensado por isso” (1999, p. 569). Todavia, têm sido notados certos
artifícios que visam a burlar a exigência de adequação da legislação ambiental
aplicável às atividades de exploração econômica de recursos naturais, como
alerta Simone Costa: “Muitas vezes, o custo gerado pela redução da produção
ou pela aquisição de equipamento de tratamento de resíduos faz com que o
empresário decida por pagar multas, quando e se houver fiscalização (2005, p.
306)147.

Esse trecho de Costa reafirma a pertinência de uma associação como a


Probus, munida da tecnologia jurídica e voltada para Brumado e região, tendo
em vista a atual deficiência operacional no exercício fiscalizatório de outros
órgãos, que pode ser compensada com a legitimidade associativa para
promover ações que inibam profilaticamente a violação ambiental, não
deixando que o problema se resolva em multa pecuniária, a qual, além do
mais, pode sofrer impugnação judicial de moroso desate, fazendo com que
essa sanção meramente financeira perca seu caráter intimidatório/dissuasório.
Tornam-se apropriadas ao caso as palavras de Aragão, ao salientar o exclusivo
perfil acadêmico de ciências sociais e aplicadas em Brumado, de que “trata-se
de uma ‘fábrica’ de capital intelectual que pode ser melhor integrada à
estratégia de crescimento” (2012).

Ao lado disso, a PROBUS estatutariamente se propõe a sair


juridicamente na defesa do ethos de certas comunidades culturais, que não se
resumem, na região, à conhecida comunidade de Jacaré, onde se encontra a

147
Um exemplo com parentesco conceitual nessa linha pôde ser buscado na pesquisa judicial sobre
empresas mineradoras em Brumado: a Xilolite S.A., instalada desde 1969 para explorar 40 milhões de
toneladas de magnesitito, com 28 milhões de toneladas de magnesita e 8 milhões de talco, foi condenada,
em maio de 2013, pela Justiça Federal em Vitória da Conquista, no âmbito da ação civil pública de n.
5801-50.2010.4.01.3307, movida pelo Ministério Público Federal a partir de notícias da imprensa
nacional de superfaturamento e utilização de notas fiscais frias por 37 empresas na aplicação de recursos
do FINOR – Fundo de Investimentos do Nordeste, a pagar à União R$ 5.626.605,00 (cinco milhões,
seiscentos e vinte e seis mil, seiscentos e cinco reais), a ser atualizado a partir de junho de 1996.
Atualmente, o processo encontra-se em grau de recurso, em Brasília.

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Chula do Pilão, praticada como manifestação rara que tem origem na


preparação de farofa de milho para convidados de um casamento, regada a
cantoria e dança pelos noivos e parentes.

Conclusão

Neste artigo, procurou-se apresentar o surgimento de uma associação, a


PROBUS, integrada por docentes e discentes do Campus XX –UNEB, no
contexto de necessidade de mais sentinelas epistemológicas em defesa de
direitos coletivos e difusos, tendo em vista a insuficiência estrutural do
Ministério Público, de um lado, e a colegitimidade dada pela Lei 7.347/1985,
que estimula o aparecimento de entidades associativas preocupadas com
conflitos sociais que convidam a soluções jurídicas.

Aparelhada a essa finalidade, a PROBUS, defrontada com os problemas


sociojurídicos, os submeterá ao escrutínio técnico e intelectual do Curso de
Direito, dada inclusive a necessidade de que estudantes vivenciem realidades
jurídicas oriundas do conflito social, saindo do saber meramente livresco e
pondo a tecnologia jurídica de uma escola custeada com recursos estatais a
serviço de uma utilidade social, uma vez que pôr o know how jurídico em
contato com as entranhas de fenômenos sociais que demandam proteção é,
muito mais que reverenciar a força normativa da Constituição, estabelecer uma
fecunda sinapse entre Direito e realidade social, que, a seu turno, produz um
fértil retorno acadêmico, estimulando pesquisas em razão do contato com
manifestações culturais e jusambientalistas riquíssimas de que está prenhe a
região em torno do Campus XX.

REFERÊNCIAS

ALBERTON, José Galvani. Parâmetros da Atuação do Ministério Público no


Processo Civil em face da Nova Ordem Constitucional. Disponível em:<
http://www.conamp.org.br/pt/?a=mostra_artigos.php&ID_MATERIA=102.>
Acesso em: 10 de oct. 2015.

ARAGÃO, Joaquim. À procura do crescimento perdido: o caso de Brumado


(Bahia). Disponível em: <http://advivo.com.br/blog/joaquim-aragao/a-procura-

719
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721
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: GUINÉ-BISSAU, CABO-VERDE, SÃO TOMÉ E


PRÍNCIPE, ANGOLA E MOÇAMBIQUE: NARRATIVAS LITERÁRIAS E
HISTÓRICAS, TRAMAS E TEMAS DE NAÇÕES, CULTURAS E
IDENTIDADES.

PROPOSITORES: SUELY SANTOS SANTANA (UNEB) E DENILSON LESSA


DOS SANTOS (UNEB)

Ementa:

Após tornarem-se independentes, os países africanos de Língua Oficial

Portuguesa deparam-se com a difícil tarefa de (re)construir a nação. As

narrativas ficcionais e não ficcionais têm papel fundamental, haja vista

contribuírem com os processos de discussões e debates sobre os formatos de

nação que vieram a ser instituídos. Este GT pretende apresentar estudos dos

e/ ou sobre os países africanos de Língua Oficial Portuguesa, cujo eixo

fundamental de análise é a observação de experiências de construção nacional

e identitária que se estruturam a partir das independências. Nessa perspectiva,

será possível apresentar o pensamento de escritores e outros intelectuais,

apontando seus percursos teóricos, produções ficcionais e ensaios

interpretativos que amparam reflexões sobre o passado, sobre o presente,

sobre perspectivas de futuros e escolhas políticas contemporâneas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ANGOLA, CABO-VERDE E MOÇAMBIQUE: AS NARRATIVAS DE


LÍNGUA PORTUGUESA DA COLEÇÃO AUTORES AFRICANOS DA
EDITORA ÁTICA

CLAUBER RIBEIRO CRUZ (UNESP-ASSIS 148)


ORIENTADOR: DR. MÁRCIO ROBERTO PEREIRA (UNESP-ASSIS)

A Voz de um Povo
A literatura africana é hoje um dos instrumentos mais ricos para
revelar e recuperar a verdadeira identidade da cultura africana
com seus mitos, ritos e costumes. Através da literatura será
possível retornar num tempo novo as raízes autênticas da
África, a partir de uma visão própria de seu povo, representada
pelos autores africanos. (Fernando Augusto Albuquerque
Mourão)

O projeto literário Autores Africanos surge ao público brasileiro no ano


de 1979, com o romance A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, de José
Luandino Vieira, e com o romance Os Flagelados do Vento Leste, do cabo-
verdiano Manuel Lopes. Esta coleção origina-se de uma iniciativa da editora
brasileira Ática, sob a supervisão do então presidente da casa editorial
Anderson Fernandes Dias, e com a direção do notável professor Fernando
Mourão.
A partir deste trabalho pioneiro, a Ática objetivava provocar uma
aproximação com o mercado editorial africano, sobretudo com as produções de
língua portuguesa, além de explorar uma área ainda não articulada no país.
Para tanto, não somente os títulos de língua comum foram privilegiados, mas
também os de língua inglesa e francesa.
Desta maneira, a antologia busca revelar a verdadeira identidade da
cultura africana, representada por seus próprios escritores. Com isso, foram
publicados 27 títulos das mais significativas obras da literatura africana da
época, traçando um panorama literário do continente. No total são 17
romances, 9 livros de contos e 1 de poesia - a obra poética Sagrada
Esperança, de Agostinho Neto.
Através de um pré-projeto para montagem inicial da coleção, Fernando
Mourão 149 pretendia nortear as publicações em 3 eixos: a literatura oral,

148
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras. Bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo nº: 2014/22424-0). Salientamos que
“as opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de
responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP”.

723
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

através de títulos que destacassem as relações mitológicas, lendárias da época


pré-colonial; a literatura de combate, com ênfase nas obras vinculadas às lutas
das independências dos países - a fase colonial; e a literatura moderna
africana, na qual se destacaria o renascimento da cultura africana - etapa pós-
colonial.
Vejamos um folder de lançamento da coleção no qual observaremos
algumas das considerações mencionadas:

150

Com o acréscimo da obra As Aventuras de Ngunga (1973), de Pepetela,


nota-se que o formato de escrita escolhido para divulgação do folder foi feita
nas três línguas presentes na coleção, o português, o francês e o inglês. Vale
ressaltar que todas as obras produzidas originalmente em inglês e francês
foram traduzidas para o português à série literária.
Em virtude de uma maior proximidade de Mourão com os autores
angolanos e cabo-verdianos, a seleção dos escritores destes países dá-se de
modo mais articulado, especialmente aos autores angolanos, tanto que são

149
Entrevista realizada com Fernando Mourão nos dias 18, 23 e 24 de 2015, na sua residência
em Caucaia do Alto, Cotia-S.P.
150
Folder disponibilizado pelo professor Fernando Mourão através de seu arquivo pessoal.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

lançadas 11 obras da literatura angolana, enquanto que as de Cabo Verde são


somente 4.
Já com os escritores moçambicanos, em virtude da proximidade do país
com os territórios de colonização inglesa, era um pouco mais difícil de obter-se
um contato efetivo. Por isso, somente 3 obras são contempladas na antologia.
Já Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe têm obras cotadas para o
lançamento na coleção, contudo, como o projeto estava vinculado ao mercado
brasileiro, infelizmente a Ática decide não publicá-las por motivos comerciais.
Como estamos enfatizando as obras produzidas em língua portuguesa,
de agora em diante as apresentaremos acompanhadas de algumas breves
curiosidades, além das capas, cujas ilustrações são feitas na sua maioria pelo
artista plástico Mário Cafiero. Vale salientar que as informações aqui recolhidas
compreendem o período de publicação dos títulos na coleção Autores
Africanos.

1) Título: A Vida Verdadeira de


Domingos Xavier
Autor: José Luandino Vieira
Gênero/País: Romance/Angola
Data da primeira 1974, em Lisboa, pela
edição/local/editora: Edições 70
Data de Publicação na 1979
Editora Ática

O romance do escritor Luandino Vieira é escolhido


para abrir simbolicamente a coleção, visto que o é
considerado como um dos maiores escritores africanos. Através de uma
narrativa rápida, com uma linguagem vigorosa e ritmada, a figura do herói
caracteriza-se como um símbolo importante contra o colonialismo, já que seu
cárcere e sua morte abrem caminho para libertação, isto é, a verdadeira vida
dentro do coração do povo angolano (VIEIRA, 1979, p. 94). O romance, antes
de 1979, já tinha ganhado 6 traduções: francês, alemão, russo, sueco, inglês e
norueguês. E, ainda, com base neste livro, Sarah
Maldoror faz o filme Sambizanga.
2) Título: As Aventuras de
Ngunga
Autor: Pepetela

725
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Gênero/País: Romance/Angola
Data da primeira 1973, pelo Serviço de
edição/local/editora: Cultura do MPLA
Data de Publicação na 1980
Editora Ática
Em As Aventuras de Ngunga, com 300 exemplares mimeografados e
distribuídos em plena Frente Leste, temos a história de um menino que decide
partir e conhecer sozinho a situação de seu país que se encontrava envolto
pelos anseios da libertação. Conta-se que o livro foi escrito nas manhãs de 10
dias, debaixo de uma árvore, numa carteira da mata.
Em 1978, foi publicada uma edição de bolso do título. No mesmo ano as
Edições 70 fazem um lançamento especial da obra para o Festival da
Juventude, em Lisboa. Ainda em 78 é feita uma edição soviética; 1981, uma
inglesa e uma tradução alemã. Em 1982, foi realizada uma montagem
audiovisual do livro, com 246 slides, na disciplina de Comunicação Linguística,
da ECA da Universidade de São Paulo.

3) Título: Estórias de Musseque


Autor: Jofre Rocha
Gênero/País: Conto/Angola
Data da primeira 1977, em Lisboa,
edição/local/editora: Edições 70.
Data de Publicação na 1980
Editora Ática

Jofre Rocha, pseudônimo literário de Roberto António Victor Francisco


de Almeida, pertenceu ao MPLA, lutando pela libertação de seu país e foi,
também, um dos fundadores da UEA. Neste livro, é colocada em evidência a
vida interior dos musseques, que surgem como espécie de resistência ao poder
colonial português. Com uma prosa límpida, retrata a última fase do período
colonial.

4) Título: Kinaxixe e Outras


Prosas

726
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Autor: Arnaldo Santos


Gênero/País: Conto/Angola
Data da primeira 1965, Lisboa, pela C.E.I.
edição/local/editora:
. Data de Publicação 1981
na Editora Ática

Há uma edição da obra produzida em Lisboa e


Luanda, no ano de 1977, pela UEA. E em 1979, sai uma segunda edição,
também pela UEA.
Arnaldo Santos participou ativamente do processo de libertação
angolano e, desde cedo, teve uma relação próxima à realidade da vida dos
musseques, tanto que na primeira parte do livro, o escritor acessa o local onde
passou a sua infância, Ingombota, um dos bairros mais antigos de Luanda. Já
na segunda etapa, revisita a sua juventude, buscando elementos que
dialogassem com a tradição de seu povo.
5) Título: Luuanda
Autor: José Luandino Vieira
Gênero/País: Conto/Angola
Data da primeira 1964, em Luanda, pela
edição/local/editora: “ABC”

Data de Publicação na 1982


Editora Ática

Boa parte da escrita de Luuanda foi feita


enquanto Luandino Vieira esteve preso pela polícia
portuguesa no Pavilhão Prisional, em 1963. Esta obra, entre outras coisas,
retrata a dificuldade da vida angolana no tempo colonial, em que a fome
imperava em meio à falta de trabalho e da ameaça da polícia de Portugal.
No ano de 1964 ganhou o Prêmio Mota Veiga, e no ano seguinte ao seu
lançamento é consagrado com o Prêmio de Novelística da Sociedade
Portuguesa de Escritores. Este feito resulta no fechamento desta instituição
pelas autoridades de Lisboa.

727
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em 1978, o livro ganhou muitas traduções, vejamos algumas: russa,


sueca, francesa e a inglesa. Alguns contos foram traduzidos separadamente,
como a Estória da Galinha e do Ovo, com versão para o alemão, o
dinamarquês e o tcheco.

6) Título: Mayombe
Autor: Pepetela
Gênero/País: Romance/Angola
Data da primeira 1980, em Lisboa, pela
edição/local/editora: Edições 70/U.E.A.
Data de Publicação na 1982
Editora Ática

Mayombe foi escrito durante um ano na Floresta de Cabinda, das 22 às


24 horas, onde Pepetela lutava junto à frente militar angolana. Integrados à
floresta Mayombe, os guerrilheiros discutem sobre o destino do homem, de sua
terra, da guerra, num misto de diálogos filosóficos, históricos que nos fazem
refletir sobre a nossa própria existência. Com este livro, Pepetela ganha o
Prêmio Nacional Angolano de Literatura, em 1980, outorgado pela UEA. Em
1981, sai uma edição de bolso, em Luanda, pela UEA.

7) Título: Dizanga dia Muenhu


Autor: Boaventura Cardoso
Gênero/País: Conto/Angola
Data da primeira 1977, em Lisboa, pela
edição/local/editora: Edições 70/ U.E.A.
Data de Publicação na 1982
Editora Ática

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Com a independência administrativa conquistada, novos rumos dão


esperança ao futuro dos povos angolanos, e este é o cenário de discussões do
autor de Dizanga dia Muenhu – tradução: a lagoa da vida -, cujos contos
evidenciam o período de transição vivido pelo país, além de incorporar às
personagens o discurso oral de raiz africana - haja vista que Boaventura tinha
um bom domínio sobre este assunto.
A segunda edição desta obra ocorre em 1981, em Luanda, pela UEA.
Nesta época também estava sendo preparada a tradução para o russo do
conto Meu toque!, para o Almanaque África.

8) Título: “Mestre” Tamoda e


Kahitu

Autor: Uaenhenga Xitu


Gênero/País: Conto/Angola
Data da primeira
1974, em Lisboa, pelos
edição/local/editora: Cadernos de
Capricórnio
Data de Publicação na 1984
Editora Ática

Neste livro de dois contos, observamos o embate entre colonos e


colonizadores no plano linguístico, sobretudo em “Mestre” Tamoda, que, a
partir dos choques entre as culturas, desafia a ordem ao ajudar as crianças
com o ensino do português, haja vista que este ato torna-se um elemento
perigoso para as autoridades portuguesas. Em 1977, o livro é publicado
também pelas Edições 70, e em Luanda pela União dos Escritores Angolanos.

9) Título: Yaka
Autor: Pepetela
Gênero/País: Romance/Angola
Data de Publicação na 1984
Editora Ática

Este romance é dividido em cinco capítulos, que


são guiados por cinco partes do corpo humano,
vejamos: A Boca (1890/1904), Os Olhos (1917), O
Coração (1940/41), O Sexo (1961) e As Pernas (1975).

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Dentro deste quadro, a trajetória da família Semedo é liderada por


Alexandre, que acompanha/observa a transformação de seus descendentes ao
longo da narrativa. Deste modo, observamos a divisão da terra, tal como o
compartilhamento do corpo, sempre seguido pelo olhar oblíquo e enigmático da
estátua Yaka.

10) Título: Sagrada Esperança


Autor: Agostinho Neto
Gênero/País: Poesia/Angola
Data da primeira 1968, em Belgrado, pela
edição/local/editora: Kultura
Data de Publicação na 1985
Editora Ática

Seguindo na busca de um novo período para a literatura angolana,


Sagrada Esperança, assim como o próprio título evoca, exalta em seus versos
vigorosos uma grande humanidade diante de uma africanidade esperançosa
que se traduz como grito de libertação à vida.
Sagrada Esperança é o único livro da coleção de poesia, e é lançado
dez anos após a independência de Angola no Brasil, tanto que na capa há uma
informação na parte inferior esquerda sobre isso. A sua primeira publicação foi
feita numa edição bilíngue português-servo-croata, com tradução de Dragan
Blagojevic. Depois, ocorrem três edições seguidas feitas pelo MPLA, em
1974/75/76. E também pela União dos Escritores Angolanos, em 1976/77/78.

11) Título: Nós, os do Makulusu


Autor: José Luandino Vieira
Gênero/País: Romance/Angola

730
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Data da primeira Em 1975, em Lisboa, pela


edição/local/editora: Sá da Costa.
Data de Publicação na 1991
Editora Ática

Nós, os do Makulusu é composto por uma narrativa densa, cujo autor-


narrador tece com a sua memória a vida de uma família de Luanda. Ora
localizado na infância, no presente narrativo, ora em busca de um futuro, a
narração percorre os tempos da memória sem anunciar as suas transições, nas
quais se perde, muitas vezes, a localização temporal dos fatos, ou mesmo o
seu enunciador. Deste modo, cria-se uma complexa teia de relações e ideias,
entrelaçada pela morte, amor, racismo, pobreza, violência e guerra. Assim,
acompanhamos o destino dos Makulusu, cuja busca não está mais do local de
onde vêm, já que nada mais procuram por lá, o que eles querem é pensar para
onde vão.
De modo panorâmico, temos aqui apresentadas as onze obras da
literatura angolana da antologia. Na sequência, veremos os três títulos cabo-
verdianos:

1) Título: Os Flagelados do Vento


Leste
Autor: Manuel Lopes
Gênero/País: Romance/Cabo Verde
Data da primeira 1960, em Lisboa, pela
edição/local/editora: Ulisseia
Data de Publicação 1979
na Editora Ática

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Neste romance, temos a luta do povo de Santo Antão diante da tragédia


de um tempo em que tudo era negado, inclusive a sua terra. Através da
persistência de José da Cruz, vemos um mundo ruir em meio a um espaço
seco, árido e faminto. O romance é divido em duas partes, primeira: Chuva,
Lestada e Os Flagelados; segunda: Romance da Montanha e Estrada. Os
flagelados do arquipélago percorrem em busca da sobrevivência, ou mesmo
pela espera de “ventos” que tragam um momento mais próspero.
Manuel Lopes, natural de São Vicente, foi contemporâneo do escritor
Graciliano Ramos, sendo notável a identificação temática e estilística desta
narrativa com a do romance brasileiro Vidas Secas.
O romance de Manuel Lopes, no ano de 1960, ganhou o Prêmio Meio
Milênio do Achamento de Cabo Verde, e em 1977 foi feita uma tradução da
obra para a língua ucraniana, em Kiev.

2) Título: Hora di Bai


Autor: Manuel Ferreira
Gênero/País: Romance/Cabo Verde
Data da primeira 1962, em Coimbra, pela
edição/local/editora: Vértice.
Data de Publicação 1980
na Editora Ática

Manuel Ferreira é de origem portuguesa, mas soube traduzir muito bem


a vida dos cabo-verdianos em seus livros. Neste romance, as personagens
tentam sobreviver dentro de uma paisagem cercada pela seca. Contudo,

732
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

entoado pelas mornas, não desistem e lutam em prol do seu amor pela terra e
pela vida.
Em 1963, ganhou o Prêmio Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências
de Lisboa. Foi feita uma tradução francesa em 1967, levando o título Le pain de
l’exode, em Paris, pela Casterman. E também teve uma tradução russa, em
1979.

3) Título: Ilhéu de Contenda


Autor: Teixeira de Sousa
Gênero/País: Romance/Cabo Verde
Data da primeira 1978, em Lisboa, pela O
edição/local/editora: Século
Data de Publicação na 1984
Editora Ática
Já na etapa final do colonialismo, Ilhéu de
Contenda retrata as relações sociais desenvolvidas nas
ilhas de Cabo Verde, que tem como símbolo o sobrado, a loja e o funco, entre
os quais os mulatos e negros começam a integrar o espaço do branco
reconfigurando as relações, muitas vezes, sem saber, de fato, quais destes
lugares pertenciam: “Entre gente do sobrado, de loja e de funcho, nasci e vivi.
Nunca cheguei a perceber bem qual o lugar me coube nessa sociedade”.
(SOUSA, 1984, p. 3)
Na primeira edição do romance, a esposa de Teixeira de Sousa,
Mercedes, fez a ilustração da capa, com a colaboração do professor Pedro
Jorge Pinto.

4) Título: Chiquinho
Autor: Baltasar Lopes
Gênero/País: Romance/Cabo Verde
Data da primeira Em 1947, em São
edição/local/editora: Vicente, pela Claridade.
Data de Publicação na 1986
Editora Ática

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Neste romance, acompanhamos os dramas da trajetória de Chiquinho


desde a infância até próximo a sua fase adulta. Este período é vivido ao lado
das secas, da fome e do forte desejo da “emigração próspera” para as terras
norte-americanas, invocada pela imagem de seu pai e de seus familiares.
Mesmo sendo esta uma evasão dolorosa, este era o percurso que mantinha a
esperança dentro de uma terra inóspita.
A obra é dividida em três grandes partes, Infância, São Vicente e As-
Águas. O romance, segundo Manuel Ferreira, pode ser comparado a obras de
Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.
Para finalizar, vejamos as três obras
moçambicanas da antologia:

1) Título: Nós Matamos o Cao-


Tinhoso
Autor: Luís B. Honwana
Gênero/País: Romance/Moçambique
Data de 1980
Publicação na
Editora Ática
Luís Bernardo Honwana, nascido em Maputo, é
considerado um dos maiores escritores moçambicanos
pela sua capacidade de captar, com sensibilidade, a realidade de seu país.
Com o lançamento de Nós Matamos o Cão-Tinhoso, ganha repercussão
internacional ao tratar com vigor a relação entre colonizadores e colonizados.
A obra teve mais 6 edições e foi traduzida para o russo e para o inglês.
Os contos de Honwana têm publicações em vários jornais e revistas de alguns
países, como: Nigéria, África do Sul, Portugal, Itália, França, Inglaterra, Bélgica,
Dinamarca, Noruega, Suécia, União Soviética, Estados Unidos e Canadá.

2) Título: Portagem
Autor: Orlando Mendes
Gênero/País: Romance/Moçambique
Data da primeira 1996, em Moçambique,
edição/local/editora: pelas Notícias da Beira.
Data de Publicação na 1981
Editora Ática
Portagem é considerado a primeira obra
moçambicana a retratar a inaptidão de um mestiço entre

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

brancos e negros em face à uma terra que se transformava diante da presença


dos colonizadores. Guiada pela trajetória frustrada de João Xilim,
acompanhamos o despertar da personagem bem como o de sua nação, ora
voltado para o seu passado centralizado em sua avó Alima, ora fixado em seu
presente-futuro, cuja relação de amor e desencontro com Luiza, sua dádiva e
sua tragédia, mantém o fio de esperança do amanhã.

3) Título: Dumba Nengue: Histórias


Trágicas do Banditismo
Autora: Lina Magaia
Gênero/País: Conto/Moçambique
Data de Publicação 1990
na Editora Ática

O livro de contos Dumba Nengue traz uma


série de histórias marcantes, contadas em tom
depoimento, revelando uma terra devastada,
abandonada e violentada durante a Guerra Civil moçambicana. Logo no início a
autora adverte: “Nem se pretendeu esgotar ou selecionar os aspectos mais
dramáticos. Há mais, muito mais”. (MAGAIA, p.1, 1990).
Por fim, a partir de uma iniciativa pioneira da editora Ática, sob a
liderança de Anderson Fernandes e Fernando Mourão, dezoito obras em língua
portuguesa são publicadas na antologia Autores Africanos, disponibilizando
uma variedade significativa de escritores aos leitores e estudiosos brasileiros.
Com isso, estimulou-se um espaço de pesquisas acadêmicas e da criação de
centros de estudos nas principais universidades do país, impulsionando um
movimento crescente para a formação de uma massa crítica nacional sobre as
literaturas africanas.

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ANGOLA EM TEMPOS DE GUERRA NA VOZ TRAUMÁTICA DE


ANTÓNIO LOBO ANTUNES

ROMILTON BATISTA DE OLIVEIRA (UFBA)151


EDILENE DIAS MATOS (UFBA)

Este artigo tem como objetivo analisar os romances que fazem parte da
trilogia autobiográfica do escritor português António Lobo Antunes, em especial
o romance Os Cus de Judas, apresentando como a memória é tecida por seus
personagens/narradores e sinalizando a importância do trauma e de sua
inscrição no corpo, bem como a importância da experiência vivenciada pelas
personagens e dos signos traumáticos que essa experiência consegue
expressar, intermediada por dois espaços: Portugal e Angola.
Esses romances constituem exemplos de reconstruções de histórias
envolvidas por personagens que passaram por um choque. O trauma causa
esse choque nos sujeitos que sobreviveram ao evento traumático. Assim a
cultura desses sujeitos sofre um grande abalo, transformando, descontruindo e
ressignificando suas vidas, mediante a experiência obtida com a guerra
colonial. São personagens que viveram diante da morte e sobreviveram, e
diante desta experiência são levados a encarar a vida, não mais de forma fixa e
sólida, mas de forma frágil, insegura e fragmentada.
Lobo Antunes consegue, através da linguagem, representar o seu
complexo mundo interior, interpelado por um passado que mudou para sempre
a sua vida, sentindo-se como “uma criatura envelhecida e cínica a rir de si
própria e dos outros o riso invejoso, azedo, cruel dos defuntos, o repulsivo riso
gorduroso dos defuntos, e a apodrecer por dentro”. (ANTUNES, 2007, p. 156)
Sem dúvida, a aquisição deste passado faz parte de sua construção
humana, moldando sua escritura literária com a marca registrada de um “sinal”
que o seu corpo carrega; um resto/rastro/resíduo que o capacita a escrever
como sobrevivente da guerra que dizimou milhares de indivíduos, tanto da
parte dos colonizadores, quanto da parte dos colonizados. Para Édouard
Glissant,

151
Romilton Batista de Oliveira é graduado em Letras (UESC). Mestre em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional (UNEB) e Doutorando em Cultura e Sociedade (UFBA) e a Doutora
Edilene Dias Matos é professora e coordenadora do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação
em Cultura e Sociedade (UFBA), minha orientadora de pesquisa no respectivo Doutorado.

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o rastro/resíduo supõe e traz em si a divagação do existente, e não o


pensamento do ser. O advernto da história está hoje entrincheirado
por trás de obscuros retornos, de aparentes reinícios através dos
quais os povos e as comunidades que deram vida à ideia de História
agitam suas incertezas. [...] Assim, o pensamento do rastro/resíduo
promete a aliança dos sistemas, refuta a possessão, desemboca
nestes tempos difratados que as humanidades de hoje multiplicam
entre si, em choques e maravilhas. (2005, p. 82-85)

A guerra transforma pensamentos e sentimentos. Produz novos sujeitos,


discursos e representações. É um acontecimento traumático desconstrutor de
paradigmas antes dominantes e centralizadores. A guerra produz uma imensa
fonte de representações traumáticas, permeadas por dor, sofrimento, ódio e
rancor. A guerra colonial em Angola produziu, a partir de várias vozes,
discursos que denunciam e apresentam construções possíveis de serem
transmitidas.
Utilizando-se do verbo “ver”, o narrador do romance Os cus de Judas
consegue detectar a inutilidade da guerra, tecendo um olhar ferido pela
experiência em face do horror, testemunhando por via literária, não se sentindo
algoz ou vítima desta catástrofe, mas sim, sobrevivente:

[...] à espera das tristes palavras apodrecidas que os mortos


legam aos vivos num burbulhar de sílabas informes. [...] vi a
miséria e a maldade da guerra, a inutilidade da guerra nos
olhos de pássaros feridos dos militares, no seu
desencorajamento e no seu abandono, vi homens de vinte
anos sentados à sombra, em silêncio, [...] Tão esquisito,
entende, que me pergunto às vezes se a guerra acabou de
facto ou continua ainda, algures em mim, com os seus nojentos
odores de suor, e de pólvora, e de sangue, os seus corpos
desarticulados, os seus caixões que me aguardam.
(ANTUNES, 2007, p. 160-161)

O conceito de sobrevivente está muito presente na literatura de


testemunho. Assim, compreendemos que toda a produção literária, em toda a
sua dimensão é, de certa forma, testemunho dado por seu autor, de acordo
com sua experiência de vida. Para Seligmann-Silva (2003, p. 48) “a literatura
sempre tem um teor testemunhal”. Aquele que atravessou por esses
“escombros históricos” e conseguiu manter-se vivo é reconhecido como
sobrevivente, sujeito que, depois de algum tempo, resolve falar e sair do
anonimato. “É aquele que vivenciou uma catástrofe, um evento traumático que
deixa marcas em todos aqueles que passaram por uma experiência como

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essa. O sobrevivente é alguém que viu tombar semelhantes e inimigos; foi o


único a conseguir suportar a travessia” (SILVA, 2010, p. 42). Enfim,
sobrevivente é aquele que é marcado, em seu corpo, por uma “ferida”, uma
“marca” que, como “sinal traumático”, fará parte de sua vida para sempre.
O corpo é talvez o principal instrumento da arte, da estética e de todo o
conhecimento humano. Através dele dançamos, encantamos, expressamos,
representamos, construímos e desconstruímos nossas representações
culturais, sensações, sentimentos e estabelecemos relações com o outro. Por
meio dele, marcamos a nossa presença no mundo. Assim, pensar o corpo é
deparar-se com uma obra em aberto, para sempre em aberta e inconclusa.
Como são as bases culturais que o constituem, nomeiam e transformam,
através dos tempos e da história.
Para Beatriz Sarlo:

A narração da experiência está unida ao corpo e à voz, a uma


presença real do sujeito na cena do passado. Não há testemunho
sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a
linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, redime-a de seu
imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável,
isto é, no comum. A narração inscreve a experiência numa
temporalidade que não é a do seu acontecer (ameaçado desde seu
próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas de
sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a
cada repetição e a cada variante torna a se atualizar. [...] Quando a
narração se separa do corpo, a experiência se separa de seu sentido.
(2007, p. 24-25-27)

O corpo é construído a partir do acúmulo de imagens mnemônicas que


formam sua representação. A memória é a via indispensável para a
simbolização do corpo. É com o corpo que também lembramos. Ele está
impregnado de evocações, histórias, percepções e sensibilidades. Convém
aqui ressaltar o conceito de lembrança, construída por Maurice Halbwachs. O
autor afirma que
podemos chamar de lembranças muitas representações que, pelo
menos parcialmente, se baseiam em testemnunhos e deduções –
mas então, a parte do social, digamos, do histórico na memória que
temos de nosso próprio passado, é bem maior do que podemos
imaginar (2006, p. 91).

Complementando esta questão Beatriz Sarlo diz que “o retorno ao


passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um
advento, uma captura do presente” (SARLO, 2007, p. 9), uma narração, enfim,

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uma representação que se faz a partir de fragmentos que nos chegam através
da memória partindo do tempo presente. Nesse sentido, João Carlos Tedesco
confirma que,

Ao fazer “escavações” (como diz Benjamin), a memória remove um


terreno com solo fértil de possíveis achados, sensações, emoções,
objetos e cheiros. A memória é um meio, um meio ‘onde se deu a
vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades
fânciaestão soterradas. Quem pretende se aproximar do passado
soterrado deve agir como um homem que escava’ (2004, p. 273).

Esta pesquisa, de certa forma, realiza este trabalho de “escavação”,


entendendo que escavar a memória é analisar, por meio do corpo, “solo fértil
de possíveis achados, sensações, objetos e cheiros”, o que se pretende achar.
Em outras palavras, fazer o silêncio falar: desmontar as estruturas que
aprisionam os signos no interior do corpo de seus sobreviventes.
Tornar o indizível visível através da linguagem é quebrar os lacres que
não conseguiam romper com as “amarras” da irrepresentabilidade, é produzir
discurso onde predomina silêncio e dor, produzir palavras no campo onde os
signos estão amarrados por uma incompreensibilidade fantasmática, como
bem se pode constatar no romance Conhecimento do inferno, na voz de seu
narrador:
[...] e o seu corpo estendeu-se, tenso, na direção do som, à maneira
de uma corda de arco que o dedo do gemido arrepiava. Escutava
esse som nocturno na manhã do hospital, carregado das misteriosas
ressonâncias e dos impalpáveis ecos das trevas, essa amêndoa de
sombra na luz poeirenta, excessiva, da manhã, com a mesma
expectativa dolorosa, o mesmo indizível pavor com que sentia
aproximarem-se de si as trovoadas de África, pesadas de uma
angústia insuportável (ANTUNES, 2006, p. 47).

O personagem/narrador encontra em seu próprio corpo a fonte produtora


da expressão da linguagem, tecida por signos traumáticos. “A
linguagem/escrita nasce de um vazio – a cultura, do sufocamento da natureza
e do simbólico, de uma reescrita dolorosa do ‘real’ (que é vivido como um
trauma)”, complementa Seligmann-Silva (2003, p. 48). Para Mikhail Bakthin:
“No romance, o homem que fala e sua palavra são objeto tanto de
representação verbal como literária. O discurso do sujeito falante no romance
não é apenas transmitido ou reproduzido, mas representado artisticamente [...]
(BAKHTIN, 2010, p. 135), e esta forma artística é o mais importante lugar de
exposição do trauma.

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O conceito de trauma (proveniente de um choque vivenciado pelos


sobreviventes), na reconstrução ou mesmo desconstrução das identidades
transforma o pensamento, a forma de viver, ser e estar e os costumes e
hábitos dos cidadãos, tornando-os frágeis e inseguros. Ele consegue perfurar o
tempo vivido dos sobreviventes da guerra, sentimentos que adentram o interior
de suas vidas causando-lhes um grande desconforto humano, como se eles
perdessem o seu velho, fixo e seguro sentido das coisas e passassem a viver
numa zona de desconforto e desequilíbrio constante. “Essa terapia do trauma
consiste no aprendizado de uma nova relação com o mundo” (ASSMANN,
2011, p. 314).
Gagnebin, apropriando-se das palavras de Aleida Assmann, concorda e
dialoga com o conceito de trauma, afirmando que se trata da “ferida aberta na
alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que
não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular, sob a forma de
palavra, pelo sujeito” (GAGNEBIN, 2006, p. 110). Segundo a autora a temática
do trauma torna-se predominante na reflexão sobre a memória. Ainda também
conforme Gagnebin, “a ferida não cicatriza e o viajante, quando, por sorte,
consegue voltar para algo como uma ‘pátria’, não encontra palavras para narrar
nem ouvintes dispostos a escutá-lo” (2006, p. 110). Desta forma, o trauma
silencia a memória individual dos sobreviventes por um determinado tempo.
Depois desse tempo decorrido, o testemunho tráz do passado as “cinzas”, “os
restos”, “as sobras”, por meio da linguagem. Sendo assim, aquele que
testemunha se conecta “de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz
os lacres da linguagem que tentavam encobrir o “indizível” que a sustenta. A
linguagem é, antes de mais nada, o traço – substituto e nunca perfeito e
satisfatório – de uma falta, de uma ausência” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.
48) que está em contínua e descontínua construção. “A memória produz
sentido, e o sentido estabiliza a memória. É sempre questão de construção,
uma significação que se constrói posteriormente” (ASSMANN, 2011, p. 149).
Para Aleida Assmann, o “trauma é entendido como uma inscrição
corporal que permanece inacessível à transcodificação em linguagem e
reflexão e, portanto, não pode ganhar o status de recordação. [...] uma variante
do trauma é o trauma de guerra” (2011, p. 297). Conforme também a autora, “o

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trauma não é assimilável na estrutura da pessoa, é um corpo estranho que


estoura as categorias da lógica tradicional: ao mesmo tempo interna e
externamente, presente e ausente. [...] O trauma é a impossibilidade da
narração” (Idem, p. 279-283), mas é ao mesmo tempo visível, como podemos
constatar na voz do personagem/narrador do romance Os cus de Judas:

[...] perturbo-me invariavelmente, que quer, foi há seis anos e


perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do
Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lucusse, Luanguinga, as
campanhias independentes que protegiam a construção da estrada, o
deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame
farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o silêncio de
cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar,
descíamos para a Terra do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de
Luanda, Janeiro acabava, chovia, e íamos morrer, íamos morrer e
chovia, chovia, sentado na cabina da cmioneta, ao lado do condutor,
de boné nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a
dolorosa aprendizagem da agonia. (ANTUNES, 2007, p. 36)

A memória traumática vivenciada pelo autor/personagem/narrador revela


a crise de representação em que ele é submetido a passar e, mediante o
choque sofrido por seu corpo, em contato com a guerra, ele não consegue
mais ser a pessoa que era antes, pois a experiência com a guerra deu a ele um
novo “eu”, um eu inseguro e “movente”.

Escapando da morte, torna-se um sobrevivente, e entra na relação de


vítima que escapou com vida e que precisa falar, por meio da literatura, para
continuar a viver. Tornou-se um indivíduo marcado pela solidão e pela dor, um
sujeito desmontado e desconstruído de suas ideias, em relação às coisas e ao
mundo que o cercam. De acordo com Seligmann-Silva:

A solidão do sobrevivente é dor de descobrir-se em um mundo em


que tudo tem a mesma aparência, homens, carros, médicos,
caminhões, chuveiros, e não poder entender como tudo isto se
transfigurou em uma gigantesca máquina de morte. É dor pela
sensação de absoluto isolamento em um mundo no qual seres
humanos – máxima semelhança – se tornaram assassinos de um
povo. (2003, p. 136-137)

A falta de diálogo ou de interação social, de silenciamento ou solidão,


transformam os narradores/personagens em sujeitos “abatidos” por uma
“ferida” incicatrizável e incapaz de ser absolutamente compreendida,
propulsora do choque causado quando ele (o autor/persoangem /narrador)
entra em contato com a dolorosa realidade que o cerca, após o contato com a

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guerra. Esse choque ou trauma “indica a pessoa que atravessou uma


provação, o sobrevivente” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 374).
Os narradores-personagens da trilogia autobiográfica loboantuniana
passam por profundas mudanças em seu mundo interior, refletindo no mundo
exterior suas angústias e desconforto diante da relação e interação social,
como se estivessem vivendo uma “irrealidade”, pois a realidade já foi
presenciada através de sua passagem pela experiência com o “desumano”.
Segundo Geoffrey H. Hartman,

Tal senso de irrealidade aponta para uma morte-em-vida constante e


o testemunhar nem sempre suspende essa praga. ‘[Testemunhos]
são na verdade repressões’. Appelfeld diz surpreendentemente, ‘nem
introspecção nem nada semelhante, mas antes o entrelaçar
cuidadoso de fatos externos de forma a mascarar a verdade interna’.
Por ‘verdade interna’, Appelfeld não quer dizer o fogo da memória em
si, mas uma escuridão que ela ilumina: a sensação de não-identidade
do sobrevivente, de um eu fantasmagórico, danificado por ‘anos de
sofrimento [que] lentamente apaga a imagem de humanidade dentro
dele... (2000, p. 214)

Esta condição humana torna-se um lugar inabitável para os


personagens-sobreviventes que se sentem ameaçados por uma “realidade”
que habita o seu mundo interior, como uma “marca”, uma espécie de não-
sentido, oriundo de sua “passagem” pela guerra, marcas da desconstrução e
do “desmanche cultural”, que se fosse possível, seriam esquecidos, para evitar
tão sofridas recordações.
A experiência obtida por todos os personagens dos romances
desestrutura os pensamentos e sentimentos em relação ao sentido de
pertencimento ou de uma identidade construída fixamente. Tomados por uma
nova forma de ver o mundo, insegura e incompleta, os personagens se sentem
ameaçados pelo passado, pois temem que algo possa ainda acontecer, tentam
esquecer, mas é inútil porque as estruturas mentais e sociais estão repletas de
imagens e destroços guardados em sua memória individual e coletivamente
compartilhada por outros, que também se sentem da mesma forma,
ameaçados pelo passado e inseguros com o devir, gerando, com isso um
desconforto diante da realidade, uma crise de identidade, como bem sinaliza
Stuart Hall, ao afirmar que a crise

é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está


deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades

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modernas e abalando os quadros de referência que davam aos


indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” [...] Esta perda
de um ‘sentido de si’ estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento-
descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e
cultural quanto de si mesmos – constitui uma crise de identidade para
o indivíduo (HALL, 2006, p. 7- 9).

Desta forma, os romances são o resultado da experiência traumática


vivenciada por Lobo Antunes na guerra colonial em Angola. O trauma nasce
desta vivência produzida após esta experiência com o extremo. “Não há
testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a
linguagem liberta o aspecto mudo da experiência” (SARLO, 2007, p. 10).
Os romances narram a história de sujeitos que sobreviveram à morte.
Sobreviventes que não conseguem viver de acordo com as estruturas que a
sociedade impõe. Vivem à mercê de seus “fantasmas”, sujeitos que não
conseguem se adequar aos costumes e valores culturais legitimados pela
sociedade. Há uma forte presença de despertencimento cultural das
personagens nos romances.
A experiência que o autor/personagem/narrador obteve com a guerra
acrescenta em sua formação discursiva e ideológica o aspecto desumano do
humano. Machado afirma que “a entidade épica se desagrega na medida em
que o homem aparente entra em choque com o homem interior, a dimensão
subjetiva do homem torna-se objeto de experiência e de representação”
(MACHADO, 1995, p. 141). Vejamos um fragmento do romance que nos dá
prova do que foi dito até agora, e que representa a voz do
narrador/personagem, lá bem longe de Portugal, nos “Cus de Judas”:

O medo de voltar ao meu país comprime-me o esôfago, porque,


entende, deixei de ter lugar fosse onde fosse, estive longe demais
tempo demais para tornar a pertencer aqui, a estes outonos de
chuvas e de missas, estes demorados invernos despolidos como
lâmpadas fundidas, estes rostos que reconheço mal sob as rugas
desenhadas, que um caracterizador irônico inventou. Flutuo entre
dois continentes que me repelem, nu de raízes, em busca de um
espaço branco onde ancorar, e que pode ser, a cordilheira estendida
do seu corpo, para deitar, sabe como é, a minha esperança
envergonhada. (ANTUNES, 2007, p. 182)

Percebe-se a presença da angústia, e ao mesmo tempo esta angústia


gera em si um desconforto muito grande, um sentimento de despertença, de
não pertencer mais nem a um, nem a outro lugar. Este desconforto produzido

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pela situação em que se encontra o personagem/narrador já é em si, a


manifestação de uma crise de representação, causada certamente por esses
indesejáveis sintomas que, certamente, são os sinais visíveis da presença do
trauma.
Desta forma, os vários personagens dos romances convivem com este
conflituoso passado. O passado é uma construção conflituosa capaz de, a
partir da crise de identidade enfrentada pelo autor/narrador/personagem, levá-
lo a uma desconstrução de seu pensamento enquanto cidadão pertencente à
cultura portuguesa. Expõe em seu discurso uma memória individual
fragmentada, revelando, assim, o trauma que convive com ele, guardando
consigo uma memória reconstruída por fragmentos, restos, rastros e vestígios:

Afasto-me dos retratos do ano passado como um barco do cais, e


parece-me às vezes assemelhar-me a uma esquisita caricatura de
mim próprio, que as rugas deformam de um arremedo de trejeitos. [...]
Refletindo melhor, não apague a luz: [...] uma noite com um cubo de
gelo à superfície, três dedos de líquido amarelo por baixo, e um
silêncio insuportável no interior vazio, uma noite em que me perco, a
tropeçar de parede a parede, tonto de álcool, falando comigo o
discurso da solidão grandiosa dos bêbados, para quem o mundo é
um reflexo de gigantes contra os quais, inutilmente, se encrespam.
(ANTUNES, 2007, p. 187)

A experiência com a guerra torna-lhe um homem inseguro diante da


vida, como bem são reveladas em suas próprias palavras: “Sempre que se
examina exageradamente as pessoas elas começam a adquirir,
insensivelmente, não um aspecto familiar mas um perfil póstumo, que a nossa
fantasia do desaparecimento dela dignifica” (ANTUNES, 2007, p. 24).
Analisar os romances de Lobo Antunes é tarefa que nos faz ver o grau
de dimensão lusófona, diante do pós-colonialismo historicamente situado em
nossos dias, da ascensão de uma literatura que precisa ser mais divulgada,
contextualizada por um rastro mnemônico afro-lusófono, reprodutora de
desterritorializadas e angustiantes formas de pertencimento e
despertencimento, construções e desconstruções identitárias e rupturas.
Nesse sentido, os narradores-personagens da trilogia ao dar consciência
às palavras na narrativa ficcional, tornam-se cônscios de sua posição no
mundo e irrompem com a invisibilidade e irrepresentabilidade do trauma,
desmontando as estruturas que o impediam falar, rompendo, desta forma, com

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os lacres que silenciavam suas respectivas vozes. Assim, a literatura de


expressão portuguesa, infiltrada em contextos africanos e de dimensão
testemunhal e autobiográfica, é uma forma de se “lidar com aquilo que não se
tem, com a ausência do ser, do ter e a ausência dos que partiram”. A literatura,
nesse sentido, torna-se um valioso instrumento de espaço de discussão sobre
a violência e as suas consequências, o trauma deixado por essa guerra nas
vidas de seus sobreviventes.
O escritor Lobo Antunes é um sobrevivente. Seus personagens
representam, em maior ou menor grau, a força da sobrevivência, alguém que
atravessou um caminho sem volta, e volta deste caminho como um “outro”,
indivíduo que, conforme já foi dito, esteve longe demais para voltar atrás.
Vejamos duas citações dos dois romances, Memórias de elefante e Os
cus de Judas em que podemos perceber as palavras finais do
persoangem/narrador e a sua desilusão diante da realidade pós-traumática:

Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e


responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda,
chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo
para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de
obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre
uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar
idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir (LOBO
ANTUNES, 2009, p.157-158).

As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas


decoradas por filigramas de crochet, serviam o chá em bules [...] –
Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem uma voz fraca,
amortecida pela dentadura postiça, como que chegada de muito
longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas de madeira com a
espátula de alumínio da língua: – Estás magro. Sempre esperei que a
tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer
(ANTUNES, 2007, p. 13 e 196).

A solidão avassaladora em que os narradores se submetem é


proveniente do choque causado quando eles entram em contato com a
dolorosa realidade que os cercam. “O narrador narra, portanto, porque
pressente que algo de fundamental foi esquecido: mas, enquanto não poder
eliminar esse esquecimento, só poderá narrar tomado por forte sentimento de
desorientação, de angustiante sensação de ‘desmoronamento do mundo’”
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 367). Nesse sentido, vale trazer à tona o
pensamento de Montaury, pesquisador das obras de Lobo Antunes, quando ele
afirma que os personagens de suas obras são “seres perdidos num vasto

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mundo feito de ausências e de morte, onde a representação e a mediação


transformam a experiência fragmentada e desintegrada em tecido de real”
(1996, p. 303).
A experiência, oriunda desse processo, de certa forma
desterritorializador e desconstrutor, dá ao personagem/narrador uma nova
visão de mundo, de cultura e formação discursiva, não mais amparada sob os
pilares de sua anterior representação cultural, mas por um fragmentado,
contraditório e descontínuo estado de “desmanche cultural”.
Enfim, os sobreviventes de guerra, Lobo Antunes e todos os seus
personagens fictícios, são sujeitos que jamais voltarão a ser como foram, pois
quem bebe das águas deste rio que nunca dorme – o trauma –, foram tocados
pela estranha “desconstrução humana”, no corpo e na alma, no espaço e no
tempo vivido por seus corpos:

[...] Tem razão, divago, divago como um velho num barco de jardim
perdido no esquisito labirinto do passado, a mastigar recordações no
meio de bustos e de pombos, de bolsos cheios de selos, de palitos e
de capicuas, movendo continuamente os queixos como se
premeditasse um escarro fantástico e definitivo. O certo é que à
medida que Lisboa se afastava de mim, o meu país, percebe, se me
tornava irreal, o meu país, a minha casa, a minha filha de olhos claros
no seu berço, irreais como essas árvores, estas fachadas, essas ruas
mortas que a ausência de luz assemelha a uma feira acabada,
porque Lisboa [...] não existe, está lá um olho redondo, um nome, e
não é ela, Lisboa começa a tomar forma, acredite, na distância, a
ganhar profundidade e vida e vibração [...]. (ANTUNES, 2007, p. 92)

Chegamos ao término desta comunicação apresentando uma rápida e


concisa análise de como o autor português contemporâneo António Lobo
Antunes trouxe para a literatura, romances interpelados por uma força
traumática, compondo obras que são verdadeiras explorações do subterrâneo
da alma humana, em especial nos seus romances Os Cus de Judas, Memória
de Elefante e Conhecimento do inferno que tematizam justamente a
obscuridade da memória humana, bem como a incapacidade de apreensão e
estancamento dos movimentos desta alma, tornando-se três vozes
representativas de uma literatura de testemunho, mergulhadas em signos
tecidos por discursos traumatizadores, oriundos da experiência do autor com a
guerra colonial em Angola.

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AS LITERATURAS BISSAU-GUINEENSES E O ESCRITOR


ABDULAI SILA NO CONTEXTO DAS LITERATURAS AFRICANAS DE
LÍNGUA PORTUGUESA

SUELY SANTOS SANTANA (UNEB)

RESUMO: As Literaturas Africanas de Língua Oficial Portuguesa vem


alcançando um lugar, ainda que não satisfatório, bastante significativo no
cenário internacional. Entretanto, no que diz respeito às literaturas da Guiné-
Bissau é possível de se notar que ainda há um grande e injustificado hiato. O
texto a seguir faz uma breve explanação acerca do não lugar dessas literaturas
ao passo em que apresenta um de seus representantes, o escritor Abdulai Sila,
considerado como autor do primeiro romance bissau-guineense.

Palavras-chave: Guiné-Bissau; Abdulai Sila; África; narrativas literárias

Introdução
As lutas pela independência e sua concretização em muitos países do
continente africano devem muito às narrativas literárias. Não é demais lembrar
que uma das características de algumas das literaturas africanas –
notadamente as de língua oficial portuguesa – incide sobre a resistência ao
colonialismo e às consequentes lutas de libertação nacional. Após as lutas de
libertação, no pós-independência, se não todas, ao menos, grande parte
dessas literaturas têm como uma de suas marcas a denúncia, a qual se
mistura ao questionamento dos novos poderes, tendo em vista que muitos
destes se assemelham, sobremaneira, à antiga administração. Não obstante
essa característica e talvez por isso mesmo, é também uma literatura única que
aposta na resistência cultural e, nesse sentido, investe na recuperação de
mitos e sonhos que permanecem na memória coletiva da população 152
Pode ser pertinente aplicar esta caracterização à boa parte das
literaturas africanas, mormente as escritas em língua portuguesa e, se assim
for, algumas das literaturas bissau-guineenses também são passiveis dessa
designação, ao menos das quais se têm notícias e que se situam, sobretudo,
no contexto do pós-independência. Em sua maioria, as literaturas produzidas
na Guiné-Bissau são produzidas por escritores “[...] herdeiros do “espírito de

152
Não são poucos os poetas e prosadores que servem de exemplo à afirmação. Em meio a
outros autores e obras podem ser destacados Odete Semedo com “No fundo do canto”,
Pepetela, com “Mayombe”, e “A geração da utopia”, Manuel Rui e “Quem me dera ser onda”.

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luta” que os alça à posição de construtores da nação e dão prosseguimento à


contestação literária iniciada, sobretudo, por Amílcar Cabral” (DUTRA, 2011, p.
1000). Nas palavras de Odete Semedo, é uma literatura que encena “vozes de
um povo desiludido, que se mostra traído porque os sonhos, até então
alimentados, esvaíram-se, sem realização” (SEMEDO, 2011, p. 11).
Essas concepções, para além de reafirmarem a caracterização dos
escritores bissau-guineenses, como aguerridos, contestadores, revolucionários
e diversos, reforçam a ideia de que a literatura não deve ser entendida como
apenas a manifestação da criatividade de um artista. Ao contrário, as narrativas
literárias devem extrapolar o nível puramente literário, pois elas “não são
simples produtos de gênios solitários, a ser vistas apenas como manifestação
de uma criatividade incondicionada” (SAID 1999, p. 112). Outrossim, a arte
literária constitui-se de aspectos individuais sem prescindir dos aspectos
coletivos. Criatividade, imaginação e contextualização são menos contraditórias
do que complementares. Nenhuma produção literária surge no vazio, antes,
porém, ela está diretamente atrelada à sociedade, à cultura e à história dessas
sociedades.
As narrativas de muitos dos escritores africanos são exemplos das
postulações anteriormente referidas e, mesmo que de modo ainda não
satisfatório, estão se inserido em muitas pesquisas e debates culturais no
Brasil e no mundo. É verdade que estamos diante de uma inclusão incipiente,
precária e muito tímida, entretanto, não é menos verdade que já há um
número expressivo de estudos que desde a década de 60 começam a fazer
parte dos ensaios historiográficos e, assim, vêm alcançando um espaço
pequeno, mas muito importante nas academias de alguns países. Para Laura
Padilha (2002, p. 64), as antologias de poesia foram fundamentais para tirar
essas literaturas “do limbo cultural onde se encontravam”
Não obstante a emergência dos estudos dessas literaturas, no que diz
respeito às literaturas da Guiné-Bissau ainda há um grande e injustificado
hiato. Os estudos das literaturas africanas ainda estão muito restritos,
sobretudo, às literaturas angolanas, moçambicanas e, um pouco menos, às
literaturas cabo-verdianas. As são-tomenses também estão em um não lugar, a
exemplo das bissau-guineenses.

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Alguns pesquisadores até fazem menção ao escritor Abdulai Sila e às


literaturas do seu país, ao referir-se às literaturas africanas escritas em língua
portuguesa, no geral, porém, ainda não deram a atenção necessária. Inocência
Mata (2009), coloca-se como uma crítica severa dessa situação, sobretudo do
discurso de que na Guiné-Bissau, bem como em São Tomé e Príncipe – seu
país de origem – não existe um sistema literário consolidado. Para ela, essa
concepção indica que, para além do desconhecimento em consequência da
falta de pesquisa, existe um problema diretamente ligado à colonização. Isto é,
ainda não houve uma total libertação das amarras da colonização e, portanto, o
modo como muita gente vê e pensa a África ainda é influenciado pelo olhar da
ex-metrópole, pelo modo como o colonizador via – e ainda vê – os povos
africanos.
Ainda seguindo a perspectiva de Inocência da Mata, na maioria das
vezes, sobretudo os brasileiros, só conhecem o que é publicado no país do ex-
colonizador, no caso em questão, Portugal. Muitas produções dos cinco países
africanos de língua oficial portuguesa são publicadas em editoras lusitanas e
quem, por qualquer motivo, não circula em Portugal, muitas vezes fica à
margem do conhecimento, cai no limbo no que se refere ao exterior; entretanto,
no interior dos seus países, essas produções são conhecidas, são lidas,
estudadas, pesquisadas e mesmo exaltadas.
Interessa no momento observar que, em termos quantitativos, as
produções literárias da Guiné-Bissau são em número menor, todavia é só
observar o tamanho da população bissau-guineense – aproximadamente
1.500.000 (um milhão e quinhentos mil habitantes – em relação, por exemplo, à
Angola – com mais de 19 milhões. E já que estamos comparando Guiné-Bissau
a Angola, vale ressaltar, ademais, que lá já existe uma política cultural à frente
da Guiné e, proporcionalmente, existem mais editores e também uma política
do livro que favorece em muito aos escritores, conforme nos informa Inocência
Mata (2009). Não é inoportuno lembrar que a realidade atual dos países
africanos de língua portuguesa remonta à colonização, já que naquele período,
as políticas coloniais que, de algum modo beneficiaram Angola, por exemplo, –
sobretudo no que diz respeito à criação de escolas –, não incidiu de igual
maneira em Guiné-Bissau, o que tem influência na atualidade e pode justificar,

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em parte, a inexistência de uma produção literária mais pujante em relação à


de Angola, por exemplo.
A poeta Odete Costa Semedo (2011) segue essa mesma linha de
raciocínio, ao afirmar que, no tocante à educação, a Guiné-Bissau recebeu um
tratamento diferenciado em relação aos outros países colonizados, e a
negligência com relação à educação bissau-guineense calou possíveis vozes
autóctones. Esta constatação, entretanto, não é indicativa de que atualmente
não exista produção literária escrita na Guiné-Bissau, mas pode ser uma das
justificativas para a pressuposição de uma produção inferior, em termos
quantitativos, se comparada a outros países de colonização lusófona.
Do mesmo modo que é correto afirmar que a literatura de tradição oral
existente na Guiné-Bissau antes da chegada dos portugueses – incluem-se
aqui adivinhas, contos, lendas, histórias que se contavam e ainda contam nas
tabancas – permanece ainda bastante vigorosa e se faz muito presente na
literatura escrita da Guiné-Bissau, é correto afirmar também que esta última,
mesmo que hoje ainda esteja em busca de afirmação, para usar os termos de
Odete Semedo (2011), pelo menos desde os anos de 1950 já se manifestava
sob a forma de “letras avulsas, não havendo unidade temática e um estilo.”
(SEMEDO, 2011, p. 10). Nas palavras dessa poeta, escritora, intelectual
bissau-guineense, tais atividades podem ser caracterizadas como
manifestações literárias, conforme preconizou Antonio Cândido quando
distingue manifestações literárias de literatura como sistema (SEMEDO, 2011).
Seguindo esta perspectiva, não é improcedente afirmar que a
precariedade das literaturas bissau-guineenses não diz respeito à falta de
produção ou de qualidade, mas, sim, tem origem, principalmente, nas políticas
da colonização. Dentre os fatores que têm relação com essa política, é ponto
de acordo entre estudiosos, a exemplo de Pires Laranjeira (1995), Moema
Augel (1998), Odete Semedo (2011), para citar apenas três, 153 que a
resistência dos povos bissau-guineenses à ocupação portuguesa,
provavelmente, constitui-se fator primordial, uma vez que é desencadeador de
tantos outros. Noutras palavras, conforme postulam estes pesquisadores em
153
Refiro-me aqui basicamente aos livros Literaturas africanas de expressão portuguesa, A
nova literatura da Guiné-Bissau, Literaturas da Guiné-Bissau: cantando os escritos da história,
de Pires Laranjeira, Moema Parente Augel e Odete Semedo (esta como uma das
organizadoras), respectivamente.

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relação aos outros países africanos – e nos interessam aqui os de ocupação


lusitana –, a Guiné-Bissau resistiu mais prolongadamente aos colonizadores, o
que ocasionou uma dificuldade de fixação desses últimos nessas terras e,
consequentemente, dificultou também “a instauração de estruturas de
colonização (escolas, serviços de utilidade pública, um corpo de agentes
sociais etc., como aconteceu nas outras colônias” (LARANJEIRA, 1995, p.
356).
Semedo (2011) informa que um bom exemplo do desinteresse em criar
infra-estruturas escolares é o fato de que, ao contrário do que aconteceu em
Cabo Verde, por exemplo, que tinha a mesma administração da Guiné-Bissau
e teve o curso secundário inaugurado desde 1860, neste último, o primeiro
curso secundário só surge quase um século depois, em 1958. Como se não
bastasse, dos instrumentos administrativos que objetivavam controlar e alienar
os autóctones, o Estatuto do Indigenato teve um papel preponderante, uma vez
que a proibição de frequentar escolas fazia parte das restrições impostas aos
bissau-guineenses (SEMEDO, 2011), que eram considerados oficialmente
como indígenas e não cidadãos, nos termos do Estatuto colonial.
Por sua vez, Filomena Embaló (2012), poeta e pesquisadora angolana
de nascimento, mas guineense por opção, analisa o ingresso tardio da Guiné-
Bissau no cenário literário como consequência de situações socioculturais
desfavoráveis. Para ela, vários elementos dessa ordem e que têm raízes no
passado contribuíram para esse desfavorecimento, já que tais produtos
chegam à Guiné com um certo “atraso” em relação aos outros países, pelo
menos os de língua oficial portuguesa. Dentre esses elementos que são
cruciais na formação de uma instituição literária, Embaló aponta a política
cultural como um fator fundamental, discutindo que a política educacional, além
de ter chegado tardiamente na Guiné, se restringiu a aproximadamente 3% da
população, ficando a maioria, 99,7% excluída do processo educacional. Da
mesma forma, a imprensa também tarda a se instalar em terras bissau-
guineenses, assim como a primeira editora pública que, para além de ter
chegado tardiamente em relação aos demais países – só após a
independência –, não demorou muito e foi desativada.

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Como se não bastassem os fatores anteriormente elencados, juntam-


se a eles outros mais atuais que estão diretamente relacionados não só à falta
de uma política cultural – o que se traduz na escassez ou insuficiência de
incentivos e investimentos na produção e divulgação da cultura nacional – de
um modo geral, mas também à falta de bibliotecas, somada à falta de editoras.
Vale ressaltar que a primeira editora é de iniciativa privada, Ku Si Mon e só foi
fundada em 1994 pelo escritor em estudo, Abdulai Sila.
Apesar de ser considerado por estudiosos da Guiné-Bissau como um
dos intelectuais mais influentes no seu país e por pesquisadores das literaturas
africanas bissau-guineenses, a exemplo de Odete Semedo (2011), Moema
Parente Augel (1998, 2007), Amarino Queiroz (2007), Hildo Honório e Filomena
Embaló (2010), Robson Dutra (2011), dentre outros, não só o precursor do
romance bissau-guineense, mas também um escritor cidadão, “com uma
vivência atenta ao mundo que o rodeia e uma procura árdua de justiça e
solidariedade humana” (CAVACAS, 2002, p. 7), Sila ainda é pouco conhecido,
sobretudo dos brasileiros.

Abdulai Sila: uma “literatura como missão” 154


Sila 155 é um escritor africano negro que nasceu ainda quando a Guiné-
Bissau era colônia de Portugal, em 1º de abril de 1958, em Catió – uma
pequena cidade no sul da Guiné-Bissau – onde cresceu e frequentou a escola
primária. Em 1970, mudou-se para Bissau, capital do país, a fim de frequentar
o Liceu. De 1979 a 1985, vivendo na Alemanha, frequentou a Universidade
Técnica de Dresden, onde se graduou no curso de Engenharia Eletrotécnica e
participou com sucesso de vários cursos de especialização, inclusive nos
Estados Unidos, na área de computação e telecomunicações. Além da paixão
154
A expressão “Literatura como missão” é tomada de empréstimo de Nicolau Sevcenko, no
livro Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983),
cuja discussão versa sobre a literatura como meio de luta, contestação e denúncia social e o
autor elege os escritores Lima Barreto e Euclides da Cunha como protagonistas de uma
literatura como meio de comunicação entre eles e a população num momento de transição
importantíssimo no Brasil, qual seja: a transição da Monarquia para a República.
155
Grande parte das informações acerca do escritor é de sua própria autoria e foram colhidas a
partir das entrevistas concedidas pelo escritor. Uma foi concedida a Fernandas Cavacas, no
jornal online Irohin no site <www.irohin.org.br> e depois foi transcrita em Mistida (Trilogia), a
outra a Érica Bispo no periódico O Marrare – Periódico com o nome de Revista de Pós-
Graduação em Literatura Portuguesa da UERJ, ligado ao Programa de Pós-Graduação em
Letras, disponível no site <www.omarrare.uerj.br/numero13/erica.html>. E uma terceira
entrevista que me foi concedida através de correio eletrônico no ano de 2013.

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e compromisso para com o desenvolvimento das TIC (Tecnologias da


Informação e Comunicação), acumulou, desde sempre, o interesse pela
literatura, sobretudo, escrita, mesmo tendo em conta a tradição oral, inclusive,
publicando “a maior colecção de contos tradicionais, em edição bilíngue” (SILA,
2013, p. 5).
Abdulai é considerado pelos pesquisadores das literaturas da Guiné-
Bissau como autor do primeiro romance bissau-guineense. Até então, esse
gênero havia sido escrito por autores situados na era colonial e que não eram
filhos daquele país. Sila tem textos publicados em Cabo Verde, na França e no
Brasil e, além de ficção, publicou textos sobre economia, política, educação e
desenvolvimento social, em revistas locais e de diversos países.
Atualmente, o escritor reúne uma obra composta de uma trilogia
romanesca, da qual fazem parte os romances – Eterna Paixão (1994), A última
tragédia (1995) e Mistida (1997), além de dois textos dramáticos, As Orações
de Mansata (2007), escrito sob encomenda para o teatro, e o mais
recentemente publicado, Dois tiros e uma gargalhada (2013) – também uma
peça teatral –, todos publicados pela editora da qual é um dos sócios, a Ku Si
Mon. Ademais tem contos e vários artigos publicados em jornais e revistas,
sobretudo do seu país, a exemplo da Revista Soronda. Isso sem falar no seu
primeiro livro autobiográfico, escrito, mas ainda não publicado, e o que ainda
está escrevendo, Sol e Suor
Sila se destaca, contemporaneamente, como um membro da elite
econômica da Guiné-Bissau. É reconhecido em seu país, não só como escritor,
intelectual e cientista social, mas também como empresário no ramo dos
serviços eletrônicos e de telecomunicações. Também, colaborou na fundação
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas – INEP 156 – instituto que tem
importância, internacionalmente reconhecida e, por isso, e pela atenção
conferida por Sila, merece ao menos algumas informações.
Em entrevista ao Jornal O Marrare (2011), Sila declara o seu
comprometimento com a produção cultural e a sua relação com a literatura,

156
O INEP foi fundado em 1984 e tem como objetivos principais promover os estudos e
pesquisas no domínio das ciências sociais e naturais relacionados com os problemas de
desenvolvimento do país e contribuir para a valorização dos recursos humanos locais. É um
ponto de referência nacional e internacional de reflexão científica sobre a África Ocidental em
geral e a Guiné-Bissau em particular.

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reiterando o valor que atribui à arte de produzir textos de ficção, que está
diretamente relacionada aos propósitos de manter uma editora especializada
no campo:
[...] tudo o que faço em termos culturais (escrever ficção, contribuir
para a existência de uma editora de obras literárias etc) enquadra-se
naquele conjunto de coisas que simplesmente gosto de fazer. Faz
parte das atividades geradoras não de dinheiro ou de qualquer outro
benefício material, mas que proporcionam imenso prazer. Fazendo
parte daquilo que efetivamente gosto de fazer, essas atividades são,
como acreditava o meu pai, imprescindíveis a essa indescritível
sensação de realização (SILA, 2012, p. 3 grifos do autor).

Engajadas, com caráter de denúncia, as narrativas literárias de Abdulai


Sila são marcadas por uma visão crítica do pós-independência, acentuando
uma desilusão com os novos tempos, por um lado, mas, por outro, projetando
uma esperança no futuro do seu país. São produções que demonstram uma
preocupação do escritor com a justiça social, com a solidariedade, com a
dignidade negada pelo colonizador e com a reconstrução de uma outra história
da Guiné-Bissau, em particular, e africana, de modo geral. Referindo-se ao
romance Eterna paixão, Sila traduz, em entrevista, um pouco desses
sentimentos:
Não posso esconder que quando iniciei a construção do enredo (já lá
vão duas décadas), já era previsível o marasmo em que se encontra
hoje o meu país. Já havia provas reais de que o “espírito da luta” já
não existia mais, que os nossos concidadãos, que ontem
abnegadamente participaram na concretização daquilo que para mim
foi o maior feito deste povo no século passado – acabar com a
colonização, aprofundando o processo de construção daquilo que
Amílcar Cabral chamou de “Nação africana forjada na luta” –,
estavam incompreensivelmente a enveredar por uma via em todos os
sentidos oposta àquela que tinha sido anunciada. Estava
acontecendo tanta coisa, tão nociva quanto ininteligível, assistia-se
ao desmoronar de tantos sonhos “legítimos”, assistia-se a um
defasamento cada dia maior entre o discurso político e a prática diária
[...] (SILA, 2012, p. 4).

A assertiva mencionada pode suscitar muitas leituras, dentre as quais a


de que a literatura de Sila constitui-se como uma literatura de “vanguarda” no
sentido em que uma de suas funções é servir como meio de luta social e
contestação de modelos, atitudes, valores que estão na contramão, no caso da
Guiné-Bissau, do que havia sido anunciado nas lutas contra o poder colonial.
Seria uma “literatura como missão”, nos termos de Nicolau Sevcenko (1983),
isto é, uma literatura utilizada como ação política, social e econômica,

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denunciando e propondo soluções para as mazelas vividas pela sociedade


bissau-guineense naquele período de intensas transformações de valores
nesta sociedade e suas culturas.
Artista e intelectual colonizado, Sila assume a responsabilidade de
discutir as relações sociais do ponto de vista de um discurso não hegemônico e
pensando numa dimensão coletiva, como ele mesmo expõe:
E essa realização pessoal, numa primeira etapa, adquire uma
dimensão coletiva e extraordinária quando se tem em conta que,
como você disse, poucos são os meus concidadãos que sabem ler ou
se podem dar ao luxo de comprar um livro. E sabe por quê? Apesar
da triste e anômala situação decorrente do fato de tanto o Governo
como o Parlamento contar com elementos com capacidade muito
limitada em termos de leitura/escrita, há um consenso a nível do povo
em torno do valor e utilidade de se ser alfabetizado. Assim, se
continuamos a ter uma taxa inaceitável de analfabetos é porque algo
está errado. E esse algo vem de há muito tempo. Devo talvez
lembrar que o meu primeiro emprego foi na alfabetização. Sempre
achei que uma das maiores injustiças praticadas pelo colonialismo
português foi justamente ter deixado tanta gente fora do sistema
educativo, reduzindo dessa forma a sua possibilidade de promoção
individual e coletiva. Trinta e cinco anos mais tarde constatar que
essa injustiça continua sendo praticada é deveras frustrante! Nesse
contexto, torna-se dever de cidadão intervir de modo a que essa
injustiça seja banida. E o primeiro passo nessa direção é fazer com
que esse algo a que me referi anteriormente como estrangulamento
seja paulatinamente eliminado (SILA, 2012, p. 6).

Essa passagem é longa, mas a opção por reproduzi-la na íntegra deve-


se ao motivo de considerá-la bastante significativa, principalmente ao se
pensar que nos livros de Sila a presença do professor, inclusive grafado com
letra maiúscula, e as passagens que fazem referência ao trabalho do
magistério são recorrentes, não sendo difícil imaginar, portanto, que o escritor
atribui importância singular à educação para a cidadania. Como o intelectual
afirma na passagem, só é possível a construção do país, se houver um
engajamento maciço nessa tarefa, um engajamento que pressupõe um esforço
coletivo, mas que só será exequível se as pessoas tiverem um nível de
instrução condizente com a enormidade da tarefa e se a elas for garantido o
exercício pleno da cidadania, a qual tem suporte na educação formal. Por isso
o entusiasmo do escritor na educação de adultos (SILA, 2012), uma educação
que tem no método de Paulo Freire 157 o modelo, já que, para além de ler e

157
Paulo Freire é considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia
mundial, que se destacou pelo seu trabalho na área da educação popular, voltada tanto para a
escolarização como para a formação da consciência política. é inspirador de um método

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escrever, a educação deve capacitar o indivíduo para exercer suas funções de


cidadão.
Nos anos 1970, após a independência, Sila fez parte da Comissão
Coordenadora dos trabalhos de alfabetização de adultos em Bissau. Naquela
oportunidade, conheceu o educador brasileiro Paulo Freire 158, que fora
convidado pelo governo bissau-guineense para contribuir com a educação no
país recém-independente, cuja taxa de analfabetismo chegava a 90%, para
aplicar o seu método de educação de adultos. Esse educador defendia como
objetivo da escola ensinar o aluno a “ler o mundo” para poder transformá-lo.
Desde essa época, já é possível observar o engajamento político de Sila com a
sociedade de Bissau e, mais do que isso, uma aposta nas pessoas, no país, na
educação, como forma de construção de uma outra históri
Até o momento, Sila publicou três romances, Eterna Paixão, 1994; A
última tragédia, escrito em 1984, mas só publicado pela primeira vez em 1995,
devido ao regime ditatorial que se instalou no país nos anos oitenta e Mistida,
em 1997. Dois textos dramáticos, As Orações de Mansata, em 2007 e, em
2013, Dois tiros e uma gargalhada, além das publicações de artigos em
revistas literárias e de economia
Nas narrativas de Sila, é possível observar a tênue fronteira entre
Literatura e História, sobretudo no que diz respeito às histórias de lutas e
resistências da população bissau-guineense no enfrentamento ao poder
colonial. Desnecessário é ressaltar que História e Literatura sempre
mantiveram relações muito próximas, mesmo porque é da História que a

revolucionário que alfabetizava em 40 horas, sem cartilha ou material didático. Freire achava
que o problema central do homem não era o simples alfabetizar, mas fazer com que o homem
assumisse sua dignidade enquanto homem. Segundo ele, o homem que detém a crença em si
mesmo é capaz de dominar os instrumentos de ação à sua disposição, incluindo a
leitura. Freire concebe educação como reflexão sobre a realidade existencial. A aprendizagem
da leitura e da escrita equivale a uma releitura do mundo. Ele parte da visão de um mundo em
aberto, isto é, a ser transformado em diversas direções pela ação dos homens.
158
Autor do livro Pedagogia do Oprimido (1970), o qual apresenta um método de alfabetização
dialético, Freire se diferenciou do "vanguardismo" dos intelectuais de esquerda tradicionais e
sempre defendeu o diálogo com as pessoas simples, não só como método, mas como um
modo de ser realmente democrático. Em 1964, foi preso e exilado na Bolívia por conta do
enfrentamento à ditadura militar. Foi consultor educacional em países da Europa, assim como
consultor em reforma educacional em colônias portuguesas na África, especialmente na Guiné-
Bissau e Moçambique.

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Literatura extrai grande parte do material a ser utilizado no texto literário, e,


conforme lembra Antoine Compagnon (2003), o trabalho com o texto literário
não pode se limitar à análise dos seus aspectos linguísticos; para além desses
aspectos é produtivo considerar os aspectos extralinguísticos, incluindo, dentre
estes, o contexto, os fatos históricos que perpassam o momento não apenas a
que a obra se refere, mas, sobretudo, em que foi produzida, tendo em vista que
a literatura é concebida “em suas relações com a nação e com sua história. A
literatura, ou melhor, as literaturas são antes de tudo nacionais”
(COMPAGNON, 2003, p. 33).

A literatura, portanto, inscreve-se numa sociedade, numa determinada


época, numa determinada cultura e, portanto, varia conforme a variação
desses elementos. Inevitavelmente, ela expressa o contexto geral de uma certa
realidade, embora não se possa perder de vista que a literatura não reflete uma
realidade, mas a representa, como representa os homens e a relação deles
com a sociedade, constituindo-se, então, como “pinturas da realidade

O romance Eterna paixão não foi o primeiro livro escrito por Sila, mas
o primeiro a ser publicado, saindo à frente de A última tragédia, o qual foi
produzido anteriormente. O motivo dessa inversão quem conta é o próprio
autor:

Eu acho que pelo tema, sim... Nós sentíamos uma vontade de dizer
certas coisas... Acho que é bom recordar como comecei a escrever...
Não comecei com poemas de amor. Isso influenciou-me bastante, o
que escrevi tem muito que ver com as minhas vivências. Acho que
Eterna Paixão reflectia de certa forma aquela vivência do momento.
Era essa a mensagem mais atual (SILA, 2002, p. 9).

Eterna paixão “ está ambientado, justamente, entre os anos de


afirmação política até a abertura para novos partidos” (BISPO, 2013, p. 84).
Sila, através de um protagonista afro-americano, Daniel Baldwin, apresenta
uma visão crítica da época pós-independência no seu país. Baldwin,
influenciado pelas ideias do personagem Mark Garvey, 159 transforma-se num

159
Jamaicano, apoiou a luta dos afro-americanos em prol de maior justiça e menos
discriminação. Foi o idealizador do Pan-Africanismo e fundador da Universal Negro
Improvement Association (1914), que esteve à frente de um movimento que preconizava a
volta à África (Come back to Africa), de grande repercussão nas décadas de vinte e trinta nos
Estados Unidos.

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dos principais ativistas e, posteriormente, presidente de uma organização de


estudantes universitários – o Africa Commitee – em prol do continente africano,
“donde diziam ter saído seus antepassados”. Com a liderança de Baldwin, o
Africa Commitee desenvolve-se e, de um pequeno grupo, salta para uma
organização que reunia a maioria dos estudantes afro-americanos de Atlanta,
Estados Unidos. À frente da organização, Dan – como também era conhecido
Daniel Baldwin –, revela-se um líder carismático, engajado, dedicado e com um
espírito de iniciativa exemplar, bem aos moldes do líder Amilcar Cabral. Após
formar-se em engenheiro agrônomo, imigra para um país africano de nome não
revelado, disposto a contribuir com os seus conhecimentos e seu trabalho para
a construção daquela nação, livre do jugo colonialista.

Enquanto em Eterna paixão Sila faz alusão à euforia inicial em


contraste com a posterior desilusão aos anos que se seguiram à
independência, em A ultima tragédia, romance escrito antes de Eterna paixão,
mas só publicado depois deste, mais especificamente, em 1995, o escritor
recua no tempo e traz à tona os anos finais da colonização, representando toda
a movimentação que sucedeu à independência. Em ambas as narrativas,
delineia-se o compromisso do escritor com a sua terra e, como afirma Érica
Bispo, com a “função de provocar a reflexão, ocupando uma posição entre o
ficcionista e o historiador, Sila escreve sobre ‘o que poderia ter acontecido’”
(2013, p. 40). 160

Em A última tragédia, os personagens, sobretudo os protagonistas, se


é verdade que aparecem como vítimas do preconceito e discriminação –
inclusive racial – da exclusão, da imposição cultural, da violência física ou
simbólica, não é menos verdade que, por outro lado, muitas vezes de formas
diferenciadas, reagem, desafiam, resistem à empresa colonial. É possível
afirmar que, no empreendimento de Sila, pode ser lida uma decisão deliberada
de revisar as histórias divulgadas sobre o continente africano e suas
populações, investindo numa outra história africana, no geral e,
especificamente, da Guiné-Bissau. Ou, segundo essa possibilidade de leitura, é

160
A expressão entre aspas é ideia de Aristóteles, citada pela pesquisadora Érica Bispo na
tese (2013), que aqui prefere-se articular com a concepção de história de Walter Benjamin,
enquanto ruínas e aquilo que poderia ter sido e não foi, percebida nos textos de Sila.

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possível afirmar que esses personagens, a exemplo de Ndani, uma menina de


13 anos que sai da zona rural para se empregar como doméstica na cidade
grande, do Régulo Bsun Nanki e do professor, constituem-se como exemplos
de resistência ao poder colonial, como exemplos de autodeterminação e que
com suas atitudes vão se inscrevendo na história de modo a servir de
exemplos aos concidadãos bissau-guineenses. Pode-se pensar, ainda, que
com esses exemplos Sila vai definindo os elementos que para ele configuram
uma nação. Pensando com Laura Padilha, pode-se ler A última tragédia como
uma narrativa que recua no tempo, não só no intuito de apontar como o poder
colonial violentou as populações africanas, escravizando-as, impondo culturas,
religião, valores, determinando apropriações de territórios, mas, para além
disso, objetivando marcar como os africanos reagiram, inclusive dificultando
algumas ações do poder colonial.

No que se refere a Mistida, o último livro da trilogia, publicado em 1997,


encontra-se diante de uma narrativa muito diferente no que se refere à forma.
Ao invés de um romance no modelo convencional, o que se observa é um livro
com dez histórias, storia em kriol, que lembram capítulos, à primeira vista
separados entre si, e que mais parece uma coletânea de contos. Na estrutura,
a diferença reafirma-se, de tal modo que “cada episódio pode ser lido
separadamente e constitui uma estória completa, nem sempre havendo, à
primeira vista, uma ligação lógica entre os capítulos” (AUGEL, 1998, p. 347).
Não obstante, trata-se de histórias que têm em comum o fato de pertencerem a
protagonistas que tiveram experiências traumáticas e, por isso mesmo, “todos
tinham uma mistida urgente a safar.” (SILA, 1987, p. 83).

Uma das várias singularidades desse livro diz respeito ao seu título.
Segundo Augel (2007, p. 315), “é o único livro de Sila na língua guineense”.
Mistida remete a algo como desejo, objetivo, aquilo que se quer. A despeito do
caos reinante na sociedade africana, todos desejariam algo melhor, presumido
na expressão safar mistida. É o próprio Abdulai Sila, citado por Russell
Hamilton, quem esclarece o significado de mistida:

“Mistida” significa amor, desejo, ambição, afazer, etc. No entanto


deve-se salientar que, ultimamente, este termo tem adquirido outros
significados, que não têm nada a ver com a sua origem etimológica,

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nomeadamente, negócio, compromisso, etc. De facto, o seu


significado só pode ser determinado no contexto de uma frase
específica, tantos são seus possíveis significados e/ou sentidos.
Deste modo, “safar uma mistida” (esta é a expressão que se usa)
pode significar tanto ir beber um copo de vinho de caju, como
concretizar um negócio, participar numa reunião de partido ou ainda
fazer amor com uma amante. (HAMILTON, 1999, p. 20-21).

O livro segue a mesma linha temática dos demais, uma vez que também traz
uma história que, no geral, intenta fazer uma denúncia dos caminhos tortuosos
do poder bissau-guineense no pós-independência e, assim afirma uma
desilusão que passou a ser companheira fiel de grande parte das populações
da Guiné-Bissau. Concomitantemente, o autor trata da esperança em uma
África de fato livre, autônoma, igual no diverso, justa, solidária e progressista.
“A Mistida é o dia-a-dia, é o hoje da Guiné-Bissau...” (SILA, 2002, p. 10. grifo
do autor).

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AS VISÕES DE ESTRELINHO: IMAGENS DE MOÇAMBIQUE NO CONTO O


CEGO ESTRELINHO DE MIA COUTO

ODARA PERAZZO RODRIGUES (UEFS) 161

Notas sobre História e Literatura em Moçambique

Em 1498, como parte da rota de sua viagem à Índia, o navegador português


Vasco da Gama chegou à ilha de Moçambique. O litoral leste do continente
africano, até então desconhecido, começou a ser considerado estratégico por
ser ponto de escala no caminho para a Índia.

Nos anos que se seguiram os portugueses construíram as chamadas feitorias-


fortaleza, em territórios como Sofala e Moçambique, para facilitar o comércio
do ouro e das especiarias asiáticas. Continuaram a ganhar o domínio de
diversos territórios e expandiram suas relações comerciais.

O século XVII foi marcado pelo cultivo da cana-de-açúcar e pelo comércio de


escravos e o século XVIII pela instituição de um governo colonial autônomo em
Moçambique, no ano de 1752. Em meados do século XIX os povos
moçambicanos enfrentaram três fatos que mudaram o quadro social e político
do país, sendo eles: uma grave seca, a invasão de povos do interior e o
aumento do tráfico de escravos, que acabou por se tornar mais rentável do que
o comércio de ouro e marfim. Milhares de moçambicanos foram capturados e
exportados para países, como Cuba e Brasil, para trabalhar no cultivo de café,
algodão e açúcar.

No início do século XX, por volta de 1915, o controle da maior parte do território
moçambicano já pertencia a administração colonial portuguesa. Neste mesmo
período, uma parte da população da colônia que possuía mais recursos
culturais e educacionais, demonstrava consciência crítica em relação às
desigualdades sociais e a falta de liberdade existente em Moçambique através
de publicações em jornais.

Os movimentos contestatórios e a resistência ao sistema colonial aumentaram


nas décadas de 50 e 60, intensificados pelas 36 independências de colônias
africanas proclamadas neste período e pelo apartheid da África do Sul que “[...]
constituiu uma importante razão para o crescimento do ódio ao branco em
geral e, em particular, à administração portuguesa.” (HERNANDEZ, 2005,
p.604) Em 1960 três grupos políticos foram formados em Moçambique: a União
Democrática Nacional de Moçambique (Udenamo), a Mozambique African

161
Mestranda do programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PROGEL) da
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

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National Union (Manu) e a União Africana de Moçambique Independente


(Unami). Mais tarde, em 1962, esses três grupos fundiram-se e formaram a
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que em 1964 proclamou a luta
armada contra o regime colonial português.

Após dez anos de guerra colonial, em 1974 foi celebrado o acordo entre o
governo português e a Frelimo; e em 25 de junho de 1975 a independência de
Moçambique foi finalmente proclamada. Porém, mesmo após a proclamação
da independência, a paz não reinou em Moçambique. Os conflitos internos
existentes na Frelimo, de ordem político-ideológica, racial e étnico-regionais,
fizeram com que a luta armada continuasse. Assim, como muitas ex-colônias
portuguesas, após a independência, o país agora enfrentava uma guerra civil.

Em 1977 a guerra civil adquiriu maiores dimensões quando a Frelimo começou


a fazer frente a um grupo chamado Resistência Nacional Moçambicana
(Renamo). A guerra diminuía a existência das condições básicas que os povos
moçambicanos necessitavam para sobreviver: alimentação, saneamento
básico e habitação eram precários.

Somente em 4 de outubro de 1992 é que foi assinado um acordo que pós fim a
guerra civil moçambicana. Nos anos que se seguiram até os dias atuais o país
seguiu e segue lutando pela reconstrução das suas estruturas físicas e
identitárias, abaladas com as décadas em que esteve sob o domínio de
Portugal e com os diversos conflitos armados que sua população teve que
enfrentar.

Apesar de a ocupação portuguesa ter se iniciado no século XV, somente a


partir do século XIX é que podemos ver a influência do colonizador no ensino
educacional das colônias, fato que influenciou diretamente o surgimento de
atividades literárias e culturais de origem africana.

Em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Manuel Ferreira divide as


literaturas produzidas em solo africano em: Literatura Colonial e Literaturas
Africanas de expressão portuguesa. Ferreira afirma que “O texto colonial
representa e prolonga a realidade colonial; o texto africano nega a legitimidade
do colonialismo e faz, da revelação e da valorização do universo africano, a
raiz primordial.” (1987, p.14). No centro da narrativa da literatura colonial está o
colonizador e o nativo aparece marginalizado e coisificado; existe a
incapacidade de apreender o homem africano no seu contexto real e na sua
complexa personalidade. Na literatura africana de expressão portuguesa o
universo africano é visto de dentro, sob o ponto de vista único do homem
africano. O nativo é o centro da narrativa e há a valorização da cultura e das
tradições locais.

A virada do século XIX para o XX é marcada pelo surgimento de movimentos


conhecidos como movimentos de negritude, cujos objetivos eram a busca pela

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afirmação da personalidade negra, da igualdade entre negros e brancos e da


defesa dos direitos dos homens negros. É nesse período que há um aumento
na produção literária de obras que objetivavam a afirmação do ser africano e a
valorização de sua cultura e suas tradições autóctones. A literatura produzida
na África de língua portuguesa desde então objetiva ressignificar a identidade
dessas ex-colônias/recentes países, que por tanto tempo estiveram sob o
domínio de Portugal e tiveram sua cultura menosprezada e quase extinta pelo
colonizador.

Mia Couto e sua obra

António Emílio Leite Couto, nasceu na Beira, Moçambique, em 5 de julho de


1955. Filho de pais portugueses, estudou medicina por um tempo optando
depois por biologia, área em que se graduou. Trabalhou como jornalista e
atualmente atua como escritor e como pesquisador na área de ciências
biológicas.

Como escritor, Mia Couto tem várias publicações, sendo elas de poesias,
contos e romances. São alguns deles: Raiz de Orvalho (1983), Terra
Sonâmbula (1992), A Varanda do Frangipani (1996), Vinte e Zinco (1999), O
último voo do Flamingo (2000), Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada
Terra (2002), O Outro Pé da Sereia (2006), Veneno de Deus, Remédios do
Diabo (2008) e Antes de Nascer o Mundo (2009).

A literatura teve um papel de destaque em dois momentos importantes da


história das colônias africanas. Na fase em que o sistema colonial português
começou a entrar em declínio na África, entre os anos de 1965 e 1975, a
literatura foi utilizada como meio de expressar as ideias revolucionárias
daqueles que desejavam a independência de seu país e a partir do pós-
independência até os dias de hoje, a literatura africana é utilizada para resgatar
a identidade das ex-colônias perdida após tantos anos sob o domínio do
sistema colonial português.

É nesse segundo momento, na tentativa de utilizar a literatura para resgatar a


identidade moçambicana, que se encaixa a obra de Mia Couto, destacando-se
por dois aspectos principais: o projeto literário no qual baseia suas narrativas,
conhecido como projeto de moçambicanidade e a forma como utiliza a língua
portuguesa em sua obra.

A obra de Mia Couto é baseada na cultura de seu país, no resgate da tradição


oral e da sabedoria popular africana. Para isso ele utiliza diversos recursos,
como: mitos e lendas típicas de Moçambique, a utilização do sobrenatural para
explicar situações cotidianas e a chamada reinvenção da língua portuguesa,

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onde ele utiliza a língua de uma maneira inovadora para tentar expressar os
sentimentos de um povo em busca de sua identidade.

Jane Tutikian, autora de Velhas identidades novas – o pós-colonialismo e a


emergência das nações de Língua Portuguesa (2006), afirma que:

[…] Mia Couto deposita o seu grande projeto literário, o projeto de


moçambicanidade, o desvendamento da identidade de um país
esquecido de si devido aos mecanismos impostos pelo curso da
História, pelo colonialismo, pela primeira e segunda guerra coloniais,
a tentativa de despertá-lo do desatento abandono de si. (TUTIKIAN,
2006, p.60)

Para Tutikian, o grande objetivo da obra de Mia Couto é ressignificar a cultura e


as tradições moçambicanas que, por muito tempo, ficaram oprimidas em
decorrência do contato com o colonizador português. Para isso ele utiliza vários
mecanismos de resistência anticolonial em suas narrativas na tentativa de fazer
com que Moçambique e o povo moçambicano reconecte-se com suas origens.

No que diz respeito a linguagem, o autor se apropria da língua portuguesa e a


transforma, pondo em prática a estratégia de resistência anticolonial, de
nacionalização da língua do colonizador.

Mia Couto traz em suas narrativas uma nova maneira de utilizar a língua
portuguesa: existe a junção de duas palavras com significados distintos, cria
palavras a partir de outras, utiliza palavras pertencentes a uma classe em outra
classe gramatical, resgata palavras das línguas originais de Moçambique e
apresenta diferentes metáforas. A junção de todos esses elementos inovadores
acaba por culminar em uma forma de poetização da linguagem, onde o lírico é
por muitas vezes percebido na prosa.

A maneira como Mia Couto baseia seu trabalho na cultura do seu país, na
tradição oral africana, nos mitos e lendas que passam de geração em geração,
é uma forma de ajudar a fortalecer a identidade de um país que por tanto
tempo teve sua cultura reprimida pelo sistema colonial português.

O cego Estrelinho: imagens de Moçambique no pré e no pós-guerra

A coletânea de contos Estórias abensonhadas, cuja primeira edição data de


1994, só chegou ao Brasil em 1996, sendo o primeiro livro de contos de Mia
Couto a ser publicado neste país. Composta por vinte contos, o diferencial
dessa obra se dá pelo fato de que as histórias foram escritas no pós-guerra,
diferente das obras anteriores do autor, como ele mesmo afirma no prefácio do
livro:

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Essas estórias foram escritas depois da guerra. Por incontáveis anos


as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. (...) Estas
estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos
molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada.
(COUTO, 2012, p.5)

Na citação acima, está implícita a explicação para o jogo de palavras que


compõem o título da obra. A junção das palavras benção e sonho nomeiam
essas estórias que são marcadas, como afirma Anita Martins Rodrigues de
Moraes, “(...) tanto pela esperança na reconstrução do país como pela
necessidade de lidar com a memória traumática dessa guerra.” (2013, p.195)

O conto que nos propomos a analisar nesse presente trabalho é o terceiro


conto da coletânea e é intitulado de O cego Estrelinho. Neste conto que é
inédito, diferente de algumas narrativas da coletânea que haviam sido
publicadas anteriormente em jornais, nos é contada a história de Estrelinho,
que como o título indica, sofre de deficiência visual, e que a fim de conseguir
levar uma vida próxima ao normal, é obrigado a recorrer aos serviços de um
guia, neste caso Gigito Efrain. A necessidade dos serviços prestados por Gigito
é tão grande, que Estrelinho acaba por desenvolver uma relação de
dependência com o mesmo, como indica a passagem a seguir: “A mão de
Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era
repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal.” (COUTO, 2012,
p.21)

O grande diferencial dessa estória se dá pela maneira como Gigito descrevia à


Estrelinho a realidade vivida por ambos em um Moçambique antes da guerra.
Nas palavras de Gigito, a terra era descrita como cheia de encantos e
fantasias, o que muitas vezes não condizia com a realidade, mas era o
suficiente para maravilhar e plantar sonhos na mente de Estrelinho, como
podemos observar na passagem: “O mundo que ele minuciava eram fantasias
e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O cego
enchia a boca de águas: - Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo,
Gigito!” (COUTO, 2012, p.21)

De acordo com Jean Chevalier e Alain Gheerbrant no Dicionário de símbolos


(1998):

Ser cego significa, para uns, ignorar a realidade das coisas, negar a
evidência (...). Para outros, o cego é aquele que ignora as aparências
enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer
sua realidade secreta, profunda, proibida ao comum dos mortais.
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1998, p.217)

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Estrelinho desconhecia os problemas sociais, econômicos e estruturais


enfrentados pelo país após os confrontos armados na tentativa de derrubar o
sistema colonial. Era levado, através das narrações do seu guia, a conhecer
uma África mítica, cuja cultura primava pela tradição oral, fato esse
extremamente relevante quando consideramos que o personagem em questão,
apenas tinha acesso as imagens de sua terra através da palavra.

A mudança da percepção que Estrelinho tinha de Moçambique se dá quando o


guia Gigito é convocado pelo exército para lutar na guerra. O cego fica por um
tempo sem ter quem o guie e descreva para ele o que se passa no seu país.
Este período vivido por Estrelinho se assemelha em muito ao período vivido
pela população moçambicana no ápice da guerra civil, momento esse em que o
país se encontrava mergulhado no terror do conflito armado, completamente às
escuras.

Este processo de ficcionalização da história e historização da ficção, não é


novidade nas narrativas de Mia Couto. Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria
Zilda Ferreira Cury, autoras de Mia Couto: espaços ficcionais (2008), afirmam
que: “Da viagem real ao deslocamento imaginário, do cruzamento de tempos à
crítica do presente, os textos de Mia Couto inserem-se tanto na releitura da
história como na ficcionalização da condição do homem contemporâneo.” (p.
83-844) Através da maneira como a realidade era descrita ao cego Estrelinho,
Mia Couto vai fazendo um retrospecto dos momentos vividos por Moçambique
antes, durante e depois da guerra civil, trazendo assim a história para ficção.

Com o surgimento de uma nova personagem no conto em questão, nos é


apresentado, a nós leitores e a Estrelinho, uma nova perspectiva a respeito das
imagens de Moçambique. Antes de ir para guerra, Gingito incumbiu sua irmã,
Infelizmina, de continuar com a tarefa de guiar o cego. A escolha do nome da
personagem faz menção ao tipo de realidade que ela iria trazer para a vida de
Estrelinho,

Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele


mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho
perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir,
deixou de queixar. (COUTO, 2012, p.24)

O que acontece com Estrelinho após a chegada de Infelizmina e a triste


realidade que ela reproduz, se assemelha ao que ocorreu em Moçambique no
pós-guerra: a seca, a fome e os resquícios dos conflitos armados assolaram o
país, que entrou em um processo de apagamento, esquecimento de si.

Aos poucos, assim como Moçambique, Estrelinho vai se recuperando e se


readaptando a sua nova condição, aceitando aquela como sua nova realidade.

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Com a morte de Gigito na guerra, morre também o Moçambique descrito por


ele, terra de fantasias e de maravilhas.

De acordo com Fonseca e Cury, nas narrativas de Mia Couto existe


(...), verdadeira purgação de várias realidades – a guerra, os
despojos da colonização, a morte, o abandono de crianças e velhos,
a ruptura com o passado ancestral e outros cortes violentos –
aparece a força redentora da superação, da possibilidade utópica de
uma outra nação a ser construída em “outro tempo”. (FONSECA &
CURY, 2008, p.89)

Em relação ao conto, os papéis de cego e guia se invertem, e Infelizmina vai


aos poucos, com a ajuda de Estrelinho, construindo essa visão utópica e
fantástica da realidade, como mostra a passagem a seguir:
Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da
casa. Então, iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários
firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se
sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territórios. Sim, a
moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira
antes de ter nascido. (COUTO, 2012, p.25)

No conto O cego Estrelinho, que integra a coletânea Estórias abensonhadas, é


perceptível a tentativa do narrador de nos fazer ver Moçambique através da
percepção do protagonista. Primeiro como a terra mística e fantasiosa, quando
descrito por Gigito; depois como o escuro no qual o país mergulhou durante a
guerra quando Gigito abdicou de seu posto para lutar na guerra e por fim, como
a realidade sem fantasias, nas palavras de Infelizmina, que no final acabou por
se render aos encantos dessa terra, que mesmo após sofrer com os diversos
conflitos e problemas de diferentes naturezas, não cessa a sua capacidade de
fazer sonhar e imaginar.

REFERÊNCIAS

CHEVALIER, Jean; GHEEBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos,


sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: J.
Olympio, 1998.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras,


2012.

FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São


Paulo: Ática, 1987.

771
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto:
espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à


história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.

MORAES, Anita Martins Rodrigues de. A palavra é fumo: algumas notas sobre
Estórias abensonhadas, de Mia Couto. In: CAVACAS, Fernanda; CHAVES,
Rita; MACÊDO, Tania. (org.). Mia Couto: um convite à diferença. São Paulo:
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SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São


Paulo: Ática, 1985.

TUTIKIAN, Jane. Velhas Identidades Novas - O pós-colonialismo e a


emergência das nações de Língua Portuguesa. Porto Alegre: Sagra
Luzzatto, 2006.

772
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ENTRE SONHOS E IDEOLOGIAS, A PESTANA CONTINUA VIGIANDO O


OLHAR: PEPETELA E SUA ARTE

CIBELE VERRANGIA CORREA DA SILVA (UFES – FAPES)162

Apresentação

[…] Costumo dizer que é preciso


acreditar para que as coisas
aconteçam. Eu quero acreditar.
Agora há uma certa esperança”
(Pepetela)

O presente trabalho procura discorrer sobre algumas perspectivas


teóricas e analíticas sobre o papel da literatura nas transformações políticas,
sociais e culturais de Angola, através da apresentação de um dos principais
autores da literatura angolana moderna, ou seja, Pepetela, que se coloca com
um ícone na produção narrativa de caráter engajado, denunciativa e de
resistência, propondo olhares que dialogam diretamente com uma função
interventiva da arte literária na produção de subjetividades e valores autóctones
e de busca por uma identidade autônoma da nação.

A literatura angolana, no seu desenvolvimento autoral, de desconstrução


com o modelo hegemônico colonial, forjou-se na produção discursiva pautada
na crítica social e na denúncia das situações de miséria, opressão, violência e
subalternidade que sobrevivia os sujeitos nesse contexto, colocando-se como
arma de combate e de luta por transformações sociais, políticas e ideológicas
em território angolano e grande parte dos autores, ativistas de tal anseio, serão
os “missionários” de tal empreendimento.

162
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito
Santo, área de Estudos Literários, recebendo financiamento da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Espírito Santo (FAPES).

773
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

É nesse universo de luta e resistência, que propomos analisar a figura


de Pepetela à luz de algumas teorias que versam sobre as formações
identitárias na pós-colonialidade, observando que contribuições os estudos
pós-coloniais, bem como da modernidade/colonialidade pensada para o
contexto latino-americano se aplicam aos espaços de África e às perspectivas
da produção literária e do papel do escritor, como sujeito independente e
ativista das políticas de resistência e de valorização dos ideais e sonhos das
comunidades nas periferias do poder.

Utilizamos para compor esta trajetória, alguns temas e teorias essenciais


para os estudos pós-coloniais, como por exemplo, a noção de entre-lugar do
brasileiro Silviano Santiago, bem como a ideia de além e culturas fronteiriças
de Homi Bhabha; a necessidade da construção de novas epistemologias que
representem em sua plenitude os sujeitos subalternizados no lugar das
diferenças e no fortalecimento das tradições nas visões de Walter Mignolo e de
Rócio Medina Martín e entrevistas concedidas pelo próprio ficcionista em que
são discutidas tais questões. Abordamos também a questão do papel do
intelectual, escritor, ativista no contexto dos estudos pós-coloniais e em que
balizas este se pauta para promover seu discurso e sua práxis no lugar da
desconstrução, trabalhado por Nilma Lino Gomes e Antonio Gramsci na sua
visão de intelectual orgânico; por fim, observamos a questão da produção
identitária e da formação de referências simbólicas na obra de Stuart Hall e
como certas formações aparecem no olhar, nos sonhos e nas ideologias do
autor.

Pepetela e sua arte: a pestana na vigilância do olhar

Pepetela, pseudônimo de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos ou


simplesmente Pepe como o chamam os mais íntimos, é o grande nome da
literatura angolana na modernidade e por que não dizer, das literaturas de
língua portuguesa. Pestana, que em umbundo significa Pepetela, mais do que

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

um apelido ou “nome falso”, é a marca simbólica da sua subjetividade como


ativista, escritor, combatente, intelectual, militante, sujeito político e social da
História de Angola. A pestana, na visão de Mia Couto simboliza “essa vigilância
do olhar sobre as mudanças de que somos sempre corresponsáveis” (COUTO,
2009, p. 82) e preconiza essa visão metafórica de um autor que constrói o seu
devir na observação constante do seu discurso e da sua postura como agente
transformador da realidade e porta voz dos sonhos e anseios de todo um povo.

Os seus grandes romances sugerem uma continuidade entre


gerações, uma harmonização de diferenças numa mesma totalidade.
Esta urgência de pertença, esse contorno que contém e esbate
diferenças é, afinal, Angola. A ideia de angolanidade está presente
em toda a sua obra mas de forma tão natural que não a condiciona
do ponto de vista literário. Pepetela está a escrever não sobre
Angola. Ele está escrevendo Angola, essa que há mas que ainda não
existe, a sonhada e a geradora de sonhos (COUTO, 2009, p. 82).

Apesar da intensa participação política na formação da sociedade


angolana vinculada diretamente ao projeto da independência colonial, como
agente profundamente participativo dessa experiência como guerrilheiro,
professor, produtor de discursos, ativista etc., é com a literatura que Pepetela
realiza seu ideal transformador. Suas narrativas são construídas na perspectiva
do engajamento e da formação de personagens e de uma estética que
representa esse ideal de produção de um mundo novo, mais justo, forjado em
moldes autorais, observando na arte literária seu potencial de intervenção na
realidade. Pepetela não dissocia o fazer literário com a práxis social,
colocando-o como um autor que propõe narrativas didático-pedagógicas
denunciadoras dos problemas da nação em construção: “[...] a literatura e essa
preocupação social apareceram ligadas em mim desde o princípio, portanto,
agora é um bocado tarde para mudar..., há é que aperfeiçoar isso...”
(PEPETELA, 1991 pud LABAN, 2009, p. 31).

É possível perceber através da afirmativa acima seu comprometimento


com a construção de um fazer literário voltado para os problemas e as
questões sociais, numa tentativa de mapear a realidade e assim propor
estratégias de mudanças e novas formas de vislumbrar a identidade da nação.

775
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Nesse contexto, a produção pepeteliana forja-se numa intelectualidade


orgânica, pensada e afirmada naquilo que preconiza Gramsci sobre esse papel
e a atuação do intelectual na sociedade que deriva, assim:

[...] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na


eloquência, motor interior e momentâneo dos afetos e das paixões,
mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor,
organizador, “persuasor permanente”, já que não apenas orador puro
– e superior, todavia, ao espírito matemático abstrato; da técnica-
trabalho, eleva-se à técnica-ciência e à concepção humanista
histórica, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a
“dirigente” (especialista mais político) (GRAMSCI, 1982, p. 08).

Esse intelectual é aquele que transcende a ideia clássica de


distanciamento do objeto referenciado, mas ao contrário, é através do seu
conhecimento como agente da ação, envolvido profundamente com os
problemas que atravessam a sua realidade, que o autor confere voz aos
grupos historicamente silenciados e subalternizados, por fazer parte desse
universo, como sujeito marcado pela diferença (aqui representada pelo seu
pertencimento africano), ou seja, “[...] não mais um olhar distanciado e neutro
sobre o fenômeno do racismo e das desigualdades raciais, mas, sim uma
análise e leitura crítica de alguém que os vivencia na sua trajetória pessoal e
coletiva [...]”163 (GOMES, 2010, p. 496).

Pepetela assume em suas obras o ponto de vista do subalterno quando


refere-se ao seu pertencimento como sujeito africano, angolano, que ocupa a
periferia do poder e que se insere no lugar da exclusão e da diferença. Seu
engajamento se dá na construção de narrativas que denunciam as questões
das desigualdades étnico-raciais, do racismo, das diferenças de classe, do
modelo eurocêntrico opressor, do sexismo, da invasão neoliberal do capital,
enfim, concede voz aos sujeitos violentados pelas hegemonias excludentes.

163
A citação refere-se ao texto “Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas
reflexões sobre a realidade brasileira” de Nilma Lino Gomes (referência completa no final deste
trabalho), que constrói um panorama sobre a formação da intelectualidade negra no Brasil a
partir da década de 1990 e sua produtividade no cenário dos estudos da diferença.
Escolhemos trabalhar com tal artigo, pois acreditamos que algumas categorias abordadas para
a intelectualidade se aplicam ao papel do autor angolano apresentado.

776
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

São [...] sujeitos que não estão obrigados a somente produzir


conhecimento sobre o negro, mas que dentro de qualquer campo do
conhecimento onde estiverem, indagam a sociedade, a universidade
e a ciência do lugar da raça, ou seja, não têm receio de expressar
que já nascemos em um espaço/tempo racializado e até em um
pensamento social racializado [...] não negam que estamos em um
campo no qual se cruzam relações de raça e poder [...] (GOMES,
2010, p. 502).

Nesse sentido, o autor defende a tese de que a intelectualidade deve ter


o compromisso de exprimir suas opiniões e indignações, e que suas produções
têm a missão de construir saberes que despertem a população e produza um
levante de resistências e afrontamentos epistemológicos, na busca por
produção de rachaduras na estrutura colonial.

Os intelectuais têm o direito e o dever de exprimir as suas opiniões e


até revoltas. Os governos têm de aprender a conviver com isso como
coisas normais. Só quando as palavras deixam de ter impacto social,
porque são censuradas e, portanto, as aspirações de grupos de
população não são atendidas, é que há a tentação de utilizar outros
meios, entre os quais as armas (PEPETELA, apud, CRISTÓVÃO,
2009, p. 33).

Do ponto de vista da linguagem, o autor assume a perspectiva da


apropriação, uma vez que a língua portuguesa apesar de ter sido incorporada à
expressividade angolana através da violência colonial e com o intuito da
dominação, ela se tornou arma de combate e produto de crítica à colonialidade
do poder. Assim, para além de uma aproximação com a ideia de padrão ou
universalidade, é através da língua do opressor, que o autor propõe sua
reinvenção identitária, ocupando as fronteiras do além.

Para pensar esta questão das línguas forjadas no espaço da violência


colonial e que se colocam como produtos de resistência quando da apropriação
pelo sujeito subaternizado, Walter Mignolo, importante estudioso argentino
sobre as questões das relações de poder no contexto colonial/decolonial e que
prioriza as desconstruções dos padrões hegemônicos de subjetividades e
construção de saberes, afirma que:

777
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

As alianças, em última análise, não são firmadas por línguas ou


tradições apenas, mas por objetivos e interesses comuns no campo
de forças estabelecido pela e na colonialidade do poder [...]. Se suas
línguas [...] são diferentes, sua história é comum (a crítica à
colonialidade do poder). Mas para chegar a essa conclusão [...] foi
necessário ir além do pensamento territorial (transcendendo
fronteiras) e situar-se nas fissuras; rasurar fronteiras [...] e
164
transcender dicotomias (MIGNOLO, 2003, p. 202).

Pepetela propõe rasurar, fissurar a língua portuguesa, quando impregna


seus textos de expressões e palavras de diversas línguas locais, produzindo
um hibridismo linguístico, afrontando a norma. O autor acredita que a língua é
um “ser” em mutação, que está sempre evoluindo, sofrendo interferências,
assim como a própria identidade em construção.

Nesse sentido, o caminho da desobediência epistêmica que tanto milita


Mignolo será a proposta para a possibilidade de se produzir saberes e
conhecimentos autorais, propondo o empoderamento dos sujeitos
subalternizados quando estes rompem com as epistemologias hegemônicas,
que ao longo da história tem excluído as diferenças, bem como construindo
estereótipos depreciativos e visões estigmatizadas.

Mignolo, no caminho de romper com as estruturas padrão da


colonialidade do poder, discorre sobre a noção de pensamento liminar, algo
que se constrói com base nas tradições e na reinterpretação das subjetividades
e identidades no contexto da modernidade/colonialidade. Aqui a perspectiva
cultural fronteiriça se coloca como o lócus ideal da cultura:

[...] o pensamento liminar está caminhando em [...] direção a uma


nova consciência (epistemológica) onde a “cultura” [...] está sendo
rearticulada como uma consciência dupla, creolité, ou, em resumo,
como pensamento liminar (MIGNOLO, 2003, p. 232).

Vemos a arte de Pepetela dialogando com essa necessidade de


desconstrução. As personagens de seus romances são construídas com base

164
Walter Mignolo, pensador dos estudos da modernidade/colonialidade, refere-se aqui ao
contexto da América Latina, porém, pelas experiências de dominação e opressão colonial
muito próximas, acreditamos poder aplicar suas teorias nos estudos do pós-colonial em África.

778
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

numa identidade plural, que tenta conciliar tradição e modernidade,


apresentando-se comportamentos e subjetividades compatíveis com os valores
fragmentários e inconstantes presentes na contemporaneidade. São fortes,
empoderadas, denunciam as relações de poder e opressão marcadas pela
herança colonial patriarcal e tentam forjar sua existência na política do
afrontamento e da resistência.

Percebemos essas perspectivas, por exemplo, nas personagens Ondina


e Sara, dos romances Mayombe (1980) e A geração da utopia (1992),
respectivamente, como precursoras desse projeto de construir personagens
femininas que por sua subjetividade de força e resistência, afrontam as
relações patriarcalistas e o status quo hegemônico. Elas representam a força e
a resistência dos sujeitos femininos que buscam sua identidade no contexto da
pós-colonialidade e da igualdade de gênero a partir de suas dores, anseios,
sonhos e expectativas, colocando-se no centro do debate e da proposta de se
reinventar a identidade nacional.

A perspectiva socialista e libertária do autor, faz com que ele crie


personagens femininas que denunciam a sujeição que muitas vezes a
mulher vive no contexto patriarcal, possibilitando uma afronta a esta
realidade, construindo um discurso de resistência e de enfrentamento
às situações de opressão e violência em que a mulheres sobrevivem,
objetivando um outro lugar para o gênero feminino. Pepetela cria
mulheres fortes, resistentes, que ousam desafiar a norma e o padrão
pré-estabelecido, em um mundo dominado por homens,
principalmente no que tange à questão da sexualidade, de
apropriação do corpo e a construção de subjetividades autorais e
autônomas (SILVA, 2015, p. 03).

No romance Mayombe teremos personagens-narradores que denunciam


os mandos e desmandos da guerra colonial e os diversos favorecimentos, bem
como a corrupção no seio do projeto emancipador. São também heróis
fragmentados, que buscam a consolidação dos sonhos através da luta armada
e crença na instauração de um estado justo e igualitário. Já em A geração da
utopia, o autor constrói um romance de desencanto, em que os anseios por
justiça e liberdade em território angolano, cedem lugar a atmosfera de
melancolia e de desapontamento, novamente apresentando o caráter plural e
inovador de Pepetela com seu projeto literário.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Podemos afirmar que pela criação estética, bem como a visão política e
emancipadora, temos um autor que transita nas fronteiras do entre-lugar da
produção pós-colonial. O termo cunhado por Silviano Santiago, importante
pensador dos temas da identidade nacional brasileira e do contexto da
colonialidade, nos fala de uma postura de desconstrução, em que a principal
marca é o conflito e a necessidade de produzir discursos e ações que conciliem
tradição e modernidade, num apelo para as especificidades das alteridades e
pelas novas formas de poder e de gestão de subjetividades, na construção de
“outras epistemologias” nas pluralidades culturais. Santiago afirma que:

[...] no momento exato em que se abandona o domínio restrito do


colonialismo econômico, compreendemos que muitas vezes é
necessário inverter os valores que definem os grupos em oposição e,
talvez, questionar o próprio conceito de superioridade (SANTIAGO,
2000, p. 10).

Estar no entre-lugar é ocupar um tempo revisionário, em que passado e


presente são elementos em construção, pois vive-se nas fronteiras culturais da
tradição e da modernidade. O sujeito pós-colonial é um sujeito que experiencia
caminhar nas fronteiras do além, pois busca sua identidade na intersecção dos
tempos. O presente é um lugar a se construir, na ressignificação do passado e
dos valores construídos pelos complexos coloniais.

Nosso autor “estava destinado a ser um desses seres de fronteira que


contrabandeavam valores, histórias e fantasia” (COUTO, 2009, p. 83), pois sua
arte caminha nos limites do tempo e dos sentimentos. Sua missão como
escritor, é propor obras que de fato tenha uma estética angolana,
desconstruindo com o modelo eurocêntrico opressor, ao mesmo tempo, que
tem o compromisso de denunciar as mazelas vivenciadas pelos marginalizados
em Angola e propor alternativas de fuga, ou seja, uma estética fronteiriça de
resistência.

Sobre esse contexto fronteiriço da cultura e a necessidade de se revisar


o passado para reinventar o presente, Homi Bhabha, importante pesquisador
dos estudos pós-coloniais, nos auxilia pensar a identidade nesses espaços de

780
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

fuga e intersecção, uma vez que o contexto da pós-colonialidade se coloca


nesse lugar nenhum, numa tentativa profunda de conciliação do tradicional com
o moderno, do genuíno com o híbrido, do antes e do agora.

[...] encontramo-nos no momento do trânsito em que espaço e tempo


se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade,
passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso
porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção,
no “além”: um movimento exploratório incessante, que o termo
francês au-delá capta tão bem – aqui e lá, de todos os lados, fort/da,
para lá e para cá, para a frente e para trás (BHABHA, 1998, p. 19).

No buscar uma identidade própria, autóctone, as narrativas de Pepetela


exploram a noção de angolanidade, em que se busca valorizar as
especificidades da terra, das tradições, das ambiguidades, das características
mais próprias, para assim, pensar essa nova identidade, sem o jugo da
máquina colonial, forjada em valores autorais. Ser angolano é poder livrar
Angola e seu povo do complexo colonial português e estar “desse” lado
registrando suas aspirações e seus anseios, registrando a história passada,
ajudando a vencer o presente e traçando caminhos para o futuro: ser angolano
é tornar-se um homem inteiro a serviço de um povo inteiro.

Neste sentido, a identidade é um processo em construção, uma vez que


o indivíduo não nasce angolano, mas torna-se e o que vai determinar essa
postura é o compromisso ou a escolha que o sujeito se permite ter com a
nação, ou seja, seu engajamento e apego é uma escolha e não uma imposição
ou obra do acaso.

Para pensarmos essa identidade múltipla e complexa, nos embasamos


no trabalho de um dos principais teóricos dos estudos culturais, o jamaicano
Stuart Hall, que nos auxilia a pensar esse ideal de identidade nessa
perspectiva híbrida, fragmentada e plural de que são tão fortemente
interpelados esses sujeitos e suas nações que se ressignificam na
contemporaneidade.

Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como


não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A
identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada

781
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

continuamente em relação às formas pelas quais somos


representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam (HALL, 1987, p. 13).

Observando a identidade como um produto em construção, em se


tratando de sociedades que se formam dentro dessa perspectiva pós-colonial,
a ideia de fragmentação e pluralidade serão os elementos base de tal
construção, em que as multiplicidades de caracteres e a luta pela igualdade
para as diferenças serão os motes dessa busca.

Veremos assim, a formação de diferentes discursos e posicionamentos,


uma vez que as várias alteridades serão a marca principal dessa formação
identitária. Há de se combater, portanto, hegemonias e purismos, pois outras
vozes circundam a cena desses entre-lugares:

[...] as sociedades da modernidade tardia [...] são caracterizadas


pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e
antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes
“posições de sujeito” – isto é, identidades – para os indivíduos [...]
(LACLAU, apud HALL, 1987, p. 170).

Pepetela, assim, se coloca com um autor que defende e busca assinar


os traços das alteridades como as marcas da nova identidade angolana, em
que diferentes vozes e visões pululam no imaginário da sociedade, observando
o lugar da diversidade e das diferenças, sendo esta a real e verdadeira riqueza
da nação.

Assim, temos um autor que vivencia esse tempo revisionário de que


falamos anteriormente e ousa produzir uma arte que caminha na contra
corrente do universalismo e das construções modelares hegemônicas. Sua
visão de sujeito pós-colonial e sua postura ideológica combatente e de
resistência, irrompe produções que desafiam o status quo e afrontam
estruturas engessadas e conservadoras, nesse sentido, a desobediência
epistêmica e a ousadia do novo, que reinventa a tradição, desejando

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

transformá-la para vislumbrar uma saída verdadeiramente autônoma, serão as


armas de tal conduta.

Para Rócio Medina Martín, pensadora dos estudos da


colonialidade/decolonialidade e que propõe olhares outros para as formações
identitárias na alteridade, esse pensamento decolonial se fundamenta no
sujeito colonial, ou seja:

Como elemento genealógico común, el pensamiento decolonial se


fundamenta em el Ser Colonial, a su vez basado em el No Ser
(Fanon, 2009) y que aspira al Ser Decolonial. Como consecuencia, el
giro epistêmico decolonial implicará necesariamente una
“desobediencia epistémica” que, mediante el desprendimento de la
retórica de la modernidad y de la lógica de la colonialidad, persigue la
decolonialidad del poder, abriendo la posibilidad de formas de vidas-
otras que transcienden el pensamiento único eurocêntrico (MARTÍN,
2013, p. 61).

Nessa transcendência epistêmica em torno de se construir as


identidades plurais, fragmentadas, instáveis e diversas, temos um intelectual-
escritor-ativista compartilhando saberes, orientando sua arte para a valorização
da diferença e das novas cosmovisões e ações. Assim, desejamos que a
pestana continue em prontidão, vigiando o olhar e transformando sonhos e
planos, na fronteira do devir e da vida

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi. “Locais da cultura”. In: O local da cultura. Trad. Myriam Ávila;
Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1998.

COUTO, Mia. “Pepetela – a pestana vigiando o olhar”. In: CHAVES, Rita &
MACÊDO, Tania. Portanto... Pepetela. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

CRISTÓVÃO, Aguinaldo. “O escritor é um ditador no momento da escrita”. In:


CHAVES, Rita & MACÊDO, Tania. Portanto... Pepetela. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2009.

GOMES, Nilma Lino. “Intelectuais negros e produção do conhecimento:


algumas reflexões sobre a realidade brasileira”. In: SOUSA SANTOS,

783
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Boaventura de & MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São


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organização da cultura. 4ª edição. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, pág. 03-23.

HALL, Stuart. “A identidade em questão”. In: A identidade cultural na pós-


modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 4ª edição.
Rio de Janeiro: DP&A, 1987.

LABAN, Michel. “Angola – encontro com escritores”. In: CHAVES, Rita &
MACÊDO, Tania. Portanto... Pepetela. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

MARTÍN, Rocío Medina. “Feminismos periféricos, feminismos-otros: uma


genealogia feminista decolonial por reivindicar”. Revista internacional de
pensamiento político. Época, vol. 8, p. 53-79.

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ocidentalismo e o argumento (latino-)americano. In: Histórias locais, projetos
globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo
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utopia de Pepetela. Belém: XIV Abralic, 2015.

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literatura nos trópicos. Ensaios sobre dependência cultural. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 9-26.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

LITERATURA E QUESTÕES IDENTITÁRIAS EM


A PALAVRA E OS DIAS, DE VERA DUARTE

INARA DE OLIVEIRA RODRIGUES (UESC)*

Até que um dia

Farta já dos voos rasantes

Que planam sem ousar

Me arme de um hino revolucionário

E parta...

Em direção a uma madrugada diferente!

(Vera Duarte – Amanhã amadrugada)

Estudar as literaturas africanas de língua portuguesa, especificamente,


neste trabalho, a de Cabo Verde, implica reconhecer e problematizar os
entrecruzamentos dessas criações artístico-literárias com a história e a cultura,
em um quadro complexo de embates epistemológicos quando esse estudo se
faz “do sul” para “o sul” do atual mundo globalizado. Por meio dessa
abordagem, torna-se incontornável reconhecerem-se os principais
desdobramentos do processo de colonização posto em marcha pela/na
modernidade.

Considerando-se a importância de se reconhecer o lugar de onde se vê


o mundo, a Teoria pós-colonial se constitui em perspectiva relevante, no campo
dos estudos literários para o caso que aqui importa, ao problematizar sentidos
identitários, relações subalternas e possibilidades de emancipação em
sociedades marcadas, de diferentes formas, pelos processos de colonização.
Mais recentemente, entretanto, as perspectivas teóricas do pós-colonialismo

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

têm recebido algumas considerações que interrogam sua capacidade de


ultrapassar os limites dos diferentes processos de dominação colonial. Como
afirma Inocência Mata (2007, p. 41):

[...] o pós-colonial denuncia sua marca de dependência e um


compromisso contraditório com os empreendimentos (colonialismo e
anticolonialismo) que o precederam e possibilitaram e que, para
combater, tem de digerir – o que, a meu ver, não tem conseguido,
antes antagonizado, as diferenças.

A par dessas considerações críticas, desenvolveram-se e desenvolvem-


se, de maneiras variadas, a tarefa proposta pelo argentino Walter Mignolo
(2013): investimento em projetos “descolonizadores” que iniciem pela
descolonização do próprio conhecimento e do próprio ser. Tarefa que almeja
questionar a episteme tradicional eurocêntrica, bem como rasurar as noções e
as práticas de autoridade, de poder econômico e cultural que perpetuam a
discriminação e a exploração de povos que foram vítimas dos processos
coloniais da Modernidade.

Por epistemologia entende-se, aqui, “toda a noção ou ideia, refletida ou


não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido” (SANTOS,
2010, p. 15). E, ainda, segundo o pensador português: “É por via do
conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e
inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e atores sociais” (p. 16).

Nesse esforço de (re)pensar as diferenças, os diferentes saberes


praticados por variados atores sociais, encontra-se o conceito de “decolonial”,
sugestão de Catherine Walsh, integrante do Grupo Modernidade/Colonialidade,
vincando uma diferença conceitual em relação ao termo “descolonização”: “[...] a
supressão da letra 's’ marcaria a distinção entre o projeto decolonial do [referido
Grupo, integrado por Quijano; Dussel; Grosfoguel; Maldonado-Torres; Mignolo;
Palermo, entre outros] e a ideia histórica de descolonização, via libertação
nacional [...]” (BALLESTRIN, 2013). Segundo Zulma Palermo (2010): “Interesa
centralmente a los objetivos de la ‘opción decolonial’, cuestiones relativas a la
generación de formas de conocimiento alternativas, fundadas en un principio que
no escapa a la lógica de la modernidad en sus tiempos tardios”.

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Assim, pensar alternativas de conhecimento significa reconhecer que o


colonialismo, para além de todas as dominações, “foi também uma dominação
epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que
conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou
nações colonizadas” (SANTOS, 2010, p. 19). Concordando-se com tal
afirmativa, importa estudar a literatura cabo-verdiana de língua portuguesa a
partir do olhar/pensar as diferentes realidades socioculturais na qual se insere,
em seus marcos contextuais plurais (étnicos, linguísticos, socioculturais,
históricos, políticos, econômicos).

Nesse sentido, afirmando-se a importância da crônica como tecido


narrativo capaz de instigar, em profundidade, reflexões sobre a realidade com a
qual dialoga, selecionou-se, para a presente análise, o livro de crônicas A
palavra e os dias (2013), da autora cabo-verdiana Vera Duarte. Propõe-se
analisar nessas narrativas, de forma geral, e em alguns textos particularmente,
a serem anunciados a seguir, como são apresentados e afirmam-se sentidos
de identidade cultural: a cabo-verdianidade.

Ao levar-se em conta a especificidade da crônica enquanto gênero


narrativo 165, não se deve perder de vista sua dimensão dialógica e
interpelativa, cujo maior ou menor distanciamento com a realidade factual não
implica a ausência da subjetividade do cronista. Essa marca subjetiva reveste-
se, via de regra, de estratégias literárias que se revelam de diferentes formas
no texto e nesse entrecruzamento do real com a dimensão literária reside,
justamente o caráter híbrido da crônica.

Por esse último aspecto, outra questão recorrente quando se intenta


apontar as características e marcas definidoras desse tipo de narrativa diz
respeito à temporalidade. A partir de sua própria terminologia, as marcas
temporais do gênero se, por um lado, afirmam sua historicidade, na medida em
que está plantado no real imediato em seu movimento dinâmico, por outro, tal
fugacidade do tempo implica na própria efemeridade do texto. Tal efemeridade
torna-se mais fortemente percebida quando a crônica tem por suporte o jornal,
165
Trechos desse texto sobre características da crônica enquanto gênero narrativo foram retirados de
meu artigo “Efemeridade e permanência no Livro de crônicas, de António Lobo Antunes” [Navegações,
Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 141-146, jul./dez. 2009].

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ou revista, meios impressos de rápida e massiva divulgação. Nesse caso, o


texto narrativo associa-se, em geral, às demais matérias e à própria
diagramação do periódico, aumentando sua circunstancialidade.

A relativa transitoriedade da crônica não diminui, contudo, sua qualidade


informacional e estética, uma vez que o cronista, ao colocar em ação os
referidos elementos narrativos/constitutivos do gênero, torna-se capaz de
recriar o real, de forma imaginativa e elaborada. Dessa forma, o coloquialismo
alia-se ao literário, ultrapassando qualquer simplificação de linguagem e de
estilo, permitindo uma reflexão crítica sobre o mundo. Além disso, ao cronista
sempre corresponde certa perspectiva “pedagógica, de contornos ideológicos,
mais ou menos marcados, recorrendo normalmente a um discurso acessível e
centrado na atualidade” (REIS, 1994, p. 88). A preocupação com a atualização
permanente dos textos acaba por gerar uma multiplicidade de temas,
procurando dar conta da igual multiplicidade dos vários aspectos da vida,
difundidos a um público que se quer cativar e ampliar cada vez mais.

A partir do momento em que é compilado em livro, contudo, tal gênero


narrativo resgata sua perenidade, assumindo um caráter organizacional que
permite, assim, uma leitura mais atenta e profícua:

Nessa mudança de suporte, que implica a mudança de atitude do


[receptor], a crônica sai lucrando. As possibilidades de leitura crítica
se tornam mais amplas, a riqueza do texto, agora liberto de certas
referencialidades atua com maior liberdade sobre o leitor – que passa
a ver novas possibilidades interpretativas a partir de cada releitura
(SÁ, 1987, p.85).

Diante dessas considerações, Brito-Semedo, escritor cabo-verdiano, em


postagem no seu blog, Esquinas do tempo, datada de 11 de abril de 2011, para
apresentar o livro Crônicas que a vida conta, do também escritor cabo-verdiano
Daniel Medina, explica que:

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em Cabo Verde, existe uma longa tradição de crónicas veiculadas


pela imprensa escrita, cultivadas pelos nossos melhores jornalistas e
escritores, nomeadamente Eugénio Tavares (Brava, 1867-1930),
José Lopes (S. Nicolau, 1872-1962) e Afro, ou melhor, Pedro
Cardoso (Fogo, 1890-1942), mantendo-se até aos nossos dias, de
que Daniel Medina é um exímio cultor (http://brito-
semedo.blogs.sapo.cv/96705.html).

Dentre as escritoras, destacam-se, além de Vera Duarte, também


Fátima Bettencourt, ambas poetas e, no caso da primeira, também romancista.
Vale relembrar as considerações de José Saramago no seu texto “A crônica
como aprendizagem: uma experiência pessoal” 166, em que o autor português,
exímio cronista, deve-se sublinhar, defende a importância da crônica como
gênero literário, afirmando tratar-se, em muitos casos, de “uma de suas mais
completas e acabadas expressões”. Isso porque, para Saramago, entre outros
aspectos, a concisão do texto exige “capacidade de medida e de concentração,
a par de sensibilidade a estímulos que à primeira impressão poderão parecer
de pouca relevância, mas que virão a ser, porventura, os que mais fundo hão-
de penetrar no espírito do leitor”.

Trata-se de um gênero aberto a grandes variações de tons e de modos,


que vão “desde o lírico ao patético, desde o sério ao irónico, desde a mais
rigorosa preocupação objectivista ao abandono às subjectividades mais
íntimas”. Além disso, segundo Saramago,

quiçá tanto quanto o poema, a crónica será o género literário em que


mais produtivamente é possível criar uma atmosfera propícia ao que
denominaríamos, na falta doutra expressão mais rigorosa, a sempre
activa tentação confessional do autor.

Essa dimensão confessional encontra-se, sem dúvida, em muitas das


narrativas curtas de Vera Duarte, que passaremos a abordar.

166
Disponível na Fundação José Saramago: < http://www.josesaramago.org/a-cronica-como-
aprendizagem-uma-experiencia-pessoal>. Acesso em: set./2015.

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No prefácio de A palavra e os dias, a professora Christina Ramalho


explica que os textos selecionados para essa antologia foram publicados pela
autora na revista cabo-verdiana Mudjer, também foram “faladas na Rádio Cabo
Verde, além de inéditas, algumas delas inclusive escritas para compor esse
livro” (p. 10). A obra está dividia em oito seções, com desigual número de
crônicas em cada uma, correspondendo aos “principais campos semânticos
abordados por Vera em sua trajetória como cronista” (p. 14). São elas: “As
ilhas, um país”; “As mulheres”, “Outras lutas”, “Educação”, “Brasil”, “Espelhos”,
“A casa”, e “Crônica”. Nessa reunião, as narrativas compõem um painel da
realidade cabo-verdiana que vai, de maneira não cronológica, dos anos de
1982 a 2012, e são intermediadas com poemas da autora.

Aqui, necessariamente de forma sintética, os textos serão abordados


também sem preocupação com a ordem em que aparecem na obra, mas em
conformidade com certa linha de leitura que pretende demonstrar sentidos
críticos e de esperança em relação ao futuro de Cabo Verde. Por esse viés,
destaca-se inicialmente a crônica “Park 5 de julho”, incluída na seção “A casa”.
Trata-se do relato sobre um final de tarde de domingo em que a autora sai a
passear com “o carro cheio de crianças” (p. 186) e vai dar ao Parque 5 de
julho. A descrição que se segue após a chegada ao parque faz transbordar o
sentimento de alegria e esperança que invade a autora e, liricamente, a faz
compartilhar os sonhos desse Cabo Verde a (re)fazer-se:

Completamente inesperado para mim esse espetacular país das mil


maravilhas que vou descobrindo: um avião da TACV verdadeiro e
multicolor, um velho autocarro do Solidariedade, imaginosas
brincadeiras e jogos infantis, o velho baloiço, o escorrega, enquanto
na pista em forma de sol, crianças e adultos marcam o compasso ao
ritmo estereofônico que enche as colinas em degraus. [...] Bato
palmas ao compasso da música popular cheia de ritmo que faz
dançar o meu filho mais novo. Ele baloiça e eu baloiço com ele. Já
nem sei bem se danço e brinco para ele ou se para mim através
167
dele... .

167
DUARTE, Vera. A palavra e dos dias. Nandyala: Belo Horizonte, 2013, p. 187. Todas as demais citações
foram retiradas dessa edição, passando-se a indicar apenas as respectivas páginas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A questão relevante está numa comparação que a autora estabelece na


abertura do texto: “Regresso de uma viagem ao exterior, a um ‘país rico’, onde
pude, de passagem, apreciar um sofisticado mundo de brinquedos e jogos
infantis” (p. 186). Sequencialmente, ela narra a chegada com as crianças no
parque e conclui:

[...] me encantei fundamentalmente com esse monumental e


simbólico Park 5 de Julho, com o seu recanto infantil, essa realização
de amor e de carinho, esse olhar direto num futuro já a ser presente
para as crianças que, sendo tão diferentes, brincam em iguais
condições com os mesmos brinquedos. [...]

................................................................................................................
....

Sinto que é isto o caminhar da independência: coisas simples e


magníficas tiradas de nossas cabeças e feitas com as nossas
próprias mãos. Pensar em todos investindo os bens para que
possam frutificar para o povo inteiro. Distribuir pelas crianças a
beleza da vida.

Sinto-me feliz por ser mais uma – adulto ou criança que importa –
nesta Pátria em construção. Sem dúvidas, o futuro será nosso (p. 188
– grifos nossos).

Em contraste com o sofisticado mundo das crianças de países ricos, a


autora pontua o seu encanto e emoção com as coisas “simples” e “nossas” que
estão a fazer a felicidade dos pequenos em Cabo Verde. Assim, nesta crônica
de 1982, o sentido de esperança afirma-se nesse processo de construção da
pátria, em um projeto que possa “frutificar para o povo inteiro”.

Vinte e um ano depois, encontra-se na crônica “Um futuro para nosso


passado”, de 2011, portanto, o mesmo sentido de esperança no país, que se
afirma, entre outros aspectos, pelos avanços no campo das decisões jurídicas:

Como um Niemeyer que vê construída a Brasília que desenhou, como


um escritor que vê materializada a sociedade que idealizou, pouco a
pouco vejo concretizarem-se, frente aos meus olhos, soluções que
propugnamos há vários anos para a área da Justiça (p. 83).

791
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Os avanços referem-se à celeridade na mediação de conflitos e à


criação dos tribunais de pequenas causas. Destaque-se, contudo, a ideia
fundamental de um país que avança reafirmando “a nossa postura de Estado
de Direito Democrático” (p. 84). O final do texto converte-se em celebração:

Neste dia 20 de janeiro, em que se cultuam os heróis nacionais, tenho a


certeza de que, quer os que já não estão entre nós, como o Amílcar
Cabral, quer os que estão conosco se orgulharão desta pátria que ele
fizeram emergir da longa noite colonial, exatamente à procura de justiça
e liberdade (p. 84).

Esse tom celebratório não impede críticas mais ácidas á situação dos
africanos, de forma geral, como na crônica “Emigração clandestina”, de 2007,
que, para nossa infelicidade, é tão atual:

Nos últimos tempos, o drama da imigração clandestina tem aberto


telejornais, tem sido manchete de rádios e jornais, tem objetivado a
realização de inúmeras reuniões nos níveis nacional, regional e
internacional, mas, sobretudo, tem levado a morte, o sofrimento e a
precariedade a um número demasiado elevado de seres humanos,
oriundos, na sua grande maioria, da nossa África, continente de
condenados da terra, no dizer impressivo de Franz Fanon.

Quem não viu as fotos dilacerantes de dezenas, senão centenas, de


seres humanos amontoados em precárias embarcações, tornadas
navios negreiros da modernidade, que, de olhar perdido e rostos
esquálidos, procuram desembarcar nas “terras da promissão”,
quando essas mesmas embarcações não se transformam em
cemitérios flutuantes, sem sequer um porto aonde ancorar?

Em artigo da BBC Brasil, para citar-se uma fonte da grande mídia,


publicado em setembro deste ano, pode-se ler:

792
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em 2015, os maiores grupos de migrantes na Europa por


nacionalidade são os sírios, seguidos pelos afegãos e imigrantes de
Eritreia, Nigéria e Somália. Guerra e violações de direitos humanos
atingem todos esses países, então muitas dessas pessoas se
enquadram na categoria de refugiados. Mas cada caso é diferente –
alguns terão mais dificuldades do que outros para comprovar sua
condição. Muitos não possuem passaporte nem documento de
identidade, após arriscarem a vida no mar Mediterrâneo e pela região
dos Bálcãs e enfrentarem maus-tratos e exploração das gangues de
traficantes de pessoas. Provar a nacionalidade pode ser um processo
longo – e essas decisões podem ser contestadas por governos sob
pressão para expulsar migrantes. Muitas pessoas vindas da África
subsaariana ou do oeste dos Balcãs fracassam em obter refúgio, ao
serem classificadas como migrantes movidos por razões
168
econômicas .

A situação dos refugiados é um assunto complexo por implicar, entre


tantos outros aspectos, questões relacionadas ao capital mundial, à divisão de
renda, trabalho e bens sociais, além de manifestamente denunciar situações de
racismo e xenofobia. Como mulher atuante em seu tempo, Vera Duarte não
deixa de refletir sobre problemáticas como essa, posicionando-se claramente
na luta por direitos humanos e assistência digna a esses milhares de pessoas
que sofrem os vários tipos de opressão do mundo globalizado.

De igual forma, na crônica “Violência contra as mulheres”, a autora não


deixa de reconhecer o quanto ainda precisa ser feito para a emancipação
feminina:

Estava sentada num banco da Esplanada da Praça 12 de Setembro.


Não fazia propriamente nada. Subitamente, ouvi o ruído desagradável
de uma bofetada a estalar impropriamente na face de alguém.
Seguiu-se lhe um gemido de dor. O instinto levantou-me e dei por
mim, atônita, a observar o medievalismo de uma cena que julgava
para sempre banida do nosso quotidiano: um homem batera na “sua”
mulher, em plena praça pública, porque aquela não lhe tinha
obedecido [...].

168
BBC BRASIL. Por que alguns imigrantes conseguem refúgio na Europa e outros não? Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150910_imigrantes_recusa_tg>. Acesso: s:et.2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A reação imediata da cronista foi interceder na cena, mas um amigo a


impediu, explicando, enquanto o homem empurrava a mulher com o rosto no
chão e em soluços, que aquilo era prática conhecida daquele casal. Seguiu-se
então uma intensa conversa, na praça, capitaneada pela narradora, que sentiu,
“reconfortada que todos os presentes eram unânimes em condenar a atitude do
homem”. E conclui:

Pensei comigo que mais tarde haveria de procurar aquela mulher,


falar-lhe dos seus direitos, elucida-la sobre as possibilidades de o
tribunal ajudar a modificar a atitude do homem, seu marido. As leis
pós-independência eram claras, como também são claros os direitos
de qualquer ser humano (p. 63).

Entretanto, há sempre um sentido de esperança nas crônicas de Vera


Duarte, como se destaca na narrativa em que tece homenagem a Amílcar
Cabral, sublinhando o lado poético do ativista e líder nacional ao citar trecho de
um de seus tantos textos:

Em plena luta de libertação, nas colinas de Madina de Boé, em


Outubro de 1968, esta foi uma das pérolas com que Cabral nos
brindou, evidenciando, assim, o caráter cultural que também aquela
luta assumiu e que ele claramente preconizava ao asseverar que ‘a
luta de libertação nacional é fundamentalmente um ato de cultura’.
Como diz a bela frase que li em Joseph Ki-Zerbo, pai da historiografia
africana, Cabral estava, então, a ‘escavar os poços de hoje para as
sedes do amanhã’ (p. 161).

Nessas “sedes do amanhã” vão erigindo-se os vários sentidos do que


Vera Duarte refere como “cabo-verdianidade”, a identidade cabo-verdiana,
sobre a qual destaca positivamente, entre outros elementos, a mestiçagem das
ilhas:

O crioulo e o milho são traços marcantes da identidade cabo-verdiana


e por eles se vê como nas ilhas houve fusão de culturas, com
naturais preponderâncias, é certo, mas não justaposição, como
aconteceu em outras paragens. Para mim, isso só se explica a partir
do tipo de cruzamento que nestas ilhas se verificou, de europeus e

794
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

africanos, ambos vindos de fora, que tiveram de se adaptar ao difícil


ecossistema das ilhas e deram origem a um verdadeiro povo mestiço
dotado de uma cultura crioula. É certo que esta mestiçagem também
resultou do cruzamento forçado e violento do senhor branco com a
sua escrava negra, do homem negro com a mulher branca etc., etc.,

Mas este é o prosaico quotidiano... (p. 31).

A compreensão da mestiçagem como fator fundamental da identidade


cabo-verdiana constitui-se em ponto relevante, sempre enfocado e não
exatamente pacífico. Para grande parte da intelectualidade daquele país,
considerando a assertiva histórica de que as ilhas eram desabitadas quanto da
chegada dos colonizadores portugueses, em 1460, o desenvolvimento da
colônia deu-se a partir da incontornável fusão dos brancos europeus com os
negros escravizados, trazidos, em geral, da costa africana mais próxima.
Levando-se em conta o ecossistema hostil do arquipélago, como sublinha Vera
Duarte no trecho anteriormente destacado, tiveram que forçosamente conviver
e “deram origem a um verdadeiro povo mestiço dotado de uma cultura crioula”.
Isso não significa deixar de reconhecer, como também se encontra no texto da
cronista, que esse processo se deu de variadas formas e sob o peso recorrente
da violência.

A mesma linha de reflexão encontra-se em textos de Daniel Spínola


(“Sementeira, chuva e seca”), de David Hopffer Almada (“Da travessia do
deserto ao ressugirmento de uma nova ‘azagua’”), de José Luís Hopffer
Almada (“O papel do milho na simbolização da identidade cultural do cabo-
verdiano”) e de José Maria Semedo (“O milho, a esperança e a luta”), que
integram o livro Cabo Verde – Insularidade e Literatura, coordenado por
Manuel Veiga (1998), para citarmos alguns expoentes da intelectualidade cabo-
verdiana. Existem, porém, estudos que problematizam essa forma de
compreensão da mestiçagem de Cabo Verde, como é o caso das reflexões de
Gabriel Fernandes (2006). No seu livro Em busca da nação: notas para uma
reinterpretação do Cabo Verde crioulo, o autor demonstra como,
historicamente, a mestiçagem foi considerada de maneira adversa: “[...] nas
décadas de 1930 e 1940 [...] a questão da mestiçagem e do valor dos mestiços

795
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

é encarada por vários autores com apreensão, chegando a ser percebida como
um grave problema nacional (2006, p. 216)”.

Nesse contexto, seguindo-se Fernandes (2006), deve-se reconhecer a


importância dos “claridosos” (os intelectuais, escritores fundadores e/ou
vinculados à revista Claridade, lançada na década de 1930) como importantes
articuladores de um sentido positivo ao caráter mestiço de Cabo Verde. Porém,
“[...] fica problemático inferir um nacionalismo cabo-verdiano a partir das
opções políticas claridosas. Na verdade, esses intelectuais tiveram uma
indestmentível orientação lusitana” (FERNANDES, 2006, p. 219).

A partir da Segunda Guerra Mundial, quando o quadro internacional se


altera, sendo “crescente a pressão internacional sobre o colonialismo
português e suas práticas” (FERNANDES, 2006, p. 217), as relações
interétnicas passam a ser percebidas de maneira altamente positiva pelos
próprios portugueses:

Em termos políticos, esse mestiço harmonioso e conciliador representa


um antídoto natural contra quaisquer projectos de alteração do status
quo colonial. Ele seria expressão do quanto em Cabo Verde se
conseguiu contornar os efeitos perversos dos sistema não pela ruptura,
mas sim por ajustamentos (FERNANDES, 2006, p. 218).

Essa “harmonização”, porém, a partir da década de 1960, com os


movimentos de luta anticolonial liderados por Amílcar Cabral e o Partido
Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC), teria se
constituído em um grande problema, pois não “servia” aos projetos
nacionalistas de cunho pan-africanista. Nas palavras de Fernandes:

Para os indivíduos da nova geração, liderados por Cabral, e que se terão


lançado o desafio político e moral de erradicar o colonialismo, a situação
é a todos os títulos melindrosa, já que sua opção política negro-africana
e anticolonialista não terá sido percebida como suficiente para alterar o
tal legado colaboracionista nem tampouco seu doravante perverso e
estimagtizante estatuto de mestiço (2006, p. 225).

796
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Como conclusão, o autor compreende que somente quando se deu a o


fim da pretendida unidade Guiné-Cabo Verde se estabeleceram as condições
do nacionalismo cabo-verdiano, e não necessariamente apenas “com o fim do
colonialismo português” (FERNANDES, 2006, p. 235). Compreensão
importante por reforçar a noção do processo identitário cabo-verdiano como
uma trajetória em andamento, em que o hibridismo marcante do arquipélago
pode, enfim, ser reconsiderado em seu potencial não essencialista, mas aberto
a uma perspectiva cosmopolita: “[...] seu anticolonialismo foi movido, entre
outras coisas, por um inequívoco cosmopolitismo, esse traço da cultura crioula,
doravante levado à sua expressão mais radical” (FERNANDES, 2006, p. 242).

Esse cosmopolitismo é reconhecido por Vera Duarte quando, dentre outros


momentos de suas crônicas, refere-se a “Santiago” como “casa transitiva”: “É
nessa Ilha de Santiago, sem limites e sem fronteiras, que convergem os povos
das ilhas, os emigrantes africanos e os expatriados dos quatro cantos do Planeta”
(p. 39).

E tanto mais haveria a mostrar dessa pena ao mesmo tempo suave e


crítica de Vera Duarte. Entretanto, considerando as limitações deste trabalho,
apresenta-se, em conclusão, um trecho da crônica final de A palavra e os dias,
pelo que explicita sobre a concepção da autor a respeito desse ofício tão
responsável, prazeroso e desafiador da escrita:

Sei lá se é fácil escrever...

O que sei é que, sempre que puder e souber, irei trocar por letras de
imprensa essa extraordinária sucessão de guerra e paz, fome e
fartura, choro e alegria, que é a vida da gente. (p. 191).

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BRITO-SEMEDO, Manuel. Crónicas que a vida conta, de Daniel Medina. In:


_____. Esquinas do tempo. Disponível em: http://brito-
semedo.blogs.sapo.cv/96705.html. Acesso em: set. 2015.

797
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

CANDIDO, Antonio et. al. A crônica – O gênero, sua fixação e suas


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Revista do Instituto Humanitas Unisinos On-Line, São Leopoldo, RS, n. 431,
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Universidade de Évora, 2003.

RODRIGUES, Inara de Oliveira Rodrigues. Efemeridade e permanência no


Livro de crônicas, de António Lobo Antunes. Navegações, Porto Alegre, v. 2, n.
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SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1987.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo. Por uma nova cultura


política. São Paulo: Cortez, 2010.

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Disponível em: <http://www.josesaramago.org/a-cronica-como-aprendizagem-
uma-experiencia-pessoal/>. Acesso em: set.2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

MERGULHOS NO MATERNO MAR DE BOAVENTURA CARDOSO: UM


OLHAR SOCIOCULTURAL SOBRE ANGOLA NO PÓS-INDEPENDÊNCIA

JORGE LUIZ GOMES JUNIOR (UFF)

Aos 26 dias do mês de julho, em 1944, nasceu em Luanda Boaventura


Cardoso. O escritor é licenciado em Ciências Sociais, foi secretário de Estado
de Cultura, ministro da cultura, diretor do instituto nacional do livro e
Embaixador de Angola na França, Itália e Mali. É membro fundador da União
de Escritores Angolanos. Iniciou sua produção literária com contos,
posteriormente produzindo romances. A respeito de sua obra, em ordem
cronológica fazemos as seguintes referências: Dizanga Dia Muenhu (1977); O
Fogo da Fala (1980); A Morte do Velho Kipacaça (1987); O Signo do
Fogo (1992); Maio Mês de Maria (1997); Mãe Materno Mar (2001); Noites de
Vigília (2012).

Espaços que acreditamos que sejam de relevância na construção


pessoal de Boaventura, Malange e Luanda, são respectivamente, os pontos de
saída e chegada da viagem que o romance contemporâneo Mãe, materno mar
(2001) nos apresenta e, por vias romanescas, nos convida a fazer. Malange é o
ponto de partida desse trem, carregado de simbolismos, que pode ser
compreendido como uma alegoria da própria Angola. O autor faz no romance o
caminho contrário ao que realizou na vida. Nascido na capital litorânea e tendo
como cenário da infância o interior, constrói a narrativa do interior para a
capital. Esse percurso apresenta, com detalhes, a travessia pelas várias
facetas socioculturais de Angola, o que se dará simultaneamente ao
deslocamento espacial da locomotiva.

O processo de apresentação de Angola se desenrola a partir de uma


envolvente construção narrativa, que se apropriará de valores como: cultura,
religião, tradição, modernidade, diversidade e magia. Reflexos da colonização
se fazem presentes na construção da sociedade em observação, evidenciando
marcas referentes ao racismo, sincretismos religiosos, influência estrangeira e
assimilação, igrejas e falsos profetas. Considerando o gênero romance,

799
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localizando-o no tempo e no espaço de uma África no século XX, assim nos


afirma Rita Chaves:

Pela via do romance vamos nos deparar com os caminhos da memória,


cujos mecanismos serão acionados para resgatar valores e sentidos
enfumaçados pela ruptura entre dois universos, integrados por
elementos que já não podem ser completamente separados. O peso da
memória traz a marca do tempo, que ali estará representado por um
dos fatores constitutivos do gênero. Espaço de reinterpretação da terra,
onde se entrecruzam passado e presente, a narrativa se abre para
abordar a totalidade da vida reclamada pelo homem em sua
historicidade. As linhas da memória recuperam os sinais do passado.
(CHAVES, 1999, p.22)

Nesse sentido, sinalizamos o romance como uma possível via de busca pela
identidade. Valendo-se da memória para resgatar valores e sentidos, MMM 169
utiliza-se do espaço romanesco em diálogo com o espaço físico para
reinterpretar a terra, cruzar passado e presente, abordando gradativamente a
totalidade da vida.

Entre imagens e alegorias

Há no título dado ao romance uma relação direta com seu protagonista.


Manecas nos será apresentado no terceiro, dos três capítulos que dividem a
obra, como um menino das águas. Filho das águas. Ele não conhece o mar. É
mediante a chegada à Luanda que irá conhecê-lo. Durante a viagem, o
pensamento do protagonista estará constantemente voltado para a mãe. Como
filho das águas, encontrar o mar é, também, como reencontrar a figura
materna. É um reencontro com sua própria essência. O mar, como as águas,
tem sentindo de imensidão, travessia, e sobretudo um vinculo ao feminino e a
maternidade. Encontrar o mar é também, para ele, um retorno às origens.

Reconhecer a disposição do texto e sua interação com a narrativa


propriamente dita são questões que se fazem fundamentais, para a plena
compreensão da profundidade e detalhes que o romance nos traz. A obra se
divide em três capítulos e esta divisão permite leituras subliminares de
reconhecível relevância.

169
A sigla MMM será utilizada para identificar o romance Mãe, materno mar.

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Pensando a leitura de um “universo”, o angolano, o texto se organiza sob a


influência simbólica dos quatro elementos da natureza. Ao primeiro capítulo,
deu-se o título de Terra. E a respeito dela se diz: “E o ponto de partida está
aqui, sob nossos pés.” (MMM, p.41), oferecendo a ela, a terra, caráter
inaugural. O segundo capítulo, que abriga uma série de contendas, foi
nomeado como Fogo. E configurando neste instante um alerta, sobre o
elemento nomeador se diz: “Um sinal muito forte, um aviso muito expressivo
para as novas gerações para que soubessem respeitar sempre as tradições.”
(MMM, p.137), indicando também algo que permeia as relações
contemporâneas. Nesse sentido, nos referimos aos conflitos entre gerações e
seus valores. O terceiro e ultimo capítulo chama-se Água. Caracterizando-a se
diz: “A água está entre a terra e o fogo. Ela tanto pode significar nascimento
como morte. Ela é muito traiçoeira e oportunista porque não tem forma própria”
(MMM, p.153). E assim nos parece tratar nesse capítulo da fluidez dos novos
tempos, o que pode favorecer as incertezas do futuro. O ar, o quarto elemento,
se faz presente em todos os capítulos. Atravessa todos os espaços.

Dentre as variadas alegorias 170 que surgem ao longo da obra, a locomotiva


que serve de cenário para toda a movimentação que dará corpo ao texto, nos
parece a principal. Seria então uma alegoria de Angola. O país (trem), dividido
em classes sociais (cada uma das três classes nas quais o trem se divide),
tendo cada grupo seus valores, objetivos e costumes. No que tange a referida
divisão, assim nos indica o texto: “nas carruagens da frente, primeira e
segunda classe, ia gente bem vestida com ares de que vive bem ou pelo
menos sem grandes dificuldades; nas carruagens da terceira classe estavam
os pés descalços, gente humilde e simples.” (MMM, p.28). Considerando a
questão das divisões por classes e ainda em analogia com a imagem do trem,
podemos considerar que “Mesmo que a locomotiva aumentasse a sua
velocidade, isso nada mudaria na posição dos vagões: nunca se viram vagões
ultrapassando a locomotiva!” (KI-ZERBO, 2009, p.23). Partindo desse
pressuposto pensamos uma sociedade com divisões fixas.

170
Devemos salientar que o entendimento de alegoria que utilizaremos nessa análise está de
acordo com a ideia de representação, não tendo nenhuma relação com as formulações
desenvolvidas por Walter Benjamin.

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Outras alegorias são também de importância fundamental para a


compreensão da leitura que se desenvolve a respeito do romance. Dentre elas
citamos a viagem, em si, e as avarias com a locomotiva e/ou linha férrea.
Sobre as mesmas, consideramos que seja a viagem no rumo da capital uma
representação do desejo de avanço, crescimento, a busca por melhorias. O
sonho. “Seria o fim daquela paragem, o fim de muitos desesperos e angústias
e, quiça o renascer de muitos sonhos e projectos.” (MMM, p.56) Os agentes
complicadores fazem referência aos entraves nos caminhos da evolução, do
crescimento de Angola em decorrência dos conflitos. “Devido respeito aos
nossos avós é que as coisas não andavam bem, que aquela viagem estava
enguiçada, que eram as almas deles que andavam irritadas com nossa
ingratidão.” (MMM, p.109) Em cada parada da locomotiva é possível observar
um encontro de Angola com ela mesma. Em cada parada uma oportunidade de
fazer releituras sobre a realidade.

Língua, linguagem e uma escrita angolanizada

O romance MMM é escrito em língua portuguesa, mas é profundamente


atravessado por línguas tradicionais, no caso o banto, e uma forma específica
de narrar, que caracteriza a construção de uma escrita angolanizada. A língua,
que é forma de manifestação da identidade, assim como um meio de afirmação
da mesma, na narrativa em questão é utilizada de maneira que deixa posta a
relação intercultural que promove a construção desse texto.

As línguas também dizem respeito à cultura, aos problemas da nação,


à capacidade de imaginar, à criatividade. [...] ,é impensável e
impossível rejeitar as línguas impostas pela colonização porque,
objetivamente, elas foram integradas ao nosso patrimônio cultural, elas
unem povos africanos entre si e com a comunidade internacional [...]
Mas com as condições de sairmos da posição de colonizados e de que
não nos obriguem a deixar as nossas próprias línguas no vestiário ou
no caixote de lixo do mundo moderno. (KI-ZERBO, 2009, p.73)

Dessa forma, a utilização de uma língua tradicional no desenvolvimento


da narrativa faz parte de um movimento de afirmação da identidade africana
desses escritores-contadores. Ainda que a base de construção do texto seja
um código linguístico originalmente de posse do colonizador, este é parte da
identidade de diversos países que passaram por processo de colonização

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desempenhado por grupos de mesma procedência. “Mais da metade da


população da África negra vive em países em que o inglês é uma língua oficial;
e a mesma providência decretou que quase todo o restante da África fosse
governado em francês, árabe ou português.” (APPIAH, 1997, p.19). A língua
portuguesa representa também povos africanos diante da comunidade
internacional. Com tais considerações, admite-se que essa convergência
linguística seja, de alguma maneira, também uma forma de constituir-se da
escrita angolanizada, sendo a língua um patrimônio cultural.
A língua portuguesa e o banto não são as únicas línguas que se
manifestam na construção da narrativa. Encontramos também referências ao
inglês e ao francês, o que se justifica pela colonização. Entretanto esses dois
últimos idiomas se manifestam em decorrência das influências estrangeiras e a
assimilação. Falar uma língua trazida pelo colonizador, em especial o inglês e o
francês, eleva de alguma maneira o indivíduo a uma categoria superior.
Além de se construir tendo como pano de fundo a movimentação de
uma viagem em processo, a escrita do texto sugere, muitas vezes, movimento.
Esteja esse movimento vinculado a movimentação das personagens e cenas,
que se constroem diante da nossa imaginação, na interação com a narrativa ou
somente pelo movimento do trem. A forma detalhada de construir o texto, tal
qual para descrever lugares, situações e pessoas fazem deste um texto
plástico. Para exemplificar a refrida escrita podemos contemplar o fragmento
abaixo:
Corriam verdejantes velozes, os floridos campos, montanhas, vales, as
miúdas ermas campinas, as planas terras, o tempo era aquele minuto
átimo, a flecha zunante, o olhar distendido naquele espaço corrido,
correndo, o tempo se afirmando e se negando, ele, pensativo, a mãe...,
o espaço e tempo, os ares, tudo a correr, célebre, vez e quando um
ocioso vagar, sob o olhar complacente do céu oceânico, a montanha
estava a se deslocar e se aplanava esquecida de si, embevecida na
brincadeira chã, Olha só! e então vinha até ela a colina, o fio d’água
riachando, o veado, o leão, a lebre, a galinha do mato [...] e quando a
velocidade era pouca a paisagem então se exibia para ele, pensativo, a
mãe... o mar... (MMM, p.25)

À medida que se observa uma série de indícios, referentes à relação dos


fatos que constituem a narrativa com o cotidiano local, a presença da filosofia
banto, tal qual sua língua, e uma série de outros argumentos dos quais
trataremos a seguir, percebemos efetivamente o desenvolvimento de uma
escrita carregada de identidade. Trata-se de uma maneira de produzir

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narrativas que dialoga com pressupostos que compreendemos como um jeito


banto de narrar. Sobre essa temática, Boaventura Cardoso nos afirma que: “A
dimensão sociológica de factos, protagonismos, dramas, tragédias do dia-a-dia,
a filosofia banto do vitalismo, inspirada na força vital, [...] a envolvência da
língua banto do maravilhoso e fantástico em nosso discurso ficcional-
constituem, entre outras, as componentes-chave que enformam a identidade
da nossa escrita angolanizada.” (CARDOSO, 2008, p.18)

Nesse sentido, percebe-se, também, como forte indício dessa escrita o tom
oralizado. Ou seja, trata-se de uma produção que se assemelha a uma espécie
de “falescrita”. A questão do caráter oral da escritura constitui, objetivamente,
uma narrativa com natureza diferenciada daquela que costumeiramente circula,
a medida que se faz letra munida de uma voz que salta das páginas. É um
encontro entre voz e letra no silêncio enigmático das folhas de papel, sendo o
enigma construído no paradoxo entre o silêncio das folhas e a ruptura do
mesmo, o que se da através das múltiplas vozes que insurgem mediante a
leitura, e desempenham o papel de contadoras de uma história.

Dessa maneira devemos recordar que “do ponto de vista da produção


cultural, a arte de contar é uma prática ritualística, um ato de iniciação ao
universo da africanidade, e tal prática e ato são, sobretudo, um gesto de prazer
pelo qual o mundo real dá lugar ao momento do meramente possível que, feito
voz, desengrena a realidade e desata a fantasia” (PADILHA, 1995, p.15).
Sendo assim, a “falescrita”, nesse sentido, também uma forma de iniciar o leitor
no universo da africanidade. Nesse processo de contação, especialmente em
MMM, podemos observar a presença de múltiplas vozes, de maneira tal, que
por vezes notamos que estas se confundem. A polifonia é uma das marcas da
escrita angolanizada. Com relação ao romance em análise, podemos afirmar
que a fala do narrador se mistura a dos personagens, assim como a dos
próprios personagens se misturam entre si.

Em dados momentos, o intenso tom oral na construção da narrativa impõe


que esses textos sejam falados. É a identidade dessas narrativas falando mais
alto. É como um acordo de convivência pacífica entre o texto oral e o texto

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escrito em um só corpo. Pensando essas questões sob o prisma da literatura e


da identidade, Manuel Rui assim afirma:

E agora o meu texto se ele trouxe a escrita? O meu texto tem que se
manter assim oraturizado e oraturizante. Se eu perco a cosmicidade do
rito perco a luta. Ah! Não tinha reparado. Afinal isto é uma luta. E eu
não posso retirar do meu texto a arma principal . A identidade. [...]Mas
a escrita? A escrita. Finalmente apodero-me dela. E agora? [...] O texto
são bocas negras na escrita quase redundam num mutismo sobre a
folha branca. [...] No texto oral já disse: não toco e não o deixo minar
pela escrita, arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu
texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os
elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro,
desescrevo para que conquiste a partir do instrumento de escrita um
texto escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto
têm de se movimentar como no outro texto inicial. Têm de cantar.
Dançar. Em suma temos de ser nós. ‘Nós mesmos’. Assim reforço a
identidade com a literatura. (MONTEIRO, 2008, p.28)

Dessa forma, percebemos como a intervenção da oralidade, na prática da


escrita, revela pressupostos que habitam a cultura que atravessa construções
identitárias em África, considerando a força da tradição oral, e a identidade do
próprio escritor angolano. Manter o texto escrito, com caráter orutarizado e
orutarizante, é também um mecanismo de resistência. É minar a escrita, arma
do colonizador, com todos os elementos que a cultura local permite, com fim de
ressignificar. E dessa maneira refazer essa arma e se valer da mesma.

Em suma, considerando a presença dos elementos referentes à língua,


linguagem e valores que se revelam a partir dessa forma peculiar de produção
textual, percebemos a firmeza do elo que vincula a narrativa à proposta de
construção de um texto reconhecidamente angolano.

Provérbios também compõem o elenco de relevantes artifícios que se


mostram fortes no desenrolar de Mãe, materno mar. Eles surgem ao longo do
texto como uma forma de resumir, encerrar uma análise/reflexão. A inclusão
desses ditos, que circulam pelo cotidiano do povo, nos permite mergulhar um
pouco mais no universo cultural de Angola e enriquece a narrativa, a medida
que fortalece o pressuposto de trazer para o texto escrito uma maneira
angolana de escrever.

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As personagens e a relação com a sociedade angolana

Muitas são as personagens que compõem a ficção analisada e por isso


não faremos, uma análise sobre todas. Focalizaremos aqueles que
consideramos os mais expressivos e relevantes. Ti Lucas “não pertence a
nenhum par-par-partido nem religião alguém que goza de respeito e da
consideração de todos nós alguém cuja integridade moral e humildade
ninguém se atreve a duvidar [...] cabelos brancos, de aparência humilde, cego,
por isso de mãos dadas com um rapazito.” (MMM, p.38). Ti Lucas simboliza a
tradição. A memória personificada. A sabedoria do povo. Ele caminha de um
lado para outro sem se fixar a nenhum lugar. Essa maneira itinerante de se
posicionar, pode ser entendida como uma referência ao trânsito da tradição,
que pode ser acessada por todos os grupos, sem distinções. Curiosas são as
semelhanças entre Ti Lucas e uma personagem da mitologia. Parece-nos óbvio
que a criação da personagem Ti Lucas é um diálogo com a mitologia grega, na
pessoa de Tiresias. Este é um profeta, cego como o sábio velho criado por
Boaventura Cardoso, que desempenha importante função na mitologia grega.
Ti Lucas é símbolo da tradição que sobrevive no seio da sociedade angolana
em meio à modernidade.

Dêjó, o profissional que chega a locomotiva rumo à festa do casamento


que nunca aconteceu e acaba espalhando a música por todos os ambientes, e
Manecas, o protagonista, simbolizam a juventude. Cheios de sonhos, afastados
da tradição e vínculos com os antepassados. “Até mesmo Manecas e os
camaradas do partido cantavam, acreditando ou não na eficácia daquela
evocação à memória dos antepassados” (MMM, p.141). Desapegada de
qualquer relação com a tradição, a juventude segue o fluxo e reinventa o modo
de seguir.

Os pastores e o profeta simbolizam os novos tempos e a invasão de


Angola pelas igrejas que tentam dominar o espaço. Símbolos dos valores
capitalistas que rondam, muitas vezes, as práticas dessas religiosidades. “E os
pastores e profeta procuraram então se aproximar da noiva quando souberam
que pai dela era senhor de muito dinheiro, solícitos, queriam todos
desinteressadamente lhe ajudar, rezar, muito orar para afastar a má sorte dela”

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(MMM, p.83). Ícones do esvaziamento de verdadeiro compromisso com a fé de


algumas igrejas, essas personagens representam também a tentativa de
sufocamento das tradições religiosas nativas e o surgimento de falsos profetas.

Temáticas sociais

O romance Mãe, materno mar faz uma leitura crítica da sociedade


angolana por meio de suas personagens e das situações encenadas. Entre
críticas a instituições e a dados valores que permeiam o cotidiano social,
reflexões podem ser provocadas.

No que tange a religiosidade, o romance nos oferece a leitura de um


Angola bastante sincrética. As diferentes manifestações da fé se mesclam de
maneira interessante e algumas vezes até próximas de algumas práticas
ocorridas no Brasil. Falando de cultos nas igrejas, nos deparamos com cenas
de objetiva interação entre valores nativos e introduzidos pelo colonizador. E
em diálogo com religiões africanas a cultura religiosa levada pelos
colonizadores se firma entre os angolanos. Não é possível negar a força da
ancestralidade na cultura do local, mas se faz possível um processo de
ressignificação de seus valores. A crítica às igrejas é intensa. São
questionados os pressupostos, dogmas, interdições e práticas de um grupo
que se alimenta de teorias que servem de escudo, para resguardar as práticas
dissimuladas, que vão de encontro aos valores que pregam.

Encontramos também referências às conturbadas relações raciais. A


discriminação deixa rastros mascarados de naturalidade em dadas situações.
Almejando conceituar esse entrave no avanço do pensamento social de
diversos pontos do globo terrestre, podemos afirmar, em diálogo com Nilma
Lino Gomes que o racismo:
É, por um lado, um comportamento, uma ação resultante da aversão,
por vezes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um
pertencimento racial observável por meio de sinais, tais como: cor da
pele, tipo de cabelo, etc. Ele é por outro lado um conjunto de idéias e
imagens referente aos grupos humanos que acreditam na existência de
raças superiores e inferiores. O racismo também resulta da vontade de
se impor uma verdade ou uma crença particular como única e
verdadeira. (GOMES, 2005, p.52)

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Nesse sentido é interessante considerar que o racismo e o preconceito são


doutrinas e concepções enquanto a discriminação se da por práticas. O
sistema racista se apoia na construção de estereótipos e em uma política de
inferiorização.

O texto nos faz pensar em determinadas imagens construídas e


propagadas como verdades absolutas. Obviamente não se trata de um
enaltecimento por parte do autor, mas da sinalização de que esse tipo de
discurso ainda é capaz de atravessar algumas relações.

Se pensamos a noção de identidade, o ato de se identificar a partir de algo


e a profundidade da ação do imaginário nessa construção, facilmente podemos
perceber aonde se encontram os argumentos para a tentativa de legitimar a
prática discriminatória. Cremos que a mesma seja reflexo de construções do
imaginário. Apoiados na fala de Kabengele Munanga entendemos que:

A identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades


humanas. Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico
sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para
definir-se em contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição)
e a definição dos outros ( identidade atribuída) têm funções
conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território
contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses
econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA, 1994, pp.177-
178).

Com isso, tomando como pressuposto a ideia de definir-se em oposição


ao alheio a partir da sua cultura, consequentemente se valendo desse molde
para desenvolver um olhar sobre si e os outros, cremos que “Construir uma
identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos
negros, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é
um desafio” (GOMES, 2005, p.43).
Alguns episódios, como o que abriga o debate sobre o noivo escolhido
pela jovem para casar, exemplificam muito bem essa relação de
autodepreciação que decorre da assimilação do olhar pejorativo do outro sobre
si. Debates equivalentes aos que o citado episódio apresenta, podem muitas
vezes chocar alguns, enquanto desperta em tantos outros o riso da irônia ou da
concordância, provocando no leitor atento aos detalhes e consciente, reflexões
sobre diversas temáticas encobertas pelo véu da naturalidade, que compactua
com a manutenção de valores equivocados.

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Conclusão
Com interessante currículo no que tange a produção literária, assim
como em sua ação política em Angola, sendo em distintos momentos de sua
história embaixador, ministro da cultura e até governador de Malange,
Boaventura Cardoso faz no romance Mãe, materno mar, uma análise crítica da
sociedade e cultura angolana na contemporaneidade. Na certeza de que é ele
um profundo conhecedor da cultura, demanda, riquezas e mazelas de Angola,
cremos que seu discurso ficcional não se distancie da realidade vivida pelo
país. Pelo contrário. Estabelece uma leitura recheada de alegorias, metáforas e
críticas.
Valorizando os pressupostos que apontam para a produção de uma
literatura marcada pelo jeito afro-banto de narrar, Boaventura se faz um grande
contador e nos convida a mergulhar nesse mar de histórias, culturas e
reescrituras. Sua forma de levar para o leitor as imagens de uma Angola pós
independente, revela o encanto dessa literatura por meio da riqueza dos
detalhes que a compõem, da mesma forma que o faz pela leitura das
entrelinhas, que muito têm a dizer.
A narrativa se encerra com a tão sonhada chegada a Luanda. No
instante do sonhado encontro de Manecas, o protagonista, com as águas de
sua essência, na capital litorânea, a esperança, posta de maneira subliminar,
fecha a obra. Junto com Manecas a chuva vem, suave, enquanto ele tem os
pés submersos nas maternais águas.
Os pés, símbolos de sustentação, de seguimento, de continuidade são
banhados pela esperança. Talvez uma esperança que seja viva no coração de
Angola e de seus filhos. A esperança de que se caminha para o futuro
sonhado, para as conquistas desejadas. Mesmo diante de tantos percalços ao
longo da história, o enfrentamento que se fez necessário para resistir, não fez o
sonho sucumbir. A luta foi grande, e ainda existe, mas o esperança ainda é um
motor.

REFERÊNCIAS

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APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto,


1997.

CARDOSO, Boaventura. Mãe, materno mar. São Paulo: Terceira Margem,


2009.

___________________. “A escrita literária de um contador africano”. In


PADILHA, Laura e RIBEIRO, Margarida C. (org). Lendo Angola. Porto:
Afrontamento, 2008, pp.17-25.

CHAVES, Rita. A formação do romance angolano – entre intenções e


gestos. São Paulo: Via Atlântica, 1999.

GOMES, Nilma Lino. “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre


relações raciais no Brasil: uma breve discussão”. In Educação anti-racista :
caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 / Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade - Brasília : Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, pp.
39-64.

KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? : entrevista com René Holenstein.


Tradução de Carlos Aboim de Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

MONTEIRO, Manuel Rui. “Eu e o outro invasor”. In PADILHA, Laura C. e


RIBEIRO, Margarida C. (org). Lendo Angola. Afrontamento, 2008, pp. 27-29.

MUNANGA, Kabengele. “Identidade, cidadania e democracia: algumas


reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil”. In SPINK, Mary Jane Paris
(org). A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São
Paulo: Cortez, 1994, pp. 177-187.

PADILHA, Laura. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção


angolano do século XX. Niterói: EDUFF, 1995.

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NÓS MATAMOS O CÃO-TINHOSO: TEXTO COLONIAL, DISCURSO


ANTICOLONIAL

VÉRCIA GONÇALVES CONCEIÇÃO (UFBA) 171


MARIA DE FÁTIMA MAIA RIBEIRO (UFBA) 172

O texto “Nós matamos o cão-tinhoso” é uma narrativa bastante


enigmática, pois nos apresenta um enredo com variadas chaves de leitura, que
podem nos levar a diferentes formas de interpretação e, ao mesmo tempo,
duvidar de todas essas formas, por ser um texto misterioso e, até certo ponto,
obscuro.
A começar pelo Cão-Tinhoso, protagonista do conflito central, que é a
sua morte, apresenta-se como um primeiro enigma. Pela descrição do
narrador, “o Cão-Tinhoso tinha os olhos azuis que não tinham brilho nenhum”
(p.5) e também “(...) tinha a pele velha, cheia de pêlos brancos, cicatrizes e
muitas feridas” (p.6). Ginho narra que o chefe da malta - grupo de meninos, do
qual ele fazia parte -, o Quim, um dia disse-lhe que “o Cão-Tinhoso era muito
velho, mas que quando ainda era novo devia ter sido um cão com o pelo a
brilhar como o do Mike”.
“Olhos azuis”, “pelos brancos”, “pele velha” são imagens do cão que, a
princípio, podem sugerir uma representação do colonizador/sistema colonial,
esta, aliás, é a leitura mais usual, pelo menos nos eventos acadêmicos em que
estive: o sistema colonial em decadência. Entretanto, outra chave de leitura, a
personagem Isaura, para início de conversa, me impede de embarcar nessa
leitura do Cão-Tinhoso. Pelas pistas que o narrador nos dá sobre essa
personagem, podemos dizer que ela é nativa, subjugada pelos demais,
inclusive, tida como louca. Segundo Ginho, “era a única que gostava do Cão-
Tinhoso e passava o tempo todo com ele, a dar-lhe o lanche dela para ele
comer e a fazer-lhe festinhas, mas a Isaura era maluquinha, todos sabiam

171
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura – PPGLitCult da
Universidade Federal da Bahia.
172
Profa. Dra. no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura –PPGLitCult. Tem
pesquisas na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente
nos seguintes temas: cultura portuguesa, literaturas africanas de língua portuguesa, relações
culturais Brasil-Portugal-África, memória cultural, estudos de oralidade, história da Universidade
da Bahia e acervos documentais relacionados com a produção intelectual, sobremodo baiana,
do século XX.

811
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disso” (p.8). Se o Cão-Tinhoso é o colonizador/sistema colonial, porque Isaura,


uma nativa, teria apego a ele?
A obra Nós matamos o cão-tinhoso foi lançada em 1964, momento em
que seu autor, Luís Bernardo Honwana, encontrava-se em cárcere, por ser
ativista político pela FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique. A
literatura foi, segundo Cabaço (2009), um dos instrumentos utilizados pelos
movimentos políticos para denunciar o sistema colonial e para conscientizar as
populações subjugadas sobre os efeitos da colonização.
Por esses precedentes, já podemos pensar em variadas hipóteses de
leitura. Dentre elas, a de que a obra pode ser, enquanto discurso anticolonial,
um simulacro do discurso colonial, na Moçambique da década de 1960. Isso,
se pensarmos o conceito, seguindo os moldes traçados por Deleuze (1974),
que, no texto Platão e o simulacro, trata da reversão do platonismo, por via da
emersão dos simulacros. Para o filósofo, esses são concebidos em sua
potência. Em vez de cópias mal fundadas, considera que, “quando rompe suas
cadeias e sobe à superfície: afirma então sua potência de fantasma, sua
potência recalcada”.
Outra hipótese, que não anula a primeira, mas a suplementa, é a de que,
por se tratar de uma escrita africana e anticolonial, em contexto colonial, a obra
pode ser lida como a escrita do Outro, escrita da Diferença. E aqui evoco Silva
(2011), que, em seu texto A produção social da identidade e da diferença, vem
dizer que tanto a identidade quanto a diferença são autocontidas e
autossuficientes, entretanto dependentes, uma da outra. Isso porque, segundo
ele, a afirmação da identidade se dá a partir da consciência de que existem
outras identidades – o Outro. A diferença, por sua vez, depende “de uma
cadeia, em geral oculta, de declarações negativas sobre (outras) identidades”.
Por isso, na exposição do autor, ela é, normalmente, considerada como “um
produto derivado da identidade”, o que explica a “tendência a tomar aquilo que
somos como sendo a norma pela qual descrevemos aquilo que não somos”.
A possibilidade dessas hipóteses deita-se na percepção de que o texto
de Honwana – tomando-se, para esta análise, a primeira narrativa da
coletânea, que dá nome a obra – pode ser concebido como um projeto
estético e político. Como tal, pode ser uma forma de chamar a atenção para os

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

males da colonização portuguesa, e apontar para possíveis formas de


agenciamento da independência de Moçambique.
“Nós matamos o cão-tinhoso” tem seu conflito centrado na morte do
Cão-Tinhoso, que foi encomendada pelo Dr. da Veterinária, por ordem do
Administrador da Colônia, à um grupo de garotos, a malta, que era constituída,
por filhos de colono, filhos de nativo em assimilação e de mestiços. Os adultos,
envolvidos com a ordem da morte do cão, alegavam que esse “não prestava
para nada”, pois estava cheio de tinha – daí, sugere-se, poder ter sido
originada a alcunha do cão. Ginho e Isaura, filhos de nativos, eram as únicas
crianças da narrativa que resistiram e sofreram a morte do Cão-Tinhoso.
Entretanto, Ginho convenceu-se de que a morte do cão era necessária.
O enredo pode nos levar a uma leitura do cão como representando a
Moçambique –então província ultramarina de Portugal –, que deveria deixar de
existir, como tal, para se tornar uma nação, no sentido mesmo de unificar-se e
fortalecer-se ante o poder da colônia, em prol da independência. Entretanto,
percebe-se que um grupo de pessoas influentes na sociedade colonial, pelo
menos se for levado em consideração o período em que o texto foi escrito – o
Dr. da Veterinária, o Administrador, a Professora –, estava também
interessado, ou mesmo preocupado com o fim do cão. No entanto, conduziram
a situação, de forma a delegar a função ao grupo de crianças da narrativa, pois
não queriam ou não podiam se comprometer diretamente.
Isso pode ser notado na fala do Doutor da Veterinária: “- Ouve lá, o que
é que este cão está a fazer ainda vivo? Está tão podre que é um nojo,
caramba! Bolas para isto! Ai que eu tenho de me meter em todos os lados para
pôr muita coisa em ordem...” (p.12). Na fala do Senhor Duarte, funcionário da
Veterinária, “- (...) Bem, vocês sabem, o Doutor mandou-me dar cabo de um
cão, aquele, vocês conhecem-no, aquele que anda aí podre que é um nojo...”
(p.17).
Tratam-se de representantes do poder colonial, que estavam, de certa
forma, preocupados em passar uma imagem negativa do cão para as crianças.
Munanga (1988, p.9) explica que
Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham à priori
desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que dele tiraram. A
ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças
culturais, os preconceitos étnicos entre duas raças que se confrontam

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pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades econômicas de


exploração predispuseram o espírito do europeu a desfigurar
completamente a personalidade moral do negro e suas aptidões
intelectuais.

Para que a cultura europeia suplantasse as culturas nativas, seria


necessário que houvesse um processo de alienação. Por esse motivo, os
adultos da narrativa, representantes do poder colonial, aventavam a dar cabo
do cão, mas, pelo processo de alienação. Por via dos aparelhos políticos, como
a escola, por exemplo, buscava-se conscientizar às crianças da necessidade
da morte do cão para o bem estar social – neste caso, da sociedade
dominante. Assim, pode-se inferir que havia o desejo, por parte de Portugal, no
extermínio dos modos de vida moçambicanos e, para isso, fazia-se necessário
desfigurar sua imagem, no intuito de implantar na sociedade colonizada, sem
muita resistência, um formato sociopolítico e cultural europeu, português.
Diante do exposto, fica fácil entender, então, que, possivelmente, a
personagem Isaura representa uma parcela da população de Moçambique, que
tendia ao nativismo: manutenção dos costumes locais e rejeição ao mundo do
colonizador.

A Isaura era a única que gostava do Cão-Tinhoso e passava o tempo


todo com ele, a dar-lhe o lanche dela para ele comer e a fazer-lhe
festinhas, mas a Isaura era maluquinha, todos sabiam disso [...] não
brinca com as outras meninas e era a mais velha da segunda classe.
A senhora Professora zangava-se por ela não saber nada e dar erros
na cópia, e dizia-lhe que só não lhe dava reguadas porque sabia que
ela não tinha tudo lá dentro da cabecinha. (p.8)

Por essa passagem, observa-se que a menina não se interessa pelo


mundo imposto pela classe dominante, na narrativa, ela não se importa com o
que diziam a respeito do cão. Dessa maneira, torna-se possível uma leitura da
personagem como representante de uma parcela da população que tem
consciência do malefício que o processo de colonização traz às culturas locais.
Por isso investe na resistência, por meio da negação das instituições coloniais,
acreditando no retorno às origens e no apagamento do passado colonial.
É, então, possível, ao considerarmos o texto de Honwana como um
plano político-ideológico, conceber o garoto Ginho – pelo que tudo indica, o
narrador de todas as narrativas da coletânea – como o projeto do
agenciamento da independência de Moçambique. O menino é nativo e, como

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Isaura, frequenta a escola com os demais garotos da malta. Entretanto, este,


diferente da primeira, é um aluno que se destaca por seu desenvolvimento,
inclusive na fluência que possui em transitar entre os dois mundos: o seu, em
que consiste suas raízes, e o imposto pelo sistema colonial. É um bom aluno
na escola, mas entende Isaura em seu apego ao Cão-Tinhoso, a quem
também tem afeição.

Olhou para mim e para o Cão-Tinhoso sem saber com qual dos dois
havia de correr primeiro. Enquanto pensava para resolver isso cuspiu
para nós os dois, isto é, para um sítio entre nós os dois. Está-se
mesmo a ver que o cuspo tanto era para mim como para o Cão-
Tinhoso. (p.12)

Olhou para todos nós com os olhos azuis, sem saber que nós
queríamos matá-lo e veio encostar-se às minhas pernas. (p.18)

Ginho, nessa perspectiva e até certo ponto, se assemelha a Isaura, uma


vez que ambos metaforizam a consciência dos malefícios e do racismo do
sistema colonial. Entretanto, os dois se distanciam, à medida que configuram
formas diferentes de se pensar a independência do país. Enquanto Isaura
representa a utopia da volta às origens, Ginho pode sugerir a reescrita da
história, pensando a independência através da unificação da província: em vez
de várias tribos e línguas, seria necessário se pensar em unidade, em uma
nação.
A leitura apresentada sobre Isaura e Ginho, ganha fôlego, quando
adentramos, o exposto por Cabaço (2009), em seu livro Moçambique:
identidade, colonialismo e libertação, que toca na existência de divergências
políticas no interior da FRELIMO, no que diz respeito ao plano de identidade
coletiva. De um lado, tem-se os régulos, líderes tradicionais (de tribos locais, no
interior de Moçambique), que tinha

a) a concepção de uma independência confinada à própria região e


comunidade etnolinguística; esse grupo exprimia como
motivações dominantes a expulsão dos portugueses de seu
território, a apropriação de seu património físico e organizativo e o
reforço das formas tradicionais de poder e conhecimento,
preservando a pessoalização no “chefe”; (p.295)

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Do outro lado, estavam os dirigentes da frente de libertação, que


acusava o poder tradicional de dificultar uma ação anticolonial unificada. Para
estes

b) o projecto prescritivo de uma nova identidade construída em torno


da pertença a um território geográfico que aceitava as fronteiras
coloniais cuja identidade se deveria ir estruturando pela
participação numa tarefa comum, a luta armada, e pela
identificação num objetivo comum: a independência. Um projecto
que propunha a substituição do poder pessoalizado por um poder
participativo, representado por entidades (o movimento de
libertação como embrião do Estado). (p.295)

Percebe-se no texto de Cabaço (2009, p.296), que o grande interesse da


FRELIMO era a unidade do território moçambicano. Seus dirigentes tinham
consciência de que os habitantes do centro de Moçambique conseguiram
manter suas estruturas, subvertendo o colonialismo, mas sabiam que isso era
pouco para fazer oposição ao imperialismo português. Eles acreditavam numa
“síntese na qual a tradição seria reinterpretada pela incorporação crescente de
elementos da modernidade”. Para isso, fazia-se necessário “lutar contra as
ideias velhas’ e ‘cortar o cordão umbilical’ da sociedade colonial”, o que incluía
o questionamento e a recusa de “tudo quanto vinha do passado de
dominação”.
Desenvolvendo por esse caminho reflexivo, entende-se, assim, que a
independência seria possível pela apropriação legítima de algumas heranças
da colonização. No intuito de se reapropriar das culturas locais, reinserindo-as
no trilho da história do país, considerando-se, inclusive, seu passado colonial,
já que, no plano de nação arquitetado pela FRELIMO, a Língua Portuguesa
continua sendo a oficial, e a forma de se pensar a nação segue um modelo
ocidental.
Para esse novo contexto, socio-político-cultural e econômico, de
Moçambique, faz-se necessário pensar na “criação do homem novo”. A
FRELIMO, segundo Cabaço (2009), rejeitava a ideia do “homem colonial”,
também o “tradicional” e o “homem novo”, de Gilberto Freyre. A estratégia para
essa transformação, então, era orientada, em suma, pela educação formal, que
implica num distanciamento das principais referências tradicionais.

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Podemos voltar, assim, ao narrador, do texto de Honwana, o menino


Ginho, que, após a morte do Cão-Tinhoso, a ele, é dispensado outro
tratamento, sem a subjugação de antes: “Os sapatos da Senhora Professora
faziam ‘cóc, cóc, cóc’ atrás de nós, mas como eu estava a conversar com o
Quim e a olhar para outra coisa, não precisava de me levantar.” (p.34). Num
momento anterior à tomada de decisão sobre a morte do cão, numa mesma
situação, o menino Ginho declara: “eu estava para saber se me havia de
levantar ou não quando ela passava, porque era chato levantar-me todas as
vezes que ela passava por mim.” (p. 8-9).
Nesse caso, a morte do Cão-Tinhoso pode ser lida como a “morte” de
Moçambique, enquanto província, como um mal necessário para seu
restabelecimento político – nascimento da nação - frente ao colonizador.
Voltando ao enredo, o menino foi obrigado por Quim - o chefe da malta -, além
de levar o cão até o local de sua morte, a ser o primeiro a disparar o tiro. Fez
as duas coisas, claramente, muito mais pela necessidade de se impor ao
grupo, pois vontade, ele não tinha. O que se confirma nas seguintes
passagens:

- Quim, a gente pode não matar o cão, eu fico com ele, trato-lhe as
feridas e escondo-o para não andar mais pela vila com estas feridas
que é um nojo!... (p.22)

- Quim, eu não quero dar o primeiro tiro... (Eles queriam que eu desse
o primeiro tiro). (p.25).

As duas passagens podem marcar a mudança de status idealizada para


a situação política de Moçambique, dentro dos moldes em que foi traçada esta
análise, considerando o texto de Honwana como um projeto político para o
agenciamento da independência e, por isso, um simulacro do discurso colonial,
um contradiscurso, por portar a voz do Outro.
Trazendo à baila o jogo da identidade e da diferença para o contexto
político de Moçambique, na década de 1960, tem-se a identidade na pessoa do
colonizador e a diferença marcada no colonizado, os nativos da província.
Poder-se-ia pensar o contrário: a identidade é dos nativos e a diferença dos
que chegam depois. Entretanto, Moçambique estava sob o domínio colonial de

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Portugal e, sabe-se, que quem determina a identidade e, consequentemente, a


diferença, é quem detém o poder. Sobre isso, Tomaz Tadeu coloca:
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa
que sua definição – discursiva e linguística – está sujeita a vetores de
força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas
são impostas. Elas não convivem harmoniosamente, lado a lado, em
um campo sem hierarquias; elas são disputadas. (2011, p.81)

É isso que podemos perceber nas literaturas africanas datadas a partir


da década de 1950 e, consequentemente, na narrativa Nós Matamos o Cão-
Tinhoso, de 1964. Quando Honwana, filho de nativos - segundo nossa análise -
, faz críticas e denúncias ao sistema colonial, como também aponta um
caminho para se pensar a independência da, então, província, fica evidenciado
que a identidade e a diferença são colocadas em questão, mais que isso, seu
texto representa a enunciação da diferença.
Sobre isso, Tomaz Tadeu (2011) expõe que essa disputa envolve uma
mais ampla, que é a disputa por outros recursos simbólicos e materiais da
sociedade e, aqui, pode ser citada a representação literária. Para ele, “a
afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos
diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso
privilegiado aos bens sociais”.
É válido lembrar, de acordo com Ferreira (1987), que somente a partir de
1950 – no contexto dos territórios africanos, sob domínio de Portugal –, passou
a existir a escrita africana, propriamente dita. Antes disso, os textos eram
produzidos de forma a atender aos interesses da metrópole. Junto aos
movimentos pela libertação das províncias, passou a existir uma literatura que
trazia a voz nativa, portanto, a voz do da Diferença. Nesse jogo, isso é de
grande relevância, uma vez que desestabiliza a identidade – a do colonizador -,
pois, como coloca Tomaz Tadeu, “questionar a identidade e a diferença como
relações de poder significa problematizar os binarismos em torno dos quais
elas se organizam”.
Se no jogo das identidades, quem tem o poder determina a identidade e
a diferença, mas esse jogo é instável, pois as identidades disputam, entre si,
em busca das garantias de acesso aos bens culturais, e a diferença pode
questionar o estabelecido pela identidade; é possível, no contexto das
literaturas africanas de língua oficial portuguesa, perceber esse jogo, à medida

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

que passa a existir, mesmo no contexto colonial, a escrita de uma literatura


portadora de demandas identitárias, a partir da diferença.
Pensar “Nós matamos o cão-tinhoso” como escrita da diferença e esta
como simulacro deleuziano, pode nos levar a entender o texto como uma
potência discursiva, um outro discurso – anticolonial –, que traz uma outra
história. É o discurso do Outro que ganha força e vem à superfície. O Outro, ele
mesmo, como sujeito da enunciação, vem delatar e contestar o discurso
hegemônico – colonial – e reivindicar sua ascensão como sujeito social – o
menino Ginho.
Isso é o que Deleuze (1974, p.10) considera como a verdadeira reversão
do platonismo: fazer emergir os simulacros – o diferente/o colonizado -,
afirmando seus direitos entre os “ícones ou as cópias” – a identidade/ o
colonizador. O filósofo entende que o simulacro “encerra uma potência positiva
que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a
reprodução. Pelo menos das duas séries divergentes interiorizadas no
simulacro, nenhuma pode ser designada como o original, nenhuma como
cópia”. Pensar as identidades, nesse sentido, é pensá-las pelo viés da
diferença: em vez de sobrepostas, horizontalizadas.
Na reversão do platonismo, é a semelhança que se diz da
diferença interiorizada, e a identidade do Diferente como potência
primeira. O mesmo e o semelhante não tem mais por essência senão
ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro.
Não há mais seleção possível. A obra não-hierarquizada é um
condensado de coexistências, um simultâneo de acontecimentos. É
o triunfo do falso pretendente. Ele simula tanto o pai como o
pretendente e a noiva numa superposição de máscaras.
(DELEUZE, 1974, p.10)

Machado (2010), no texto Platão e o método da divisão, vem esmiuçar o


entendimento de Deleuze sobre o método da divisão, pondo em foco a
distinção latente do método, ou seja, centrando-se na distinção entre a cópia e
o seu simulacro, em vez de modelo e cópia. O que sua interpretação traz é
que, ao distinguir e opor o modelo e a cópia, Platão anseia, na verdade, “obter
um critério seletivo entre as cópias e os simulacros”: considerando as
primeiras, por manter ligação com o modelo - a ideia -, bem fundadas, por isso
superiores aos simulacros, que são fundados sem atender a exigência do
modelo e da cópia.

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No campo da literatura, o texto de Honwana pode ser considerado um


simulacro, porque, se atentarmos para o período em que foi produzido, ele é
todo devir: o discurso é anticolonial, o protagonista é o colonizado e o
português em que é grafada a narrativa é um português crioulizado. No
entendimento platônico, seria uma cópia mal fundada, pois o texto que se
aproxima do Modelo é o europeu. Na reversão desse entendimento, segundo a
proposta de Deleuze, “uma potência positiva, capaz de destruir as categorias
de original e cópia”.
Nesse sentido, pensar não só o texto de Honwana, mas toda literatura
da alteridade, é entendê-lo em sua potência, enquanto discurso que pode
abalar uma hegemonia. Não se trata de uma literatura menor - um texto com
menor cuidado formal, ou menor teor literário -, por ser diferente das literaturas
canônicas. Trata-se de um texto que faz emergir vozes subalternizadas – mal
retratadas ou não retratadas – por um sistema de representação, permeado por
relações de poder.
Entender o simulacro como diferença é o principal trunfo da filosofia de
Deleuze, segundo Roberto Machado. Ele expõe que o filósofo valoriza o
simulacro, em sua interpretação de Platão, como uma maneira de pensar a
diferença em si, sem submetê-la à identidade, afirmando sua potência positiva
e contestando as noções de identidade e semelhança.
A glorificação deleuziana dos simulacros, que define seu
antiplatonismo, consiste em considerá-los não como simples
imitações, como uma cópia de cópia, uma semelhança infinitamente
diminuída, um ícone degradado, mas como uma maquinaria, uma
máquina dionisíaca, uma potência positiva (...) que, quando não é
mais recalcada pela ideia, é a própria coisa; pois, se no platonismo a
ideia é a coisa, na subversão do platonismo cada coisa é elevada ao
estado de simulacro. (MACHADO, 2010, p.48)

Pensando por essas vias, torna-se evidente o entendimento da


importância política e identitária do texto africano, aqui representado pela
narrativa de Honwana. É uma escrita que surge com potência para
problematizar, questionar e subverter o sistema vigente até então. E, ao trazer
essas características, não pode ser tratada como uma mera literatura –
discussão que fica para uma próxima oportunidade -, que imita o modelo
europeu: é uma outra escrita. É um texto africano de língua portuguesa, pois,
como disse o próprio Honwana, hoje, a língua portuguesa, também, é de

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Moçambique, de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe,


pelo simples fato de não se poder apagar o passado colonial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como, até a década de 1950, o modelo literário, vigente em


Moçambique, era o europeu - impondo valores culturais, sociais e religiosos,
como forma de, através do poder colonial, abalar os costumes e línguas locais -
, acredita-se que o conto Nós Matamos o Cão-Tinhoso pode figurar como um
projeto de agência da independência de Moçambique, portanto um simulacro
do discurso vigente.
O texto pode produzir leituras de denúncias dos males causados pela
colonização, além de possuir, em sua escrita, elementos das culturas
moçambicanas, mesmo que em língua portuguesa. Nesse sentido, o discurso
de Honwana, no conto, pode ser lido como o discurso da diferença, um
simulacro do discurso da Metrópole, no sentido deleuziano, pois pode
representar o que se pode chamar de discurso do Outro, enquanto potência,
com o poder de revelar uma nova forma de escrita e outra forma de representar
o sujeito moçambicano.
A partir da situação apresentada na narrativa – tomando-se a análise
apresentada aqui –, e considerando o contexto colonial, vivenciado por
Moçambique, pode-se perceber uma possível ilustração de triunfo do falso
pretendente.
Em primeiro plano, podemos considerar a própria literalidade: o texto
possui um formato europeu - é escrito em português em vez de narrativas,
marcadas orais e nas línguas moçambicanas -, entretanto, os temas
levantados interessam mais à colônia que à metrópole. A própria língua
portuguesa, em que a narrativa é escrita, é forjada, à medida que o português
utilizado é crioulizado pelas influências das línguas locais. Indo um pouco além:
o próprio escritor, pode ser considerado esse simulacro, uma vez que é
moçambicano e filho de colonizados, mas atua numa atividade mais comum
entre os filhos da metrópole.

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Em segundo plano, toma-se Ginho, enquanto colonizado. Ao que se


percebe, emerge em sua condição de sujeito social: ao forjar-se, por via da
aquisição da educação colonial e da decisão em matar o Cão-Tinhoso, ele
passa a apresentar semelhanças com o seu colonizador e deixa de ser aquele
nativo, que nada tem em comum com os hábitos tradicionais da colônia. Ele
passa a ser um e outro, ao mesmo tempo, nesse novo sujeito, desestabilizando
o jogo das identidades, dentro do sistema de poder colonial.
Personagem, obra e autor, constituindo - enquanto simulacro, em toda
sua potência deleuziana -, outras formas de sujeito, outros discursos políticos e
novas formas de representação de culturas que passaram pela tentativa de
apagamento e que, naquele momento, para Moçambique, podem ter sido um
projeto viável, para a vida política e cultural da, então, província ultramarina.

REFERÊNCIAS

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São


Paulo: Ed. UNESP, 2009.

DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In:_. Lógica do sentido. Trad. Luiz


Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva; EDUSP, 1974.

FERREIRA, Manuel. Literatura africana de expressão portuguesa. São


Paulo: Editora Ática, 1987.

HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o cão-tinhoso. São Paulo: Editora


Ática, 1980.

MACHADO, Roberto. Platão e o método da divisão. In: _. Deleuze, a arte e a


filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática,


1988.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: _.


(ORG.) Identidade e Diferença. RJ: Vozes, 2007.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O PAPEL DO INTELECTUAL CABO-VERDIANO PÓS-INDEPENDENTE EM


O MEU POETA, DE GERMANO ALMEIDA

MARIANA ANDRADE GOMES (UFBA)

Ainda que tal afirmação possa parecer óbvia ou até mesmo


desnecessária, acredito que seja relevante assinalar o meu lugar de fala
enquanto pesquisadora estrangeira e brasileira que, por hora, não esteve em
Cabo Verde. Faço tal colocação para destacar que todo o conhecimento que
tenho acerca do país no qual debruço meus estudos foi granjeado através de
textos bibliográficos, o que, de certa forma, limita meu horizonte crítico à
leituras sociológicas, históricas, políticas e literárias realizadas por terceiras
pesquisadoras e pesquisadores. Sinalizo isso não como forma de me esquivar
de um debate crítico, mas sim, como uma forma de pontuar de onde parte
minha perspectiva analítica e indicar possibilidades de revisões tanto nos
campos teóricos quanto nas interpretações no decorrer desta pesquisa de
doutorado.
Após sublinhar o prisma analítico do presente texto, ressalto também
que o presente estudo é um recorte da tese de doutorado em que analiso o riso
político na(s) literatura(s) de Cabo Verde enquanto formas de
reivindicação/legitimação na construção de identidades nacionais. Com esta
pesquisa proponho uma problematização das demandas literárias cabo-
verdianas postuladas por escritores intelectuais, notadamente enfocando na
figura de Germano Almeida, que buscam elaborar (até mesmo consolidar) em
seus romances aspectos específicos de uma literatura que se traduza como
plataforma da(s) nacionalidade(s) do arquipélago.
Outrossim, demarco o caráter de construção dessas identidades
nacionais para acentuá-las enquanto processo, elaboração, criação e
negociação por meio das postulações de Stuart Hall em A identidade cultural
na pós-modernidade (2006). Deste modo, compreendo as identidades
nacionais como não essenciais ou autênticas, tampouco as entendo como
definitivas ou generalizantes, seguindo as pressuposições de Hall (2006, p.38).
Ademais, compactuo com a perspectiva estabelecida por Paul Gilroy
em seu texto intitulado Identidade, pertencimento e a crítica da similitude pura
(2007) no qual o autor destaca a identidade em seu aspecto político, concebida

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como produto do processo histórico, situada a partir de contextos históricos e


moldadas pelos interesses de grupos (geralmente) dominantes que podem ser
o Estado, uma nação, um movimento, uma classe ou “alguma combinação
instável de todos eles.” (GILROY, 2007, p. 125).
Destarte, a partir da concepção das identidades como constructos
políticos, é mister enfatizar o caráter narrativo que estas assumem enquanto
intersecção dos apontamentos teóricos de Gilroy e Hall. As identidades então
passam a serem vistas sob a encruzilhada analítica cunhada por Hugo Achugar
(2006) ao asseverar que sua elaboração se dá por meio de relatos; ficções que
podem ser institucionalizadas e oficializadas (denotando seu aspecto político
de acordo com Gilroy(2007)) através de negociações (o que evidencia seu
caráter não essencial, semelhantemente ao que estabelece Hall(2006)) entre
os círculos hegemônicos.
Achugar no capítulo A nação entre a memória e o esquecimento: para
uma narrativa democrática da nação (2006) sinaliza que as questões
identitárias são elaboradas por intermédio de relatos que, em macro contextos,
conformam a(s) ideia(s) de nação, por exemplo, surgindo de negociações que
podem envolver “ativistas vinculados aos sujeitos sociais tradicionais”, novos
sujeitos e intelectuais em um confronto pelo poder do discurso e pela
representação.
É a partir dessas discussões teóricas acerca das demandas identitárias
que enfatizo a relevância do papel do intelectual – especificamente, o
intelectual produtor de literatura – enquanto mediadores e criadores de
narrativas de memórias definidos, logicamente, por marcadores ideológicos,
que configuram determinadas identidades nacionais.
Para iniciar essa proposta interpretativa, destaco a relevância que o
grupo claridoso assumiu para/nas letras de Cabo Verde ao imprimir em suas
obras seus posicionamentos políticos-ideológicos no período pré-
independência.

O protagonismo histórico, social e político da Revista Claridade

De acordo com Maria Aparecida Santilli no livro Literaturas de Língua


Portuguesa, Marcos e Marcas, Cabo Verde (2007), no primeiro número da

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Revista Claridade, surgida em 1936 e findada em 1966 na cidade de


Mindelo 173, subtitulada “Revista de arte e letras”, o percurso de “reencontro da
identidade cabo-verdiana” (2007, p. 24) já era delineado. Aparecida Santilli
destaca que a “caboverdianizão [sic] temática” encontrava-se na “raiz do
pensamento claridoso” em seu compromisso de definir um “perfil do cabo-
verdiano, pela perspectiva do próprio cabo-verdiano” (Ibidem, p. 23).
Ao fazer uma síntese dos conteúdos das secções do primeiro número
da Claridade, a autora realça os direcionamentos ideológicos assumidos por
seus responsáveis, a saber, os escritores Manuel Lopes, Baltasar Lopes da
Silva (sob o pseudônimo de Osvaldo Alcântara) e Jorge Barbosa.
Na secção intitulada “Tomada de vista”, conforme postula a autora, as
várias e breves observações, apresentam, quando compreendidas como
conjunto, contornos de um manifesto no qual os posicionamentos ideológicos
condutores da revista são explicitados.
Em subpartes dessa secção alguns pontos são levantados como: a
tentativa de invalidar a imagem do cabo-verdiano a partir de uma visão
estigmatizada pelo exotismo – estigma esse carregado por todos os países do
continente africano e, como alternativa para o esvaziamento dessa
característica depreciativa, a ligação com a África, nesses termos, deve ser
rompida – e o dilema ir/ficar 174, no qual se assume o mote “fincar os pés na
terra” como marca estratégica de valorização do país.
Ainda sobre o protagonismo claridoso, é mister asseverar que, em face
da exiguidade do mercado editorial nas ilhas, a difusão da literatura se dava
por meio de periódicos e, tanto as estruturas quantos os conteúdos,
permaneciam muito vinculados aos moldes da antiga metrópole – mesmo com
a tentativa da geração dos nativistas em imprimir as cores cabo-verdianas às
letras do país. Conquanto o surgimento da revista não tenha implicado no
rompimento definitivo dos laços com Portugal, ressalta-se que essa demarcou,
de acordo com José Carlos Gomes dos Anjos em Intelectuais, literatura e

173
José Carlos Gomes dos Anjos (2006, p. 148) pontua que a formação dos componentes
claridosos foi realizada em Lisboa durante as décadas de 20 e 30, período de ápice do
movimento modernista português que se contrapunha à vertente romântico-clássica.
174
Esse impasse simboliza o conflito interno da população do arquipélago afligida por intensas
secas, solo pouco produtivo e restrito mercado de trabalho restando somente a emigração
como possibilidade de sobrevivência.

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poder em Cabo Verde (2006, p. 76), a “independência literária 175” de Cabo


Verde, representando o “marco fundador da nacionalidade do arquipélago”.
Acerca do período histórico no qual a Revista Claridade se situa,
Gabriel Fernandes em sua dissertação Entre a europeidade e a africanidade
(2000), contextualiza a época de surgimento do periódico com a derrubada da
República Parlamentar em Portugal no ano de 1926, seguida pela instauração
do Estado Novo (1930-1933 176), como momento fulcral de alteração das
relações entre os intelectuais cabo-verdianos e o poder colonial gerando
repercussão no processo de construção simbólica de identidade. Fernandes
(2000, p. 68-69) assinala que o compromisso assumido pelo novo regime de
“salvar a pátria” trouxe como consequência a repressão de qualquer
manifestação de caráter independentistas das colônias ao passo que também
estimulou a difusão de ideais assimilacionistas e integracionistas.
Segundo Gabriel Fernandes, interessava ao governo português
promover quadros intermediários que servissem ao propósito de expandir o
Estado. Nessa conjuntura:
A mera possibilidade de os cabo-verdianos preencherem esse
espaço abriu o caminho a um dos mais controversos períodos de
produção simbólica de identidade, em que, embora reproduzindo a
ambivalência discursiva e prática dos nativistas, a nova elite letrada
despoja-a do seu potencial emancipatório e de resistência,
apresentando, em seu lugar, um tipo de regionalismo que não podia
significar mais do que um desdobramento do projeto uninacional.
(Ibidem,p.69)

Assim, em consonância com a empresa de disseminação de ideais de


unificação com Portugal, os claridosos pleiteavam um status de diferenciação
em relação às outras colônias africanas, almejando ganhos políticos através
desta coligação. Todavia, Fernandes declara que no plano prático essas
regalias nunca foram concedidas à Cabo Verde e a esperada equiparação
entre portugueses e nativos nos cargos da administração colonial nunca
ocorreu.
Ao passo que a legitimação por parte da metrópole nunca se efetuou, a
“elite letrada”, como descreve Gabriel Fernandes (2000, p.70), também
buscava ostentar valores que justificassem seu prestígio junto a população.
175
Afirmação do então presidente do Instituto Cabo-verdiano do Livro (ICL) em discurso
anunciado durante a comemoração dos cinquenta anos de lançamento da Revista Claridade
(ANJOS, 2006, p. 76).
176
Este regime só termina com a Revolução de 25 de abril de 1974.

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Para tanto, não se escusava de lançar mão de expedientes que a aproximasse


de Portugal, defendendo que Cabo Verde era uma região apenas afastada
geograficamente da metrópole, e distanciando-se do continente africano de
modo a livrar-se do já citado estigma do exotismo, além das figuras de miséria
e atraso com as quais se costuma associar os países da África 177.
Todavia, o papel de fundador da identidade nacional atribuído aos
intelectuais claridosos tem sido reivindicado por grupos que, ora os situam
como precursores do rompimento com Portugal, ora os compreendem como
difusores da identidade regionalista e ainda vinculada à antiga metrópole.
Nesses termos, José Carlos Gomes dos Anjos (2006, p. 83) assevera que os
rituais de consagração da revista realizados nos anos 80 e 90 explicitam ainda
mais o anseio em inculcar os princípios identitários de uma “cabo-
verdianidade” inaugurada pelo movimento do que os próprios textos contidos
na Claridade. Como exemplo disso, o autor postula:
Durante a fase mais dura da Primeira República, Baltasar Lopes,
embora considerado o maior escritor cabo-verdiano, foi condenado a
um certo ostracismo, acusado de colaborador do regime fascista; hoje
Baltasar Lopes é resgatado como um precursor do movimento
nacionalista, ou, até, como fundador literário da nacionalidade.
(Ibidem, p. 84)

Tal pontuação corrobora com a visão de que os relatos de memória


são constantemente construídos e negociados a partir das necessidades e
interesses de grupos dominantes; a imagem do famoso Nhô Baltas, como é
popularmente conhecido em Cabo Verde, foi diametralmente definida com base
nas demandas das conjunturas sócio-históricas nas décadas de 30 e
posteriormente, nos anos 80 e 90.

A tradição intelectual em Cabo Verde: breves apontamos sobre a


Claridade, elite letrada, apagamento seletivo do componente cultural
africano e trânsitos pessoais

Jane Tutikian em seu artigo O siso dO Meu Poeta: o riso do meu autor
(2006) afirma que a independência política precedeu a independência cultural.
A autora (2006, p.61) coloca que a realidade política e histórica de Cabo Verde

177
Esta discussão se enriquece demasiadamente quando se observa a construção da
mestiçagem a partir dos claridosos. Como indicações de leitura sobre o assunto, as obras de
José Carlos Gomes dos Anjos e Gabriel Fernandes citadas nas referências deste texto
apresentam contribuições de relevo acerca da temática.

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se modificou após a instauração da emancipação em 5 de julho de 1975, mas


pontua também que essa mudança foi gestada durante muito tempo
atravessando questões como demandas étnicas, geográficas, culturais e
políticas. É nesse cenário que a figura do PAIGC (1956) adquire relevo. O
Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde foi liderado,
inicialmente, por Amílcar Cabral, membro da minoria cabo-verdiana na Guiné
Bissau, até seu assassinato anos antes da proclamação da independência.
Cabral afirmava que “cultura não é sinal de libertação, libertação sim, é sinal de
cultura” (Ibidem).
Jane Tutikian (2006) também assinala que “Tudo isso representa um
sofrido processo de conscientização cultural e nacional, até porque as
independências políticas e econômicas normalmente precedem a
independência cultural que instaura, em última análise, a própria busca da
identidade nacional.” (Ibidem).
Tal colocação possibilita uma interpretação acerca dos proventos
adquiridos durante e depois do processo emancipatório, mais notadamente, o
incremento dos debates sobre as questões étnicas que se intensificaram nas
produções literárias. Com o PAIGC e a figura cabralina, e anteriormente os
contatos entre estudantes africanos de outras ex-colônias durante sua
formação em Portugal – situação na qual o próprio Amílcar Cabral se
encaixava –, a reivindicação da herança africana e a aproximação com países
continentais, principalmente a Guiné-Bissau, foram intensificadas.
Nesse sentido, José Carlos Gomes dos Anjos (2006) e Gabriel
Fernandes (2000, 2002) discorrem sobre o (quase) efetivo esvaziamento do
espólio africano pelas elites letradas cabo-verdianas. Ao adotar modelos
ocidentais europeus o patrimônio da África era repelido, quando não
objetificado por meio de identificações pejorativas do continente como exótico,
como supracitado, não civilizado e meramente emocional, contrastado com a
racionalidade e ilustração associadas à Europa.
Como demonstração do apagamento do aspecto negro-africano da
cultura cabo-verdiana, o próprio discurso sobre a mestiçagem como fruto de
uma relação harmoniosa entre o homem branco europeu, que povoou nos
primeiros momentos as ilhas, e a mulher negra escravizada reduz

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significativamente o conflito desta “união”, posto que o legado materno dos


países africanos e das etnias que habitaram em Cabo Verde são violentamente
obnubiladas.
Na descrição dessa “junção” fornecida por João Lopes Filho (1983,
p.19), o autor assinala o caráter não afetivo da ligação entre brancos e negras
ao afirmar que isto ocorreu devido à escassez de mulheres brancas no
arquipélago, em decorrência do envio pela coroa portuguesa somente de
homens brancos para habitar as ilhas. Todavia, não fica explicitado que a
relação entre os senhores colonos e as mulheres em condição de
subserviência, obviamente, não foi consensual. Tampouco esse fato modificou
o status dessas, pois, mesmo tendo relações sexuais, ou ainda vivendo
“maritalmente”, nunca (ou raramente) foram oficializadas como esposas (posto
que a maioria desses “patrões” possuíam cônjuges em Portugal).
Desse modo, Onésimo Silveira em seu renomado (e polêmico 178)
ensaio Consciencialização na literatura caboverdiana, lançado em 1963 e
republicado em 2015, ressalta o afastamento que os intelectuais cabo-
verdianos, notadamente, os claridosos, adotaram em relação ao aspecto
negro-africano da população. Problematiza Silveira (2015, p. 21):
Além de acusarem, como já dissemos, uma nítida fuga aos
componentes negróides da cultura caboverdiana, há outro aspecto
importante e correlacionado do problema, que se pode e deve pôr,
das relações entre o povo e os criadores da moderna literatura
caboverdiana; [...] A pretensa identificação mesmo em termos
compensatórios seria inconciliável com a referida fuga aos elementos
negróides da nossa cultura. Tanto uma coisa como a outra mostram
que a literatura criada pelos claridosos muito aquém ficou de realizar
a identificação entre escritor e povo; [...]

A partir deste texto, Onésimo Silveira (2015) evidencia o caráter elitista


e eurocêntrico do mais celebrado movimento literário de Cabo Verde.
Movimento este formado por “funcionários médios e profissionais liberais que
publicavam poesias” (ANJOS, 2006, p. 75) e que transitavam por várias esferas
da vida social e política do país. Uma ilustração desses trânsitos pode ser

178
Sobre a reverberação e a transgressão do texto de Silveira, Inocência Mata (2015, p.59)
discorre: “E se hoje parece normal considerar-se polémico o ensaio de Onésimo Silveira, e até
radical, deve dizer-se que nos anos de chumbo (e os anos 60 do século passado foram-no até
à exaustão para as colônias portuguesas!) esse tipo de questionamento visava, como diria
quarenta anos depois Gabriel Fernandes, <<a desmontagem de nexo entre experiências
sociais e políticas para a afirmação da peculiaridade cultural cabo-verdiana>>, contra uma
<<funcionalização da identidade cultural cabo-verdiana>> (Fernandes, 2002).”

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encontrada na trajetória de Baltasar Lopes. Formado em Letras, Filologia


Romana, e frequentador ordinário do curso de direito, Lopes chegou a ser reitor
do Liceu Gil Eanes em São Vicente e também exerceu a advocacia,
defendendo causas sobre heranças dentre outras179. Sua relevância para o
ensino no arquipélago ficou registrada ao adotar sua data de nascimento para
a comemoração do dia do professor.
Assim, percebe-se que a presença destes autores não se restringiu ao
campo literário, posto que obtiveram notabilidade em outras searas, como no
caso anteriormente citado de Baltasar Lopes. Nisto também se enquadra
Germano Almeida que trafegou no mercado editorial, atuando na Ilhéu
Editora 180; ambiente jurídico, sua ininterrupta carreira como reconhecido
advogado; esfera política, como diplomata e deputado pelo MPD; e sua
atividade literária, que lhe rendeu a epígrafe de famigerado escritor de
repercussão internacional.

O meu poeta: rupturas ou continuidades?

Paula Gândara, autora de um dos primeiros estudos sobre a obra de


Germano Almeida, aponta em seu livro Construindo Germano Almeida (2008)
que se encontram muitas ressonâncias da escrita claridosa nos textos
almeidianos, mais especificamente, sobressaindo-se o diálogo com o romance
Chiquinho, de Baltasar Lopes. A pesquisadora descreve esta relação afirmando
que:
O espaço literário que enforma o texto almeidiano insere-se ainda na
mesma ânsia de criação duma literatura nacional de que Claridade é
índice primeiro. No entanto, este desejo de uma linguagem que seja
espelho narcísico da nação espraia-se bem além de si, para outros
espaços afirmativos onde o contexto social e político se enquadram
com humor e ironia. (GÂNDARA, 2008, p. 10)

Nessa direção, Jane Tutikian (2006) também enfatiza os elos entre a


Claridade e a produção de Almeida, no entanto, avança no sentido de assinalar
uma “superação” que este realiza em detrimento do movimento literário:

179
Cf. Blog Made in Cabo Verde.
Disponível em: <http://madeincaboverde.blogspot.com.br/2012/04/baltasar-lopes.html>. Acesso
em 8 dez. 2015.
180
Além de ter sido um dos fundadores da Revista Ponto e Vírgula (março de 1983 a dezembro
de 1987), e coproprietário do jornal Aguaviva (cf. TUTIKIAN, 2006, p. 64).

830
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[...] é importante observar que o escritor, mesmo sem romper


com a tradição, vai além do Movimento Claridoso, sim. Deve-se
a ele a revelação de uma nova face da literatura caboverdeana,
na medida em que, distanciando-se dos temas eixos daquele
movimento, como a fome, a seca e a emigração, (tão
evidenciados em Cabo Verde-Viagem pela História das Ilhas,
obra de 2003, onde revela o sofrimento e a resistência do
povo) introduz o humor – e muitos o consideram verdadeiro
cultor da ironia do Mindelo – na literatura caboverdeana.
(TUTIKIAN, 2006, p. 64)

O próprio Germano Almeida reivindica a necessidade da “superação”


do paradigma claridoso nas letras cabo-verdianas ao declarar que não houve
uma ruptura entre essa geração e as contemporâneas, como se “dormir à
sombra dos louros da <<Claridade>>” (ALMEIDA, 1998, apud, TUTIKIAN,
2006, p. 64) bastasse às escritoras e escritores do arquipélago. O escritor
alega que percorreu o mesmo percurso do famigerado movimento cinquenta
anos depois – possivelmente, na busca de uma literatura “mais”
nacionalista/regionalista –modificando o cenário para um aspecto mais urbano.
Não obstante, Tutikian (2006, p. 64) enfatiza que houve sim uma
“superação” da estética claridosa em Germano Almeida, e esta ocorreu por
meio da utilização da sátira e do humor, sendo O meu poeta reconhecido como
o primeiro romance “verdadeiramente” nacional da nova República de Cabo
Verde.
Entretanto, é necessário ressalvar que a linguagem humorística em
Cabo Verde não teve como precursor Germano Almeida mas sim João Cleofas
Martins, conhecido por Nhô Djungas, aclamado radialista do Mindelo. Mesmo
atuando no meio radiofônico, Djunga oralizava suas crônicas, o que não as
impedem de serem compreendidas enquanto narrativas dispostas em
plataformas não literárias (posteriormente houve uma pequena compilação dos
textos realizada por Arsénio D. Fermino de Pina em 2002, intitulada Coisas do
Djunga).
Ainda assim, a ironia com a qual Germano Almeida aborda a produção
literária, o escasso mercado editorial e a estereotipização do escritor enquanto
intelectual com aspirações a cargos políticos é intensamente potente e
transgressor.

831
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O personagem principal do romance, que não recebe nome 181, sendo


conhecido apenas como Meu Poeta, pulveriza a crítica, transformando-o em
um “tipo”. Sua adesão política varia conforme ascendem os grupos ao poder,
aliando-se sempre a quem tem mais prestígio. No livro chega a ser pontudo
que o crédito recaí muito mais no cargo que a pessoa ocupa do que em sua
identidade enquanto individuo, daí a possibilidade do poeta como atemporal e
típico.
Já a reiteração dos valores nacionais simbolizados pela morna e pelo
grogue também suscitam a interpretação da obra como procura pela
identidade(s) nacional(is) além da constante reivindicação de uma literatura
que esteja mais próxima da “realidade” cabo-verdiana. Contudo, cabe a
indagação: que realidade é essa que ainda não se aproxima do aspecto negro-
africano associando-se a paradigmas europeus/ocidentais? Há em Germano
Almeida uma ruptura dos ideais claridosos ou apenas a linguagem humorística
dá conta dessa “superação”?

REFERÊNCIAS

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narrativa democrática da nação”. In: ______. Planetas sem boca: escritos
efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

ANJOS, José Carlos Gomes dos. Intelectuais, literatura e poder em Cabo


Verde: lutas de definição da identidade nacional. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2006.

FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: uma interpretação da saga


identitária cabo-verdiana no panorama político (pós)colonial. Florianópolis: Ed.
UDFSC, 2002.

_____________. Entre a europeidade e a africanidade: os marcos da


colonização/descolonização no processo de funcionalização identitária em
Cabo Verde. Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política.
Dissertação. Florianópolis: 2000. Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/79058. Acesso em: 08. dez. 2015.

181
Os principais personagens do romance como o poeta e seu assistente não possuem nome.

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GÂNDARA, Paula. Construindo Germano Almeida – a consciência da


desconstrução. Lisboa: Vega, 2008.

GILROY, Paul. “Identidade, pertencimento e a crítica da similitude pura”. In:


______. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. Trad. Célia
Azevedo. São Paulo: Annablume, 2007. p. 123-162.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de


Janeiro: DP & A, 2006.

LOPES FILHO, João. Contribuição para o estudo da cultura cabo-verdiana.


Lisboa: Biblioteca Ulmeiro n. 15, 1983.

MATA, Inocência. A Casa dos Estudantes do Império e o lugar da literatura


na consciencialização. Lisboa: União das cidades capitais de língua
portuguesa, 2015.

SANTILLI, Maria Aparecida. Literaturas de língua portuguesa: marcos e


marcas – Cabo Verde: ilhas do atlântico em prosa e verso. São Paulo: Arte &
Ciência, 2007.

TUTIKIAN, Jane. O siso dO Meu Poeta: o riso do meu autor. Via Atlântica, n.
10. São Paulo, dez. 2006.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50577>.
Acesso em: 14 ago. 2015.

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PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA


EM TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO

REGINA COSTA NUNES (UFV) 182

As ex-colônias portuguesas no continente africano conquistaram


independência na década de 70 do século passado, após quatro séculos de
colonização, por meio de lutas armadas. Guiné-Bissau, em 1974, foi o primeiro
a ser reconhecido como independente por Portugal, enquanto Cabo Verde,
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Angola obtiveram em 1975. Em
decorrência disso, a temática dos movimentos pela independência e as guerras
civis se fazem presentes nas obras literárias produzidas nesses países.
Em Moçambique, quando os portugueses iniciaram a colonização, não
existia um sistema de escrita entres os povos nativos. Sua cultura era baseada
na tradição oral, sendo a memória ancestral o elo transmissor da sabedoria, da
história e da cultura. Além disso, Portugal começou de fato a colonizar
culturalmente seus territórios tardiamente, utilizando como ferramenta a escrita
em língua portuguesa e sua adoção como sistema de língua oficial.
A elite negra e mestiça moçambicana deu início ao jornalismo, o qual
continha sessões voltadas para a literatura, nos primeiros meados do século
XX, tendo como foco a defesa dos direitos dos moçambicanos. “Os irmãos
José e João Albasani fundaram, em 1909, O Africano, jornal editado em
português e ronga, um dos principais idiomas bantos de Moçambique, a fim de
promulgar e divulgar a dignidade da população indígena” (HUSSEL, 2006, p.
XI). Essa literatura revolucionária presente nos jornais foi perseguida por
Salazar, que vetou a liberdade de imprensa. Mas, com a independência, muitas
dessas obras proibidas foram publicadas, tanto nos países africanos como em
Portugal e, assim, sob fortes influências literárias, surge a Literatura
Moçambicana propriamente dita. Como afirma Silva (2010, p. 33),
Escrever uma história literária, portanto, é uma tarefa ampla, ainda
mais quando se trata de sistemas literários emergentes, porque o
ponto de partida de seus pesquisadores é a constituição dos sistemas
literários de outras nações (...). No caso da literatura moçambicana,
podemos pensar que as recentes contribuições para sua
historiografia têm por base os processos de formação das literaturas

182
Mestranda em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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brasileira e portuguesa, bem como aquelas outras nações de língua


portuguesa, nomeadamente de Angola, cujo repertório literário
destaca-se como um dos mais amplos no âmbito dessas literaturas.

Dessa forma, uma atmosfera de incertezas e conflitos está presente nas


obras do escritor moçambicano Mia Couto. Sobre seu fazer literário dentro do
universo moçambicano Ana Claudia da Silva (2010, p. 72) diz que:
Mia Couto tem também o mérito de levar a literatura moçambicana
para além dos limites de sua nação, dando a conhecer ao mundo
todo, pelas inúmeras traduções de suas obras, os modos
moçambicanos de ser e de viver, de pensar a realidade e de dizê-la.
(...) Entendemos ser Mia Couto, em Moçambique, o inaugurador de
uma liberdade de criação literária que prima pela destreza do trato
pelas palavras; pela postura singela que abarca as perplexidades de
seu tempo; pela multiculturalidade que sobrepuja o exotismo com que
o continente africano ainda é, muitas vezes, concebido; e pelo
inusitado das situações, descritas sempre, parodiando Machado, com
a pena da dedicação e a tinta da ironia.

A literatura produzida por Mia Couto tem contribuído para divulgação da


sociedade moçambicana, estando imbricada de percepções sociais, culturais,
psicológicas, enfim, humanas. Por isso, o temor e medo causados pelas
guerras permeiam as cenas tenebrosas de Terra Sonâmbula, que inicia o
primeiro capítulo com este relato:
Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as
hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem
se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à
boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda leveza,
esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se
tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em
resinada aprendizagem da morte (COUTO, 2007, p. 9).

A narrativa começa anunciando maus presságios sobre a terra/nação,


que já sofrera muito com as guerras e onde os (sobre)viventes se
acostumaram à atual condição, não havendo esperança, pois o céu se tornara
impossível. Em meio à poeticidade de uma cena tão trágica é que as duas
primeiras personagens são apresentadas: um velho (Tuahir) e um miúdo
(Muidinga/Gaspar) que seguem fugindo da guerra, “dessa guerra que
contaminara toda a sua terra, vão na ilusão de, mais além, haver um refúgio
tranquilo” (COUTO, 2007, p.9).
Terra Sonâmbula, publicada em 1992, denuncia que a vida naquele
lugar (Moçambique) fora abalada pelas guerras de maneira irreparável. Ao
longo da narrativa, mais cenas de desolação, morte, pessoas refugiadas em

835
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sua própria terra, animosidade com os estrangeiros são apresentadas, fatos


estes que não são exclusivos da ficção fictício, tendo seu mérito de
representatividade da condição humana neste contexto pós-colonialista em
que:
O movimento que vai da colonização aos tempos Pós-coloniais não
implica que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou
sucedidos por uma época livre de conflitos. Ao contrário, o “pós-
colonial” marca a passagem de uma configuração ou conjuntura
histórica de poder para outra (HALL, 1996). Problemas de
dependência, subdesenvolvimento e marginalização, típicos do “alto”
período colonial, persistem no pós-colonial. [...] Atualmente, essas
relações são deslocadas e reencenadas como lutas entre forças
sociais nativas, como contradições internas e fontes de
desestabilização no interior da sociedade descolonizada, ou entre ela
e o sistema global como um todo. (HALL, 2009, p.54)

Essa observação de Hall é fundamental para compreender e desmitificar


a ideia de que, ao se tornar independente e ao obter esse marco de mudança
na história, a forma de organização e a convivência social passam
naturalmente para um plano mais elevado e organizado. Ao contrário, agora o
inimigo e opressor não são mais os “de fora”, ou seja, o colonizador, mas
também os povos nativos passam a disputar entre si. Os problemas sociais se
tornam mais evidentes uma vez que a luta pelo poder ocorre entre os povos
nativos, desalicerçando a estrutura de hegemonia nacionalista empregada pelo
discurso pedagógico. Entretanto, as questões levantadas pela multiplicidade
dos modelos de estruturação da sociedade se tornam mais aparentes, tais
como o socialismo predominante em Moçambique e a pressão capitalista
estrangeira, o modo de vivência tradicional com o moderno e os resquícios da
dicotomia entre colonizador e colonizado.
O sentimento de hostilidade diante do que não se conhece é algo
recorrente ao longo da viagem empreendida por Kindzu. Nos lugares a que
chega, percebe que os estrangeiros são tratados como um intrusos e
ameaçadores. Isso ocorre por consequência da guerra civil, pois não se sabe
quem é aliado ou inimigo e uma pessoa “de fora” é sempre mal visto. Um dos
cadernos que relata bem isso é o terceiro, o qual relata a primeira advertência
que Kindzu recebe ao chegar à Matimati: desaparecer, “pois ali se sucediam
terríveis acontecimentos. O medo e ameaça vinham de todos os lados”
(COUTO, 2002, p. 55).

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Os problemas sociais existentes no período colonial não foram


simplesmente resolvidas ou ultrapassadas, ao contrário, após a independência
de Moçambique essas problemáticas ganharam uma nova perspectiva. Mesmo
tendo como idioma oficial o português, apenas 6% da população o tem como
língua materna, ou seja, em meio a tantos dialetos existentes neste país
grande parte de sua população (principalmente no interior) é analfabeta em
relação ao português, fato este que perdura deste o tempo colonial, o que
exemplifica tal abordagem.

Memória, morte e identidade


O jovem se chama Muidinga. Caminha à frente desde que saíra do
campo de refugiados. Se nota nele um leve coxear, uma perna
demorando mais que o passo. Vestígio da doença que, ainda a
pouco, o arrastara quase até a morte. Quem o recolhera fora o velho
Tuahir, quando todos os outros o haviam abandonado. O menino
estava já sem estado, os ranhos lhe saíam não do nariz mas de toda
a cabeça. O velho teve que lhe ensinar os inícios: andar, falar,
pensar. Muidinga se meninou outra vez. (COUTO, 2007, p. 10)

Essa é a primeira descrição que temos de Muidinga/Gaspar. É contado


que o menino teve uma doença, cuja explicação encontra-se nas páginas
posteriores, sobre a qual será tratada agora. Sabe-se, em um primeiro
momento, que a doença lhe fizera esquecer o passado e que sua sina é
encontrar seus pais.
Ao encontrar os cadernos de Kindzu o jovem descobre que sabe ler e
escrever, assim surge sua primeira lembrança:
De súbito, lhe chegam sons distantes no tempo, semelhando gritos
de meninagem em recreio. O menino estremece: aquela era uma
primeira lembrança. Até ali não se recordava da ocorrência anterior à
enfermidade. Corre em balbúrdias para o carro.
- Tio, tio! Eu lembrei de minha escola (COUTO, 2001, p. 37).

Apesar da alegria do garoto, sua lembrança é vaga e não passa de sons


distorcidos de um passado remoto. A doença que lhe tirou a memória foi
consequência da ingestão da maquela, a mandioca azeda, como relata Tuahir
depois de muita insistência do miúdo para saber sobre seu passado. O velho
relata que encontrou o menino em meio a um pequeno grupo de mortos
recentes. A cor clara da pele lhe chamou a atenção. Mas, mesmo com tantos
cuidados, não acreditava que o jovem fosse escapar da morte. Quando o
menino ainda conseguia falar perguntou sobre o que tinha, e disse após a
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explicação de Tuahir: “ – Ah, a mandioca... eu sei”. Mais adiante Tuahir


pergunta: “– Se sabias da mandioca por que comeste então, miúdo? O velho
perguntou mas já sabia a resposta. A fome apertava mais. Morrer por morrer
mais valia ver o amanhã do sol” (COUTO, 2001, p. 53).
Muidinga é o jovem Gaspar que fugiu de seu passado turbulento.
Portanto, pode-se inferir que Gaspar fez a ingestão de mandioca azeda
propositalmente, como um escape, uma fuga em meio a tantas tristezas e
misérias que o menino, que fora a consequência do estupro sofrido por Farida,
abandonado por sua mãe e entregue às freiras ainda pequenino, passava.
Nesse ponto da narrativa, há uma linha muito tênue entre memória e
morte, visto que, mesmo com a debilidade do menino, ocorreu o “inverso do
esperado. No dia seguinte, já Muidinga despertava, fortalecido. Era uma
criança a nascer, quase em estado de saúde” (Ibid., p. 54). É interessante
destacar que a morte em Terra Sonâmbula não é o fim, mas um novo começo.
Gaspar ganha uma nova vivência, passa a se chamar Muidinga, nome nativo,
diferente do assimilado lhe dado no convento. Desse modo, realmente Gaspar
morre, pois, a partir daquele momento, quem vive é Muidinga. Contudo, falta-
lhe algo e a busca pelo que foi esquecido passa a ser uma meta constante.
Mesmo a morte tendo sido uma opção para Gaspar, Muidinga insiste na
busca pelo passado, sobre o qual Tuahir, após ser questionado o porquê das
lembranças não retornarem apesar de ter descoberto que sabe ler e escrever,
diz que o “miúdo tinha sido levado ao feiticeiro. O velho lhe pedira para que
tudo fosse retirado da cabeça dele”, e Tuahir se justifica dizendo: “– Pedi isso
por causa é melhor não ter lembrança deste tempo que passou. Ainda tiveste
sorte com a doença. Pudeste esquecer tudo. Enquanto eu não, carrego este
peso...” (COUTO, 2007, p. 125).
Assim, segundo Homi Bhabha, “ser obrigado a esquecer se torna a base
para recordar a nação, povoando-a de novo, imaginando a possibilidade de
outras formas contundentes e libertadoras de identificação cultural” (BHABHA,
1998, p. 226), sendo que a partir desse esquecimento pode-se adotar a
identificação performativa.
A Terra dá e tira a vida. Gaspar encontra no ventre da terra o meio para
acabar com sua vida, no entanto, a terra lhe concede um novo recomeço.

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Tendo esquecido seu doloroso passado, esse protagonista está “purificado”


para sua segunda vida. Assim como a Nação que, apesar do estado que se
encontra, busca renovar-se, renascer para seus filhos.
A transcendência da morte acontece com outras personagens da obra,
tais como o velho Taímo (pai de Kindzu) e Siqueleto. Sobre essas duas
personagens, utilizando as palavras de Mircea Eliade (1992), é interessante
destacar que a morte para a sociedade primitiva é necessária para tudo que
não seja essencial, chegando a ser uma nova existência espiritual, e que:
Mais ainda: geração, morte e regeneração (renascimento) foram
compreendidas como os três momentos de um mesmo mistério, e
todo o esforço espiritual do homem arcaico foi empregado em mostrar
que não devem existir cortes entre esses três momentos. Não se
pode parar em um dos três momentos. O movimento, a regeneração
continuam sempre (ELIADE, 1992, p. 94-95).

No primeiro caderno, Kindzu retrata a morte de seu pai. O velho Taímo


deixa o mundo dos viventes para se tornar um espírito, e sua participação na
obra é a tentativa de abortar a viagem de Kindzu – que a empreende mesmo
contra os costumes. Portanto, para esse velho a morte não foi o fim, mas a
transcendência para uma outra vivência.
Além desse, há no quarto capítulo dessa obra de Mia Couto, a “Lição de
Siqueleto”. Trata-se de um velho alto e torto que abre um olho por vez, vivendo
entre o dormindo e o acordado, sendo um “sonhambulante”, assim como o
país. Ele é o último a residir em uma aldeia abandonada devido à guerra e
retrata a força da terra/nação em resistir a adversidades. E está decidido a
repovoar sua terra, pois sabe que a única maneira de vencer a guerra é ficar
vivo no mesmo lugar.
Ao descobrir que o miúdo sabe escrever, Siqueleto toma uma decisão:
Então, frente a uma grande árvore, Siqueleto ordena algo que o
jovem não entende.
- Está mandar que escreva o nome dele.
Passa-lhe o punhal. No tronco Muidinga grava letra por letra o nome
do velho. Ele queria aquela árvore para parteira de outros Siqueletos,
em fecundação de si. Embevecido, o velho passa os dedos pela
casca da árvore. Ele diz:
- Agora podem-se ir embora. A aldeia vai continuar, já meu nome está
no sangue da árvore.
Então ele mete o dedo no ouvido, vai enfiando mais e mais fundo até
que sentem o surdo som de qualquer coisa se estourando. O velho
tira o dedo e um jorro de sangue repuxa da orelha. Ele se vai
definhando, até se tornar do tamanho de uma semente. (COUTO,
2007, p. 69)

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A lição de Siqueleto é tornar-se o “fruto miraculoso” do qual fala Eliade,


“que confere, ao mesmo tempo, imortalidade, onisciência e onipotência”
(ELIADE, 1992, p. 74), sendo que árvore representa o Cosmo, a capacidade de
regenerar-se e exprimir a Vida. E também porque “a Vida ‘vem’ de qualquer
parte que não é desse mundo e, finalmente, retira-se aqui de baixo e ‘vai se’
para o além, prolongando se de maneira misteriosa num lugar desconhecido,
inacessível à maior parte dos vivos” (COUTO, 2007, p. 73).
Ao ter seu nome gravado na árvore e ao se tornar semente, Siqueleto
pode eternizar-se. Assim, voltará ao ventre da terra e ambos se fecundarão
dando uma nova existência e vida um ao outro, simbolizando a ligação entre o
Céu e a Terra. Ele reconhece que a terra contém o elemento pra gerar seu
fruto miraculoso e que a morte não põe um término definitivo para a vida, é
apenas outra forma de existência – mesmo que não seja tão humana.
Outra maneira de ver essa lição é a determinação do velho em
permanecer vivo no mesmo lugar. Siqueleto explica aos dois viajantes que
essa é única forma de ganhar a guerra: teimar em ficar vivo. O que se relaciona
com a afirmação de Bauman: “as decisões que o próprio indivíduo toma, os
caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter
firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto
para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p, 17).
Todas essas experiências contribuem para a formação da identidade
das personagens na obra. Sabe-se, conforme afirma Stuart Hall, que a
identidade não é estática e acabada, mas sim um processo em constante
transformação. Ela é construída pela diferenciação em relação ao outro – daí o
processo de alteridade – e em relação a si mesmo. Dessa forma, a identidade
é (trans)formada por meio das experiências que o sujeito passa ao longo de
sua vida.
Para o protagonista de Terra Sonâmbula, essa construção identitária
não é diferente, já que o jovem perde a memória e essa “falta” do passado de
certa forma o perturba, pois, conforme Hall, “a identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de
uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2003,
p. 39).
É essa “falta de inteireza”, dissertada nesse tópico, ou seja, a busca
constante por que é e de onde veio, que motiva esse protagonista. Outra
perspectiva apontada é a da passagem de menino a homem, já que
Muidinga/Gaspar se “meninou” após a doença, apesar de já ser um rapaz em
idade. A respeito dos ritos de passagem Mircea Eliade (1992) analisa que:
Os ritos de passagem desempenham um papel importante na vida do
homem religioso. É certo que o rito de passagem por excelência é
representado pelo início da puberdade, a passagem de uma faixa de
idade a outra (da infância ou adolescência à juventude). Mas há
também ritos de passagem no nascimento, no casamento e na morte,
e pode se dizer que, em cada um desses casos, se trata sempre de
uma iniciação, pois envolve sempre uma mudança radical de regime
ontológico e estatuto social (ELIADE, 1992, p. 89).

Assim, esse segundo nascimento do jovem pode ser considerado um rito


de passagem, ou a negação desse se observar que o menino foge do convento
e toma tal atitude após descobrir sobre sua mãe, Romão Pinto e Virginia.
Interessante abordar o fato de que o sujeito não é considerado acabado
“tal como se encontra ao nível natural da existência: para se tornar um homem
propriamente dito, deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer
para uma vida superior” (ELIADE, 1992, p. 90). Diante desse universo
performativo, em que não é possível firmar-se, é que a representatividade da
nação moçambicana pode ser observada no protagonista, segundo o conceito
de “alegoria nacional”.
A identidade individual está interligada às identidades coletivas e “pode
ser estabilizada apenas em uma rede cultural que [...] não pode ser apropriada
como uma propriedade privada. Consequentemente, o indivíduo permanece na
qualidade de portador de “direitos à participação cultural” (HABERNAS apud
HALL, 2009, p. 77). Isso porque esse protagonista, assim como Kindzu, não se
firma e afirma, ao contrário, busca nessa segunda infância apressada pela
guerra, descobrir quem é e onde é o seu lugar.
A problemática identitária não é algo fechado, já que no processo de
construção da identidade disputas são travadas e nessa tarefa acabasse mais
por dividir do que unir. Observa-se como alguns elementos e personagens
(dentre tantos) influenciam na construção da identidade de Muidinga/Gaspar e

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como eles, juntamente com os cadernos de Kindzu, compõem a narrativa de


Terra Sonâmbula, denunciando esse momento pós-colonial e de guerras civis
perpassados em Moçambique após a independência.

Considerações finais

Há uma grande distância entre o que é pregado através da identidade


pedagógica (que se mantém por meio do discurso nacional homogeneizante) e
o performático, sendo que este revela a não estabilidade do universo cultural e
que a tradição está sendo questionada pela tradução, especialmente nesse
momento de modernidade tardia. Em Terra Sonâmbula, de Mia Couto, não é
diferente. Desse modo, “não importa quão diferentes seus membros possam
ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-
los numa identidade cultural, para representá-los pertencendo à mesma e
grande família nacional” (HALL, 2003, p. 59), sendo a identidade – individual ou
coletiva – mutável e em constante processo de construção.
Assim, as culturas nacionais “como unificadoras, deveríamos pensá-las
como construindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como
unidade ou identidade. [...] As nações modernas são, todas, híbridos culturais.”
(HALL, 2003, p. 61). E é nesse híbrido que a identidade cultural encontra
espaço (o entre-lugar, conforme Bhabha) para conciliar passado e presente e,
até mesmo, o pedagógico e performático, para não abrir mão da tradição diante
do mundo globalizado em que constantemente se absorve a cultura do Outro.
Ainda mais que, conforme Hall (2003), as culturas nacionais estão se tornando
mais expostas às influências exteriores, fazendo com que seja difícil conservar
as identidades culturais intactas ou impelir que elas se tornem enfraquecidas
através do bombardeamento e da infiltração cultural.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2005.

BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de


Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

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COUTO, Mia. Entrevista Mia Couto. Entrevistador: G. Felipe. Maputo: [s. n.],
2008. Entrevista concedida ao Jornal Notícias.
______. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

HALL, Stuart. A Questão Multicultural. In: Da Diáspora: identidade e mediações


culturais. Liv Sovik (org); Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte:
Ed. UFMG; 2009.

______. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da


Silva, Guaracira Lopes Louro. 8º ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo:


Martins Fontes, 1992.

HUSSEL, Hamilton. Introdução. In: SEPÚVELDA, Maria do Carmo e


SALGADO, Maria Teresa. África & Brasil: letras em laços. São Caetano do Sul:
Yendes Editora, 2006.

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RETRATOS DE MOÇAMBIQUE PÓS-GUERRA CIVIL (1977-1992) NOS


FILMES DE LICÍNIO AZEVEDO

ALEX SANTANA FRANÇA (UFBA) 183

O passado histórico de Moçambique nos últimos 30 anos do século XX


caracterizou-se por dois marcantes conflitos armados, tendo o primeiro período
correspondido a luta de libertação nacional que culminou com a independência
do país (1964-1975) e o segundo à desestabilização regional desencadeada,
principalmente, pelo regime do apartheid na África do Sul, posteriormente
assumindo uma dimensão interna crescente (1977-1992). O conflito armado,
correspondente ao segundo período mencionado, é amplamente descrito por
vários estudiosos como um conflito de natureza inter-estatal ou intra-estatal
tendo em conta os diferentes financiamentos e apoios técnicos e logísticos
dados aos envolvidos.
A guerra civil (ou de desestabilização) moçambicana, iniciada em
1977, dois anos após o fim da guerra de Independência entre o país e seu
antigo colonizador, Portugal, foi um conflito entre, de um lado, o partido no
poder, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e, de outro, a
Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), que recebeu financiamento
da Rodésia e, mais tarde, da África do Sul. Entre as causas internas desse
conflito estão o estabelecimento de um regime de partido único, após a
independência em 1975, o impedimento da criação de uma alternativa ao
programa político da FRELIMO, assim como de um espaço institucional para
uma oposição legal, o que criou uma situação de exclusão política
relativamente a todos os que não concordavam com as opções dominantes.
Além disso, a transformação da FRELIMO de uma Frente de Libertação
Nacional em um partido marxista-leninista, resultou no abandono da prática da
democracia participativa, a qual tinha sido instituída quando da luta de
libertação e nos primeiros anos de independência (LALÁ, 2002, p. 22).

183
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (UFBA). E-mail:
alexsfranca@yahoo.com.br.

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A RENAMO, na época, único movimento de oposição armada à


FRELIMO, foi criada oficialmente em 1977 na antiga Rodésia (atual Zimbábue)
por ex-integrantes da FRELIMO, que romperam com o partido após a
realização do seu primeiro congresso, que ocorreu em Dar-es-Salam entre os
dias 23 e 28 de setembro de 1972. Outro fator atrelado à criação da RENAMO
foi a formação e treinamento de um grupo militar de moçambicanos e
rodesianos pelas forças Armadas da Rodésia no intuito de obter informações
sobre o ZANLA (Zimbabwe African National Liberation Army), movimento que
representava a maior ameaça para o governo branco daquele país. Quando em
1980 o Zimbábue se torna independente, a África do Sul assume o patrocínio e
o apoio da RENAMO. Naquele período, a África do Sul ainda mantinha um
regime de apartheid no âmbito interno e havia adotado uma política de
desestabilização dos seus países vizinhos, no âmbito externo. Esta política de
desestabilização teria por sustentação, por um lado, impedir que qualquer
desses países vizinhos funcionasse como base para guerrilheiros do ANC
(African National Congress) que combatiam o governo de Pretória (a RENAMO
seria, pois, apenas um instrumento de desestalização); por outro lado, a África
do Sul não queria que qualquer de seus vizinhos fosse exemplo bem sucedido
de um país liderado por africanos (LALÁ, 2002, p. 21-22). Ainda no mesmo ano
de sua criação, ocorreu, em fevereiro de 1977, o primeiro ataque a uma
patrulha de FRELIMO, conduzido por André Matesangisa e Afonso Dhlakama.
Com a morte de Matesangisa em 1979, Dhlakama assume a presidência da
RENAMO no ano seguinte (RODRIGUES, 2006).
Durante o conflito, pelo menos 100 mil pessoas morreram e milhares
de outras sofreram amputações por causa das minas terrestres (RODRIGUES,
2006; SILVA, 2012). Além disso, cerca de cinco milhões de civis migraram
para outras regiões ou países, por conta de crises de fome e seca. Sheila Khan
(2009, p. 101) destaca, por exemplo, que “a crescente degradação das
estruturas de saúde, de educação, de agricultura e de justiça – que tinham sido
afetadas pela partida de inúmeros profissionais, professores, médicos,
advogados e técnicos” – foi a principal responsável pelo caos que se aplacou
no país, criando um ambinete de confusão e insegurança permanente. Uma
vez que a maioria não conseguia suportar esta situação, várias famílias e

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indivíduos moçambicanos decidiram imigrar, desenraizando-se da sua terra


natal, pelo menos provisoriamente.
Os primeiros apelos ao diálogo entre o governo liderado pela FRELIMO
e a RENAMO partiu de líderes religiosos representando as igrejas Católica,
Anglicana e o Conselho Cristão de Moçambique a partir de 1984, mas só em
1988, após sinal favorável do governo, se iniciou um contato com a RENAMO
por parte das Igrejas, com o objetivo de obter a renúncia à violência e o
estabelecimento de um diálogo direto (LALÁ, 2002, p. 23). Esse longo intervalo
justifica-se pela ligação que a Igreja Católica teve com o colonialismo, o que
trouxe muita desconfiança aos integrantes do partido. Além disso, as
negociações de paz foram, antes de mais nada, caracterizadas por desacordos
e impasses múltiplos, os quais determinaram o ritmo alongado do processo.
Segundo Anícia Lalá (2002, p. 25), foi um processo de construção de
confiança, no qual o papel de ponderação dos mediadores foi fundamental para
sanar as divergências.
As alterações havidas no contexto internacional, anteriormente
marcado pela Guerra Fria que envolveu uma dinâmica de conquista e
manutenção de espaços de influência das grandes potências mundiais
constituíram uma pré-condição de relevo para a conclusão do conflito, na
medida em que cessou o apoio prestado a ambas as partes, assim como
trouxeram condições que permitiram que as pressões internacionais
confluíssem na exigência da paz. Determinante foi também o contexto regional,
devido às mudanças ocorridas a partir de 1989 com a subida de F. W. de Clerk
à presidência sul-africana, a queda do apartheid e o início do processo de
democratização da África do Sul (LALÁ, 2002, p. 21).
O conflito só terminou com a assinatura do Acordo Geral de Paz, em 4
de outubro de 1992, na cidade de Roma. O documento é composto por sete
protocolos que regulam as matérias que foram alvo das negociações de índole
política, militar e econômica, bem como por acordos e outras declarações
conjuntas, assinados no decorrer das negociações, entre 18 de outubro de
1991, data do final da primeira rodada de negociações, e 4 de outubro de 1992,
data final das negociações marcada pela assinatura do Acordo. Ele afigura-se
como um documento técnico de concepção elaborada, e o seu conteúdo

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

estabele, à partida, bases de orientação consistentes para lidar com problemas


de uma fase de transição no pós-gerra (LALÁ, 2002, p. 30). Para a autora, o
fato de englobar aspectos relativos à reintegração dos desmobilizados na vida
civil, de conter o embrião da criação de um dispositivo forte para a supervisão
do processo, e de abordar as questões de financiamento da fase seguinte,
demonstram uma visão antecipada e integrada sobre a diversidade e
interligação das questões sociais, econômicas, políticas e militares que se
colocavam como um desafio ao país (LALÁ, 2002, p. 30). O Acordo
estabeleceu, assim, as bases da reorganização, sobretudo das regras do jogo
na arena política e de segurança.
Anícia Lalá (2002, p. 30) ressalta, entretanto, que a paz que se
estabeleceu no país desde então foi afirmada em alicerces institucionais
frágeis, o que possibilita conflitos e manifestações circunscritas de violência, e
demonstra também as fragilidades dos sistemas de governação e a tendência
do Estado de lidar com os problemas de forma superficial e ineficiente. O
acirramento das tensões entre o governo moçambicano, nas mãos da
FRELIMO, e a oposicionista RENAMO, em 2013, por exemplo, reavivaram o
temor de que o país africano mergulhasse novamente numa guerra civil. Em 21
de outubro de 2013, forças do governo atacaram a sede da RENAMO em
Santhunjira, na Província de Sofala, o que levou o porta-voz do grupo a
decretar o fim do Acordo de Paz celebrado entre ambos em 1992.
O fim da guerra civil em 1992 também não denotou o fim dos
problemas enfrentados pela população em geral em decorrência do confronto.
Segundo Josilene Campos (2015, p. 220), a economia, por conta do conflito,
havia sofrido uma acentuada regressão, principalmente pela inviabilidade da
prática da agricultura em muitos campos, já que as populações tinham
migrado, ou porque as terras estavam cheias de minas. A infraestrutura do país
também estava comprometida, com a destruição ou interdição, pelas minas ou
pelo perigo de sua existência, de pontes, estradas, linhas de ferro, que
consistiam um dos principais mecanismos de chegada aos portos para
exportação. As minas terrestres, inclusive, representam um dos mais graves
problemas enfrentados por Moçambique no pós-guerra. Espalhadas por todo
território nacional desde a guerra de independência, acentuando-se na guerra

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posterior, fizeram e ainda fazem milhares de vítimas que vivem na zona rural,
especialmente crianças. Como não há mapas com a localização exata desses
artefatos, o processo de desminagem, iniciado logo após o fim dos conflitos,
tem-se realizado lentamente. Além disso, a falta de recursos nacionais e mão
de obra especializada fazem com que o programa dependa quase que
exclusivamente de ajuda financeira e de especialistas estrangeiros (CAMPOS,
2015, p. 220).
As consequências da guerra também estão marcadas no imaginário
dos habitantes do país e, por conta disso, a temática tem sido constantemente
revisitada, seja na literatura, através, por exemplo, da obra do escritor Mia
Couto (CAMPOS, 2015), seja no cinema, com filmes do cineasta Licínio
Azevedo. De acordo com Josilene Campos (2015, p. 213), o escritor Mia Couto
procura, em muitos de seus romances, “refletir sobre Moçambique após a
independência e fundar uma narrativa compromissada com as consequências
e com a memória da guerra. Por isso, a elaboração de suas narrativas costuma
girar em torno da exposição das memórias desse grande trauma nacional.
Esses discursos “constituem lembranças e esquecimentos, instituem
recordações por vezes embaraçadas, confusas, dinâmicas, fluidas e
fragmentadas” (CAMPOS, 2015, p. 213). Romances como Terra sonâmbula
(1992), A varanda do Frangipani (1996) e O último voo do flamingo (2000)
fazem referência a momentos diferentes da guerra (a guerra em curso, a
transição e o pós-guerra) estruturadas em torno de personagens que sofrem
pela violência, pelo descaso e pela corrupção que assolava o país e as
autoridades. A obra fílmica de Licínio Azevedo, jornalista e cineasta, nascido
no Brasil e radicado em Moçambique desde 1977, também constitui um bom
exemplo nesse aspecto, pois aborda uma grande variedade de questões
importantes para o entendimento da experiência pós-colonial e pós-guerra de
Moçambique, como o retorno dos refugiados de guerra à sua terra natal em A
árvore dos antepassados (1994), as perdas ambientais causadas pela guerra
civil em A guerra da água (1995), as consequências da epidemia de AIDS em
Night Stop (2004), a ameaça das minas terrestres espalhadas pelo interior de
Moçambique em O acampamento da desminagem (2005), entre outros
(ARENAS, 2012, p. 81). O presente artigo, integrado a pesquisa de doutorado

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em curso (do Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura da UFBA,


sob orientação da Profa. Dra. Maria de Fátima Maia Ribeiro), pretende discutir,
pautado na perspectiva sócio-histórica de análise fílmica ou de conteúdo
(VANOYE, 2014; PENAFRIA, 2015), as relações entre cinema, história e
memória (FERRO, 1992; LAUGNY, 2009; NORA, 1993) a partir dos seguintes
filmes de Licínio Azevedo: A árvore dos antepassados (1994) e A guerra da
água (1995). Os dois filmes selecionados abordam questões referentes ao pós-
guerra, não ao conflito em si.
Filmado em 1993, uma parceira da Ebano Multimedia, com a BBC e a
TVE para a série internacional “Developing Stories”, A árvore dos
antepassados aborda o drama de refugiados moçambicanos que regressam do
Malauí após longos anos de guerra em Moçambique. Durante mais de 15 anos
de guerra no país, milhões de moçambicanos procuraram refúgio nos países
vizinhos. Por conta disso, não houve tempo para se despedir, nem cumprir com
as formalidades em relação aos mortos, como de costume. Em 1984, quando a
guerra atingiu a província de Tete, Alexandre Ferrão foi escolhido pelos tios
para levar a família para o Malauí (os que aguentaram caminhar e as crianças
foram com ele). Segundo o diretor (2015), a guerra “fê-los fugir sem uma digna
despedida. Sem a cerimônia de pedido de uma boa viagem”. Dez anos depois,
com o fim da guerra, Alexandre decidiu que era preciso e possível regressar
para que ele e seus familiares se reconciliassem com a árvore dos
antepassados. O filme registra, então, a história da viagem de regresso do
personagem à casa da família, imbuído da missão de reencontro com os seus
ancestrais. A saga do retorno para casa de Alexandre Ferrão e sua família, de
uma aldeia para refugiados no Malaui começou no dia 4 de outubro de 1993,
exatamente um ano depois da assinatura do Acordo Geral da Paz.
Em voz off, temos a narração de Alexandre, descrevendo esse trajeto
seja oralmente, seja através da escrita, em um livro de protocolo que ele
reverteu em diário. Nesse caderno adaptado, Alexandre procurou registrar os
acontecimentos mais significativos daqueles dez anos, além de identificar os
nascimentos e mortes de familiares naquele período. Outro personagem que se
destaca é Maria, que antes da partida, se despede dos filhos que morreram e
foram enterrados naquelas terras seguindo o ritual de oferecer bebida aos seus

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mortos. De acordo com Leonardo Adamowicz (2015), “árvore dos


antepassados” designa “um local de culto, praticado debaixo de uma árvore,
em algumas regiões de Moçambique”. Esta árvore costuma ser utilizada como
local de culto em substituição das sepulturas, principalmente quando as
pessoas viajam ou mudam do local habitual de residência. Segundo o autor, na
província de Tete, por exemplo, são praticados dois tipos de culto: o culto
ocasional, restrito à família (com o propósito de solicitar a proteção dos
antepassados em caso de viagem, doença, etc.); e o culto periódico, de uso
geral (praticado para solicitar aos antepassados boa colheita, chuva, etc.). Nas
línguas changana e chope, a árvore dos antepassados é denominada ganzelo,
termo que designa o altar onde se fazem libações (em árvores de fruto como
mafurreira, canhoeiro, maçala, etc.). Grupos étnicos como os yaos, macua e
lomwe (Zambézia) praticam o culto numa árvore denominada musolo. Entre os
ngunis, os túmulos dos antepassados são sinalizados com certas plantas. Em
quase todo o país é utilizado o embondeiro como árvore dos antepassados
(ADAMOWICZ, 2015). Acredita-se que, se um morto for sepultado dentro de
um embondeiro, a sua alma viverá enquanto a planta existir.
Durante o longo caminho de volta para casa, Alexandre e sua família
encontram animais na estrada, um grupo de pessoas que cantavam e tocavam
instrumentos, os transportadores e caroneiros, dormiram numa igreja
abandonada, na mata ou em alojamentos para refugiados, banhavam-se no rio
e se alimentavam de frutos das árvores. O deslocamento da família possibilitou
também mostrar diferentes regiões do país e marcas da guerra impressas
nesses espaços: cidades vazias e destruídas, os buldozers (tanques de
guerra), estradas em mal estado, desenhos nas paredes com homens armados
e helicópteros, o perigo das minas (quando chegaram a um campo de
refugiados). Ao longo do filme, Alexandre apresenta seu ponto de vista sobre a
guerra, influenciado pelo texto bíblico.
Ainda ao longo do trajeto, Alexandre também faz planos, como montar
um negócio, criar porcos, cultivar sua machamba, para garantir o sustento de
sua família. À medida que se aproximam do destino, a ansiedade de
reencontrar os familiares aumenta. A cena do reencontro de Alexandre com os
familiares que permaneceram no país é um dos pontos marcantes do filme. Há

850
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

os momentos de tristeza também, como o de Maria, quando soube que havia


perdido a mãe e a avó. Apesar disso, ela pode reencontrar seu tio Alfredo,
mostrar a terra aonde nasceu e cresceu para seus filhos e fazer planos de
construir uma nova casa no local. Em seguida, o filme mostra exatamente o
processo de readaptação dos retornados: o preparo da terra para a plantação e
a construção das novas casas e se encerra novamente com o ritual de
celebração dos antepassados, na cena em que Maria derrama a bebida sob a
árvore em que foi enterrada seus familiares.
A guerra da água (1995), por sua vez, retrata o problema da escassez
de água no país, no contexto pós-guerra civil. Por conta da guerra, diversos
poços artesianos e cisternas foram destruídos, e a abertura de novos poços foi
interrompida, trazendo muitas dificuldades para os povos que dependiam dela.
Esse problema, aliado a falta de chuva, que prejudicava as plantações (fonte
de alimentação e de renda daquelas pessoas), estimulou um novo processo
migratório. No filme, quatro histórias cruzam-se numa aldeia moçambicana da
região do Chicorno. Histórias que ressaltam a a importância de uma simples
lata com água, de um poço que se avaria, de um caçador solitário, de um
pássaro que, dentro de uma gaiola, se transforma numa telefonia portátil. As
mulheres, as crianças e o embondeiro se destacam. As mulheres, de diferentes
localidades, que se encontram no intuito de conseguirem um balde de água
nos poucos poços que ainda funcionavam, brigam, envolvem-se em confusões,
muitas delas um tanto humoradas, assim como debatem e refletem sobre suas
condições como tal, suas funções na família em comparação com as dos
homens, lamentam-se das injustiças sofridas ao fazerem tal comparação: as
mulheres trabalham mais e são menos reconhecidas; têm que cuidar da casa,
e dos filhos, têm que buscar água em lugares distantes, e ainda sofrem
suspeita de traição quando chegam tarde (depois de passarem horas
esperando o conserto das bombas dos poços ou as enormes filas formadas por
conta dos poucos poços existentes na região, enquanto que os homens ficam
no mato tentando caçar ou nos bares bebendo e conversando.
O filme destaca também a situação das mulheres viúvas nas família,
muitas vezes sem lugar, sem atenção, sem cuidados e acusadas de terem
matado o marido; aborda também a prática do lobolo (espécie de contrato de

851
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

casamento com dote). As crianças aparecem cuidando dos afazeres


normalmente atribuídos aos adultos em muitas sociedades. Desde cedo
aprendem a caçar e pescar, cuidar da casa e dos irmãos mais novos, mas
sempre encontram tempo para diversão. Finalmente, o embondeiro (também
conhecido como baobá), árvore predominante nas províncias de Cabo
Delgado, Inhambane e Tete. Dependendo da sua idade pode atingir até 20 m
de altura. O seu tronco poroso pode ter 10 m de diâmetro e armazenar até 120
mil litros de água, daí resistir a grandes períodos de seca. Gravado em
changana, com legendas em português, o filme participou de diferentes
festivais pelo mundo, como o Festival du Réel, França e Festival dei Popoli,
Itália e recebeu diferentes premiações, como o Prêmio de Melhor Produção do
Southern Africa Communications for Development, África do Sul (1996).
Um dos pioneiros, no campo da história, a problematizar a relação
cinema-história foi Marc Ferro. Para o autor (1992), o filme começou a ser visto
como um possível documento para a investigação histórica somente a partir da
década de 1970, em consequência de um processo de reformulação do
conceito e dos métodos da História, iniciado com o desenvolvimento da Escola
dos Anais, na França. O filme, seja qual for, desde então, passou a ser
encarado enquanto testemunho da sociedade que o produziu, como um reflexo
– não direto e mecânico – das ideologias, dos costumes e das mentalidades
coletivas. Para Ferro, o filme também
contribui para o desenvolvimento de uma contra-história, não oficial,
longe desses registros escritos que são frequentemente preservados
apenas a memória de nossas instituições. Ao interpretar um papel
ativo na oposição à história oficial, o filme torna-se assim um agente
da história e pode motivar uma consciência (FERRO, 1995, p. 17,
tradução nossa).
Michele Laugny aponta como um dos aspectos interessantes do
cinema a capacidade do filme de descrever imediatamente – ainda que através
de imagens recompostas, e a tornar “a temporalidade particular na qual se joga
a história das pessoas as mais comuns que sejam, autorizando a irrupção de
seres singulares na narrativa de conjunto das histórias” (LAUGNY, 2009, p.
107). Assim, o cinema relaciona-se com a história, não somente ao construir
representações da realidade, específicas e datadas, mas por fazer emergir
maneiras de ver, de pensar, de fazer e de sentir.

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Os filmes também podem ser concebidos como lugares de memória,


concepção proposta por Pierre Nora (1993), segundo a qual esses espaços
(material ou simbólico) teriam a função de bloquear o trabalho do esquecimento
ao cristalizar as lembranças. O historiador francês acredita que uma das
questões significativas da cultura contemporânea situa-se justamente no
entrecruzamento entre o respeito ao passado – seja ele real ou imaginário – e
o sentimento de pertencimento a um dado grupo; entre a consciência coletiva e
a preocupação com a individualidade; entre a memória e a identidade. Para
ele, os lugares de memória são, primeiramente, lugares em uma tríplice
acepção: são lugares materiais onde a memória social se ancora e pode ser
apreendida pelos sentidos; são lugares funcionais porque têm ou adquiriram a
função de alicerçar memórias coletivas e são lugares simbólicos onde essa
memória coletiva – vale dizer, essa identidade – se expressa e se revela. São,
portanto, lugares carregados de uma vontade de memória. (NORA, 1993)
Nesse sentido, o cinema funciona como tal lugar.
Para Michele Laugny (p. 106), a história tem frequentemente como
função reconstruir “lugares de memória”, para assegurar a identidade de
grupos em via de deslocação, ou aquela dos sobreviventes dos massacres da
história. Entre os “monumentos memoriais”, o cinema desempenha um papel
ainda mais essencial que acontece, dele próprio se encarregar de traduzir para
a ficção aquilo que a memória oficial procurou ocultar.
A metodologia de análise fílmica proposta nesse trabalho segue
principalmente a perspectiva de interpretação sócio-histórica, isto é, aquela que
concebe um filme como “um produto cultural inscrito em um determinado
contexto sócio-histórico (VANOYE, 2014, p. 51). Para a pesquisadora Manuela
Penafria (2015), duas etapas são fundamentais nesse processo: a
decomposição, ou seja, a descrição do filme; e a interpretação, isto é, o
estabelecimento e compreensão das relações entre os elementos
decompostos. Em relação às propostas de análise apresentadas pela autora,
optou-se apenas, inicialmente, pela de conteúdo. A análise de conteúdo
considera o filme “como um relato e tem apenas em conta o tema do filme”
(PENAFRIA, 2015, p. 6). A aplicação deste tipo de análise, implica, em primeiro
lugar, identificar-se o tema de um filme, para em seguida, fazer um resumo da

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história e a decomposição do filme tendo em conta o que o filme diz a respeito


do tema.
As primeiras conclusões do presente estudo mostram que os dois
filmes selecionados oferecem ao espectador imagens representativas de
espaços e práticas sócio-culturais moçambicanas positivas, mesmo em um
contexto de pós-guerra, que ampliam a visão de mundo sobre o que é ser
moçambicano, além de lidar com questões históricas do contexto
moçambicano, ainda marcantes no imaginário e cotidiano locais. Além disso,
os filmes constituem-se como uma espécie de memória coletiva visual do país
no período histórico enfatizado. A importância dos ditos e não ditos que os
filmes podem trazer para a construção de uma memória, seja ela coletiva ou
individual, tornam-se pontos de referência para qualquer estudo histórico,
principalmente quando estas informações, muitas vezes esquecidos ou
ignorados, revelam interpretações distintas da História ou memórias oficiais.

REFERÊNCIAS

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Maputo, 2003. Disponível em:
http://jorgejairoce.blogspot.com.br/2012/09/geografia-do-patrimonio-cultural-
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Domingo, 19 janeiro 2014. Disponível em:
http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/desporto/2757-licinio-de-
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CAMPOS, Josilene Silva. Literatura e história: as memórias da guerra civil


moçambicana nos romances de Mia Couto. Anais do Simpósio Nacional do
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http://www.anais.ueg.br/index.php/simposiocieaa/article/view/209-230.
Acesso 04 out. 2015.

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FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.


FERRO, Marc. Historia contemporánea y cine. Barcelona: Ariel, 1995.
KHAN, Sheila. Imigrantes africanos moçambicanos: narrativa de imigração e
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Edições Colibri, 2009.

LALÁ, Anícia. Dez anos de paz em Moçambique: da visão normativa à


perspectiva realista. Estudos moçambicanos, n. 20, 2002, p. 19-40.

LAGNY, Michèle. O cinema como fonte de história. In: Cinematógrafo: um


olhar sobre a história. In:______. NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto;
FEIGELSON, Kristian (orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a história.
Salvador: EDUFBA; São Paulo: Ed. Da UNESP, 2009. p. 99-131.

PENAFRIA, Manuela. Análise de filmes: conceitos e metodologias. VI


Congresso SOPCOM, abril de 2009. Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-penafria-analise.pdf. Acesso: 20 jan. 2015.
RODRIGUES, Joaquim Chito. Moçambique, anatomia de um processo de
paz: contributo para a verdade. Lisboa: ACD Editores, 2006.

SILVA, Igor Castellano da. Congo, a guerra mundial africana: conflitos


armados, construção do Estado e alternativas para a paz. Porto Alegre: Leitura
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VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica.


Tradução: Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 2009.

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GRUPO DE TRABALHO: EDUCAÇÃO, LÍNGUAS E LINGUAGENS


PLURICULTURAIS

PROPOSITORES: ABÍLIO MANUEL MARQUES DE MENDONÇA (UNEB),


ROSÂNGELA ACCIOLY LINS CORREIA (UNEB), CARLA SANTOS PINHEIRO
E MÔNICA CORRÊA MARAPARA

Ementa:
Como a Bahia possui uma incrível diversidade cultural, linguística, que se
traduz em várias linguagens culturais, a proposta deste GT é discutir sobre a
educação, línguas e linguagens pluriculturais. Tratar das linguagens
pluriculturais e línguas que constituem-se de grande importância para a
Educação, pois servem de base para que se conheça melhor os processos
civilizatórios que desenham a história da Bahia. A vida comunal africano-
brasileira que transita no universo baiano está ligada aos valores
socioexistencias contidos nas comunalidades tradicionais. Suas crenças estão
ligadas às suas práticas sociais, culturais, religiosas e espirituais. Nossas
discussões epistemológicas estão pautadas em um discurso de alteridade
trazida pelo autor Levinas, filósofo franco-lituano influenciado pela
fenomenologia, cujo pensamento parte do princípio de que a ética e não a
ontologia seja a filosofia primeira. A partir dessa percepção, as reflexões aqui
propostas, levam à percepção de que distintos povos têm em sua estrutura
societária sua própria identidade, organização, cosmovisão, hierarquias,
vínculos comunais, formas de vida, valores, costumes e tradições que se
desenham em suas alteridades. Desta forma, entendemos que no espaço
educacional é preciso evidenciar a riqueza desta diversidade linguística,
cultural presente na Bahia, sobretudo porque, o conceito de alteridade nos
interpela trazendo uma responsabilidade irrestrita e absoluta do seu significado.
Então, a partir das discussões do filósofo lituano, percebemos que a
racionalidade não pode dar conta do ethos que transita na imagem de vários
povos.

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AKPALÔ:
COMPONDO LINGUAGENS AFRICANO-BRASILEIRAS PARA O
CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO MUNICÍPIO DE SANTO
AMARO DE IPITANGA

ROSÂNGELA ACCIOLY LINS CORREIA (UNEB)

Imagem 8: “graveto é quem derruba panela”

Fonte: Desenho criação Nicole Accioly, 8 anos.

Há um provérbio comumente utilizado no contexto comunitário afro-


brasileiro que diz: graveto é quem derruba panela. 184 Os provérbios:

Foram criados e guardados na memória coletiva de nossa realidade


histórica. Quero me referir como realidade histórica, que os
provérbios refletem não só o contexto comunitário afrobrasileiro, mas
também as relações sociais com a sociedade oficial eivada de
185
preconceito e racismo .

Pensamos, metaforicamente, numa grande panela, cujo conteúdo está


representado por discursos sobre Educação Infantil, muitos deles alheios à
diversidade cultural de Santo Amaro de Ipitanga. O graveto é representado,
metaforicamente, pelas crianças que vivem as linguagens e valores africanos
brasileiros desta territorialidade, as quais precisam superar dia a dia o recalque
às suas identidades, através de modos de insurgências respaldadas por suas

184
LUZ, Marco Aurélio. Proverbios-no-mundo-brasileiro -.blogspot.com/2011/.../proverbios-no-
mundo-brasileiro.ht...).
185
LUZ, Marco Aurélio. Provérbios...http://blogdoacra.blogspot.com.br/2011/05/proverbios-no-
mundo-brasileiro.html

857
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famílias e comunidades, desestabilizando e “derrubando” as grandes narrativas


que as agridem.
Assim, algumas considerações importantes na abertura deste artigo são
necessárias. Vejamos: um dos nossos primeiros desafios é a origem do nome
da territorialidade onde realizamos a pesquisa. O nome Santo Amaro marca as
políticas de catequese dos tempos coloniais com a presença dos Jesuítas no
contexto do Brasil. Ipitanga foi dado pelo povo Tupinambá, que viveu no Morro
dos Pirambás, antigo arraial de Santo Amaro de Ipitanga. Hoje, esse território
integra o que o governo da Bahia nomeou, em trinta e um de julho de mil
novecentos e sessenta e dois, como município de Lauro de Freitas.
Santo Amaro de Ipitanga integrava, originalmente, a cidade do Salvador.
Em 1880, passou a distrito de Montenegro, atual Camaçari, depois em 1932
regressou para a cidade do Salvador, até 1962 quando foi alterado para
município. Depois de onze anos foi agregada a Região Metropolitana de
Salvador.
Fizemos essas considerações para prevenir o leitor de que, neste
trabalho, fizemos a opção político-metodológica de assumir o nome Santo
Amaro de Ipitanga, e não Lauro de Freitas, como convém às razões
tecnoburocráticas da geopolítica urbano-industrial que rege a Bahia. Essa
necessidade de afirmarmos o nome inaugural da territorialidade no qual foi
realizada esta pesquisa surge da indagação, enquanto educadora, devido à
ausência, no currículo das escolas, das arkhés civilizatórias que escreveram a
história do município, o qual vive e respira o legado dos povos Tupinambá e
africanos que influenciaram o viver cotidiano do lugar.
Quando utilizamos a noção de arkhé é porque consideramos
fundamental entender a territorialidade da pesquisa, compreendendo:
[...] em qual sistema de civilização se localizam instituições,
sociabilidades, valores, identidades, modos de produção, etc. A
noção de arkhé engloba o princípio de ancestralidade, que se
caracteriza pelas bases fundadoras e inaugurais das civilizações e
suas dinâmicas sucessórias, os contínuos... A arkhé organiza e dá
pulsão aos vínculos de sociabilidade, que dá origem a linguagem
própria das culturas de participação, caracterizando territorialidades
que promovem formas e modos de comunicação tornando possível
um corpo livre em permanente movimento de transcendência, e mais
do que isso, capaz de realizar e expandir o modo próprio africano de

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existir e manter a sua identidade profunda individual e coletiva. (LUZ,


186
2012).

Os aspectos socioculturais que tornam Santo Amaro de Ipitanga singular


para a pesquisa é a riqueza do patrimônio civilizatório oriundo de vários povos,
que reverberaram na pulsão de vida presente em pelo menos 82/% da
população infantil nesta territorialidade.

Algumas reflexões sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a


Educação Infantil, documento oficial que orienta esta modalidade de ensino no
Brasil, desde 2010 são relevantes. Nosso propósito foi destacar os principais
aspectos que constituem o documento, demonstrando que a sua abordagem
favorece a promoção de ações afirmativas para uma educação pluricultural.

As DCNEIs 187 nos ajudam nas análises das práticas na Educação


Infantil, as quais insistem em trazer a história europeia como cerne do currículo
escolar e modelo universal para todas as crianças. Isso se evidencia, de forma
acentuada, na decoração do espaço da sala de aula, nos livros de literatura,
nos jogos, nas datas comemorativas, enfim, em todo um modo de existir
baseado em sentidos e práticas eurocêntricas, percebemos que o currículo
escolar ainda se pauta na seguinte perspectiva:
O mundo greco-romano circula nas academias humanísticas como o
berço da civilização, enquanto as civilizações africanas, asiáticas e
ameríndias são relegadas, recalcadas, como racialmente inferiores e
identificadas com o homem pré-histórico, “dignas de pena” do
europeu que, de forma altruísta e munidos de “racionalidade”, deverá
colonizar e proporcionar a esses povos “atrasados” uma melhor
adaptação evolutiva (LUZ, 2000, p. 47).

As DCNEIs é um documento normativo que reúne princípios,


fundamentos e procedimentos definidos pela Câmara de Educação Básica do
Conselho Nacional de Educação para orientar as políticas públicas e a
elaboração, planejamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas e
curriculares.

186
LUZ, Palestra proferida a propósito da Semana Muniz Sodré, uma homenagem organizada
pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em abril de 2012.
187
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.

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Em 2008, a Coordenação Geral de Educação Infantil do MEC


estabeleceu, com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, convênio de
cooperação técnica para a articulação de um processo nacional de estudos e
debates sobre o currículo da Educação Infantil.
Apesar de todo debate promovido para constituir as Diretrizes, enquanto
pesquisadora do PRODESE 188 - Programa Descolonização e Educação - me
incomoda o profundo desconhecimento dos/as professores/as sobre as
Diretrizes, e por isso, o impacto qualitativo que poderia promover no cotidiano
escolar fica inviável.
Percebemos que predomina nas escolas um conceito de
criança/infância, que não reflete a diversidade étnica do país, no entanto, ela
precisa ser representada no contexto da escola. As Diretrizes salientam o que
se entende por: criança/infância:

Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas


cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva,
brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta,
narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade,
produzindo cultura. (BRASIL, 2010, p.12).

Também salientamos a necessidade de ampliarmos mais esta


concepção evitando o conceito uno e totalitário, pois os mesmos não acolhem
as distintas alteridades civilizatórias, ao invés disto a dilui e esvazia. O que
podemos dizer dos 215 povos indígenas que vivem no Brasil? Será que
pensam da mesma forma sobre criança/infância? E as populações de
ascendência africano-brasileiras e o que pensam sobre esse conceito
universal? Se estamos falando de alteridades civilizatórias é necessário que se
afirmem os valores desses povos.
Uma contribuição importante sobre alteridade levanta o porquê das
nossas inquietações. O filósofo Lévinas (apud CARVALHO, 2009 189) na sua
obra afirma que:
(...) O outro não é passível de tematização, nem de conceituação,
nem pode mais ser tomado como um objeto conhecido; o outro
levinasiano é de uma outra ordem, a qual não cabe numa lógica
estritamente racional. A ética em Lévinas não deve, portanto, ser
vista sob a óptica (optikê) racionalista, com a qual estamos tão

188
Grupo de pesquisa que fiz parte até 2014.
189
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010373312009000300017&script=sci_arttext

860
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"seguramente" adaptados; ela exige uma outra via: a dos sentidos, a


dos afetos e da sensibilidade - onde se é afetado pela diferença, pela
alteridade, pelo outro. Trata-se mais de uma ótica (ótikós), que nos
remete à possibilidade da escuta ética.
E mais:
Para Levinas o Outro não é outro com uma alteridade relativa.
A alteridade do Outro não depende de uma qualidade que o
distinguiria do eu, pois essa distinção anula a alteridade. Mas,
a relação entre o Outro e eu, não termina em número nem no
conceito. O Outro permanece infinitamente transcendente, na
epifania de seu rosto ele me chama e me
190
interpela. (SIDEKUN ).

Percebemos a importância do conceito de alteridade em Levinas (1997),


que teve em sua obra muitas contribuições para a história da filosofia
contemporânea, a partir dos trabalhos de Franz Rosenzweig, quando questiona
o totalitarismo do Estado e o idealismo, facetas perversas do pensamento
moderno, que ocasionaram, por exemplo, a perseguição aos judeus. Sobre
Levinas (1977) nos afirma Sidekun (2005).
Levinas é um pensador que vai além das perspectivas da
subjetividade, do psiquismo e da egologia da Modernidade, inserindo-
se na compreensão do reconhecimento dos Direitos Humanos
fundamentais ditados pela alteridade do outro que é o fundamento e a
dimensão teleológica da justiça.

Levinas filósofo franco-lituano influenciado pela fenomenologia parte do


princípio que a ética, e não, a ontologia é a filosofia primeira. A partir dessa
percepção, as reflexões, aqui, propostas levam à percepção de que distintos
povos têm em sua estrutura societária sua própria identidade, organização,
cosmovisão, hierarquias, vínculos comunais, formas de vida, valores,
costumes, tradições que se desenham em suas alteridades:
A presença do rosto que vem de além do mundo, mas que me
empenha na fraternidade humana, não me esmaga como uma
essência nunimosa, que faz temer e se faz temer. Estar em relação
dispensando-se dessa relação equivale a falar. Outrem não aparece
apenas no seu rosto – como um fenômeno sujeito a ação e à
dominação de uma liberdade. Infinitamente afastado da própria
relação em que entra apresenta-se aí de choque como absoluto.
(LEVINAS, 1988, p. 192-193).

190
Disponível em:
http://www.scielo.org.ve/scielo.php?pid=S131552162005000400007&script=sci_arttext. 12.03.2013 ÀS
21:27.

861
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A nossa compreensão de arkhé nos obriga a ampliar nossas reflexões,


principalmente para pensar o ato educativo através da alteridade radical. Desse
modo, muitas questões se evidenciam: Qual o discurso universal de
criança/infância que atravessa a "história” da formação social brasileira? De
que criança/infância estamos falando nos cursos de "formação" de
educadores/as? Que "história da humanidade" alimenta esse discurso? Quem
é a criança/infância que as políticas de Educação no Brasil (desde a colônia)
vem enfatizando? Onde estão as crianças/infâncias aborígines nesse conceito
finito europocêntrico e que elaboração de mundo as caracterizam? Onde estão
as crianças/infâncias africano-brasileiras nesse conceito finito e que elaboração
de mundo as caracterizam?
O que precisamos é denunciar a prática da denegação da alteridade em
vários âmbitos, a partir das ideologias que reforçam a forma como são
representadas essas populações na sociedade, e na academia de todo país.
Representações que defendem um sistema eurocêntrico que respalda o
conhecimento somente sobre uma bacia-semântica, como afirma Luz (2000, p.
29): “as políticas educacionais no Brasil se constituíram como desdobramentos
de ideologias erigidas para legitimar a Razão do Estado moderno, num
contexto histórico, capitalista e imperialista”. No espaço escolar da Educação
Infantil, é perceptível o não acolhimento da pluralidade em práticas que visam
preservar as ideologias de prolongação colonial imperialista, dados que foram
demonstrados ao longo deste trabalho.
O silenciamento dessas histórias está imbricado ao racismo à brasileira,
que foi constituído com hábitos que naturalizaram as práticas racistas, e é de
extrema relevância admitir tal situação. Como nos afirma o autor:
A primeira atitude corajosa que devemos tomar é a confissão de que
nossa sociedade, a despeito das diferenças com outras sociedades
ideologicamente apontadas como as mais racistas (por exemplo,
Estados Unidos e África do Sul), é também racista. (MUNANGA,
2005, p. 18).

Ainda de acordo com Munanga (2005), é necessário criar, inventar,


inovar caminhos para a desconstrução do racismo construído, também por
atitudes que nos levam a afetividade das crianças. Isto ocorre por meio das
mídias e telenovelas na construção de seus personagens, fornecendo a falsa
impressão de maioria branca no país, na opção restrita e majoritária de

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bonecas brancas configurando diferentes disfarces para a perpetração do


racismo no país. Nesse contexto,
As mil formas de fazer o negro odiar a sua cor são veiculadas
habilmente, dissimuladamente. O produto da internalização dos
estereótipos recalcadores da identidade étnico-racial, a auto-rejeição
e a rejeição ao outro seu igual, são apontados pela sociedade como
racismo do negro. A vítima do racismo torna-se o réu, o executor; e o
autor da trama sai isento e acusador. (SILVA, 2005, p. 31).

Entretanto, o censo populacional fornecido pelo IBGE, em 2010, já nos


afirma que 50,7% de brasileiros se declaram negros ou pardos e isso precisa
estar representado em cargos públicos, nas universidades, no centro de
pesquisas, em todo o país.
Como alinhar essas proposições trazendo uma visão de
criança/infância pertinente aos povos que caracterizam a multirreferencialidade
étnica contida na população brasileira, se a criança está inserida em um
contexto pautado no discurso eurocêntrico? Aqui se impõe um grande desafio.
Fica evidenciado que a escola atuará compondo um diálogo que garante a
autonomia para se fazer no contexto das relações familiares,a partir do DCNEI
“uma relação viva com os conhecimentos, crenças, valores, concepções de
mundo e as memórias de seu povo” (BRASIL, 2010, p. 23).
Esse direcionamento é extremamente avançado e pertinente, mas
vemos nas práticas escolares, a fadiga dos valores que marcaram a
modernidade, que desconsideram, de algum modo, a diversidade.
O desrespeito aos outros é o grande desafio do mundo
contemporâneo. O perverso processo de negociação de identidade
de grupos e povos, de sua visão de mundo, religião formas de
apropriação do saber, de suas hierarquias e instituições, conduziu a
um montante agressivo sem precedentes. [...] No rito de passagem
para o século XXI, estamos presenciando o agravamento dos
problemas cruciais advindos dos trágicos conflitos emergentes da
diversidade humana. Alteridade, heterogeneidade, preconceito e
discriminação marcam profundamente a formação pluriétnica e
191
cultural do mundo contemporâneo .

Portanto, o que ocorre é que quando falamos do outro, o discurso


pedagógico precisa ser reflexo de uma ética de coexistência e de respeito às
alteridades dos povos milenares, que são constituidores de seus próprios
valores e linguagens.

191
Carta Africana dos Direitos Humanos, Nairobi, Quênia, 1981.

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Desta maneira, a pesquisa destacou a importância das linguagens


pluriculturais para as práticas pedagógicas na Educação Infantil, oportunizando
uma interligação com a percepção de arkhe, linguagens pluriculturais,
alteridade e educação infantil. Para tanto, buscamos as DCNEIs, documento
que orienta as práticas pedagógicas desde 2010 e que propõe a inclusão de
aspectos das leis 10.639/03 e 11.645/08 no currículo para crianças da faixa
etária de 0 a 5 anos, período que compõe a Educação Infantil no Brasil, de 0 a
3 anos (creche) e de 4 a 5 anos (pré-escola).
Optamos pela riqueza da língua Yorubá para fortalecer o título do
trabalho, detalhando nossas escolhas teórico-epistemológica para dar força às
narrativas poéticas utilizadas nas composições artísticas das proposições
didático-pedagógicas. Nesta perspectiva, analisamos as práticas pedagógicas
das educadoras numa Escola Municipal em Lauro de Freitas- BA, com crianças
de 4 e 5 anos, e como eram desenvolvidas suas ações pedagógicas no que diz
respeito às presenças africanas, africano-brasileira e indígenas. As linguagens
pluriculturais, tomando por base a percepção Odara, que significa o bom, o
belo, o útil na perspectiva nagô, o ethos 192 cultural que está imersa a
territorialidade de Santo Amaro de Ipitanga.
Queríamos saber se a estética negro-africana e aborígene era utilizada
no cotidiano da escola, quando a arkhé do município está imerso nessas
identidades, pois a história transpira as presenças Tupinambá e Nagô/Ketu,
representada pelo Terreiro Ilé Àsé Òpó Aganju, também Ilé Asé Òpó Ajagunã,
e Angola pelo Terreiro São Jorge - Filho da Goméia, a história dos
remanescentes de quilombos em Quingoma-Angola e os povos inaugurais
Kariris-xocós, Fulni-ô originários de Alagoas e Pernambuco.
Foi demonstrado que as linguagens estéticas pluriculturais se constituem
em uma ferramenta possível por enunciar de forma lúdico-estética, conteúdos
diversos que favorecem o interesse em crianças pequenas. Esses aspectos
possibilitam desvendar curiosidades, histórias, culturas, enfim vários aspectos
do conhecimento, a exemplo da vivência oportunizada com o projeto Griô -
contador de histórias.

192
O ethos constitui a linguagem grupal enunciada, as formas de comunicação, os
comportamentos, a visão de mundo, os discursos significantes manifestos, o modo de vida e a
comunicação estética. (LUZ, 2000, p. 94).

864
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Nessa oportunidade, foram realizados momentos lúdicos com as


crianças, a partir de elementos das histórias, construindo momentos
significantes como: a seção de penteados de birotes, tarde de chá, construção
dos panôs, conhecimentos das ervas e folhas e para que elas servem, quais
são curativas, e muitas mais possibilidades de desenvolver aspectos culturais,
históricos, acerca dos valores comunais das comunalidades 193 evidenciadas
pelos livros de histórias. A proposta foi a de elaborar esses conteúdos,
mostrando que existem outras civilizações que são igualmente importantes na
história da humanidade e que precisam ser conhecidas e respeitadas, além das
quais as escolas, secularmente, têm silenciado no currículo.
Também, a proposição estética-musical de Rafael Pondé que faz
referência à África, desnudando o silêncio, como afirma em uma das estrofes:
Afrika, ô Afrika, ô Afrika é Zumbi Afrika, ô Afrika, ô Afrika é Dub.
Celebrar nossas vitórias que ficaram na memória
Isso não está nos livros, aprendemos de ouvido
Chama Salif Keita ai no Mali
194
Recife tem Nação Zumbi, Manguetown , Olodum no carnaval,
195
Salvador Felá Kuti anunciou .

Ele faz referência a Salif Keita, músico africano descendente do


fundador do império Mali, conhecido como a voz dourada da África. Em sua
canção apresenta uma África ancorada em suas referências étnicas, nesse
caso a nagô e também em sua outra canção Odé, conforme assinalam esses
estudos.
Odé caçador, aquele que comete falha até compreender que estas
não responsabilidades de um Odé, pois sua função é garantir a
expansão da vida de sua comunidade, atitude que faz parte da
filosofia de vida desta cultura. (LUZ, M, 1995, apud NICOLIN, 2007, p.
29).

Ao final da pesquisa, encontramos 263 livros, desse total, identificamos


247 que não trazem ilustrações e conteúdo que abordem personagens
indígenas, negros, histórias, contos, etc. Identificamos, portanto, apenas 16
livros que se aproximam da temática da nossa pesquisa. Infelizmente, nos
deparamos com 7 livros que reforçam o racismo, estereótipos e preconceitos,
trazendo aspectos que não traduzem positivamente a presença negra para
crianças e 10 que tinham a temática.

193
Rede de alianças comunitárias, LUZ, 2000.
194
Nome da música Chico Science.
195
Composição musical de Rafael Pondé, Magary Lord, Doudou Rose Thioune.

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A pesquisa comprovou que, a escola, como fonte de pesquisa,


demonstrou profundo desconhecimento e até uma displicência sobre os
aspectos tratados nas DCNEI, e nas Leis 10.639/03, e 11.645/08. A partir
destes dados, o que podemos enunciar, enquanto resultados é que, apesar de
terem transcorrido 11 anos da lei 10.639/03, o/a professor/a, ainda sente-se
mal preparado para lidar com questões de intervenção no que diz respeito ao
racismo e a inclusão do patrimônio civilizatório africano, africano-brasileiro e
indígena nas suas práticas pedagógicas. Os/as alunos/as, em sua maioria,
afrodescendentes, vivem o drama diário da imposição de estereótipos, de
práticas racistas, com o agravante da invisibilidade do negro e aborígines nos
discursos do currículo escolar, como diz Cavalleiro (2007, p. 98), “o silêncio
que atravessa os conflitos étnicos na sociedade é o mesmo que sustenta o
preconceito e a discriminação no interior da escola”.
A escola, ainda ressalta, o modelo eurocêntrico de acordo com dados
coletados, pois 100% das educadoras não elaboram, cotidianamente, os
princípios inaugurais de Santo Amaro de Ipitanga, e com isso impedem a
construção de uma ética da coexistência, como nos sinaliza Luz:
Aqui vale lembrar uma observação de Roger Bastide de que a
sociedade, que vive imersa nos valores colonialistas, tem dificuldade
de aceitar produções teóricas e/ou epistemes capazes de expressar
toda a riqueza do pensamento africano-brasileiro, seu sistema
simbólico estruturado por uma filosofia coerente de visão de mundo e
do destino da humanidade. (LUZ, 2001, p. 30).

Assim, essa pesquisa também marca a problemática etnicorracial,


quando a escola reproduz e se isenta de representar o percentual significativo
da população do município e do país, de descendentes de negros e aborígines,
indicativos das Diretrizes Curriculares Nacionais de 2010, que é um documento
normativo.
Neste contexto, a escola demonstrou uma dificuldade significativa de
apresentar pedagogias que contemplem as alteridades civilizatórias que
compõem o município. No entanto, entendemos que todo e qualquer
educador/a antes de tudo é um ser político, que reproduz ideologias. Desta
forma, precisa compreender a importância estratégica de seu papel
transformador e o seu dever de se posicionar, a partir de intervenções
pedagógicas na forma de compreender a diversidade.

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É papel também da escola compreender que a criança vivencia traumas,


elabora conceitos e aprende as representações dos papéis sociais desde a
mais tenra idade, como nos enuncia Cavalleiro (2007, p. 98): “essa percepção
compele a criança negra à vergonha de ser quem é, pois isso lhe confere
participar de um grupo inferiorizado dentro da escola, o que pode minar a sua
identidade”.
Portanto, o público infantil discente, maioria negra, não está
representado nos livros de histórias, na decoração da escola, no calendário
escolar, nos jogos, nas brincadeiras, nos filmes que assistem no espaço
escolar. Somente nas datas comemorativas como Dia do Folclore, Consciência
Negra, e outras, como foram ressaltadas por várias educadoras na pesquisa,
configurando-se como um trabalho “pontual”.
O papel também da escola, é o de compreender que a criança vivencia
traumas, elabora conceitos e aprende as representações dos papeis sociais
desde a mais tenra idade, como nos enuncia Cavalleiro (2007, p. 98): “essa
percepção compele a criança negra à vergonha de ser quem é, pois isso lhe
confere participar de um grupo inferiorizado dentro da escola, o que pode minar
a sua identidade”.
Com isso, é urgente a participação da escola, dos/as educadores/as,
gestores/as, coordenadores/as, gestores/as públicos/as no entendimento da
urgência na aplicação das leis que tratam do tema e admitam suas
responsabilidades na implementação de estudos para a prática das Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
A pesquisa tem sua relevância por trazer aspectos do pensamento
descolonizador (FANON, 1979), quando convida o/a leitor/a a visitar outros
campos conceituais que trazem novas abordagens epistemológicas sobre a
Educação acerca da diversidade, trazendo discussões de autores/as
brasileiros/as que tratam de narrativas que comunicam a identidade profunda
das crianças brasileiras, em especial nessa pesquisa de Santo Amaro de
Ipitanga.
Fo

Fo

Assim, entendemos que as contribuições que a pesquisa oportuniza é a


de trazer para o centro das discussões as práticas eurocêntricas, que ainda
são perpetradas na Educação Infantil e rompendo com elas, originar

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neolinguagens pedagógicas.Esperamos que as linguagens, aqui, apresentadas


rasguem o futuro com esperança, trazendo novo encantamento para as
crianças ao frequentarem a escola.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes


Curriculares Nacionais para Educação Infantil /Secretaria de Educação
Básica: MEC, SEB, 2010.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394, de


20 de dezembro de 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em: 23.11.2013.

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar:


racismo, preconceito e discriminação na educação infantil/ 5. ed. 1ª
reimpressão – São Paulo: Contexto, 2007.

FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro. ed. Civilização


Brasileira, 1979.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: ed. 70, 1988.


LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Abebe: a criação de novos valores na
educação. SECNEB Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil -
Salvador, 2000.

LUZ, Narcimária C. do Patrocínio. Casa Grande Senzala e Kilombos: Qual o


território do Currículo dos Cursos de Formação de Professores?
Sementes: Caderno de Pesquisa, Salvador, V.2 n.3/4 Jan/dez. 2001.

LUZ, Marco Aurélio. Agadá-Dinâmica da Civilização Africano-Brasileira –


SECNEB – 1995. ed. EDUFBA - 2ª Edição 2003.

MUNANGA, Kabenguele. Superando o Racismo na Escola. 2ª ed. revisada,


organizador. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada
Alfabetização e Diversidade – Brasília, 2005
SIDEKUM, Antonio. Liturgia da alteridade en Emmanuel Levinas. Utopìa y
Praxis Latinoamericana v.10 n.31 Maracaibo dic. 2005. Disponível em:
http://www.scielo.org.ve/scielo.php?pid=S131552162005000400007&script=sci
_arttext
SILVA, Ana Célia. A Desconstrução da Discriminação no Livro Didático.
Superando o Racismo na Escola. 2ª ed. revisada, organizador. Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade –
Brasília, 2005.

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CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA AFRICANO-BRASILEIRA PARA A


EDUCAÇÃO INFANTIL

CARLA SANTOS PINHEIRO 196 (UNEB)

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar como, na Educação Infantil, um modelo
educacional, na perspectiva africano-brasileira, pode contribuir no desenvolvimento da
formação pessoal e social e do conhecimento de mundo das crianças. O fomento ao
respeito à diversidade étnica brasileira ocorre através da análise dos âmbitos de
experiências e eixos de trabalho da primeira etapa da Educação Básica sobre o
arcabouço do reconhecimento e valorização do legado africano-brasileiro tendo este
como base no ser e fazer pedagógico.

1 INTRODUÇÃO

Embasado no respeito às alteridades e na valorização dos princípios afro-


brasileiros, acredita-se que a Educação Infantil, ter como a primeira infância público
alvo, deve alicerçar-se em valores que atendam não somente os pressupostos de uma
educação pautada na perspectiva eurocêntrica civilizatória, mas que abarquem
aspectos do legado africano-brasileiro.

Com base na relação educação e temática étnico-racial surgiu o seguinte


questionamento: Como noções da perspectiva africano-brasileira podem contribuir
para a Educação Infantil? Pois, decerto, tal cosmovisão possui valores a serem
disseminados à sociedade atual, em especial para as crianças. Desta forma, através
196
Diretora da Divisão de Educação Infantil da SEMED, presidenta do Fórum Municipal de Educação
Infantil de Lauro de Freitas e membro do FBEI . Pós graduada em Educação Infantil e Letramento
(Faculdade Montenegro); em História Social e Cultura Afro-Brasileira ( FACSAL ) e Gestão de Política
Pública em Gênero e Raça (UFBA).

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de dada pesquisa se pretende analisar como, na Educação Infantil, um modelo


educacional, na perspectiva africano-brasileira, pode contribuir no desenvolvimento da
formação pessoal e social e do conhecimento de mundo das crianças. E, também,
reconhecer e valorizar o legado africano-brasileiro e propiciar o respeito à diversidade
étnica brasileira.

A presente pesquisa é de natureza explorátoria e classificada como de revisão


bibliográfica. Para tanto, privilegia-se o levantamento bibliográfico e a análise
qualitativa de dados que serão arrolados a partir de fontes bibliográficas. Quanto aos
procedimentos de aquisição das fontes de pesquisa, estas são coletadas em livros,
revistas e sites e, consequentemente, lidas e analisadas.

O corpus da pesquisa é constituído por três volumes do Referencial Curricular


Nacional para a Educação Infantil (BRASIL, 1998a, 1998b e 1998c), em especial aos
dois âmbitos de experiências - e seus eixos de trabalho - concretizados como de
desenvolvimento fundamental na Educação Infantil, que aqui são apresentados sob a
perspectiva africano-brasileira.

No decorrer do trabalho há uma breve abordagem sobre o embasamento


teórico-metodológico que norteou a pesquisa, assim como propõe reflexões sobre a
escassez direcionamentos institucionais referentes à temática étnico-racial na
Educação Infantil.

Para concluir, há reflexões sobre a importância do direcionamento


concernentes a Educação Infantil para a formação da criança e, consequentemente,
para a sociedade.

2 EDUCAÇÃO INFANTIL: FUNDAMENTAÇÃO LEGAL

A Educação Infantil é definida o art. 29 da Lei de Diretrizes e Bases da


Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, como a primeira
etapa da educação básica. Sua finalidade primordial é o desenvolvimento físico,
psicólogo, intelectual e social da criança, - ou seja, integralmente - até os seis anos de
idade. Sua oferta se divide em duas fases, a saber: creches ou entidades equivalentes

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se destinam a crianças até três anos de idade enquanto a pré-escolas, a crianças de


quatro até seis anos.

O conceito do público alvo da Educação Infantil varia no tempo e no espaço.


Contudo, independente dos fatores sócio- políticos e culturais inerentes da Educação,
a sociedade brasileira, sobretudo os educadores, não pode perder de vista que a
criança “é sujeito histórico e de direitos que se desenvolve nas interações, relações e
práticas cotidianas a ela disponibilizadas e por ela estabelecidas com adultos e
crianças de diferentes idades nos grupos e contextos culturais nos quais se insere.”
(BRASIL, 2009, p.6).

A Educação Infantil não deve estar alheia às transformações no seio da


sociedade que associam as mudanças históricas referentes a si própria, à sociedade e
às crianças. Caso contrário, permaneceria a reproduzir o assistencialismo exclusivista
e excludente teoricamente criticado.

É notória a percepção concernente a um ensino, na Educação Infantil,


alicerçado na difusão das contribuições das distintas culturas e etnias formadoras do
povo brasileiro - com destaque às matrizes africana, européia e indígena- e, das
características regionais e locais de sua clientela. Apesar disto, as leis alteram a LDB
– 10639/03 e 11645/08 -, no sentido de propor o fomento à igualdade racial,
reconhecer e compensar perdas sócio-históricas, não incluem tal modalidade de
ensino.

Por saber da capacidade de transformação social da educação e não se abster


diante da escassez de parâmetros legais que deem suporte especificamente a uma
abordagem voltada ao reconhecimento dos legados étnico-raciais, por meio dos
âmbitos de experiência e seus eixos de trabalho a ser desenvolvidos na Educação
Infantil, disponíveis no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
(BRASIL,1998a, 1998b e 1998c) é possível estabelecer bases referentes a ampliação
das cosmovisões apresentadas na educação em geral no que diz respeito aos grupos
étnicos que auxiliaram para a formação da população brasileira.

3 ÂMBITOS DE EXPERIÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A PERSPECTIVA


AFRICANO-BRASILEIRA

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Ao recorremos à história da Educação do Brasil notamos seu caráter voltado


para a perspectiva eurocêntrica civilizatória. Isto é, pautada em um ensino cujos
valores pertinentes à Europa ou às noções de civilidades enraizadas em nossa
sociedade desde o período colonial são exaltados.

Por fazer parte deste sistema educacional excludente e unilateral, a Educação


Infantil apresenta estas mesmas características, a abordagem de seus conceitos
reflete esta percepção social. Desta forma dois âmbitos de experiências - e seus eixos
de trabalho - concretizados pelo RCNEI, a saber: Formação Pessoal e Social
(identidade e autonomia) e Conhecimento de Mundo (movimento, música, artes
visuais, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade e matemática) - são
apresentados num contexto de desprestígio no que concerne a heterogeneidade e
culturas responsáveis à formação da população brasileira e, consequentemente à
realidade do educando.

Neste sentido, as noções acima ressaltadas serão vislumbradas de acordo com


a cultura africano-brasileira a fim de permitir uma extensão de posicionamentos quanto
à abordagem de temas referentes à Educação Infantil.

3.1 FORMAÇÃO PESSOAL E SOCIAL

De acordo com indicações do RCNEI (BRASIL, 1998b), a “capacidade das


crianças de terem confiança em si próprias e o fato de sentirem-se aceitas, ouvidas,
cuidadas e amadas oferecem segurança para a formação pessoal e social.” Todavia, a
segurança não deve ser o único ponto relevante em tais formações, fatores como
respeito à alteridade, compromisso social entre outros devem permear a construção
do sujeito nos âmbitos sociais e coletivos a fim de que não apenas sejam capazes de
seguir um paradigma mas, que busquem a analise dos paradigmas a eles oferecidos.

3.1.1 Identidade e Autonomia

Segundo esclarecimentos do RCNEI ((BRASIL, 1998b) destinado


prioritariamente ao âmbito de experiências Formação Pessoal e Social e os seus
correlatos - identidade e autonomia – estes eixos de trabalho estão ligados

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estritamente com os processos de socialização. As interações sociais ampliam os


laços afetivos que as crianças estabelecem com o outro – de distintas faixas etárias -,
contributo significativo “para que o reconhecimento do outro e a constatação das
diferenças entre as pessoas sejam valorizadas e aproveitadas para o enriquecimento
de si próprias.”

A dinâmica social é constituída de sentimentos, valores, ideias, costumes e


papéis sociais plurais e, por isso as experiências das crianças também devem seguir
este mesmo rumo. Assim sendo, identidade e autonomia não são elementos que se
limitam ao indivíduo como distinto, separado, independente, cuja superioridade é o
fator propulsor destes valores assim como o prejuízo de noções contraria a estas.
Caso contrário, a Educação Infantil se configuraria em espaço transmissor dos ideais
etnocêntricos de negação do “outro” e supervalorização do “eu”.

Vale salientar que a construção deste “eu” obedece a um padrão sócio-


histórico definido assim como a negação do “outro”, pois, “aqueles que são diferentes
do grupo do eu – os diversos “outros” deste mundo – por não poderem dizer algo de si
mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas
ideológicas de determinados momentos.” (GUIMARÂES, 1988, p.8). Como a
pretensão é a de sociedade caminhar para a formação da identidade e da autonomia
em uma perspectiva global em detrimento da perpetuação do egocentrismo, é cabível
a apresentação destes valores de acordo como ponto de vista africano-brasileiro.

O respeito é um valor referente à formação pessoal que deve ser apreciado na


Educação Infantil. Os mais velhos se destacam entre os indivíduos ou grupos a serem
respeitados na cultura afro-brasileira devido o princípio da ancestralidade e, os adultos
são o elo entre o mundo da criança e o fortalecimento destes valor – em especial o
educador ao se tratar d Educação Infantil. Sobre estes aspectos, Santana (2006), nas
Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais, esclarece:

A ancestralidade é um princípio que norteia a visão de mundo das


populações africanas e afro-brasileiras. Os que vieram primeiro, os
mais antigos, os mais velhos são referências importantes para as
famílias, comunidades e indivíduo. (...). Os adultos são fundamentais
nesse processo de caminhada para a compreensão da vida e das
relações com o mundo que as crianças iniciam desde que nascem.
(SANTANA, 2006, p.41)

Munanga (2009, p.32), por seu turno, acrescenta que de acordo com a
ideologia funerária da África tradicional a morte é transformada em vida com a

873
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transfiguração do morto impuro e perigoso em ancestral protetor e reverenciado.


Como o mais velho por ter mais experiência de vida e maior conhecimento acerca das
tradições, seu conhecimento e a sua pessoa é exaltada e respeitada. Pois, a
manutenção da memória e a preservação da cultura de um povo ficam,
principalmente, ao seu cargo.

3.2 CONHECIMENTO DE MUNDO

3.2.1 Movimento

O movimento é definido no terceiro volume do RCNEI (BRASIL, 1998c, p.15)


como “importante dimensão do desenvolvimento e da cultura humana”. Isto é, excede
o conceito de deslocamento do corpo pelo espaço e tem significados construídos em
virtude de distintas necessidades, interesses e possibilidades corporais humanas se
remetem a diferentes culturas em diferentes épocas.

Sobre a relação entre o olhar da instituição de ensino e o corpo da criança, as


Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais informam:

Dependendo da forma como é entendida e tratada a questão da


diversidade étnico-racial, as instituições podem auxiliar as crianças a
valorizar sua cultura, seu corpo, seu jeito de ser ou, pelo contrário,
favorecer a discriminação quando silenciam diante da diversidade e
da necessidade de realizar abordagens de forma positiva ou quando
silenciam diante da realidade social que desvaloriza as características
físicas das crianças negras. (SANTANA, 2006, p. 46).

Ao se tratar de valores civilizatórios, o Projeto da Cor da Cultura (BRASIL, s/d)


discorre sobre corporeidade por meio premissa de que “nos ensina a respeitar cada
milímetro do corpo humano, que deve estar presente em cada ação e em diálogo com
outros corpos. (...). Os corpos dançantes revelam memórias coletivas.” Neste sentido,
como a criança tem uma maneira peculiar de conceber o mundo, o conhecimento de
seu corpo e de suas potencialidades permitirá o desenvolvimento de sua auto-estima e
de suas particularidades.

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Movimento é uma ação imanente ao ser humano. Guerra (2008, p.3) amplia
esta afirmativa ao revelar que “a maior parte da Cultura Corporal de Movimento
brasileira tem como referência as matrizes africanas”. Assim sendo, ao se tratar de
Brasil, não há como falar de movimentos e deixar à margem elementos cuja base
firma-se na África, como: samba, capoeira, maracatu etc.

Outro ponto relevante é que tanto a dança africana quanto os seus movimentos
são carregados de simbologias, pois esta em África, especialmente, “desempenha um
papel fundamental na vida das pessoas, em suas respectivas culturas, nas quais todo
acontecimento social importante é marcado pela celebração de um determinado ritual
expresso com o corpo e através do movimento.” (OLIVEIRA, 2007). Também não se
pode perder de vista que, os elementos da cultura afro-brasileira elencados englobam
expressividade, equilíbrio e coordenação na sua execução – habilidades a serem
desenvolvidas através do movimento.

3.2.2 Música

Por a escola se constituir em espaço importante na socialização infantil e no


construto da personalidade da criança, instrumentos pedagógicos como letras de
música não devem passar despercebidos, o adulto responsável por ações
pedagógicas devem analisar amiúde antes de colocá-las em contato com as crianças
no intento de revelar possibilidades de interpretações. Também, é interessante
pontuar abordagens que desconstruam ideias de desrespeito às diferenças e reforcem
a valorização do legado de distintos grupos étnicos como elementos para a formação
de indivíduos.

Outro ponto a se discutir é a inclusão da música afro-brasileira como


constituinte da sociedade brasileira, pois esta muitas vezes é negligenciada nas
instituições escolares. Talvez, devido a sua relação com as religiões de matrizes
africanas – realidade diferente da música gospel. Desta maneira, a escola enquanto
democrática não deve se centrar em um único parâmetro na garantia de sua
neutralidade diante de questões que podem gerar conflitos, sobretudo, com a
comunidade escolar.

Referente à presença africana na música popular brasileira, LOPES (2005)


apresenta dentre muitas especificidades e bifurcações: festas de coroação dos “reis do

875
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Congo” ou congadas – estratégia de sobrevivência do costume dos bantos através de


celebrações que retratavam a entronização dos reis na África e precursores de ritmos
como o maracatu, o rancho de reis (depois carnavalescos) e as escolas de samba; e,
afoxé - cordão carnavalesco de adeptos da tradição dos orixás com cantigas em
iorubá, cujo acompanhamento inclui atabaques do tipo “ilu”, as mãos, agogôs e
xequerês, no ritmo conhecido como “ijexá”.

O universo musical que se refere à cultura afro-brasileira é muito rico e seus


reflexos estão presentes em nossa sociedade de maneira pungente por meio, dentre
outros ritmos e/ou danças como: hip hop, partido alto, samba, maracatu, capoeira etc.
Todavia, há de se ir além dos aspectos alegóricos destes na sua apresentação às
crianças a Educação Infantil.

3.2.3 Artes visuais

A arte visual tem seu sentido simplificado na Educação Infantil ao ser


associada apenas a um passatempo com a desconsideração do ato de criação, da
manifestação espontânea e da auto-expressividade. Mais do que um contributo de
reforço aos outros eixos a serem desenvolvidos na Educação Infantil, as artes visuais
constroem habilidade próprias, auxiliam na formação de um indivíduo mais sensível,
perceptível aos detalhes, críticos, analistas, etc.

Apesar de muitas vezes considerada, pejorativamente, rústica, a arte afro-


brasileira tem a tendência visual como atributo marcante que apresenta técnicas e
concepções plásticas específicas. Além disto, seu caráter utilitário e religioso
representa sua singularidade, pois seu uso geralmente é atribuído ao culto aos
ancestrais e as forças naturais, invocação das forças vitais etc. O conhecimento do
contexto sócio-histórico ao qual esta arte foi produzida possibilita o reconhecimento de
sua amplitude e a negação de seu esvaziamento apenas como objeto de arte.

A forma mais conhecida da plástica africana são as máscaras, recipiente de


energia, de força vital. Seus traços e seus símbolos possuem significações, não são
criações aleatórias, ao contrário,representa valores morais, étnicos e religiosos. Esta,
por sua vez, não é uma característica apenas das máscaras, mas de todo este tipo de

876
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

arte: pintura, escultura etc. Destaca-se, também, como legado de tal cultura a junção
de retalhos, apliques de figuras em tecido, quadros esculpidos etc. É certo que a
funcionalidade destes objetos não é a mesma devido ao tempo e espaço de suas
produções, mais a influência da arte africana na brasileira é uma realidade inegável.

3.2.4 Linguagem oral e escrita

Hodiernamente, a linguagem escrita obtém supremacia em relação à


oral. As associações com as civilizações orais, como por exemplo, as
africanas, são pertinentes ao status atribuído a este tipo de linguagem. Mas,
não se pode perder de vista os ensinamentos milenares passados entre as
gerações através da linguagem oral assim como a simbologia atribuída durante
este processo.
O RCNEI (BRASIL, 1998c), aponta especificidades das linguagens oral -
permite a participação de crianças e adultos, ocorre simultaneamente com gestos,
sinais e linguagem corporal, apresenta uma construção não linear, estabelece
relações interpessoais, etc - e escrita - auxilia na construção construir um
conhecimento de natureza conceitual, representa graficamente a linguagem, etc -,
assim como a função da Educação Infantil diante de ambas as linguagens.

Tão tendenciosa quanto a proposta de trabalho conjunto entre as duas


linguagens é a definição de ambas como componentes de uma língua, atributo que as
coloca em um mesmo patamar e neutraliza a estandardização de um componente e
seus correlatos. Assim sendo, em Educação Infantil, ambas as linguagens devem ter
em seu trato similar importância a fim de que a criança possa ter uma aquisição
exitosa de sua língua materna com interações comunicativas que atendam à
diversidade lingüística característica do português do Brasil.

3.2.5 Natureza e Sociedade

Organização dos grupos e seu modo de ser, viver e trabalhar, os lugares e


suas paisagens, objetos e processos de transformação e os seres vivos são os

877
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conteúdos listados no RCNEI (BRASIL, 1998c) como fundamentos essenciais na


formação do conceito da criança no que se refere à natureza e sociedade.

Ocorre, por vezes, nas instituições de Educação Infantil, quando se trata da


descrição dos grupos , a ilustração de uma realidade que perpassa um modo de vida
construído sobre as bases do pensamento do colonizador. Comunidades históricas,
porém vivas em nossa sociedade sequer são citadas como é o caso das comunidades
quilombolas.

As práticas e saberes das comunidades quilombolas devem permear o


currículo escolar da Educação Infantil com destaque para elementos como práticas de
subsistência, artesanato, valores, relação com a natureza, ambiente em que vivem,
tradições etc.

Ainda sobre as tradições das comunidades negras concernentes à natureza e à


sociedade pode-se destacar o papel destinado à mulher, o ciclo vital, a iniciação, o
casamento e o coletivo. O papel da mulher, conforme cita THEODORO (1996, p. 59),
“nas religiões da África Negra e nos cultos afro-americanos se relaciona à guarda e
transmissão das tradições religiosas e culturais, sendo o elo que liga o Sagrado à vida
comunitária”.

A percepção da vida e da morte é de suma importância ao direcionamento que


o indivíduo dará a sua existência. Munanga (2009, p.32) aponta que a relação dos
africanos com a morte é de familiaridade e a considera como parte do ciclo vital ao
passo que não prejudica a continuidade deste. Isto é, além de não ser considerado
como o fim de um período e percebido com naturalidade. Porém, a morte provoca
desordem na pessoa do defunto assim como nos seus próximos, linhagem e
comunidade – fator que deve ser contornado simbolicamente pelos ritos funerais a fim
de propor a restauração do equilíbrio emocional do conjunto que foi abalado.

3.2.6 Matemática

A associação da matemática e seus conceitos não deve se limitar à visão


eurocêntrica, esta pode facilmente ser associada à perspectiva africano-brasileira por
meio da capoeira – representatividade de formas geométricas em seus passos; em

878
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seu calendário – lunar; em seus jogos – mancala 197. Contudo, as noções matemáticas
eurocêntricas atualmente podem apenas ser associadas a noções do legado africano-
brasileiro, pois o desconhecimento acerca das noções matemáticas africano-
brasileiras inviabiliza um ensino pautado em tal perspectiva. Com base isto, Costa
Junior (s/d, p.5) esclarece que “n continente africano, as bases numéricas e as
geométricas são diversas, mas existem em todos os povos, elaboradas em lógicas e
formas de exposição que ficam às vezes de difícil interpretação para quem foi formado
na cultura brasileira ocidental. “

Isto é, as bases matemáticas brasileiras estão alicerçadas em uma cosmovisão


e esta desconstrução requer a princípio o conhecimento da existência de outras
noções, seguido do reconhecimento das outras cosmovisões e para então haver uma
convivência sem conflitos entre elas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da promulgação de leis e ações que fomentam o ensino da história e


cultura afro-brasileira nas instituições escolares, estas não se referem diretamente à
Educação Infanti. Contrários aos ideais de supremacia de uma etnia em relação à
outra e, cônscios da necessidade de se respeitar as especificidades da criança quanto
à formação de sua personalidade é importante, que os profissionais em Educação, em
especial aos de Educação Infantil, tenham um direcionamento global concernente as
práticas de ensino.

À medida que se fomenta nas crianças o desenvolvimento de habilidades como


o respeito às alteridades e a valorização do legado das diversas etnias certamente,
esta analisará criticamente as informações deturpadas que porventura tenha acesso e
construirá seus próprios conceitos acerca de tais dados. Isto é, folclorizações,
estereotipias, desrespeito, prestígios inócuos serão noções e valores que terão menos
impacto na vida da sociedade brasileira à medida que forem analisados em suas
entrelinhas, de acordo com os seus objetivos e não aceitos como verdades imutáveis.
Esta visão crítica, por sua vez, pode ser desenvolvida na escola e, a Educação Infantil
tem papel determinante para o seu êxito.

197
Jogos de tabuleiro de origem africana que explora valores e habilidades; cujo predomínio de
raciocínio lógico e matemático extingue a sorte e é embasado em raízes filosóficas.

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Referência

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______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei no 9.394/96, de 20 de


dezembro de 1996. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis L9394.htm

______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.


Referencial curricular nacional para a educação infantil. vol 1.Brasília: MEC/SEF,
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______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.


Referencial curricular nacional para a educação infantil. vol 2.Brasília: MEC/SEF,
1998b.

______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental.


Referencial curricular nacional para a educação infantil. vol 3.Brasília: MEC/SEF,
1998c.

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Relações Étnico-Raciais. Brasília: SECAD, 2006b. 262 pg.

______. Lei nº 11.645, de 10 março de 2008. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm

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Parecer CNE/CEB nº 20/2009, aprovado em 11 de novembro de 2009. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12992:diretriz
es-para-a-educacao-basica&catid=323:orgaos-vinculados

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civilizatórios. Disponível em: http://www.acordacultura.org.br/pagina/Valores%
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Disponível em: http://www.ideario.org.br/neab/kule2/Textos%20kule2/Henrique%20Costa.pdf

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construída a partir da corporeidade africana. Revista África e Africanidades - Ano I - n.
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GUIMARÃES, Everardo P. Rocha. O que é etnocentrismo. 5 ed. São Paulo: Editora


Brasiliense, 1988. 39p. Coleção Primeiro passos.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

RÁDIO COMUNITÁRIA: UMA ABORDAGEM CULTURAL E IDENTITÁRIA

198
Por: Carla Eliana da Silva Tanan UNEB/ PPGEL)

1 Introdução
O pecado quando é grande vira onça e come o dono.
(ouvinte IPI)

Os meios midiáticos estão presentes nos diversos contextos da nossa


vida social, havendo uma interação diária, seja com os que ocupam o lugar de
legitimação e reconhecimento social, ou, aqueles que são considerados como
mídia alternativa, visto que não ocupam o lugar da mídia consagrada e
legitimada como representante de poder.
É notório que, ao longo do tempo, a mídia tem ocupado e exercido
grande poder na sociedade, tendo como um de seus fatores atenuantes o
avanço social e tecnológico que propicia diferentes usos e formas de acesso às
diferentes mídias.
A mídia alternativa vem dando lugar para que os diferentes grupos
sociais ou comunidades, que até então ocupavam apenas o lugar de
telespectador, se tornem comunicadores e agentes da comunicação. Com isso,
propicia que novas vozes, discursos e modos de vida sejam contemplados e
ganhem visibilidade social.
Nesse artigo nos interessa perceber e analisar como a mídia alternativa
vem ocupando cada vez mais espaço na sociedade através de uma relação de
identificação e interação com o seu público. Sendo assim, propomos uma
discussão a respeito de como os programas midiáticos desenvolvidos nas
comunidades vêm ocupando espaço na sociedade, buscando perceber as
principais fronteiras encontradas por quem se propõe a produzir uma mídia
alternativa e como esta pode se tornar um espaço de legitimação de vozes
sociais.
Tomamos como objeto programa de rádio denominado Voz da
Comunidade que faz parte da grade de programas da Rádio Comunitária
198
Mestranda do Programa de Pós _ Graduação em Estudos de Linguagem. E-mail:
karlatanan@hotmail.com.

882
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Rosário FM 104,9 da cidade Itaberaba _ Ba, localizada a 380 km de Salvador e


considerada o Portal da Chapada Diamantina. A rádio tem uma grande
audiência, principalmente durante o programa em estudo apresentado das
12:00 às 13:30 horas.
O programa tem como principal objetivo divulgar as demandas pessoais,
dos bairros, e também da cidade. Diante da participação da comunidade é
possível afirmar que o programa atinge o seu propósito, já que tem um grande
índice de audiência. Vale lembrar que ele é transmitido no intervalo do almoço,
momento em que a maioria das pessoas encontra-se em suas residências,
sendo possível obter, portanto, a participação de muitos trabalhadores.
Abordaremos o tema proposto a partir de pressupostos teóricos de
THOMPSOM (2007) a respeito da comunicação de massa, da dicotomia entre
público e privado, e da interpretação da ideologia; das contribuições de Castells
(1999) sobre o processo de construção de identidades; e da abordagem de
Yúdier (2004) a respeito da cultura.
Para a realização deste estudo, visitamos o escritório da rádio com o
objetivo de conhecer a sua história e funcionamento, desde a implantação e o
desenvolvimento do programa Voz da Comunidade. Para tanto, fizemos coleta
das gravações do programa dos últimos quatros anos, coleta de dados
referentes à história da rádio, e visitas ao seu site 199. Para análise foram
selecionadas quatro gravações do programa Voz da Comunidade dos anos de
2011 a 2014, sendo um programa por ano. Os programas selecionados foram
categorizados por ano, tema e tipo de participação (participação da
comunidade/ locutor do programa).

2 A rádio comunitária: no cenário brasileiro e itaberabense


Paz, sem voz não é paz, é medo.
(locutor )

“A emergência da difusão abriu uma nova era na história da


transmissão cultural”. THOMPSOM (2007, p.241). A primeira principal mídia de
difusão na história foi a do rádio 200. De acordo com Ferraretto (2001), a

199
Site: http://www.rosariofm.com.br/
200
Para maiores informações sobre a história da rádio de difusão ver THOMPSOM (2007, p. 241 e 242).

883
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primeira transmissão eficiente de som sem fios ocorreu em 24 de dezembro de


1906, quando o canadense Reginaldo A. Fessenden transmitiu o som de um
violino e de trechos da Bíblia, a partir de uma gravação fonográfica usando um
alternador desenvolvido pelo sueco Enest Alexandeson.
No cenário nacional, o professor e cientista Edgar Roquete Pinto é
considerado o Pai da Radiofonia Brasileira, pois foi o pioneiro nas transmissões
radiofônicas. A radiodifusão nacional surgiu, segundo Nascimento (2001), em
Pernambuco e se expandiu através da Capital Federal, na época o Rio de
Janeiro, em forma de clubes e sociedades organizadas. Mas a primeira
transmissão em público ocorreu em 7 de setembro de 1922, durante a
exposição internacional do Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da
independência.
No Brasil as rádios comunitárias começaram na década de 1990. Com
forte a pressão exercida pelo governo, as rádios comunitárias começam a se
estabelecer, reivindicando junto a este a elaboração de uma legislação que
contemplasse a rádio pública comunitária. Conforme MAGNO (2014):
As rádios comunitárias surgiram em regiões periféricas e
operam com baixa frequência em FM. São ferramentas de
comunicação extremamente importantes em suas áreas de
atuação. Por seu baixo alcance, tornam- se pontos de
referência com tratamento específico das questões locais, onde
os ouvintes se apropriam levantando pautas, divulgando
eventos e fazendo a programação em si. Logo, as rádios
comunitárias (RCs) assumem um papel de empoderamento,
pois ninguém fala por elas, e mantêm uma identidade local que
leva ao sentimento de pertencimento, reconhecimento do
indivíduo por ele mesmo como cidadão de direitos e deveres.
(MAGNO, 2014, p. 09 ).

Portanto, as rádios comunitárias surgem nas áreas periféricas das


cidades, que se localizam as comunidades de pessoas socialmente
vulneráveis, e não atingem uma grande região geográfica através das ondas do
rádio pela sua baixa frequência. No entanto, atualmente, através da internet, já
é possível que elas cheguem em todos os lugares independentemente da
distância territorial.
As rádios comunitárias no Brasil são emissoras que não têm fins
lucrativos. São administradas por grupos locais que visam levar a público
questões relativas à vida das pessoas de comunidades populares ou
periféricas. A rádio, portanto, se torna um meio de integração e interação

884
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econômica e cultural desses grupos sociais. Sendo também, um foco de


resistência e contestação, de reafirmação de uma identidade, no seu papel
político. E também é prestadora de serviços quando trata dos problemas do dia
a dia, além de servir como meio de reivindicações de uma série de melhorias e
serviços.
A rádio Comunitária Rosário FM 104,9 foi ao ar no mês de outubro de
2006, tendo forte influência do grupo católico da cidade, juntamente com outras
pessoas da comunidade, a partir desse grupo social surge três pioneiros que
lideraram a fundação da rádio, sendo que um dos principais fundadores já tinha
feito a experiência da implantação de uma rádio comunitária na época da
ditadura militar no Brasil. No entanto, por questões políticas, ele foi boicotado,
não dando continuidade à rádio conforme planejado. A implantação da Rádio
Comunitária Rosário FM foi, desse modo, a oportunidade encontrada para
colocar em prática os planos que haviam sido boicotados durante a ditadura.
Ao longo do tempo novas pessoas foram se vinculando ao projeto da rádio
comunitária, que conta atualmente com um número bem maior de
colaboradores.
Os primeiros programas da rádio foram o Amanhecer com Deus, de
cunho religioso, foi um dos primeiros da rádio, o Voz da Comunidade, que tem
como principal participante os moradores da comunidade, e o Entardecer com
Maria, que é um momento de oração do terço. Todos eles estão no ar até hoje.
Com o decorrer do tempo foram surgindo novos programas, e hoje a rádio
conta com uma programação extensa e diversificada. Os programas são os
seguintes: todos os dias, incluindo domingos, Alegria Sertaneja e Entardecer
com Maria; de segunda a sábado, Amanhecer com Deus; de segunda à sexta-
feira, Alegria Sertaneja, A voz da Profecia, Conexão Verdade, Especial da
Manhã, Voz da Comunidade, Canal livre do Esporte, Alto astral, Cidadania em
Foco, e Voz do Brasil. De quarta à sexta-feira, Noite Livre; às segundas e
terças-feiras, Sessão da Câmara de Vereadores de Itaberaba; e aos domingos,
Perólas da MPB, Pastoral da família, Domingo Total, Rosário Saudade,
Aquarela, e Sintonia com Você. E aos sábados, Girando na Feira, Vida
abundante, Especial de sábado, Educação e Cultura, Rosário esporte show,
Talentos da comunidade, Álbum de relíquias, e Noite livre.

885
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O programa em estudo tem um publico bem diversificado, a participação


é marcada pela presença desde os jovens aos idosos, por tratar de programas
locais os participantes e ouvintes em sua maioria são moradores da cidade,
das áreas rurais, ou que nasceram na cidade e atualmente moram em outras
cidades e acompanham o programa através da página do site.
A participação no programa Voz da Comunidade é realizada
principalmente por telefonemas tanto para aparelho celular como para telefone
fixo, mas são oferecidas outras possibilidades como e-mail, via internet,
permitindo até mesmo a participação presencial o microfone da rádio é
disponibilizado para quem tem a possibilidade de ir até ao escritório da rádio
para participar do programa.

3 Voz da Comunidade: ação, cultura e informação


Quando Deus fez a mulher chamou e disse que toda
mulher encontraria homem companheiro, fiel,
inteligente... em cada canto do mundo. E aí, Deus fez a
terra redonda!
(ouvinte IPI)

O programa em estudo o Voz da Comunidade é apresentado por dois


locutores, que se revezam durante a semana, e é mantido principalmente pela
participação dos diversos membros da comunidade, que tornam público suas
demandas, anseios, perspectivas e vivências 201.
Os participantes do programa são chamados de ouvinte IPI (interativo,
participativo e inteligente). Esse chamado é realizado pelo locutor do programa,
tem um significado simbólico para os participantes, e todas as pessoas que
fazem parte do programa na condição de ouvintes participativos, expressam,
através do pensamento reflexivo, opiniões e tomam posição diante dos fatos
vivenciados.
Conforme supracitado, este programa faz parte do quadro de
programação da rádio Comunitária Rosário FM 104,9. O Voz da Comunidade
atinge um grande número de audiência, concernente de pessoas de diferentes
classes sociais, tendo como objetivo atender e dar espaço de voz para as
pessoas das classes populares. Se estabelecendo como uma fonte de

201
Encontram-se nos anexos do trabalho os dados referentes à participação da comunidade e os temas
abordados.

886
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comunicação e difusão de massa, de acordo com Thompsom, comunicação de


massa é:
[...] a produção e difusão institucionalizada de bens simbólicos. A
comunicação de massa pressupõe o desenvolvimento de
instituições_ isto é, feixes relativamente estáveis de relações sociais
e recursos acumulados _ interessados na produção em larga escala e
na difusão generalizada de bens simbólicos.
(THOMPSOM, 2007, p. 291)
A subjetividade e o simbólico estão presentes nas diversas
possibilidades de relação e na mediação entre o receptor e o enunciador.
Sendo assim, podemos considerar que o programa contribui para o
desenvolvimento da cidadania dos indivíduos principalmente no que tange à
difusão dos bens simbólicos.
A partir das vivências cotidianas são produzidos e construídos os
significados sociais, pois a prática revela formas de apropriar, interpretar,
conceber e interagir com o universo social; portanto, os significados são
construídos de acordo com o modo que a comunicação de massa é concebida.
A participação no programa, além de ser um meio de construção e
produção de significado social, representa a voz de um lugar que não é
hegemônico, pois é considerado um espaço livre para todos os membros da
sociedade. Até mesmo aqueles que representam o poder dominante têm a
liberdade de participar do programa e expor sua opinião diante dos temas que
estão sendo abordados, principalmente sobre as demandas e ações
pertinentes a cidade.
A chamada para o ouvinte IPI é uma maneira de negociar os
posicionamentos tomados e os sentidos dados a partir do lugar que cada
ouvinte/participante pertence. É uma chamada para entrar na discussão, seja,
através da sua participação efetiva através de telefonemas ou e-mail, ou, das
reflexões e discussões que podem ser realizadas no ambiente em que o
indivíduo de encontra. Podendo ser tomado um posicionamento crítico e
político a partir da subjetividade e da objetividade que estão presente nas falas
e nas vivências.
Através do programa os moradores socializam informações,
compartilham suas vivências e seus modos de vida unindo-se através das
situações que têm em comum com os demais membros da sociedade, ou seja,
a partir das vivências socializadas.

887
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Nesse processo de socialização podemos afirmar que o programa


promove não só a socialização de conhecimento, bem como uma relação
cultural, como defende que:
Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e
espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana,
dominando o tempo o lazer, modelando opiniões políticas e
comportamentos sociais e oferecendo o material com que as
pessoas forjam sua identidade.
(KELLNER ,2001, p. 9)

Os discursos transmitidos e circulados na vida cotidiana através do Voz


da Comunidade contribuem no modelamento da prática social, tanto pelo
sentido que é dado, como pela maneira que são interpelados pelas
mensagens que chegam até as casas, pois o que é dito ganha novas
significações de acordo com a compreensão de cada indivíduo e do contexto
social pertencente. Nesse sentido Kellner sentido afirma que:
[...] o público pode resistir aos significados e mensagens dominantes,
criar sua própria leitura e seu próprio modo de apropriar-se da cultura
de massa, usando a cultura como recurso para fortalecer e inventar
significados, identidade e forma de vida próprios.
(KELLNER, 2001, p. 11)
Podemos considerar que através do programa de Voz da Comunidade
as pessoas adquirem e compartilham das diferentes notícias e práticas, além
de apropriarem-se dos discursos e darem significados de acordo com as suas
experiências de vida.
Portanto, a cultura não pertence a grupos fechados, as práticas e as
relações são multiculturais, segundo Yúdier (2004, p. 457) “a cultura está
liberada por assim dizer para transforma-se num gerador de valor em si”.
Sendo assim, as práticas são multiculturais e geradoras de novas práticas
culturais.
De acordo com Trindade (2002, p. 21) “uma cultura democrática hoje,
implica no resgate de uma memória coletiva dentro da experiência histórica da
democracia política”. Essa concepção de Trindade nos leva ao que ele
denomina por cultura democrática, que perpassa por uma memória histórica e
social de um coletivo constituída a partir da memória social de cada indivíduo.
No momento em que o indivíduo torna público as suas práticas, crenças
e modos de vidas, está fornecendo informações que até então pertenciam à um

888
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

contexto especifico. No entanto, são levadas a um contexto amplo para


ganharem visibilidade e reconhecimento social.
Quando o participante do programa expõe os fatos que estão ocorrendo
em sua vida particular, eles deixam de pertencer a vida privada e passam a
pertencer a vida pública. O inverso também pode ocorrer um fato público passa
a pertencer a vida privada. A cada dia esses limites se tornam mais intrínsecos
inclusive no contexto analisado.
Nessa perspectiva, Thompsom (2007, p. 313) ressalta que a “dicotomia
público e privado tem a ver com a publicidade versus privacidade com
visibilidade versus invisibilidade”. Portanto, quando os indivíduos trazem a sua
vida privada para o público, se por um lado está perdendo a privacidade, por
outro tem a sensação de estar saindo do lugar da invisibilidade para a
visibilidade.
O ouvinte ao participar do programa se identifica, dizendo seu nome,
local de moradia (bairro, rua, ou área rural em que reside), para, a partir dessa
“situacionalidade”, ser gerada uma relação de identificação com os demais
ouvintes que estão em suas respectivas localidades, posteriormente eles
apresentam suas demandas pessoais e comunitárias.
A partir da análise dos programas selecionados percebemos que apesar
de mudarem as reivindicações feitas, estas dizem respeito, em sua maioria, a
direitos adquiridos constitucionalmente, como acesso a saneamento público e à
saúde. Ou seja, existe uma grande cobrança referente a serviços que deveriam
ser prestados pela administração pública local, estadual ou federal.
Na sua maioria, o que os participantes buscam é dar visibilidade aos
problemas que vivenciam. Pois, acredita-se que os tornando público, estes irão
ser tratados de uma nova maneira, e, por conseguinte, serão solucionados.
Vale ressaltar, que o programa Voz da Comunidade vai além das
reivindicações sobre um determinado assunto, ele torna as pessoas mais
conscientes do seu papel social; sua cidadania; seu papel político; sua
identidade.
A partir da difusão cultural e da dualidade entre público e privado, tem-se
um outro ponto a ser pensado que é a construção da identidade coletiva a
partir de uma dinâmica social e compartilhamentos de referenciais sociais “A

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construção de identidades vale-se da matéria prima fornecida pela história,


geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória e por
fantasias pessoais pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”.
CASTELLS (1999, p.23). Portanto, as identidades se constituem na história e
pela história individual e social se tornam determinantes para demarcar o que
irá constituir a identidade de cada indivíduo ou de um grupo.
Nesse sentido, (Castells, 1999, p.24) afirma que “a construção social da
identidade sempre ocorre em um contexto marcado por relações de poder”.
Visto que a constituição da identidade será determinada a partir das relações
estabelecidas, de como elas se perpetuam e do valor que lhes são atribuídas
socialmente.
Portanto, a busca pelo reconhecimento social através da visibilidade de
uma identidade construída e constituída a partir das relações de poder e da
influência discursiva exercida, bem como o sentimento de pertencimento a
cultura midiática a partir de um posicionamento de ouvinte interativo,
participativo e inteligente; estão intrinsicamente atrelados a prática dos
indivíduos que participam do programa a Voz da Comunidade.

Considerações finais

A partir do estudo realizado percebemos que o programa Voz da


Comunidade tem sido um meio de vincular e fornecer símbolos à sociedade,
através de uma relação interativa entre quem acompanha e participa do
programa em suas casas e aqueles que se fazem presente no estúdio, bem
como o locutor que ocupa o lugar de mediador entre os diversos discursos
ideologicamente marcados que se relacionam a partir de uma comunicação de
massa que dissemina valores, compartilha modos de vida e crenças.
.
Referências:
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e terra, 1939.
Col. A era da informação: economia, sociedade e cultura v. 2.
FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio: o veículo, a história e a técnica. 2.ed. Porto
Alegre:Sagra Luzzatto, 2001.

890
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

KELLNER, Douglas. Cultura da mídia: estudos culturais, identidade e política


entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC. 2001. p. 09-21, 123-160,
203-252.
MAGNO, Pamella. Direitos civis e garantias constitucionais violados: vida
de gado. 2014. Disponível em: http://radiofutebol.amarcbrasil.org. Acesso em:
04/01/15
NASCIMENTO, Pereira .História da Radiodifusão da Paraíba. PB,
2003.OLADOS
TRINDADE, Azoilda Loretto da. Cultura diversidade cultural e educação. In:
TRINDADE, Azoilda Loretto da; SANTOS, Rafael dos. (orgs). Multiculturalismo
mil e uma faces da escola. 3ªed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
THOMPSOM, Jhon. B. Ideologia e cultura moderna. Teoria social critica na
era dos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
YÚDIER George. A conveniência da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

ANEXOS
Participação programa no programa voz da comunidade do ao de 2011 a
2014
Ano do Participação da comunidade Participação dos locutores do
programa programa
2011 Reivindicação pela não mudança de lugar do Colégio Informativo:
Estadual Centenário; Política _ divergência entre
Justiça _ Julgamento em Vitória do Espirito Santo; Tarcísio Pimenta e José
Proposta de lei que contribui para o aumento da Ronaldo depois das eleições;
corrupção; Bolsa família;
Agradecimento da representante do conselho tutelar Paralização dos professores;
eleita; Esporte_escalação da
Reivindicação referente à data de entrega das casas seleção brasileira;
populares; Inflação;
Ocorrências referentes à seção de Câmara de Segurança pública_
Vereadores de Itaberaba; arrombamentos e assaltos no
Denúncia de abuso da polícia militar; estado da Bahia;
Denúncia da venda de diplomas para qualquer curso Condição salarial dos
superior; bombeiros do Rio de Janeiro;
Atuação de vereador na seção de Câmara; Adiamento da reunião do
Eleição da conselheira do conselho tutelar; conselho de saúde sem
justificativa;
Texto reflexivo sobre a
liberdade de expressão;
2012 Participação da comunidade: Informativo:
Reivindicação da convocação dos agentes Atuação dos agentes
comunitários de saúde; comunitários, posse dos
Cobrança das obras do projeto FINIS (casa própria) aprovados no concurso de
Capacitação dos agentes comunitários; Agente Comunitário;
Reclamação referente à entrega de água como Obras realizadas pela

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

caminhão pipa na zona rural, que já está a espera há prefeitura;


um mês; Ameaça de greve dos
Esclarecimento referente à greve dos professores servidores Federais;
estaduais que estão em estado de Greve; Doença da filha de Regis
Inscrição do concurso público municipal; Danesi;
Reclamação referente à atuação do secretário de Consulta do lote do imposto
agricultura; de renda;
Denúncia de compra de compra através da Realização das Olimpíadas
distribuição de água com carro pipa; de Matemática;
Nota de utilidade pública perda de documentos; Professores da UFBA estão
Reivindicação de novas fontes de emprego analisando se entram em
(indústrias); greve;
Solicitação da organização do trânsito; Paralização dos médicos da
Reclamação referente à atuação de vereadores; SESAB;
Reclamação referente à distribuição de água através Contrato dos agentes de
de carro pipa; endemiase;
Dúvida e reclamação referente ao não asseguramento Aviso para o alistamento
aos direitos garantidos no estatuto do idoso; militar;
Reivindicação referente à convocação do concurso do Leitura de artigo do estatuto
agente comunitário de saúde_ ACS; do idoso;
Reclamação referente a falta de planejamento urbano; Mãe que teve oito filhos de
Alerta que é o dia Mundial do Meio Ambiente. uma vez só.
2013 Parabéns para o filho do participante (aniversariante Informativo_
do dia); Parabéns a locutora do
Reclamação referente ao atendimento por servidor de programa anterior
empresa privado, bem como a falta de pagamento (aniversariante do dia);
desses servidores; Lembrança da destruição das
Falta de médico psiquiatra no CAPS; três torres gêmeas;
Reivindicação a respeito da taxa de esgoto cobrado Distribuição de água do
pela empresa de saneamento baiano; programa água para todos;
Esclarecimento referente a legalização e não Médico abandona programa
legalização da cobrança da taxa de esgoto; trabalho após três dias de
Esclarecimento referente à lei que legaliza a cobrança serviço e pede férias;
da taxa de esgoto; A atuação dos deputados na
Comentário referente à taxa de esgoto e a atuação cidade de Itaberaba e a
dos deputados após as eleições; análise que os eleitores farão
Reivindicação da gestão municipal referente à saúde e para as próximas eleições;
a administração dos recursos públicos
Apresentação de lei criada no município de Barreiras
referente a taxa de esgoto;
Parabéns ao locutor aniversariante do dia;
Solicitação de esclarecimentos referente ao
Movimento vem pra rua;
Convocação para os alunos retornarem as aulas, os
servidores prestadores de serviço por contrato estão
de volta as atividades;
Aviso e convite do bairro da URBIS para realizar o
teste de Sífilis;
Carro pipa não combate a seca;
Reclamação de empresa privada por falta de
pagamento;
Parabéns aos locutores aniversariantes;
Explanação sobre o momento vivenciado e a sua
importância para o município;
Questionamento a respeito dos investimentos que
deveriam ser realizados pela gestão pública no
município;
Solicitação de serviço de saneamento e limpeza das
ruas;
2014 Parabéns para o colega de trabalho; Informativos:

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Parabéns aos comentários do locutor; Parabéns para os


Reclamação referente ao lixo na rua; aniversariantes do dia;
Reclamação da tarifa do Itaprev, (previdência social Encontrado a peça mais
municipal); antiga da terra que equivale
Situação salarial dos servidores estaduais a um grão microscópico de
terceirizados; mineral;
Questionamento referente ao processo de licitação Alunos e professores se
para contratação de bandas que farão a festa do reúnem para mudar nome de
aniversário da cidade; escola e conseguiram;
Aviso de permanência da greve dos funcionários dos Falar com bebê ajuda no seu
Correios; desenvolvimento cognitivo;
Aviso de falecimento de um funcionário dos Correios Apresentação de fatos
em acidente de trânsito; históricos da ditadura militar;
Cobrança do serviço de atendimento de hemodiálise; Comentário de alerta ao
Reclamação devido ao atendimento realizado trânsito;
priorizando questões partidárias; Ar condicionado libera
Reclamação referente a administração do governo do toxina;
estado; Nota de utilidade pública
Anúncio de venda de terreno; perda de documentos;
Reclamação considera que as rádios são partidárias;
Contraposição de que a rádio não é partidária;
Alerta com relação ao dever de respeito pelo
posicionamento de cada indivíduo, inclusive dos
vereadores;
Crítica com relação ao posicionamento do ouvinte ao
falar do vereador;
Repúdio as palavras referidas na rádio com relação ao
vereador;
Reclamação da falta de coleta de lixo no bairro Parque
das águas;
Informativo de ação referente à venda do Mercado de
Farinha de Itaberaba;
Chamada para os representantes do Movimento vem
pra rua 1, 2, 3;
Informação sobre a não municipalização das escolas
estaduais.

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GRUPO DE TRABALHO: ESCRITAS PERIFÉRICAS E (DES)LOCAMENTOS


CONTEMPORÂNEOS

PROPOSITORES: ILMARA VALOIS BACELAR FIGUEIREDO COUTINHO


(UNEB), LÍLIAN ALMEIDA (UNEB), LUCIANA SACRAMENTO MORENO
GONÇALVES (UNEB)

Ementa:

No universo literário contemporâneo, edificado sob o signo da multiplicidade,

dos descentramentos e deslocamentos, pode-se observar uma busca

incessante por formas, temas e conteúdos que retratem a complexidade da

condição humana, estando a escrita literária, cada vez mais, destinada às

poéticas das diversidades e suas muitas formas de configuração. Trata-se de

um tempo paradoxalmente instável, em que sujeitos deslocados (identidade,

gênero, sexualidade, etnia, tempo/espaço) forjam (e forjam-se em) diálogos

dispersos, a partir das mais variadas paisagens culturais e das mais diversas

formas de subjetivação, inclusive no sentido de contestar um saber-poder já

organizado, potencializando o inacabamento da palavra dita-escrita. Nesse

sentido, a proposta “Escritas periféricas e (des)locamentos contemporâneos”

pretende propiciar diálogos a partir de escritas que privilegiem temáticas e

estruturas narrativas periféricas, tanto referentes ao cenário brasileiro,

especialmente Bahia, quanto de África, reunindo trabalhos, pesquisas e olhares

sobre a narrativa contemporânea, inclusive com suas ambiguidades, seus

deslizes, seus recuos e seus avanços. A denominação “escritas periféricas”


pretende englobar textos que, contrariando o cenário literário mais canônico e

questionando os limites da definição da própria literatura, identifiquem-se com

uma condição questionadora acerca do saber-poder instituído

hegemonicamente, podendo estar ou não denominadas como literatura de

periferia. Espera-se, com os diálogos realizados no Simpósio, contribuir com o

debate sobre a escrita, a circulação, a recepção,as implicações e

desdobramentos das vozes periféricas no cenário teórico-crítico

contemporâneo.

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BATALHAS DA LITERATURA NEGRO-BRASILEIRA

SALLY CHERYL INKPIN (UNEB)

Neste trabalho, discuto características da literatura negro-brasileira e


como elas desviam e desafiam diversos aspectos da literatura brasileira
canônica, apresentando linguagem, representações, temáticas e lugares de
fala considerados periféricos. A batalha da literatura negra contra a forte
estratificação social regida pela cor da pele da cultura hegemônica, deriva-se
de um posicionamento político do escritor negro, 202 que não mais aceita a sua
representação inferiorizante nos meios de comunicação e informação do país.
O crítico literário David Brookshaw (1983) observa que, mesmo antes da
escravidão, o negro foi aprisionado pela visão de sua cor como defeito. A
associação da cor preta com maldade e feiúra é profundamente enraizada em
histórias da criação, como as da Bíblia cristã, e ecoa na produção e recepção
de textos e imagens da arte e literatura ao longo dos séculos. Quando o dado
da cor da pele se imbricou-se com a escravização, no caso dos negros,
preceitos e superstições ligadas a essa cor ligaram-se também a essas
pessoas. Deste modo, os colonizadores poderiam justificar a repressão e a
escravização brutais destes supostos filhos de Cam 203 (GOMES, 1988).
Meu crescente reconhecimento da contaminação da cor preta por
diversos sentidos negativos me levou a investigar a instalação e fortalecimento
de três edifícios dentro da literatura brasileira, a brancura, a negrura e a
mestiçagem como objetivo da minha tese de doutorado. Tais entidades
inferiorizam o negro e idealizam o branco na maior parte da literatura brasileira

202
Ao longo deste trabalho, quando falo do negro, refiro-me às pessoas que pertencem às categorias
identitárias de preto e pardo, como definidas pelos censos brasileiros. Pelo fato de lidar com a
mestiçagem e os sentidos de que a pele de tons variados representa, há a necessidade de me referir, às
vezes, ao preto ou ao mestiço, a fim de distinguir as pessoas que pertencem ao grupo que chamo de
negro.
203
Cam, filho de Noé, é personagem da Bíblia, mencionado no livro de Gênesis. A Bíblia conta que Cam
teria visto a nudez de seu pai. Em vez de respeitar seu pudor e cobri-lo, Cam contou para seus irmãos
Sem e Jafé o que viu. Quando Noé acordou, amaldiçoou os filhos de Cam, chamando-os de escravos.
Segundo a Bíblia, Cam viveu na África e em partes do Oriente Médio e é visto como o antepassado das
nações daquelas localidades. A maldição de Noé tem sido usada para justificar atos de escravização dos
nativos dessas terras e de outras como as do Brasil.
Disponível em: http://minilua.com/maldicao-afhttp://minilua.com/maldicao-africana/ricana/

895
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

canônica, enquanto a literatura negra é o agente mais potente que se levanta


contra elas.
Minha concepção de brancura e negrura brasileira foi inspirada pela
autora Toni Morrison (1993) que confessa seu fascínio em detectar como a
hegemonia sociocultural branca é mantida nos Estados Unidos. Ela investiga
textos de autores da literatura canônica estadunidense para entender o
fenômeno. A autora aponta que, por meio da manipulação de imagens,
símbolos, técnicas discursivas e estilos narrativos, entre outros edifícios
literários, as cores preta e branca e as tonalidades de pele entre elas têm sido
contaminadas por diversos sentidos, relacionados a comportamentos sexuais e
socioculturais, atingindo práticas e crenças éticas, políticas, econômicas e
religiosas.
Sentidos amplos de positividade ou negatividade ligados a essas cores
têm se construído dentro dos meios de informação e comunicação, infiltrando
no imaginário coletivo, em parte pela representação de personagens literários
negros estereotipados. Esses sentidos e representações servem para apoiar e
fortalecer as qualidades pessoais, as potencialidades sociais e o poder da
comunidade branca sobre a negra. A negrura absorve e emula os preconceitos,
suposições e análises dos estudos eurocêntricos sobre as pessoas negras e
vai se modificando, ampliando-se ou se podando com as mudanças e
variações filosóficas e sociopolíticas da sociedade conterrânea. Morrison
entende as representações de negrura como uma exploração reflexiva sobre o
que o autor sente em relação à presença do negro na sociedade. Do mesmo
modo, ela se interessa pelos meios literários inventados para “explodir e se
contrapor” (MORRISON, 1993, p.16) essas construções.
Por seu lado, as brancura e negrura brasileiras são extremamente
complexas, devido ao fato de o Brasil ter sido dominado, durante vários
séculos, por uma pequena elite de descendência branca, que usa a retórica
ideológica da mestiçagem e da democracia racial, a fim de incluir e/ou excluir
outros, que formam a grande maioria da população. Os discursos e imagens
veiculados pelas ideologias de mestiçagem e democracia racial incluem todos,
entretanto os costumes e as tradições culturais e literárias de séculos, aliados à
exclusão das massas – sobretudo, negando-lhes o direito à educação de

896
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

qualidade e as boas condições de trabalho – têm criado uma hierarquização


social que mantém uma pequena elite branca no topo da pirâmide social.
Brookshaw (1983) afirma que as forças ideológicas da sociedade
brasileira têm incorporado o simbolismo inerente às cores branca e preta.
Essas forças referem-se não só a qualidades que abrangem a beleza e a
feiúra, a civilização e o primitivo, mas também a moralidade e a imoralidade. O
autor sugere que diversas qualidades dessas entidades são ligadas à
construção de estereótipos de negros e brancos, que se opõem dentro da
literatura brasileira. A oposição desses representantes revela um conflito
central entre as culturas africana e europeia. Nesse sentido, a cultura e as
pessoas brancas são associadas à pureza, à beleza, à inteligência, ao
progresso e civilização, à espiritualidade e à moralidade. E a cultura e as
pessoas negras, à impureza, à feiúra, à ignorância, ao atraso, ao profano e à
imoralidade. O autor afirma que o conflito entre as duas culturas é demarcado
por zonas divididas por uma linha de comportamento. A linha adere a padrões
que abrangeram áreas amplas, tais como: as de aparência física (o tipo de
cabelo e a cor de pele); crença religiosa; nível de educação; comportamentos
culturais, sexuais, morais e de lazer (culinários, musicais, de vestuário, o
próprio jeito de andar, entre outros).
O crítico literário e poeta, Cuti (2010), observa que normas subjazem a
representação do negro e das relações inter-raciais dentro da tradição literária
brasileira canônica. Tais normas refletem a concepção da inferioridade do
negro, sua passividade e a predominância de harmonia nas relações entre as
raças. O autor também identifica um sistema representativo da
instrumentalização do negro dentro da literatura brasileira, que cria a impressão
que sua existência gira em volta do branco, como se só existisse para servir a
comunidade branca e nada mais. O crítico também aponta que, muitas vezes,
o negro é aniquilado ao longo da narrativa:
Na literatura, por razões fundamentadas em teorias racistas, a
eliminação da personagem negra passa a ser um velado código de
princípios. Ou a personagem morre ou sua descendência clareia. A
evolução do negro no plano ficcional só pode ocorrer no sentido de se
tornar branco, pois a “afro-brasilidade” pode sobreviver sem o negro,
uma vez que um afro-brasileiro pode ser um não negro, ou seja, não
ser vítima da discriminação racial ou, até, ser um discriminador.
(CUTI, 2010, p.34-35).

897
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Cuti sinaliza que o personagem negro morre ou sua descendência


clareia ao longo da trajetória de sua representação em muitas narrativas. Para
sustentar suas palavras, o crítico aponta uma série de romances em que o
protagonista negro morre como O mulato, de Aluísio Azevedo, de 1881; Bom
crioulo, de Adolpho Caminha, de 1895; e Negro Leo, de Chico Anísio, de 1980.
Por outro lado, ele se refere a Os tambores de São Luís, de Josué Montello, de
1965 e Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, de 1984, para apontar o
clareamento da linha dos antecedentes índios, negros e mestiços.
O universo da brancura e da negrura brasileiro é intermediado pela
existência da ideologia da mestiçagem que vai se adaptando às circunstâncias
sociopolíticas conterrâneas e temporais. Segundo tal ideologia, há a
possibilidade de o não branco ascender socialmente e entrar no universo
branco, atravessando a linha de comportamento, por um ato de
branqueamento que demonstre a apropriação de comportamentos ligados às
tradições culturais e comportamentais dos cristãos e europeus. O branco,
“naturalmente”, vive acima da linha.
Minha investigação de brancura, negrura e mestiçagem enfoca três
aspectos literários centrais, mesmo admitindo que haja diversos outros
elementos que poderiam ser considerados. O primeiro é uma economia de
estereótipos negros e tipos brancos (incluindo mestiços claros) idealizados 204;
o segundo é o deslocamento metonímico em que as cores referentes à pele se
incorporam nas paisagens e entidades apresentadas, inspirando sentidos e
julgamentos por meio dessa técnica. Nas obras da literatura fundadora, 205 em
autores como José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Jorge Amado e
José Lins de Rego, é perceptível a idealização de entidades e pessoas
brancas, tais como: o Bom Senhor e sua família da aristocracia agrícola;
estrelas; pássaros; nuvens, praias alvas e mares leitosos, e, por outro lado, a
condenação e rebaixamento de pessoas, espaços e ambientes forjados como
sendo dos negros. Tal simbologia varia de autor para autor, que também pode

204
Na minha tese, lido também extensivamente com a figura do indígena na literatura. Ela recebe o
mesmo tratamento binário, recebido pelo negro sendo idealizada quando adere aos padrões europeus e
cristãos e rebaixada, se rebelar contra tais normas. As mulheres indígenas e negras recebem o mesmo
tipo de tratamento, muitas vezes, de modo ainda mais exagerado.
205
Uso o termo literatura fundadora para designar obras literárias e da historiografia que contribuíram (e
continuam a contribuir) para definir a identidade nacional do Brasil do mesmo modo implementado por
Toni Morrison (1993) e Doris Sommers (1990).

898
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

resolver construir uma imagem negra acolhedora e positiva, dependendo de


seus propósitos.
A terceira área de investigação enfoca técnicas narrativas. Uma dessas
é o uso recorrente de um narrador onisciente didático, que conduz o pensar do
leitor, prevalente em obras do círculo romântico como as publicadas por
Alencar e Macedo. Outra técnica narrativa que identifiquei é a duplicidade
textual em que o autor afirma conceitos contraditórios. Por exemplo, Macedo,
em Vítimas Algozes, de 1869, constantemente condena a instituição da
escravidão e suas práticas como a responsável pela perversão do escravo,
enquanto também pinta quadros da feiúra, brutalidade e amoralidade de
personagens negros, apresentando-os como responsáveis por sua própria
desgraça. Encontro tal duplicidade textual também em obras da historiografia e
da literatura fundadora brasileira como em A abolição, de Joaquim Nabuco, de
1881; Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933; e, Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, de 1936.
Por essas razões, ressalto a postura dos autores da literatura negra em
afirmar a beleza, cultura e as tradições de seus povos como uma importante
contribuição à luta para conscientizar os cidadãos brasileiros contra os
processos de doutrinação dos meios comunicativos e educacionais do país.
Neste ensaio, discuto diversas características e estratégias dessa literatura em
sua batalha contra o racismo endêmico da maior parte da literatura brasileira.
Começo essa discussão com um trecho do poema A palavra negro do poeta
Cuti (2007 apud SANTOS, 2011, p.11-12):

a palavra negro
Tem sua história e segredo
veias de são francisco
Prantos do amazonas
e um mistério atlântico

a palavra negro
Tem grito de estrelas ao longe
Sons sob as retinas
de tambores que embalam as meninas
dos olhos
[...]
a palavra negro
que muitos não gostam
tem gosto do sol que nasce
[...]

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a palavra negro
tem sua história e segredo
e a cura do medo
do nosso país
(Cuti, Negroesia).

Este poema é citado no ensaio de Simone Santos, de 2011, chamado:


Recontar histórias e reinventar memórias: breves considerações sobre a
literatura negra e a história do Brasil. A autora discute o esforço dentro da
arena da literatura negra para agir contra as ações de apagamento e
marginalização do negro pelas instituições de consagração da História oficial e
da literatura brasileira canônica. Do mesmo modo, o poema “A palavra negro,”
de Cuti, de 2007, sugere a existência de histórias e segredos negros que
contam versões alternativas às definidas pela hegemonia cultural.
Ao se referir à construção de uma literatura negro-brasileira, Zilá Bernd
(1988) detecta o esforço para resgatar a participação do negro na História e
ainda a necessidade para aprofundar a definição de sua própria identidade. No
seu olhar, é imperativo para o escritor negro definir a imagem que ele possui de
si mesmo, a fim de consolidar o processo de conscientização de ser negro na
América e, assim, possibilitar o desenvolvimento de um discurso literário.
Além de evocar a possibilidade de retomar e reescrever histórias de uma
perspectiva negra, o poema de Cuti apresenta outras características,
mencionadas por Bernd, típicas da literatura negra como a reversão de valores,
vista na afirmação da palavra “negro”. Ao invés de expressar suas conotações
negativas usuais, ela “tem gosto do sol que nasce”. Além do mais, a linguagem
do poema ressoa com o ritmo de tambores, e o poeta, cuidadosamente, desvia
do uso padrão de maiúsculas e minúsculas, apresentando o esforço do poeta
negro de criar ritmo, semântica e sintaxe próprios. Bernd fala da emergência de
uma nova ordem simbólica que desconstrói a simbologia de branco-bom/negro-
ruim como parte de sua definição. Desta, o elemento mais importante, segundo
a autora, é a “manifestação de um eu enunciador, ou de um sujeito da
enunciação que se quer negro” (BERND, 1988, p.12).
Também num esforço para definir os parâmetros da literatura negra, o
professor da literatura brasileira Eduardo de Assis Duarte observa:

900
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

[...] a linguagem é, sem dúvida, um dos fatores instituintes da


diferença cultural no texto literário. Assim, a afro-brasilidade tornar-
se-á visível já a partir de uma discursividade que ressalta ritmos,
entonações, opções vocabulares e, mesmo, toda uma semântica
própria, empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação
que contraria sentidos hegemônicos na língua (DUARTE, 2005,
p.108).

Nesse mundo de expressão afro-brasileira, Duarte vê uma nova


abordagem cultural, do mesmo modo de Bernd. A autora chama sua
conceituação de “contraliteratura”. Duarte entende os estereótipos negativos
que habitam o mundo da literatura canônica como construções ideológicas
desenvolvidas ao longo do tempo, na literatura e na historiografia brasileiras.
Como Edward Said (1994), Duarte aponta a necessidade de inserir as
construções da literatura dentro das relações do sistema imperialista de que
fazem parte. Florentina da Silva Souza, em sua obra Afro-descendência em
Cadernos Negros e o Jornal do Movimento Negro Unificado, de 2006, enfatiza
a simplicidade e a natureza política da linguagem dos poemas e contos dos
Cadernos Negros, revista literária que começou a circular em 1978, com a
prerrogativa de conscientizar seu público negro e elevar sua autoestima. Souza
ainda comenta que o português brasileiro já contém muitos substantivos das
línguas africanas e indígenas e uma musicalidade distinta do português
europeu, significando que o poeta negro sente que essa língua também é dele.
Duarte (2005) faz o questionamento de como a literatura afro-brasileira
difere das letras nacionais brasileiras e responde em relação a cinco áreas
principais: as temáticas; a autoria; o ponto de vista; a linguagem (que
acabamos de tratar); e o seu público. Em termos temáticos, Duarte considera
que a literatura negra, conscientemente, enfoca o negro e tenta construir uma
literatura de seus costumes, rituais, de suas crises existenciais e de seus
amores. Obviamente, a escravidão e sua herança são denunciadas. A cultura
negro-brasileira é transmitida nos textos da literatura negra, num esforço contra
o movimento oposto das agências oficiais de consagração. Duarte reverencia
os nomes de Mestre Didi 206 e Mãe Beata de Yemonjá 207, por sua escritura da

206
Mestre Didi, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, foi consagrado artista plástico da arte sacra afro-
brasileira. Fundou a Sociedade Cultural e Religiosa Ilê Asipá do culto aos ancestrais Egun, em Salvador,
em 1980. Expôs suas obras em Gana, Senegal, Inglaterra, França e Nova York. No Brasil, ganhou
reconhecimento após a 23ª Bienal de São Paulo, em 1996, quando recebeu uma sala exclusiva para
expor suas obras. Desenvolveu pesquisas comparativas entre Brasil e África, com o apoio da UNESCO.

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memória ancestral, e, nesse sentido, lembramos ainda que, recentemente, Mãe


Stella de Oxóssi 208 tornou-se imortal, assumindo a cátedra 33 da ALB, também
pela sua produção literária referente à memória ancestral, à cultura afro-
brasileira. Os dramas vividos pelo negro na modernidade brasileira são
transmitidos nas escritas de Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Oswaldo
de Camargo e nas “escrevivências” de Conceição Evaristo, entre muitos outros.
Em 2007, houve o lançamento da obra épica Um defeito de cor, de Ana Maria
Gonçalves, que apresenta uma ampla rede de histórias narradas da
perspectiva de uma mulher negra, de origem africana que se torna uma cidadã
brasileira. Porém, Duarte observa que o negro não é tema obrigatório do
escritor negro, senão poderia se tornar uma camisa de força.
Em relação à autoria, Duarte afirma que a interpretação do texto não
deve ser mediada por dados sobre a cor da pele e a posição social do autor, já
que tais dados não são determinantes sobre a postura do autor. Ele cita Zilá
Bernd, para explicar que o autor dessa literatura apresenta um sujeito de
enunciação que se afirma como negro e sente orgulho de sua negritude. Essa
voz representa sua comunidade, e o lugar que assume é do subalterno.
Essas observações de Duarte e Zilá Bernd sobre a autoria ecoam com
as preocupações sobre autoria da “literatura menor”, termo cunhado por
Deleuze e Guattari, em 1977, para falar de literaturas como as de Franz Kafka
e Samuel Beckett. Segundo sua definição, a literatura menor é de escritores,
cuja língua nativa e espaço geográfico são dominados por uma cultura/língua
alheia, e a única opção que eles têm para se expressar e serem ouvidos é na

Escreveu sobre cultura afro-brasileira. Em 1950, “os conhecimentos de Mestre Didi sobre a língua yorubá
levaram-no a publicar um pequeno dicionário, intitulado Yorubá tal qual se fala” (DOURADO, 2014, p.54).
207
“Com inspiração e competência, Mãe Beata escreve contos, poemas e constrói histórias sedutoras
sobre o mundo místico dos orixás e a vivência dos nossos ancestrais” (COSTA, 2010, p.15). “Alta
sacerdotisa do candomblé, líder religiosa, militante das causas feminista e racial, sempre atenta para
perfilar as demandas coletivas” (ibidem, p. 18). “Mãe Beata ganhou o mundo, participando de
conferências e seminários internacionais, atuando em uma peça de teatro em Berlim, com enorme
reconhecimento do povo e da mídia local. Já escreveu um livro e está, neste momento, finalizando outro.
Hoje, é uma referência para a comunidade negra” (VICTOR, 2010, p.12).
208
Mãe Stella de Oxóssi “recebeu o título de doutora honoris causa outorgado por duas universidades
públicas baianas: a UFBA, em 2005, e a UNEB, em 2009” (DOURADO, 2014, p.38). “O conjunto da sua
produção literária é composto por cinco livros: E daí aconteceu o encanto (1988), escrito com a escritora
Cléo Martins; Meu tempo é agora (1993); Òsósi, o caçador de alegrias (2006), Owé, Provérbios (2007); e
Epé Laiyé: terra viva (2009), voltado para o público infanto-juvenil. [...] A partir de 02 março de 2011,
passou a escrever regularmente no jornal baiano A Tarde, de circulação no Norte-Nordeste brasileiro,
assinando artigos quinzenais na seção Opinião, publicados às quartas-feiras, dias consagrados a Xangô.
Segundo o blog Mundo Afro, editado pela jornalista Clediana Ramos, repórter do próprio jornal, ‘é a
primeira vez, desde a fundação de A Tarde, em 1912, que uma ocupante do mais alto posto da hierarquia
do candomblé se torna articulista de forma regular no periódico’” (ibidem, p. 47).

902
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língua dos dominadores. Bernd oferece o termo “contraliteratura” para a


literatura negra, como alternativo ao termo “literatura menor”, que poderia ser
entendido de forma negativa. A contraliteratura, um termo primeiro cunhado por
Bernard Mouralis, nega-se a assumir os discursos ufanistas e nacionalistas que
encobrem a realidade e desmascaram os aspectos deprimentes da sociedade.
Tal literatura se expressa de forma única: seus recursos retóricos, símbolos e
estratégias literárias não podem ser usurpados por outro meio discursivo.
Bernd afirma que a posição político-cultural do escritor da literatura
negra é parecida com a do escritor da contraliteratura, no sentido que ele tenta
reterritorializar um espaço que é dominado por uma cultura alheia. Mesmo que
a língua brasileira seja do poeta negro, não é a língua de seus ancestrais, e a
cultura desse poeta tem aspectos distintos e até segredos que vão contra as
correntes da cultura hegemônica. O fazer literário do escritor negro tende a ser
marcado por seu engajamento político e pelo fato de sua comunidade,
geralmente, viver numa situação precária e marginalizada, e, luta pelo
reconhecimento de sua cidadania e por seus direitos civis.
Duarte considera ser semelhante, na literatura negra, a questão de
autoria e ponto de vista textual afrodescendente. O ponto de vista da narrativa
parte de valores morais e ideológicos que favorecem as qualidades diversas do
negro como também seu autor. O crítico aponta o texto Úrsula, de Maria
Firmina dos Reis, de 1859, como exemplo de uma obra escrita de um ponto de
vista negro. Nesse romance, as sensibilidades e perspectivas de dois
escravizados são apresentadas como centrais, a partir delas, os atos e as
qualidades dos outros personagens são medidos. Os sentimentos do jovem
senhor Tancredo são tão nobres e generosos quanto os do negro Túlio, seu
leal servidor. Por seu lado, a velha escrava, Suzana, lamenta a perda de sua
liberdade pelas mãos dos “bárbaros” europeus.
Além das áreas de temática, autoria, ponto de vista e linguagem, Duarte
destaca a área do público-alvo como distinta para a literatura negra. Ele explica
que o público visado pela literatura negra também é negro. Abdias do
Nascimento, Solano Trindade, Oswaldo de Camargo e diversos autores
contemporâneos negros são citados como os primeiros que foram buscar seu
público nas ruas, em eventos alternativos, em saraus públicos, rodas de poesia

903
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e de rap e manifestações políticas. Essa movimentação 209 ainda está em


evidencia hoje, em eventos pelo país todo, ampliando-se para áreas digitais
como sites, portais e blogs na internet.
Zilá Bernd e Cuti concordam com as premissas de Duarte, entretanto, os
dois preferem a nomenclatura “literatura negra” ou “literatura negro-brasileira” à
“literatura afro-brasileira”, termo favorecido por Duarte. Cuti explica que, no seu
entender, a palavra “afro” coloca a literatura brasileira como um galho da
literatura africana, continente de 54 países, cujas populações e culturas não
são sempre negras. Cuti, como Zilá Bernd, entende a literatura negra como
uma, em que o autor assume uma subjetividade negra. Ele escreve obras de
resistência contra os padrões estéticos dominantes – representados pela
brancura, negrura e a ideologia da mestiçagem – e outros elementos de
discriminação da sociedade. As obras da literatura negra lidam com situações
racistas e descrevem os sentimentos das vítimas daquela discriminação.
Além do mais, os personagens negros que se apresentam na literatura
negra são redondos e complexos. Para Cuti, o escritor da literatura negro-
brasileira rebela-se em seus conteúdos literários e em seus atos sociais contra
o silêncio que nega se pronunciar contra o mito da democracia racial. O crítico
não se interessa na representação de negros em papéis estereotipados que,
na opinião dele, contribuem para a discriminação contra o negro, ampliando as
imagens inferiorizantes que habitam o imaginário coletivo.
Neste curto ensaio, apresento as principais características da literatura
negro-brasileira, que se definem, em parte, por sua batalha contra os padrões
estéticos racistas endêmicos à literatura brasileira canônica e que permeiam as
entidades da brancura, negrura e a ideologia da mestiçagem de meu estudo.
Na arena da literatura negro-brasileira, comemoro os esforços dos poetas e

209
“Citamos os exemplos da COOPERIFA, idealizada pelo escritor e agitador cultural Sérgio Vaz e
promovida pela comunidade de uma periferia da zona sul paulistana. Lá, semanalmente, em um bar,
realiza-se um sarau em que se lêem textos literários produzidos por autores consagrados ou não. Além
disso, ocorre a promoção de eventos – como a Semana de Arte da Antropofagia Periférica – ações de
distribuição de livros, divulgação de autores da comunidade, saraus nas escolas, oficinas de escrita
criativa etc. No cenário baiano, o Sarau Bem Black, mobilizado pelo professor universitário de Literatura
Brasileira, Nelson Maca, ocorre todas as quartas-feiras, nas esquinas do Centro Histórico de Salvador,
sustentado pela ideia de unir quem gosta de dizer e ouvir a poesia – por eles designada de divergente e
associada às vertentes negras e periféricas da Literatura Brasileira. [...] O Sarau Bem Black iniciou suas
atividades num espaço intitulado Sankofa African Bar. Todavia, após o fechamento desse espaço, em
dezembro de 2013, o sarau passou a ser realizado nas esquinas do Pelourinho.” (GONÇALVES, 2014,
p.198).

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autores negros, homens e mulheres valentes que afirmam sua negritude e


buscam que seu público também valorize tal identidade. Considero essa
conscientização de grande importância para os cidadãos brasileiros poderem
aceitar e respeitar a beleza, a religião, a cultura e os costumes de cada um em
sua diversidade.

REFERÊNCIAS

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasilense, 1988.


BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1983.

CADERNOS NEGROS. São Paulo: Ed. dos Autores/Quilombhoje/Anita


Garibaldi, 1978-2014.

COSTA, Haroldo. Mãe Beata de Yemonjá: guia, cidadã, guerreira. Rio de


Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2010.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010.

DOURADO, Lise M. A. Fluências lexicais africanas e afro-brasileiras no


processo de construção identitária dos estudantes da Escola Municipal Eugênia
Anna dos Santos. Tese (Doutorado). Universidade do Estado da Bahia.
Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade. Salvador,
2014. 256f.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura política identidades: ensaios. Belo


Horizonte: FALE/UFMG, 2005.

GOMES, Helena Toller. O negro e o romantismo brasileiro. São Paulo: Atual,


1988.

GONÇALVES, Luciana Sacramento Moreno. Os jovens em círculos de leitura


literária: uma proposta para espaços alternativos. Tese (Doutorado). Programa
de Pós-graduação em Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
Do Sul. Convênio com o Programa de Pós-graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade do Estado da Bahia – Doutorado Interinstitucional
(DINTER). Porto Alegre, 2014.

INKPIN, Sally Cheryl. Signos, códigos e estratégias literárias da negrura e da


brancura na literatura brasileira. 274f., Tese (Doutorado). Programa de Pós-
graduação em Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
2014.

MORRISON, Toni. Playing in the dark: whiteness and the literary imagination.
USA: Vintage Books, 1993.

905
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

SAID, Edward, W. Culture and Imperialism. London: Vintage, 1994.

SANTOS, Simone de Jesus. Recontar histórias e reinventar memórias: breves


considerações sobre a literatura negra e a história do Brasil. Disponível em:
<http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1308488568_AR
QUIVO_Recontarhistoriasereinventarmemorias.pdf>.
Acesso em: 12 de dezembro de 2012.

SOMMERS, Doris. Irresistible romance: the foundational fictions of Latin


America. In: BHABHA, Homi. Nation and narration. London: Routledge, 1990.

VICTOR, Shirlene. Prefácio. In: COSTA, Haroldo. Mãe Beata de Yemonjá: guia,
cidadã, guerreira. Rio de Janeiro: Garamond: Fundação Biblioteca Nacional,
2010.

906
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DANDO A LETRA NAS QUEBRADAS: REPRESENTAÇÕES DA


LITERATURA PERIFÉRICA CONTEMPORÂNEA NA OBRA LITERATURA,
PÃO E POESIA, DE SÉRGIO VAZ

210
MÉRCIA DE LIMA AMORIM (UNEB- CAMPUS XIII)

Resumo: Este trabalho trata da Representação da Literatura Periférica


Contemporânea na obra literária, Literatura, Pão e Poesia, do escritor periférico
Sérgio Vaz. Tal discussão é de grande relevância porque a Literatura possui
um valor específico que torna legítimo os estudos literários e o confronto com
as diversas obras nos enriquecem existencialmente ao abrir o campo para as
várias possibilidades de entender, interpretar e interagir com mundo e com o
sujeito que nele habita. Investigar como os movimentos periféricos se
consolidam e se inserem na Literatura Brasileira Contemporânea; investigar as
noções do termo periferia, utilizando como referência o campo de
conhecimento literário e analisar como a Literatura Periférica Contemporânea é
representada na referida obra literária são os objetivos deste trabalho. Esta
investigação apoia-se no referencial teórico sustentado por Reyes (2013),
Dalcastagné (2012), Nascimento (2009), Pellegrini (2008), Resende (2008),
Vaz (2001), entre outros. Tem-se como resultados finais indicações de que a
periferia produz e consome muita arte e cultura e que a “Literatura Periférica”
se contrapõe à visão equivocada que os periféricos não leem ou são maus
leitores. O fenômeno das produções literárias periféricas está se alastrando
pelo Brasil, e é através dessas produções literárias e artísticas produzidas
pelos periféricos que os mesmos não são mais vistos como vítimas passivas
diante da violência tanto física quanto simbólica. As periferias não são mais
apenas espaços que representa pobreza. Ela transforma-se também em
espaço com sujeitos interessados em educação, buscam ter acesso aos bens
culturais, sobretudo, àquilo que é associado à elite — a Literatura.

Palavras-chave: Literatura Periférica Contemporânea; Espaço Periférico;


Sérgio Vaz.

1. Periferia: o espaço geográfico

210
Licencianda em Letras com habilitação em Língua Portuguesa, pela Universidade do Estado
da Bahia – Departamento de Educação – Campus XIII. E-mail: mercinhathays@hotmail.com.

907
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O termo “periferia” origina-se do latim peripheriae. Enquanto espaço


geográfico, refere-se àquilo que está ao redor de uma determinada localização
central. Nota-se, então, que periferia, desde seu conceito denotativo, força-nos
a pensar em algo que está “à margem”, fora do centro.
E de fato está. De maneira estereotipada ou não, o termo
“marginalidade”, tanto social quanto culturalmente, relaciona-se aos espaços
periféricos, porque estes, geralmente, são lugares marcados pela carência e/ou
ausência de bens materiais e culturais. Há certa homogeneidade no sentido de
que todas as periferias se aproximam, já que, nestes espaços, é comum a
presença de irregularidades, como a falta de saneamento básico, as ruas “sem
calçamento nem iluminação, desprovidos de redes de esgoto, sem escolas e
postos de saúde, com transporte difícil e caro” (DHURAM, 1986, p.86).
Atualmente, porém, essas semelhanças não são tão definitivas quando
se fala nas periferias brasileiras, pois já se pode notar uma melhoria dos
equipamentos estruturais necessários, como a existência de sistema de
esgotamento sanitário, calçamento de ruas, moradia, serviços de educação e
saúde em alguns bairros, além de muitas especificidades culturais e históricas.
Contribui para essas mudanças, as mobilizações de alguns escritores
periféricos, que nasceram e vivem nas periferias e escrevem em seus textos o
que vivenciam.
Entretanto, isso não significa dizer que estão supridas todas as
necessidades deste espaço e de seus sujeitos. Embora a noção de periferia
esteja sendo reavaliada por alguns estudiosos e pela própria sociedade, a
visão mais comum que se tem deste espaço ainda é sinônimo de:

[...] espaço da carência, que reúne a população marginalizada social


e culturalmente, e faz emergir produtos culturais como a música rap e
a literatura marginal-periférica; que organiza a produção literária e a
atuação dos escritores, e valida a construção de suas imagens
associadas ao adjetivo marginal [...] diferente do "centro" que é um
espaço de moradia das classes médias e altas, de melhores
condições de vida e de concentração das práticas culturais “cultas” e
“legitimadas”. (NASCIMENTO, 2009, p.76).

Observa-se que o cenário contemporâneo da produção cultural e


literária das periferias brasileiras é movimentado pela articulação de artistas,

908
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

especialmente, os escritores periféricos, como é o caso do Sérgio Vaz, Ferréz,


Marcelino Freire, Sacolinha, entre outros. Estes intencionam dar voz e
ascensão aos sujeitos da periferia e, consequentemente, a tais espaços, tendo
como resultado a ressignificação destes e a criação de uma perspectiva
positiva para o mesmo.

2. Um olhar em direção à literatura brasileira periférica


contemporânea

Compreende-se por “contemporâneo”, aqui, o estudo das obras


literárias mais recentes, expecificamente da décaca de 1990 até os dias atuais
e, para tanto, é válido fazer uma reflexão sobre as questões imprescindíveis
para o entedimento da Literatura e Cultura Brasileira Contemporânea. A
censura, a violência, o mercado de massa, as relações entre os produtos
audiovisuais como a telenovela constituem, na era da multiplicidade ou na era
da contemporaneidade, uma forma de incorporar as imposições colocadas pela
lógica pós-moderna.
Seguindo essa vertente, faz-se necessário pensar sobre a discussão
que a autora Tânia Pellegrini (2008) faz sobre o tema aqui descutido. Para a
autora, há diversas concepções de pós-moderno tanto no Brasil quanto no
exterior, e estas podem ser divididas em dois grupos: a concepção segundo a
qual a superação do realismo, dos metarrelatos, da lógica totalizante nos
colocou mais perto da liberdade; e a concepção segundo a qual a condição
pós-moderna é agravamento dos problemas trazidos pela modernidade. Assim
sendo, percebe-se que há um pós-moderno que se assume como um pastiche
e simulacro e outro que reiventa as promessas da modernidade.
Ainda sobre essas concepções pós-moderna, Beatriz Resende (2008)
discute algumas evidências em relação à Literatura Contemporânea: fertilidade,
qualidade e multiplicidade. O que pode ser compreendido por fertilidade é que,
cada vez mais, estão surgindo novas editoras e novos escritores “consumindo
e comentando literatura”. Estes, por sua vez, estão assumindo o seu espaço na
contemporaneidade não de qualquer jeito, mas com toda qualidade – segunda
evidência destacada pela autora, havendo, pois, um cuidado especial em

909
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relação à obra no geral. E a terceira evidência, que é a multiplicidade, consiste


justamente na diversidade que abrange a Literatura Brasileira.
Com base nessas reflexões, pode-se dizer que os discursos
heterogêneos possibilitam o surgimento de muitos recursos que dão forma à
Literatura Contemporânea, recursos esses que reforçam o sentido de
multiplicidade. Entretanto, vale ressaltar que, dentro de toda essa diversidade,
há questões que podem ser percebidas com mais frequência nas obras
literárias contemporâneas, são elas classificadas de “dominantes” por Resende
(2008), a exemplo da presentificação em que há nos textos a manifestação de
uma urgência e de uma radical preocupação obsessiva com o presente; a
presença do trágico e da violência que, apesar de distintas, uma leva a outra, e
estas estão presentes não só nas obras literárias, mas também em nosso
cotidiano, fazendo, assim, parte da cultura produzida no Brasil.
Vale evidenciar também que o pós-moderno – ou o contemporâneo – é
considerado, acima de tudo, a designação para o capitalismo tardio, na qual a
cultura é uma extensão da economia. Configura-se, pois, em uma nova forma
de viver, de sentir, de produzir e consumir e não apenas uma nova maneira de
se fazer literatura. Dessa forma, de acordo com o que ainda diz Pellegrini,
pode-se concluir que a Literatura Brasileira, na contemporaneidade, estabelece
relações intrínsecas com o mecardo editorial, com a cultura de massa e com os
meios de comunicação modernos, que exercem sobre ela pressões
identificadas assim como “censura econômica”.
Quanto ao fenômeno das produções literárias periféricas, elas estão se
alastrando pelo Brasil, e isso é muito gratificante e significativo, pois é através
das produções literárias e artísticas produzidas pelos periféricos que os
mesmos não são mais vistos como vítimas passivas diante da violência tanto
física quanto simbólica. Se pararmos para pensar nas temáticas que esses
autores trazem em suas obras, veremos que não é algo de um todo
desconhecido, pois autores que não fazem parte dessa produção específica já
haviam falado sobre alguns dos temas retratados na contemporaneidade. Em
suma, a diferença se dá pelo fato de que, nas obras em que os escritores não
são periféricos, a exemplo de Fernando Bonassi e Rubens Fonseca, as
personagens marginalizadas – como negro, mulher, pobre etc. – não têm voz,

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e não são representadas de forma igual as outras personagens de


característiscas diferenciadas. Estas só eram vistas como marginais, no
sentido jurídico da palavra, ou seja, como bandidos e empregados. Desta
forma, eram apenas retratados com um olhar de quem está de fora, o olhar do
“outro”, que, por muitas vezes, configurava-se em um olhar estereotipado.
Já nas produções literárias periféricas, escritas por autores moradores
de periferias, as personagem ganham ascensão, voz. É agregada no texto a
voz de quem vivencia tal realidade e não apenas de a quem observa de fora ou
apenas ouve falar. “Olhar com um olhar de dentro” é de extrema importância
para o entendimento das produções literárias periféricas, pois como diz o
escritor periférico Sérgo Vaz:

Literatura Periférica é feita por pessoas que moram na periferia,


simples assim. Ah, então quer dizer que se eu tivesse nascido num
bairro nobre não poderia escrever Literatura Periférica?... Poder
pode... Só que não vai ficar bom. (VAZ, 2015).

Vale ratificar que não se quer aqui excluir o que chamamos de


“clássico” ou “canônico”, ou seja, a literatura sacralizada pelas elites, escrita
por aqueles que confirmam os padrões traçados por críticos e teóricos da
literatura. A ideia é incluir esta outra vertente da literatura brasileira, geralmente
excluída dos espaços do saber acadêmico e da educação formal, por exemplo,
porque ela pode se configurar num dos caminhos mais proficientes para formar
leitores capazes de aguçar o próprio senso crítco e se tornar seres autônomos.
Até porque um dos grandes motivos dos fracassos que ocorrem nas escolas,
no que se refere à formação do leitor literário, é querer incluir hábitos e valores
que fogem da realidade dos nossos alunos moradores de periferias.

3. Entre pão e poesia: a Literatura Periférica de Sérgio Vaz

Sérgio Vaz, o poeta da periferia! É assim que gosta de ser chamado, o


escritor e agitador cultural, que nasceu em 26 de maio de 1964, em Ladainha,
norte de Minas Gerais e migrou para São Paulo aos cinco anos de idade com
sua família. Hoje, mora no bairro Pirajussara, localizado no município de
Taboão da Serra, grande São Paulo. O poeta é um dos criadores da

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COOPERIFA (Cooperativa Cultural da Periferia) e do seu sarau, evento que


fransformou um bar na periferia de São Paulo em centro cultural e que, às
quartas feiras, reúne cerca de trezentas pessoas para ouvir e falar poesia.
Sérgio Vaz possui seis livros publicados. Dentre eles, está Literatura, pão e
poesia (2011), escrito em prosa poética, obra esta que será o objeto de análise
do presente trabalho.
No que se refere à obra acima mencionada, a mesma possui uma
relevância indispensável para pensarmos a Literatura Periférica Brasileira
Contemporânea escrita pelos autores periféricos dessa nova geração, que é o
fato de retratar de forma direta nos versos e parágrafos dos textos uma crítica
social, expondo temas como o analfabetismo, a prostituição, a fome, o
desemprego, o fanatismo religioso, a violência simbólica, a violência física,
entre outros. Porém, o mais importante é que Vaz, em seus textos, traz as
vivências dos sujeitos periféricos dentro deste espaço geográfico específico
que, apesar das mudanças sofridas atualmente, ainda se constitui em lugar
marcado pela ausência de bens materiais e/ou culturais, pelo descaso das
elites (designadas de maioria) em relação às “minorias”211. O escritor dá voz às
pessoas que são esquecidas pela sociedade.
Embora na obra citada predominem crônicas sobre histórias de vida de
desempregados, traficantes, mendigos, miseráveis, crentes desonestos,
policiais corruptos e prostitutas, há textos sobre temas abstratos, como sonhos,
esperança, amor, inveja, angústia, desejos, vingança e há espaço também
para o erotismo. Tal dado sinaliza que a literatura periférica não se limita a
relatar o cotidiano próximo dessas populações, mas se expande para tratar de
temas universais. Esses fatores exercem funções fundamentais para
pensarmos como se dá a representação tanto da Literatura Períférica
Contemporânea quanto do espaço geográfico periférico na obra mencionada
do escritor Sérgio Vaz.

211
É pertinente ratificar que o sentido dos termos “minoria e maioria”, neste contexto, referem-
se ao sentido quantitativo – número de pessoas. Pois, é notório que as pessoas
marginalizadas, desprovidas de acesso aos bens materias e/ou culturais, designados de
“minorias” representam um número bem mais elevado do que os representantes do “poder”,
aqueles denominados de “maioria”.

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Ao mencionar que o escritor, ao falar das questões sociais das


periferias, não se limita a descrever os temas locais ou pontuais, mas aborda
temas universais, indicamos as múltiplas possibilidades que tais espaços
abarcam. Vaz não se restringe à denúncia dos problemas que existem nas
periferias, mas revela as especificidades, questões
internas/comportamentais/psicológicas do sujeito periférico. Reivindica, de
certa forma, uma ampliação da visão do periférico e, respectivamente, deste
espaço.

4. Literatura e periferia na obra de Sergio Vaz: representações da


literatura periférica contemporânea

A obra Literatura, pão e poesia (2011), do escritor, poeta e agitador


cultural Sérgio Vaz retrata histórias de sujeitos periféricos que vivem nos
espaços localizados às margens do centro — centro este que não
necessariamente é o centro geográfico, mas é o centro do poder, do acesso
aos bens materiais e/ou culturais —, denominado de periferia. Mas o que vale
enfatizar é que Vaz não escreve sobre esses sujeitos com um olhar do “outro”,
de fora, estereotipado. O mesmo vivencia o que escreve e isso dá legitimidade
ao seu texto.
Em suas crônicas, Vaz relata os grandes problemas vivenciados pela
população periférica, a falta de humanidade dos seres humanos frente aos
problemas dos “outros” quando diz que, “se não fosse pelo código penal e os
tratados de paz, metade da raça humana já teria sido assassinada pela outra
metade da raça humana” (VAZ, 2011, p. 144). Denuncia também o desprestígio
que há nos espaços periféricos por parte da população que vive nos grandes
centros. Apresenta as desigualdades sociais, a falta de espaço no mercado de
trabalho e a violência tanto física quanto simbólica. Sendo assim, Vaz ainda diz
que “nem sabe se isso pode ser chamada de literatura, porque é sobre nossas
vidas que a gente escreve. Sobre essas e outras vidas que a gente teve” (VAZ,
2015).
Contudo, o poeta da periferia vê a literatura como via de acesso ao
empoderamento do sujeito periférico pela linguagem e, ao consequente acesso

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aos direitos e bens materiais e/ou culturais. Sinaliza também uma esperança,
um caminho rumo a um futuro melhor para os periféricos, não que estes
precisem sair da periferia em busca deste “algo melhor”, mas que tragam para
ela esse “algo melhor”. Para o poeta: “É disso que a Literatura de periferia fala,
da luta e da busca de um mundo maravilhoso para todos nós” (VAZ, 2015).
Entretanto, como já mencionado, as periferias não são mais apenas
espaços que representam pobreza, falta, carência. Não são mais apenas
locais onde as pessoas desprivilegiadas não têm opção de escolha e são
obrigadas a fixar moradia. Ela transforma-se também em espaço com sujeitos
interessados em educação e que investem nela, buscam ter acesso aos bens
culturais, sobretudo, àquilo que é associado à elite — a Literatura. Vaz, ao
declarar que “a Literatura é uma dama triste que atravessa a rua sem olhar
para os pedintes famintos por conhecimento” (2011, p.35), está justamente
fazendo uma crítica a essa Literatura sacralizada pelas elites, que não olha
para as margens, ou melhor, não considera a produção artística e cultural
gestada nos espaços periféricos, fomentando o estereótipo de que tais espaços
são desprovidos de arte e cultura.
Engana-se quem não quer ver. A periferia produz e consome muita arte
e cultura. A “Literatura Periférica” se contrapõe à visão equivocada que os
periféricos não leem ou são maus leitores. Até porque, atualmente, “essa
mesma poesia que há tempos era tratada como uma dama pelos intelectuais,
hoje, vive se esfregando pelos cantos dos subúrbios à procura de novas
emoções” (VAZ, 2011, p. 46). Pode-se perceber isso com os movimentos
culturais, como vários saraus da COOPERIFA, que, segundo o próprio Vaz,
“[...] ficou pequeno para tantas vozes” (VAZ, 2011, p. 164). Existem também
em outros lugares, até mesmo em outras cidades. Os escritores realizam
oficinas em escolas, colocam murais com poesias nas ruas “da quebrada”,
distribuem postais. Tudo isso para aproximar a literatura deste leitor periférico.
Ainda seguindo essa vertente, Vaz, em seu livro Literatura, pão e poesia, na
crônica de mesmo título, diz:

A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chegam mais


livros. A cada dia chegam mais escritores e, por consequência disso,
mais leitores. Só os cegos não querem enxergar este movimento que
cresce a olho nu, neste início de século. Só os surdos não querem

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ouvir o coração este povo lindo e inteligente zabumbando de amor


pela poesia. (VAZ, 2011, p. 46).

O interessante disso é o fato de perceber que, dentro das periferias,


estão surgindo autores construtores de suas próprias histórias, despertando,
dessa forma, através dos relatos de suas experiências, o interesse dos demais
moradores da localidade para o hábito da leitura e da escrita. Estes não mais
se acomodam diante das faltas e carências por eles vivenciadas. Esses novos
autores de suas próprias histórias não se vitimizam por não ter acesso aos
bens necessários e lutam para suprir essas “faltas”, mostrando àqueles que
estão de fora que a periferia também é um lugar de cultura e riquezas, pois,
como diz Nascimento, “os escritores da periferia encontram na atividade
literária uma possibilidade de reverter a própria condição de marginalidade
social” (NASCIMENTO, 2006, p. 60).
De fato, estes novos escritores periféricos tentam e conseguem, por
meio dos seus relatos sociais e problemas que os atingem, dar um novo
significado à periferia, valorizando sua cultura com o estímulo à produção, ao
consumo dessas produções e à circulação desses bens culturais.

REFERÊNCIAS

DALCASTAGNÉ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território


contestado. Vinhedo: Editora Horizonte / Rio de Janeiro: Editora da UERJ,
2012.

DURHAM, Fernando V. Literatura marginal: o assalto ao poder da escrita.


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, nº. 24, p. 35-51,
2004.

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NASCIMENTO, Érica Peçanha do. Vozes marginais na literatura. Rio de


Janeiro: Aeroplano, 2009. Série Tramas urbanas.

PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira


contemporânea. São Paulo: Ed. Annablume; FAPESP, 2008.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no


século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.

VAZ, Sérgio. Literatura, pão e poesia. São Paulo: Global, 2011.

VAZ, Sérgio. O que é literatura periférica? Disponível em:


<https://www.facebook.com/poetasergio.vaz2/posts/461452470600842>.
Acesso em: 10 fev. 2015, 15h00min.

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CARTOGRAFIAS DA MARGINALIDADE NAS OBRAS CAPITÃES DA


AREIA, DO BRASILEIRO JORGE AMADO, E MARGINAIS, DO CABO-
VERDIANO EVEL ROCHA212

ÉRICA ANTUNES PEREIRA 213

Em casa

de menino de rua

o último a dormir

apaga a lua.

(Giovani Baffô)

Em 1937, Jorge Amado tinha apenas vinte e cinco e publicava a obra


Capitães da Areia. Nessa época, a literatura brasileira vivia o auge do chamado
Regionalismo de 30, despontado em 1928 com A bagaceira, de José Américo
de Almeida, logo seguido de obras como O Quinze (1930), de Rachel de
Queiroz, São Bernardo (1934) e Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos,
Bangüê (1934), de José Lins do Rego, Caminhos cruzados (1935), de Erico
Veríssimo, Mar morto (1936) e Capitães da Areia (1937), de Jorge Amado.

Um ano antes de Capitães da Areia, em 1936, era publicado, em Cabo


Verde – país formado por dez ilhas, num total de 4.033 km2, localizado a cerca
de 450 km da costa africana e independente de Portugal em 05 de julho de
1975 –, o primeiro dos nove números da Revista Claridade, organizada por
Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes, escritores de reconhecida
envergadura na série literária do arquipélago que muito “beberam” da literatura
212
Este texto foi originariamente publicado, com algumas alterações, na revista Via Atlântica, n.
22 (São Paulo, Universidade de São Paulo, dez./2012, p. 55-69), com o título “De capitães e
pitboys: cartografias da marginalidade nas obras Capitães da areia, do brasileiro Jorge Amado,
e Marginais, do cabo-verdiano Evel Rocha”.
213
Pós-doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Autora da obra De missangas e
catanas: a construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos,
moçambicanos e são-tomenses (São Paulo: Annablume; FAPESP, 2013) e co-organizadora
das obras Literatura cabo-verdiana: seleta de poesia e prosa em língua portuguesa (Belo
Horizonte: Nandyala, 2015) e Literatura Cabo-verdiana: leituras universitárias (Cáceres: Editora
da UNEMAT, 2015).

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brasileira, com destaque para o referido Regionalismo de 1930. Trata-se de


uma geração que, segundo Simone Caputo Gomes (2008, p. 113), “preferiu
imaginar-se não mais à luz do modelo colonizador ou de uma literatura colonial
apologética da figura do herói navegador, e escolheu mirar-se em outro
paradigma cultural, forte, irmão, independente: o Brasil dos mulatos, malandros e
heróis ignorados”.

Nesse diálogo estabelecido, podemos afirmar que a obra de Jorge


Amado tenha sido uma das vias que mais favoreceram o referido processo de
identificação dos autores cabo-verdianos com o Brasil, considerado então uma
espécie de “irmão mais velho” cujo sistema literário, já solidificado nos termos
propostos por Antonio Candido (1997, p. 15), tornou-se alvo de interesse por
simbolizar a ruptura cultural e política com o império português.

As razões do interesse dos cabo-verdianos pelo nosso escritor baiano


ou, antes, pela produção literária dele podem ser as mais diversas, mas
cremos que a maior decorra da proximidade com a vida cotidiana e as gentes
do povo, representadas, entre outros, por pescadores214, meninos de rua,
lavadeiras, prostitutas, cachaceiros, proxenetas, estivadores, trabalhadores da
terra, vagabundos, mães e pais de santo, enfim, os marginalizados e excluídos
da sociedade que, na pena de Jorge Amado, ganham vez e voz, sendo-lhes
ressaltados/representados os pensamentos e a sede de justiça social.

Setenta e três anos após a publicação de Capitães da Areia no Brasil,


ou seja, em 2010, estava eu na cidade da Praia, capital de Cabo Verde, mais
especificamente nos corredores do armazém da Biblioteca Nacional, em busca
de obras e autores contemporâneos para o projeto que hoje desenvolvo em
nível de pós-doutorado, e, de repente, um título me chamou a atenção:
Estátuas de Sal (2003), do cabo-verdiano Evel Rocha 215. Inicialmente, imaginei
tratar-se de uma releitura da bíblica história de Ló (Gênesis 19), homem que

214
A atividade pesqueira, em Cabo Verde, país arquipelágico banhado pelo Oceano Atlântico,
é intensa, daí a forte identificação com a imagem dos pescadores.
215
Naquela ocasião, trouxe também um exemplar para a Profa. Doutora Simone Caputo
Gomes, que, verificando a pertinência da obra para a pesquisa em nível de Mestrado de
Maurício Oliveira Rios, seu então orientando na Universidade de São Paulo, indicou-lhe a
leitura, do que resultou a dissertação Literatura cabo-verdiana e discussão de gênero:
propostas para masculinidades e feminilidades em obras de Evel Rocha, Germano Almeida e
Dina Salústio, defendida em 18 de abril de 2012.

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teria sido poupado por Deus da destruição ocorrida em Sodoma e Gomorra


com a condição de que fugisse com a família sem que olhassem para trás, no
que não foi obedecido pela mulher, transformando-se esta em uma estátua de
sal. Em Estátuas de Sal, no entanto, Evel Rocha traz à tona o cotidiano de uma
família da Ilha do Sal 216, relembrado pela memória de Adalberto Delgado, que
retorna à terra natal depois de dezoito anos de emigração, e o diálogo
simbólico com a saga bíblica se opera principalmente porque a obra cabo-
verdiana trata de temas contundentes para a sociedade crioula (impactando,
por consequência, a literatura do arquipélago), como o homoerotismo (próximo
da imagem negativa das cidades de Sodoma e Gomorra) e a pulverização dos
laços familiares marcados pelo patriarcado.

Mas foi ao ler Marginais 217, obra publicada exatamente em 2010 (sete
anos após Estátuas de Sal) e a terceira de Evel Rocha (a primeira foi Versos
d’Alma, em 1997), que as relações intertextuais com o Brasil se apresentaram:
é um romance que, pelo teor temático, certamente constitui um marco da
literatura de Cabo Verde, e, tal qual em Capitães da Areia, tem meninos
abandonados e/ou marginalizados pela sociedade como personagens
principais.

Na obra cabo-verdiana, porém, diferentemente do que se verifica no


romance brasileiro, a narrativa se passa em primeira pessoa: Sérgio Pitboy, um
adolescente cuja vivência se dá à revelia da família (destroçada pelo
alcoolismo e abandono paternos e pela emigração materna), assume a voz
para denunciar as diferenças sociais e, por consequência, desmascarar
qualquer tentativa de idealização da sociedade cabo-verdiana, marcada, na
obra, por injustiças e violências físicas e/ou psicológicas que conduzem, com
raras exceções, ao pessimismo e ao determinismo.

216
A Ilha do Sal pertence ao grupo do Barlavento cabo-verdiano e, apesar de ser uma das
menores do país, tem reconhecimento internacional graças ao turismo bastante desenvolvido.
217
Depois de ler Estátuas de Sal, consegui contato com o autor, perguntei-lhe sobre novas
obras e soube da então recente publicação de Marginais. Evel Rocha gentilmente enviou-me, a
meu pedido, dois exemplares: um para mim e outro para Simone Caputo Gomes. Tal
intercâmbio se ramificou e, hoje, a obra tem sido lida e estudada, na Universidade de São
Paulo, por alunos de graduação, pós-graduação e pesquisadores, com destaque para Mário
César Lugarinho, que focalizou o romance Marginais em sua tese de livre docência defendida
em 2012.

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Nesse momento, lembro a definição de Gayatri Spivak a respeito do


sujeito subalterno, considerado aquele pertencente “às camadas mais baixas
da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados,
da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros
plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p. 12), caso dos Capitães
da Areia, na obra homônima, e dos Pitboys, em Marginais. Para a referida
teórica, no célebre e contundente ensaio Pode o subalterno falar?, a fala do
subalterno não deve estar condicionada ao discurso dominante, ou seja, não
basta querer doar-lhe voz ou falar por ele, é preciso abrir espaço para que ele
se expresse.

Trata-se, entretanto, de um dilema cuja solução parece impossível, a


não ser que consideremos – o que faço neste momento – o campo da
representação como um cenário que viabiliza o conhecimento do Outro, ou
seja, do subalterno. De qualquer forma, não é a sua voz que fala ou é
invocada, mas sim a expressão de um horizonte marginalizado pela
experiência dominadora e que, ao materializar-se em texto, de alguma forma
efetiva um resgate a memórias e histórias pretensamente ocultas e/ou
apagadas. Como afirmei, não é a voz do subalterno a falar, mas sim a
encenação de uma voz que se quer dele.

Nesse sentido, se pensarmos o caso de Capitães da Areia e Marginais,


especificamente, perceberemos que o tema, voltado para a vivência dos
meninos de rua postos à margem pela sociedade, aproxima-os do leitor. No
romance cabo-verdiano, instala-se também uma espécie de curiosidade
empática à medida que a narrativa é feita em primeira pessoa, mas
concomitantemente ocorre uma matização desse processo identificatório pelo
fato de haver um intermediário entre Sérgio Pitboy e o leitor. Surge, assim, logo
nas primeiras páginas, a figura de um fictício apresentador da obra,
representada por um antigo colega de liceu a quem o narrador teria entregado
uma espécie de diário com sua história de vida e que, entretanto, manifesta
superioridade conforme retrata o narrador-personagem a lhe chamar de
“senhor” e deixa clara a sua profissão (é engenheiro), fatos delimitadores de
duas posições sociais opostas e suficientes para torná-los praticamente dois
estranhos entre si.

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Nas duas obras, a marginalidade social é focalizada a partir da


experiência das personagens enquanto participantes de grupos formados por
crianças e adolescentes que, desprovidos da proteção familiar, lutam pela
sobrevivência e, para tanto, às vezes agem ilicitamente, contrariando
comportamentos considerados morais e desejáveis pela comunidade. Assim,
os Capitães da Areia eram

crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o


número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e
destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche.

Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando


palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos
da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a
amavam, os seus poetas (AMADO, 2008, p. 29).

Diferentemente dos Capitães da Areia, a maioria dos Pitboys, grupo


que ocupa as páginas de Marginais, frequentava a escola, fato, todavia, não
bastante para configurar uma expressiva diminuição da marginalidade: a
gênese desta, na obra de Evel Rocha, está na desconfiguração dos laços
familiares decorrente do alcoolismo, da pobreza, da emigração, do abandono,
da violência, dentre outros (re)conhecidos problemas enfrentados pela
sociedade cabo-verdiana. O número de meninos que compunham os Pitboys é
muito menor que o dos Capitães da Areia, apenas dez, o que se justifica pelo
espaço de inserção diegética: Espargos, a maior localidade da Ilha do Sal, tem
cerca de 21 mil habitantes na atualidade, muito diferente da Salvador do final
da década de 1930, cuja população já rondava os 290 mil. Quanto à atuação
dos Pitboys, logo percebemos que, pela descrição de Sérgio, o protagonista,
muito se aproxima do comportamento dos Capitães da Areia:

Embrenhávamo-nos pela noite como cães vadios, apoderávamo-nos


dos carros estacionados à porta do cinema, surripiávamos tudo o que
estivesse mal guardado e, aos poucos, o nosso grupo foi
engrossando até sermos dez rapazes adolescentes a quem as
pessoas passaram a chamar de Pitboys (ROCHA, 2010, p. 27).

O grupo, para os adolescentes representados em Capitães da Areia e


em Marginais, é um espaço para a formação de identidades ou “identificações

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em curso” (SANTOS, 2000, p. 135) que possibilitam a experiência e o exercício


impositivo da voz e da força advindas da união dos pares, o que garante
alguma segurança e, concomitantemente, o reconhecimento da individualidade.
No romance cabo-verdiano, o narrador afirma:

Pertencer aos Pitboys era o mesmo que receber um certificado de


emancipação à repressão dos pais e dos adultos que nos rodeavam;
era uma forma de defender a nossa integridade, onde expúnhamos a
nossa cólera sem medo dos outros, onde enunciávamos toda a nossa
crueldade de modo a nos vingarmos da rejeição social. Toda a nossa
revolta tinha apenas um alvo: a intolerância. No seio do grupo o medo
ficava de fora. Ninguém, enquanto estivesse no grupo, deveria
demonstrar qualquer sinal de fraqueza. O choro, a submissão e o medo
eram sinais de fraqueza e nenhum de nós estava na disposição de
passar por afronta. Era necessário encarar o perigo com desprezo e
cuspir na cara do medo, era necessário demonstrar revolta por tudo o
que fosse regra e bom comportamento, pois, as pessoas olhavam-nos
com desprezo e devíamos retribuir-lhes desprezo também (ROCHA,
2010, p. 29).

Essa descrição de pertencimento muito se aproxima do conceito


francês da galère, considerada por François Dubet (1987) uma “experiência de
vida” que tem como características sociabilidade solta, niilismo,
autodestrutividade e raiva, levando a “pequenas incivilidades”, como atividades
criminais intermitentes, transitórias e de pequena gravidade. Por outro lado,
considerando que a delinquência da galère é, ainda de acordo com Dubet, não
organizada, ou seja, não advinda de uma rede estável que propicia a formação
de uma identidade comum, o grupo dos Pitboys mais se aproxima do conceito
de gangue nos moldes propostos por Carla Coelho de Andrade, para quem

as gangues que marcam sua presença no nosso cenário urbano, ao


contrário das gangs estadunidenses, não conduzem negócios com
características empresariais. Geralmente têm, como as gangs, uma
demarcação territorial, liderança definida, interação recorrente e
engajamento em comportamento violento como práticas
fundamentais de estruturação distintiva, mas não objetivam
exatamente assegurarem aos seus integrantes um meio de vida
permanente, com possibilidade de mobilidade social pelos ganhos
advindos de práticas delinquentes e ilícitas. [...] Embora se distanciem
do modelo difuso de sociabilidade da galère descrito por Dubet, há na
‘experiência de vida’ desses jovens algo que os aproxima: a
desmotivação com a escola, a perda de sentido do trabalho, o
sentimento de serem estigmatizados por serem pobres e viverem em
locais relegados, uma certa revolta diante das desigualdades sociais

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e a transformação do ócio [...] em uma violência tornada corriqueira e


banal (ANDRADE, 2007, p. 23-24).

Em Capitães da Areia, os objetivos do grupo não são descritos sob o


ponto de vista dos meninos, mas por meio de uma das notícias de jornal que
dão início à narrativa; no caso, logo na primeira, intitulada “Crianças ladronas”,
podemos ler:

Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um


número superior a cem crianças das mais diversas idades, indo desde
os oito aos dezesseis anos. Crianças que, naturalmente devido ao
desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de
sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida
criminosa. São chamados de Capitães da Areia porque o cais é o seu
quartel-general. E têm por comandante um molecote dos seus catorze
anos, que é o mais terrível de todos, não só ladrão, como já autor de
um crime de ferimentos graves, praticado na tarde de ontem.
Infelizmente a identidade deste chefe é desconhecida (AMADO, 2008,
p. 11).

Como podemos observar, tanto os Capitães da Areia quanto os Pitboys


têm a educação como um pretenso ponto de equilíbrio rompido pelo
desfacelamento do núcleo familiar. Além disso, a noção de grupo é imperativa
para a existência de um sentimento de pertença, ainda que à margem da
sociedade, daí decorrendo os pequenos furtos – em Cabo Verde, chamados de
“caçu-body”, uma corruptela de “cash or body” – e a necessidade de se
fazerem temer pela violência física e/ou psicológica.

Retomando o conceito de Carla Coelho de Andrade acerca das


gangues, no caso das obras em tela, a “possibilidade de mobilidade social” é
praticamente irrisória, pois em ambas permeia uma atmosfera de determinismo
que torna quase impossível acenar para qualquer modificação social favorável
às personagens. Em Capitães da Areia, ela só é alcançada por Professor, que,
graças ao seu talento como desenhista e pintor, ganha o mundo apresentando
telas que tematizam a vida dos antigos companheiros: o apelido já não o
acompanha, passa a ser João José, um artista admirado e reconhecido
(AMADO, 2008, p. 252). Outro “capitão” que escapa ao destino das ruas é
Pirulito, que, movido por fervorosa fé, segue o caminho da religião e, despido

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do antigo apelido, torna-se o irmão Francisco da Sagrada Família (AMADO,


2008, p. 232-234). Já em Marginais, é Jorginho, salvo pelo futebol, o “pitboy”
que tem a sorte de mudar de vida: foi contratado para jogar em Portugal (2010,
p. 82; 126-128) e, no time, passou a ser Da Silva.

É curioso que as três únicas personagens que tiveram a oportunidade


de progredir no extrato social assumam os nomes próprios em detrimento dos
apelidos, o que caracteriza, numa espécie de rito de passagem da
subalternidade para a dominação, a (trans)formação dessas identidades, que,
entretanto, permanecem sempre em trânsito, já que dos antigos companheiros
não se esquecem: seja ao imprimir-lhes a imagem na tela, ao proferir orações
ou ao comemorar um gol, lá estão eles presentes, materializados pela memória
de Professor ou João José, de Pirulito ou irmão Francisco da Sagrada Família
e de Jorginho ou Da Silva.

Excetuando esses três casos, todas as outras personagens, quer do


romance brasileiro, quer do cabo-verdiano, permanecem num limbo que
podemos chamar de marginalidade, numa reafirmação determinista posta em
evidência, na obra de Evel Rocha, por Sérgio Pitboy:

[...] faltava ambição porque deixámos de acreditar nos outros e em


nós mesmos, acomodámo-nos à nossa condição de gente sem eira
nem beira, no nosso casulo do conformismo e na nossa sina de
“filhos de um deus menor”. Tornámo-nos indolentes, enveredámos
pela cultura dos miseráveis, aceitámos o credo imposto que o melhor
era lutar pelo pão de cada dia e, se não houvesse, benzer a boca
antes de dormir. Porém, eu, nós, os da geração rasca, os
marginalizados da periferia, rejeitamos em absoluto essa condição a
que os nossos pais foram relegados e somos forçados a enveredar
para um caminho totalmente contrário, porém arriscado e perverso: o
caminho da delinquência (ROCHA, 2010, p. 89).

A delinquência, portanto, é tomada como uma forma de rebelião ao


determinismo social que, consoante Émile Durkheim, em seu texto O que é fato
social? (1978), decorre da impossibilidade de o indivíduo explicar a sociedade,
sendo esta, em verdade, quem o explica. De acordo com o referido cientista
social considerado um dos fundadores da Sociologia, para se caracterizar um
fato social são necessárias três características: generalidade, exterioridade e

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coercitividade. Em outras palavras, o que as pessoas sentem, pensam ou


fazem, independente de suas vontades individuais, é um comportamento
estabelecido pela sociedade; não é algo que seja imposto especificamente a
alguém, é algo que já existia antes e que continua depois, sem dar margem a
escolhas.

Jorge Amado se mostra atento à questão determinista à medida que,


no episódio em que Pedro Bala, o chefe dos Capitães da Areia, segue para o
reformatório, onde passa pelas mais terríveis privações, entre maus tratos
físicos e psicológicos, e tem sua personalidade e aparência dissecadas pelo
diretor: “[...] Veja... O tipo do criminoso nato. É verdade que você não leu
Lombroso... Mas se lesse, conheceria. Traz todos os estigmas do crime na
face. Com esta idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos... Não pode ser
tratado como um qualquer. Vamos lhe dar honras especiais...” (AMADO, 2008,
p. 202).

Para o médico italiano Cesare Lombroso – invocado não por acaso na


obra de Jorge Amado, que se formou em Direito –, a etiologia do crime é
eminentemente individual e deve ser buscada no estudo do delinquente. Assim,
a sua teoria do “delinquente nato”, expressa na obra O homem delinquente
(2007) e segundo a qual as características físicas, fisiológicas e mentais dos
indivíduos demonstram se são predispostos ao crime ou não, aproxima-o, pelo
viés biológico, do determinismo.

Tanto o determinismo social quanto o biológico, entretanto, são postos


em xeque, nas obras de Jorge Amado e Evel Rocha, não porque três
personagens, como nos reportamos há pouco, escaparam das teias da
marginalidade, e sim exatamente pelo seu contrário, ou seja, porque a maioria
dos meninos se afunda num conceito de grupo que lhes possibilita subverter a
ordem e rebelar-se contra os que consideram socialmente nocivos, caso da
polícia, no episódio em que os policiais são ludibriados por Pedro Bala quando
este, com a ajuda dos outros Capitães da Areia, invade a delegacia a fim de
resgatar o Ogum apreendido de um terreiro de candomblé (AMADO, 2008, p.
96-109), e, também, do advogado Apolinário, que, conhecido pelo seu prazer
mórbido de destratar os menos validos, em especial o protagonista, tem uma

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perna quebrada e escoriações decorrentes de um acidente automobilístico


provocado pelos Pitboys (ROCHA, 2010, p. 109-111). Melhor explicando, tais
estratégias reativas conduzem à inversão da ordem por aqueles até então
considerados subalternos: estes, quando se veem impedidos de fazer da
palavra a sua arma, agem. A ação é, assim, uma espécie de grito primevo para
a conquista de novos espaços e para a assunção de novas identidades.

Além da constituição de grupo, outra forma de ação emprestada à


rasura do espaço do dominador é a sexualidade, que, em Capitães da Areia e
em Marginais, apresenta-se naturalizada e oscila entre a violência e a
afetividade. Assim, nas duas narrativas, observamos casos de abuso sexual
(AMADO, 2008, p. 89-95; ROCHA, 2010, p. 157-158) e de pedofilia (AMADO,
2008, p. 45; ROCHA, 2010, p. 88-89), mas também de carinho e amor
(AMADO, 2008, p. 192-193; ROCHA, 23; 30-31). A respeito da percepção
sexual dos Pitboys, ilustrativa é a seguinte passagem:

Foi no grupo que aprendi os detalhes sórdidos sobre a vida debaixo


de um lençol, onde soube das mil e uma utilidades da camisinha e
passei a conhecer a lista dos homens e das mulheres mais cornudos
da ilha. Beto contava de olhos fechados as horas e os dias em que os
pares se fundiam em abraços libidinosos, sabia a hora em que as
marias eram desvirginadas, o delicioso instante em que os rapazes
pulavam a cerca dos currais de Alto Santa Cruz para os encontros
prazerosos com as alimárias em reboliço. Não via pecado nenhum
nessas promiscuidades, pois, as risadas maldosas dos adolescentes
projectavam-se na vontade de trancar numa cabra, numa besta ou
numa vaca sonolenta (ROCHA, 2008, p. 27).

Como podemos perceber, o grupo, mais uma vez, é a referência na


formação do protagonista e dos demais adolescentes que constituem os
Pitboys, o mesmo ocorrendo com os Capitães da Areia, como comprova este
trecho:

Para que tinha vindo de noite, para que se arriscara na areia do cais?
Não sabia que a areia das docas é a cama de amor de todos os
malandros, de todos os ladrões, de todos os marítimos, de todos os
Capitães da Areia, de todos os que não podem pagar mulher e têm
sede de um corpo na cidade santa da Bahia? [...] Pedro Bala também
só tinha quinze anos, mas há muito tempo conhecia não só o areal e
os seus segredos, como os segredos do amor das mulheres. Porque
se os homens conhecem esses segredos muito antes que as

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mulheres, os Capitães da Areia os conheciam muito antes que


qualquer homem (AMADO, 2008, p. 90-91).

Nas duas obras, as relações homoeróticas são retratadas de modo


enfático, como a quebrar tabus em sociedades tão conservadoras, como a
brasileira e a cabo-verdiana. Se, em tempos de “Paradas Gays” com milhares
de pessoas entre assistentes e participantes, como todos os anos vemos
desfilar na Av. Paulista, em São Paulo, permanece ainda a luta pelo direito à
liberdade sexual (embora sua garantia esteja presente no ordenamento jurídico
brasileiro), o que então imaginar do ano de 1937, quando foi publicado
Capitães da Areia?

Em Cabo Verde, pelo que pude abstrair das vezes em que lá estive e
de conversas com as mais diferentes personalidades, a situação se mostra tão
ruim ou ainda pior, pois não há sequer o amparo de um “Gay Day”,
simbolicamente tão necessário para o posicionamento em prol da emancipação
sexual.

É fato, pois, que os dois lados do Atlântico ainda atravessam uma


conturbada tempestade quando o tema se volta para as relações homoeróticas,
mas nem por isso Jorge Amado e Evel Rocha deixaram de navegar as águas
turbulentas, escrevendo, com um leme feito de tinta, as páginas de uma
história que precisa e merece ser urgentemente desbravada. Ganham vida,
então, personagens como os “capitães” Boa-Vida, Barandão e Almiro, e como
os “marginais” Valdomiro/Mirinha, Lena, Alcindo, Sérgio e Fusco, que (man)têm
experiências homoeróticas ao longo das duas narrativas.

Apesar de ser retratado de forma naturalizada nos dois romances, o


homoerotismo é visto como pecado e/ou doença pela sociedade dominadora,
fato que não passa despercebido aos autores ao descreverem cenas como
esta, de Capitães da Areia, que agora destaco:

Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudá-los. [...]
Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para exterminar a
pederastia no grupo. [...] Enquanto ele lhes disse que era necessário
acabar com aquilo porque era um pecado, uma coisa imoral e feia, os
meninos riram nas suas costas e continuaram a dormir com os mais
novos e bonitos. Mas no dia em que o padre, desta vez ajudado pelo

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Querido-de-Deus, afirmou que aquilo era coisa indigna num homem,


fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro
Bala tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo. [...]
Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia de entre os
Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do
corpo de um homem (AMADO, 2008, p. 112-113).

Em Marginais, a cena é ainda mais contundente e chega às raias do


grotesco, pois a personagem Fusco é submetida a uma “terapia por aversão”,
tratamento consistente no incentivo à excitação seguido de choque elétrico nas
nádegas, sob a justificativa de que “inibe a vontade, desencoraja e ajuda a
perder o hábito” (ROCHA, 2010, p. 80), tudo dotado de um suposto
profissionalismo medicinal, como comprova o seguimento que passo a
reproduzir:

Assim que o doutor Melício soube da condição feminina de Fusco,


disse que era capaz de reabilitá-lo. O médico marcou-lhe o primeiro
encontro no seu consultório e depois de uma conversa amistosa e
florida, o médico disse-lhe que o tratamento era uma terapia para inibir
o desejo homossexual. Parece um tanto ou quanto complicado, mas é
muito simples. A terapia exige força de vontade e em pouco tempo
estarás desfrutando o gozo de ter no teu ombro o cheiro do perfume
das mocinhas de Espargos (ROCHA, 2010, p. 79-80).

A questão homoerótica é abordada muito mais profundamente em


Marginais que em Capitães da Areia: enquanto na obra brasileira as relações
entre os meninos se apresentam de forma tímida, limitadas a breves
descrições de carinho (AMADO, 2008, p. 40-41; 47), no romance cabo-
verdiano a homoafetividade é minuciosamente apresentada, sendo retratados,
inclusive, casos de travestismo e de hermafroditismo, como o de Loiro, que

era um verdadeiro playboy de pé rapado, um xavequeiro da primeira


água, até o dia em que fomos surpreendidos com a notícia que dava
conta que ele, ou melhor ela estava grávida. [...] A situação ficou
esclarecida quando descobriram que ele era macho e fêmea. [...] Alcindo
era um casal tipo “dois em um” como nos produtos do mercado em
promoção? A Natureza, na sua infinita perfeição criou o hipopótamo, o
animal mais feio do mundo. Por que haveria de criar um Alcindo,
perfeito exemplo de feiura que não era nem homem nem mulher, um
legítimo representante dos dois sexos? (ROCHA, 2010, p. 122-123)

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No entanto, embora rasurem o padrão comportamental imprimido pelas


sociedades brasileira e cabo-verdiana, as obras de Jorge Amado e Evel Rocha
ainda carregam consigo alguma dificuldade para lidar com o tema do
homoerotismo, o que pode ser comprovado pelo fim que as personagens gays
assumem, quase sempre trágicos. Dessa forma, em Capitães da Areia, Almiro,
cuja aparição, no decorrer da narrativa, liga-se à prática de relações
homoeróticas, apanha varíola (vulgarmente conhecida como alastrim) e morre
em decorrência da doença (AMADO, 2008, p. 144-150; 158). Em Marginais,
por sua vez, embora as personagens, tal qual ocorre em Capitães da Areia,
também tenham fins arrasadores, há um ensaio de reviravolta à medida que,
de alguma forma, elas deixam a sua marca para a sociedade. Assim, ainda que
Valdomiro tenha morrido em decorrência de uma overdose por cocaína, não sai
de cena sem antes gravar na memória dos sobreviventes a rejeição paterna, o
que fica visível quando uma carta a este endereçada é trazida à tona:

Sou homensexual, a sujeira que entrou na sua casa mas não sei viver
de outra maneira. Quero que saibas que eu não virei homensexual,
nasci assim. Por isso, meu pai, para que não sintas mais humilhação
e porque não sei viver de outra maneira, vou matar a cabeça. Talvez
num outro mundo eu possa ser mais compreendido tal como sou. Sou
capaz de aguentar as troças, a fofoca da vizinhança, mas não posso
viver sem a tua bênção! Perdoa-me por ter nascido gay. Adeus para
sempre (ROCHA, 2010, p. 118).

Interessante é o termo “homensexual”, que sintetizando os conceitos e


as definições emprestadas às palavras “homem”, “homossexual” e “sexual”,
alegoriza a extensão da briga interior vivenciada por Valdomiro em sua curta
existência. Sérgio, o protagonista, que teve sua “primeira experiência sexual
com Valdomiro” (ROCHA, 2010, p. 116), também morre com um corte no pulso
(suicídio, muito embora já estivesse condenado pela tuberculose), mas, em
contrapartida, deixa sua história de vida – materializada no diário e
posteriormente convertida e publicada em livro – como um legado às gerações
futuras. A escrita, como podemos comprovar, continua sendo a arma para lutar
pelos próprios direitos e pela formação de uma sociedade movida pelos sensos
de justiça e de equidade.

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Uma personagem, porém, não morre, mas mesmo assim tem seu
paradeiro indefinido ao fim de Marginais: é Fusco, que

embarcou num iate e ninguém sabe o que foi feito dele.


Provavelmente, estará gozando a vida com algum amante pelos mares
do sul, cortando as ondas majestosas e brancas dos seus sonhos de
infância. Torço para que sejas feliz do teu jeito, que sejas a mulher que
a natureza defraudou, que consigas rebolar sem complexos, que sintas
liberto dos preconceitos, que obtenhas aqueles longos e fartos seios
com que sempre sonhaste, que desfiles em alguma manifestação
envolto numa bandeira gay, travestido de mulher com longas pestanas
e botas até o joelho como sempre sonhaste, que vivas em plenitude a
tua homossexualidade, nas ruas de Sidney, em algum cabaré de
Amesterdão, mas vivas até morrer! (ROCHA, 2010, p. 208-209).

Do excerto, entrevemos um quase sôfrego desejo do narrador de que


Fusco tenha resistido às intempéries sociais e, por consequência, possa viver
livremente os sonhos acalentados durante toda a vida. É uma esperança que
se consuma a partir de outra esperança, numa terrível sequência condicional:
“se” Fusco viver, “se” driblar os preconceitos, “se” derrubar as barreiras da
marginalidade, “se” alcançar a liberdade sexual e de pensamento, aí então
poderá ser feliz.

Trata-se de um futuro que, apesar de perseguido, continua incerto. Até


alcançá-lo e torná-lo realidade, muitos “Capitães da Areia” e “Pitboys” terão de
continuar sua jornada, dia após dia, contra a exclusão social, o que só é possível
por meio da reiterada efervescência coletiva demonstrativa da rebeldia e da força
marginalizada. Ao se unirem, esses meninos e meninas garantem a própria
sobrevivência, que representa, metaforicamente, a reconstrução familiar.

Ratificando esta imagem e, já em vias de encerramento, retomo os


versos de Giovani Baffô, que, em epígrafe, abrem o presente texto, para lembrar
que a lua, símbolo da renovação e da transformação, está num teto cujo limite é
o infinito e, embora não tenha luz própria, brilha ao refletir a alheia. Assim
também as personagens de Capitães da Areia e Marginais: renegadas à
marginalização, espelham uma sociedade incapaz de enxergar a própria
sombra; no entanto, desse mesmo meio opressivo e destrutivo de sonhos, é
possível, ainda, extrair poesia.

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REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Capitães da areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ANDRADE, Carla Coelho de. Entre gangues e galeras: juventude, violência e
sociabilidade na periferia do Distrito Federal. Tese (Doutorado em Antropologia
Social). Universidade de Brasília, 2007.

CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. São Paulo: Humanitas,


1997.

DUBET, François. La Galère: jeunes en survie. Paris: Fayard, 1987.

DURKHEIM, Émile. O que é fato social? In: As regras do método


sociológico. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. Cotia:


Ateliê Editorial-UNEMAT; Praia: Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro,
2008.

LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Trad. Sebastião José Roque.


São Paulo: Ícone, 2007.

ROCHA, Evel. Estátuas de sal. Mindelo: Ilhéu, 2003.

__________. Marginais. Praia: Edição do Autor, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na


pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2000.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina


Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2010.

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DO SILÊNCIO COLONIAL AO GRITO PÓS-COLONIAL: A PARTICIPAÇÃO


DA MULHER NO MERCADO EDITORIAL DOS PALOP

PEDRO MANOEL MONTEIRO – UNIR 218

1 – Introdução

A Revolução dos Cravos não foi importante só para a redemocratização


de Portugal, sabidamente, pôs fim ao sofrimento causado por mais de uma
década de Guerras Coloniais Ultramarinas, com o mesmo ato, se finda o
estado de terror, morte, autoritarismo e de toda sorte de abusos instaurados
pelas ações da PIDE.

Com as mudanças que vem na esteira do fim do Império Ultramarino


Português, podemos entender o mundo sem maniqueísmos, pois há também o
surgimento das novas nações africanas independentes, segundo Santilli
(1985), alcançando a autodeterminação; trata-se de um direito fundamental,
fundacional, de todos os povos. Contudo, na esteira dessa libertação, também
acompanhamos o surgimento das guerras civis fratricidas em algumas nessas
mesmas ex-colônias portuguesas. Hoje, por um lado, percebemos
historicamente o quanto essas lutas conformaram-se como desdobramentos da
Guerra Fria. As guerras civis instauradas pouco depois da Revolução dos
Cravos que legaram aos povos africanos o seu próprio quinhão de sofrimentos.

Nosso olhar volta-se, primordialmente, para o período posterior ao da


Revolução dos Cravos e a sua influência na literatura feminina praticada nos
PALOP. Assim, entendemos que terminado o período ditatorial do Estado Novo
em Portugal se sobrepõe em boa parte à Guerra Fria, que também se
sobrepõem às Guerras Coloniais Ultramarinas e depois às Guerras civis de
Angola e Moçambique, portanto, temos um tempo muito dilatado recoberto por
conflitos armados, políticos e ideológicos contraproducentes para a atividade
literária, é neste panorama conturbado que centramos nossa visada, buscamos

218
Mestre e Doutor em Letras: Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH/USP
2000 e 2013), professor adjunto do DLV, docente do PPGMEL da Universidade Federal de Rondônia.
Líder do Grupo de Pesquisas LILIPO-UNIR, desde 2005 e pesquisador do Grupo de Estudos Cabo-
verdianos/USP, desde 2009.

932
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mapear, compreender, situar historicamente e quantitativamente a produção


literária escrita por mulheres, para tanto, subdividimos o século XX: no
momento colonial estável: de 1933 até 1960; no das Guerras Coloniais de
1961 até 1974 e no Nacional: de 1975 até 2013.

Focamos os últimos 80 anos da história literária africana, compreendida


entre 1933 e 2013, entendemos que em função das guerras globais iniciadas
em 1936, o período compreendido entre 1936 e 1991 seja um período de
dificuldades para a inserção da escrita das mulheres no mercado editorial.
Mesmo a partir de 1974, período mais propício para a inserção da escrita das
mulheres no mercado editorial. Contudo, entendemos que a luta por igualdade,
a partir de 1975, ocorrerá em outras trincheiras, tão difíceis de serem vencidas,
quanto àquelas cavadas pelo velho regime imperialista português, pois agora
se tratam de resistências imemoriais, arraigadas em milênios, entrecortados do
mais profundo patriarcalismo ancestral, irracional, muitas vezes centrado em
ritos tribais, pré-históricos até.

2 – O problema

O Estado Novo Português possuía o rosto do “tuga”, porém agora a luta das
mulheres africanas acontece em novas trincheiras, dessa vez elas são locais,
próximas, invisíveis, tão antigas, operam nas entrelinhas, nos interditos, nos
interstícios das novas sociedades nacionais independentes, porém, imersas na
Guerra Fria. O novo combate, pela equidade de gênero, será travado por cidadãos
invisíveis conforme define Michele Perrot (2006): sobretudo pelas mulheres, sobre
essa invisibilidade histórica no tocante às mulheres nos Cravos de Abril. Em 1999,
Edite Estrela (1999, p. 51) já assinalava: “Onde estavam as mulheres no 25 de
Abril?” é a constatação do viés da História tradicional, patriarcal.

Na época em que Edite Estrela faz esse recorte, ainda permanece como
visada, se é que podemos dizer assim “a velha história”, calcada nos grandes
momentos emblemáticos e agônicos. Sobre esse tópico da revolução, há que
se considerar ainda a possibilidades do estudo dos Cravos pela ótica da Nova
História (Le Goff, Perrot e Burk) e da Hermenêutica do Cotidiano (Silva Dias e

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Sohiet) que possivelmente trarão luz nova sobre o objeto. Como nosso olhar
está focado sobre as consequências da abertura política e da
redemocratização em solo lusitano, sobretudo, no que tange as literaturas
praticadas por mulheres nas ex-colônias do ex-ultramar português, deixamos
de lado esse tema também apaixonante e instigante, para nos dedicarmos ao
objeto central deste artigo: as escritoras dos PALOP.

Para atingirmos o nosso principal objetivo que é identificar o processo de


evolução da escritura de autoria feminina no mercado editorial dos PALOP 219
tomaremos por base inicial de nossas ilações a compilação publicada em
1999, pelo Professor Doutor Tony Simões da Silva, intitulado: L'afrique ecrite
au feminin - les auteures lusophones 220, realizado para a Discipline of
European Languages and Studies, da University of Western (Austrália). Estudo
único no gênero compõe-se de levantamento nominal e bibliográfico de
escritoras africanas lusófonas. É certo que sua publicação inicial deu-se em
1999, entendemos que para o momento atual, há defasagem em seu
conteúdo, necessitando um trabalho de continuidade, reformulação e
ampliação, nessa espécie de vade-mécum da Literatura Feminina Africana;
mesmo com tal defasagem de informações, ainda é uma fonte extremamente
operatória para nossas intenções analíticas.

219
A partir deste momento por uma questão de opção de método e estilo ao tratar enunciarmos os termos
“as escritoras dos PALOP” e “mercado editorial dos PALOP” suprimiremos o termo “PALOP” para
evitarmos as repetições desnecessárias, pois está mais do que claro desde o título do artigo que
trabalhamos na perspectiva literária circunscrita ao universo lusófono.
220
Temos que considerar o termo “autores lusófonos” neste momento não no sentido de autores que
desenvolveram a temática africana em seus escritos, mas, para além disso, como autores “africanos”,
pois o próprio autor indica autores e obras por nacionalidade dos PALOP e não por identidade nacional,
como são vários os casos de escritoras eminentemente cidadãs portuguesas, contudo se o próprio autor
as identificou como sendo angolanas, cabo-verdianas, guineenses, moçambicanas e santomenses não
seremos nós a retirá-las do compendio. Historicamente compreendemos a necessidade de discussão
desses parâmetros, assim como entendemos o desafio e a dificuldade que tal empreitada representa,
principalmente em função do trânsito de pessoas no período colonial e mesmo no período pós-colonial,
porque as relações sanguíneas/históricas desses países encontram-se indissociavelmente atreladas
neste momento das recentes independências, coisa que se considerado, e consideramos, o Brasil como
grupo de controle e espelho histórico do mesmo caminho, vemos que os próximos 200 anos de
independência do Brasil, tornaram esses laços muito menos apertados, chegamos a dizer, bastante
distante, pois não se vê no povo brasileiro contemporâneo um apego, sequer interesse nos laços
históricos que nos unem, Portugal no imaginário brasileiro representa hoje o mesmo que os franceses,
holandeses, italianos e outros povos significam, ou seja, uma percepção muito distante de nossos
relacionamentos. Vê-se que os PALOP ainda mantém uma relação muito estreita com um fluxo ainda
constante de cidadãos africanos fixados em território português.

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Buscamos identificar e conhecer a tendência da participação da mulher


africana no percurso literário, social, histórico, cultural e editorial, tomando,
para tanto, por data base o 25 de abril, em Portugal.

Sabemos de antemão, que nos dias atuais, há uma presença


significativa de escritoras no panorama literário, cultural e editorial africano.

Apesar do aparente avanço das escritoras africanas, ainda não se sabe


exatamente qual é essa participação, principalmente, se levarmos em conta
tratar-se de universo historicamente patriarcal. Acreditamos, intuitivamente, por
transposição, extrapolação e por transferência indutiva de conhecimentos, que
em duas ou mais estruturas hierárquicas sociais basicamente idênticas, ou
seja, formadas, sistematicamente, pelos mesmos princípios histórico-culturais
fundacionais, com base num sistema hierárquico social também semelhante:
falocêntrico-judaico-cristã-medieval-burguês-lusófono. Podemos aduzir que as
formulações teóricas aplicadas a uma série podem e devem ser transpostas
para as outras. Assim as formulações levadas a cabo por Regina Dalcastagnè
em seu trabalho intitulado A personagem do romance brasileiro
contemporâneo: 1990-2004 podem ser transpostas para as séries africanas
em estudo, os dados apresentados por Regina Dalcastagnè apontam para uma
dominação masculina no mercado editorial brasileiro na casa dos 72,7%, fator
que deve permanecer igual ou maior no mercado editorial africano.

Buscamos elucidar qual seja a evolução da escrita feita por mulheres,


que intuitivamente deduzimos que não ocorre na proporção ideal, equilibrada.
Sabemos que o mercado editorial africano não é equânime, mas que, assim
mesmo, intuímos que supostamente houve algum avanço das escritoras. É
nesta lacuna do conhecimento, que pretendemos iniciar uma curta busca por
esclarecimentos.

3 – O método

Para a discussão inicial partimos dos dados encontrados em L'afrique


ecrite au feminin, a elas acrescentamos as informações obtidas nas obras

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Dicionário de autores de literaturas africanas de língua portuguesa 221,


Bibliografia das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e nos
volumes de No reino de Caliban. Depois do cotejo dessas obras basilares,
consultamos fontes da internet: associações de escritores, páginas pessoais,
jornais e blogs para preencher as lacunas existentes.

Ao final do processo de cotejo e busca adicional de informações, as


mudanças mostraram-se pouco significativas na base de dados iniciais,
confirmando a boa qualidade da publicação L'afrique ecrite au feminin, em
que pudemos fazer correções de duplicidade de autores, imprecisões de datas
de publicação.

O cotejo das fontes aponta para uma variação da origem das


nacionalidades e de escolha na canonização literária. Em L'afrique ecrite au
feminin, não se tem a informação bibliográfica mínima do tipo “nasceu, viveu,
morreu”, ou seja, a canonização feita por Tony Simões da Silva ultrapassa a
questão do nascimento, vida e morte das escritoras, que a nosso ver é uma
das questões cruciais do sentimento de pertença e do local de onde se fala.
Feito isso, evocamos em defesa prévia, a trajetória do crítico e pesquisador
português Manuel Ferreira, destacando que a sua história opõe-se a situação
do mesmo homem, porém ficcionista, ou seja, a figura do prosador cabo-
verdiano Manuel Ferreira de Hora di bai. Vê-se com isto, tratar-se de questão
estéril, infinda por sua própria natureza, na esteira do mesmo problema
histórico relacionado ao Padre Vieira, por longo tempo disputado pelas séries
brasileira e portuguesa. Evitamos esse abismo, aceitando na integralidade a
canonização realizada pelo professor Tony Simões da Silva. Assim pudemos
seguir a diante.

Em função do exposto anteriormente, optamos no processo de cotejo,


como método de escolha das escritoras, eliminar da contagem todas aquelas
que Aldónio Gomes, Gerald Mozer ou Manuel Ferreira, em seus livros,
indicaram do seguinte modo: “nasceu e morreu em Lisboa, esteve durante

221
Vemos que o mesmo se passa neste dicionário como o que ocorre em L’afrique ecrite au feminin, no
cotejo das duas obras pudemos perceber que a postura dos autores é bastante similar, fator que nos
induziu a tomar a decisão de considerar essas fontes como elas aparecem, pois é um tema bastante
difícil, que quando abordado implicará num processo de revisão desses dados, será necessário definir
alguns parâmetros como o que é realmente africano, português e lusófono apenas.

936
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alguns anos em Moçambique, Angola e etc...”, pois entendemos que esse tipo
de dado bibliográfico desautoriza apontar em tais situações as autorias como
sendo caracteristicamente africanas222. No processo de cotejo, ficamos apenas
com as que nasceram no continente africano e o tem como lugar de pertença e
cujos laços familiares e imaginários lá se encontram.

Após o trabalho inicial com as fontes, o universo de escritoras


apresentadas amplia-se para muito além daquelas elencadas em L'afrique
ecrite au feminin, porém deparamos nesse processo com um segundo
problema, a ser equacionado mais adequadamente no futuro: escritoras
laureadas com prêmios em concursos, mas sem livros publicados e outra
gama de situações que não dão consistência a presença factual da mulher na
imprensa, pois enquanto a mulher não edita, ela não incomoda, e não ganha
espaço no mundo falocêntrico, segundo Spivak “O subalterno pode falar?”.
Cremos que a publicação seja esse momento da passagem da subalternidade para
a superalternidade, do silêncio para o grito, como processo claro de
empoderamento e assunção de voz, em função desta opção teórica e de método,
decidimos pelo descarte de escritoras: sem livros publicados 223; com produções
esparsas, apenas em coletâneas; com títulos publicados postumamente;
portuguesas que apenas estiveram por pouco tempo nos PALOP e com obra
de outra natureza que não seja claramente ficcional. Essa opção restritiva
levou a um decréscimo significativo no número de escritoras, situando o
resultado final em L'afrique ecrite au feminin, ou seja, quase não se
acrescentou nenhum nome aos que já figuravam nessa relação inicial.

Por fim, em termos de obras, houve algum acréscimo no número de títulos


de algumas escritoras, principalmente no que tange às obras publicadas
posteriormente ao ano de 1996. No primeiro momento eliminamos a produção
escrita anterior ao ano de 1935 e dos anos de 2014 e 2015, dada a dificuldade em

222
Entendemos ser necessária uma revisão completa desse problema e pretendemos realizá-la, mas
para este momento não haverá tempo e extensão suficiente.
223
Temos com clareza a visão histórica da importância de algumas escritoras são dotadas dentro de suas
séries literárias, como por exemplo, Noêmia de Souza, que nunca teve livro publicado, mas que é
extremamente cultuada como grande escritora moçambicana, que mesmo assim, ainda figura em alguns
lugares como sendo portuguesa, pois nasceu em Maputo, estudou no Brasil, morando em Portugal teve
que exilar-se na França, após o 25 de abril voltou a morar Portugal onde morreu. Entendemos que o
percurso africano é bastante diverso do português e do brasileiro, sabemos que é impossível relativizar
todas as variáveis que envolveram as ex-colônias do ultramar desde o início das campanhas libertárias
iniciadas em 1961, até a consecução da autodeterminação.

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obter tanto informações muito antigas, como as muito recentes, uma vez que a
bibliografia inicial não alcança esses extremos e pelo fato de que a produção
anterior ao 25 de abril servir apenas de contraponto ao verdadeiro foco de nossa
investigação. Por fim, o corpus inicial foi restrito aos 80 anos de história.

4 – Dados observados

Iniciamos nossas ilações com o documento do professor Tony Simões


da Silvado L'afrique ecrite au feminin224, revisto, corrigido e ampliado no
cotejo com as obras dos pesquisadores Aldónio Gomes, Gerald Mozer e
Manuel Ferreira, formando assim o que trataremos, a partir deste ponto, por “base
inicial de dados”, cujo universo consiste de 134 (cento e trinta e quatro) escritoras
produtoras de 375 (trezentos e setenta e cinco) títulos.

Lembramos que o que se pretende discutir aqui é a evolução da mulher


como autora, dona de uma voz. Buscamos compreender o percurso feminino
de 1935 até 2013, portanto, médias ponderadas estão fora de cogitação, pois
nada indicam e por fim, apenas pasteurizam realidades díspares.

A base dessa investigação dá-se pelo confronto de um discurso intuitivo, que


parte do pressuposto de que no período pós-colonial houve um grande avanço na
participação efetiva da mulher no mercado editorial. Ainda hoje ninguém sabe
exatamente quanto se avançou? Ainda nesse mesmo caminho, em defesa prévia,
não estamos tratando essa questão apenas quantitativamente, mas
qualitativamente, pois os números irão revelar qual é a o caminho, o nível da
participação das escritoras africanas em cada série literária.

A BID apresenta as escritoras de modo sistematizado, em ordem alfabética


de sobrenomes, seguido dos títulos das obras publicadas, com a indicação das
variadas edições e suas formas escritas. Para chegar aos números finais do BID
optamos pelo descarte de: todas as reedições do mesmo título; edições por
casas editoras diferentes e mesmos título com edições em países diferentes.

224
Consideramos o L'afrique ecrite au feminin como o ponto de partida (ou POP) e o seu cotejo com as
obras de Aldónio Gomes, Gerald Mozer e Manuel Ferreira formam a nossa base inicial de dados (ou BID).

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Levamos em consideração, única e exclusivamente, a primeira edição de


cada título publicado. Assim obtivemos os números apontados no gráfico 1 –
autoras x números de títulos publicados:

1% 1% 1% 1% 1% 1%
1%
1% 1 2
1%
3 4
5%
7% 5 6
7 9
12%
54% 10 12
13% 13 15
17 33
143 escritoras
dos PALOP com 357 obras

Gráfico 1 – Universo de 143 autoras com 357 títulos publicados, por número de títulos

Como se vê, os dados obtidos apontam para um predomínio de


escritoras que durante a vida publicaram muito pouco, assim, o gráfico 1
registra a ocorrência de 51% de escritoras com publicação de título único,
14% de escritoras com 2 títulos e 13% de escritoras com 3 títulos publicados,
ou seja, o gráfico 1 revela uma situação em que 78% da literatura publicada
por mulheres tem pouquíssima, ou quase nenhum exercício do processo de
escrita. Diante desse panorama, temos que relativizar os dados, portanto, levamos
em consideração fenômenos semelhantes com o que ocorre com Raul Pompéia ou
Eugênio Nobre, autores de importantes títulos únicos em suas séries, ponderamos
também a importância de autoras somente com obras esparsas, como é o caso de
Noêmia de Souza.

O que nos causa desconforto, sobremaneira, não é a excepcionalidade


com que alguns escritores entram para a história literária, dado o caráter
magistral de suas produções, são essas as gratas exceções à regra. No
entanto, o desconforto não está na sistematização das informações do gráfico
1, mas surge da impossibilidade da generalização da excepcionalidade, pois se
assim fosse, teríamos nos PALOP uma seara de genialidade nunca antes vista

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

na história da literatura, situação utópica, desejável até, mas que,


matematicamente, é inviável.

O gráfico 1 traduz, em números, uma realidade desconfortante, sobre a


qualidade do que se tem produzido até aqui, contudo cumpre sempre lembrar
que o que está em pauta neste momento é o estudo da capacidade e da
oportunidade de penetração das mulheres em espaços dominados pelo
viriarcado.

Confrontados esses números do gráfico 1 subjaz o natural desconforto,


nessa hora pesa-nos demais o fato de sermos brasileiros falando de realidades
estrangeiras, e isso, do mesmo modo, deve ser relativizado, pois a realidade
social e econômica em que nos inserimos, opera, intuitivamente, com a
sensação de números que traduzem uma realidade bastante diferente, assim
compreendido o fato de que são necessárias algumas aparas, relativizando
esses dados de maneira comparativa, assim, partimos para elas.

4.1 - Primeira relativização: as razões imediatas da não similitude das


séries dos PALOP com as séries do Brasil e de Portugal

Para ilustrar o exposto acima, basta uma simples consulta aos números
apresentados no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras 1711-2001 225,
da Professora Nelly Novaes Coelho, para que possamos, positivamente,
identificar a presença de 1924 (mil novecentas e vinte quarto) entradas de
nomes de escritoras registradas na série brasileira. Nesse mesmo volume
encontramos, exemplarmente, como justificativa de nossas elucubrações,
dados relativos a escritoras conhecidas do grande público, como, por exemplo,
no nível canônico, de uma Raquel de Queirós, a constatação de 17 (dezessete)
títulos 226 publicados por ela. Assim, passamos para o nível de escritoras, não
tão canonizadas, parcialmente desconhecidas do grande público, como Luiza

225
Há que se notar a ausência de compilações tão abrangentes e sistematizadas como essa da
Professora Nelly Novaes Coelho ou como a realizada pela Professora Conceição Flores, compondo-se
ambos os trabalhos pedras-de-toque para nossas ilações.
226
Neste ponto, torna-se necessário esclarecer que adotamos os mesmos pressupostos no método para
considerar sobre de todos os autores aqui citados, apenas um título, edições, mudanças de casa editora,
traduções ou seleta dos melhores trabalhos, normalmente serão descartadas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Lobo, registrada com 11 (onze) títulos seus, claro que há também aquelas com
título único, muitas invisíveis, situadas em regiões periféricas, distanciadas
geograficamente, socialmente, economicamente e politicamente sem nenhum
acesso ás grandes casas editoras, como são os casos das escritoras do estado
de Rondônia, por exemplo, que não figuram no dicionário da Professora Nelly
Novaes Coelho, situação que deixa de fora escritoras como Nilza Menezes Lino
Lagos, que tem publicado oito títulos, assim como também se encontram jovens
escritoras com apenas obra única publicada, como é o caso da jovem escritora
Núbia Rodrigues com um título.

A conjuntura observada na série brasileira apresenta-se em situação


análoga na série portuguesa, quando observamos a publicação de Conceição
Flores, o Dicionário de escritoras portuguesas das origens à actualidade,
nele observa-se um elenco de cerca de 2000 (duas mil) entradas. Claro está
que os recortes temporais nas histórias literárias do Brasil e de Portugal
levados a cabo por Nelly Novaes Coelho e Conceição Flores são muito mais
dilatados do que o que estamos realizando nas literaturas dos PALOP, nosso olhar
está circunscrito ao interstício 1935-2013, do qual, nomeadamente, nos interessa a
fração que vai de 1975 a 2013, servindo os períodos anteriores de contrapontos
para o estabelecimento do percurso de desenvolvimento da escrita de autoria
feminina nos PALOP.

Considerados os números apresentados pelos dicionários do Brasil e de


Portugal, naturalmente, intui-se também que a participação das mulheres nesses dois
mercados editoriais possam ser bem representadas por uma curva ascendente.
Sobretudo, se levadas em contra as transformações sociais, econômicas e políticas
de Brasil e Portugal, desde o começo do século XX até os dias atuais. Da mesma
maneira pressentimos que talvez seja semelhante esse crescimento da participação
feminina em anos recentes, nas séries dos PALOP.

Temos que considerar que as séries literárias dos PALOP, ainda em


estágio embrionário, não apresentarão números nem ao menos próximos aos
verificáveis em séries centenárias como a brasileira e a portuguesa, para tanto,
torna-se necessário estabelecer uma reflexão que abarque a evolução per
capta de escritores em seus países; também nessa mesma vaga faz-se

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necessário iluminar esse espaço político, de tensões de gênero: o acesso ao


letramento em seus variados níveis.

Não se pode julgar um livro pela capa, assim como nessa questão de
pensar e investigar a evolução da participação da mulher africana dos PALOP
no mercado editorial de suas séries, somente por uma totalização histórica
geral, para prosseguirmos com nossas ilações, na busca dessa compreensão
faz-se necessário o desdobramento desses dados totalizados por décadas,
compondo o gráfico 2:

obras publicadas por décadas


100

80
357 obras

60

40

20

0
1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000
obras 23 31 39 43 51 75 95

Quadro 2 - obras publicadas por décadas

Ainda, tendo os dados gerais como base, tornou-se necessária mais uma
tomada de posição sobre o método da demonstração do fenômeno literário, optamos
por descartar as obras dos interstícios compreendidos entre 1935 a 1939 e o que
abrange de 2011 a 2013, pelo fato de não comporem décadas completas, o que
levaria a uma representação equivocada de dados, pois o que está em voga não são
apenas os números frios, mas o caminho, o percurso que eles apontam e se assim
não fosse feito levaria a erro, pois não se trata de assunto em que se possa tratar por
médias ponderadas ou por equivalências.

Constata-se, facilmente, pelo gráfico 2, que a curva ascendente das


décadas de 40 e 50, apontem naturalmente para um crescimento mais
acentuado, porém, ainda assim, com baixa produção de títulos, essa pouca

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produção deve ter sua origem na estagnação causada pela Segunda Guerra
Mundial, porque apesar de não ter acontecido conflito em território português,
que havia se declarado neutro, mas mesmo assim essa influência foi sentida
em todo o globo restando muito dessa influência nociva na década de 50 com o
advento da Guerra Fria e o seu contágio mais amplo do que o observado na
Segunda Guerra.

Entre as décadas de 60 e 70, os anos do início das Guerras Coloniais


para Libertação, a curva perde bastante força obviamente, devido aos conflitos
em territórios coloniais africanos, os patamares de publicação fiquem em
apenas 6 títulos entre 1950-60 e, menos ainda, entre 1960-70 com apenas 4
títulos publicados de diferença, não se podia esperar outra coisa em tal
panorama político, social e cultural.

Naturalmente, os primeiros anos de autodeterminação não foram bons


para todas as novas nações, por uma série de motivos que não nos interessa
explorar, percebe-se desses dados, mesmo não subdivididos por países, o
impacto que tiveram os sucessivos anos de guerra civil em Angola e
Moçambique até a década de 1980, demonstrando uma bela reação no último
decênio do século XX e primeiro do século XXI, que é marcado pelo fim dos
conflitos armados internos, como também o fim da Guerra Fria acaba por
contribuir, significativamente, bem como deve ter sua parcela de contribuição o
treinamento dos quadros nacionais em sua autogestão e governança, que,
possivelmente, devem ter alguma responsabilidade, por essa elevação
significativa dos números.

Convém recordar tratarem-se de números totais, não-particularizados,


pois cada série possui as suas peculiaridades, traços característicos, traços
distintivos que, minimamente, merecem ser demonstrados e analisados, pois
cremos que temos definido que o processo de evolução existe e é
mensurável, mas necessita de outras visões para que se possa formar um
quadro completo, aprofundado e mais preciso.

Claro está que os dois primeiros gráficos tratam de generalizações


bastante amplas, que não refletem as individualidades e peculiaridades de
cada uma das séries literárias em estudo, que ainda estamos realizando.

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BIBLIOGRAFIA

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REVISTA DE LETRAS E CULTURAS LUSÓFONAS. Lisboa: Instituto Camões,
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_______. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

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SILVA, Tony Simões da. L'afrique ecrite au feminin - les auteures


lusophones. http://a flit. arts.uwa.edu.au/FEMECalireLU_fr.html. 1999. Acesso em:
2004, 2012 e 2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O FRAGMENTO NA CONTEMPORANEIDADE: POESIA E PENSAMENTO

ILMARA VALOIS BACELAR FIGUEIREDO COUTINHO (UNEB)

Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo:
espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?

(BARTHES, 2003, p. 108)

Considerando o questionamento de Barthes (2003) sobre a escrita de


fragmentos - “no centro, o quê?” - e aplicando ao universo empírico de Ó
(RAMOS, 2008), livro aqui trazido para a discussão, pode-se pensar que o que
há de central e também de periférico na obra são seres-mundos tecidos no
entrelugar de conhecimentos literários e filosóficos, estando emaranhados por
uma poética que deixa antever, no pensamento e na sua anteface linguístico-
gramatical, interações e conflitos patentes a ambas as áreas do conhecimento,
enquanto as faz atravessar por determinantes advindos das artes visuais e
seus apelos plásticos. Na obra, o centro se move, ocupando espaços à roda,
enquanto a periferia se centraliza, e ambos, palimpsestamente arquitetados
pelo movimento que faz a poesia do pensamento e o pensamento em poesia,
performatizam arranjos por entre os vazios das linguagens.
As migalhas, então, constelam universos erigidos por meio de fissuras e
contatos situados em limiares, o que alavanca uma reflexão acerca de campos
de saberes diferenciados, postos em negociação e conflito, ao tempo em que
elaboram um conhecimento que não precisa se envergonhar de sua veracidade
ficcional (VAIHINGER, 2011). Ao desenhar encruzilhadas segundo pontos
vários, a obra nos brinda com um cotidiano envolto em trivialidades, sonhos,
delírios, reflexões; uma natureza viva e seus apelos erigidos por “alfabetos
físicos” (RAMOS, 2008, p. 29); um ser humano holisticamente complexo; e uma
crítica feroz aos lugares de (des)contatos que fazem a razão ocidental.
Elegendo o real da (ir)realidade fictícia e suas perspectivas desagregadoras de
certezas, trata-se de uma escrita que convoca, para a montagem da crítica
cultural em destaque, recortes, ruídos, vestígios de linguagens que se
(des)(re)velam, bem ao gosto do contemporâneo (AGAMBEN, 2013).

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É desse lugar poroso, fragmentado, que Ramos tece sua “sustentação


estético-filosófica” (RENAN JI, 2011, p. 115), arrebanhando materiais concretos
de vocação plástica para contaminar a filiação verbal da obra, também híbrida,
por agregar aspectos das artes visuais. Dialogam, então, filosofia e literatura,
materializando aquilo a que George Steiner (2012) denomina “poesia do
pensamento”, quando destaca o caráter metafórico dos discursos, a presença
da poesia em qualquer atividade pensante possível na estruturação do
conhecimento. A exemplo do que assevera Richard Zenith, em introdução ao
Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, pode-se considerar Ó, não como
um livro, “[...] mas a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em
plena ruína, o livro-sonho, o livro desespero, o antilivro, além de qualquer
literatura” (PESSOA, 2006, p. 8)
Logo no primeiro ensaio, como parte das discussões empreendidas
acerca de uma possível genealogia ficcional da linguagem, pode-se ler uma
crítica aos pensadores que realizam seu torpor indagativo segundo um sistema
de códigos designativo e gregário, universo metafórico incapaz de permitir
entendimentos totalizadores das “verdades” buscadas, principalmente quando
há propensão por perpetuar lugares discursivos excludentes. Há, então, a
indicação de que, em nossas trajetórias filosóficas, persistem questões que se
repetem num movimento tautológico incapaz de gerar pensamentos próprios e
apropriados para o fortalecimento da condição humana, porquanto geram
reflexões a partir da redução ao conhecido. Assim, “Sem conseguir escolher se
a vida é bênção ou matéria estúpida”, precisam assumir a “via intermediária” de
explicações que não explicam nunca e somente podem oferecer conforto a
partir de “uma vaga e humilde dispersão dos seres” (RAMOS, 2008, p. 17).
Uma tal posição discursiva se aproxima dos estudos realizados por
Nietzsche acerca do que Mosé (2005) destaca como sua grande política da
linguagem, a saber: a necessidade de se reinventar o pensamento, a
linguagem, por meio da desmontagem do edifício conceitual erigido a partir do
absoluto, da essência, da consciência, do sujeito, em detrimento do corpo, da
intensidade da vida. Coadunando com tais predicativos, atravessa toda a obra
Ó um questionamento acerca do entendimento da linguagem como abrigo,
como ficção/invenção destinada a criar um mundo idealizado pela necessidade

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de comunicação, e cujo instinto coletivo foi violentamente imposto como


imprescindível à sobrevivência. Ignorando uma gramática em que sujeito e
predicado fossem compostos pelas coisas mesmas, foi deliberado criar esse
abrigo defensor da finitude. Um abrigo ficção que, tendo seu valor de verdade
primordial elevado acima de tudo e de todos, atenta contra a vida, como já
havia ressaltado Nietzsche (1999, p. 72):

A significação da linguagem para o desenvolvimento da civilização


está em que, nela, o homem colocou um mundo próprio ao lado do
outro, um lugar que ele considerou bastante firme para, apoiado nele,
deslocar o restante do mundo de seus gonzos e tornar-se senhor
dele. Na medida em que o homem acreditou, por longos lances de
tempo, nos conceitos e nomes das coisas como em aeternae
veritates, adquiriu aquele orgulho com que se elevou acima do
animal: pensava ter efetivamente, na linguagem, o conhecimento do
mundo.

O entendimento do mundo dos signos, como filtro destinado a proteger o


próprio ser do devir, do tempo, da mudança e da morte diz da vocação cultural
humana para criar uma identidade redutora capaz de oferecer um saber-poder
destinado a ser, por extensão, posse e controle (MOSÉ, 2005, p. 99). Seguindo
essa linha de raciocínio, pode-se ler, nas palavras que compõem o antilivro Ó,
uma reflexão acerca das múltiplas linguagens e suas outras formas de
manifestação/abordagem, o que fica claro logo no início do texto, em “1.
Manchas na pele, linguagem”, quando o narrador, assumindo a primeira
pessoa, traça uma reflexão acerca dos pelos que caem em rigorosa geometria
de sua barba, formando círculos. A linguagem é, então, pensada com base na
arquitetura corporal, em que manchas são tomadas como uma espécie de
escrita grafada na pele por desconhecida língua interna, proveniente de gens
anônimos (RAMOS, 2008, p. 12).
O narrador, pensando na perfeição geométrica dos círculos em sua face,
elabora o seguinte questionamento: “Em que língua interna conversaram?”
(RAMOS, 2008, p. 12). Há, nessa breve divagação, destaque para a existência
de linguagens frequentemente invisibilizadas, porque valoradas com base em
códigos sacralizados por uma gramática destinada a conceder coerência,
unidade e sentido fixo ao ser-mundo, tão mais diverso do que qualquer código
possa abarcar. Trata-se de uma solicitação a que se quebrem as cadeias

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sintático-semânticas construídas para as linguagens (e suas especialidades), a


fim de que haja uma abertura ao que foi considerado abjeto, logo, inadequado
ou desprezível ao conhecimento clássico e suas destinações excludentes
erigidas por um logos, pretensamente, agregador.
Respondendo a uma espécie de megalomaníaco desejo de abarcar
totalidades segundo um agenciamento representacional falho, nós, seres
humanos, na condição de criadores e usuários/consumidores da linguagem e
seus desdobramentos, conduzimos ações discursivas na direção de um saber-
poder, inebriados pela pequenez de nossas percepções e conveniências,
muitas vezes, reduzindo a linguagem a uma ferramenta extensiva da miopia
que nos constitui. Toda (não)matéria existente no universo, tomada de assalto
por nossa vocação denominativa, logo se torn(ou)a linguagem reduzida à
imagem e semelhança do que somos. Como diz o narrador de Ó (RAMOS,
2008, p. 20): “mais que comer, correr ou flechar a carne alheia, mais do que
aquecer a prole sob a palha, nós nos sentamos e damos nomes, como
pequenos imperadores do todo e de tudo”.
No veio das tessituras elaboradas nesse primeiro ensaio, com
ressonância que se faz notar no decorrer da obra, fica patente que, ao nos
aproximarmos dos seres-mundos munidos de uma ferramenta arbitrária em
relação à significação das realidades a serem compreendidas, pelo menos
duas possibilidades de leitura se impõem: a realização de um retorno à ideia
causal, mantendo a ilusão de que sabemos algo das coisas mesmas, tanto que
podemos nomeá-las, congelando seus sentidos, quando temos apenas
metáforas mortas, ilusão de verdade; ou uma aproximação incompleta a partir
de “estojos vazios”, que não pode nos oferecer nenhuma certeza, colocando-
nos a necessidade de conhecimentos tão ambíguos e incompletos quanto as
múltiplas realidades que procuramos abarcar (NIETZSCHE, 1999).
Conforme Nietzsche (1999), uma linguagem capaz de coadunar com as
forças afirmativas da vida estaria por ser inventada, seria algo por vir,
ratificando a impossibilidade imanente à linguagem para criar qualquer sentido,
caso queira edificar-se a partir das mudanças ininterruptas características da
vida, o que também fica patente na obra de Ramos (2008). Em ambas, o
sentido figura como algo que desliza, impedindo a fixação pretendida por

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qualquer gramática lógico-racional. A palavra, sendo máscara que “esconde


uma pluralidade, um fluxo, uma violência” (MOSÉ, 2005, p. 104), faz-se móvel,
vazada, imprecisa, solicitando movimentos de interpretação descentralizados,
inclusive na direção de implodir valores e critérios absolutos. A morte das
ideias niilistas (NIETZSCHE, 1999), então, estaria no redirecionamento das
palavras ordenadoras do pensamento humano, em direção às (im)potências da
vida, da vida como ela é, lembrando Nelson Rodrigues.
Nesse sentido, a linguagem de “pedacos e destroços”, sugerida por
Ramos (2008), personifica, em algum nível, tais questões, no que coaduna com
Borges e sua enciclopédia chinesa, claramente voltada a teatralizar a
coexistência rizomática de pensamentos, palavras e categorias conceituais,
segundo ordenações diferenciadas, mesmo espantosas, para o logos ocidental,
e que Foucault (2007, p. XIV-XV) caracteriza como “[...] espaço solene, todo
sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos e emaranhados, de locais
estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações [...]”.
Nesses locais de estranhamento, habitam os destroços-linguagem que
fazem o assombro em textos contemporâneos, remetendo-nos a palavras
voltadas a questionar os já desgastados processos racionais de nomeação. De
fato, como sugere Blanchot (2010), nomear submete as coisas às palavras,
fulminando um antes somente possível de ser fabulado pela enunciação de
palavras outras que sendo elas as mesmas se reinscrevem como sentido.
Dessa forma,

[…] quando eu falo, reconheço que somente existe palavra porque o


que ‘é’ desapareceu naquilo que o nomeia, fulminando para tornar-se
a realidade do nome: a vida desta morte, eis o que é admiravelmente
a palavra, a mais ordinária e, num nível mais elevado, a do conceito.
Resta no entanto que – e seria cegueira esquecê-lo e covardia aceitá-
lo –, o que ‘é’ precisamente, desapareceu: algo estava, que não está
mais aí; como reencontrar, como recuperar em minha palavra, esta
presença anterior que precisa excluir para falar, falar dela?
(BLANCHOT, 2010a, p. 77)

A escrita literária pode ser essa “fala”, em que as palavras, desafiando


tanto a cegueira quanto a covardia, inauguram dizeres desprovidos de qualquer
garantia de entendimento: linguagem que devora as próprias entranhas para
existir. Pode-se asseverar que o texto de Ó se insere nessa presença-ausência

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protagonizada no universo das palavras, quando oferta uma “fala” disforme,


incompleta, intervalar, epifânica, em total desordenação, caso queiramos
cotejá-la com categorizações mais tradicionais.
Significar a diversidade do ser-mundo sempre foi tarefa desafiadora,
inclusive para a arte literária, cuja existência foi moldada no entrelugar
constelador, mas não conciliador, de paradoxos. Para essa tarefa, entretanto,
não há uma ferramenta prontamente disponível, como está ressaltado em Ó, e
se quisermos ir além da contemplação, devemos criá-la. Mas “de que é feita
esta ferramenta?” (RAMOS, 2008, p. 19 - grifo do autor), pergunta o narrador.
Como resposta temos a sugestão de que “é com nosso sopro que nos
dirigimos a tudo” (RAMOS, 2008, p. 20), é lançando mão do limitado vento de
nossa língua que buscamos nomear o “verdadeiro” vento. Entretanto, para
criarmos uma ferramenta destituída da já sacralizada vocação identitária
engessante dispensada às palavras e por extensão aos conceitos, seria
necessário tomar a natureza como “uma gramática viva, um dicionário de
musgo e de limo, um rio cuja foz fosse seu próprio nome” (RAMOS, 2008, p.
20).
À pergunta “de que é feita essa ferramenta? (a linguagem)” (RAMOS,
2008, p. 19), une-se uma reflexão acerca da composição mesma das coisas e
de como nós as denominamos à imagem de nossas limitações e
etnocentrismos. Diferentemente de uma gramática voltada ao vazio significante
que cada coisa ou ser carrega em si, buscamos forjar um modo de
compreensão claramente fundado em totalidades parciais, o que abafa a
condição matérica do mundo, somente reconhecível por meio de linguagens
voltadas a perceber texturas, superfícies, caracteres epidérmico-plásticos
inerentes aos “alfabetos físicos” que compunham o real, o imaginário e o
simbólico de outras realidades.
A tarefa épica de conhecer, nominar, classificar o mundo, imprescindível
ao homem societal (MAFFESOLI, 2007), cria categorizações arbitrárias,
projetando uma voz que subjuga o significado da própria vida, na tentativa,
sempre incompleta, de criar uma existência compreensível, mensurável,
controlável. Aqui uma pergunta se impõe: poderia o ser humano suportar a vida
sem comunicar suas vitórias e dores, sem a anestesia das palavras? Seria

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

possível essa linguagem outra, essa gramática própria e apropriada? É


possível que sejamos matéria sem sermos simultaneamente linguagem? Como
nos questiona o narrador: “Matéria ou linguagem?”. E, sejam quais forem as
respostas, elas talvez nos coloquem frente a uma tautologia, nada inédita na
história do pensamento humano, cuja redução parece impossível. Parte mínima
de um universo que se renova por destroços, matéria ou linguagem, somos
perecíveis e eternos, compomos o adubo que serve de alimento ao devir da
existência e, por isso mesmo, somos extremamente úteis e descartáveis à vida.
Idealistas, marxistas, ou seja qual for nossa postura filosófica, somos
“amálgama de carne e de tempo” (RAMOS, 2008, p. 15), sendo “amálgama
aflito de palavras” (RAMOS, 2008, p. 17).
A consciência da finitude, aliada à sede de imortalidade, guarda a
potência de projetar-nos para além da podre matéria que nos constitui, numa
busca insana e ininterrupta por ultrapassarmos a condição de “espectadores de
nossa própria decrepitude, de nossa fusão indeterminada na matéria” (RAMOS,
2008, p. 17), o que pareceu possível, ao menos, levando em conta o nosso
determinismo autoral, por meio da linguagem. Na condição de seres
vorazmente consumidores de vida, temos, na efemeridade da carne, na ação
voraz dos vermes, na transmutação do corpo em outros corpos, uma
continuidade silenciosa em demasia para acalmar nossos espíritos apegados
ao mundo. Na linguagem, projetamo-nos no domínio do que nos cerca,
cravando nossos nomes na sinuosa linha dos tempos. Assim, somos palavras
imperiosas e vamos murmurando nomes confusos aos seres, “fingindo que são
homogêneos e contínuos” (RAMOS, 2008, p. 18).
Palavras são matérias renováveis e podem funcionar sob o mesmo
princípio que rege a (de)(re)composição dos universos e seres (orgânicos e
inorgânicos) em suas fragmentares (dis)junções: o princípio da mudança.
Palavras formam correntes vorazes de acolhimento e destruição, destruição e
acolhimento, carne devorada e (re)incorporada à carne, mas, submetidas à
sanha autoritária de homens-mulheres-deuses-deusas atormentado(a)s por
espelhamentos fantasmagóricos alicerçados no desejo, nada neutro, de uma
linguagem capaz de promover unidade, desenvolvimento e progresso, que
acabam por forjar uma humanidade ilusória, desumana. Cooptadas com base

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em nossas limitações, moldam-se a regras causalistas, compondo um


iluminado mundo de ideias a partir do qual toda a obscuridade perecível da
matéria-corpo é desprezada. E não obstante, é o processo de redução do
medo, da pluralidade, do conflito, voltado a naturalizar arbitrariedades, o motor
das cisões e exclusões geradas no cerne de sua criação, o que impregna o
caráter coletivo, identitário e cultural, que lhe serve de justificação e base, de
uma paradoxal (anti)funcionalidade.
Em Ó, a linguagem é comparada a um vírus capaz de substituir-se ao
real, quando é destacada a propensão desse mesmo vírus para se colocar
como célula sadia, sacrificando qualquer eco contrário à sua proliferação. A
linguagem, então, é significada como ferramenta de exclusão, “[…] pois é
próprio da mais estranha das ferramentas, da mais exótica das invenções (a
linguagem), parecer tão natural e verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou
uma cusparada. Este é o seu fundamento, sua, digamos, astúcia, a de
substituir-se ao real como um vírus à célula sadia” (RAMOS, 2008, p. 23). E
uma vez contraído esse vírus, não há retorno, de forma que, como ressalta o
narrador, tão mais importante que conhecer sua genealogia é problematizar as
cisões decorridas de seu uso, posto que uma de suas maiores tarefas, aquela
destinada a domar o “caos” da vida, da decrepitude da matéria, falha
justamente quando estamos à mercê desse “caos”:

Nesse ponto há uma conclusão algo paradoxal que se impõe - será


que não fizemos tudo ao contrário ao duplicar o poente e a cor do
mar sem que isto sirva em nada para nos poupar da dor física
verdadeira? Não seria melhor uma linguagem que servisse apenas
para iludir a rebelião e o mau funcionamento do corpo, de forma que
nossa relação com a febre alta, a dor de dente ou a cólica pudesse,
agora sim, ser apaziguada ao pronunciarmos o nome de nossa
doença? Então para algo serviria. Mas parece que dirigimos, ao
contrário, nosso esforço à parte livre e não linguística de nossa
relação com o mundo, poupando a parte pânica, corpórea e dolorida -
ali não há linguagem e é justamente quando mais precisamos
(RAMOS, 2008, p. 27).

Pode-se ressaltar, na eficaz cisão operada pela linguagem, uma brecha


de fracasso presente na transgressão de fórmulas e modelos, embora fosse
próprio das ciências da linguagem, até recentemente, tomar e fazer proliferar
os processos de comunicação como desprovidos de maiores complexidades

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ideológicas, inconscientes, classistas. Mesmo que nos constituamos como


“ventríloquos” (RAMOS, 2008, p. 30), a fazer ecoar uma cadeia de sons alheios
ao nosso corpo, considerando a palavra como “figuração de um estímulo
nervoso em sons”, princípio da razão (NIETZCHE, 1999, p. 55), houve o
transbordamento de um corpo que nunca deixou de (se)(re)significar, apesar
dos pesares, de forma que as ficções de verdade, erigidas em torno do ser-
mundo civilizado e racional, possível a partir da nossa maior ficção - a
linguagem -, permaneceram atravessadas por esquecimentos potencialmente
aptos a irromper outros sentidos.
Como ação parricida, a escritura de Ramos (2008) questiona os pilares
fundacionais da linguagem, por exposição das abjetas vísceras que compõem
suas urdiduras, movimento a partir do qual é feita a fabulação de uma outra
linguagem, criada por encaixes discursivos atravessados por sete atos
linguístico-epifânicos (do primeiro ao sétimo Ó), em que o escrito/dito prescinde
de qualquer princípio de coerência conhecido. Trata-se, então, de um “grito”,
“sussurro”, “canto”, “zumbido”, “hino”, “zurro”, que talvez tenha a intenção de
ser choque capaz de nos deixar sem palavras, como sugere o narrador, ao
tratar da existência de uma etapa anterior à linguagem que adotamos: “Quando
entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e ficamos,
literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida da
nossa natureza” (RAMOS, 2008, p. 24).
Os sete fragmentos “Ó” perpassam a obra, fazendo ecoar, no universo
que faz a linguagem fora da linguagem, palavras, silêncios e rumores, como
um canto desconexo, em que os sentidos deslizam indóceis, sendo parte do
“contestado” território da literatura contemporânea (DALCASTAGNÈ, 2013) e
suas multiconfigurações. Cada fragmento, agregando polissemias errantes,
faz-se interstício por meio de palavras suspensas pela força dissimulada de
cortes materializados como canto linguístico de coerência desordenada; um
“canto de abismo”, que está na base dos seres e das coisas, atravessados por
ambiguidades e vazios, como nos diz o narrador, numa tentativa de significá-lo:
“[...] então alguma coisa como canto sai de alguma coisa como boca, alguma
coisa como um á, um ó, um ó enorme, que toma primeiro os ouvidos e depois
se estende pelas costas, a penugem do ventre, feito um escombro bonito, um

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naufrágio no seco, [...]” (RAMOS, 2008, p. 59). Há, então, uma predisposição
por emaranhar mundo interior e exterior, numa espécie de transe linguístico-
vivencial irredutível a qualquer pacto societal conhecido, bem como a
propensão por constelar fragmentos discursivos em “estojos vazios”
(NIETZSCHE, 1999).
Questionando ou ironizando a apropriação que fizemos das palavras,
porquanto as destinamos ao controle das consciências, tranquilizando-nos
frente ao terrível burburinho que faz o viver, o que está arquitetado na
linguagem “Ó”, sem sugerir qualquer saída, é um canto que não deixa de gritar
a necessidade de uma outra política para a linguagem. O livro expõe a força
nociva patente à invenção e uso de uma ferramenta destinada a escravizar
mentes e corpos levados, por livre e espontânea vontade - como se diz no
senso comum -, a arquejar amedrontados frente ao trovão do Uno, do logos, de
um deus inventado para sabotar a própria criação. No “Sexto Ó” (p. 203-206),
há menção a uma vida que prepara sua vingança para quem a quer cantar,
sendo tomados por traidores aqueles que a desejam em sua potencialidade
desaquietante. A despeito de toda a sanha continuadora, fica patente a
necessidade de libertarmos nossos fantasmas, a nós mesmos e a nossos
deuses da pesada carga das interpretações institucionalizadas:

[...] aqui viemos para olhar de frente e não para morrer de medo,
viemos para a grande transfusão de um peito coletivo, para a mordida
na maçã de uma glande mútua e feminina, viemos para, desarmados,
querer, querer, para a luz vermelha, não essa mortiça e bege, cor de
fórmica, viemos para livrar nosso defunto de seus cravos, de suas
vestes de domingo e levá-lo de volta para a rua onde morava, para
espantar seus corvos, viemos para beber com ele rindo de tantas
flores (RAMOS, 2008, p. 205-206).

O canto Ó pode ser significado a partir desse desejo de quebrar (quem


sabe apenas ironizar) os pedestais da identidade, sugerindo livrar “nosso
defunto de seus cravos”, por meio de conhecimentos edificados no caos e não
na causalidade perpetuadora de uma verdade, de onde advém a voz
dissonante e fragmentada do narrador, que não pode achar equivalência entre
o sopro da boca e o nó no peito, no topo do estômago, “essa vontade de cantar
e vomitar ao mesmo tempo [...]” (RAMOS, 2008, p. 204); um canto-vômito,

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canto de metamorfoses constantes, que pode falar para além do temor, para
além da “linguagem”.
Para finalizar, considera-se que Ó, por meio de uma montagem de
linguagem fragmentada, metonímia da reivindicação patente à necessidade de
uma nova política para a linguagem, cumpre a tarefa de gritar, para uma
sociedade ainda fixada na positividade racional, o que ficou excluído, ou
marginalizado, em nossas relações com o mundo: a matéria pulsante de
nossos corpos efêmeros e agenciados por determinantes mutáveis próprios;
nossos dejetos incontornáveis à coletividade e à vida prática; nossas paixões e
crenças instintivas, primitivas e alheias às verdades metafísicas que acolhemos
(ou descartamos); nossa mutabilidade sufocada por um “eu” coerente e
racional. Por esses caminhos, mostra que cabe desautorizar, transformar,
mesmo implodir, palavras e conceitos, para, a partir dessa implosão, constelar
os estilhaços, os pedaços, os destroços, as cinzas a partir dos quais uma outra
linguagem (consciência, sujeito, literatura) poderá ser possível.
No bojo da caracterização de uma literatura contemporânea, pode-se
considerar que a ordem do fragmento é a ordem da itinerância, tanto na forma
como as escritas vão se moldando lacunares, nômades, imprevisíveis, quanto
na propensão por solicitar leituras sediadas no entrechoque das
(im)possibilidades de sentidos determinados a priori. No veio do enraizar
indisciplinado que vai amalgamando a diversidade caleidoscópica de temas,
discursos, pontos de vista, formas e linguagens, descortinam-se performances
desviantes que escapam a categorizações compreensivas mais lineares,
ratificando que poesia e pensamento tendem a agregar uma incompletude
carregada de horizontes limiares, de multiplicidades de (não)sentidos.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius


Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2013.

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla


Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita - 3: a ausência de livro, o neutro o


fragmentário. São Paulo: Escuta, 2010.

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DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território


contestado. São Paulo: Editora Horizonte, 2012.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências


humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007
(Coleção Tópicos)

MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-


moderno. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2007.

MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2005.

NIETZSCHE, Friederich. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres


Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 1999.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego: composto por Bernardo Soares,


ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.

RAMOS, NUNO. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008.

RENAN JI. A escrita plástico-poética de Nuno Ramos: dentre as artes a escrita.


In: OLIVEIRA, Alexandre, et all. Deslocamentos críticos. São Paulo: Laboratório
online de crítica literária, Núcleo de audiovisual e Literatura, Itaú cultural: Babel,
2011. Vários autores, p. 114-128.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2 ed. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. (Coleção contemporânea: filosofia,
literatura e artes)

STEINER, George. A poesia do pensamento: do helenismo a Celan. Trad.


Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio d’água editores, 2012.

VAIHINGER, Hans. A filosofia do como se: sistema das ficções teóricas,


práticas e religiosas da humanidade, na base de um positivismo idealista.
Tradução de Johannes Kretschmer. Chapecó: Argos, 2011.

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UM MODO DE ESTAR ENTRE AS ILHAS E O COSMOS:


A POÉTICA DE FILINTO ELÍSIO

RAQUEL APARECIDA DAL CORTIVO 227 (USP/FAPEAM/UFAM)

A obra do poeta, romancista e cronista cabo-verdiano, Filinto Elísio,


transita entre temas de cor local, que traduzem um modo particular de estar no
mundo, e temas cujo foco recai sobre aspectos existenciais e ontológicos. A
tensão entre esses dois polos atua como elemento de criação norteador da
poética do autor, o que resulta na escrita marcada pelo movimento contínuo,
pelo trânsito de temas e formas, pelo reconhecimento da multiplicidade e da
polifonia como respostas às inquietações do poeta. Pretende-se exemplificar
como esses polos se apresentam em tensão na obra do autor a partir da leitura
de poemas do livro Me_xendo no baú. Vasculhando o U.
As partes que compõem esse livro guardam analogia com os cantos da
epopeia, sobretudo se for considerado o jogo sonoro do título da primeira parte
“Ó_de_ceia das ilhas”, cuja referência imediata é a Odisseia. Portanto, embora
apareça a referência à terra natal, as ilhas de Cabo Verde, insinua-se também
uma dicção universal, pela recuperação do cânone ocidental e pela referência
ao tema da viagem, colocando o sujeito lírico entre as ilhas e o mundo.
Os processos de identificação ilha/sujeito, de referência à Odisseia e,
portanto, a Ulisses (citado textualmente, na epígrafe da primeira parte do livro),
aludem ao que João de Melo (MELO, 1999, p. 66) denomina complexo de
Ítaca, “sonho de Ulisses, do retorno à consciência da ilha como origem,
destino, identificação e identidade do homem insular”. Tais aspectos
sobressaem, por exemplo, no poema San_tiago:

por primeira
(antes do verbo)
última te quer_ia
tiago profa_no
ao sabor da carne;

louvo-te homem

227
Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas em Língua Portuguesa, da FFLCH-
USP, sob orientação da Professora Doutora Simone Caputo Gomes; bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM); Professora da Universidade Federal
do Amazonas.

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como um to_milho
pão que sai do for_no
e tosta_do
no aguar da fome;

de tanta boca
sugar teu corpo
teus me_andros
tuas grutas
lamber teus poços
demo_rar no osso
e no caroço;

morrer sempre
aos teus montes
serras e cutelos
morrer às achadas tuas
e fajãs querendo ao verde
(ó minha festa!)
morrer ao teu regaço;

(lamber-te à fome
com ânsia mais que à fome)

com ciência que suga


essência do S
de sant-o
e de pecad_o;

diz-me das especiarias


com que te como
ó portentoso
diz-me dos tem_peros
com que te de_voro
meu apolo
(antes do verbo)
surrura-me tudo;

o que me cani_baliza
e me incendeia à vida:
ser teu filho
e da poesia...
(ELÍSIO, 2011, p. 16)

Os versos parecem delinear um movimento circular de eterno retorno à


origem, semelhante ao caos original e à coincidência dos pontos de partida e
chegada na figura do círculo que perfazem um intercâmbio infinito: “por
primeira/(antes do verbo)/última te quer_ia”, dizem os versos.
Além disso, observa-se certa ânsia de ser, pois o eu-lírico declara “o
que me cani_baliza/e me incendeia à vida: ser teu filho e da poesia”. Portanto,
a origem, “tiago profa_no”, a ilha de Santiago e a poesia definem o ser, já que
lhe (cani)balizam a vida, ou seja, aproveitando a ambiguidade da fratura da
palavra pelo sinal sublinear ( _ ) ou underline, balizam os caminhos, assinalam

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os canais navegáveis para indicar os rumos a seguir, ou, por outro lado,
restringem e limitam.
O poeta recorre à palavra potencializando-a, seja na fragmentação
gráfica, seja na exploração da ambiguidade simbólica de cada palavra, como
ocorre, na primeira estrofe, com os versos finais: “tiago profa_no/ao sabor da
carne”. Estabelece-se, assim, a tensão entre o sagrado e profano, cria-se uma
cisão que não é excludente. A sexta estrofe do poema parece corroborar tal
leitura, uma vez que condensa na sinuosidade da letra “S”, reiterada sonora e
graficamente, a ambivalência do humano entre a santidade e o pecado: “com
ciência que suga/essência do S/de sant-o/e de pecad_o”. A ambivalência e o
trânsito dos significados ficam reforçados pelo intervalo semântico conseguido
graças ao jogo e interação entre o vocabulário da língua portuguesa (“s” de
santo) e da língua inglesa (“s” de sin/pecado).
E ainda, evidencia-se o caráter visceral da ligação entre sujeito-lírico e
a ilha, uma vez que querer “ao sabor da carne” pode equivaler ao desejo por
todos os aspectos constitutivos tanto do ser desejante quanto do ser desejado.
Revela-se um desejo de conhecimento totalizante e profundo, já que a carne
sugere o que há de mais profundo e íntimo no ser humano, vide expressões
populares como “sentiu na carne” ou “doeu na carne”.
A partir desse aspecto, desdobram-se as metáforas da alimentação
para estabelecer a cada estrofe uma conexão mais intensa entre o “eu” e a ilha
que completa e corresponde ao desejo do sujeito, já que é pão para a fome
(“pão que sai do for_no/e tosta_do/no aguar da fome”). Na terceira estrofe,
torna-se mais evidente o tom erótico apenas insinuado na primeira estrofe. A
referência ao corpo e aos verbos sugar, lamber e demorar compõe e reforça tal
sugestão, que se adensa com a descrição topogeográfica: meandros, grutas,
poços.
A descrição continua na quarta estrofe e reafirma o erotismo na
referência à morte, uma vez que remete à complementação absoluta pela
união desejante/desejado, resultando na “pequena morte” (orgasmo) do
encontro/reencontro. Assim, o relevo da ilha também é percorrido
prazerosamente até a exaustão, nada deixa de ser enumerado e o
reconhecimento absoluto manifesta-se no gozo: “morrer ao teu regaço”.

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Entretanto, morrer também pode referir-se ao retorno ao útero, à terra-mãe, à


origem, aspecto pelo qual se reforça o caráter recíproco de correspondências
entre o eu-lírico e a ilha (“diz-me das especiarias/com que te como”; “o que me
cani_baliza”).
Os versos citados sugerem ainda certa celebração nos moldes
referidos por Julio Cortázar, dizendo de outra forma, certa “explicação lírica”
das ilhas. Segundo Cortázar, “cantar o ser de alguma coisa, supõe
conhecimento e, na esfera ontológica [...], posse” (CORTÁZAR, 2011, p. 98),
cujo sentido é corroborado pela expressão “te quer_ia”, no terceiro verso, ou
“(lamber-te à fome/com ânsia mais que à fome)”, e pela invocação a Apolo,
deus inspirador da poesia e das artes na mitologia grega, reiterada pela
presença do possessivo (“meu apolo”) no que diz respeito à ânsia poética.
Percebe-se, ainda, o que Cortázar chama de característica comum a todo
poeta: “a ânsia de ser cada vez mais. De ser por agregação ontológica, pela
soma de ser que recolhe, assume e incorpora a obra poética em seu criador”
(CORTÁZAR, 2011, p. 99).
Com frequência, tal ânsia poética manifesta-se, na obra de Filinto
Elísio, como um “querer”, como fome insaciável também em outros poemas
dedicados às ilhas, a exemplo do poema Mai_o:

os astros
como as imperceptíveis poeiras
arfam de um alado sono
sina das coisas levi_tantes
(de tudo afinal ser sus_penso)

a voz que (ao verbo) começa a cria_ção

– porque botaram a maçã nisso –


proibida & apetecida no corpo
na gástrica matéria do desejo
são tão límpidas as águas de maio!

(e fizeram-nos frágeis do querer)

persistem em mim ainda todas as fomes


querem de mim ainda as transgressões
e as texturas de mai_o & no de_lírio
dos aromas que (ó Rimbaud) me ressus_citam
numa estação in_fernal...
(ELÍSIO, 2011, p. 20)

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Apesar de fazer referência à ilha do Maio, nota-se que apenas


aspectos subjetivos são ressaltados no poema. A ilha, sob esse aspecto, atua
no despertar das sensações enumeradas das quais o querer, o desejo, torna-
se central para a expressão do eu-lírico.
Há também nos versos um movimento em torno do caos, os astros, o
desejo, as transgressões e, por fim, a referência a Rimbaud, o símbolo de
todas as transgressões. Tais traços suplantam inclusive o caráter edênico
sugerido pela maçã (“– porque botaram a maçã nisso –”), atribuindo-lhe o
aspecto negativo do pecado e da interdição do desejo. A voz aparece como
insuficiente para aplacar o desejo, portanto a palavra, o verbo, não atende ao
anseio do poeta que declara: “persistem em mim ainda todas as fomes”. Nesse
sentido, fica sugerida uma necessidade de ultrapassar os limites que, na
impossibilidade física “(e fizeram-nos frágeis no querer)”, são transpostos pelo
delírio do verso.
Outro traço da poética de Filinto Elísio é a inquietação, traduzida na
recorrente presença de “coisas levitantes”, que se movem: astros, poeira, viagem
etc. Dessa forma, desenha-se um movimento oscilante que não se faz
exclusivamente tendo a ilha como centro e permite ao poeta-navegante entregar-se
também ao prazer da descoberta de outras terras e da poesia, ao prazer de
canibalizar outras terras, as próprias ilhas e outros textos:

[...] Às vezes, como ouvira Ulisses em pura odisseia, cantam


sereias que nos encantam de morte. Outras vezes, como
também fizera ele a tais cantares haveria de se amarrar ao mastro e
seguir viagem. Mas poetas, mais que navegantes, ides para os
profanos encantos da beleza. Gozemo-las, as ilhas. Fome de
comê-las. Sede de bebê-las. Ó de ceia das i_lhas... (ELÍSIO,
2011, p. 15).

Tal mobilidade do sujeito lírico ilumina-se com a leitura analítica de


Simone Caputo Gomes, quando ressalta que:

a deambulação do poeta, qual Baudelaire em Paris ou Cesário a


vislumbrar “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo, nunca o
desenraiza da sua terra, Cabo Verde, chegando a dedicar passagens
reverenciais (além de a seus escritores ilustres) também às tradições
fundadoras como ‘Patrimônio imaterial’ (GOMES, 2012, p. 249).

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O que se confirma com a última parte do livro Me_xendo no Baú.


Vasculhando o U, intitulada “Fan_dengo bom”, dedicada aos ritmos cabo-
verdianos: la_dainha, mor_na, cola_deira, ba_tuku, ta_banka, ban_deira, cola
son jon, ma_zurca, funa_ná, f_ado, cada qual intitulando, por sua vez, um
poema. Da mesma forma como ocorre com os nomes das ilhas, o autor vale-se
dos ritmos para situar uma origem identitária, referir-se à terra natal, sem,
contudo, limitar-se à expressão localizada em um único ponto, já que a
identidade do arquipélago cabo-verdiano se expressa como plural228. Portanto,
constituintes do ser, os espaços geográficos e suas manifestações culturais
acompanham o sujeito em sua peregrinação.
A proposição/epígrafe da última parte do livro manifesta o olhar
aglutinador, apropriado à última seção do livro, em tom de conclusão, mas,
sobretudo, revela um modus operandi do próprio autor, cujos versos parecem
transfigurar um desejo de abarcar o cosmos e as ilhas de modo indissociável:

Tudo é música. O silêncio da música. O instante que canta. O


tempo que encanta. A sílaba. O ensaio de orquestra. O tutti é finito.
A lusofonia. A fonia simplesmente. A crioulidade. A civilização do
corpo e da alma. As ilhas e o cosmos. Caliban e Próspero. A
dança. O Minotauro de Creta. A palavra. O verbo do começo bíblico.
A morna toada do violão. A eterna viagem. A guerra, a paz. A
prosperidade das estrelas e a pena delas de Fernando Pessoa.
Tantas bandeiras. Outras línguas e suas latitudes. Longitudinais
sussurros aos ouvidos do Mundo. Deus?
(ELÍSIO, 2011, p. 80)

O afã totalizante expressa-se na primeira palavra do poema (“Tudo”)


que dá o tom para a leitura, uma vez que se segue uma enumeração vária cujo
espectro vai do silêncio à música, do corpo à alma, da guerra à paz, do
indivíduo à civilização, agregando “tantas bandeiras”, num movimento que
sugere sempre um ponto de observação panorâmico: o sujeito que é ponto de
encontro de latitudes e longitudes.
Nos dez poemas que se seguem, pela enumeração de dez
manifestações culturais cabo-verdianas, o autor percorre uma gama musical
que denota o processo de hibridização da música cabo-verdiana, indo das
ocorrências ligadas à religião, mescla euro-africana: ladainha, tabanka,

228
Observe-se, ainda, a diáspora cabo-verdiana dispersa pelo mundo.

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bandeira, cola son jon; a outras tipicamente ligadas apenas ao canto e à dança,
de origem ainda mais diversificada (euro-afro-americana), como a morna
(mundialmente conhecida, sobretudo pela interpretação de Cesária Évora), a
coladeira, o batuque, o funaná, a mazurca e, não desconsiderando a presença
portuguesa explícita, o fado (cuja peculiaridade do poema é reveladora não só
da ligação cultural mas também política.
O último poema do livro, intitulado f_ado, recupera o U do título do livro
e, tendo como ponto de partida a história das ilhas, remete aos impactos da
presença portuguesa na para a história do arquipélago.

f_ado

negro corpo
e o des_tino

chora-se fado
e o s_ado corre

tudo é rio
U de tudo

um dia
por me_lodia

vasculha-se-lhe
exis_tindo

ouro preto
re_nasce em Nie_Meyer...
(ELÍSIO, 2011, p. 101)

No contexto do “fandengo bom”, da enumeração dos ritmos cabo-


verdianos, f_ado completa a lista e claramente evoca a presença genética de
Portugal na formação do povo e da cultura das ilhas. Remete ao estilo musical
português caracterizado pela expressão da dor causada por tragédias, pelo
destino, por amores perdidos, por saudades dos tempos idos, etc. O fado, em
sua ligação, portanto, com o passado, resgata uma história individual ou
coletiva e é marca identitária do povo português, ligada, principalmente, à sua
história marítima.
No poema, o fado canta a história do “corpo negro”, cujo destino foi,
outrora, marcado pela escravização, mote trágico para o choro e para a
composição (“chora-se fado”). Assim, explicita-se com a alusão ao fado os
impactos culturais (legado musical) e humanos (exploração) do colonialismo

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português. Mas também, “por melodia”, permite perscrutar, vasculhar a história


e, por meio dela, existir, no sentido heideggeriano do “fazer a si mesmo”,
projeto sempre em construção, inacabável, expresso no gerúndio do verbo
(“exis_tindo”).
A metáfora do rio (“o s_ado corre”) aponta para o caráter efêmero e
transitório de tudo; em outras palavras, o rio simboliza a mudança e
transformação inevitáveis das coisas. O verso “tudo é rio”, nesse sentido, ecoa
Camões (“Todo o mundo é composto de mudança [...] E em mim converte em
choro o doce canto”).
Nessa perspectiva, o dístico final: “ouro preto/renasce em Nie_Meyer”,
pode expressar o aflorar de uma identidade híbrida, metaforizada no projeto do
Grande Hotel Ouro Preto, construído no centro histórico da cidade. A referência
à cidade brasileira, destino de muitos escravizados africanos, hoje Patrimônio
da Humanidade, alude à história comum de Cabo Verde e Brasil, abrindo uma
nova senda interpretativa para o já mencionado “U”, símbolo reiterado desde o
título. “U”, entre outras possibilidades, é símbolo matemático que significa
união de conjuntos, mas não só isso. Também pode significar, conforme
Simone Caputo Gomes:

[o] conceito de energia U, [presente no título do livro M_exendo no


baú. Vasculhando o U], oriundo da termodinâmica, base do
“cinetismo” define-se como a energia interna de um sistema, que
corresponde à soma das energias cinéticas dos seus elementos com
as energias potenciais associadas às suas mútuas interações
(GOMES, 2012, p. 247).

Logo, os traços da insularidade expressam-se como uma força geradora


de sentidos. Essa mesma potencialidade aparece na palavra que fecha o livro e
retoma o U do título: utopia; que remete ao artigo de João de Melo ao identificar o
movimento de regresso a uma “nova ilha de Ítaca”, “terra-lar de regresso à casa
do ser que [...] continua errante e de partida pelo tempo fora, ilha da justiça e da
utopia” (MELO, 1999, p. p.72).
A palavra utopia, como acontece com muitos outros vocábulos em
todos os poemas do livro, fragmenta-se em unidades menores: tropia (repetida
de forma a preencher uma página dupla, impressa com vários estilos e
tamanho de letra, entrecortada pelo sinal sublinear e sobrepondo-se umas às

964
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

outras, surtindo pelo menos dois efeitos imagéticos: do graffiti/pichação e do


caos, elementos em dispersão); topia (escrita no cento da página com letra
pequena apesar das maiúsculas); U (impresso na página inteira, centralizado)
e Utopia (centralizada na página, impressa em letras maiúsculas em tamanho
grande). O primeiro fragmento, “tropia”, é metarreferencial uma vez que indica
as possibilidades combinatórias entre as palavras para instaurar os sentidos,
como ocorre nessa sequência final.
Nesse sentido, a poesia de Filinto Elísio parece ecoar as palavras de
Octavio Paz (2003):

A poesia revela este mundo cria outro. [É] Convite à viagem, retorno
à terra natal (...). Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a
angústia e o desespero a alimentam. Oração, Ladainha, epifania,
presença. (...), linguagem primitiva. (...) Retorno à infância, coito,
nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade
ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo (PAZ,
2012, p. 21)

Todos esses aspectos parecem condensados na polissemia da letra


“U”, onipresente nos versos do autor, soma de energia e significados, nos quais
a poesia se apresenta como conhecimento das ilhas e do mundo; do humano e
de sua precariedade.

REFERÊNCIAS

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. 2. ed. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João
Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1993.

GOMES, Simone Caputo. Poesia Cinética, Equação Estética: a arte de Filinto


Elísio. Diadorim, Rio de Janeiro, v. 11, p. 247-259, 2012. Disponível em:
<http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br/index.php/revistadiadorim/article/view/66>
. Acesso em: 12 fev. 2015.

MELO, João de. O “complexo de Ítaca” nas literaturas insulares (açores,


Madeira e Cabo Verde). In: Camões, Revista de Letras e Culturas Lusófonas,
Pontes Lusófonas, Vol. II, jul. /set. 1999, Lisboa: Instituto Camões, p. 65-72.

MOISÉS, Massaud (org.). Luís de Camões: lírica. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.

965
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: REPRESENTAÇÕES CULTURAIS DO AXÉ

PROPOSITORES: ANTÔNIO CARLOS SOBRINHO E FILISMINA


FERNANDES SARAIVA

Ementa:

Este GT propõe um espaço plural de reflexão e de discussão acerca das

representações das diversas expressões religiosas afro-brasileiras, reunidas

aqui sob o termo “Axé”, construídas pelas artes nacionais – literatura, teatro,

cinema, televisão, música, dança, etc. – ou veiculadas por discursos midiáticos.

No tocante ao enquadramento teórico, este GT não se apresenta como

restritivo, estando aberto às mais diversas contribuições, desde que atreladas

ao tema central estabelecido. Objetiva-se uma abordagem ampla da maneira

pela qual as religiões afro-brasileiras vêm sendo representadas, de modo a

observá-las em vários tempos, em vários espaços e em várias linguagens.

Assim, pretende-se que este GT possibilite a construção de um painel crítico e

problematizador do tratamento artístico relacionado às práticas religiosas e

culturais afro-brasileiras, além de eticamente comprometido com a luta contra a

sua demonização e contra a escalada vertiginosa da intolerância na

contemporaneidade.

966
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ENTRE ORIXÁS E BABÁ-EGUNS: PERSONAGENS DE


VASCONCELOS MAIA

FILISMINA FERNANDES SARAIVA (UNEB)229

Este texto destaca, na novela O leque de Oxum (ano) do baiano


Vasconcelos Maia, a presença de Orixás e Eguns, os quais agem decidindo o
destino das personagens, como a mãe-de-santo Matilde que é levada pelos
Orixás por desobediência e Undset que embora estrangeiro e branco torna-se
um sacerdote do culto de Babá-egum.
É importante destacar que a novela apresenta antes da história em si,
uma introdução feita pelo autor. Funciona como um guia de leitura para
desavisados desconhecedores da cultura negra, pois, nesta introdução Maia
destaca a importância dos candomblés na Bahia, mostrando sua certa
independência da África, no sentido de diferenciá-los, pois, aqui, se tem
influências do catolicismo e dos cultos indígenas, enquanto os cultos na África
aconteciam de forma que cada família ou região cultuava uma divindade em
separado. Essa marca de diferenciação do candomblé brasileiro em relação
aos cultos africanos é o que entendemos por sincretismo religioso, ou seja, a
combinação de elementos africanos com os que aqui já existiam deram origem
a um terceiro elemento, o candomblé.
Ainda nesta introdução, o escritor faz uma distinção das duas grandes
espécies de candomblé na Bahia: o culto aos orixás e o culto aos eguns. Orixá,
ele compara a santo no sentido cristão ou deus na definição da antiga Grécia.
Alguns orixás foram humanos, reis africanos que depois de mortos se
santificaram. Os eguns não são deuses ou santos, Maia compara-os a espírito,
alma, dos humanos que pertencem à religião. Segue-se a descrição da forma
de manifestação dos orixás e dos eguns, seus nomes, os locais da realização
das festas e outros aspectos. Ao final, ele destaca que se inspirou em algumas
das lendas do candomblé, mas não se prendeu especialmente a nenhuma.
Entendemos que com o termo lendas, neste contexto de época, o autor se

229
Professora Mestre em Crítica Cultural (UNEB)

967
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

referia ao mesmo que mito 230. O autor diz que com a publicação da novela ele
espera:

[...] contribuir para a divulgação da beleza, do fascínio e do requinte


que estão conservados nos melhores candomblés baianos e chamar
a atenção para o manancial esplêndido que oferecem aos escritores
de ficção. (MAIA, 2006, p. 32)

Percebemos não se tratar de um aventureiro a escrever sobre


candomblé. O autor possuía conhecimentos a respeito da cultura negra baiana.
O Ojuobá no Axé do Opô Afonjá recriou parte do culto aos eguns em sua obra,
sabendo respeitar os segredos do culto, pois, estes são guardados entre os
sacerdotes e não são ditos em cerimônias públicas. Como Maia não era Ojé do
culto, provavelmente não teve acesso a todas as informações. Corroborando
com a distinção feita por Maia entre orixá e egum, Juana Elbein Santos nos diz
que “Pertencem a categorias diferentes: os òrìsà estão especialmente
associados à estrutura da natureza, do cosmo; os ancestrais, à estrutura da
sociedade” (SANTOS, 1986, p. 102).
Na primeira parte da novela, o narrador-personagem (focalização
interna), um homem iniciado no candomblé, passeia pela cidade com
saudosismo ao relembrar as antigas construções coloniais que agora davam
lugar a prédios e avenidas largas. Após vinte anos sem vir à Bahia, pensava
nas casas de candomblé que restavam sem violação de seus ritos. Uma
dessas, era a casa onde ele fora levantado Ogã, título conferido a homens que
contribuem com o progresso e a manutenção da casa de candomblé, os ogãs
são escolhidos pela ialorixá, com o consentimento do orixá ou pelo próprio
orixá.
O narrador fora iniciado nos ritos ainda rapaz, pela Mãe-de-santo
Senhora, recebeu o posto de Ogã da casa, porém, não houve a confirmação,
pois, voltou a São Paulo para trabalhar na firma onde o pai era o acionista
maior. O narrador não tem nome e na segunda parte da novela diz ser paulista
e trabalhar com corretagem de imóveis. Embora tenha ficado longe do Axé, ao
reencontrar sua mãe-de-santo pede-lhe a benção e a segue para a ilha de

230
Mito é entendido aqui como narrativa primordial, com força para explicar comportamentos e as
diversas dimensões do existir.

968
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Itaparica, onde participarão de uma festa de eguns. O narrador ainda não tinha
visto uma festa dessas, aceitou o convite e foi na condição de convidado de
Senhora.
Filha de Oxum, Senhora comandava um terreiro em Salvador, possuía
também, uma barraca na rampa do Mercado Modelo, onde vendia adereços da
religião, azeite-de-dendê e pimentas. Esta ialorixá é uma homenagem de Maia
à sua mãe-de-santo, Mãe Senhora Oxum Muiwá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá
de Salvador, à qual possuía uma barraca no Mercado Modelo conforme os
depoimentos de suas netas Nídia Maria Santos (2000), Iara Lindbäck (2000) e
Inaicyra Falcão dos Santos (2000), publicados no livro Maria Bibiana do
Espírito Santo, Mãe Senhora: Saudade e memória (2000). Segue trecho da
novela e trecho do depoimento de uma das netas da Ialorixá Senhora,
chamada Inaicyra Falcão dos Santos.

Voltei à Tendinha de Oxum e à Senhora rodeada da comitiva: seu


filho Didi, servidor de Ossãe, três alabês, mais cinco mulheres a
beijar-lhe a mão: a dagã e a ossi-dagã, de sua idade, vestidas com o
mesmo aparato embora sem igual quantidade de adornos. As outras
eram iaôs de sua casa, uma de Xangô, outra de Iansã, a última de
Oxumaré, todas vestidas a carácter, as cores de seus orixás
preponderando distintamente em seus trajes. (MAIA, 2006, p. 41)

[...] me lembro do nome da sua barraca “a vencedora”, que ficava na


rampa do antigo Mercado Modelo. Eu gostava muito de comer os
bolinhos manuês que ela fazia... (SANTOS, 2000, p. 35)

Há uma projeção do autor no narrador-personagem, pois, ambos foram


introduzidos no axé ainda rapazes, não eram oriundos da comunidade negra e
tinham uma vida voltada para os costumes da classe média. A mãe-de-santo
da novela como dissemos é uma homenagem à Mãe Senhora do Axé Opô
Afonjá, de quem Maia era filho-de-santo e amigo. Outra homenagem que vai
aparecer na obra é para Mestre Didi. Na novela aparece como filho de Senhora
e servidor de Ossain. Dentro do cenário cultural baiano Mestre Didi é um ícone
da cultura negra, filho de Xangô, foi o supremo sacerdote do culto de Babá-
egun no Brasil, o Alapini, comandou o Ilê Axipá, situado no bairro de Piatã, em
Salvador, e é filho biológico de Mãe Senhora. Nos mistérios de Egungun,
Mestre Didi foi iniciado na Ilha de Itaparica aos sete anos de idade. No Ilê Axé

969
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Opô Afonjá, ele possuiu o posto de Assogbá, o sacerdote supremo da Casa de


Omulu.
O personagem Undset é inspirado em Pierre Verger, por quem Maia
tinha apreço e admiração. Verger era o titular do cargo de Ojuobá, Maia era o
segundo, o Otum Ojuobá. Na crônica Pierre Verger feita por Maia, por ocasião
da entrega do título de Cidadão da Cidade do Salvador, pela Câmara de
Vereadores, o escritor fala sobre o fotógrafo e etnólogo que saiu do seio de
uma família de posses, que editava livros de arte como profissão tradicional
para vir à Bahia divulgar a cultura negra. Esta atitude, para o autor, foi profunda
e o fez criar um personagem homenageando-o, o personagem é o sueco
Undest de O leque de Oxum.
Como Verger, o Undset era um estrangeiro europeu, que partiu para
viagens pelo mundo. Numa dessas, desembarcou na Bahia. Como Verger,
Undset vivia com muito pouco. Verger se mantinha através das vendas de suas
fotos negociadas com jornais locais, Undset se mantinha da venda de cocos
plantados no seu coqueiral, tomava o saveiro que tinha e ia vender nas feiras
de salvador. Ambos tornaram-se figuras respeitáveis entre o povo-de-santo. A
família de Verger trabalhava com edição de livros de arte, a mesma coisa fazia
a família do personagem Undset, conforme trecho da novela:

Era uma empresa gráfica, especializava-se em livros de arte. Ele, o


irmão e o pai, dirigindo os operários, controlando máquinas,
debruçados ansiosamente na impressora, aguardando as estampas,
comparando-as, examinando-as, consumindo-se. (MAIA, 2006, p. 63)

Pierre Verger foi iniciado no culto a Ifá, deus da adivinhação, na África,


se tornando babalaô, seu nome passou a ser Pierre Fatumbi Verger, ele
também era um ojé. Undset, se tornou ojé no culto de babá-egun. No livro
Obaràyí Babalorixá Balbino Daniel de Paula (2009) feito em homenagem aos
50 anos de iniciação do babalorixá, encontramos a informação de que o
espírito de Pierre Verger é cultuado no terreiro Ilê Axé Opô Aganjú de Obaraýn
em Lauro de Freitas. “[...] em Janeiro de 2005, teve uma grande festa,
chamando o egum de Verger, Babá Funladê para vir dançar para o povo pela
primeira vez” (MARIANO, 2009, p. 228).
Outra personagem que vai aparecer na novela e que também parece ser
inspirada em Mãe Senhora é a Ialorixá Matilde, que semelhante à Senhora do

970
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Afonjá, é filha de Oxum, comanda um terreiro em Salvador, no qual, o patrono


também é Xangô. Na novela, o terreiro é situado em Brotas, bairro de Salvador.
No candomblé, as mensagens dos orixás enviadas durante as consultas
ao oráculo, Ifá, o deus da adivinhação, devem ser seguidas a risca, não se
pode duvidar ou interpretar à sua maneira, pois, poderá sofrer as
consequências da desobediência. No caso da personagem Matilde, a
indisciplina custou a própria vida.
A narrativa recai um pouco sobre a morte e como os nagôs lidam com
ela, afinal cultuar os ancestrais, é cultuar os mortos. Foi depois da morte de
Matilde que o estrangeiro Undset percebeu que o caminho dos Eguns estava
por entre o seu caminho. Assim, foi iniciado nos ritos e se tornou um dos ojés
do culto.
O tema da morte é uma constante na obra do autor conforme atesta Ívia
Alves (1988) no artigo “Vasconcelos Maia: desdobramento de um tema”. O
tema da morte ou da doença, o conflito vida/morte irá aparecer em muitos
contos como em “Isaura” e “Fora da Vida” (1946); “Morte” 231 (1964); “O Cavalo
e a Rosa” (1955); “O leque de Oxum” (novela), “Preto e branca,” “Antes do
segundo marcado” (1961); “Cação de areia,” “Um saveiro tem mais valia” e
“Tempestade” (2000) 232.
A constância do tema da morte nas narrativas de Vasconcelos Maia
pode ser lida como projeção do autor nas narrativas, pois, no final da
adolescência Maia teve pleurite, que na época tratava como tuberculose.
Nesse período, ficou enclausurado no sótão e lia muito. No conto “Fora da
vida” (1946) o personagem é um cadeirante, enfermo que passa seus dias
lendo. O enredo do conto corrobora com a hipótese da projeção da vida do
autor na narrativa.
Em O Leque de Oxum este tema está presente, porém, não aparece de
forma simples, ele está relacionado a mitos da cultura negra. A morte é
explicada dentro de uma simbologia, cosmogonia própria da cultura negra. Não
haverá medo “em matar a personagem”, pois, ela sairá de uma vida terrena
para habitar o orum, o mesmo que céu para os cristãos. Xangô, o grande orixá

231
Publicado a primeira vez em 1951.
232
Os três últimos contos foram publicados a primeira vez em 1986.

971
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justiceiro, vem buscar a sua Oxum para morar com ele no orun: Matilde era de
Oxum. Desta forma, corrobora a afirmação de Ívia Alves:

Apoiando no realismo mágico e místico, “O leque de Oxum” trata das


forças do Destino que são superiores ao conhecimento do homem.
Os deuses do candomblé lutam e tramam pela posse da mãe-de-
santo apaixonada por um mortal/humano, fato proibido por seus
deuses ciumentos de seu todo. Desta luta pela vida, os deuses são
mais fortes e a levam. A morte não será mais vista, aqui, como uma
brusca interrupção, mais um atravessar “para outra dimensão”.
(ALVES, 1988, p.13)

A concepção de morte para o mundo nagô é de uma passagem para o


orun, não significa fim. Dentro do terreiro lesse-orixá, ou seja, aos pés do orixá,
os espíritos dos fundadores e das grandes mães-de-santo são cultuados no Ilê-
ibo-akú. Já no terreiro lesse-egum, aos pés do egum, no Ilê-ìgbàlè cultuam-se
os espíritos dos eguns, iniciados nos mistérios de egum, os nossos ancestrais.
“[...] para o nagô a morte não significa absolutamente a extinção total, ou
aniquilamento, conceitos que verdadeiramente o aterram. Morrer é uma
mudança de estado, de plano de existência e de status” (SANTOS, 2001,
p.221).
A ideia de destino está presente nas religiões negras, ao orixá pertence
o destino do filho, se o destino não estiver se mostrando bom, o filho deverá
buscar ajuda no axé, através do jogo de búzios e de orientações da mãe ou
pai-de-santo fazendo o que for necessário para melhorar o caminho. Segundo
Marco Aurélio Luz (2000, p. 90) à noção de destino se “[...] relaciona a noção
de oferenda e sacrifício. Quanto melhor um destino se apresenta, menores as
oferendas. Se existem obstáculos para sua expansão e desenvolvimento,
maiores serão as oferendas, as restituições”.
Matilde, na qualidade de mãe-de-santo, quando conheceu Undset sabia
que seu destino estava ligado ao dele, sabia também que se o seguisse sua
vida seria breve, mesmo assim, acabou o seguindo.

Esperava-o. Seu destino estava, de nascença, ligado ao dele, Ifã


jamais a enganara. Sabia também que a vida lhe seria curta se o
seguisse. Que Xangô expulsá-la-ia da vida se fosse com ele. Mas
sabia também – e isso quem lhe dizia era seu próprio coração - que
força nenhuma, humana ou sobrenatural, a impediria de segui-lo.
(MAIA, 2006, p. 85)

972
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Foi então preciso fazer muitas oferendas aos deuses, principalmente a


Xangô, para que ele consentisse a união entre Undset e Matilde, mas, nada
adiantou, o orixá patrono do terreiro queria renúncia total da mãe-de-santo,
caso contrário, seria necessário trazê-la para o seu lado no orum:

Undset ofereceu-se para casar com Matilde sem tirá-la do seu Axé.
Ela viveria metade do ano em Barro Vermelho e, em Brotas, todo o
tempo do seu ciclo de obrigações e festas. Mas, de nada adiantaram
penitencias, preces, sacrifícios, despachos e Boris. Xangô não
recebera, Exu ignorava as imolações, de galos, bodes e carneiros,
tapara os ouvidos de todos os rogos. Queria sua Oxum inteira, sem
reparti-la com estrangeiros. Queria sua Oxum só para si. Queria
renúncia absoluta. (MAIA, 2006, p.87)

Segundo Juana Elbein dos Santos (2001) a morte prematura de alguém


que não completou o seu destino é algo anormal, pode ser um castigo por
infração na relação da pessoa com as entidades sobrenaturais. Pode ser uma
“infração direta” como uma falta com seu orixá ou com o orixá patrono da
“linhagem” ou terreiro e pode ser uma “infração indireta” com relação aos seus
deveres no “egbé 233” e, por isso, os orixás ou os ancestrais resolvem disciplinar
desta forma, interrompendo a vida.
Quando se completa o ciclo natural da vida, cumprindo seu destino e
estando maduro para a morte, a pessoa de santo, passa desta dimensão para
outra. Cumpre-se todo o ritual necessário e possuindo ela posição de grande
importância dentro do terreiro, se tornará ancestral cultuado no Ibó do terreiro.
Sendo homem e tendo iniciação nos mistérios do culto aos ancestrais se
tornará babá-egun. O culto às grandes mães ancestrais foi destruído no Brasil
pela perseguição policial, contudo, ainda são feitas oferendas a elas.
No caso da mãe-de-santo da novela, seu destino foi interrompido pelos
orixás porque ela cometeu uma grave infração. Entregou o mando do terreiro a
sua dagã e foi morar com Undset na ilha de Itaparica, um relacionamento que
não foi permitido pelos orixás. Mesmo fazendo muitas oferendas a Xangô e a
Exu como uma forma de burlar a morte, seus pedidos não foram atendidos, as
entidades não aceitaram as oferendas. Segundo Juana Elbein Santos:

233
Família, grupo ou comunidade.

973
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[...] Èsù consegue, através do pacto, fazer aceitar oferendas-


substitutos que, segundo o contexto ritual, veicularão uma
combinação particular de àse. Deve-se ter presente que qualquer que
seja esta combinação particular, sempre uma parte dela está
substituindo a vida de seres humanos. (SANTOS, 2001, p. 223)

Muniz Sodré (1988) diz que a cultura negra e a moderna cultura


ocidental se diferem em primeiro lugar “no princípio fundamental das trocas”, as
trocas para a cultura ocidental se traduz em acúmulo material, do ponto de
vista econômico-social; na cultura negra as trocas são sempre simbólicas e
reversíveis. Por isso a obrigação e a reciprocidade são as regras básicas da
cultura negra. O filho-de-santo tem a obrigação de dar, a reciprocidade fica por
conta da entidade que receberá (ou não) e restituirá na forma de axé, ou não
aceitando, poderá fazer a restituição na forma de um castigo.
Foi justamente a restituição na forma de axé que não aconteceu no caso
da mãe-de-santo Matilde. Muitas oferendas foram feitas e nada substituiu a
morte da ialorixá.

1. Os Babá-eguns como personagens

O Tema da morte, como dissemos, está presente na narrativa analisada,


pois há a morte de Matilde que foi levada pelos orixás Xangô e Oxum. Dentro
da mesma perspectiva da lógica cultural negra, os babá-egun, espíritos dos
mortos cultuados pelo povo-de-santo de tradição iorubá na Bahia, irão aparecer
na novela como personagens. A palavra Babá significa pai, o babá-egun é um
pai ancestral.
A obra em questão foi publicada pela primeira vez em 1961 e segundo o
próprio Maia, em crônica publicada no Jornal da Bahia de 22 de março de
1961, sobre o lançamento que seria no Rio de Janeiro, a obra estava pronta há
quatro anos, ou seja, em 1958 a novela já estava pronta. Nesse período, o
terreiro de Ponta de areia dos irmãos Daniel de Paula já havia sido transferido
para o Barro Vermelho, é desse terreiro que fala a narrativa. Lembrando que,
depois de algum tempo este terreiro foi transferido para o povoado de Bela
Vista, em Ponta de Areia, cujo patrono passou a ser Babá Agboulá. O terreiro é
hoje conhecido como Ilê Agboulá.

974
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Os babás são espíritos de mortos que voltam a terra para se encontrar


com a família e com a comunidade-terreiro. Vem aconselhá-los, direcioná-los
nas escolhas e nos caminhos a seguir aqui na terra. Eles não podem ser vistos,
pois, são espíritos e se cobrem com roupas coloridas cheias de espelhos nas
cores do orixá que em vida eram filhos, o que é visto nas festas públicas é essa
roupa andante. Falam em iorubá, com voz rouca e, às vezes, num tom muito
baixo. Na roupa do babá, chama muito a atenção o abalá, tiras de pano
multicores. Os ojés traduzem à comunidade o que os babás falam, mas, a
maioria dos filhos-de-santo entende o que eles dizem 234.
A personagem Senhora estava indo pra festa dos eguns, especialmente
porque havia pedido uma graça ao Babá Olukotum, que foi alcançada, além
disso, estava oferecendo ao babá uma roupa e lhe pedia a presença:

Pedi uma graça a Babá Olukotum, ele me fez o favor de atender.


Ofereci-lhe uma roupa e vou lhe pedir a presença. É um babá muito
autoritário, orgulhoso e importante. Há trinta anos que não desce.
(MAIA, 2006, p. 40)

Babá Olukotum é o mais antigo dos ancestrais. Na introdução à novela,


Maia caracteriza-o como o maioral dos babás, o olori, o rei dos eguns, “muito
amado, respeitado e sobretudo temido Olukotum” (MAIA, 2006, p. 29). Ainda
na introdução à novela, Maia cita outros babás além do olori Olukotum: “[...] um
se chama Alapalá, outros Arasoju, Baká-Baká, Aboulá etc” (MAIA, 2006, p. 28).
Cada egum possui vestimentas, emblemas, cantigas e saudação diferentes,
esses eguns são chamados de egun-agba. Na novela os babás são
personagens, assim o narrador descreve a entrada do primeiro babá na festa,
na Ilha de Itaparica:

Uma figura estranhíssima – vinha chegando, mansamente,


confiadamente. Passou pela porta sem se abaixar. E dentro da sala
eu vi assombrado que sua altura ia até as vigas que sustentavam o
telhado.
De humano só viam os pés, calçados com sapatos exóticos. E
exótica roupagem cobria-o, mistura caótica de veludos, sedas, cetins,
bordados, espelhos, vidrilhos, contas, numa profusão indescritível de
cores, de formas e reflexos. No silêncio de cemitério, circulou no
espaço vazio deixado pelos ojés. Não parecia andar. Flutuava. Os
atabaques voltaram a bramir: e o babá pôs-se a dançar com
impressionante vigor e soberba masculinidade. Dançou muito. Sua

234
Observações feitas pela autora no terreiro de egum Ilê Axipá, situado em Piatã, Salvador-Ba.

975
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energia parecia inesgotável. Finalmente parou. Os atabaques,


obedientes, pararam. Mansamente como entrara o babá flutuou até o
dossel, sentou-se num trono e dali pôs-se a articular sons, para mim
ininteligíveis, que o eiedun ou a ialorixá iam decifrando para todos ou
se era o caso, para cada pessoa em particular. (MAIA, 2006, p. 51)

Embora o narrador caracterize bem a entrada do primeiro babá na festa,


ele não diz o nome da entidade, diz apenas, que vieram mais sete babás e fala
especialmente do Babá Olukotum: “Até o Babá Olukotum dignou-se a
comparecer. Era o rei de todos e a todos suplantava em luxo e extravagância
de roupas, na viril sobriedade de danças e extrema doçura ao falar” (MAIA,
2006, p. 52).
Há outros eguns que por serem mais novos não possuem voz, nem
rosto e não vestem roupa completa. Eles se cobrem apenas, com um pano na
forma retangular ou quadrada. Esses eguns são os aparakás. Juana Ebein dos
Santos (2001) fala dos dois grandes grupos que distingue os eguns:

Enquanto os Égún-àgbà representam os ancestrais de famílias


importantes, os Apáàràká são espíritos novos que, por várias razões,
não puderam chegar ao estado àgbà e cujos ritos de formação não
foram acabados. (SANTOS, 2001, p.127)

Na novela, há uma passagem em que Undset e Lícia, uma das muitas


mulheres que Undset se relacionou antes de conhecer Matilde, foram ao
terreiro de culto aos ancestrais sem serem convidados, viram eguns que pela
descrição da narrativa eram aparakas. Conforme trecho a seguir:

Lícia tremia estava vencida. Undset quis voltar. Ao virar o corpo,


estremeceu também. Outra forma fantástica cortava-lhes a volta.
Era comprida e chata, lâmina de vidro fosco, tão alta quanto um
coqueiro. Aí, Undset teve a convicção do medo que não o
envergonhava, que se assemelhava ao pasmo diante do
desconhecido, do imponderável. Lícia se enroscava em seu corpo
querendo nele esconder-se. Undset procurou guardar o pouco de
serenidade que lhes restava. A todo pulmão gritou o nome de um dos
seus empregados, que sabia ojé da seita. (MAIA, 2006, p.77)

Segundo Agnes Mariano (2000) o surgimento do culto aos ancestrais na


Bahia não tem data exata, falam de um terreiro na Liberdade em Salvador
entre 1800 e 1850, mas, os terreiros de Egungun mais expressivos surgiram na
ilha de Itaparica. Por volta de 1820 um ex-escravo chamado Serafim Teixeira

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Barbosa, nascido na África, fundou o terreiro de Vera Cruz no povoado de Vera


Cruz, de culto a orixá tendo Xangô como patrono e de culto à egum, com o
egum Bakabaká como patrono.
Mais ou menos em 1830, outro ex-escravo Marcos Teodoro Pimentel, “o
velho” teria voltado à Africa trazendo de lá o assentamento de Babá Olukotun,
o mais antigo de todos os ancestrais e o primeiro a ser reverenciado no culto
iorubá, Marcos Pimentel fundou assim o terreiro de Mocambo, no povoado de
Mocambo.
Por volta de 1940, no povoado de Encarnação, João Dois Metros, filho
de Serafim Teixeira Barbosa, funda o terreiro da Encarnação trazendo de Vera
Cruz o culto de Babá Agboulá. Mais ou menos em 1950, Marcos Teodoro
Pimentel, chamado “tio Marcos” funda o terreiro Tuntun Olukotun, no povoado
do Tuntun, hoje chamado Barro Branco - Ponta de Areia. Marcos era o Alapini
e Manoel Antônio Daniel de Paula era o Ojé Baxorum, este ajudou a iniciar
seus filhos Manoel Jacinto, Olegário, Pedro e Eduardo. Estes três últimos filhos
de Manoel Antônio irão continuar o culto no Terreiro dos irmãos Daniel de
Paula entre 1900 e 1920 em Ponta de Areia, próximo à praia nos fundos da
Capelinha de Nossa Senhora das Candeias. O patrono do terreiro é o Babá
Baka-baká, nessa época os terreiros de Vera Cruz, Encarnação e Tuntun já
estavam fechados e eles transferiam os assentamentos para Ponta de Areia.
Pedro recebeu de Babá Agboulá o cargo de Alapini. Mais ou menos em 1940,
os irmãos Daniel de Paula transferem o terreiro para Barro Vermelho em Ponta
de Areia devido ao crescimento do povoado e de construções em volta do
terreiro.
Olegário Daniel de Paula cria o terreiro Ilê Oiá por volta de 1950 para
homenagear sua Iansã Igbalé e em mais ou menos 1958 sai do terreiro do
Barro Vermelho e no Ilê Oiá, antigo terreiro Tuntun, reergue o culto a Babá
Olukotun.
Em mais ou menos 1964, Eduardo Daniel de Paula e seu filho Antônio
transferem o culto de Babá Agboulá para Bela Vista - Ponta de Areia, o terreno
foi comprado e doado por Mãe Senhora do Ilê Axé Opô Afonjá em gratidão ao
Babá Agboulá que se tornou o patrono do terreiro. Deóscoredes Maximiliano
dos Santos, filho de Senhora, ganhou de Babá Agboulá o título de Alapini.

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Alguns filhos-de-santo do Afonjá dizem que mãe Senhora havia se


aproximado do culto aos eguns na ilha por conta de um problema sério de
saúde com seu filho Didi, outros dizem que o problema era com ela mesma.
Em 1981 o filho de Olegário, Eduardo Daniel de Castro abriu uma nova
casa no Barro Branco - Ponta de Areia em homenagem ao egum de seu pai
Olegário, o Babá Obaladê.
Atualmente existem na ilha de Itaparica o Ilê Agboulá, em Bela Vista -
Ponta de Areia e o Ilê Oyá – Ilê Axé Tuntun Olukotun, no Barro Branco. Em
Salvador, há o Ilê Axipá, cujo patrono é o Babá Alapalá, o culto foi trazido da
ilha por Mestre Didi, Alapini.
Em Areia Branca, Lauro de Freitas há o Ilê babá Adebolá Egún,
comandado pelo senhor Manoel Bonfim dos Santos, conhecido como Barué
(SANT’ANNA SOBRINHO, 2015). Outros terreiros cultuam os ancestrais em
nosso estado.

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O CANDOMBLÉ PARA JORGE AMADO

ANTONIO CARLOS SOBRINHO (UNEB/PPGLITCULT-UFBA)

Há duas formas básicas pelas quais Jorge Amado falava de si próprio


quando entrevistado a respeito de seu envolvimento com o Candomblé.
Definia-se igualmente como um materialista, alguém desprovido de qualquer
sentimento religioso ou de crença no transcendente, e como um Obá de Xangô
no Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais tradicionais Terreiros do Brasil. Tais
posicionamentos, um tanto conflitantes quando assumidos por uma mesma
pessoa, parecem apontar para uma absoluta contradição: como ser um e outro
se, por lógica, a primeira identificação, caso efetivamente verdadeira, excluiria
a segunda?
Esta é mesmo uma pergunta recorrente no conjunto de entrevistas
realizadas com o romancista entre as décadas de 1960 e 1990, quando se
intensifica a abordagem ficcional das tradições religiosas/culturais afro-baianas
pelo autor, inclusive como matrizes da própria ordem de valores das narrativas.
É importante situar que o interesse dos veículos de imprensa e
comunicação em interpelar Amado a respeito de suas relações com o
Candomblé não deriva apenas do universo ficcional construído pelo
romancista, mas também reflete um certo interesse da sociedade em geral
nesta “descoberta” do outro – muito embora isto se dê como um fetiche, no
qual a alteridade afro-brasileira é o produto da moda a ser consumido, ou a
partir de um tratamento que não vai além de um “flerte” tímido com o “exótico”.
Malgrado as restrições, os preconceitos e os desconhecimentos
facilmente identificáveis em muitos entrevistadores ao longo das quatro
décadas pesquisadas, Amado mantém um discurso coerente e sempre
irmanado ao povo-de-Axé em suas respostas. Assim, em face do invariável
questionamento acerca de uma suposta contradição entre seu posicionamento
ideológico como materialista e o fato de ser um Oba de Xangô no Axé Opô
Afonjá, o autor reproduz a mesma resposta, invocando seu personagem Pedro
Archanjo: “meu materialismo não me limita”.

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Ao pesquisar as entrevistas concedidas pelo romancista Jorge Amado


na perspectiva de observar a construção performativa de um discurso sobre si
próprio em função das tradições culturais e religiosas afro-baianas, fica
evidente a preocupação do escritor em desautorizar a suspeita de que o seu
tratamento ficcional do Candomblé derivasse apenas de uma apropriação
temática, correspondendo a uma modalização externa à sua experiência de
indivíduo integrado ao Axé. Pelo contrário: não são raros os depoimentos em
que Amado busca dar a entender ou enfatizar uma verdadeira vinculação
existencial com Candomblé. Nesse sentido, por exemplo, sua declaração ao
periódico Programe, publicado em 31 de outubro de 1981:

Quando eu vou a uma festa de Candomblé [...], sem exceção, [...] eu


saio inteiramente dominado por aquilo que acontece, por aquilo que
[o Candomblé] é, e lhes digo mais: muito menos numa festa, onde
penetram vários elementos exteriores, [do que em] um bori, uma
cerimônia muito menos exterior, mais fechada, cerimônias que eu
tenho a sorte de poder assistir e participar.

A distinção estabelecida entre a “festa”, ou seja, a espacialidade pública


do Terreiro, e a cerimônia do Bori, metonímia que aponta para o âmbito dos
rituais privados, apenas acessados pelos já iniciados ou em processo de
iniciação, além de sugerir o grau de adentramento/iniciação de Amado no
Segredo, também separa dois mundos: aquele da porteira para fora, de onde
provém os “elementos exteriores” que penetram as festas públicas e aos quais
o romancista parece impor restrições, e aquele da porteira para dentro, através
do qual o escritor, já iniciado, passa a conhecer o cerne da religião e se
identifica.
Os primeiros contatos entre Jorge Amado e a religiosidade afro-baiana,
ainda desprovidos de maior interesse por parte do futuro escritor, acontecem
em sua adolescência, mais precisamente aos 14 anos, em Ilhéus, de acordo
com depoimento concedido a J. C. Thomas para a estadunidense Publishers
Weekly, de 23 de junho de 1975. Mas é apenas por volta de 1929, quando o
escritor teria entre 16 e 17 anos, que estes contatos se intensificam, motivados
pela sua entrada na Academia dos Rebeldes e pelas companhias do etnólogo
Edison Carneiro e do antropólogo Artur Ramos. Neste momento, trata-se da
defesa do direito ao culto religioso afro-brasileiro, àquela altura duramente

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perseguido pelos aparelhos repressivos e ideológicos do Estado, que pretendia


embranquecer e ocidentalizar a cidade de Salvador. É neste contexto que
Jorge Amado adquire consciência em relação às violências sofridas pelo povo-
de-Axé e a ele se irmana na luta contra o racismo e também contra a
intolerância religiosa – duas grandes linhas de sua produção ficcional posterior
e também de sua atuação como homem público, como o próprio romancista
afirma a Alice Raillard (1990, p. 39):

Literariamente, esta época [a adolescência] foi muito importante para


mim, mas ainda mais do ponto de vista humano pelo conhecimento
do povo baiano que adquiri. Conheci sua vida, sua cultura. Para meu
trabalho de escritor, esses anos foram fundamentais. Minha
intimidade com a vida do povo tomou forma nesses anos em que vivi
muito livremente. [...] Foram os anos fundamentais para tudo o que
escrevi depois. Ainda hoje as linhas mestras do meu trabalho literário
repousam sobre estes anos de minha adolescência nas ruas da
cidade da Bahia.

O relacionamento de Jorge Amado com as tradições


socioculturais/religiosas afro-baianas e populares é dimensionado, no plano
ficcional, em uma perspectiva politicamente engajada de recriação literária da
realidade, o que acarreta não apenas a denúncia das suas estruturas
econômicas e sociais excludentes, mas também um posicionamento autoral
irmanado e integrado às margens periféricas ao capitalismo ocidental. Neste
sentido, no que se refere à ficcionalização do real sob a ótica da Bahia popular
e negra, o romancista, em entrevista a José Antonio, publicada pelo Diário do
Povo, de 2 de fevereiro de 1980, é elucidativo: “Eu não poderia então recriar a
realidade baiana sem dar ao candomblé a importância que ele tem na vida de
nosso povo”.
A despeito de a aproximação de Jorge Amado com o Candomblé
remontar à década de 1920, o processo de reelaboração ficcional do Axé, na
condição matricial do ethos de um povo, mesmo que desprovido de seu
potencial de resistência e de transformação, apenas emerge no universo
romanesco amadiano em 1935, com Jubiabá, quarto romance. No entanto,
alguns textos não ficcionais de Jorge Amado datados deste mesmo período já
revelam sua relação afetiva com a Bahia negra ou sua preocupação com o
estudo e a discussão de questões concernentes aos terreiros de Candomblé.

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Com efeito, se observados alguns pontos de vista enunciados por


Amado através de suas publicações em Boletim de Ariel, periódico mensal
publicado no Rio de Janeiro, no qual exerceu a crítica literária entre os anos de
1932 e 1936, já é notável seu envolvimento pessoal com as tradições
religiosas/culturais afro-baianas bem como sua afeição por elas e pela temática
negra. Nesse caso, é sintomático o artigo “Coleção”, publicado pelo escritor no
número de janeiro de 1933 deste periódico, alguns meses antes de Cacau e
dois anos antes de Jubiabá (1935).
“Coleção” caracteriza-se por ser francamente irônico e crítico em relação
à literatura e aos literatos daquela Salvador dos anos 1930, rebaixados em sua
qualidade poética e/ou novelística, além de denunciados em seus esquemas
de favorecimento e elogios mediante pagamentos. Ainda assim, no último
parágrafo, Jorge Amado confessa saudades da Bahia:

Apesar de tudo isso ou talvez por isso mesmo, de quando em vez me


invade o coração uma saudade doida de minha velha Bahia. Velha
Bahia de Thomé de Souza, de ruas mal calçadas, cheia de ladeiras e
igrejas, cheirando a tradição e a mistério, Bahia de comidas
apimentadas, acarajé, efó, abará, Bahia que adora Nosso Senhor
Orixalá do Bomfim, o santo, que admira Ruy Barbosa, o orador, que
teme Jubiabá, o macumbeiro, minha saudosa Bahia misteriosa dos
candomblés, das macumbas, das penas de galinha preta com azeite
de dendê dos pais-de-santo, do feitiço, da coisa feita... (AMADO,
1933a, p. 91-92).

As imagens que Jorge Amado evoca como representativas da Cidade da


Bahia, daquela velha Salvador da qual sente falta, são quase todas associáveis
à sua densa e profunda face negra – informação que, para os leitores apenas
dos romances amadianos, deve causar alguma estranheza dado que este texto
se situa temporalmente entre O país do carnaval e Cacau – textos que não se
apresentam como portadores de representações do Axé.
A sequência final de imagens relacionada à “saudosa” cidade,
justamente o encadeamento responsável por plasmar o sentimento condutor do
texto na memória do leitor, posto que seu fechamento, é todo composto por
significados afro-baianos. Assim é que o escritor destaca o mistério dos
“candomblés” e das “macumbas”, das “penas de galinha preta com azeite de
dendê”, dos “pais-de-santo”, “do feitiço” e da “coisa feita” – elementos
negativos e conotativos da alienação política do povo em Suor e mesmo em

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Jubiabá, mas que aqui movimentam de maneira positiva a lembrança que o


ainda jovem Amado tem de sua cidade. Com isso, já é possível notar a
existência, decerto em estágio embrionário, daqueles vínculos de afetividade e
de identificação com o povo do Candomblé que sustentarão, a partir dos anos
1960, parte significativa de sua produção literária.
Noutro plano, agora propriamente no do exercício crítico das resenhas,
sinalizando os lançamentos literários e científicos de terceiros, Jorge Amado
publica, na edição de dezembro de 1936 de Boletim de Ariel, “O jovem
feiticeiro”, farto elogio a Edison Carneiro a pretexto do lançamento de Religiões
Negras, estudo etnográfico acerca dos terreiros de Candomblé. Remetendo-se
de forma direta ao livro do amigo rebelde, Jorge Amado escreve:

Livro de quem conhece o assunto não só por leitura, não só pelo que
leu nos outros, mas de quem conhece de contato direto. Ele é ogan,
ele viveu e vive naqueles meios e sei mesmo que prepara novo
estudo (Negros Bantus), cheio de revelações curiosíssimas. [...] É
além de tudo, um estudo feito por um homem da mesma raça dos
estudados. Edison Carneiro nesses estudos nada tem de diletante.
[...] É um deles e assim esse estudo, esse depoimento, ganha em
força e em verdade. Não fala um estudioso das Religiões negras.
Fala um membro das religiões negras [...] (AMADO, 1936, p. 68-69)
(Grifos meus).

De acordo com Amado, a importância que Religiões Negras assume, no


parco cenário nacional de estudos afro-brasileiros de então, deriva tanto do
rigor científico que marca o trabalho de Edison Carneiro, visível em sua
fundamentação teórica e em sua capacidade de apontar equívocos
anteriormente cometidos, quanto, tanto mais, do fato de esta ser uma
investigação conduzida “desde dentro” dos Terreiros.
O fato de o romancista baiano dar valor a esta nova metodologia de
pesquisa, que acrescentaria por si só “força” e “verdade” ao estudo, denota
uma valorização do ponto-de-vista autoral integrado às tradições
culturais/religiosas negras, o que não deixa de ser algo significativo em se
tratando do contexto da década de 1930. Assim, saúda a possibilidade deste
outro em relação às configurações hegemônicas da sociedade brasileira falar
sobre si próprio. A conjunção entre o ponto-de-vista autoral irmanado aos
Candomblés e o método científico “redime” o segundo de suas abordagens
estigmatizantes e pouco conhecedoras da “verdade” específica do povo-de-Axé

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– conhecimento que Edison Carneiro, na condição de ogan, detém e pode


traduzir em seu livro.
Ainda neste mesmo caminho, não custa nada lembrar que, se observada
toda a produção ficcional amadiana, o grande modelo de intelectual projetado é
Pedro Archanjo, de Tenda dos milagres. Etnólogo formado do lado de fora dos
muros da Academia, Archanjo não é apenas profundo conhecedor e partícipe
da vida popular soteropolitana, vivendo em contato direto com a “verdade do
povo”, é também Oju oba, os olhos do Rei Xangô, na hierarquia do Candomblé.
Sendo assim, ele não apenas visualiza o seu “objeto” de estudo a partir de uma
posição distanciada; ele o vivencia integralmente na medida em que as
tradições afro-baianas são formadoras de sua experiência e de sua visão de
mundo – assim como Edison Carneiro; exatamente assim como iria se tornar
Jorge Amado.
É em face desta paisagem de profunda relação existencial e ética entre
o romancista Jorge Amado e o Candomblé que Muniz Sodré, Oba Aressa do Ilê
Axé Opô Afonjá, por ocasião do I Simpósio Internacional de Estudos sobre
Jorge Amado, organizado em torno das comemorações dos 80 anos do
escritor, afirmou: “Amado foi o único romancista brasileiro a acolher e dar uma
estrutura civilizacional aos orixás”, fala registrada por Cáceres Monteiro e
publicada em reportagens sobre o evento, lançadas entre os dias 18 e 24 de
agosto de 1992, no Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Lisboa – o que, aliás,
está em concordância com a percepção do africanólogo Alberto da Costa e
Silva (2012, p. 193) a respeito da produção ficcional de Amado: “[...] pode-se
dizer que a África, ao mudar-se para o Brasil, se instalou nos romances de
Jorge Amado”.
A título de fechamento deste pequeno apanhado, é importante recuperar
uma fala de Jorge Amado ao escritor e jornalista Guido Guerra, por ocasião de
uma entrevista publicada na revista Fatos e Fotos de 8 de abril de 1974.
Quando perguntado se de fato acreditava no Candomblé, o romancista baiano
respondeu:

Como poderia apresentar sua verdade, seu segredo, sua íntima


ressonância, se dele soubesse apenas por ter assistido algumas
cerimônias, sentado entre os visitantes, por vezes armado apenas de
curiosidade vã, quando não de preconceito? Se posso falar de tudo
isto sem mentir nem degradar, é porque tudo isto é parte intrínseca

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de minha vida, de meu ser, de minha própria vontade. Não se trata de


crer ou não crer e, sim, de ser ou não ser. Essas coisas eu as trago
dentro de mim, não as obtive, não as comprei em nenhum mercado
de sentimentos ou de conhecimentos. São minhas de direito e, de
algumas, eu sei mesmo antes de tê-las visto. Eu as trago dentro de
mim.

A inversão é clara: a pergunta a ser feita não diz respeito à crença ou


não na transcendência, isto é, à religião como uma forma de suprir aquelas
velhas angústias em torno do mistério da morte, da ausência de um sentido
para a vida ou da pequenez humana diante o universo. O encaminhamento
adequado da questão, ser ou não ser, deveria girar em torno da identificação
com o povo-de-Axé e do pertencimento ao Candomblé – aqui, não
necessariamente vivenciado a partir de uma concepção religiosa, mas, dos
valores que regem seus adeptos e que possibilitam uma experiência
sociocultural heterotópica. Dito de outro modo, são os princípios e os valores
estruturantes da especificidade afro-baiana de uma visão de mundo e de uma
experiência individual e coletiva da realidade, organizados a partir da cultura do
Candomblé, que se configuram como “parte intrínseca” da vida de Jorge
Amado. Posta nesta clave, a resposta de Jorge Amado a Guido Guerra não
poderia ser mais clara: o romancista efetivamente é do Candomblé.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Cinquentenário do futuro: entrevista [31 de outubro de 1981].


Salvador: Programe.

AMADO, Jorge. Coleção. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano II, n.4, p. 91-92,
jan.1933a.

AMADO, Jorge. O jovem feiticeiro. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano VI, n.
3, p. 68-69, dez.1936.

GUERRA, Guido. Jorge Amado: “Devo à Bahia tudo o que sou”. Fatos e Fotos,
Brasília, n. 659, p. 52-55, 8.abr.1974.

MONTEIRO, Cáceres. São Jorge Amado, obá da Bahia. Jornal de Letras, Artes
e Ideias, Lisboa, 24.ag.1992.

RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record,


1990.

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SILVA, Alberto da Costa e. El África de Jorge Amado. Turia (Jorge Amado),


Madrid, n. 103, p. 189-193. 2012.

THOMAS, J. C. PW interviews: Jorge Amado. Publishers weekly, New York


City, s.n., s.p., 23.jun.1975.

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REPRESENTAÇÕES DA IDENTIDADE E CULTURA NEGRA NAS LETRAS


DAS MÚSICAS DO BLOCO AFRO ILÊ AIYÊ

EDMILSON DE SENAMORAIS 235

Resumo
A identidade enquanto forma dos indivíduos se ver a si no mundo e estar no
mundo, também, se dá na dinâmica da alteridade, afinal, somos por sua vez,
aquilo que o(s) outro(s) vê(em) e percebe de nós. O ser humano enquanto
constructo cultural se constitui enquanto indivíduo nas relações que se
estabelecem em si e seu grupo social, portanto, fruto de suas idiossincrasias.
No contexto das relações sócio-histórico-culturais e interpessoais os indivíduos
elaboram representações de mundo, do outro e de si a partir do seu grupo de
origem e convívio. Nessa perspectiva, o presente artigo analisa as
represtações de mundo e da identidade negra presentes nas letras das
canções do Bloco Afro Ilê Aiyê, sediado no bairro do Curuzu, cidade do
Salvador-Ba. Para tanto foi utilizada a perspectiva da identidade cultural a partir
dos Estudos Culturais (HALL, 1992, 2011; WOODWARD, 2000) e da teoria das
Representações Sociais (MOSCOVICI, 1978; JODELET, 1998). Como corpus
de pesquisa utilizamos as canções gravadas no CD Ilê Aiyê 25 ANOS e para
analise documental, a analise de conteúdo na perspectiva de Bardin (1977). O
estudo possibilitou compreendermos como os sujeitos a partir de seus ethos
constituem-se enquanto seres do/no mundo, seres-sendo, na medida em que
se constituem enquanto tal, nas suas relações entre si e suas próprias leituras
de mundo, construindo um conhecimento próprio e apropriado enquanto
resultado das reflexões de si mesmo e do outro e da sua própria história,
dando-lhes significado do mundo e das suas existências.
Palavras chave: Linguagem. Cultura afrobrasileira. História. Resistencia.
Representação social.

Abstract
The identity as a form of individuals see themselves in the world and be in the
world, also, takes place in the dynamics of otherness, after all, we are what the
other(s) sees and knows about us. The human being as a cultural construct and
constituted as an individual in relationships that are established itself and its
social group, therefore, the result of their idiosyncrasies. In the context of the
socio-historical and cultural relations and interpersonal individuals produce

É mestre em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia –


235

UNEB, especialista em Metodologia, Ensino e Pesquisa pela Universidade do Estado do Bahia


– UNEB, especialista em Metodologia e Teoria da História pela Universidade Estadual de Feira
de Santana – UEFS e graduado e licenciado em História, pela Universidade Católica de
Salvador – UCSAL. Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia, lecionando as
disciplinas de Pesquisa e Prática do Ensino de Língua Inglesa, Seminário Interdisciplinar de
Pesquisa e é docente de História na Secretaria de Educação do Estado da Bahia – SEC, na
cidade de Salvador.

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representations of the other and the world from your source and conviviality. In
this perspective, the present paper analyses the world representations and
black identity in the lyrics of the songs of the Bloco Afro Ilê Aiyê, headquartered
in the neighborhood of Curuzu from Salvador-Ba. For that were used the
perspective of cultural identity from the cultural studies (HALL, 1992, 201;
WOODWARD, 2000) and the theory of social representations (MOSCOVICI,
1978; JODELET, 1998). For the research corpus we use the songs recorded in
CD 25 YEARS of Ilê Aiyê. For documentary analysis content our analysis is in
the perspective of Bardin (1977). The study made it possible to understand how
the subjects from its ethos are while the beings of and in the world, beings-
being, to the extent that they constitute as such, in its relations between
themselves and their reading of the world, constructing an own self-awareness
appropriate as a result of the reflections of themselves and the other, and their
own history, giving them meaning of the world and its existence.
Key words: Language. Afrobrasilian culture. History. Resistance. Social
Representation.

Introdução

A questão da identidade nessa contemporaneidade ou modernidade


tardia (HALL, 1992) deve-se ao fato da emergência de “novos sujeitos
culturais” resultado da própria dinâmica histórica e sua dialética, o eterno vir
a ser, e nesse sentido a transformação, pois tudo está em processo e
consequentemente os indivíduos em suas historicidades.

A identidade cultural na pós-modernidade, desafio à teoria social,


passa a ser objeto de estudo e atenção devido às demandas que a
alteridade impõe - a pluralidade cultural, as identidades e os sujeitos
culturais, autoafirmando-se enquanto “seres-sendo”, “seres no mundo”,
“seres no mundo com” (GALEFFI, 2001), interagindo entre si enquanto
mônadas, pois “(...) cada ente é uma legítima representação do todo.”
(BONNEAU, 2010, p.79).

A identidade negra nesse caso emerge desse processo, o sujeito


negado historicamente enquanto ser no contexto das relações étnico-raciais,
e sua inserção no staus quo, autoconstituindo-se enquanto indivíduo-sujeito,
expressão de uma cultura denegada e estigmatizada historicamente.

A assunção desses sujeitos acontece exatamente no momento em


que eclodem os movimentos sociais negros – Negritude, no início do século
passado e seus desdobramentos em todo o mundo, e no Brasil, em vários

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aspectos: desde a religiosidade, a música, a poesia, o teatro, a literatura.


Desse modo, não podemos deixar de falar em Lea Garcia, Lélia Gonzales,
Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento, Conceição Evaristo, Cuti, Menininha
do Gantois, Maria Carolina de Jesus, entre inúmeros, e, principalmente a
publicação dos Cadernos Negros, que passaram então, a fazer parte do
movimento de engajamento político e de luta pela equidade.

Os estudos a respeito da história e da cultura africana e afrobrasileira


passam a ser então referencia para a (re)construção da identidade negra,
forjada nas lutas de classes e contra o racismo. Assim, todo e qualquer
estudo que provoque reflexões a respeito dessa questão contribuirá na
formação de uma sociedade mais justa, desestigmatizada e menos desigual,
formando cidadãos-sujeitos.

Esse estudo atende ao que preconiza a lei 10.639/03 quanto às ações


afirmativas no sentido de valorizar a história, a cultura africana e
afrobrasileira, rompendo com os eurocentrismos vigentes, que influenciam
na autoafirmação da identidade das crianças e jovens negros.

É mais uma contribuição no que diz respeito à valorização dos


repertórios africanos e afrobrasileiros, e o reconhecimento da história
enquanto uma construção coletiva, com a participação dos mais diversos
personagens, inclusive negros e demais segmentos historicamente
denegados. Consequentemente contribuirá também a autoafirmação e
autoestima dos jovens negros no contexto das relações étnico-raciais, e,
principalmente, para a educação no processo de formação de
educadores/professores.

O objetivo desse estudo é compreender como a identidade negra está


representada nas letras das músicas do Bloco Afro Ilê Aiyê e quais os
elementos constituidores dessa identidade.

Como fonte documental, utilizamos as letras das músicas gravadas no CD


“Ilê Aiyê 25 anos” (1999) onde buscaremos perceber em suas
composições, as percepções dos seus autores a respeito da identidade
dentro de um contexto interativo-sócio-histórcio-político-cultural, bem como
suas visões de mundo, e valores sócio-estéticos etnicamente construídos.

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Este estudo está inserido no campo dos Estudos Culturais (HALL,


1992, 2011; WOODWARD, 2000) por trazerem no bojo das suas reflexões,
questões que dizem respeito às diferenças étnicas, identidades culturais,
relações raciais e de gênero, e dos processos de exclusão social, econômica
e cultural de grandes extratos de populações historicamente apartadas dos
bens socialmente produzidos no seio das nações hegemônicas, incluindo
também, questões que envolvem os processos de descolonização das áreas
geográficas submetidas ao imperialismo por longos séculos.

Além dos Estudos Culturais buscamos elementos do referencial teórico


das Representações Sociais (MOSCOVICI, 1978; JODELET, 1998), por se
tratar de uma teoria que traz na sua perspectiva a proposta de identificar as
formas pelas quais os sujeitos históricos constroem e resignificam suas
ações, atitudes, conceitos, formas de ser e fazer próprios da atividade
humana no contexto histórico do qual fazem parte, inferindo valores,
reflexões e abstrações num processo cognitivo de elaboração do
conhecimento.

Como o objeto da pesquisa se configura na forma como se estabelece a


construção da identidade, utilizaremos da análise de conteúdo (BARDIN,
1977), onde serão selecionados os termos e as expressões mais frequentes
que emergem nas letras das musicas, nesse caso, a palavra.

Identidade: representações do modo de ser, ver, pensar, agir e


estar no mundo

Os escritos sobre identidade nos revelam que, por conta das suas
mais variadas manifestações, hoje, mais do que nunca, torna-se objeto de
perscrutação dos cientistas sociais no intuito de entender como é construída
pelos atores sociais e como se apresenta em seus contextos sócio-histórico-
culturais.

Segundo Marco Aurélio Luz (2004, p.17), “o real fundamento das


diversidades está na linguagem, nas diferentes formas de comunicação ou
ainda de vinculação da sociedade caracterizada pelos valores, pelas
instituições, territorialidade e temporalidade, sua razão de ser”. O homem

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enquanto ser social, nasce e vive em uma sociedade, herda valores,


princípios, formas de ser, ver, pensar, agir e estar no mundo, com o mundo.

Para Luz (2004, p.18), “Todo ser humano nasce e vive em sociedade.
Desde a barriga da mãe o nascituro começa a receber sinais característicos
e específicos do mundo em que viverá (...), o nascituro herdará o contexto
histórico e civilizatório de seus ancestrais.” Portanto, segundo o autor, são
“os sistemas de civilizações que constituem a variedade de culturas que
estruturam as identidades e alteridades humanas.” (p.18).

O indivíduo, enquanto construção social, resultado dos valores e das


relações intrínsecas da sociedade à qual pertence, interage na dinâmica das
relações de produção, formas de agir, ser, viver e pensar o mundo, construir,
morar, brincar, produzir símbolos, lutar, resistir, enfim, um sujeito histórico.
Nessa perspectiva, “identidade é história, (...) e não há personagem fora da
história, assim como não há história - ao menos história humana - sem
personagens.” (CIAMPA, 2001, p.157).

Nesse sentido,

A identidade é entendida como um conjunto de repertórios de ação, de


língua e de cultura que permite a uma pessoa reconhecer sua
vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele. Isso não
depende somente do nascimento ou das escolhas realizadas pelos
sujeitos, pois no campo político das relações de poder, os grupos
podem fornecer uma identidade aos indivíduos. (SANTOS, 2008, p.2).

A pertinência deste estudo está relacionada ao fato de fazermos parte


de um mundo nunca antes tão cosmopolitizado como nesse momento,
denominado de contemporaneidade, resultado mais precisamente do
processo desencadeado no século XV com a expansão marítima comercial
europeia, advento que demandou constantes deslocamentos populacionais
colonizadores de várias regiões do globo que, além de interagir com “novos
povos”, promoveu migrações forçadas e espontâneas, formando sujeitos
cada vez mais plurais; hoje, mais do que nunca, sob os efeitos da velocidade
da informação “e da crescente tendência a uma economia de caráter
transnacional.” (REIS, 1999, p. 53).

A identidade se constrói exatamente nos interstícios de tensões entre o


indivíduo, o meio social no qual vive e sob influências outras, exógenas ou

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endógenas, que constantemente estão interferindo nas suas subjetividades,


constituindo seu ser, sua personalidade e sua individualidade. Ela se
estabelece nessa relação dinâmica do fazer social, e está efetivamente
condicionada aos próprios processos políticos e culturais nos quais os sujeitos
estão envolvidos. Neste caso, ela se insere no “[...] ‘circuito da cultura’: aquele
em que o foco se desloca dos sistemas de representação para as identidades
produzidas por esses próprios sistemas.” (WOODWARD, 2000, p.17). Dessa
forma, para Woodward, “a cultura molda a identidade ao dar sentido à
experiência e ao tornar possível optar, entre as várias identidades possíveis,
por um modo específico de subjetividade [...]” (p.18-19).
Os indivíduos, enquanto sujeitos culturais elaboram suas formas de ser,
se ver, ver o outro e ver o mundo através de símbolos nas suas práticas
coletivas, afetivas e nas suas relações de produção. Através desses aspectos,
elaboram representações que dão significados à sua existência e a sua
integração ao grupo social ao qual pertence, participando dos valores
socialmente construídos.
A representação de um grupo ou indivíduos é fundamental para a
construção ou desconstrução da(s) sua(s) identidade(s), autoestima e
auto-conceito, uma vez que os indivíduos ou grupo podem perceber-se
e conceitualizar-se a partir desse ‘real’ e internalizá-lo. (SILVA, 2001,
p.12).

Desse modo,
[...] As representações incluem as práticas de significação e os
sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são
produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos
significados produzidos pelas representações que damos sentido à
nossa experiência e àquilo que somos. Podemos, inclusive, sugerir,
por esses sistemas simbólicos, tornar possível aquilo que somos e
aquilo no qual podemos nos tornar (SILVA, 2001, p.17).

Neste caso, é no seio da cultura que os indivíduos estabelecem


conexões com o mundo no qual vivem e se estruturam emocional e
culturalmente, construindo assim suas identidades.

[...] A representação compreendida como um processo cultural


estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas
simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às
questões: quem eu sou? o que eu sou? o que eu poderia ser? quem
eu quero ser? os discursos e os sistemas de representação
constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se
posicionar e a partir dos quais podem falar (SILVA, 2001, p.17).

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Sendo as identidades culturalmente construídas, as representações


também o são, e estas fazem parte desse processo, concomitante e
intrinsecamente relacionadas.
As representações sociais devem então ser entendidas,
[...] Enquanto uma forma de pensamento social, cuja gênese,
propriedades e funções devem ser relacionadas com os processos
que afetam a vida e a comunidade sociais, com os mecanismos que
ocorrem para a definição da identidade e especificidade dos sujeitos
sociais, indivíduos ou grupos, bem como à energética que subsidia as
relações que estes mantêm entre si. (JODELET apud ARRUDA,
1998, p.28).

As representações dessa forma têm o caráter de dar sentido à vida, ao


mundo e à própria dos indivíduos que as elaboram para se autoafirmarem no
mundo enquanto sujeitos.

Segundo Moscovici (1978, p.25),

Toda representação é composta de figuras e de expressões


socializadas. Conjuntamente, uma representação social é a
organização de imagens e de linguagens, porque ela realça e simboliza
atos e situações que são do nosso uso e nos tornam comuns.
Encarada de um modo passivo, ela é apreendida a título de reflexo, na
consciência individual e coletiva, de um objeto, de um feixe de ideias
que lhe são exteriores.

Nesse sentido, os atores sociais, na medida em que vivenciam suas


experiências no dia a dia em seus devires, constroem suas representações de
mundo e de existência, dando sentido as suas vidas, e ao vivenciá-las, dão
significado a tudo que os cercam, ressignificando-os, dando-lhes sentido.

Identidade negra: uma construção político-cultural

As identidades apesar de serem distintas e de estarem


interpenetradas, em algum momento ou lugar, manifestam-se de acordo com
as circunstâncias, enquanto característica dos sujeitos culturais nos seus
aspectos: étnico, social, racial, individual, político, cultural, enfim, nas mais
diversas e inúmeras facetas que elas representam, mas, que constituem o
indivíduo de uma forma geral.

Os escritos sobre identidade nos revelam que, por conta das suas
mais variadas manifestações, hoje, mais do que nunca, torna-se objeto de

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perscrutação dos cientistas sociais no intuito de entender como ela é


construída pelos atores sociais e como se apresenta em seus contextos
sócio-histórico-culturais.

Enquanto sujeito histórico, étnico e cultural, o negro, principalmente na


diáspora africana, os afroamericanos, de uma forma geral nas Américas,
(re)criaram a si e sua cultura, resultado das relações raciais resultantes da
escravidão compulsória por mais de três séculos, e que, mesmo após a
abolição da escravidão tiveram que enfrentar a discriminação e o
preconceito, tanto social como racial por conta da sua origem, cor e
condição socioeconômica.

Seu modo de ser, pensar e agir deveu-se exatamente dessa condição,


por isso desenvolveram os mais diversos mecanismos e estratégias para
subsistir nessa sociedade racializada devido ao próprio contexto histórico da
qual se origina.

Autoafirmar-se enquanto sujeito foi sem dúvidas sua luta, desde o


momento da sua captura, aprisionamento, confinamento, subalternização e
subjugação (REDIKER, 2011), que jamais se submeteu enquanto
propriedade e mão de obra escravizada da classe senhorial brasileira.

A resistência a esta condição, entre outros processos, como lutas,


fugas, rebeliões, desobediência, negociações, simulações e dissimulações
(REIS; SILVA, 1989), fizeram parte da sua coexistência no contexto do
sistema escravista no sentido de posicionar-se enquanto ser, desde o tráfico
aos dias de hoje, imprimindo sua cultura juntamente com a do branco,
tornando-se dessa forma uma marca em todas as Américas.

Os processos de resistência do negro nas Américas configuraram-se


das mais diferentes formas, resignificando estratégias utilizadas em África
fruto do contato com os invasores europeus como o quilombo. (LEITE,
2000). Suas praticas religiosas e lúdicas - o candomblé, a capoeira, o samba
de roda, afoxés, etc, preservadas até hoje, representam a forma como a
cultura é um espaço de resistência, (re)significações e construção de
identidades. (HALL, 2011). As identidades enquanto formas de ser, ver e

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estar no mundo são práticas culturais que emergem de uma cultura,


compreendida,

[...] tanto como uma forma de vida - compreendendo ideias, atitudes,


linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder – quanto toda
uma forma de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura,
mercadorias produzidas em massa, e assim por diante (NELSON;
TREICHLER; GROSSBERG, 1995, p.14).

Para Hall (apud Nelson; Treichler; Grossberg (1995, p.15) a identidade


significa “o terreno real, sólido, das práticas, representações, línguas e
costumes de qualquer sociedade histórica específica, bem como as formas
contraditórias de senso comum que se enraizaram na vida popular e ajudaram
a moldá-la.”
No continuum processo de resistência à condição a si imposta pelo
colonialismo europeu desde o século XV até a contemporaneidade, desde sua
captura e translado às Américas, foi incessante e constante a luta do negro
pela liberdade, condição humana social, cultural, política e histórica.
De Zumbí dos Palmares, a Licutan e Luiza Mahim (Revolta dos Malês),
João de Deus, Lucas Dantas, Manuel Faustino e Luís Gonzaga das Virgens
(Revolução dos Alfaiates) a Luis Gama, José do Patrocínio, Oliveira Silveira,
Lélia Gonzales, Menininha do Gantois, Mãe Stela de Oxossi, Abdias do
Nascimento e tantos, tantos outros heróis e combatentes da opressão
hegemônica branca eurocêntrica até os movimentos negros da década de 60 e
70, e a Lei 10.639/03, é um percurso significativo das lutas por cidadania e
inclusão, por e de direito, pela sua participação na construção e sustentação
desse país durante os quinhentos anos de história.
É nesse contexto, década de 70, das lutas contra a ditadura militar no
Brasil que surgem os movimentos negros, e, em Salvador, Bahia, no Bairro da
Liberdade, a Associação Cultural Bloco Carnavalesco Bloco Ilê Aiyê nasce com o
“propósito de libertação e conscientização, construção de identidades,
enaltecimento de autoestima negra, enfim, construção da cidadania e da
pessoa negra.” (GUIMARÃES, 2001, p.2).
A sede do bloco então sediada no Terreiro Ilê Axé Jittolú, cuja Yalorixá,
Mãe Hilda, é mãe de um dos idealizadores do bloco, Antonio Carlos dos
Santos, conhecido por Vovô, hoje com sede própria, denominada “Senzala do
Barro Preto”. Desenvolve projetos artísticos, culturais, sociais e educacionais

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como a instituição da “Escola Mãe Hilda”, do 1º ao 3º ano, e a “Escola de


Percussão Banda Erê”.
Além dessas atividades, ao longo do ano, todos os sábados, a sede do
bloco realiza seus ensaios, tornando-se um espaço cultural, não só para os
moradores do bairro e adjacências, como de outras localidades do estado, do
país e do mundo.
Anualmente, além do concurso da Beleza Negra, onde se escolhe a mais
bela das negras que será a rainha do bloco durante o Carnaval, há também o
festival de música quando são selecionadas as ganhadoras para o próximo
carnaval.
Essas músicas, cujas letras são criações, não só de músicos
profissionais como também de pessoas da comunidade, trazem em seus
textos, elementos da sua cultura local, expressando sentimentos de
pertencimento, enaltecendo sua história, seus heróis, ancestrais, religiosidade,
cultura, lutas, estética, etc. “Num contexto global, a música é, para os negros,
um símbolo afro-diaspórico que dispensa centro ou periferia, é um espaço de
representação sem fronteiras.” (LIMA, 2002, p.12).
É através da linguagem musical que os blocos afros vão cantar a vida, a
existência, os enfrentamentos diante do racismo e suas leituras de mundo a
partir das suas referencias étnico-histórico-culturais. Nesse sentido, a
linguagem é “como um termo geral para as práticas de representação, sendo
dada à linguagem uma posição privilegiada na construção e circulação do
significado.” (HALL, 2001, p.9).
Por outro lado, a linguagem musical faz parte das representações de
mundo dos indivíduos, e nesse sentido, não só as letras das músicas, mas, a
própria música pode ser considerada enquanto discurso. (WERNEI, 2009, p.3).
E sendo o discurso um lugar particular onde a linguagem é materializada na
idoelogia e como esta se manifesta na linguagem. (ORLANDI, 2005, p.10), as
canções dos compositores negros enquanto discursos reafirmam suas
identidades no contexto das diferenças, espaço da sua autoexpressão
enquanto sujeito histórico-étnico-cultural. Portanto, é um texto político no qual
se posiciona diante das desigualdades, da exclusão e da sua negação, onde se
afirma uma identidade de resistência.

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[...] criada por atores que se encontram em condições/posições sociais


desvalorizadas ou estigmatizadas pela lógica da dominação. Seus
elementos engendram formas de resistência e sobrevivência baseadas
em princípios diferentes, ou mesmo, opostos àqueles que orientam as
instituições da sociedade. Essa identidade, ainda de acordo com
Castells, leva a formação de comunas, ou comunidades que
estabelecem seus próprios mecanismos de resistência à dominação
estrutural. Seja pelos fundamentalismos religiosos, étnicos, [...] criando
mecanismos de resistência e sobrevivência frente aos princípios
legitimadores da ordem hegemônica. (RIBEIRO, 2008, p.65).

Afinal, é na rua do Curuzu, no bairro da Liberdade em Salvador, que


ecoa para o mundo uma movimento insólito de demonstração de pertencimento
étnico-racial e de resistência, dentre outros, que naquele momento os negros
fizeram emergir na capital baiana, como reação diante aos estigmas a si
impostos secularmente, enquanto tentativa de denegar-lhes sua condição
enquanto seres-sendo. Nesse sentido, o bairro da Liberdade caracteriza-se
pela sua marca original, uma comunalidade por excelência, pois, é de lá que
ressoa os repertórios culturais e ancestrais pulsantes de vida nas veias de seus
moradores236. Afinal, “é no ritmo do tambor e no toque do agogô que as
identidades se constroem.” (MENDES, 2008, p .11).

A música negra afrobaiana: linguagem de autoafirmação identitária

A musicalidade é intrínseca à própria dimensão da existência como um


todo. O som, os ruídos, o sopro do vento, o canto dos pássaros, enfim, tudo
isto faz parte do ambiente natural onde o homem vive, e nessa relação, passa
a imitar esses sons através do assobio, batendo com as mãos nos mais
variados suportes e na fabricação de instrumentos percussivos que emitem
sonoridades e ritmos.
A linguagem musical surge então dessa dinâmica, das formas próprias
de existência de cada indivíduo no seu contexto sociocultural e nas suas
relações de produção, dessa forma, marcando profundamente sua maneira de
ser, ver, viver, pensar, agir e estar no mundo.

236
Segundo Mendes (2004, p.4) [....] as populações afro-descendentes do Bairro da Liberdade
promoveram uma verdadeira revolução cultural, fundando em seguida várias outras agremiações e
núcleos de militância negra: o Muzenza e o Massamalu, em 1981; To Aqui África, em 1989; Oriobá, em
1991 – todos esses na categoria de blocos. Como afoxés, surgiram: Netos de Gandhi, em 1975 e o Olorum
Babá Mi, em 1979. Foram também instalados vários núcleos da resistência negra, tais como: Movimento
Negro Unificado (MNU), em 1991 e a criação do Grupo Folclórico do Colégio Estadual Duque de
Caxias, em 1971.

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A música não apenas ‘fala’ a partir de uma inserção no mundo, mas


ela é das poucas atividades integradoras numa sociedade [...] Ou seja,
a função social da música enquanto linguagem de afirmação de uma
coletividade. (WEID, 2008, p.2).

Uma das praticas mais comuns durante as atividades de produção dos


bens socialmente produzidos entre alguns povos durante a colheita ou
trabalhos árduos é o canto, e no caso da escravidão negra na América do
Norte as canções de trabalho, enquanto estratégia dos escravizados para
atenuar as condições de vida, buscavam refúgio no imaginário. No caso do
Brasil, os cantos de trabalho, assim chamados, eram os espaços ocupados
pelos negros escravizados e livres onde se recrutavam sua mão de obra, onde
era também comum os batuques e folguedos.
As canções de trabalho ainda existem em muitas regiões do Brasil. Weid
(2008) encontrou na Baixada Fluminense, no semiárido da Bahia e no Vale do
Jequitinhonha em Minas Gerais essa manifestação musical. Segundo ele:
Esses trabalhadores comuns que têm o dom de serem cantadores e
poetas/compositores são, no caso brasileiro, a caixa de ressonância de
um povo e, por isso, são agentes fundamentais na reestruturação de
uma comunidade, de um município, de um Estado. São atores sociais
que têm a capacidade de aglutinar aqueles setores excluídos, ‘falando’
de seu cotidiano, de suas festas, de suas tradições. (p.2).

Da mesma forma, as letras das músicas afros são repertórios de vozes


que se quer ser, indivíduos que exaltam em suas canções representações de si
e do mundo a partir da sua história e cultura, no sentido de auto-afirmar-se
enquanto sujeito, buscando nas suas idiossincrasias referenciais próprios de
uma identidade étnico-racial.
O corpus desse estudo são quatorze canções que constam no CD Ilê
Aiyê 25 anos. Essas canções traduzem o sentimento de pertencimento de uma
cultura ancestral, modos de ser, ver, estar e sentir o mundo, no mundo, como
sujeitos-cidadãos que são imbuídos de leituras de si, do outro e do mundo a
partir de uma cosmovisão idealizada a partir dos valores civilizatórios
afrobrasileiros.
Ao identificar as palavras e expressões mais frequentes presentes nas
letras das músicas, percebemos a dimensão de pertencimento ao ethos Ilê
Aiyê, enquanto espaço de coexistência. A recorrência dessas palavras nas
canções nos remete como esse espaço é significativo para os compositores. A

1002
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tradução dessa expressão literalmente em iorubá é Ilê (casa) e Aiyê (a terra; o


mundo visível), contudo, é traduzido livremente como “Mundo Negro” 237. Por
conseguinte o bloco termina sediado no próprio terreiro de candomblé Ilê Axé
Jitolú, cuja Yalorixá, sacerdotiza-mãe, genitora do atual presidente.
Essas denominações refletem o sentido do loccus Ilê Aiyê que
representa espaço agregador que é enquanto comunalidade. Referencia para
todos no seu entorno – a própria Rua do Curuzú, onde está instalado, como o
bairro da Liberdade, considerado o de maior contingente negro da capital e
adjacências.
Expressões como: “Ilê é uma beleza”; “Ilê Aiyê, liberdade, expressão
Bantu e viva da nossa Bahia”; “Ilê Aiyê Orin 238”; “Ilê Aiyê, o povo Banto, ajudou
a construir o Brasil”; “Deixe eu curtir o Ilê, o charme da Liberdade”, remetem
sempre o espaço Ilê como representação de uma África, que apesar de
distante espacialmente está sempre presente e resignificada, e ao se remeter à
Bahia enquanto expressão viva da cultura Bantu.
A palavra liberdade aparece também com maior frequência, e ao mesmo
tempo em que representa o Ilê enquanto espaço de liberdade da expressão
africana com referencia aos Bantu, e também a condição de ser livre. Quando
iniciada com letra maiúscula está se referindo ao bairro onde se encontra
localizada a Rua do Curuzú, sede do bloco. Curuzú, é outra palavra bastante
recorrente, afinal, é lá que está “a coisa mais de linda de se ver, é o Ilê Aiyê”.
Na canção Os mais belos dos belos, gravada por Daniela Mércury em
1992, dentre outras, o que lhe rendeu o disco de diamante, a própria letra, é
mais uma exaltação ao Ilê, “o charme da Liberdade”. Além de se
autorepresentar no bloco, o autor se afirma enquanto tal quando exclama que
“o mais belo dos belos, sou eu, sou eu, bata no peito mais forte e diga eu sou
Ilê.” A dimensão da representação da identidade através dessas estrofes
enquanto discurso legitimador de si e da sua cultura denota um posicionamento
político diante de uma cultura hegemônica branca segregadora,
estigmatizadora. Portanto, “deixe eu curtir o Ilê, o chame da Liberdade.”

237
Cf. Apostila Ilê Aiyê. Disponível em: http://www.irdeb.ba.gov.br/tamboresdaliberdade/?p=1620.
Acesso. 08.12.2014.
238
Cantiga. Disponível em: http://www.africanasraizes.com.br/yoruba.html. Aceso: 08.12.2014.

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A palavra Zumbi aparece por duas vezes numa canção intitulada


Décima-quita sinfonia (Clamação a Zumbi). Na primeira estrofe:

Nesta décima quinta


Sinfonia de Zumbi,
Vamos clamar você
Negros unidos no Bloco Ilê Aiyê

Na segunda,
Grande guerreio Zumbí,
Eterno senhor de Palmares
Aqui está como você deixou
A Liberdade parece com a linha do Equador

Se o autor quis remeter sua canção à dimensão de uma sinfonia no


mesmo contexto da décima sinfonia de Bethoven, considerada sua obra prima,
isso será um enigma. Contudo, a exaltação àquele que representa o maior
símbolo da luta pela liberdade e resistência ao opressor, o herói de Palmares,
uma das maiores manifestações de contestação à escravidão nas Américas,
demonstração da não subserviência ao branco. O autor da canção usa da
liberdade de expressão que a linguagem poética possibilita, a liberdade do
pensar e de se expressar.
Ao comparar o bairro da Liberdade à linha do Equador, estaria o
autor se remetendo a uma linha imaginária divisora de dois mundos, o do
branco e o do negro? O apartheid social, racial e residencial? Demarcando
assim um território exclusivo enquanto lugar de suas representações e que lhe
representa.

A canção finaliza com a seguinte estrofe:


Ilê Aiyê Baba Okê 239
Axé 240 soba 241
Ilê Aiyê Orin
Orin Oxalá

239
É uma das qualidades de Oxalá, orixá dos montes. Disponível em:
http://www.vetorial.net/~rakaama/o-babaoke.html. Acesso: 08.12.2014.
240
Expressão utilizada para passar força espiritual, podendo ser ainda, o mesmo que amém, assim seja.
Disponível em: https://axepandalaira.wordpress.com/. Acesso.08.12.2014.
241
Uma das qualidades de Yemanjá no Brasil. Disponível em: https://axepandalaira.wordpress.com/s/.
Acesso: 08.12.2014.

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Na primeira frase o autor se remete a um orixá da família de Oxalá


(Baba Okê), também chamado de Orixalá, divindade da criação, que é o Oxalá
Moço, denominado também de Oxaguian, jovem-guerreiro, portanto, os de
maior representação no panteão das divindades iorubanas. Na segunda frase,
faz menção a Yemanjá (soba), mãe de todos os orixás, considerada esposa de
Oxalá em alguns mitos. Na Nigéria deusa do rio Ogum, no Brasil, porém,
senhora das águas salgadas, cultuada em toda costa brasileira. Ao evocá-la, o
autor usa a palavra axé, que pode ser traduzida por amém. Portanto rogando
graças a grande deusa-mãe.
A palavra orin, como já vimos, significa cantiga, canção, portanto, o
compositor traduz o Ilê como canção, e finaliza exaltando o canto para Oxalá,
deus supremo, exaltando dessa forma a divindade máxima do panteão iorubá.
Ao finalizar sua “Décima-quinta sinfonia”, o autor faz uma exaltação aos
principais deuses do panteão iorubano, ancestrais, pais heráldicos desse povo,
evocando suas bênçãos e graças, reverenciando-os pelas suas interseções em
suas lutas e conquistas.
Na letra Negrice cristal (Viva o rei), gravada em 2003 no CD Cantos
negros, composta para o carnaval de 1983, cujo tema foi Ghana Ashanti, o
autor faz uma homenagem ao Rei Otumfuo Osei Tutu II Asantehene da
monarquia Ashanti, constitucionalmente protegida ainda hoje, um estado sub-
nacional tradicional em Gana. 242

Viva o rei Osei Tutu


Ashanti a cantar
Salve o nosso rei Obá
Viva o rei Osei Tutu
Negrice cristal
Liberdade, curuzu

Tema Gana Ashanti


Ilê vem apresentar
Ashanti, povo negro
Dessa rica região
Gana império Gana
Do ouro e do cacau

242
Cf. O império Ashanti. Disponível em:
http://ecoexperienciacomunitaria.blogspot.com.br/2013/02/o-imperio-ashanti.html. Acesso em.
13.12.2014.

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Sudaneza, Alto Volta


e África ocidental

A influência Ashanti
Se fazia sentir
O Togo Daomé
E a Costa do Marfim
Viva o rei

Ao homenagear o Grande Império de Ghana, que, conjuntamente com o do


Mali e Songai, serviram durante muito como anteparo ao avanço da expansão Àrabe,
a jihad, islamizando e alimentando o tráfico de escravos, provocou o deslocamento em
massa de povos que habitavam a região subsariana. (OLIVEIRA, 2003). O autor se
refere também a riqueza desse império, grande produtor de ouro e cacau, apontando
assim, a exuberância da economia e cultura africanas.
A constante referencia aos países, impérios antigos e atuais,
personagens negros, a estética negra, os principais grupos linguísticos dos
quais descendemos, é uma das marcas nessas canções enquanto discursos
de autoafirmação de uma identidade imanente a uma África idealizada, berço
das civilizações ancestrais, deslocadas compulsoriamente para além do
Atlântico, contudo, reificada, viva, presente ainda na memória como a canção
Heranças Bantos
Eu vim de lá
Aqui cheguei
Trabalho forçado
todo tempo acuado
sem ter a minha vez (Bis)

Dos grandes lagos


Região em que surgiu
Os Bancongos, os Bundos,
Balubas, Tongas, Xonas, Jagas Zulus
Civilização Bantu, que no Brasil concentrou
Vila São Vicente, canavial de presente,
Pau brasil, Salvador

Cada pedaço de chão,


cada pedra fincada,
um pedaço de mim
Ilê Aiyê
O povo Bantu ajudou
a construir o Brasil

Pedra sobre pedra


Sangue e suor no chão
agricultura floresce,
metalurgia aparece,

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Candomblé, religião
Irmandade Boa Morte
Rosário dos Pretos, Zumbi lutador

Liderança firmada,
que apesar do tempo, o vento não levou
um legado na dança
influência no linguajar,
sincretismo na crença,
na culinária o bom paladar
Tristeza Palmares, Curuzu alegria,
Ilê Aiyê Liberdade Expressão Bantu
viva da nossa Bahia

A riqueza de representações da África e da cultura africana nessa


canção se desataca das demais ao identificar alguns dos principais grupos
étnicos bantus como os Bancongos, Bundos, Balubas, Tongas, Xonas, Jagas e
Zulus enquanto povos que a ajudaram a construir o Brasil.
É todo um legado africano que faz parte do nosso dia a dia que estão
constantemente a exalar nos versos dessas canções. A contribuição do
africano na economia, pelos conhecimentos que traziam consigo da agricultura,
na metalurgia, na ouriversaria, na mineração, e, principalmente na
religiosidade. Do candomblé às irmandades religiosas: Boa Morte, Rosário dos
Pretos, dentre outras, enquanto lideranças responsáveis pela perpetuação dos
valores civilizatórios africanos, suas tradições, no processo de formação da
nossa identidade, preservando a deles.

Considerações finais

A perspectiva de se investigar a respeito de como sujeitos negros que


fazem parte de um universo suis generis como o Bloco Afro Ilê Aiyê, ethos por
excelência de uma autoafirmação identitária, de como se veem e se
representam através das letras das suas canções enquanto repertório próprio e
apropriado das suas visões e leituras de mundo, do mundo e no mundo, abre
possibilidades de refletirmos a respeito de como essa identidade é
(re)construída e como os mais diversos elementos da vida cotidiana desses
indivíduos: história, religiosidade, estética, ética e memória estão envolvidas
nesse processo, o que sem dúvida, fazem parte dos repertórios dos sujeitos
culturais que somam-se a outros tantos no contexto da diversidade e da
alteridade, e faz com que nos aproximemos cada vez mais de uma ética da
coexistência.
A emergência de um movimento como esse, enquanto uma revolução,
de acordo com Mendes (2004), faz parte de um processo da própria condição
humana – ser e star no mundo. Como um rastilho de pólvora no paiol, a década

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de 70 em Salvador representou o marco histórico sem precedentes na luta


contra o apartheid sócio-economico-cultural imposto aos afrodescendentes.
Como a identidade se constrói na diferença, os estigmas produzidos
historicamente tensionaram a emergência de movimentos autoidentários em
todo mundo refletindo assim uma diversidade negada a partir de uma
cosmovisão única de mundo produzida pela e na modernidade.
Como as identidades estão em constante (re)construção, afinal, são
hibridas, estão em constante processo de reafirmação de acordo com os
sujeitos em seus tempos e espaços próprios, portanto são históricas, estão
num eterno vir a ser dos seres-sendo em suas historicidades.
Nesse sentido, os movimentos negros em suas mais variadas
manifestações e denominações protagonizaram uma ostensiva reação ao
racismo e ao preconceito racial invisibilizados pela ideologia da “democracia
racial” imperante em nosso país, e o Ilê Aiyê, assim como os demais blocos e
entidades afros, imprimiram em todo o país a marca da nossa brasilidade que é
imanentemente e inclusive afro, pautada por uma ética da coexistência.

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1010
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GRUPO DE TRABALHO: ALFABETIZAÇÃO E ELEVAÇÃO DE


ESCOLARIDADE DE PESSOAS JOVENS, ADULTAS E IDOSAS NA BAHIA:
EXPERIÊNCIAS EXITOSAS

PROPOSITORA: FRANCISCA ELENIR ALVES

Ementa:

Este GT se propõe a apresentar e discutir a alfabetização de pessoas jovens,

adultas e idosas no contexto da Educação de Jovens e Adultos no Estado da

Bahia, socializando as experiências exitosas, bem como a concepção de

alfabetização de jovens, adultos e idosos e procedimentos metodológicos,

com enfoque na relação entre esse campo de atuação e pesquisa educacional

com as políticas públicas direcionadas ao atendimento daquela demanda

social.

1011
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

CULTURA AFRO-BRASILEIRA E O PROJETO DE REGULARIZAÇÃO


DO FLUXO ESCOLAR NA ESCOLA MUNICIPAL BRIGADEIRO
EDUARDO GOMES – SALVADOR/BA

NEISE MARE DE SOUZA ALVES (UFS)


DÉBORA BARBOSA DA SILVA (UFS)
MARIA DAS GRAÇAS GUIMARÃES (SMED/Salvador)

Introdução

No Brasil, o processo de colonização favoreceu a diversidade cultural


existente no território nacional. Os africanos trazidos para trabalhar na lavoura
canavieira tentaram reproduzir de alguma forma o modo de vida original,
procurando conservar as suas práticas religiosas, hábitos alimentares e
costumes. Entretanto, dada a estrutura escravagista colonial essa reprodução
cultural no novo espaço, consistiu na verdade em uma adaptação. Assim, nos
dias atuais, identificam-se na cultura brasileira elementos de matrizes
africanas, européia e dos povos nativos, identificados como indígenas.

A abolição da escravatura oficial não garantiu as mesmas


oportunidades para negros e não negros na sociedade brasileira. As lutas e
conquistas são diárias e contínuas. E, embora a educação seja considerada
uma oportunidade para ascensão social, no Brasil, ela ainda reproduz a lógica
excludente com certos grupos étnicos e classes sociais. O acesso à escola
pública não assegurou à população afrodescendente melhorias nas condições
de vida e respeito à sua identidade cultural. Essa é a parcela da população que
continua detendo os piores indicadores sociais e econômicos. Passos (2009, p.
101) afirma que este quadro deve-se a ação do Estado brasileiro e aponta
como consequência do racismo “as desigualdades educacionais no Brasil
contemporâneo”.

No contexto educacional, as ações governamentais para promover


políticas públicas que possibilitem a integração e o diálogo entre as culturas
dos grupos étnicos que compõe a sociedade brasileira, de modo que se sintam
representados, é algo recente. Apesar de ser uma sociedade onde a
pluralidade cultural constitui um traço marcante, há dificuldades para que essa
diversidade deixe de ser apenas reconhecida e passe a ser aceita pelas

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instituições socais, inclusive pela Escola. Desse modo, são evidentes as


contradições nesta sociedade, que por muito tempo permaneceu sob a égide
do mito da democracia racial. Um mito resultante de uma ideologia que
favoreceu a difusão da cultura dos grupos hegemônicos e de práticas
pedagógicas geradoras de processos que se traduziram na repetência e
evasão, elementos associados ao fracasso escolar.

De acordo com Baeta (1992) o fracasso escolar não é um fenômeno


natural. No entendimento da autora,

enquanto fenômeno, é histórico, ou seja, nem sempre existiu e se isto


não ocorria deve-se ao fato de que a maioria da população brasileira
não tinha acesso à escola, exatamente os membros das classes
trabalhadoras, tanto urbanas, quanto rurais (BAETA,1992, p.17)

Por outro lado, a autora destaca que as dificuldades na aprendizagem,


evasão e repetência são consequências de um conjunto de fatores complexos.

As condições de educabilidade da criança decorrem, portanto, não só


das características de seu processo de desenvolvimento, como
também das características das práticas pedagógicas que lhe são
oferecidas. (BAETA,1992, p.17)

Os fatores escolares - quer na perspectiva da prática pedagógica,


quer na de fatores institucionais - são apontados como tendo um
papel considerável na 'produção do fracasso'. (BAETA, 1992, p. 19
apud BAETA et alii, 1982, p. 4).

Dentre as iniciativas tomadas por parte do poder público para alterar


este quadro, no final da década de 90 foi criado o Programa Educar para
Vencer, integrada por um conjunto de seis projetos. O Projeto de
Regularização do Fluxo Escolar (PRFE) era um deles e objetivava uma
intervenção para corrigir a distorção idade/série. Dada a repetência dos
estudantes do Ensino Fundamental, ele foi implantado na Bahia, nas escolas
estaduais e municipais no período compreendido entre 2000 e 2006. No ano
2000, o PRFE foi aplicado na Escola Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes, em
uma turma formada por alunos cuja faixa etária não era compatível com a

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

série, os quais costumavam se auto-identificar como “atrasados”. Eles


deveriam realizar o curso da 5ª a 8ª série em dois anos.

Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da experiência


didático-pedagógica desenvolvida na escola referida, no ano 2001, onde a
Cultura Afro-Brasileira foi utilizada como elemento atrativo para promover a
aprendizagem e a permanência dos alunos da turma do Projeto de
Regularização do Fluxo Escolar.

O processo de materialização do projeto em questão se iniciou quando


os docentes perceberam, que estes estudantes possuíam baixa auto-estima
em razão de serem alunos repetentes em várias séries do Ensino
Fundamental, sendo considerados pelos colegas da Escola como indivíduos
pouco inteligentes. Essa situação estimulou os docentes a aprofundar o
conhecimento sobre a realidade da Escola e ao auto-questionamento da sua
práxis – Como intervir para mudar aquela condição do estudante, uma vez que
os módulos continham conteúdos e organização sequencial pré-definidos?

A turma era composta por 32 educandos com idade entre 14 e 16


anos, residentes nas comunidades do bairro de São Cristóvão. Assim, os
professores responsáveis pela turma planejaram ações integradas num projeto
didático-pedagógico com conteúdos da Cultura Afro-Brasileira – religiosidade,
culinária, vocabulário, entre outros.

A metodologia participativa permeou o desenvolvimento do projeto


(FREIRE, 1987). A sua escolha deu-se em razão dos professores
reconhecerem que os alunos traziam consigo conhecimentos e experiências,
que favoreciam a sua participação na sociedade enquanto sujeito político. A
iniciativa dos docentes, principalmente das disciplinas – Geografia e História,
Ciências e Língua Portuguesa, antecedeu as determinações explicitadas na Lei
federal 10.639/03, que tornou obrigatório o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, nos currículos escolares.

A escola, os marcos curriculares nacionais e o Projeto de Regularização


do Fluxo Escolar

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A Escola Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes está localizada no


bairro de São Cristóvão, composto por cinco comunidades – Planeta, Bela
Vista do Aeroporto, Iolanda Pires, Cassange e Parque São Cristóvão – onde
reside uma população de baixa renda e com baixo nível de escolarização,
integrante das classes populares da sociedade, que enfrenta cotidianamente
problemas associados à violência urbana e/ou decorrentes da carência de
serviços de infraestrutura básica e/ou de assistência à saúde, entre outros
serviços públicos.

No bairro, a Escola referida, ainda hoje, é considerada pelos


moradores como uma referência por causa da qualidade do ensino e as vagas
são muito concorridas. Embora de pequeno porte, com apenas seis salas de
aula, ela possui uma boa estrutura, inclusive uma sala de leitura e biblioteca.

Na época, ingressavam na Escola estudantes que haviam concluído a


4ª série, oriundos de outras unidades. Assim, de início, uma dificuldade se
apresentava – os alunos com idade entre 10 e 12 anos matriculados na 5ª série
se deparavam com oito disciplinas e igual número de professores, algo que
causava impacto até que se adaptassem à nova realidade. Além disso, eles
possuíam diferentes níveis de conhecimento. Aliada a essa situação havia os
problemas familiares, que com frequência chegavam ao ambiente escolar.
Esses fatores interferiam na aprendizagem e contribuíam para que o aluno
demonstrasse baixo rendimento. Assim, no decorrer do tempo, a repetência e a
evasão também se revelavam.

Quando o PRFE foi proposto para ser implantado na escola, havia um


grupo de alunos que já apresentava defasagem idade-série. Ainda assim,
alguns professores demonstraram certa insatisfação com a aplicação desse
projeto na Escola, pois não acreditavam na efetividade da proposta. Entretanto,
a professora de Ciências do matutino, que era vice-diretora no turno oposto,
assumiu junto à Secretaria de Educação a função de coordenadora do PRFE
na unidade escolar, passando a responsável por tudo que se referisse àquela
turma. Então, foi formada uma única turma no período da manhã e convidados
os professores que desejassem atuar. Os docentes que assumiram essa tarefa

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

foram os recém concursados, que ingressaram na no serviço público do


município de Salvador no ano 2000.

No processo de redemocratização da sociedade brasileira, a Lei nº


9.394/96 ou Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) foi
formulada para assegurar os fundamentos para a formação de um núcleo
comum de disciplinas no Ensino Básico brasileiro. A Educação Básica incluía
as oito séries do Ensino Fundamental, que na atualidade são nove, mais as
três do Ensino Médio. Com a LDB foram instituídos os Parâmetros Curriculares
Nacionais, os PCN’s, com a finalidade de promover melhorias na qualidade do
ensino e uma educação voltada para o exercício da cidadania.

De acordo com Brasil (1998, p. 9, grifo nosso),

Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram elaborados procurando,


de um lado, respeitar diversidades regionais, culturais, políticas
existentes no país e, de outro, considerar a necessidade de construir
referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as
regiões brasileiras. [...], que permitam aos nossos jovens ter acesso
ao conjunto de conhecimentos socialmente elaborados e
reconhecidos como necessários ao exercício da cidadania.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais observa-se uma ênfase no


respeito às diversidades regionais e culturais existentes no território nacional.
Entretanto, mesmo na atualidade, raramente esse comportamento se verifica
no ambiente da escola pública.

Vale destacar ainda algumas características dos Parâmetros


Curriculares:

apontar a necessidade de unir esforços entre as diferentes instâncias


governamentais e da sociedade, para apoiar a escola na complexa
tarefa educativa; [...];

explicitar a necessidade de que as crianças e os jovens deste país


desenvolvam suas diferentes capacidades, enfatizando que a
apropriação dos conhecimentos socialmente elaborados é base para
a construção da cidadania e da sua identidade, e que todos são
capazes de aprender [...];

evidenciar a necessidade de tratar de temas sociais urgentes —


chamados Temas Transversais — no âmbito das diferentes áreas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

curriculares e no convívio escolar; (BRASIL, 1998, p. 10-11, grifos


nosso).

Essas características se efetivamente aplicadas nas políticas


educacionais, contribuiriam para minimizar os desacertos observados na
educação brasileira. A valorização dos conhecimentos elaborados pelos grupos
sociais, uma vez compartilhados na escola, poderia consistir num diferencial
para a permanência dos estudantes e diminuir o índice de reprovação.

Por sua vez, os temas transversais são facilitadores para reduzir as


tensões no âmbito da escola e as contradições da sociedade, pois permitem
desenvolver análise de temáticas diversas e atuais no âmbito local e mundial:
Ética, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Pluralidade Cultural, Saúde,
Trabalho e Consumo. Em princípio, a transversalidade exige uma ação onde
todas as áreas e disciplinas estejam integradas. Consequentemente, uma
alternativa para alcançá-la é o planejamento e execução de projetos
pedagógicos.

Portanto, aplicar temáticas transversais requer certa sensibilidade por


parte dos coordenadores e docentes para pré-selecionar os temas de interesse
não apenas da sociedade, mas principalmente dos grupos que participam
contexto social em que a escola está inserida, levando em conta a realidade
vivida pelos estudantes. As áreas das Ciências Naturais e Humanas se
apresentam como aquelas cujos conteúdos se aproximam de importantes
questões sociais.

O Brasil é um país onde se constata uma sucessão de propostas e


ideias que são aplicadas no contexto educativo sempre intencionando
melhorias, mas que dificilmente alcançam plenamente suas metas.

Segundo Alves; Rocha e Santos (2014, p. 143, grifo nosso)

O reconhecimento do papel social da educação é um imperativo das


sociedades democráticas, que tradicionalmente costumam dialogar e
negociar com a sociedade civil e gestores públicos as modificações
curriculares e a formulação de outras propostas educativas, em lugar
de impor reformas através de decretos. [...] as mudanças curriculares
não podem ser viabilizadas de forma autocrática. Tal postura

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desrespeita e desfavorece o ensino na perspectiva da diversidade


cultural. Consequentemente, ignora a realidade dos Municípios e dos
Estados [...]. Democratizar a educação requer flexibilidade em lugar
da obrigatoriedade no cumprimento das propostas curriculares do
governo.

Na Educação brasileira essa unilateralidade mantida pelos gestores


públicos e tecnocratas na formulação de ações para as políticas educacionais
concorre para o fracasso. O Projeto de Regularização do Fluxo Escolar (PRFE)
foi concebido como uma “proposta de aceleração de aprendizagem inovadora e
pedagogicamente arrojada, voltada para transformar a pedagogia da
repetência na pedagogia do sucesso” (FLEM, 2007, p.. 35, grifo nosso). Ele
estava respaldado na Lei 9394/96, onde no artigo 24, inciso V, alínea B há
uma referência para “possibilidade de aceleração de estudos para alunos com
atraso escolar”. Portanto, o PRFE foi criado para eliminar a defasagem idade-
série dos alunos da rede pública de ensino estadual e municipal.

Esse Projeto, que integrava o Programa Educar para Vencer, passou a


ser executado pelo governo do estado da Bahia no ano 2000 e se estendeu até
2006. Os municípios podiam aderir. Desse modo, as escolas da rede municipal
de Salvador passaram a ter turmas de aceleração do fluxo escolar. Na época
da implantação havia dois segmentos da 1ª à 4ª e da 5ª à 8ª séries, que mais
tarde foram fundidos.

O material didático-pedagógico era composto por módulos que reuniam


conteúdos agrupando sequência de duas séries. Desse modo, em 2 (dois)
anos o estudante podia concluir cada um dos segmentos do Projeto PRFE, ou
seja, em 4 (quatro) anos era possível finalizar o Ensino Fundamental.

A equipe que atuava no PRFE era formada por coordenadores e


professores que participavam frequentemente de cursos e encontros que os
capacitavam para atuar naquela realidade escolar. Havia uma coordenadora de
área da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador, que
acompanhava o desenvolvimento do Projeto na escola; a coordenadora local
responsável pela supervisão e acompanhamento diário das ações executadas
nas turmas associadas ao Projeto e os professores que mediavam os

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

conteúdos dos módulos na sala de aula com os alunos. A disciplina Língua


Portuguesa tinha uma carga horária maior porque a leitura era prioridade, uma
vez que ler e interpretar se constituía em importante suporte para as outras.

As ações do projeto cultura afro-brasileira

Considerando o exposto, os docentes da turma dos alunos onde se


desenvolvia o Projeto de Regularização do Fluxo Escolar na Escola Brigadeiro
Eduardo Gomes identificaram a oportunidade para construir um projeto
didático-pedagógico que contemplasse conteúdos que tivessem relação com
os elementos da cultura afro-brasileira, tão presentes no bairro em que se
inseria a escola e no cotidiano dos alunos.

O docente responsável pelas disciplinas de História e Geografia


percebeu que os alunos dessa classe apresentavam baixa auto-estima, em
razão de carregarem o estigma de pessoas pouco inteligentes, sendo
considerados às vezes como incapazes de aprender. Assim, conversando com
os demais professores da classe do PRFE, analisaram a possibilidade de
construir um plano de ações que privilegiasse os conhecimentos dos alunos
adquiridos na sua vivência em comunidade e elementos de sua cultura.

Assim foi formulado o Projeto com conteúdos da Cultura Afro-


Brasileira, uma alternativa que proporcionou aos alunos vivenciar uma
experiência, que permitiu uma leitura crítica e compreensão da sua própria
realidade, levando-os a perceber que a mesma se inseria num contexto social,
político e cultural mais amplo, que abrange todo o país. Essa compreensão
fortaleceu a cidadania e o seu reconhecimento enquanto sujeitos capazes de
intervir na sociedade.

Inicialmente, os professores introduziram na sua prática pedagógica


atividades que exigiam a ação e o esforço coletivo, estimulando o trabalho em
equipe. Na disciplina Língua Portuguesa, a professora incluiu a análise de
filmes onde eram abordadas temáticas diversificadas incluindo as questões
raciais, que proporcionavam a reflexão. Durante a exibição das películas, os

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educandos eram orientados para responder determinadas questões inseridas


em um roteiro elaborado previamente.

No âmbito das Ciências Naturais, os estudantes eram incentivados a


realizar pesquisas sobre os alimentos e suas propriedades nutricionais, as
doenças que acometem a população negra, problemas presentes no meio
ambiente, entre outras. Ao tratar das questões ambientais eles foram levados
para uma visita à Central de Efluentes Líquidos do Pólo de Camaçari (Cetrel),
que disponibilizou transporte e lanche. Na ocasião, os estudantes tiveram a
oportunidade de ouvir os monitores explicarem sobre os riscos que a
contaminação ambiental e principalmente o descarte de resíduos sólidos em
local inadequado podem causar à saúde. Nesses momentos, eles faziam
perguntas e depoimentos do que observavam nas suas comunidades. De
modo geral, demonstravam um misto de interesse e preocupação, sendo
incentivados a adotar e difundir as informações e as novas práticas para a
conservação da qualidade ambiental ali apresentadas, e, também estudadas
na disciplina.

Comumente, os estudantes das escolas públicas não são incentivados


a produzir conhecimento. O tipo de escolarização ao qual foram submetidos os
induz a consumir conhecimentos elaborados por outrem, que muitas vezes não
possuem qualquer conexão com a sua realidade. Assim, algumas dificuldades
tiveram que ser enfrentadas, por todos os professores que solicitavam leitura e
pesquisa, em razão da resistência dos alunos. A partir do momento que
tomavam contato com pesquisa, eles iam se envolvendo aos poucos, e, uma
vez convencidos que podiam fazê-la, percebiam que estavam aptos a descobrir
os caminhos para aprender os conteúdos. Assim, estes estudantes se
redescobriam como seres pensantes e se sentiam valorizados/motivados.

A metodologia participativa, que apoiou a concepção do plano de


ações com conteúdos da Cultura Afro-Brasileira, reconhece que é longo o
processo para um indivíduo romper e sair do estado de apatia, que o conduz a
assumir uma atitude de negação da sua capacidade intelectual, e passar a
assumir o seu papel social como sujeito, produtor de conhecimentos afinados
com suas origens.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

As disciplinas de História e Geografia eram ministradas pela mesma


professora. Seus conteúdos envolvem de certa forma a própria história do
indivíduo, quando abordam sobre a formação do território e do povo brasileiro,
o processo de colonização, os acontecimentos que retratam a evolução do
processo político do país, as relações do Brasil com outros países e blocos
econômicos, entre outros. Enfim, são conteúdos que se relacionam em algum
ponto com a história de vida do educando.

Um esforço empreendido pela docente foi feito no sentido de levar os


alunos da turma do PRFE a apreenderem os conteúdos em espaços fora da
sala de aula, sempre que possível. Assim, foi planejado e executado um roteiro
para observar a paisagem e visitar locais na cidade de Salvador que tinham
sido palco de fatos históricos, a exemplo do Largo da Mariquita, no Rio
Vermelho; Farol da Barra (com visita ao Museu Naútico), Igreja da Graça,
Praça da Piedade, Câmara de Vereadores, Terreiro de Jesus, entre outros. A
visitação ao Museu Afro-Brasileiro, que reúne conteúdo referente à cultura afro-
brasileira – esculturas, máscaras, instrumentos musicais, tapetes e objetos
utilizados nos rituais das religiões de matrizes africanas, etc. – foi um momento
marcante da programação. Observar o comportamento e o olhar de descoberta
de coisas que muitas vezes estavam presentes nas comunidades desses
estudantes foi o diferencial.

A turma PRFE concluiu o curso no ano 2001. As professoras de


Geografia e Ciências, com os alunos, organizaram um jogral a partir de idéias
que eles foram apresentando para relatar a presença do negro e a história de
suas lutas e conquistas na sociedade brasileira. O texto do jogral foi ensaiado
durante os intervalos das aulas, e, apresentado no Centro de Convenções da
Bahia, em dezembro de 2001. Os alunos usaram roupas diferentes para aquele
momento, e, as fantasias de carnaval do bloco afro Ile Ayiê, o bloco afro mais
antigo do Brasil, responsável pela divulgação da cultura africana e afro-
brasileira.

As professoras da turma, não obtiveram transporte junto à Secretaria


Municipal de Educação. Mas, ainda assim, levaram os alunos para o local em
ônibus das empresas urbanas de Salvador com seus próprios recursos. Após a

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apresentação, quando foram parabenizados, era visível na expressão dos


alunos a satisfação pelo reconhecimento de sua dedicação e talento.

Posteriormente, nas atividades de encerramento do ano letivo, o grupo


se apresentou para os colegas e familiares, na própria Escola. Desse modo,
puderam demonstrar a sua capacidade reflexiva sobre uma questão que
envolvia a todos no dia a dia – a discriminação, o preconceito e o racismo -
reconhecendo as lutas que deveriam empreender para tornar a sociedade
brasileira mais justa.

No ano seguinte, em 2002, o Projeto de Regularização do Fluxo deixou


de ser aplicado na Escola Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes. As
professoras passaram a desenvolver suas atividades nas turmas das séries
regulares.

Considerações finais

Na Escola Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes, a experiência


vivenciada pelas professoras da turma do Projeto de Regularização do Fluxo
Escolar com os alunos, no ano 2001, configurou uma oportunidade para o
planejamento integrado de ações utilizando elementos da Cultura Afro-
Brasileira. Tal fato propiciou a adoção de dinâmicas educativas que
contribuíram para uma revisão crítica do contexto histórico e social brasileiro
em que estes alunos se inseriam, levando-os a adotar novas atitudes, ou seja,
a agir como sujeitos no processo de transformação da sociedade, incentivando-
os a lutar pela democratização dos direitos e melhorando sua auto-estima.

A formação de uma consciência crítica e a nova postura foram


essenciais para que o grupo se integrasse. Para os professores restou a
certeza de que a construção de uma proposta pedagógica apoiada na cultura
pode contribuir para a permanência do educando na escola e ser motivadora
para os estudos, pois ela reconhece e valoriza o conhecimento e as
contribuições de todas as etnias na construção do país.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Destaque-se, que o compromisso dos docentes e coordenadores


pedagógicos assegurou alcançar bons resultados. O PRFE finalizou na Bahia
no ano de 2006. E o sistema educacional brasileiro continua a ser alimentado
por uma sucessão de propostas didático-pedagógicas, muitas vezes sem que
se faça uma avaliação crítica dos resultados das propostas anteriores. As
políticas educacionais carecem de uma ampla consulta e discussão com a
sociedade, gestores e profissionais da educação, principalmente os
professores, pois estes são fundamentais na concretização de uma proposta
que proporcione a emancipação do indivíduo.

REFERÊNCIAS

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brasileira no Colégio Estadual da Bahia . Revista Geonordeste, Aracaju, ano
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BAETA, A. M. B. Fracasso escolar: mito e realidade. Série Idéias, São Paulo:


FDE, n. 6, p. 17-23, 1992. Disponível em:
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ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais /
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bases da educação nacional. 1996. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf> Acessado em: 05 ago. 2015.

FUNDAÇÃO LUÍS EDUARDO MAGALHÃES. Fundação Luís Eduardo


Magalhães: uma instituição a serviço da transformação do estado e da
sociedade: trajetória 1999 / 2006. Salvador, [2007]. Disponível em: <http://www.
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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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1023
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

diversidade: estudos e pesquisas. Recife: Gráfica J. LuizVasconcelos Ed.,


2009 p. 101-123.) Disponível em:
<https://www.ufpe.br/cead/estudosepesquisa/textos/artigos_vol_2.pdf>
Acessado em: 02 ago. 2015.

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GRUPO DE TRABALHO: ARTE, EDUCAÇÃO E TERAPIA NA BAHIA:


DIÁLOGOS POSSÍVEIS

PROPOSITORA: PRISCILA PEIXINHO FIORINDO (UNEB)

Ementa:

Considerando a diversidade das expressões artísticas e criativas como a

pintura, a escultura, o teatro, a dança, a música, a literatura, a contação de

histórias, entre outras, em diferentes contextos, na Bahia, o presente grupo de

trabalho pretende apresentar as propostas de intervenções na educação,

mediados pela arte, como os trabalhos acadêmicos desenvolvidos no Mestrado

Profissional em Letras/PROFLETRAS/UNEB, campus V, que privilegiam

articulações que atendem às demandas reais do processo ensino-

aprendizagem na escola. Além das referidas intervenções, diante do contexto

atual do mundo moderno, onde o stress prevalece, e, consequentemente, as

pessoas buscam alternativas para viverem melhor, evidenciamos os resultados

positivos da arte em terapia, processo de intervenção em que o profissional

utiliza as diferentes modalidades de expressões artísticas para auxiliar o

paciente no processo de desenvolvimento biopsicossocial. Nesta perspectiva, a

arte sendo dialógica por si mesma pode trazer benefícios tanto na

aprendizagem do educando, tornando-o um ser crítico, que se posiciona,

apresentando argumentos convincentes, quanto no set terapêutico, onde o

sujeito é incitado a manter-se em busca de si mesmo. Dessa forma, o “fazer

artístico” tem a capacidade de transformar, esclarecer, fazer sonhar, imaginar,

criar e recriar os comportamentos dos indivíduos, tornando-os protagonistas de

suas próprias histórias.

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ENTRE A BAHIA E ANGOLA: A DISPUTA PELA CAPOEIRA EM


SALVADOR NA DÉCADA DE 1960

TAUÃ FERNANDES JUNQUEIRA (UESC) 243

Este artigo discute as relações entre a capoeira Angola e capoeira


Regional, a partir de Mestre Bimba e Mestre Pastinha, na cidade de Salvador
na década de 1960, no momento em que essa divisão dentro do universo da
capoeiragem já está consolidada e seus ícones travam um embate pela
tradição da capoeira. Partindo do debate que a História Social Inglesa trás para
a historiografia a partir da década de 1960, toma-se como foco desta pesquisa
os próprios capoeiristas – suas experiências e suas intenções – a fim de fazer
uma escrita da História que não reverbere exclusivamente a atuação de
personagens das classes sociais dominantes, mas que analise o protagonismo
dos seus agentes.
A História Social Inglesa tendo início na década de 1960 começa a se
intitular assim a partir da quebra epistemológica de seus principais expoentes,
como Eric P. Thompsom e Cristopher Hill, com o marxismo clássico.
Restringindo-se a análises das estruturas, grande parte dos historiadores
ingleses entenderam que era necessário escrever sobre aqueles sujeitos
históricos que não tinham suas ações relatadas na historiografia.
Eric P. Thompson é uma das referências desse trabalho por ter sido ele
quem, de forma mais contundente, travou esse embate quando traz uma nova
concepção do conceito de classe. Em sua obra A formação da classe operária
inglesa, ele problematiza esse conceito quando propõe que o estabelecimento
de uma classe está em sua formação, e essa por sua vez só é possível, a partir
das experiências de seus sujeitos no processo histórico dos modos de
produção, não bastando isso seria necessária também a identificação em
comum dessas experiências para evidenciar os interesses comungados por
certo grupo de sujeitos em oposição a outros, formando-se assim uma
identidade, esse movimento da experiência para a identidade é o que vem a

243
Graduando de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC;
Estudante Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID;
tauafernandesjunqueira@gmail.com.

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ser estabelecido por ele como consciência de classe, e desse modo a classe
seria o próprio processo de “fazer-se”.

Não vejo a classe como estrutura, nem mesmo como uma categoria,
mas como algo que ocorre efetivamente e cuja ocorrência pode ser
demonstrada nas relações humanas (...) a noção de classe traz
consigo a noção de relação histórica (...). A classe acontece quando
alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas
ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses
diferem (e geralmente se opõem dos seus). (THOMPSON: 1987, P. 9-
10)

Essa perspectiva contrapõe à do marxismo clássico que estabelece a


classe como categoria estanque, uma vez que a realidade material pré-
existente estabelece as relações de produção na sociedade e por isso os
sujeitos estão previamente dispostos em suas classes sendo dispensáveis
suas experiências e subjetividades.
Com isso, o historiador inglês finca um novo modo de análise da
História sob o prisma do marxismo. E reiterando seu objetivo ele diz: “estou
tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do
obsoleto tear manual, o artesão utópico (...). Suas aspirações eram válidas nos
termos de sua própria experiência.” (THOMPSON: 1987, P.13). Sem restar
dúvidas, a linha historiográfica que Thompson escreve não se baseia no relato
dos “grandes personagens” ou das análises impessoalistas ao contrário disto,
busca os seus sujeitos, suas relações e o seu modo de ação na sociedade.
Outro teórico da escola britânica utilizado é Eric J. E. Hobsbawm.
Apesar de sua tardia saída do Partido Comunista Britânico, ao contrário de
seus colegas da História Social Inglesa, também comunga do pensamento da
análise da História a partir das relações sociais dos sujeitos. A escolha por
Hobsbawm deve-se pela atenção que dispensa à questão da tradição, que é de
fundamental importância para instrumentalizar a discussão sobre as relações
de disputa de poder na capoeira ancorada no argumento da tradição, que será
abordada mais à frente.
Em parceria com Terence Ranger, Hobsbawm organiza e também
escreve a renomada obra A invenção das tradições, onde partem do princípio
que uma tradição tem um início e um modo de se estratificar dentro de uma
sociedade ou grupo social à qual pertence. Ainda analisam o processo de
invenção de uma tradição e suas intencionalidades. Esse debate também traz

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à tona a relativização do uso do passado como um argumento de autoridade


dentro daquilo que se considera tradicional, uma vez que uma tradição pode
ser construída a partir do presente ou de um passado não tão remoto quanto
se pretende explicitar. No que tange a conceptualização do que é tradição
inventada, na introdução deste livro ele é categórico:

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas,


normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;
tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com
um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM, Eric J. E; RANGER,
Terence O.: 1997. P. 9)

Ora, a relação com o passado, posta aqui, não é de uma filiação direta
e intransferível mas sim de uma escolha determinada por seus sujeitos sob as
suas intencionalidades em construir uma tradição.
A capoeira no Brasil antes do século XX é uma prática corporal de uso
exclusivo negro e sem um objetivo único e delineado, sendo ao contrário
múltipla em seus aspectos, e o uso do seu aspecto lúdico ou de luta
determinados por seus indivíduos no momento em que mais lhe é adequado
em sua realidade. Sabe-se que a multiplicidade de seus usos acompanha a
diversidade das práticas de resistência do negro ao processo de escravidão e
seus desdobramentos nas relações sociais. Se no período colonial seu uso era
majoritariamente para a luta física pela liberdade, dentro da mata e nas
fazendas de canavial, durante o processo de êxodo para a cidade adquire os
caracteres lúdicos para o lazer durante o trabalho. Entretanto, é a partir do
século XX que essa prática – a capoeira – começa a ser pensada como um
marco integrante de uma identidade e de um cultura específica, neste caso a
da Bahia.
A opção por pesquisar a década de 1960 nasce do intuito de buscar
nas declarações públicas, de Mestre Pastinha e Mestre Bimba, em jornais da
época – que nesse período são muito vastas – o modo como se delineou a
disputa pela autoridade na capoeira, uma vez que a dicotomia estabelecida a
partir da década de 1930 e 1940 no processo de configuração de ambos os
estilos, neste período já estava fortemente consolidada.

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O universo da capoeiragem de Salvador na década de 1930 torna-se


um ambiente de disputa por espaço. Manoel dos Reis Machado, Mestre Bimba,
ao criar a Luta Regional Baiana 244, e posteriormente assumir como Capoeira
Regional, causa uma atmosfera de tensão entre os capoeiristas
contemporâneos a ele. Essa atitude, de configuração de uma modalidade
específica de capoeira, o distancia da identidade em comum com os
capoeiristas para colocar-se como criador e representante maior de um estilo
que muito se aproxima daquela que era jogado nas ruas soteropolitanas.
Paulo Andrade Magalhães Filho, em seu livro Jogo de discurso: a
disputa por hegemonia na tradição de capoeira angola baiana, discute esse
processo da criação da capoeira regional dentro de um contexto de
representação política nacional, apontando que também no âmbito político a
capoeira está passando por uma mudança de reconhecimento de identidade, a
partir do diálogo com Luiz Renato Vieira, então ele propõe:

De acordo com Vieira (1995, p.70), a criação da luta regional baiana


(Capoeira Regional) por Mestre Bimba se deu dentro de um processo
de gradual descriminalização da capoeira em um “intenso processo
de apropriação das instituições do ethos popular por parte do Estado”
que “enquadra-se nas novas estratégias de legitimação” do Estado
Novo. (FILHO: 2012 P. 26)

Posto isso, a relação entre a Regional, criada por Bimba, e o governo


federal demonstra que a capoeira – e agora não apenas a de Bimba, mas
também a capoeira praticada na rua por seus indivíduos – sofre mudança
representativa no aos olhos da esfera estatal quanto ao seu significado para a
sociedade brasileira. Se antes era motivo de perseguição e criminalização 245,
agora era tomada como ferramenta de incursão do Estado no chamado “ethos
popular”. Mas se a capoeira de Bimba se outorga de uma tradição regional
baiana, que ele sistematizou e batizou, onde está enquadrada àquela daqueles
que não faziam parte deste grupo?
Sendo difusa e existindo apenas na instância individual de seus
jogadores, para se estabelecer enquanto “uma” – a capoeira não regional – era

244
Bimba funda uma academia com o nome Centro de Cultura Física e Luta Regional Baiana
em 1937, oficialmente registrada na Secretaria de Educação, Saúde e Assistência de Salvador.
245
Getúlio Vargas assina o Decreto Presidencial 1202 em 1934 retirando a capoeira do Código
Penal. Ver Antonio Liberac Cardoso Simões Pires in Bimba, Pastinha e Besouro de
Mangangá: Três Personagens da capoeira baiana. Página 91.

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necessário começar um processo de auto-organização de um grupo com


interesses próprios e visando uma identidade particular a fim de se afirmar
também enquanto praticantes de uma capoeira legítima, trilhando um caminho
parecido com o da Capoeira Regional quanto ao processo de criação de
tradição apesar de antagonizar a ela.
A partir desse viés temos o surgimento da imagem de Vicente Joaquim
Ferreira Pastiña, Mestre Pastinha. Mesmo já havendo algumas tentativas de
estruturação/organização da capoeira pelos mestres mais antigos de Salvador
em forma de academia, como vimos com Bimba, foi com Pastinha que isso
tomou forma. Transformando o já existente Centro de Capoeira Angola no
Centro Esportivo de Capoeira Angola em 1941. Sem conseguir um local fixo
para dar continuidade aos treinos e aulas de capoeira somente em 1952 que
consegue registrar a academia no Pelourinho.
As origens do termo “Angola” são pouco claras. Em 1922 já há registro
de seu uso na tentativa de criação do Conjunto de Capoeira Angola Conceição
da Praia 246, como relata mestre Bola Sete. Entretanto, não há uma certeza
quanto ao sentido semântico do uso desse termo, uma vez que tanto é utilizado
para designar o pensamento de origem africana da capoeira como também
designando uma modalidade específica em oposição à capoeira Regional.
Apesar de ocupar esse espaço de oposição à “modernidade”, a
capoeira Angola, do viés de Pastinha, não representa um campo homogêneo
dentro da capoeira de rua de Salvador, ao contrário, rompe com esta. Antonio
Liberac Cardoso Simões Pires em seu livro Bimba, Pastinha e Besouro de
Mangangá: Três personagens da capoeira baiana, discute esse processo, que
a capoeira Angola se aproxima da capoeira Regional, negando a realidade da
rua pôr a considerar violenta e desordeira. Na passagem específico abaixo,
além da tentativa de desvincular sua imagem, e consequentemente a sua
modalidade de capoeira, Mestre Pastinha ainda demonstra está de acordo,
nesse caso, com a repressão policial.

Entre esses existiu um capoeirista que se tornou célebre e temido


pela sua agressividade – tinha o hábito de sair, à noite, vestido de
mulher para melhor iludir suas vítimas. Existiam outros que

246
Ver Paulo Andrade Magalhães Filho in Jogo de discursos: A disputa pela hegemonia na
tradição da capoeira angola. Página 71.

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assaltavam os casais aos quais infligiam vexames (...) felizmente


esses capoeiristas desordeiros constituíam uma pequena parcela e
247
mereceram uma violenta repressão policial. (PIRES: 2002. P. 65)

Tendo por objetivo inicial a reunião da “velha guarda” da capoeira, ou


seja, os mestres mais antigos e de maior reconhecimento, frente ao início de
“modernização” com a criação da capoeira regional (FILHO: 2012, P. 74-75), o
centro, que mestre Pastinha assume, logo perde esse caráter para torna-se a
academia onde o mestre desenvolve e personifica um estilo de capoeira. Uma
capoeira que por estar em disputa de espaço e poder com a regional, ancora-
se na ideia de origem africana (especificamente de Angola), entrando assim em
oposição a esta que recorre à origem baiana, brasileira, firmando-se no ideal
nacional.

Portanto, a capoeira Angola é tida como tradicional, não porque


obedeça a uma lógica da capoeira praticada pelos predecessores
diretos de mestre Pastinha, mas sim, pelo fato de a capoeira Angola
ter algo a ver com a praticada pelos africanos. A capoeira, de Pedro
Porreta, Besouro Mangangá, Pedro Mineiro e outros foi reprovada por
mestre Pastinha, por excesso de violência. (PIRES: 2002. P. 84)

O processo de escolha de um passado determinado para se relacionar


na construção de uma tradição, como aponta Hobsbawm, acontece de forma
explícita quando a capoeira Angola, da linhagem de Pastinha se distancia do
passado recente da capoeira de rua, inclusive o condenando como analisa
Liberac, para remeter-se ao período mais remoto de chegada dos africanos nas
terras brasileiras. Por conseguinte, o processo de invenção de uma tradição
também permeia uma movimentação política que lhe influencia e é por ela
influenciada.
Com esse panorama, não foi somente Bimba que contou com um
interesse político para sua estruturação de modalidade de capoeira, novamente
Paulo Magalhães traz que este se aliou a uma “política com Juracy Magalhães”
enquanto “Mestre Pastinha construiu uma rede apoiadores que se apoiava na
esquerda internacionalista [...].” (FILHO: 2012. P. 82). Em uma perspectiva bem
próxima a essa, Antonio Liberac, escreve sobre as relações políticas existentes
com a capoeira nesse cenário de dualidade de estilos.
247
Essa citação é do livro Capoeira de Angola por Mestre Pastinha, do próprio mestre
Pastinha e está contida no livro de Antonio Liberac.

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Nos anos 30 mestre Pastinha parece ter se relacionado com mais


intensidade com os intelectuais do Partido Comunista, portanto
internacionalista, que escreveram constantemente a favor da
capoeira Angola. Enquanto isso mestre Bimba esteve mais ligado aos
intelectuais nacionalistas. (PIRES: 2002. P. 92)

Essa movimentação demonstra que o caminho de influências no


terreno da capoeira daquela época era uma via de mão dupla, tanto os sujeitos
culturais buscam nas estruturas políticas oficiais ferramentas para legitimação
de suas vertentes quanto essas estruturas se misturam ao cenário cultural
buscando uma identificação com o popular de forma mais próxima.
Hobsbawm (1997, p. 10) aponta para um processo de oposição na
invenção de uma tradição, “em poucas palavras, elas são reações a situações
novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou
estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória”.
Toda disputa guarda em si uma atmosfera de tensões e conflitos. Com a
polarização dos dois estilos de capoeira, seus principais representantes
também entram em confronto direto, em busca da legitimação do seu estilo, e
usam da repetição das ideias antagônicas da origem da capoeira em seus
discursos como estratégia para atestar autoridade de um estilo de prática de
capoeira sobre a outra.
Magalhães traz o jornal Diário de Notícias de 31/11/1965 com o título
Bimba x Pastinha: duelo de ideias, Pastinha assevera:

[...] é uma só: a de angola. Capoeira regional não existe. Regional é


apenas nome criado por Mestre ‘Bimba’, angoleiro como eu [...]
‘Bimba’ ensina aos seus alunos a jogar mais ligeiro, enquanto eu
determino aos meus movimentos lentos e manhosos, seguindo os
ensinamentos do meu Mestre Benedito. (FILHO: 2012 P. 81)

Enquanto isso, mais a frente neste mesmo jornal Bimba faz uma fala
em defesa da origem baiana da capoeira, “os negros sim eram de Angola, mas
a capoeira é de Cachoeira, Santo Amaro, e Ilha de Maré, camarado”. Em
entrevista à Tribuna da Bahia em 1969 248, o clima de tensão fica ainda mais
severo com a troca de respostas entre os dois. Mestre Bimba inicia dizendo:

248
As citações desse jornal foram retiradas de Antonio Liberac Cardoso Simões Pires in Bimba,
Pastinha e Besouro de Mangangá: Três Personagens da capoeira baiana.

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[...] quando no Brasil alguém inventa alguma coisa é sempre outra


pessoa a levar a fama. Eu levantei a capoeira na Bahia, antes quem
jogavam eram os carroceiros e coveiros, hoje não, são médicos e
advogados. Ninguém dá valor, à capoeira angola, pois é uma dança.
E se oficializarem a capoeira como querem, será a regional que é a
que se presta para a luta. Mestre Pastinha foi ser mestre de capoeira
depois que eu ensinava há trinta anos. (PIRES: 2002. P. 91-92)

O ataque de Bimba é tanto à capoeira Angola quanto de cunho pessoal


ao mestre Pastinha. No que tange à modalidade específica ele não a
desconsidera como luta – somente a Regional tem esse aspecto – e
estabelece uma diferenciação de classe social entre os seus praticantes, na
sua visão a incursão de capoeiristas oriundos de classe social de mais respeito
– na visão dele – de Salvador, como exemplificou com “médicos” e
“advogados”, foi devido a ele sua ruptura com a capoeira praticada por seus
predecessores – que são de classe social não dominante, que o ambiente de
trabalho e prática da capoeiragem era a rua – considerando isso uma ascensão
social da capoeira na sociedade soteropolitana. Quanto ao mestre Pastinha,
Bimba o desmerece pelo tempo de ensino de capoeira, certamente referindo-se
ao tempo que o mestre ficou afastado desse cenário 249. Também é importante
ressaltar uma disputa política com a pretensão de oficialização da capoeira
enquanto esporte nacional.
O mesmo jornal traz a fala de Pastinha no embate ao posicionamento
de mestre Bimba. Ele diz:

Eu não sou o número um da capoeira na Bahia, mas sim quem a


levantou e a fez ingressar na sociedade (...) o mestre Bimba é tão
angoleiro como eu porque só existe uma capoeira: a Angola. Eu
quero não ele debaixo de mim, mas também não quero ficar debaixo
dos pés dele. (PIRES: 2002. P. 92)

Assim como Bimba, mestre Pastinha diz ser ele quem ascendeu a
capoeira na visão da sociedade, retoma o processo de ruptura que fez com os
capoeiristas anteriores a ele por serem considerados malandros e utilizarem a
capoeira para cometer crimes. Quanto ao mestre Bimba, ele o coloca em

249
Ver Capítulo III do livro de Antonio Liberac Cardoso Simões Pires in Bimba, Pastinha e
Besouro de Mangangá: Três Personagens da capoeira baiana.

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relação de igualdade, entretanto desmerecendo a modalidade por ele criada,


alegando somente existir a de Angola, a de origem africana.
Ainda Pastinha numa entrevista a Roberta Freire que foi publicada na
revista Realidade em 1967 250 diz que:

Tudo que eu penso de capoeira um dia escrevi naquele quadro que


está na ponta da Academia. Em cima, só estas três palavras: Angola,
capoeira, mãe. E embaixo, o pensamento: Mandinga de escravo em
ânsia de liberdade; Seu princípio não tem método; Seu fim é
inconcebível ao mais sábio capoeirista. (ABREU; CASTRO: 1967. P.
21)

O clima de disputas por poder e espaço é claro nas falas públicas dos
representantes da capoeira angola e da capoeira regional. Entre a Bahia e
Angola guarda-se uma severa disputa pela capoeira que até agora não há
previsão de término.

REFERÊNCIAS

ABREU, Frede. CASTRO, Maurício Barros de (orgs). Capoeira. Coleção


Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009.

FILHO, Paulo Andrade Magalhães. Jogo de Discursos: A disputa por


hegemonia na tradição da capoeira angola baiana. 1ª Ed. Salvador:
EDUFBA, 2012.

PIRES, Antonio Liberac Cardoso Simões. Bimba, Pastinha e Besouro de


Mangangá: Três personagens da capoeira baiana. 2ª Ed.Tocantins:
NEAB/Grafset, 2002

HOBSBAWM, Eric J. E. RANGER, Terence (orgs). A invenção das tradições.


6ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa: A


Árvore da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

250
Entrevista retirada da organização de Frede Abreu e Maurício Barros de Castro Capoeira da
coleção Encontros da editora Azougue.

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OFICINA CORPO LÚDICO

SILVIA DE PAULA GARCIA (GEPEL/UFBA)

“É preciso abrir todas as portas que fecham o coração.


Quebrar barreiras construídas ao longo do tempo,
Por amores do passado que foram em vão
É preciso muita renúncia em ser e mudança no pensar.
É preciso não esquecer que ninguém vem perfeito para nós!
É preciso ver o outro com os olhos da alma e se deixar cativar!
É preciso renunciar ao que não agrada ao seu amor...
Para que se moldem um ao outro como se molda uma
escultura,
Aparando as arestas que podem machucar.
É como lapidar um diamante bruto...para fazê-lo brilhar!
E quando decidir que chegou a sua hora de amar,
Lembre-se que é preciso haver identificação de almas!
De gostos, de gestos, de pele...
No modo de sentir e de pensar!
É preciso ver a luz iluminar a aura,
Dando uma chance para que o amor te encontre
Na suavidade morna de uma noite calma...
É preciso se entregar de corpo e alma!
É preciso ter dentro do coração um sonho
Que se acalenta no desejo de: amar e ser amada!
É preciso conhecer no outro o ser tão procurado!
É preciso conquistar e se deixar seduzir...
Entrar no jogo da sedução e deixar fluir!
Amar com emoção para se saber sentir
A sensação do momento em que o amor te devora!
E quando você estiver vivendo no clímax dessa paixão,
Que sinta que essa foi a melhor de suas escolhas!
Que foi seu grande desafio... e o passo mais acertado
De todos os caminhos de sua vida trilhados!
Mas se assim não for...
Que nunca te arrependas pelo amor dado!
Faz parte da vida arriscar-se por um sonho...
Porque se não fosse assim, nunca teríamos sonhado!
Mas, antes de tudo, que você saiba que tem aliado.
Ele se chama TEMPO... seu melhor amigo.
Só ele pode dar todas as certezas do amanhã...
A certeza que... realmente você amou.
A certeza que... realmente você foi amada."
Para Viver um Grande Amor - Carlos Drummond de Andrade

A sugestão deste poema aconteceu naturalmente, enquanto organizava meus


pensamentos para escrever este trabalho. De forma intuitiva ele surgiu e gostei
da ideia porque além de ter afinidade com este tipo de escrita é essa a minha
relação com a Psicologia, o Inconsciente, os Arquétipos, o Simbólico e com a
Ludicidade. Sensível e intuitiva. É como uma dança na qual as partes

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entregam-se. Razão, emoção; sensação, intuição; porque é mais que um


trabalho. É lúdico. E por que este poema em especial? Sem querer me ater a
explicações racionais, é porque ele fala da entrega do corpo e da alma e,
sendo assim, refere-se a um grande amor.

Quando criei a Oficina Corporal, meu foco era trabalhar o movimento natural do
ser humano visando diminuir os efeitos do estresse em adultos. Na época
estava começando a estudar a “energia psíquica” de C.G. Jung e fazendo um
curso de dança. Posso dizer que a Oficina me encontrou da mesma forma que
um artista é encontrado pela sua obra. Já era a manifestação da ludicidade em
minha vida, o que só bem mais tarde vim a compreender. Escrevi um primeiro
texto e publiquei-o no Guia de Abordagens Corporais. Naquele momento, fiz
uma definição teórica da Oficina:

O movimento corporal - contrariando o que muitos


pensam - não é apenas um ato mecânico de levantar,
sentar, dançar, andar etc. É também uma forma de
expressão que utiliza a energia emocional. E é
exatamente dela que venho procurando as respostas
para a melhoria da qualidade de vida. É uma
linguagem sem palavras que o indivíduo aplica para
comunicar-se.

Em uma sociedade competitiva e estressada, os


movimentos tornam-se bloqueados. A naturalidade dá
espaço à rigidez. Com a repetição, o corpo vai
adoecendo em conjunto com a mente e a emoção.
Muitas vezes as pessoas ignoram os sintomas que vão
se agravando com o tempo, até que seja acometida
por alguma doença.

Como essa situação pode ser revertida? A resposta


está no trabalho de consciência corporal. Tornar-se
consciente é aprender a se ouvir, escutar o próprio
corpo, necessidades, desejos e vontades. Abrir um
canal de comunicação entre razão, emoção e físico.
Assim, cada vez mais a pessoa conseguirá
harmonizar-se nesses três níveis. (GARCIA, 1997. pg
137).

Com a ampliação de minhas pesquisas, leituras e participação em grupos de


discussão, compreendi que poderia introduzir mais brincadeiras nos encontros
para que, através delas, fosse possível provocar a autoconsciência dos
participantes. Foi a partir daí que estruturei as vivências de forma que elas
focassem jogos cooperativos, danças em grupo, técnicas de expressividade e

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criatividade para o brincar e atividades que alcançassem a “razão sensível” dos


que participassem. Com o desenrolar dos encontros, fui percebendo que a
Oficina também poderia levar a valorização da ludicidade para as escolas e
trabalhar com os educadores.

O passo seguinte foi quando eu criei a Virabrinquedo, com foco em melhorar as


relações entre pais e filhos. O seu objetivo é aproximar as famílias de forma
que os pais compreendam através do brincar como pode ser melhorada a
educação e a relação emocional no ambiente familiar.

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E a Oficina Corpo Lúdico também foi integrada a um trabalho sensível


educacional com autistas através do Brincanto.

Para clarear um pouco mais o conceito, perguntamos: o que é ludicidade? De


acordo Luckesi (2007) “(...) Lúdico é um estado interno do sujeito e ludicidade é
uma denominação geral para esse estado – ‘estado de ludicidade’; essa é uma
qualidade de quem está lúdico por dentro de si mesmo.”(...). Luckesi, 2007. pg
15. Continuando ele diz que: (...) “As atividades educativas, recreativas,
psicológicas, culturais que nos são propostas e que são denominadas de
‘lúdicas’, somente serão lúdicas para nós se propiciarem ou estimularem um
estado lúdico dentro de nós. Caso não promovam o despertar desse estado,
efetivamente não são lúdicas, ainda que externamente elas possam, de modo
histórico, sociológico ou psicológico, serem denominadas de lúdicas. (...)” Idem.
pg 16.

Acompanhando a definição do autor, podemos compreender que a ludicidade


está relacionada com o estado interno do ser humano. A ludicidade tem a ver

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

em primeiro plano com o prazer que se sente individualmente. Verificamos isto


também nas palavras da pesquisadora Conceição Lopes:

A teoria da ludicidade contrapõe-se à clássica visão que se


define por oposição trabalho versus divertimento e
entretenimento. E, define-se como uma condição de ser do
humano que se manifesta diversamente, nomeadamente, nas
experiências do brincar, jogar, recrear, lazer, construir jogos e
brinquedos analógicos ou digitais e no humor. A condição
humana da ludicidade não está subjugada a calendários ou
imposições institucionais, uma vez que pode manifestar-se em
qualquer contexto situacional. Contudo, as suas diversas
manifestações podem estar subjugadas a uma ordem exterior
ao seu protagonista, como é o caso do recreio escolar. A
condição humana da ludicidade para se manifestar está
dependente do pacto explícito ou implicitamente estabelecido
entre aqueles que deste modo pretendem interagir. A ordem da
interação difere das outras ordens da interação situacional (não
lúdicas), ela impõe um tipo de regulação aos comportamentos
que se manifestam dentro da lógica da ludicidade “isto é para
brincar”, “isto é para jogar”, “isto é recrear”, “isto é lazer”, “isto é
festa”... É, nessa perspectiva, que se afirma que as
manifestações da ludicidade podem ocorrer em qualquer
momento e em qualquer contexto situacional da vida diária,
dependendo, para tanto, apenas da negociação e decisão
deliberada (intencional ou consciente) do(s)seu(s)
protagonista(s). (LOPES.2015. pg 04).

Partindo destes pressupostos, podemos verificar que a Oficina Corpo Lúdico


tem potencial para se tornar um laboratório no qual os participantes vão
experimentar situações lúdicas e que, desta forma, criarão condições para
manifestações do inconsciente. As atividades também auxiliarão de forma
natural à melhora da qualidade de vida.

Não podemos deixar de mencionar a “energia psíquica”, conceito criado por C.


G. Jung. Vejamos aqui o comentário de Nise da Silveira:

Jung concebe o psiquismo (consciente e inconsciente)


como um sistema energético relativamente fechado,
possuidor de um potencial que permanece o mesmo
em quantidade através de suas múltiplas
manifestações, durante toda a vida de cada indivíduo.
Isso vale dizer que, se a energia psíquica abandona um
de seus investimentos virá reaparecer sob outra forma.
No sistema psíquico a quantidade de energia é
constante, varia apenas sua distribuição. “ Nenhum
valor psíquico pode desaparecer sem que seja
substituído por outro”. Se um grande interesse por este
ou aquele objeto deixa de encontrar nele oportunidade
para aplicar-se, a energia que alimentava o interesse

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tomara outros caminhos: surgirá talvez em


manifestações somáticas (Palpitações, distúrbios
digestivos, erupções cutâneas, etc), virá reativar
conteúdos adormecidos no inconsciente, construirá
enigmáticos sintomas neuróticos. (...) (SILVEIRA, 1990.
Pg 44).

Eu relaciono a energia psíquica ao estado lúdico. Os dois são energias internas


do Ser humano e dependem da relação que mantêm com ele. A troca de
interesses que vai acontecendo durante o desenvolvimento da vida faz com
que a ludicidade também mude. E quanto mais o indivíduo identificar-se e
entregar-se ao seu processo, mais equilibrada será a sua vida, pois
reconhecerá o seu caminho, o seu processo de individuação. O processo é
particular e quanto mais lúdico ele for, será melhor afinado e conseguirá
evoluir. Afinal a ludicidade tem uma ligação estreita com a criatividade e com a
arte. Porém não é com o aspecto estético, mas sim com a dimensão do
simbólico. Na busca de explicar melhor, vamos retornar ao início deste texto no
qual eu menciono o poema de Carlos Drummond de Andrade “Para viver um
grande amor”. Com este objetivo, resolvi pesquisar sobre poesia e qual a sua
relação com o lúdico. Recorri a uma das fontes da qual mais gosto de beber
que é a de Johan Huizinga – no seu livro Homo Ludens – onde estou sempre
bebendo e encontrei esta resposta:

(...) a poiesis é uma função lúdica. Ela se exerce no


interior da região lúdica de espírito, num mundo próprio
criado para ela pelo espírito, no qual as coisas
possuem uma fisionomia inteiramente diferente da que
apresentam na “vida comum”, e estão ligadas por
relações diferentes das da lógica e causalidade. Se a
seriedade só pudesse ser concebida nos termos da
vida real, a poesia jamais poderia elevar-se ao nível da
seriedade. Ela está para além da seriedade, naquele
plano mais primitivo e originário a que pertencem a
criança, o animal, o selvagem e o visionário, na região
do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso. (...).
(HUIZINGA, 2004.pg 133).

Para desenvolver a Oficina Corpo Lúdico, o que interessa é a energia psíquica


– e sua circulação – de cada um que participar. Mas é necessário destacar que
o objetivo não é trabalhar a questão estética, mas sim o reconhecimento,
reelaboração, reestruturação, conscientização e transformação do ser através
de atividades que possam ser lúdicas para o participante e que o auxiliem no
desenvolvimento da qualidade de vida.

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BIBLIOGRAFIA

LOPES, Conceição. Design de ludicidade. Disponível em:


http://www.portalseer.ufba.br/index.php/entreideias/article/view/9155 .Acesso
em 08/12/2015 às 22h10.

GARCIA, Silvia de Paula. Oficina corporal. In Ribeiro e Magalhães (org.) Guia de


Abordagens Corporais. São Paulo, Editora Summus: 1997. P XX-XX.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva, 2003.

LUCKESI, C.C. Ludicidade e desenvolvimento humano. In : MAHEU, Cristina


d’Ávila (Org). Educação e ludicidade: ensaios 04. Salvador. GEPEL. 2007.

MACIEL, Mariene M.; GARCIA FILHO, Argemiro P. Brincanto: autismo


tamanho família. 1ª. ed. São Paulo: Grupo Editorial Scortecci, 2012.

FOTOS
1. Oficina Corpo Lúdico (2015)
2. Virabrinquedo (2014)
3. Atendimento lúdico (2012).

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OS LABIRINTOS DA ESCRITURA: UMA LEITURA DO ROMANCE NO


INFERNO, DE ARMÉNIO VIEIRA

VILMA APARECIDA GALHEGO(USP)

“A suposição de que o
essencial foi já escrito
desconsola-nos. Mas, seja
como for, cultivemos o nosso
jardim”.

(Arménio Vieira)

O gênero romance, ao longo do tempo, vem provocando os estudiosos


da teoria literária no que se refere a sua especificidade. Pensar nesse gênero,
na contemporaneidade, requer um longo percurso histórico e teórico para
compreender como ele ao constituir-se, abriu caminhos para descontruir-se ao
longo do tempo.

Pensar o gênero romance nos dias atuais requer um movimento de


escuta e observação para o tempo e os desejos do homem contemporâneo.
Como revelar essa experiência que se tornou individual e conectada com
tantas áreas do conhecimento e com o tempo vivido? Cada vez mais o
romance parece incorporar as mais diversas linguagens e discursos,
dialogando com a Filosofia, com a Política, com a Biologia e tantos outros
ramos do conhecimento.

Os romances, escritos nos dias atuais, já não oferecem a segurança e


estabilidade de antes. Ao acompanhar o drama de cada personagem, o leitor
era capaz de prever ações e identificar o espaço e o tempo, até mesmo
antecipar acontecimentos, entretanto, isso já não é mais possível, uma vez que
essas categorias passaram a confundir o leitor. A linearidade foi rompida e a
ideia do tempo passou a ser mais interessante pela sua intensidade do que
pela sua cronologia, portanto, torna-se difícil definir o gênero romance, já que

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essas categorias, agora, são imprevisíveis e o romance parece ter assumido a


sua vocação de inacabamento, um texto que não deseja a conclusão, porque
ocupa o lugar do devir. Bakhtin nos esclarece a esse respeito:

O estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por


dificuldades particulares. Elas são condicionadas pela singularidade
do próprio objeto: o romance é o único gênero por se constituir, e
ainda inacabado. As forças criadoras dos gêneros agem sob os
nossos olhos; o nascimento e a formação do gênero romanesco
realizam-se sob a plena luz da História. A ossatura do romance
enquanto gênero ainda está longe de ser consolidada, e não
podemos ainda prever todas as suas possibilidades plásticas
(BAKHTIN, 1998, p. 397).

Alguns teóricos referem-se aos romances produzidos na


contemporaneidade como “não-romance” ou “anti-romance”, entendendo que
esses textos estão distanciados de um modelo que foi cultuado por tanto
tempo, modelo esse que tentava construir uma ideia de causa-consequência
dentro de um tempo linearmente desenhado, entretanto, para a nossa reflexão,
interessa-nos, especialmente, as ideias de Bakhtin acerca da evolução do
romance como um gênero que está em constante transformação, em busca de
ser aquilo a que a sua natureza inacabada deseja ser:

O romance não é simplesmente mais um gênero ao lado dos outros.


Trata-se do único gênero que ainda está evoluindo no meio de
gêneros já há muito formados e parcialmente mortos. Ele é o único
nascido e alimentado pela era moderna da história mundial e, por
isso, profundamente aparentado a ela, enquanto que os grandes
gêneros são recebidos por ela como um legado, dentro de uma forma
pronta, e só fazem se adaptar – melhor ou pior – às suas novas
condições de existência (BAKHTIN, 1998, p. 398).

Interessa-nos compreender como esse espaço do devir está projetado


no romance e de que forma este inacabamento é articulado dentro do texto,
observando as pausas, a suspensão, o corte, o fragmento, a multiplicidade e o
emaranhado de fios que não indicam mais um caminho de saída, mas sim
conexões que se articulam e se desligam, criando espaços de atrito e diálogo
como também de afastamento e apagamento dentro do texto romanesco.

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O inferno que se anuncia a partir da morte

“Escrever é fazer a
aprendizagem da morte”

(Maurice Blanchot)

Depois de todas as crises pelas quais a literatura já passou, resta-nos a


imagem de que ela nasce a partir daquilo que já morreu ou daquilo que
constantemente morre dentro dela, nesse sentido, o romance No Inferno, do
escritor cabo-verdiano Arménio Vieira nos guiará para essa discussão acerca
do gênero romance na contemporaneidade, uma vez que se apresenta como
um texto que se distancia dos elementos fixos da narrativa. A proposta do
escritor parece buscar a dissolução do gênero, colocando as categorias do
espaço, narrador, personagem e tempo para serem lidas à luz de outro olhar,
um olhar capaz de conectar-se com várias instâncias sem buscar um centro ou
algo que o defina e conclua, considerando as conexões e as fugas.

O primeiro alerta dado ao leitor vem do próprio autor, que nos mostra a
impossibilidade de escrever o romance, esta mesma impossibilidade será
vivida pelo escritor-personagem que tem como tarefa a escritura de um
excelente romance. Um caminho sem saída para os dois escritores, entretanto,
o escritor-autor e o escritor-personagem arriscam-se. É Arménio Vieira quem
nos esclarece os motivos pelos quais não se pode mais escrever um romance:

Incumbido de escrever um romance, à semelhança do protagonista do


livro em pauta, não o fiz, porque não quis fazê-lo ou porque não o pude
fazer, em virtude de uma série de razões: a) o romance, género
herdeiro da epopeia, na sua qualidade de narração em prosa de feitos
heroicos, deu já o que tinha a dar, tornou-se caduco; b) nas suas
versões realista e naturalista, Balzac, Flaubert e Zola tiveram de há
muito os seus dias de glória; c) na sua vertente psicologista, atingiu o
ápice em Dostoievsky, Proust, Faulkner; d) Joyce, o experimentador
fáustico, conduziu-o aos limites; e) deixando o resto de lado, digamos
para finalizar que Borges, o último dos grandes ficcionistas, preferiu
não escrever romances, mas, em vez disso, elaborar resumos de
hipotéticos romances e comentá-los (VIEIRA, 1999, p.11 e 12).

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O escritor, de maneira sintética, traça um caminho histórico e das


especificidades do gênero até os dias atuais. Consciente da impossibilidade de
continuar narrando, utilizando-se de recursos invalidados pelo tempo em que
vive, busca uma saída. Essa saída interessa-nos especialmente, pois é a partir
dela que percorremos o labirinto que o livro constrói para o leitor, para o próprio
escritor, distanciando-se dos elementos fixos e lineares do gênero.

Perguntamo-nos de que maneira o romance No Inferno constitui-se e de


que forma seus personagens e narradores revelam suas experiências
“infernais” no tempo e no espaço. A crise da escritura do romance é vivenciada
duplamente, tanto pelo escritor cabo-verdiano como pelo escritor-personagem
do romance.

Para traçarmos o nosso percurso de leitura à luz dos conceitos


elaborados por Deleuze e Gattari, destacamos o que eles nos dizem a respeito
do romance como um texto que não está a serviço de uma interpretação:

Não se perguntará nunca o que o livro quer dizer, significado ou


significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-
se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou passa
intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a
sua” (DELEUZE, GATARRI, 1995, p.12).

A partir dessa reflexão apresentamos o “inferno” presente no romance,


que se oferece como um espaço “rizomático”, fazendo conexões e recuos,
“metamorfoseando” a sua estrutura e a do outro que ele adere, já que a
intertextualidade está presente o tempo todo. Enxergamos, igualmente, a sua
vocação para dialogar com um universo amplo e irrestrito, provocando, de fato,
o leitor para uma multiplicidade de encontros, seja com a personagem que não
se fixa, construindo múltiplos de si, seja com os espaços literários ou até
mesmo com o tempo que se oculta, revelando outra percepção temporária para
o texto.

O espaço da identidade como um lugar infernal e anônimo

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“Escrevo para suportar o mundo, que


incessantemente se desintegra em
nada”.

(G. Kunert)

A personagem-escritor está em busca de sua identidade e para


conseguir escrever o romance precisará ler uma série de livros indicados, bem
como assistir aos filmes sugeridos e desvendar outros enigmas. O percurso a
seguir exige da personagem uma dedicação muito grande, para isso,
percorrerá um caminho repleto de máscaras: ora é Leopold, ora é Robinson,
ora se vê no espelho como Leopold e enxerga-se como Robinson e outros
tantos ao longo da narrativa. Esses nomes evocam outros espaços e tempos
literários já que são personagens de outros romances. Certamente, isso nos
leva a pensar de que maneira esses outros personagens, agora encarnados
nos de Arménio atuam na narrativa. Em que essas conexões atualizam o texto
original e o dele próprio:

“Noutros sonhos que se seguiram, e foram muitos, Robinson, cada vez


mais pequenino, mas invariavelmente sob o nome de Leopold e
levando três bichos maus e maiores do que ele no seu encalço (todos
de avental e empunhando facas). Robinson, dizia eu, sucessivamente
converteu-se em verme, pulga e micróbio até se transformar em
átomo; pelo que Molly, a sua mulher já não tinha ninguém para lhe
comprar os rins...”(VIEIRA, 1999, p. 68).

O autor rastreia passos, anteriormente dados pelas personagens com as


quais as suas dialogam, deixando marcas e pistas a serem seguidas, não
oferece ao leitor uma saída, mas sim o coloca dentro de um espaço labiríntico
em que a saída nem é o principal objetivo, mas sim conectar-se com os fios
dependurados sobre o labirinto. Como um atua sobre o outro e com o outro?
Como o texto de Skakespeare ou de Safo ou de qualquer outro escritor que
esteja ali representado expande-se ao ponto de nos oferecer um sistema
riozomático para a leitura do romance?

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Segundo Deleuze e Gattari:

Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste


subterrânea distingue absolutamente das raízes e radículas. Os bulbos,
os tubérculos são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser
rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma questão
de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteiramente
rizomórfica. As tocas, com todas suas funções de habitat, de provisão,
de deslocamento, de evasão, de ruptura. O rizoma nele mesmo tem
formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em
todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há
rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há o melhor e o
pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a
grama é o capim-pé-de-galinha (DELEUZE; GATTARI, 1995, p.15).

Neste emaranhado em que o romance localiza-se, torna-se impossível


seguir o espaço de forma linear, porque o que encontramos é um lugar
polissêmico que se abre para tantos espaços sem a pretensão de fechar-se ou
delimitar fronteiras. O espaço é o literário, povoado por diálogos entre
personagens de diversas obras literárias e de referências ao universo clássico
da literatura. O escritor-personagem precisa ler várias obras para conseguir
desvendar os enigmas a ele proposto. Com isso, o escritor nos apresenta um
panorama canônico das obras que o influenciaram e das que ele julga, de fato,
imprescindíveis.

Esse diálogo com o universo simbólico da literatura expande-se e


conecta-se de diversas formas, não sendo possível ao leitor fixar-se numa
posição cômoda diante da leitura. Ao contrário, o leitor é convidado a
mergulhar nos espaços literários de lugares e tempos diversos. Acontece
também desses espaços, diálogos e cenas serem “deslocadas” da sua origem
e atualizadas pelo escritor-personagem que a contesta e a questiona.

Observamos que a personagem-escritor sai de Lisboa para Cabo Verde


e por lá o leitor é convidado a passear por alguns espaços situados na cidade
da Praia, fora esta referência espacial nenhuma mais será apresentada que
não as literárias. O autor lança a sua personagem-escritor e a nós leitores a um
espaço de prisão, entretanto, oferece-nos pistas e enigmas a serem
desvendados com o objetivo de encontrar as portas abertas para uma
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liberdade que é questionada dentro do romance: “libertar-se das paredes e


ganhar a “ilusão de ser livre”. Essa prisão repete-se a cada experiência de
leitura porque a cada livro uma nova grade precisa ser transposta:

– “Contudo, por que razão deveria ele desejar sair dessa casa? Seria
que o mundo lá fora oferecia atractivos que o fizessem querer
abandonar uma casa que até agora lhe tinha servido de abrigo e onde
ele vivia em completo sossego? Não seria essa antiga mansão o
paraíso possível? Talvez, admitiu ele, porém é necessário ver o outro
lado para poder comparar”(VIEIRA, 1999, p.40).

O escritor cabo-verdiano parece encontrar uma saída ao lançar mão de


todas essas categorias do romance de forma linear e segura para o leitor,
construindo enigmas e códigos que precisam ser lidos pelo escritor-
personagem e pelo leitor. O caminho é pedregoso, porque das raízes os
galhos se reproduzem, nos leva ao passado, nos traz de volta ao presente,
atualiza o passado.

Dessa maneira, o inferno que nos é apresentado pode ser lido como um
espaço de enfrentamento pelo leitor e pelo escritor em busca do texto que
precisa ser narrado e experimentado esteticamente com seus cortes,
cruzamentos, conexões e atualização. De outra forma, podemos lê-lo como um
grande diálogo dos romances que foram produzidos ao longo da história e de
que como eles ainda ecoam nas narrativas. Os narradores e a personagem
também nos guiam para outro caminho, da mesma maneira, o apagamento do
tempo pode ser lido não como ausência do tempo, mas talvez como a
suspensão do tempo ou o próprio questionamento sobre o tempo.

O cinema, a música e a literatura como saída possível para o drama da


existência, talvez a única saída, mas lembrando de que ela é composta de
tantos cruzamentos e inclusive de pontos de fuga e recuo, de apagamento e de
renascimento, incorporando o novo, o vivido e o que está na margem. O
inferno, muitas vezes sugerido no romance, nem é prisão pela qual escritor e
narrador são obrigados a passar e sim a própria ideia da liberdade. A prisão
não é a casa, mas sim interna, por isso, os romances, os filmes e a música

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como galhos que se espalham no texto, conectando-se, tocando-se, recuando,


repropondo novas formas de enxergar.

A historicidade como elemento construtor do inferno

“... nem modernidades como o telefone e o vídeo lhe


dão saída para o presente ou para o futuro: a única
porta é a biblioteca, esse acúmulo de passado, essa
fuga em marcha-a-ré que, se lhe devolve a
humanidade.”

Clara Seabra

O romance No inferno para se constituir como narrativa lança mão do


inferno como espaço da escritura em conflito, já que o romance não mais pode
ser escrito, também nos apresenta os infernos construídos em outros tempos e
em outras obras, como o de Dante Alighieri com o qual o escritor dialoga, mas
os infernos são muitos, para além dos citados, destacamos os cortes, as
rupturas, os deslocamentos, a intertextualidade, a suspensão do tempo, a
multiplicidade representada na personagem e no narrador, a releitura de outros
textos canônicos com os quais a personagem interage e o lugar labiríntico no
qual o leitor, para atravessá-lo, necessita de abandonar sua posição cômoda e
estável diante do texto, lançando-se à aventura do rizoma. O romance, diluído
na sua estrutura não oferece um caminho seguro e nada mais pode servir de
fio condutor, pois o que encontramos são fios entrelaçados, suspensos, que se
conectam, mas que também são rompidos, arremessando o leitor para outros
lugares. Não interessa mais a experiência da viagem segura, porque nada mais
é seguro e certo. Como a dinâmica da própria vida e da experiência muito
individualista do sujeito na contemporaneidade, o romance reflete essa
condição.

Importante destacar o papel da biblioteca e da arte como elementos que


ainda servem para resgatar o homem da sua tragédia pessoal e cotidiana.
Arménio Vieira deixa as marcas do que leu e de sua biblioteca pessoal, assim

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como as conexões que estabelece com o universo do conhecimento, ele, como


nos afirma Simone Caputo Gomes:

Passeia pelos vários tipos de arte como a música, a pintura, a


arquitetura, a escultura, o cinema. E por vários tipos de discurso como
o metapoético, o ideológico, o político, o religioso, o mitológico, o
metalingüístico, o erótico, o filosófico, o bíblico, o teatral, a fábula, a
parábola. Também pelos gêneros: lírico, épico, dramático (trágico ou
cômico, resvalando pelo humorístico, irônico e satírico).

Tece redes, tendo “uma aranha como companheira”. E “alcança a


nuvem, que nunca é a mesma”, em seu propósito de expressar e
experienciar o diverso (GOMES, 2009, p.1).

A multiplicidade de diálogos pode ser vista e experimentada


esteticamente no texto armeniano. O romance, ao apresentar o espaço da
prisão, apresenta-nos também um espaço múltiplo e diverso repleto de
historicidade e saídas. Entendendo que essas portas de saídas não garantem
ao leitor a alegria definitiva da chegada. A cada porta aberta, o que pode se ver
pela frente é mais um caminho e outras portas para serem abertas, interessa
experimentar o olhar e observar a paisagem que se renova a cada vez que se
abre uma nova porta.

Cada imagem vale pela relação que ela constrói com o contexto
apresentado. Não é a verdade nem a resposta o que se busca, mas sim a
audição dessas vozes que atuam no texto. No prólogo já podemos encontrar a
importância dessas vozes que ecoam desde há tanto tempo. No poema
podemos ler esses versos:” Minha vida é o que ainda resta de por mim terem
passado grandes navios.”

São esses navios em forma de textos que o escritor faz chegar ao leitor
e a cada navio o desafio do mar a ser velejado. Essa imagem parece conter o
rizoma no que ela oferece de margem, travessia, tempestade, rota,
desorientação e naufrágio. No romance, a viagem é labiríntica, uma vez que
não lhe interessa o ponto de saída nem de chegada, mas sim a experiência do
navegar em alto-mar. Tal como um rizoma busca ser e fazer as conexões, sem
se negar o momento de fratura e recuo, compreendendo o que esse conceito
nos revela sobre conexão e velocidade:

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Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio,


entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma
é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o
rizoma tem como tecido a conjunção “e...e...e” (...) Entre as coisas não
designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra e
reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início e fim, que rói
suas margens e adquire velocidade do meio (DELEUZE, GATTARRi,
1995, p.37).

. Chegamos ao fim do romance. Chegamos? Ou ele continua se


conectando com outras páginas e outras coisas? Acompanhamos a
personagem para saber se ela escreve o livro e se o livro tem qualidade,
acabamos por escrever (como co-autores) um romance junto com ele. Um? Ou
vários? Percebemos que muitas narrativas foram construídas ao longo do
romance e todas elas estão como os navios no mar. Agora já conseguimos
olhar para cada um deles, mas o grande exercício ainda é enxergá-los
aproximando-os e distanciando-os de si mesmos, como objetos flutuantes que
se deslocam compondo diversas harmonias possíveis. Não na tentativa de
representar o todo, mas simplesmente na tentativa de ouvir cada voz e
perceber a tensão do atrito e do afastamento, das conexões e dos
deslocamentos possíveis.

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BIBLIOGRAFIA

BAKTHIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São


Paulo: Ed. da UNESP-HUCITEC, 1998.

DELEUZE. G.; GATTARI. F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1.


Tradução de Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. 6ª ed. Rio de Janeiro.
Editora 34, 2009.

GOMES. Simone Caputo. Arménio Vieira: Aulas magnas de Arte Poética. In:
http://www.embcv.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=851 Acesso
em: 11. Jan.2015.

VIEIRA, Arménio Adroaldo. No inferno. Praia. Centro Cultural Português, 1999.

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GRUPO DE TRABALHO: EDUCAÇÃO LITERÁRIA AFRODESCENDENTE

PROPOSITOR: MURILO DA COSTA FERRERA (UNEB)

Ementa:

Promover práticas pedagógicas que objetivem a elaboração e a utilização

de materiais didáticos de Literatura vinculadas à Educação Étnico-Racial e

Quilombola na formação de educadores, inicial e continuada. Isto se justifica

porque tem sido amplamente discutida em diversos contextos sociais, inclusive

no âmbito universitário, a reprodução pelos livros e materiais didáticos em

currículos escolares da Educação Básica brasileira de distorções, omissões e


equívocos em relação à história dos povos africanos e seus descendentes no

Brasil e nas Américas. Tais distorções são visíveis nos livros e materiais

didáticos de textos literários do ensino fundamental e ensino médio das escolas

brasileiras ao se notar a ausência de uma referência explícita de textos

literários afro-brasileiros e de uma análise e uma crítica didaticamente

correspondente a este assunto.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: AS IMAGENS DE ÁFRICA E


OS AFRODESCENDENTES

DAVID ALVES GOMES (UFBA)

A educação brasileira, em sua maioria, ainda está centrada em bases


teóricas europeias ou eurodescendentes. Em uma sociedade composta em
mais da metade por negros e mestiços, torna-se incompreensível a atual
conjuntura da não diversidade de saberes a serem adotados pelas vias
institucionais. Neste artigo, em diálogos com textos literários, observaremos
como as imagens eurocêntricas de um continente africano exótico, selvagem,
sem saberes e sem história contribuem para a existência da colonialidade e as
consequentes subalternização, desumanização e o genocídio da população
negra brasileira. Assim, abordaremos questões relevantes dos seguintes textos
literários: o conto “Estranhos pássaros de asas abertas”, de Pepetela (2009); o
livro “Histórias de Tia Nastácia”, de Monteiro Lobato (2002); o poema “A pedra”,
de Gonesa Gonçalves (2015); o poema “Porto-me estandarte”, de Cuti (2002);
e o conto “Zito Makoa, da 4ª classe”, de Luandino Vieira (2009). A partir dessas
leituras e através de uma interlocução com referenciais teóricos, perceberemos
que, para uma efetiva aplicação da Lei Nº 10.639/2003, é imprescindível
combater a colonialidade existente na sociedade brasileira, propondo-se uma
educação intercultural por meio de uma pedagogia decolonial, nas quais
saberes africanos, afrodiaspóricos e também indígenas estejam apresentados
de forma equitativa e sem hierarquias juntos aos de origem europeia nos
programas educacionais brasileiros.
Contextualizado em uma Angola anterior à colonização portuguesa, o
conto “Estranhos pássaros de asas abertas”, do escritor angolano Pepetela,
exibe o primeiro encontro entre os, chamados pelo próprio narrador, “povos da
terra” e os portugueses. O relato se dá pelo ponto de vista dos primeiros, que
vivem em uma aldeia, sendo que os últimos são chamados de “espíritos” por
sua aparência e cultura estranhas àqueles. Como falam línguas diferentes, os
dois grupos não se compreendem. Entretanto, os portugueses mostram pedras

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preciosas e especiarias aos “da terra” com o objetivo de estes os levarem ao


caminho para as Índias. Porém, os nativos não reconhecem os objetos.
Inicialmente, o clima amistoso predomina entre os dois povos desconhecidos,
até que um português comete uma ação violenta e rompe com a harmonia:

O espírito Velôje, de repente, mudou de atitude. Se abraçou à mulher


que caminhava a seu lado, tentou abraçar a da frente. Os da terra
riram, esse cazumbi é malandro, parece gosta de mulher. As
mulheres fugiram, rindo, esse espírito cheira mal, mas não pode ser
um espírito porque nos abraçou com um corpo igual ao vosso, só que
tem muitos pêlos, sua muito e cheira como os mortos. Ninguém se
ofendeu com o abuso do Velôje, mas este continuou. E a marcha
virou um pandemónio, com o espírito correndo para todas as
mulheres e estas fugindo. Até que ele conseguiu derrubar uma e caiu
por cima dela; e começou violentamente afastar os panos de ráfia e
ela gritou, já sem rir. O marido puxou pelo espírito e tirou-o
rudemente de cima da mulher. O espírito não gostou e puxou por
uma faca grande que tinha presa na cintura, uma faca grande, muito
grande, olhos arregalados, demente. Os da terra compreenderam,
então, esse espírito tinha perdido a cabeça e era perigoso. Lhe
rodearam, lhes mostraram os porrinhos que traziam e as azaguaias,
em ameaça. Então o espírito pareceu cair em si e correu para os
seus, na praia. Os da terra, no entanto, açulados pelas mulheres
agora indignadas, correram atrás dele. (PEPETELA In ALMEIDA,
2009, p. 231-232)

No trecho destacado, um português desconsidera qualquer autonomia


ou vontade por parte das mulheres “da terra” e tenta estuprá-las. A
representação desse estupro demonstra a tentativa de posse de um corpo
desconhecido com o objetivo de “colonizá-lo”. Osmundo Pinho observa como o
português, nos contextos coloniais, se configurava como um “civilizador
erótico”: o sexo como elemento de produção da cultura nacional, sendo o corpo
do “Outro” ao mesmo tempo objeto de desejo e de controle social (PINHO,
2004). Apesar de apresentar um contexto relativamente diferente, o conto
explicita o desejo colonial de posse de possíveis pedras preciosas e
especiarias da região, sendo o domínio sexual mais uma face do controle
social dos “povos da terra”.
Desse modo, o olhar etnocêntrico dos portugueses frente à cultura dos
“da terra” aliado ao desejo de posse possibilita a construção de uma missão
civilizadora que constituiu as colonizações em África e nas Américas, a qual
supostamente possuía o objetivo de retirar os respectivos povos dos seus
“estados primitivos” e desenvolvê-los, como bem observa Armand Mattelart: “O
objetivo desse desenvolvimento/modernização, confessado sem precaução

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oratória, é a ‘westernization’, a ocidentalização do outro, dos povos tidos como


sem história, sem cultura, a menos que se trate de folclore (MATTERLAT,
2005, p. 72).
A partir de sua narração, o conto “Estranhos pássaros de asas abertas”
contesta de forma contundente a visão eurocêntrica de que os povos
ancestrais africanos não possuíam história: o narrador é um dos “da terra” e
expõe a visão do seu povo frente aos “espíritos” (portugueses), inclusive os
seus preconceitos em relação a um povo desconhecido. É interessante
ressaltar que a ocidentalização do “outro” possui como motivação a
consideração de que a cultura europeia é hierarquicamente superior às outras,
que podem ser “primitivas” ou “animalescas”: “O colonialismo, que não matizou
os seus esforços, não deixou de afirmar que um negro é um selvagem e o
negro para ele, não era nem o angolano nem o nigeriano. Ele falava a língua
negra” (FANON, 2013, p. 245). Esse trecho do livro “Os condenados da Terra”,
de Frantz Fanon, demonstra como a homogeneização cultural favorece o
discurso de inferioridade cultural africana, pois o reconhecimento de uma
diversidade cultural implicaria um reconhecimento de estruturas sociais
complexas, que seriam, para o ocidente, exclusivas dos povos de origem
europeia. Assim, esse discurso homogeneizante está atrelado a diversos
estereótipos em relação aos povos africanos, os quais muitas vezes são
reproduzidos, ou pelo menos não problematizados, nos ambientes escolares.

o que ainda hoje predomina é a [imagem] de uma África exótica, terra


selvagem, como selvagem seriam os animais e pessoas que nela
habitam: miseráveis, desumanos, que se destroem em sucessivas
guerras fratricidas, seres irracionais em meio aos quais assolam
doenças devastadoras. Enfim, desumana. Em outra vertente o
continente é reduzido a uma cidade, nem mesmo um país. O termo
África passa, nesses discursos, a servir para referenciar um lugar
qualquer exótico e homogêneo. (ZAMPARONI, 2007, p. 46)

Valdemir Zamparoni aborda o recorrente imaginário sobre o continente


africano. Uma visão essencialista e homogênea sobre África mascara a
realidade dinâmica das sociedades africanas. A visão estereotipada de que a
África ancestral estava mergulhada em um tempo mítico e a-histórico anula a
possibilidade de os africanos serem agentes de sua própria história. Para
Hama e Ki-Zerbo, o tempo africano é um tempo histórico e dinâmico, pois:

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O próprio caráter social da concepção africana da história lhe dá uma


dimensão histórica incontestável, porque a história é a vida crescente
do grupo. Ora, deste ponto de vista pode-se dizer que para o africano
o tempo é dinâmico. Nem na concepção tradicional, nem na visão
islâmica que influenciará a África, o homem é prisioneiro de um
processo estático ou de um retorno cíclico. (HAMA; KI-ZERBO, In KI-
ZERBO, 2010, p. 31)

O princípio da ancestralidade não pode ser utilizado como pretexto para


afirmar que a África possui sociedades estáticas:

Existe assim no africano uma vontade constante de invocar o


passado, que constitui para ele uma justificação. Mas esta invocação
não significa o imobilismo e não contradiz a lei geral da acumulação
das forças e do progresso. Daí a frase: “Que o meu esteja melhor na
minha boca que na dos meus ancestrais”. (HAMA; KI-ZERBO In KI-
ZERBO, 2010, p. 32)

No trecho acima, percebe-se a autonomia dos sujeitos africanos frente a


um tempo mítico, mas não estático, portanto, histórico e dinâmico.
Relacionarei, a seguir, a ancestralidade africana às influências na cultura afro-
brasileira. No livro “Histórias de Tia Nastácia”, Monteiro Lobato aborda o tema
da ancestralidade, contudo, de forma bastante estereotipada. A obra se passa
com a personagem Tia Nastácia contando histórias populares para as crianças
Pedrinho, Narizinho e a boneca Emília. Entretanto, a todo momento, as
crianças contestam as histórias contadas pela cozinheira, afirmando que são
“sem pé nem cabeça” ou confusas. A personagem Dona Benta confirma a
postura das crianças dizendo que não se pode esperar boas histórias contadas
pelo povo. Tia Nastácia, rebate as acusações com a seguinte frase: “Foi assim
que minha mãe Tiaga me contou o caso da princesa ladrona, que eu passo
para diante do mesmo jeito que recebi” (LOBATO, 2002. p. 23). A afirmação da
Tia Nastácia está intrinsecamente ligada à concepção ancestral africana da
palavra como portadora de uma magia, que deve ser reproduzida de forma fiel
através da transmissão oral que se torna autêntica, como afirma Hampaté Bâ:

Agora podemos compreender melhor em que contexto mágico-


religioso e social se situa o respeito pela palavra nas sociedades de
tradição oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras
herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas. O que a África
tradicional mais preza é a herança ancestral. O apego religioso ao
patrimônio transmitido exprime-se em frases como: “Aprendi com meu
Mestre”, “Aprendi com meu pai”, “Foi o que suguei no seio de minha
mãe”. (HAMPATÉ BÂ In KI-ZERBO, 2010, p. 174)

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Como a resposta presente no livro de Lobato é semelhante ao que


afirma Hampaté Bâ, é possível que aquele autor conhecesse os métodos de
transmissão oral africanos, porém os deturpando. A deslegitimação das
histórias orais de Tia Nastácia, ou seja, de sua cultura, fornece suporte aos
ataques pessoais à cozinheira:

— Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia,


esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o
mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda
maior do que matar um homem. Facínora!... (LOBATO, 2002, p. 88,
grifos meus)

A fala acima é proferida pela boneca Emília. É necessário notar que a


depreciação dos atributos físicos e intelectuais da Tia Nastácia estão
interligados, caracterizando o racismo, como afirma Kabengele Munanga: “o
racismo seria essa atitude que consiste em considerar as características
intelectuais ou morais de um dado grupo humano como consequências diretas
de suas características físicas ou biológicas” (MUNANGA, 1990, p. 52). Assim,
características intelectuais e biológicas se imbricam de forma que as
características físicas se tornam uma espécie de metonímia para a cultura do
“Outro”, neste caso, a cultura negra. Em um contexto no qual o “racismo
científico” já não possui qualquer aceitabilidade, a depreciação dos atributos
físicos de um dado indivíduo através da noção de raça se configura como uma
tentativa de depreciação de sua cultura. No caso da população negra brasileira,
que possui como ancestrais africanos, uma visão eurocêntrica deprecia a
cultura afro-brasileira através do imaginário que se tem de África: povos
exóticos, miseráveis, com guerras, fome, doenças e animais silvestres
convivendo com os humanos. A reestruturação dos estereótipos sobre África
recai sobre as populações afrodiaspóricas, subalternizando as mesmas frente
aos modelos culturais eurodescendentes.
Para alguns intelectuais latino-americanos do grupo de pesquisa
transdisciplinar “Modernidade/Colonialidade”, a reprodução e a reestruturação
das hierarquias raciais nas chamadas sociedades pós-coloniais se dá pelo
conceito de colonialidade, como explica o filósofo Nelson Maldonado Torres:

a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como


resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a

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uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se


relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as
relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado
capitalista mundial e da idéia de raça. Assim, apesar do colonialismo
preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo.
(TORRES apud CANDAU; OLIVEIRA, 2010. p. 18)

Portanto, a colonialidade seria a reprodução de ideias coloniais mesmo


após o término da colonização. Entretanto, a colonialidade não pode ser vista
apenas como resquício do regime escravagista, pois os valores transmitidos
são reorganizados ao modelo de sociedade atual com o objetivo de manter as
hierarquias raciais. Para esses pensadores latino-americanos, existem três
tipos de colonialidade: a do poder, a do saber e a do ser. Abordaremos as duas
últimas. Na colonialidade do saber ocorre a: “Repressão de outras formas de
produção de conhecimento não-europeias, que nega o legado intelectual e
histórico de povos indígenas e africanos, reduzindo-os, por sua vez, à categoria
de primitivos e irracionais, pois pertencem a ‘outra raça’” (CANDAU; OLIVEIRA,
2010, p. 22).
Esse tipo de colonialidade está bem evidente no livro “Histórias de Tia
Nastácia”, de Monteiro Lobato, pois os saberes da personagem Tia Nastácia
são desconsiderados por serem emitidos por alguém de “outra raça” e com
suposta inferioridade cultural. Talvez o tipo mais violento:

A colonialidade do ser é pensada, portanto, como a negação de um


estatuto humano para africanos e indígenas, por exemplo, na história
da modernidade colonial. Essa negação, segundo Walsh (2006),
implanta problemas reais em torno da liberdade, do ser e da história
do indivíduo subalternizado por uma violência sistêmica. (CANDAU;
OLIVEIRA, 2010, p. 22)

Nesse caso, é negada a humanidade para indígenas e africanos (e por


extensão, aos seus descendentes). No contexto brasileiro, percebe-se a
colonialidade do ser através do cerceamento da liberdade da população afro-
brasileira que é 18,4% mais encarcerada, segundo dados do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014), através
dos recentes casos no Rio de Janeiro de impedimento do trânsito de indivíduos
pobres e negros a praias localizadas em bairros nobres, além, é claro, do
genocídio do povo negro que representa a perda do direito à humanidade a
essa parcela da população brasileira. O poema abaixo, de Gonesa Gonçalves,
trata exatamente deste último caso:

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A pedra

Caí na Rua Sete de setembro.


Soldados marchavam
com seus coturnos pesados
perto da minha face.
Minha testa ainda suava
e o sol já me ressecava.
Era hora do almoço:
morri com fome.
O sangue escorria
da minha cara suja.
Minha roupa era encardida
Tinha vergonha de me ver
o socorro demora,
mas o repórter:
-Filma ali, filma ali!
E embaixo de mim
uma pedra
que incomodava
meu sono eterno.
(GONÇALVES, 2015)

O poema “A pedra” retrata uma cena de extermínio promovido pela


Polícia Militar. Ao mesmo tempo em que o poema fornece à vítima sensações
humanas (o peso dos coturnos dos policiais, suor, ressecamento e fome), o
saciamento dessas sensações não é realizado: há um desinteresse pelo corpo
que sangra e possui fome. A grande espera pelo socorro revela a face do
racismo institucional. A imprensa, também, apenas preocupada com a sua
reportagem. Uma pedra incomodava a vítima, mas ninguém a retirou debaixo
de sua cabeça. A pedra, assim, representa a indiferença sofrida por esse
indivíduo durante a sua vida e também na morte, aliás, não somente a física,
mas a morte social é algo que acompanha a vida de homens e mulheres
negros das periferias brasileiras, como afirma Osmundo Pinho:

A forma elegantemente geométrica e um conteúdo de sangue e


poeira parecem descrever a síntese formal, algo etérea, de uma
estrutura de sentido que oferece em sacrifício, de modo muito
concreto, corpos negros barbarizados, como fiel da balança da
produção enraizada da despossessão e da morte como forma de vida
social. Seria precisar reconhecer a dimensão estrutural desse
massacre, no plano das condutas estruturadas, das significações
compartilhadas, de uma fenomenologia da experiência e da mesma
reinstituição da ordem social, na qual o Estado e outras instituições
sociais (como a mídia e o mercado) convergem para produzir o negro
como sujeito matável e a violência como dispositivo fundamental de
reprodução social subjetivada (Agambem, 2012). (PINHO, 2015, p. 2)

Considerar o negro como sujeito matável é destituir a sua humanidade.


Nos versos “Era hora do almoço: / morri com fome”, o poema ressalta o vazio

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que a sociedade trouxe a este corpo através do seu “abatimento”, um corpo


que possuía sensações e desejos, mas que não foram ouvidos, servindo
apenas como espetáculo para a mídia expor a sua “carne” ainda “fresca”.
Dessa forma, o genocídio, na concepção de Pinho, não se restringe à
eliminação física dos indivíduos negros, mas dialoga com o conceito de
colonialidade do ser:

Sob a chuva de fogo do pânico moral promovido pela imprensa


estridente, ou por outros atores que permanecem omissos, o
genocídio, em sua multidimensionalidade, é a condição estrutural de
existência para o povo negro no Brasil. (ibidem, p. 2)

Os três conceitos de colonialidade não estão dissociados: a


predominância eurocêntrica nos espaços de poder (colonialidade do poder)
está relacionada à deslegitimação ou subalternização dos saberes de origem
africana ou afro-brasileira (colonialidade do saber), proporcionando políticas
públicas que favorecem o alto encarceramento negro, o genocídio e o racismo
institucional (colonialidade do ser). Assim, a educação pode ser uma
ferramenta eficaz no combate à colonialidade. Contudo, uma educação que
apenas integre o negro à sociedade, mas que se mantenha sustentada em
bases culturais eurocêntricas, negando os valores das culturas negras, não
finda os privilégios da população não negra. Cuti, em seu poema “Porto-me
estandarte”, evidencia a necessidade de se introduzir outros valores em nossa
sociedade:

Porto-me estandarte

Minha bandeira minha pele

Não me cabe hastear-me em dias de parada


Após um século da hipócrita liberdade vigiada
Minha bandeira minha pele

Não vou enrolar-me, contudo


E num canto
Acobertar-me de versos...

Minha bandeira minha pele

Fincado estou na terra que me pertenço


Fatal seria desertar-me
Alvuras não nos servem como abrigo

Miçangas de lágrimas
Enfeitam o país
Das procissões e carnavais

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Minha bandeira minha pele

De resto
É gingar com os temporais.
(CUTI, 2002, p. 46)

Quando o poeta diz “minha bandeira minha pele”, ressalta a importância


de ter a sua cultura como referência sociocultural. Em uma sociedade na qual a
cor da pele é sinônimo de hierarquia, ele reafirma a sua pele, e
consequentemente a sua cultura, como único meio de libertação, pois as
“Alvuras não nos servem como abrigo”, ou seja, o acesso e a integração do
negro a uma estrutura eurocêntrica não farão com que as “Miçangas de
lágrimas”, os sofrimentos representados pelas contas africanas, que
simbolizam a religiosidade afro-brasileira tantas vezes oprimida pelas
“procissões” ou “cruzadas” cristãs, terminem. Assim, Cuti contesta a concepção
de democracia racial através da imagem do carnaval, geralmente considerado
como a “festa das misturas”, e propõe uma “ginga”, elemento da capoeira, para
enfrentar as adversidades, “os temporais”, estabelecendo um circuito de
negociações, tendo em vista a emancipação e a sobrevivência do povo negro.
Estabelecendo um paralelo entre a mensagem do poema e o modelo de
educação necessário para a emancipação e o combate ao genocídio do povo
negro na forma multidimensional, percebe-se que uma educação intercultural e
antirracista poderia se tornar eficaz, pois seriam apresentados os valores
africanos, afro-brasileiros e indígenas de forma equitativa e sem hierarquias
frente aos valores europeus. Para tanto, seria necessária uma grande
reestruturação dos currículos escolares do Ensino Básico e do Ensino Superior,
com aplicação muito além da Lei 10.639/03.
Assim, a educação pode ser considerada como um importante elemento
de mudança social porque o ambiente escolar é um dos principais locais nos
quais há a reprodução de imagens estigmatizadas de África ou de violências
simbólicas ou físicas à população negra. O conto “Zito Makoa, da 4ª Classe”,
do angolano Luandino Vieira, exemplifica essas situações em um colégio, onde
o personagem Zito, único menino negro da sala, sofre agressões físicas e
psicológicas por parte de seus colegas, inclusive com o apoio da professora. O
conto se situa em uma Angola ainda colonizada pelos portugueses, mas com

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guerra pela independência. Zito possui um único amigo, o Zeca, um menino


branco, com quem troca bilhetes. Em um dos bilhetes, o Zito, em uma atitude
irreverente, escreve a frase “Angola é dos angolanos”. Os colegas
denunciaram à professora a existência de um bilhete, sem saberem o seu teor.
Zito entrega o bilhete a Zeca e o menino negro sofre agressões físicas e, após,
é repreendido pela professora. Em seguida, a professora pede o bilhete ao
Zeca. Contudo, o Zeca para proteger o seu amigo, escreve rapidamente um
outro bilhete falando sobre as pernas da professora e guarda o verdadeiro
bilhete escrito pelo Zito. Por que será que o Zeca, que no conto é criticado por
ser “amigo de negro”, decide pôr em xeque os seus privilégios para ajudar o
Zito? No decorrer do conto, percebe-se uma diferente amizade que foi
construída pelos garotos:

Sempre trocavam suas coisas, lanche do Zeca era para Zito e doces
de jinguba ou quicuérra do Zito era para Zeca. Um dia mesmo, na 3ª,
quando Zito adiantou trazer uma rã pequena, caçada nas águas das
chuvas na frente da cubata dele, o Zeca, satisfeito, no outro dia lhe
deu um bocado de fazenda que tirou no pai. (VIEIRA, 2009, p. 123)

A amizade dos garotos era baseada pela troca. A troca não era somente
de coisas, mas “troca” de culturas, sem hierarquias. Havia, portanto, um
respeito mútuo em relação às diferenças culturais. Um conhecendo a cultura do
outro, mas sem considerar a própria como superior. A troca pode ser
relacionada ao princípio africano da circularidade, presente também em
diversas manifestações afro-brasileiras, através da representação do círculo,
como em rodas de samba, de capoeira e nos rituais ou festas do candomblé
(BRANDÃO, 2006). A circulação e a transferência de cultura através de um
respeito mútuo dialogam com a interculturalidade, que seria para a linguista
Catherine Walsh um processo de aprendizagem entre culturas em condições
de respeito e igualdade através de um intercâmbio de saberes e práticas
culturalmente diferentes, construindo, então, um espaço de negociação onde
os conflitos de poder não seriam mantidos ocultos, mas reconhecidos e
confrontados (WALSH apud CANDAU; OLIVEIRA, 2010).
Entretanto, uma educação intercultural e antirracista só poderia ser
implantada através de um método pedagógico que possibilitasse a sua
aplicação. Dessa forma, seria necessária uma pedagogia que contestasse as

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bases eurocêntricas como única leitura de mundo possível, uma pedagogia que
contestasse as imagens coloniais: a pedagogia decolonial, que é:

uma práxis baseada numa insurgência educativa propositiva –


portanto, não somente denunciativa – em que o termo insurgir
representa a criação e a construção de novas condições sociais,
políticas, culturais e de pensamento. Em outros termos, a construção
de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito além dos
processos de ensino e de transmissão de saber, que concebe a
pedagogia como política cultural. (CANDAU, OLIVEIRA, 2010, p. 28)

Tal pedagogia não está resumida ao âmbito escolar, mas está definida
como política cultural, ou seja, todas as estruturas de poder devem tomar como
diretrizes a construção de uma sociedade com base na interculturalidade.
Apesar de a proposta parecer bastante utópica, em uma sociedade marcada
pelo abuso, reificação e genocídio do povo negro, a educação parece ser o
meio mais eficaz para a mudança social, não descartando, contudo, a
necessidade de enfrentamentos mais enérgicos em diversos contextos, a
exemplo da campanha “Reaja ou será morto, reaja ou será morta” que luta
contra o genocídio do povo negro brasileiro através de atos, marchas,
encontros de formação e apoio jurídico. Com certeza os “temporais”
anunciados por Cuti virão e a “pele negra” deve ser tomada como “bandeira” de
luta. Entretanto, as imagens coloniais e estereotipadas do continente africano
proporcionam o epistemicídio e a desvalorização dos saberes das populações
africanas e afrodiaspóricas, como na personagem Tia Nastácia, que, por
consequência, ocasionam violências físicas ou simbólicas, sofridas, por
exemplo, pelo personagem Zito, ou até o genocídio do povo negro, em sua
multidimensionalidade, mas também na modalidade mais cruel: a eliminação
física, como no poema “A pedra”. Assim, a educação intercultural e a
pedagogia decolonial possuem o objetivo de que o inevitável contato entre
culturas não possua a mesma finalidade usurpadora e controladora
apresentada no início deste artigo em “Estranhos pássaros de asas abertas”.
Que o “Outro” não seja exatamente um “estranho” e que todos sejam agentes
de sua própria história.

REFERÊNCIAS

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em http://artigo157.com.br/wp-content/uploads/2015/10/O-Circulo-da-Morte-e-
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O PIBID COMO FERRAMENTA PARA SE REFLETIR SOBRE POSTURAS E


DISCURSOS RACISTAS NA ESCOLA

JOSENÉIA SILVA COSTA (UNEB)


LEANDRA DOS SANTOS SILVA (UNEB)

Neste artigo, pretende-se apresentar alguns percursos feitos no


desenvolvimento de aulas no ensino médio, em uma escola pública de
Salvador, que participa do Subprojeto intitulado Afrodescendência: a
representação do negro na Literatura brasileira e a produção de escritores
afrodescendentes e africanos de Língua Portuguesa na Contemporaneidade,
do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), no Curso
de Letras Vernáculas, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da
Universidade do Estado da Bahia, a fim proporcionar os alunos a refletirem
sobre o processo de construção da identidade negra. O PIBID, especificamente
o subprojeto mencionado, tem como um dos objetivos apresentar-se como um
espaço de discussão que visa contribuir para a criação de diálogos sobre as
diversidades de grupos etnicorraciais e a reinvenção da educação brasileira
para o combate de práticas racistas que ainda são disseminadas no ambiente
escolar. Para tanto, pautamo-nos na reflexão acerca da imagem do negro em
obras literárias brasileiras e em recursos audiovisuais, como letras de músicas,
documentários, dentre outros, para que os alunos conheçam um pouco da
cultura e da história do povo negro e pensem coletivamente em estratégias de
combate ao racismo.

Palavras- chave: Escola pública. Identidade negra. Combate ao racismo.

Introdução

É difícil imaginar como nos ambientes escolares ainda é delicado


empreender discussões sobre discriminação, preconceito e racismo. Há um
certo desconforto e uma tentativa de camuflar ou justificar comportamentos que
demonstram claramente concepções que se configuram racistas. E o mais

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desconfortável é perceber que, muitas vezes, quem é vítima de tais atos nem
os percebe e quem os comete, ignora o feito.
Discutir sobre as relações raciais demanda esclarecer alguns limites
entre termos que podem suscitar uma visão de unicidade, mas que, no entanto,
se designam diferentes.
Dessa forma, pretendemos neste trabalho, apresentar alguns percursos
feitos no desenvolvimento de aulas no ensino médio, no ano de 2014, no
Colégio Heitor Villa Lobos, situado no bairro do Cabula VI, Salvador – Bahia,
que participa do Subprojeto intitulado Afrodescendência: a representação do
negro na Literatura brasileira e a produção de escritores afrodescendentes e
africanos de Língua Portuguesa na Contemporaneidade, do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) 251, no Curso de Letras
Vernáculas, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da
Universidade do Estado da Bahia. A proposta desse subprojeto é, dentre outros
movimentos, proporcionar aos alunos, por meio da leitura de textos literários,
letras de músicas, documentários, dentre outros, uma reflexão sobre o
processo de construção da identidade negra, além de levá-los a conhecer um
pouco da cultura e da história do povo negro a fim de fazê-los desejar pensar
coletivamente em estratégias para combater o racismo.

Conhecimento: primeiro passo para se combater o racismo

Todo trabalho deve ser iniciado com uma visão prévia de quais objetivos
se pretende alcançar. E quando se trata de uma trabalho em sala de aula, com
diferentes sujeitos, é interessante entender como funcionam alguns sistemas
de crenças; quais concepções se têm acerca dos assuntos que serão
abordados, dentre outros olhares que devem ser lançados, nesse contexto,
para se adequar as propostas.

251
Quando for feita referência às bolsistas PIBID do subprojeto Afrodescendência: a
representação do negro na Literatura brasileira e a produção de escritores
afrodescendentes e africanos de Língua Portuguesa na Contemporaneidade, será
utilizado o termo PIBIDafro.

1069
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Assim, um dos primeiros movimentos em sala de aula quando


apresentado o subprojeto foi conhecer as expectativas e a bagagem daquele
público de meninos e meninas dos 1º e 2º anos do Ensino Médio, do Colégio
Heitor Villa Lobos, em relação às discussões que seriam propostas. Para tanto,
foi aplicado um questionário com 22 questões, em sua maioria, objetivas (sim
ou não), que demandavam um comentário, uma vez que, o que nos
interessava não eram somente dados quantitativos, sobretudo, os qualitativos,
as explicações para perguntas como: “Você sabe o que é preconceito? ( )Sim
( ) Não Explique o que é, caso saiba”, ou então: “Você já sofreu algum ato
discriminatório? ( )Sim ( ) Não Comente”. Esse questionário foi
aplicado duas vezes: no início e no término do projeto, naquele ano letivo.
Objetivava-se, com as duas aplicações do questionário, perceber se os
argumentos/comentários acerca das discussões sobre racismo, dentre outros,
teriam sofrido mudanças significativas. Foi uma espécie de autoavaliação do
desenvolvimento das propostas, uma vez que se pretendia promover uma
reflexão acerca das relações etnicorraciais no Brasil.
Quando analisados os dados dos questionários, ficou perceptível que a
grande maioria dos alunos dizia saber o que é preconceito, mas, na primeira
aplicação, além de muitos deixarem o espaço para os comentários em branco,
as respostas mostravam claramente que havia uma certa confusão entre o que
é preconceito e discriminação, como pode ser visto no comentário de uma
aluna: “Preconceito é a mesma coisa que discriminação com a cor, onde mora,
com o que tem ou deixa de ter, pelo trabalho.” (MARGARIDA, 2014) 252. Houve
também comentários como: “preconceito é quando uma pessoa por ser
defeituosa é discriminada por outra pessoa”. (COPO DE LEITE, 2014)
Contudo, na segunda aplicação, devido a apresentação de termos e
conceitos sobre história e cultura afrobrasileiras, no decorrer das aulas
promovidas pelo subprojeto, as respostas já foram melhor elaboradas;
demonstravam uma maior clareza acerca dos termos discutidos; um
conhecimento mais adequado sobre as abordagens feitas.
Assim, tivemos a certeza da relevância de se aplicar o questionário
como um recurso didático para se avaliar os caminhos que o grupo escolheu

252
Serão utilizados nomes de flores para manter no anonimato os nomes dos alunos que têm suas
respostas demonstradas neste trabalho.

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percorrer, a fim de introduzir discussões que tinham a literatura como uma das
ferramentas para se delinear novas posturas em sala de aula e na vida
daqueles jovens.
Nesse percurso de escolhas, um dos materiais que ajudou no
consubstanciamento das discussões foi o Glossário de termos e conceitos
sobre história e cultura afrobrasileiras, elaborado pelas bolsistas PIBID, do
subprojeto em questão. Esse material explicava, com uma linguagem
acessível, o que significam termos como democracia racial, discriminação
racial, identidade, memória, movimento negro, preconceito, raça, tradição oral
africana, dentre outros, que apareceriam nos textos literários e em outros
materiais didáticos selecionados pelo grupo.
Por meio desse glossário e das discussões em sala, tentamos elucidar
questões como a abordagem do termo racismo, utilizado muitas vezes como
discriminação, mas que pode ser considerado um comportamento, uma
aversão em relação a pessoas que pertencem a determinados grupos raciais,
que podem ser percebidos por meio da cor de pele ou do tipo de cabelo.
(Brasil, 2005). O racismo gira em torno de uma concepção equivocada da
existência de raças superiores e inferiores. E esse equívoco manifesta-se por
meio de atos discriminatórios contra indivíduos; são atos que podem ir desde
uma agressão verbal a assassinatos. Essa doença chamada racismo, ainda faz
uma parcela da sociedade pensar que devem existir lugares específicos para
negros morar, cargos, cores, estilos e posições que não são para negros.
Dessa maneira, iniciamos algumas discussões teóricas que tinham a
literatura afrodescendente como suporte didático. Para falarmos em identidade
utilizamos o texto Minha cor, de Raquel Almeida:

[...]Era um dia especial, pois estava indo fazer minha primeira carteira
de identidade.
No local onde fazia o documento, na fila de espera, fiquei confusa
com um comentário da minha mãe. Ao ler minha certidão de
nascimento ela falou:
-Olha, na sua certidão tá escrito que você é parda, filha!
Na hora não passou nada na minha cabeça a não ser: “O que ela
está querendo dizer?” Mas uma coisa eu sabia, que se tratava da
minha cor. Na hora quis saber que tipo de cor era, pois nunca tinha
ouvido falar.
-Mãe! Que cor é essa?
-Ah, filha! É que você é como eu. Não é preta nem branca.

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Fui para casa questionando. Parda, parda...Lembrei da minha caixa


de lápis de cor, tinha a cor azul, amarela, verde...marrom(tá próximo).
Será que pardo é a mesma coisa de marrom?
[...]
-Pai, o que é pardo?
-Num sei não. Num existe isso, fia. Ou é preto ou é branco!
Me confundi! Parda, preta ou branca? Olhei bem para o rosto do meu
pai e me reconheci em seus traços. Fiquei muda por um instante
enquanto ele dizia sorrindo:
-Pra mim você é preta! Você é minha filha! (ALMEIDA, 2007).

Assim, pensar em identidade negra se fez necessário em sala de aula,


uma vez que foi comprovado no próprio questionário aplicado, pelo grupo
PIBIDafro, que muitos alunos se autodenominavam pardos e portavam em
suas certidões tal especificação. O olhar sobre eles mesmos se fazia
importante, uma vez que podemos dizer que, hoje, incorporar a identidade
negra é pensar para além de aspectos meramente biológicos. Algumas
correntes sociológicas tratam identidade racial como uma categoria
socialmente construída, pois não se esgotam nos componentes biológicos; são
agregados elementos culturais e sociais à identificação racial. E ainda que
delicada a missão de fazer com que jovens reconheçam suas identidades, mais
delicado ainda é mostrá-los que a imagem negativa do negro foi construída de
maneira cruel e deturpada:

[...] ser negro era sinônimo de ser socialmente desqualificado, com


baixa qualificação profissional, de baixa escolaridade, mesmo no seio
da “população de cor”. Em outras palavras, identificar-se assim não
era vantajoso em nenhum sentido. Décadas se passaram, até
meados dos anos 80 e 90, e as representações sobre ser negro
praticamente continuaram as mesmas no imaginário popular. As
organizações dos movimentos negros ganharam forca na esfera
pública e junto aos poderes públicos, porém, o “mito da democracia
racial” continua latente nas representações sociais dos brasileiros.
(SANTOS, 2011, p. 6).

Posto isto, o trabalho sobre identidade negra continua em sala de aula.


Agora com o conto O batizado, de Cuti, em que a discussão se torna mais
contundente, uma vez que a personagem Paulinho não aceita que uma família
totalmente negra, utilize o nome “Luizinho” para batizar uma criança negra,
uma vez que esse nome não pertence à matriz africana. Há ainda o problema
aventado por Paulinho de serem convidados padrinhos brancos. Paulinho se
indigna com o fato de ninguém da família cogitar a possibilidade de colocar, na
criança, um nome de origem africana. Ele considera alienação, falta de

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identidade cultural negra e um comportamento racista por parte dos membros


de sua própria família.

[...]
- Ouviram todos vocês? Eu acabo de dizer, com este exemplo nas
mãos, da quebra da nossa identidade negra. Ouçam o nome de meu
adorado sobrinho: Luizinho... Já não chega o sobrenome Oliveira! Luiz
é nome de qual ancestral? Refere-se a qual matriz cultural?
[...]
- E reparem na contradição. Minha família, depois de negar suas
raízes, com esse batizado, ainda tenta me impedir de falar. A alienação
é dupla. Querem me impor censura! Fosse o nome escolhido um nome
africano, como por exemplo Kalungano, Sawandi, Kwame, Omowale,
ou um nome dado por nossas verdadeiras religiões, e eu não estaria
aqui dizendo essas palavras. Mas, com nome africano cartório põe
areia, não é mesmo? E nós o que fazemos? Recuamos, ao invés de
reivindicar o direito à identidade cultural. Você aí, que é o padrinho, eu
percebo que está rindo de mim. Claro, você é branco. Um branco
padrinho de preto. Mais um! (CUTI, 1998, p. 46-47).

A literatura afrodescendente aí habita a sala de aula como uma voz que


deseja demonstrar a necessidade de mudança de posturas e mentalidades de
negros e não negros. É a busca por uma apropriação identitária adequada, pois

A identidade é uma realidade sempre presente em todas as


sociedades humanas. Qualquer grupo humano através do seu
sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de
sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio. A definição de
si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm
funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do
território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por
interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA,
1994, P. 177-178).

Nesse percurso, foi exibido o documentário Racismo no Brasil-Preto


no Branco: nem tudo é o que parece, do Canal Futura. No documentário,
além de depoimentos de negros e brancos, demonstrando a diferença de
tratamento, da sociedade, entre eles, há dados que explicitam claramente o
mito da democracia racial, como: “2,6% dos negros têm diplomas
universitários; 1,9% são empregadores; 47% foram abordados pela polícia.
Nesse momento, os depoimentos de negros bem sucedidos deixam claro que
eles são uma exceção na sociedade. E há ainda o depoimento de Abdias do
Nascimento afirmando que “foram os africanos escravizados que construíram
esse país, mas até hoje, a nossa voz é marginalizada e nossa imagem

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

folclorizada.” Destarte, finalizar (temporariamente) as discussões sobre


identidade com o documentário Racismo no Brasil possibilitou elucidar que há
ainda um tratamento diferente dispensado a negros, sobretudo se ele for pobre,
com pouca escolaridade e assumir os cabelos crespos.
Foi necessário pautar discussões sobre a história do negro, a fim de
entender essa construção pejorativa e depreciativa sobre essa população. Para
tanto, utilizamos, inicialmente, o conto A botija de ouro, de Joel Rufino dos
Santos, para remeter ao tempo da escravidão. A história da negrinha sem
nome, já nos mostra a posição que era dada aos negros, o desrespeito e a
crueldade dispensados a eles. A “moleca”, encontra uma botija de ouro e por
afirmar para o feitor, desconfiado da “negrinha”, que havia encontrado um
“montão de vagalumes”, é acorrentada num tronco até dizer a verdade. E
dessa forma, a literatura é o veículo que leva os leitores aos mais longínquos
lugares.
Não faltaram materiais didáticos para se discutir as temáticas sobre as
relações etnicorraciais. Para a abordagem sobre estética negra utilizamos
documentários como Do lado de cima da cabeça, a música Olhos coloridos,
de Sandra de Sá. Para abordagem sobre Racismo, preconceito e discriminação
apresentamos os documentários CQC racismo, Teste das bonecas e a letra
de música Racismo é burrice, de Gabriel O Pensador. Para falar sobre
Movimentos negros e políticas afirmativas, nos apropriamos da música O preto
em movimento, de MVB e da lei 10.639/03.
Acreditávamos ser interessante o percurso que escolhemos, com as
seleções de materiais que fizemos para proporcionar um amadurecimento
intelectual aos alunos do ensino médio, que agora, no segundo momento do
planejamento das aulas, teriam como proposta um círculo de seminários sobre
escritores afro-brasileiros. Dessa maneira, José Limeira, Conceição Evaristo,
Elisa Lucinda, Lívia Natália, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Cuti, Cristiane
Sobral e Maria Carolina de Jesus, por meio de seus textos e de suas biografias
passearam docemente pelas aulas do PIBIDafro.

Conclusão

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Uma das propostas da Lei 10.639/03 é contribuir, por meio do ensino de


História e Cultura Afro-brasileiras e africanas, para a reversão do imaginário
social brasileiro sobre a população negra. Para tanto, é necessário um
movimento de mudança na educação brasileira para que haja a implementação
dessa lei, de fato. Pois torná-la obrigatória não é condição suficiente para que a
sociedade entenda que racismo é uma questão de ignorância. É um
comportamento que traduz a ausência de lucidez sobre a inexistência de uma
verdade absoluta. Não existem raças inferiores ou superiores e nenhuma
vontade deve ser imposta.
Por isso, o trabalho em sala de aula deve ser visto como um grande
aliado para se desconstruir posturas e discursos racistas que revelam o mais
puro desconhecimento e a forte reprodução de ideais opressores. O racismo
muitas vezes é silencioso, velado e cínico.
Dessa forma, a aulas devem ser espaços para se ensinar como não se
silenciar. Já dispomos de um material riquíssimo para se propor discussões.
São sites, revistas, poemas, contos, pesquisas, artigos, letras de músicas e as
nossas próprias vozes; vozes de pessoas ainda desautorizadas, mas que de
alguma forma já descobriu, na pele e por causa da cor da pele, o que é o
racismo.

REFERÊNCIAS

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brasileiros. Organizadores Esmeralda Ribeiro, Márcio Barbosa. Quilombhoje,
2007.

CUTI, Luiz. O batizado. In: Cadernos Negros. Contos afro-brasileiros.


Quilombhoje, 1998.

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http://www.cp2.g12.br/UAs/se/departamentos/sociologia/pespectiva_sociologica
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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas


reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil. In: SPINK, Mary Jane paris
(Org.) A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo:
Cortez, 1994, p. 177-187.

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GRUPO DE TRABALHO: GÊNERO, RAÇA/ETNIA, SEXUALIDADES E


OUTROS TEMAS CONTEMPORÂNEOS NA DOCÊNCIA: SABERES,
PRÁTICAS E DESAFIOS

PROPOSITOR: CLEBEMILTON NASCIMENTO (UNEB)

Ementa:

A presente proposta de Seminário Temático tem como objetivo proporcionar

um espaço interdisciplinar, socializador e articulador de debates em torno de

saberes, práticas e desafios no campo da educação. Trata-se, portanto, de um

espaço de diálogos e aprofundamento de experiências oriundas de diferentes

campos disciplinares que fomentem uma crítica ao pensamento hegemônico a

partir de diversos lugares epistemológicos (Estudos Culturais, Teorias

feministas, Estudos pós-coloniais, Estudos queer, etc…) tomando como eixo

norteador o gênero, raça/etnia, sexualidades dentre outros marcadores sociais

da diferença, especialmente em contextos baianos. Para tanto, acolhe

comunicações que apresentem resultados de pesquisas ou pesquisas em

andamento. Por fim, serão muito bem vindas experiências decorrentes de

subprojetos de intervenção, a exemplo do PIBID.

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EDUCAÇÃO E SEXUALIDADE COMO PRÁTICA DE EMPODERAMENTO


FEMININO: INSERINDO NOVAS ABORDAGENS EDUCATIVAS PARA A
PROMOÇÃO DA SAÚDE

VANESSA NASCIMENTO MACHADO (PÓS-CRÍTICA/UNEB)

Resumo: Trata-se de uma pesquisa-ação que tem por finalidade realizar


grupos de oficinas educativas voltadas para a educação sexual de mulheres do
município de Alagoinhas-BA, que frequentam consultório de enfermagem em
sexualidade humana e aceitarem em participar das mesmas. Acredita-se que
as oficinas permitirão identificar os saberes e práticas das mulheres em relação
as suas sexualidades, além de contribuir para que adquiram conhecimento.
Para Além disso, é de extrema relevância que façam durante as oficinas uma
reflexão crítica sobre educação sexual, abrindo espaço para discutir sobre a
sexualidade feminina, melhorando sua autoestima como mulher e sua vivência
sexual com seu companheiro/a, concretizando a educação sexual como uma
etapa importante para o empoderamento e emancipação feminina. A educação
sexual passa a se constituir um elemento significativo de mudança e progresso,
uma tentativa de por ao alcance das pessoas condições para que possam
usufruir e conviver com a própria sexualidade e com a de seus semelhantes,
numa forma consciente, moderada e respeitosa. A realização de um trabalho,
voltado para essa linha de pensamento, pode proporcionar as mulheres
discernimento no que tange a questão da promoção da saúde e conhecimento
sobre seus valores e suas crenças.

Palavras chaves: Educação. Gênero. Saúde. Sexualidade. Empoderamento.

Introdução
Este trabalho é parte dos estudos de Mestrado em Crítica Cultural –
UNEB, Campus II, Alagoinhas BA. Tem por finalidade, desenvolver práticas
educativas com mulheres que frequentam um consultório de enfermagem em
sexualidade humana no referido município e aceitarem em participar das
mesmas.
A contemporaneidade é marcada pela presença da mulher na política,
no mercado de trabalho, com independência financeira, fazendo uso de
dispositivos, com novos modelos de família, com divisão de tarefas domiciliares
entre homens e mulheres; além de demonstrarem preocupação com a temática
sexualidade, se organizam, discutem e provocam mudanças em sua prática,
Santos (2008).

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Sendo assim, é nesta realidade que se encontram as mulheres de hoje,


seja ela uma “dona de casa”, ou uma profissional atuante no mercado de
trabalho. Acredita-se que as mulheres que compõem a população de
Alagoinhas BA que frequentam o referido espaço de sexualidade humana,
compactuam com esta realidade da área, econômica, política e social, estando
engajadas em práticas consideradas dos tempos atuais como o uso de internet,
por exemplo, facilitando a comunicação e o conhecimento.
Indaga-me sobre o campo sexual. Houve avanço como nas demais
áreas? As mulheres tem liberdade para expressar e exercer sua sexualidade?
Estão preparadas para vivenciá-la de forma plena e prazerosa? Elas discutem
o assunto? Em que ambiente é discutido?
É a partir deste contexto que este trabalho será desenvolvido tendo
como problemática central: As práticas educativas voltadas para a educação
sexual de mulheres contribuem para o processo de empoderamento e
emancipação feminina?
Como objetivos temos:

 Analisar se a prática educativa, voltada para a educação sexual, pode


contribuir para o processo de empoderamento e de emancipação
feminina;

 Compreender o conhecimento que as mulheres têm sobre sexualidade e


como foi adquirido,

 Conhecer de que forma essas mulheres vivenciam sua sexualidade com


liberdade de expressão e escolha, e como se relacionam com a busca
do prazer.

O interesse pelos estudos na área de sexualidades surgiu ainda


enquanto acadêmica de enfermagem, onde se adquiriu os primeiros
conhecimentos em educação sexual em projeto de pesquisa; mais tarde como
enfermeira do Programa Saúde da Família e como Orientadora Sexual
atendendo em consultório.
As distorções e dificuldades sentidas ao tratar assuntos pertinentes à
área sexual podem estar ligados à enorme carga afetiva que a sexualidade tem

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para as pessoas, à falta de conhecimentos, ou até mesmo as atitudes


negativas que acompanham tradicionalmente o tema.
Percebe-se que muitas mulheres educadas em um ambiente de
repressão no que diz respeito às manifestações sexuais, preferem não tocar no
assunto. Isto concretiza-se a partir das relações estabelecidas em nosso meio,
consequência de uma cultura burguesa, capitalista e patriarcal que apesar dos
avanços do tempo e da tecnologia, continuam fortemente sendo reproduzidas,
além de demonstrar as relações de poder.
Acredita-se que este trabalho será de muita importância para
profissionais de diversas áreas, pois irá contribuir na aquisição de novos
conhecimentos na área da educação sexual feminina. Somar-se ao
conhecimento produzido no que se refere ao empoderamento feminino e abrirá
espaços para novos trabalhos na temática. Contribuirá principalmente para as
mulheres que estarão adquirindo conhecimento e fazendo durante as oficinas
uma reflexão crítica sobre educação sexual, abrindo espaço para discutir sobre
a sexualidade feminina, melhorando sua auto-estima como mulher e sua
vivência sexual com seu companheiro/a, concretizando a educação sexual
como uma etapa importante para o empoderamento da mulher.
Para tanto, estaremos utilizando a pesquisa-ação do tipo participativa
que em uma perspectiva crítica, favorece a autonomia dos educandos e pode
servir de base para um processo de autoformação de diferentes categorias
profissionais, inclusive da área de saúde. THIOLLENT (2006)

Desenvolvimento
As práticas educativas são momentos de aprendizagens que
reproduzem ou descontroem estereótipos de gênero. Nessa perspectiva toda
educação deve ter como objetivo a formação do indivíduo, necessitando ser
conscientizadora e libertadora, geradora de equilíbrio pessoal e propiciadora do
real desenvolvimento em todas as suas potencialidades. A educação sexual
passa a se constituir um elemento significativo de mudança e progresso; uma
tentativa de por ao alcance das pessoas condições para que possam usufruir e
conviver com a própria sexualidade e com a de seus semelhantes, numa forma
consciente, moderada e respeitosa. Carvalho e Gastaldo (2008) em estudos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

buscando destacar a categoria de Promoção da Saúde, preconizam a


utilização da noção de empoderamento produzindo sujeitos reflexivos,
autônomos e socialmente solidários, buscando inserir novas práticas de
educação em saúde.
Na visão de Fucs (1993, p.200)
“a educação sexual poderia ser definida como a parte da educação
geral que transmite os conhecimentos e as mensagens necessárias
para que o indivíduo possa adquirir atitudes, expressar seus
sentimentos e firmar os valores que o permitem aceitar e vivenciar a
sexualidade própria e dos outros, num contexto livre e responsável.
E se transmite conhecimentos e se passa mensagens não apenas
com informações mas também e principalmente com exemplos e
atitudes adequadas no dia-a-dia, mesmo porque educar é formar e
não apenas informar, muito embora informar corretamente, ao lado
de um posicionamento adequado e de atitudes equilibradas, seja
indispensável a uma formação sadia”.

Pensando assim, uma mulher que tenha consciência de tais questões e


consiga transpor para o dia-a-dia no convívio pessoal, atitudes reflexivas,
maduras, conscientes, livre de julgamentos, mitos e tabus, trará para si e para
os outros maior afetividade, equilíbrio, responsabilidade, coerência entre o que
se pensa e o que se faz a respeito de si e dos/as outros/as.
Jesus, (1998, p.48) relata que, “cada vez mais se aceita a ideia de que
a sexualidade humana tem muito a ver com as possibilidades de felicidade
pessoal e social, constituindo-se num elemento chave para a saúde e para a
qualidade de vida”.
Para Ribeiro (1990, p.37) “informar também é importante, corrigir as
informações distorcidas é essencial, porém, nunca como um fim em si mesmo".
Assim, se situarmos as questões sexuais dentro de um quadro sócio-
econômico e cultural que implica em relações de poder, sem estimularmos a
equidade entre as pessoas, homens e mulheres; a emancipação da mulher e,
principalmente, sem possibilitarmos a livre manifestação de diferentes pontos
de vista na questão de valores, não estaremos de forma alguma fazendo
educação sexual.
A promoção em saúde é uma área que ganhou muito destaque nos
últimos anos com a ênfase da atuação da saúde na atenção primária. Como
prática da atenção primária encontra-se como carro chefe, a educação em
saúde.

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O trabalho se desenvolverá através da pesquisa-ação por ser


concebida e realizada em estreita associação com uma ação no qual o
pesquisador e os participantes representativos da situação estarão envolvidos
de modo cooperativo e participativo, o que certamente recai em uma
abordagem qualitativa. Para tal, se utilizará como sujeito e cenário
respectivamente, mulheres do Município de Alagoinhas-BA que frequentam o
consultório de enfermagem em sexualidade humana e aceitarem participar do
estudo. De acordo com Thiollent (2006), a pesquisa-ação participativa deve ser
considerada um campo da tecnologia educacional. A pesquisa-ação como
método tem sido aplicada à educação, especialmente, na educação de jovens
e adultos. Com a pesquisa-ação estaremos firmando o compromisso social e
ideológico entre os quais se destaca o compromisso do tipo “reformador” e
“participativo”. Pretendendo-se aumentar assim os conhecimentos do
pesquisador e o nível de consciência do grupo considerado. Para Thiollent
(2006) “Muitos partidários restringem a concepção e o uso da pesquisa-ação a
uma orientação de ação emancipatória e a grupos sociais que pertencem às
classes populares ou dominantes. Nesse caso, a pesquisa-ação é vista como
forma de engajamento sócio-político a serviço da causa das classes
populares”.
A pesquisa se desenvolverá em duas etapas assim denominadas:
- Trabalho de Campo (fase exploratória, de pesquisa e de ação).
Realização de grupos operativos de “oficinas de educação sexual” tendo como
atores mulheres do município de Alagoinhas que frequentam o consultório de
sexualidade humana e aceitarem participar. As oficinas devem ocorrer de
forma contínua e sistematizada, oportunizando a observação participante e
aplicação de questionários/entrevistas semiestruturadas com perguntas abertas
que serão aplicadas nos momentos: Inicial, para identificação dos atores
envolvidos, identificar o nível sócio cultural e econômico, conhecer o nível de
interesse dos mesmos e o nível de consciência sobre o assunto. Intermediário,
possibilitando examinar, discutir e tomar decisões acerca do processo de
investigação. Conclusivo, permitindo realizar uma avaliação e conclusão do
processo de investigação.

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- Sistematização dos resultados e discussão (fase de avaliação). Esta


etapa visa sistematizar as informações e publicizar os resultados da pesquisa
para possibilitar uma reflexão do trabalho desenvolvido no grupo de mulheres
e, ainda, um retorno imediato junto às mulheres participantes das oficinas de
educação sexual. O projeto tem como objetivo principal analisar se a prática
educativa, voltada para a educação sexual, pode contribuir para o processo de
empoderamento e de emancipação feminina; compreender o conhecimento
que as mulheres têm sobre sexualidade e como foi adquirido; e conhecer de
que forma essas mulheres vivenciam sua sexualidade com liberdade de
expressão e escolha, e como se relacionam com a busca do prazer.

Considerações
Espera-se com este trabalho, Que os grupos possam se tornar lugar de
reflexão sobre a sexualidade feminina na contemporaneidade, fazendo com
que as mulheres possam enxergar suas subjetividades, potencializando-as.
Reconhecer a importância da prática educativa para o conhecimento sobre
sexualidade humana. Reconhecer que o conhecimento sobre sexualidade
humana leva ao empoderamento e emancipação feminina através da
transformação.
A constituição prevê igualdade entre homens e mulheres em direitos e
obrigações. De nada adiantará a modernidade dos tempos, das tecnologias, da
liberdade de expressão se o passado de subordinação da mulher ao homem
prevalecer sobre a evolução e o progresso. O processo democrático passa
primordialmente pelas relações familiares, pelas relações de gênero. Vimos
que a mulher chegou às camadas sociais, econômica e política, mas com todos
estes fatores a mulher ainda não atingiu sua emancipação no campo da
sexualidade. Para Michel (1996, p.132) “a mulher de hoje, mesmo vivendo uma
geração de grande emancipação, ainda não consegue resolver essas questões
de bloqueios sexuais”. Assim, para que a mulher viva bem, de modo autêntico,
precisa integrar sua vida afetiva, sexual e profissional.
Frente a esses elementos de análise, pressupomos que é
imprescindível procurarmos desconstruir essa realidade; ver a educação sexual
como um processo integrado a socialização onde a cultura sexual é transmitida

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com o objetivo de integrá-las no contexto cultural de seu grupo de forma


natural, instrumentalizando-as para as mudanças segundo seus próprios
modos de pensar, sentir e agir (Cavalcanti, 1993). Para que, a partir daí, se
construa uma relação onde haja igualdade e, de fato, homens e mulheres
exerçam verdadeiramente uma vida saudável, vivenciando sua sexualidade de
modo natural e sem preconceito contribuindo para uma nova cultura, cultura
essa onde mulheres e homens se respeitam como seres humanos, de direitos,
tendo o diálogo e a problematização como estratégia.

REFERÊNCIAS

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O ATO DE ESCREVER E DE SE REESCREVER: EM FOCO RAQUEL DE


QUEIROZ E CONCEIÇÃO EVARISTO

LUANE TAMIRES DOS SANTOS MARTINS (UNEB) 253

Introdução

O presente trabalho visa apresentar um recorte do projeto de pesquisa


para o Mestrado em Crítica Cultural, situado na UNEB- Campus II, cujo tema é
a escrita feminina, e que encontra-se em fase de discussão, desconstrução e
construção.
Para começar esta apresentação, faz-se necessário discorrer um pouco
sobre o que me levou a pesquisar literatura de autoria feminina. Nesta
perspectiva, ao cursar Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e
Literaturas na Universidade do Estado da Bahia (UNEB-CAMPUS
II/Alagoinhas), deparei-me com os estudos sobre gênero e comecei a refletir
sobre o fato de que a maioria dos livros que li eram escritos por homens.
Sendo por dois anos consecutivos (2010-2011) bolsista de Iniciação
Científica, pesquisei primeiramente sobre o lugar da literatura nas pesquisas de
gênero dentro da áreas de Letras no Campus II e, em seguida, busquei
averiguar quais bibliotecas escolares do município possuíam em seus arquivos
livros de autoria feminina e quais políticas publicas para a disseminação
desses livros. Esta ultima pesquisa foi ampliada no projeto de TCC que
recebeu o título de “Literatura De Autoria Feminina Em Bibliotecas/Salas De
Leituras Escolares De Alagoinhas.”
Em meio a tais pesquisas, percebi que no meu repertorio pessoal de
leitura havia poucas autoras e fui em busca de leituras de autoria feminina.
Diante de alguns livros escritos por mulheres que tive a oportunidade de ler,
deparei-me com obras de Raquel de Queiroz e Conceição Evaristo. Ao ler o
livro “Insubmissas Lágrimas de Mulher”,uma coletânea de contos da autora
Conceição Evaristo, pude observar uma linguagem objetiva e cativante que
trazia como protagonistas dos contos mulheres que passam por diversas

253
Mestranda no programa de Pós- Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia, UNEB,
Campus II – Alagoinhas/Ba.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

situações conflituosas em suas vidas. Nessa mesma perspectiva, o livro


“Memorial de Maria Moura”, de Raquel de Queiroz, também apresentava como
protagonista uma mulher, Maria Moura.
Essas duas narrativas citadas acima, chamaram-me a atenção uma vez
que, fora do que habitualmente estava acostumada a ler, estava diante de
escritoras que tratavam em seus escritos sobre a mulher. Não era mais uma
visão de um autor, estava diante de mim a oportunidade de ler como uma
mulher retrata a si mesma ou a outras.
Apesar de a escrita feminina ter sido invisibilizada e silenciada desde os
séculos passados, isso não quer dizer que as mulheres não tenham escrito
literatura ou que não escreveram. E, principalmente, as escritoras negras,
como é o caso de Conceição Evaristo.
Desta maneira, a problemática da pesquisa em questão nos faz
questionar: como se configura o perfil das escritoras literárias Raquel de
Queiroz e Conceição Evaristo, considerando suas trajetórias literárias e de
vida? Como objetivos gerais e específicos, pretende-se investigar e refletir
sobre a escrita feminina e a própria construção do “ser escritora” nas obras das
autoras em questão, considerando suas trajetórias literárias e de vida;
averiguar o percurso das escritoras no que concerne a historiografia literária;
pesquisar e analisar a bibliografia e biografia das autoras; investigar e refletir
sobre a presença de temas relacionados ao ato de escrever, à mulher escritora
e escrita feminina, e, ainda, averiguar e discutir sobre as possíveis violências
(simbólicas ou não) que as autoras sofreram na construção do “ser escritora.”
Entretanto, para este artigo nos deteremos em apresentar uma breve
análise da periodização literária nos detendo na escritora Rachel de Queiroz e
sua trajetória, bem como, pretendemos refletir sobre a escrita de autoria
feminina e seu caráter resiliente.

Primeiros Passos: Raquel de Queiroz e a literatura modernista

Já nos é sabido que as autoras em questão fazem parte de períodos


históricos diferentes e, considerando a periodização literária, escolas literárias
diferentes. Enquanto Raquel de Queiroz é comumente enquadrada no período

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da historiografia literária denominado Modernismo, Conceição Evaristo faz


parte do que a crítica atual costuma chamar de “contemporâneo.”
A principio, nos deteremos a refletir um pouco sobre esse período
denominado de Modernismo, no que diz respeito ao que alguns críticos
literários abordaram a respeito de Raquel de Queiroz. O período Modernista,
resumidamente, é caracterizado pela ruptura com os modelos parnasianos e o
seu estopim é relacionado à Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro
de 1922.
Os críticos literários Antônio Candido e José Aderaldo Castello (1975),
no terceiro volume do livro Presença da Literatura Brasileira, abordam sobre os
fundamentos do Modernismo brasileiro e doravante apresentam uma breve
biografia sobre autores modernistas e fragmentos que exemplificam suas
obras. Neste volume, encontramos destacados vinte e dois autores, como por
exemplo, Jorge Amado, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade; e duas
autoras, Cecília Meireles e Raquel de Queiroz. Sobre esta ultima, nos
deteremos em descrever a crítica dos autores.
Cândido e Castello (1975) dissertam de uma forma breve sobre a
biografia e a bibliografia da autora em questão, afirmando que, no tocante a
prosa, uma das correntes mais importantes foi a regionalista, corrente que tem
como representante Raquel de Queiroz. Segundo os mesmos, a escritora
nasceu em Fortaleza (1910), diplomou-se em 1925 e ingressou no jornalismo,
lançando seu livro de estreia, O Quinze, em 1930. Os autores ressaltam que
nos romances O Quinze e João Miguel, a autora se apoia na análise
psicológica dos personagens, especialmente no tocante ao homem nordestino,
ainda afirmam que tanto nestes, quanto nas suas demais obras regionalistas, a
autora vale-se de uma linguagem enriquecida pela escolha acertada do
vocabulário e pela técnica do diálogo.
Referente à bibliografia da escritora, os autores destacam os seguintes
textos, por ordem cronológica de lançamento, indicando entre parênteses as
crônicas e os textos teatrais: O Quinze (1930), João Miguel (1932), Caminhos
de Pedra (1937), As Três Marias (1939), A Donzela e a Moura Torta ( Crônicas,
1948), Lampião ( Teatro, 1953), 100 crônicas escolhidas (1958), A Beata Maria

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do Egito ( Teatro, 1958), O Brasileiro perplexo: histórias e crônicas (1963) e o


Caçador de tatu ( Crônicas, 1967).
Alfredo Bosi (1994), por sua vez, em História Concisa da Literatura
Brasileira, dedica dois capítulos sobre a escola literária modernista e neles
apresenta uma breve nota biográfica sobre os autores e tece alguns
comentários sobre as obras dos mesmos e o estilo que os caracteriza. No
primeiro, ele descreve os adventos do Pré-modernismo e do Modernismo até a
década de 30. No outro capítulo, intitulado Tendências contemporâneas, o
autor disserta sobre os autores que se destacaram no Brasil após a década de
30, período considerado pelo mesmo como “contemporâneo” ponderando até
os dias atuais. É neste período que, para o autor, Raquel de Queiroz estaria
enquadrada no que se refere à periodização literária. Sobre o motivo de usar o
termo “contemporâneo”, o autor justifica-se dizendo:

[...] 1922, por exemplo, presta-se muito bem à periodização literária: o


ano de 1930 evoca menos significados literários prementes por causa
do relevo social assumido pela Revolução de Outubro. Mas, tendo
esse movimento nascido das contradições da República Velha que
ele pretendia superar, e , em parte, superou; e tendo suscitado em
todo o Brasil uma corrente de esperanças, oposições, programas e
desenganos, vincou fundo a nossa literatura, lançando-a um estatuto
adulto e moderno perto do qual as palavras de ordem de 22 parecem
fogachos de adolescentes.
Somos hoje contemporâneos de uma realidade econômica, social,
política, e cultural que se estruturou depois de 30. [ BOSI, 1994, p.
383, grifo do autor]

Sendo assim, em relação ao primeiro capítulo o autor destaca quatro


autores pré- modernistas, e onze autores modernistas. Destes, não há
representantes femininas. No segundo capítulo, Bosi destaca dezoito autores e
três autoras: Cecília Meireles, Clarice Lispector e Raquel de Queiroz.
Sobre Raquel de Queiroz, Alfredo Bosi tece alguns comentários a
respeito de quatro romances da escritora, ressaltando que O Quinze e João
Miguel estão inseridos na ficção regionalista, enquanto, Caminho de Pedras
seria um romance de cunho conscientemente político, mas também populista
por situar as “personagens pobres ‘de fora’, como quem observa um
espetáculo curioso, que eventualmente, pode comover.” (BOSI, 1994, p.396).
Já o romance As Três Marias, seria de cunho psicológico.
Sobre o caráter ideológico da autora em questão, Alfredo Bosi ressalta
que a mesma é um tanto paradoxal, mas que tal paradoxo pode ser facilmente
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compreendido considerando a influencia do momento tenentista nacional que a


teria condicionado. Desta forma, a mesma apresenta-se revolucionária, em
1930; sentimentalmente liberal e esquerdizante, no período da ditadura; e por
fim, defensora das raízes do status quo.
Em relação à bibliografia de Raquel de Queiroz, o crítico literário referido
acima, destaca, cronologicamente, no gênero ficção: O Quinze (1930), João
Miguel (1932), Caminho de Pedras (1937), As Três Marias (1939), O Galo de
Ouro ( 1950), Dora Doralina ( 1975) e Memorial de Maria Moura (1992); no
teatro: Lampião (1953) e A Beata Maria do Egito ( 1958); e na crônica: A
Donzela e a Moura Torta (1948), 100 Crônicas Escolhidas (1958), O Brasileiro
Perplexo (1963) e o Caçador de Tatu (1967).
Desta maneira, com base em tais constatações, podemos começar a
refletir sobre desproporcionalidade entre o número de escritores mencionados,
resenhados e caracterizados pelos críticos aqui mencionados, em contraste
com o número de escritoras. Além disso, vale-nos questionar também se como
representantes femininas da escrita literária modernista, teríamos tão somente
Cecília Meireles, Clarice Lispector e Raquel de Queiroz, bem como, o que teria
sido considerado nestas escritoras, mais especificamente em Raquel de
Queiroz, que as fizeram ser “contadas” nestas historiografias da Literatura
Brasileira.

Escrita feminina: passos para uma escrita resiliente

Em tempos mais remotos, diríamos que discutir a presença da mulher na


literatura seria, para muitos, algo socialmente descartável, até mesmo devido
ao fato desta discussão partir diretamente de uma mulher. Esta “graça” nos é
permitida atualmente devido ao advento da discussão sobre Gênero na
perspectiva dos Estudos Feministas em correlação com os Estudos Culturais e
a abertura do campo literário para outras discussões que transcendem a obra
literária propriamente dita e o cânone.
Desta forma, os estudos teóricos sobre mulher ascenderam no espaço
acadêmico a partir de 1968, como nos afirma Guacira Lopes Louro (1997). A
mesma autora ressalta que:

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Tornar visível aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das
estudiosas feministas desses primeiros tempos. A segregação social
e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera
como conseqüência a sua ampla invisibilidade como sujeito da
Ciência. (LOURO, 1997, p.17, grifo meu).

Sendo assim, compreende-se que os primeiros estudos de e sobre


mulheres baseavam-se na tentativa de dar visibilidade aquela outrora
subjulgada, oprimida e invisibilizada socialmente. Consideravam-se também as
lutas políticas das feministas pelos direitos antes negados a nós, como o direito
ao voto, por exemplo.
Já sabemos que para mulher não foi “destinado” o espaço literário. A
mulher não era vista como um ser que pensa, capaz de defender seus
objetivos, capaz de fazer Ciência, de ser racional, como nos sugere a autora
Julia Hissa (1999,p.505, grifo meu):

Resignação, obediência e passividade, são qualidades apreendidas


como próprias da natureza da mulher, por força da ideologia, que,
valendo-se desses rótulos, passou a encará-la pelo lado da
insensatez. Confundida com a criança, em razão de uma suposta
fragilidade, a mulher congelou a voz e os sentimentos ao longo
dos anos, atraindo para si o estigma da diferença.
[...]
Pela lógica masculina, a mulher é aprendida como um “ser – a-
menos”, tão próxima que se encontra da irracionalidade e da
infantilidade.

Se a mulher não era vista como sujeito da Ciência, pessoa racional,


consequentemente ela também não poderia ser vista como sujeito leitor, crítico,
reflexivo, ou até mesmo como sujeito capaz de escrever. Nessa perspectiva,
tornava-se invisível também a escrita da mulher. Mas é pertinente destacar que
apesar da escrita feminina ter sido invisibilizada e silenciada desde os séculos
passados, isso não quer dizer que as mulheres não tenham escrito literatura ou
que não escreveram ou escrevem. Para Cristina Ramalho (2011, p. 25)

Obras como de Escritoras brasileiras do século XIX, Tirando do fundo


do baú: antologia de poetas brasileiras do século XIX e desafiando o
cânone (1 e 2), entre outras, ostentam a importância do século XIX
para o reconhecimento da inegável inserção da mulher no âmbito da
historiografia literária brasileira. São tantos os registros de existência
de escritoras e publicações de obras que não há espaço para se
negar a incoerência entre o que se pensava (as mulheres pouco
escreviam e o que escreviam era de pouca importância) e o que, de

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fato, se encontrou, depois de incansáveis e exaustivas pesquisas e


buscas por publicações.

Hoje, obras de escritoras como Rachel de Queiroz e Clarice Lispector,


por exemplo, estão sendo sugeridas até em alguns vestibulares de
universidades do Estado brasileiro e vale ressaltar que nos acervos em que
pesquisamos, encontramos algumas obras destas e de outras autoras mais
“conhecidas” socialmente. Todavia, não podemos nos esquecer que ações
específicas sobre determinadas escritoras não podem nos impedir de
questionarmos o porquê de muitas vezes, nas aulas de literatura, ouvirmos
mais os nomes dos autores que das autoras, principalmente quando se trata
dos considerados canônicos. Pois como afirma Catiz-Montoro (1999) temos
que tomar cuidado com o uso de exemplos isolados para provar que todas as
mulheres (neste caso, todas as escritoras) possuem oportunidades iguais em
nossos sistemas social e econômico atuais.
Destarte, vale frisar e advertir que não são todas as escritoras que são
“conhecidas”, e ao nos depararmos com esse lugar da literatura feminina, da
obra literária em si, é pertinente discutirmos, contudo, sobre a construção do
cânone literário. O autor Roberto Reis, no texto Cânon (1992), nos oferece um
aprofundamento consistente em torno do que venha a ser um cânone literário.
O autor atrela a construção da ideia de cânone literário às questões culturais e,
consequentemente, às relações políticas, ou seja, de poder, subjacentes a tais
questões. Segundo Roberto Reis (1992, p. 72):

Historicamente, a literatura (...) tem sido um eficaz veículo de


transmissão de cultura. A literatura tem sido uma das grandes
instituições de reforço de fronteiras culturais e barreiras sociais,
estabelecendo privilégios e recalques no interior da sociedade. Ao
olharmos para as obras canônicas da literatura ocidental
perceberemos de imediato a exclusão de diversos grupos sociais,
étnicos e sexuais do cânon literário.

Assim, não precisamos fazer muitos esforços para perceber a exclusão


concernente à produção literária feminina, basta, reflexivamente, nos
perguntarmos quantas autoras consideradas canônicas e quantos autores
estudamos durante o nosso Ensino Médio. E se nos aprofundarmos ainda mais

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nessa reflexão e nos perguntarmos sobre as escritoras negras, provavelmente,


não nos lembraremos de muitas, isto se conseguirmos nos lembrar de alguma.
Por conseguinte, Reis (1992) ainda nos alerta que ao lermos e
questionarmos um texto literário considerado canônico não se pode deixar de
refletir sobre as circunstâncias históricas em que o mesmo foi criado e que,
provavelmente frente a essas circunstâncias, indivíduos dotados de poder
atribuíram ao tal texto o valor de “literário” em relação a outros, tornando-o um
cânone. Até por que:

O que é belo, é belo pra quem? O que é artístico, é artístico para


quem? O que é poético, ou literário, é assim para quem? E quando?
E onde? E com que bases ou princípios? A quem interessa que assim
sejam aceitos (ou rejeitados)? Em que contexto? (WANDERLEY,
1999, p.261)

Segundo o autor supracitado a canonização literária é dotada de


interesses ideológicos de dominação, poder e exclusão. Sendo assim,
adentrar o espaço do cânone tem sido luta constante de nossas escritoras,
principalmente as escritoras negras.
No tocante a isto, conforme Maria Inês de Moraes Marreco (2010) a
década de 1850 é considerada como marco oficial da maturidade literária no
que cerne as produções masculinas, abrindo espaço, porém, para algumas
produções de autoras. Entretanto, “como as publicações estavam sob o
controle de editores homens, as mulheres tinham que batalhar para serem
aceitas enquanto escritoras, e também acatar os padrões estéticos
estabelecidos.” ( MARRECO, 2010, p. 236). Em consonância com esta
afirmação, Maris Stelamaris Coser (2007, p.257) diz que “o corpo muitas vezes
se cala, em geral submisso ao desejo masculino, e a narrativa silencia a
respeito do desejo e prazer da mulher.”
Foi esse “calar” que as mulheres do século XIX se submeteram. Por
conseguinte, para Ramalho (2011) a escritora feminina somente assume uma
consciência de sua condição de mulher diante de uma sociedade patriarcal a
partir do século XX e isto vai refletir nos seus textos. Para a autora, diversas
escritoras do século XIX acabaram reproduzindo muitos dos valores patriarcais
em suas obras. Desta maneira:

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No século XX, essa consciência é mais palpável, pois o próprio


mundo, a própria sociedade começa a discutir a condição da mulher
em várias esferas, como a política (com a luta pelo direito ao voto), a
trabalhista ( com o ingresso maciço das mulheres no mercado de
trabalho), (...), entre outras. A mulher ( ou, mais tarde, as mulheres)
passa a ser foco temático e isso facilita sua ação no campo das artes
e da literatura. ( RAMALHO, 2011, p.26)

Mas o que levaria essas escritoras do século XIX a “reproduzir” o


sistema patriarcal da época? Considerando as proposições de Maria Inês
Marreco (2010) e Freitas (2002), entre outras autoras, a escrita feminina era
inferiorizada pelo sistema patriarcal uma vez que somente ao homem foi dado
o direito da criação, para mulher destinou-se a reprodução. Assumir os
“moldes” patriarcais naquele período pode ser revisto, entretanto, como a única
oportunidade que as escritoras da época encontraram para inserir-se no
universo Literário, destinado apenas aos homens, uma vez que qualquer forma
de expressão artística feminina, principalmente no que cerne a escrita, era
duramente reprimida, pois, não nos esqueçamos, escrever está diretamente
ligado as questões de poder.
Entretanto, alguns autores contemporâneos que discutem questões
relacionadas aos estudos literários e feministas, afirmam que a escrita feminina
tem assumido outro caráter, uma nova roupagem, o que põe ainda mais em
choque o cânone literário construído nos moldes patriarcalistas. Para Santiago
(2004, p. 33-34):

Passa-se a exigir que a produção lingüística nobre dê conta, sem pré-


conceitos, de um diferendo, que está sendo elaborado às escâncaras
e às escondidas pelas mulheres emancipadas no mundo
contemporâneo. Passa-se a exigir que a mulher que escreve seja
admitida enquanto tal no espaço da Literatura.

[...]

O que a escrita da mulher coloca contra a parede? A liberdade


retórica sem gênero – sem preferência sexual, falocêntrica, sem cor,
sem etnia, etnocêntrica, etc. Por seu turno, a liberdade retórica com
gênero favorece a sensibilidade e a espontaneidade literárias, que,
por se relacionarem de modo confessional e lírico com a linguagem,
retiram sua força artística não das firulas do cânone, mas da
experiência libertária de corpos multicoloridos, sexuados e sofridos na
pele, que vivem e sobrevivem
em diferença.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Sendo assim, nos é lícito afirmar que existe uma busca por uma
identidade de gênero, uma marca que sinalize o texto literário. Nessa
perspectiva, ao discutir sobre a “A escrita feminina”, Freitas (2002) ressalta, por
sua vez, que os primeiros traços da libertação feminina na escrita deu-se
apenas no começo do século XX, com uma escrita pautada na fantasia
insubmissa, procurando a descrição precisa do seu papel no mundo e sua
reinvenção. Segundo a autora:

A literatura não é para as mulheres uma simples transgressão das


leis que lhes proibiam o acesso à criação artística. Foi, muito mais do
que isso, um território liberado, clandestino. Saída secreta da
clausura da linguagem e de uma pensamento masculino que as
pensava e descrevia (...). Apenas desabafo? Não,a literatura feminina
é mais um registro de inconformismo da mulher àquelas leis.
(FREITAS, 2002, p. 119)

Desta forma, a mulher passa a buscar a diferença como identidade, a


desconstrução do supracitado modelo masculino na prática de sua escrita,
assume de fato a sua “inexperiência” e “imperfeição”, encontrando
conseqüentemente o seu jeito singular de escrever. Ainda consoante a autora
referida, pode-se afirmar que durante séculos a mulher é desconhecida para si
e uma estrangeira na sociedade de valores masculinos. Freitas ressalta que a
escrita feminina é justamente este livre expressar-se do universo feminino, lado
a lado com o masculino, sem imitá-lo, mas também sem desconhecê-lo.
Entretanto, mesmo com tantos avanços, ainda é preciso lutar e
questionar a ausência da mulher na literatura. Existem discursos
contemporâneos que invalidam a potencialidade da escrita de autoria feminina,
pois, conforme Coser (2005):

[...] as verdades parciais e encobertas, meio-ditas, associadas a


subterfúgios típicos ‘de mulher’ e opostas ao raciocínio lógico,
caracterizam teorias contemporâneas voltadas para a multiplicidade,
o impuro e ambíguo. A opressão e o preconceito, por outro lado, o
ocorrem em níveis diversos e impedem a sacralização e a idealização
de qualquer condição de alteridade.

Um fator que pode exemplificar e consolidar a afirmação acima, tomando


em linhas gerais, é a notória desproporcionalidade das escritoras na
historiografia literária brasileira. Além disso, vale-nos pensar também por qual

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razão, na Academia Brasileira de Letras tem tão poucas representantes


femininas, e indo mais além, representantes negras.
Porém, não podemos deixar de ressaltar que através dos diversos
movimentos sociais feministas, das discussões sobre Gênero, de uma crítica
literária feminista e da própria discussão dos Estudos Culturais, a literatura
feminina tem surgido, aos poucos, nos espaços que anteriormente haviam sido
negados às mulheres. Um exemplo disso é a presença de autoras, como
Raquel de Queiroz, na Academia Brasileira de Letras e, ainda que de forma
parcial, em historiografias literárias.

Considerações em andamento

Com base no exposto, considerando a produção literária de Raquel de


Queiroz e Conceição Evaristo, que, por enquanto, não tratamos aqui, torna-se
relevante indagar como estas autoras literárias se constituíram enquanto
escritoras de literatura. Alem disso, nos inquieta pensar também se e como tais
autoras representam em suas obras o que compreendem ser a escrita
feminina, ou, como as mesmas representam a escritora, ou a si mesmas
enquanto escritoras literárias. É importante também refletirmos sobre quais os
impasses, as violências simbólicas (ou não) que estas autoras sofreram ao
longo de suas trajetórias literárias. E que escrita é essa? Existem marcas que
possamos identificar essa tal “literatura feminina”?
Desta forma, vale ressaltar que através dos diversos movimentos sociais
feministas, das discussões sobre Gênero, de uma crítica literária feminista e da
própria discussão dos Estudos Culturais, a literatura feminina tem surgido aos
poucos nos espaços que anteriormente haviam sido negados às mulheres. Um
exemplo disso é a presença de autoras, como Raquel de Queiroz, na
Academia Brasileira de Letras e, ainda que de forma parcial, em historiografias
literárias. Destarte, o presente projeto torna-se pertinente, uma vez que, busca
estudar a construção do próprio “ser escritora”, considerando também os
desafios que, provavelmente, existiram para estas escritoras e ainda existem

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para as mulheres romperem com as barreiras do cânone literário. E desta


maneira, esperamos contribuir, através do viés da Crítica Cultural, com os
estudos de autoria feminina no Brasil.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: DIREITO, LITERATURA E RELAÇÕES RACIAIS

PROPOSITORES: IVANA SILVA FREITAS (IFBA/UFBA), SAMUEL SANTANA


VIDA (UFBA)

Ementa:

Tendo em vista os desafios para a implementação da Lei 10.639/03 que tornou

obrigatório o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira em

instituições públicas e privadas, este GT tem como objetivo reunir trabalhos e

fomentar a discussão sobre a produção literária negra, bem como o acesso a

ela como exercício de um direito à identidade étnicorracial. Para tanto, torna-se

relevante analisar questões de raça e gênero que promovem ou negam o

exercício deste direito às comunidades negras. Torna-se ainda relevante o

fomento da compreensão do Direito como fenômeno histórico e cultural que

extrapola o aspecto técnico e formal das práticas jurídicas positivistas,

adotadas no campo jurídico, reconhecendo a importância da apropriação do

discurso jurídico como estratégia política de afirmação de subjetividades

diversas e legítimas que interferem ativamente na delimitação dos sentidos

jurídicos, numa perspectiva democratizante e comprometida com a expressão

multicultural que caracteriza a sociedade brasileira e baiana. Para tanto,

cumpre fundamental papel o deslocamento dos estudos sobre Direito,


Literatura e Relações Raciais para perspectivas transdisciplinares de

abordagens e práticas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O SISTEMA JURÍDICO E A NEGAÇÃO DO TERRITÓRIO NEGRO

LAÍS DA SILVA AVELAR (UNB/PDRR)*

A Constituição Federal de 1988, no seu art. 68 do ADCT 254, abre espaço


para o reconhecimento jurídico dos territórios ocupados pelas comunidades
negras. O reconhecimento jurídico destas espacialidades que estão ligadas a
um passado/presente de resistência, formadas por comunidades negras rurais
ligadas por laços de parentesco (consanguíneo ou por afinidade) e que
conformam um uso comum daquelas terras e dos recursos básicos ali
encontrados, é etapa fundamental em direção à mudança do padrão político
nacional de negação do acesso à terra pelas comunidades negras rurais,
sobretudo nos anos seguintes à abolição. Quilombolas e campesinos negros
ressignificam sua base geográfica/física para muito além de uma terra,
chegando ao significante “território”; um território ligado a uma cor, uma
identidade, onde seus costumes e tradições aparecem como marcas para
assim criar aquilo que podemos chamar de território negro, espaço de pretos,
territórios etnicamente concebidos 255. É, entretanto, este significante - território
- negado por um sistema jurídico patrimonialista e por um Direito que,
assentado num "universo branco", ao mesmo tempo que reconhece é
manobrado para impedir a efetivação de direitos instituídos pela luta e
resistência. Coloca-se, aqui, o objetivo de debater a dimensão destes territórios
para estas comunidades negras rurais, sem deixar de sinalizar como o modelo
jurídico posto, ao tentar adaptar pela assimilação, fere a diferença e funciona
como entrave nessa questão do reconhecimento e da garantia territorial em
relação a estas comunidades.

*Mestranda do Programa de Direitos Humanos e Cidadania da Universidade de Brasília (UnB) e


graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
254
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (ADCT -
Constituição Federal de 1988).
255
Falando sobre territórios negros recomendamos a leitura do livro de Maria de Lourdes Bandeira
“Território negro em espaço branco” e do livro “Terras e territórios de negros no Brasil” que reúne
textos e debates do Núcleo de Estudos sobre a Identidade e Relações Interétnicas da Universidade
Federal de Santa Catarina, com textos assinados por Ilka Boaventura Leite, Maria de Lourdes Bandeira,
Neusa Maria Mendes de Gusmão e Cleonice Pitangui Mendonça.

1101
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Direito como linguagem do poder: a supremacia da propriedade

Inicialmente é preciso registrar que, apesar do avanço constitucional, a


ausência de implementação de políticas públicas sistemáticas em relação à
questão racial explica a falta de efetivação desse reconhecimento que ainda se
restringe a uma garantia de papel, uma garantia que encontra muitos entraves
para se transplantar para o plano da ação, da prática. Discorrendo sobre essa
tíbia mobilização estatal e sobre as distorções ocorridas quando há alguma
ação do Estado, o antropólogo Alfredo Wagner esclarece:

Estes processos de rupturas e de conquistas, que levaram alguns


juristas a falar em um “Estado pluriétnico” ou que confere proteção a
diferentes expressões étnicas, não resultaram, entretanto, na adoção
pelo Estado de uma política étnica e nem tampouco em ações
governamentais sistemáticas capazes de reconhecer prontamente os
fatores situacionais que influenciam uma consciência étnica. Mesmo
levando em conta que o poder é efetivamente expresso sob uma
forma jurídica ou que a linguagem do poder é o direito, há enormes
dificuldades de implementação de disposições legais desta ordem,
especialmente em sociedades autoritárias e de fundamentos coloniais
e escravistas, como no caso brasileiro. Nestes três lustros que nos
separam da promulgação da última Constituição Federal tem
prevalecido ações pontuais e relativamente dispersas (...). (ALMEIDA,
2004, p.11)

A fala de Alfredo Wagner nos explicita como a pouca implementação


daquilo que está assegurado no papel tem a ver com obstáculos ainda
existentes 256. E se, como ressaltado pelo próprio Almeida, o direito é a
linguagem do poder, a linguagem de um Estado e sua sociedade – sociedade

256
No texto “Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais”
Alfredo Wagner, examinando a falta de política pública na questão do reconhecimento dessas
comunidades diferenciadas e de seus espaços, traz os números inexpressivos conseguidos nos 15 anos
após a promulgação da Constituição no que se refere às comunidades negras. No caso das comunidades
remanescentes de quilombos, em 15 anos de aplicação do Art.68, os resultados são da mesma ordem,
igualmente inexpressivos, a saber: oficialmente, o Brasil tem mapeadas 743 comunidades
remanescentes de quilombos. Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com uma
população estimada em 2 milhões de pessoas. Em 15 anos, apenas 71 áreas foram tituladas.” Vale
ressaltar que esses dados são de 2003 mas que ainda assim devem ser considerados por nós já que
estamos falando de uma década e meia de existência da CF/88.

1102
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

que, no caso do Brasil, traz o ranço da hierarquização escravista continuando a


ser, nos dias de hoje, uma sociedade onde o poder é branco – é evidente
que,esse mesmo Direito que reconhece vai, também, ser obstáculo, entrave.

A inserção de dispositivos como o art. 68 do ADCT, que traz uma


demanda por reconhecimento e demarca a garantia do território como um
elemento chave para isso, escancara para o Direito e seus profissionais uma
realidade bem distinta daquelas dos Códigos e manuais que dominaram o
aprender dos juristas com uma lógica proprietária marcadamente civilista e
positivista. Além de escancarar, podemos dizer que os avanços jurídico-sociais
feitos pela Constituição de 1988, sobretudo, quanto às comunidades negras
rurais, vão colocar em questão um modelo jurídico que ainda é aliado a uma
visão hegemônica de propriedade individualista (SANTANA, 2008, p.56).

Contudo, para questionarmos o Direito, como destacado no título deste


texto, precisamos, antes, entender a realidade na qual se insere essas
comunidades negras rurais, para daí vermos como o seu modo de “viver” e
“ser” ditam e gritam para a ciência jurídica uma necessidade de
ressignificações, de readaptações.

Tratando sobre o tema das comunidades negras e adotando a


terminologia "comunidades campesinas negras", Neusa Maria Mendes de
Gusmão faz um estudo e demonstra como elas se sustentam numa lógica de
vida coletivizada, onde a terra é elemento de uso comum, conforme assinalado
anteriormente. Como se vê:

As muitas histórias de grupos negros, de norte a sul do país, têm


revelado a existência de formas de uso comum dos bens básicos à
vida, principalmente a terra. Central na organização de tais grupos, a
terra e o acesso a ela representam a inversão da lógica da
escravidão, que colocava o negro fora da terra. A particularidade
deste fato informa a dimensão da vida coletiva, da vida em grupo.
Representa a origem de um enraizamento ao lugar e ao grupo de que
se faz parte e no interior do qual se constrói uma memória e tradição,
que se comunicam e comunicam aos indivíduos de cada geração a
própria história. (GUSMÃO, 1995, p.118).

1103
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

E a autora continua:

Através desse processo, a terra comum, em que vive o negro


camponês, encontra-se referida ao indivíduo e aos que com ele
formam e definem a localidade. É assim, um espaço-lugar onde vive
e se comunica com seus antepassados, postulando aí o futuro de
seus descendentes e de seus iguais. (grifos nossos) (GUSMÃO,
1995, p.118).

Além do uso comum da terra, é interessante como os diversos


estudos 257 que levantamos de autores como Alfredo Wagner, Gilsely Santana e
Neusa Maria Gusmão, unissonamente, destacam como o espaço físico é
ressignificado por essas comunidades. Parafraseando Gilsely Santana, neste
contexto de comunidades negras rurais, os territórios são espaços que
materializam as tradições, memórias, religiosidade entre outros aspectos que
singularizam e especificam tais comunidades – especificam no sentido de
identificam. Por isso que é muito mais que espaço físico, o território é o lócus
onde as relações são tecidas e, por isso, elemento importante e constitutivo da
identidade étnica, racial (SANTANA, 2008, p.70).

Nesse mesmo sentido, é valiosa a linguagem de Neusa Maria para nos


dimensionar o que dizemos quando dizemos para além da terra, território:

(...) o espaço físico da vivência coletiva não é apenas um pedaço de


terra delimitado, demarcado por esta ou aquela regra, este ou aquele
aspecto de lei. A terra é antes de mais nada, um território e como tal:
‘A terra é um ente vivo que reage ante a conduta dos homens; por
isso, a relação com ela não é puramente mecânica senão que se
estabelece simbolicamente através de inumeráveis ritos e se

257
Estamos nos referindo aos textos de Alfredo Wagner “Terras tradicionalmente ocupadas:
processos de territorialização e movimentos sociais”, de Gilsely Santana “Terras de uso comum
e identidades coletivas: ressignificando o conceito e a função da propriedade” e o de Neusa
Gusmão “Terras de uso comum: oralidade e escrita em confronto”. Ressalte-se que todos
estes textos fazem um estudo sobre as comunidades que se fundam nas terras de uso comum
e, de forma diferente, irão se referir às comunidades negras rurais. O texto de Alfredo Wagner,
por exemplo, irá inserir tais comunidades na linha das chamadas comunidades tradicionais,
usando o termo comunidades quilombolas para se referir às comunidades negras. Bem
semelhante a este antropólogo, Gilsely Santana fará em seu texto um estudo das terras de uso
comum e usará o termo quilombo para se referir às comunidades negras, já a última, Neusa
Gusmão utilizará o termo campesinato negro.

1104
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

expressa em mitos e lendas’.(...)A terra é, assim, um território,


unidade integrada de pessoas, objetos e conhecimentos que se
interrelacionam no interior do espaço particular por meio de
operações algébricas de diferentes tipos, organizando o espaço
comum como universo de ação e interação os mais diversos.
Esta diversidade é, portanto, um espaço de relações que se faz
por um jogo de oposições entre o nós, o meu, o seu, o nosso, e
que supõe mecanismos de identificação individual, familiar e de
grupo. Supõe a historicidade vivida enquanto realidade imediata,
permanentemente incorporada a prática social; supõe também a
tradição e a memória de um passado que, por vezes, é mitificado.
Supõe formas de comunicação verbal e não-verbal: supõe
subjetividades, emoções e sentimentos. Supõe mais que tudo,
que cada atitude, pensamento, seja referido a um espaço comum
258
partilhado .(grifos nossos) (GUSMÃO, 1995, p.121-122).

Assim, conforme as lições dos autores já referidos, esses “territórios


negros” e suas territorialidades, representam o lugar onde a família, os
parentes, os sujeitos irão estabelecer suas regras e práticas referentes ao uso
individual e coletivo daquela terra, organizarão sua vida familiar e a vida social
– que ali se entrelaçam, se confundem –, definirão os direitos de uso dos bens
ali presentes e construirão “uma visão de mundo”(GUSMÃO, 1995, p.123).
Sendo assim, fica simples entender que, além de território ser o significante
mais apropriado para se referir àqueles espaços, estes são peças-chave no
reconhecimento. Em melhores palavras: por todo o significado desse
significante 259, a garantia deste representa a garantia daquelas comunidades.
Assegurar o direito territorial, assegurar aquelas “terras” é permitir a
reprodução física e cultural daquele povo negro, é “permite-lhes não estar
inteiramente subjugados ao ritmo e lógica do sistema”(GUSMÃO, 1995, p.122),
é, assim, reconhecer de fato e de direito o direito à diferença, o direito à
existência da diferença.

258
Para mostrar como o espaço físico conta a própria história daqueles camponeses negros, é
muito sensível a análise feita por Neusa Maria Gusmão que em seu texto, já citado, traz a fala
de um desses camponeses que para explicar quem são usa referências espaciais: “A título de
exemplo, diz o negro de Campinho da Independência: ‘Ali na Pedra Manacuru... Mandacaru,
uma pedra grande que até hoje existe ... era onde a gente brincava de roda ...Era aí a Fazenda
Independência distribuída entre as três mulheres e daí pra cá é que somos nós’.”(grifos
nossos) (GUSMÃO, 1995, p.121).
259
Devemos fazer a referência à Gilsely Santana que foi quem nos apresentou essa perspectiva
de “significante” e significado”.

1105
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Acontece que toda essa questão territorial encerra exatamente o porquê


de falarmos em um distanciamento do Direito, desse Direito ser um entrave.
Pois, como já pontuamos, o modelo jurídico brasileiro está preso a uma matriz
individualista, fechado no significante propriedade que vincula-se à ideia única
de bem mercantil, de coisa para ser apreendida pelo seu proprietário que,
como bem dispõe o Código Civil em seu art.1228, do título “Da propriedade”,
“(...)tem a faculdade de gozar, usar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do
poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha” (grifos nossos)
(Código Civil de 2002).

A realidade destas comunidades revela concepções distintas sobre a


mesma coisa. O olhar do Direito – linguagem do poder, de um Estado e sua
sociedade – é bem diferente do olhar e do sentido, sobre a mesma coisa, que
terão essas comunidades. Estas não entendem o acesso à terra por meio da
lógica proprietária (título, registro imobiliário e o processo sucessório civilista),
fazem uso comum de seus recursos naturais básicos, inclusive de suas terras,
questionando a ideia de exclusividade dessa mesma lógica proprietária.
Questionando, não só a exclusividade, uma das características formadoras da
categoria jurídica “propriedade”, mas sim o significante como um todo, ou seja,
a categoria jurídica como um todo, que como significante não alcança os
significados daquelas realidades. Acerca disso, e influenciada pelas leituras de
Taylor sobre multiculturalismo e política de reconhecimento, são válidas as
reflexões de Gilsely Santana:

As tensões e os limites dos significantes – território versus


propriedade – dimensionam os limites do sistema de direitos
individualmente pensado frente ao reconhecimento das identidades
coletivas, corroborando as críticas que alguns autores apontam ao
liberalismo e à prevalência dos direitos individuais, propondo
rediscussões acerca da neutralidade de uma dada concepção liberal,
bem como modificações no sistema de direito e na sua base
individualista (SANTANA, 2008, p.80).

O problema é que o Direito, o sistema jurídico, está preso a esse modelo


proprietário. E isso é identificável ao se analisar, conforme dito por Gilsely

1106
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Santana, o “fazer e aprender dos juristas”(SANTANA, 2008, p.61) que tentam a


todo custo, quando se deparam com questões como essa, aplicando as lições
de seus currículos dominados por disciplinas de viés civilista e patrimonialista,
enquadrar essas comunidades com suas outras lógicas aos padrões dos seus
códigos que falam em nome de uma outra sociedade, carregados de conceitos
“hegemônicos”, “civilizados”, evoluídos”(SANTANA, 2008, p.77-78)260.

Essa limitação do modelo jurídico, que reverbera na prática de seus


profissionais, é bem nítida nas situações em que o Direito confronta-se com a
demanda da diferença. A “fetichização do título”261262 reproduzida pelos
manuais jurídicos e nas práticas dos juristas, sobretudo dos magistrados,
ilustra muito bem como o título de propriedade é sempre tomado como o meio
mais idôneo para determinar de quem é a melhor posse, desprezando-se todas
os outros meios de legitimação. Sobre isso, são as palavras de Gusmão:

Em sua maioria, as comunidades negras no meio rural não dispõem


de documento comprobatório de seu direito e o 'outro' toma o fato
como meio de expor-lhe a negatividade de seu espaço, expondo-lhe
a condição intersticial e temporária de sua relação com a terra. Diz-
lhe assim, o que ele não é - dono da terra sua -, o que não tem ou
não pode ter, a terra comum. A terra torna-se o elemento central
desse processo posto que não é mais sua terra, o que faz com que a
vida que até então lhe pertencia, passe a pertencer a outra esfera até

260
Gilsely Santana, disseminando as lições de Joaquim Shiraishi Neto, alerta que o uso desses
conceitos “hegemônicos”, “civilizados” e “evoluídos” fez-se dentro de um contexto de uma
“escolha normativa”. Ou seja, inserida num contexto de disputa social, o que significa que a
própria linguagem do Direito, quando da sua elaboração, já está impregnada por interesses,
por uma parcialidade, uma tomada de posição. (SANTANA, 2008, p.77-78). Contestando,
assim, a tão falada neutralidade jurídica, o próprio “purismo” da Teoria Kelseniana.
261
Essa fetichização é bem vista na maior parte das respostas dadas aos impasses que são
levados ao Judiciário e envolvem comunidades negras X fazendeiros em disputa por terra: “Os
conflitos envolvendo território e propriedade discutidos no Poder Judiciário são sinalizados
como exemplificativo da prevalência proprietária, em que, majoritariamente, se considera
que quem detém a melhor a posse é quem detém o título, registrado no cartório, sendo
reiterada uma forma de proceder/julgar que opera restritivamente com base em um senso
comum da propriedade que a absolutiza, não considerando os demais elementos já
respaldados infra e constitucionalmente.”(grifos nossos) (SANTANA, 2008, p.63).
262
Carlos Frederico Marés mostrando como o título, reverenciado pelo Direito e exigido pelo
Estado, sempre foi o inimigo dos camponeses em sua luta para acesso à terra assevera: “No
Paraná e Santa Catarina cada vez que os camponeses rebeldes do Contestado tomavam uma
vila tinham entre seus alvos favoritos o Ofício de Registro de Imóveis, porque sabiam que o
discurso da legitimidade seus inimigos estava naqueles documentos de registro de
terra.”(MARÉS, 2003, p.105).

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então distanciada. Seu mundo, mundo dos pretos, passa a correr


o risco de ser o mundo do 'outro'. Isto tudo porque o 'outro'
representa um mundo contido pelo universo da escrita, ou seja,
pela ordem da palavra controlada e controlador. (grifos nossos)
(GUSMÃO, 1995, p.126).

O direito, então, é o “outro” que exige, pelo universo de sua escrita


legislativa, da normatividade positivada em seus Códigos, o título. Dizendo
àqueles que não o apresentam que, por isso, não têm direito àquela terra, não
têm direito àquele território. Além disso, a limitação fica bem clara quando, para
reconhecer, o Direito e sua linguagem individualista, impõem a criação de
personalidade jurídica por estas comunidades – que normalmente são
representadas na forma de associações -, o que retrata como esse
reconhecimento se faz “de cima para baixo” (SANTANA, 2008, p.50-76), por
meio de um enquadramento; verdadeiras distorções já que tais categorias nada
significam para essas comunidades que são impelidas a subsumir-se a uma
linguagem jurídica-estatal completamente anacrônica e afastada daquelas
realidades. Ainda, notamos essa limitação do Direito quando, por essas
amarras com o direito tradicional civilista, dentro da esfera jurídica,o
significante território, para ser significado, precisa passar pelas formulações do
direito real, sobretudo quando estamos diante de uma regularização e titulação
de um território,ou seja, “(...) a garantia do território passa por afirmação
proprietária”(SANTANA, 2008, p.79). O que nos mostra como o Direito e seu
sistema normativo ignora - no sentido mais radical do termo - o sentido de
território para tais comunidades que, como visto, não pode ser alcançado por
um civilismo “coisificante”, que tudo transforma em coisa apta a ser apreendida.

Esse ideal patrimonialista e a visão absolutizada de propriedade se


espalharam por todo o Direito. Os próprios instrumentos jurídicos postos à
disposição para a defesa das terras – ações possessórias típicas de direito
privado -, ou se preferir, o próprio equívoco de juristas que defendem que a
ação do Estado deve se resumir a transformar posse em propriedade,
ignorando, assim, toda a conjuntura de apropriação territorial sofrida por essas
comunidades – seja pela especulação imobiliária na zona litorânea, seja pela
agricultura monocultora e seus latifúndios no interior do território brasileiro –

1108
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

demonstram bem esse distanciamento do Direito, ou até mesmo, sua inaptidão


para lidar com uma diferença que, ironicamente, foi reconhecida pelo próprio. A
fala de Joaquim Neto que, fazendo uma referência direta aos quilombos e às
quebradeiras de babaçu, sugere uma crise de legitimidade do Direito em lidar
com o "outro" não pertencente ao universo branco e hegemônico, ilustra bem
isso:

A observação empírica das situações relativas aos processos


de reconhecimento de direito desses grupos sociais tem
evidenciado dificuldades jurídicas operacionais, que tem suas
origens na natureza das demandas, as quais, por sua vez, são
múltiplas. Em tais processos, fica evidente que a tentativas de
adequar as situações vivenciadas ao modelos jurídicos
preexistentes são totalmente incompatíveis, principalmente
quando se referem àqueles direitos que dizem respeito à forma
de ocupação e uso da terra e dos recursos naturais, levando a
um questionamentos dos padrões jurídicos tradicionais. Este
movimento de adequação das experiências vividas ao direito
explicita o antagonismo existente entre as noções de sujeito X
identidade, e propriedade X território. (SHIRAISHI NETO, 2005,
p.34).

A potencialidade da abordagem constitucional: a necessidade de


questionar o Direito

Coloca-se assim a necessidade de questionar o Direito que, depois de


muita luta e resistência negra, reconhece formalmente a diferença mas
continua a operar, na prática, como entrave para efetivação desse
reconhecimento. Contestá-lo para expor a fragilidade e parcialidade de um
sistema concebido sob um modelo de propriedade individualmente pensada,
tratada como um mero bem mercantil e, ainda, para concluir, também, que
diante da emergência dessas demandas por reconhecimento, a solução tem
muito pouco a ver (ou nada tem a ver) com a criação de novos ramos do direito
– direito étnico e/ou direito territorial – pois, ao invés “de tais demandas
descentralizarem o saber jurídico, são apreendidas e acomodadas como ramos
estanques em nome de uma sistematicidade, que significa estatismo e pouca

1109
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dialogicidade” (SANTANA, 2008, p.79). Contestá-lo, afinal, para mostrar que o


reconhecimento jurídico do "outro" não vai ser alcançado através da aplicação
cega de suas leis, as quais, em sua maioria, são frias às especificidades dos
casos concretos e tentam a todo custo homogeneizar, encobrindo a evidente
heterogeneidade 263.

Óbvio que quando concordamos com Joaquim Shiraishi em “colocar em


questão o Direito” estamos cientes que precisamos apontar soluções. E por
isso, e também cientes de que o problema não se encontra na falta de
instrumentos normativo-jurídicos – falsa crença que conduz os profissionais do
Direito a uma corrida e um apego à produção incessante de leis 264 em seu
sentido amplo (decretos, regulamentos, portarias...) – , defendemos que a
grande sacada, para um Direito que se vê desafiado a lidar com sociedades
complexas e com demandas da negritude, estar em reconhecer o potencial da
abordagem constitucional. Perceber que a Constituição Federal de 1988 tem
força normativa e que artigos, como o art.68 do ADCT, dispensam mais
regulamentação por serem, em verdade, autoaplicáveis, é talvez o melhor
caminho para vencer esses obstáculos postos à frente da titulação dos
territórios negros.

A análise constitucional nos deslinda uma perspectiva jurídica muito


mais aberta, diferente da perspectiva proprietária do civilismo clássico. O
próprio significante “propriedade” - posto no dispositivo do ADCT - é
ressignificado por uma abordagem constitucional que, questionando as lições
do direito real, impõe a necessidade de uma limitação, de um controle do
suposto caráter absoluto da propriedade por meio de algo que deve ser o
próprio fundamento dela, a função social. Na verdade, e consentindo com os

263
Reiterando a frieza da letra da norma jurídica, Wolkmer pontua: “O paradigma da Dogmática
Jurídica forja-se sobre proposições legais abstratas, impessoais e coercitivas, formuladas pelo
monopólio de um poder público centralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por órgãos
(Judiciário) e por funcionários estatais (os juízes).” (WOLKMER, 2001, p.69). Neste contexto
percebe-se bem o porquê da necessidade de uma atuação diferenciada no momento da
aplicação da norma em comparação àquela de quando da sua elaboração. Uma vez que só
assim, afastando-se da aplicação cega de uma lei fria às peculiaridades e às complexidades da
vida real, façamos, 'no aplicar normativo', as alterações necessárias ao respeito da
heterogeneidade que nos cerca.
264
Gilsely Santana fala em uma “histeria legislativa” para identificar esse contexto em que, em
nome de uma pseudo segurança jurídica, multiplicam-se os instrumentos normativos em
detrimento da aplicação e a interpretação dos que já existem (SANTANA, 2008, p.66).

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ensinamentos de Carlos Marés, defendemos que a função social não é da


propriedade (o próprio direito) ou do proprietário (titular do direito). A função
social é da terra (objeto de direito), já que é esta que tem uma função a cumprir
independente do título que lhe outorguem (MARÉS, 2003). Esse deslocamento
da função social para o objeto possibilita a implementação do mais perfeito
sentido da função social, já que só assim entendemos “(..) que no Brasil pós
1988, a propriedade que não cumpre sua função social não está protegida, ou,
simplesmente, propriedade não é.” (grifos nossos) (MARÉS, 2003, p.116);
fazendo com que, definitivamente, nos afastemos das distorções práticas que,
na maioria das vezes, limita-se a impor ao “proprietário” que não cumpre com
função social uma mera admoestação do Poder Público. Não. Se a terra está
“desfuncionalizada” não há que se falar nem de propriedade 265.

Diante disso, reiteramos o valor de uma abordagem constitucional que


nos presenteia com novos significados, conceitos e categorias mais
condizentes com as peculiaridades de realidades como a das comunidades
negras rurais. O foco na Constituição nos revelará caminhos com bem menos
entraves para a imprescindível garantia territorial destes núcleos negros.
Sobretudo porque essa abordagem, por questionar a absolutização da
propriedade, nos permite, ao menos, ressignificá-la para chegarmos o mais
perto possível do significante território tão carregado de significados, memória
e importância.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente ocupadas:


processos de desterritorialização e movimentos sociais. in Revista Brasileira de
Estudos Urbanos e Regionais. Vol. 6, n.1, 2004.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.

______. Constituição Federal de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
265
Para maior aprofundamento sobre o tema da função social da terra, principalmente para
entender como a função social é muito mais que produtividade, recomendamos a leitura da
obra, ponto de máxima referência para o desenvolvimento desse trabalho, “A função social da
terra” de Carlos Frederico Marés.

1111
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco. São


Paulo: Brasiliense, 1988.

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1112
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

OS “QUARTOS DE DESPEJO” DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:


O TRABALHO DOMÉSTICO E AS MARGINALIDADES INSTITUCIONAIS
DAS RELAÇÕES TRABALHISTAS NO BRASIL

GABRIELA BATISTA PIRES RAMOS (ESTÁCIO DE SÁ)266

1. Considerações iniciais

Quartos de despejo são aqueles cômodos que existem nos


apartamentos e casas, nos quais se acomodam as trabalhadoras domésticas
que residem nos locais de trabalho. Nestes mesmos cômodos são depositados
objetos indesejados da casa que poderiam ser descartados, mas não o são -
ou por não saber a melhor forma e local de descarte, ou porque em algum
momento podem ter alguma utilidade. Quartos de despejo também é o título do
livro mais conhecido de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, pobre,
moradora de favela, foi trabalhadora doméstica na adolescência, tendo sido
essa sua via de iniciação no mundo do trabalho.
O Brasil tem seus quartos de despejo, aqueles lugares sociais em que
foram lançados grupos humanos em vulnerabilidade e que criaram uma
hierarquização anti-democrática na pirâmide social do mercado de trabalho
sendo o trabalho doméstico um deles, aquele em que foram depositadas
majoritariamente mulheres negras. Carolina Maria de Jesus é uma delas e
suas figuras histórica e política trazem consigo as marcas de marginalidades
institucionais interseccionalizadas pelas diversas negações e invisibilidades,
desde a sua existência enquanto profissional que o Direito negou
reconhecimento durante tanto tempo, até sua existência como escritora que a
Literatura canônica, quando não mais pode negar, subalternizou.

2. Extensão do trabalho escravo e divisão sexual do trabalho

O Direito do Trabalho surgiu em meio às inquietações incitadas pela


questão social concebida na Revolução Industrial no século XIX. À medida que
as lutas de classes foram se materializando a discussão se voltou para a
polarização entre burguesia e proletariado passando ao largo das questões

266
Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS (2010); Advogada; Pós-
graduanda em Direito e Processo do Trabalho – Universidade Estácio de Sá; e participante do
Programa Direito e Relações Raciais da Faculdade de Direito da UFBA.

1113
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

racial e de gênero, impondo uma negligência às especificidades dos


segmentos sociais nas teorias econômicas, políticas e sociológicas da época.
História do trabalho e do Direito do Trabalho no Brasil se distanciam em muito
das Histórias dos países ditos desenvolvidos, sobretudo os europeus, que
tiveram posições opostas no período do colonialismo.
Segundo conclusão da Organização Internacional do Trabalho, o
trabalho doméstico é uma das ocupações mais antigas e importantes em vários
países e que está vinculada à história mundial da escravidão, do colonialismo e
outras formas de servidão (OIT, 2010). A América Latina é o continente
recordista em número de trabalhadoras domésticas, não havendo na Europa a
mesma proporção, sendo os países em via de desenvolvimento os que mais
utilizam o trabalho doméstico. O Brasil foi o país para o qual mais se traficou
escravizados, além de ter sido o último a cessar com o tráfico e a abolir a
escravidão oficialmente. Tais fatos somados evidenciam como o trabalho
doméstico se apresenta de forma diferente em outros lugares do mundo, tendo
uma formatação peculiar na sociedade brasileira. Não por acaso, no Brasil em
2009 tínhamos 7,2 milhões de pessoas ocupadas no serviço doméstico das
quais 93% eram mulheres e 61,1% negras.
Com a abolição oficial da escravidão, o Brasil foi se consolidando
enquanto Estado e depositando em alguns cômodos das relações sociais
aquela mão de obra que já não lhe era conveniente: o sistema econômico
emergente nos países colonizadores não comportava a manutenção de mão de
obra escravizada, não por questões humanistas, mas pela própria necessidade
de acúmulo de capital e fomento do consumo e, portanto, “necessitaria de um
contingente de força de trabalho adaptado a relações laborais mais modernas,
sobretudo ao assalariamento.” (THEODORO, 2008, p. 35). Essa ideia vem sob
o espectro de que os escravizados, por estarem submetidos à condição de
objetos, absoluta subalternização e nenhuma autonomia, não se adaptariam a
um modo de vida de consumo. Segundo Furtado: “O homem formado dentro
desse sistema social [a escravidão] está totalmente desaparelhado para
responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos de vida
familiar, a ideia de acumulação e riqueza é praticamente estranha”. (1979 apud
THEODORO, 2008, p. 35)

1114
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A ausência de políticas de inclusão na sociedade pós-abolição oficial


afetou as mulheres negras em todos os campos de suas vidas individuais e
coletiva e, logicamente, também na integração e posicionamento no mercado
de trabalho. Como agravante, o Estado brasileiro foi proativo na implementação
de uma política imigratória, atraindo estrangeiros europeus para embranquecer
e formar a sua população economicamente ativa. Esses fatos somados
fizeram com que a mão-de-obra negra fosse colocada na informalidade e em
atividades de absoluto desprestígio social. Muitas escravizadas já faziam
atividades externas antes mesmo da abolição oficial se perfazer, eram as
denominadas “escravas de ganho”. Essas, após a abolição, em sua maioria,
conseguiram empreender e sobreviver, mesmo que precariamente, de
atividades outras que não fossem as domésticas. Entretanto, boa parte das
mulheres ex-escravizadas permaneceram executando o serviço doméstico nas
casas em que já eram escravizadas ou o buscou em outras, sendo, não só útil,
como rentável que permanecessem nesses lugares, já que eram os que
supostamente lhes restavam, os preços praticados eram módicos e as
condições de trabalho permaneciam as mesmas.
Embora a abolição oficial tenha sido estabelecida pela Lei Áurea em
1888, a exploração de trabalho escravo ainda se alastrou clandestinamente até
quase metade do século XX. Deste modo, é importante destacar que o
histórico de escravidão do país é bastante recente e que o Brasil não vive
atualmente apenas resquícios de uma colonização e escravidão e sim ainda é
um Estado onde o racismo é estrutural e estruturante das suas hierarquias
sociais e, mais que isso, base fundante de suas instituições. A América Latina
é o continente recordista em número de trabalhadoras domésticas, não
havendo na Europa a mesma proporção, sendo os países em via de
desenvolvimento os que mais utilizam o trabalho doméstico. O Brasil foi o país
para o qual mais se traficou escravizadas, além de ter sido o último a cessar
com o tráfico e a abolir a escravidão oficialmente. Tais fatos somados
evidenciam como o trabalho doméstico se apresenta de forma diferente em
outros lugares do mundo, tendo uma formatação peculiar na sociedade
brasileira, o que não quer dizer que em outros países não tenha também
restado às mulheres negras o estigma de servidão, mesmo que no seio social

1115
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

destes não se tenha cultural e tradicionalmente se entranhado o uso do


trabalho doméstico, a exemplo do que indica Bell Hooks (1995), ao afirmar que
na maioria dos lares norte-americanos o trabalho doméstico não está sob a
responsabilidade de mulheres negras e sim das latinas, mas que, ainda assim,
há no pensamento cultural de que a mulher negra é naturalmente mais capaz
de cuidar dos outros. No Brasil, em 2009 tínhamos 7,2 milhões de pessoas
ocupadas no serviço doméstico das quais 93% eram mulheres. Esses números
também são importantes para não restar dúvidas sobre o sexismo que permeia
o mercado de trabalho e remonta à divisão sexual do trabalho do século XIX:
[...]uma das conseqüências da revolução industrial é a participação
da mulher no trabalho produtor: nesse momento as reivindicações
feministas saem do terreno teórico encontram fundamentos
econômicos; seus adversários fazem-se mais agressivos. Embora os
bens de raiz se achem em parte abalados, a burguesia apega-se à
velha moral que vê, na solidez da família, a garantia da propriedade
privada: exige a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente
quanto sua emancipação torna-se uma verdadeira
ameaça(BEAUVOIR, 1967, p. 17)

Acepções exclusivamente feministas sobre a divisão sexual do


trabalho, embora importantes, não alcançaram a interseccionalidade das
discriminações de raça e gênero 267 que atingem as trabalhadoras domésticas
no Brasil que são majoritariamente mulheres negras. Do total de mulheres
trabalhadoras domésticas, 61,6% são negras. É certo que à época da
escravidão, tanto homens quanto mulheres negras participavam dos cuidados
da casa grande e da família dos seus senhores, além de também ser mista a
participação nas outras atividades escravas. Contudo, desde esse período já
se esboçava uma divisão sexual do trabalho e isso reflete ainda nas
configurações atuais dos lugares masculinos e femininos nas ocupações
laborais e explica o porquê do trabalho doméstico ainda hoje ser uma
ocupação tipicamente feminina e que traz a marca sexista até dentro desse
universo. Segundo Hildete Pereira de Melo (2002), há uma diferença das
tarefas domésticas executadas pelos homens e pelas mulheres. Houve uma

267
Opto por tratar apenas dos aspectos de gênero e raça por entender que a questão de classe
que se direciona às mulheres negras no Brasil é ocasionada pelas opressões do racismo,
machismo e sexismo que juntos, determinaram um lugar de pobreza e desqualificação cultural,
profissional, acadêmica e, consequentemente, o empobrecimento. A questão de classe,
portanto, é mais um conseqüência dos fatores supramencionados e não um fator determinante
em si mesmo. Digo isso porque, mesmo as mulheres negras que têm condições financeiras
confortáveis ou ascendem socialmente, frequentemente, são lembradas pela sociedade
patriarcal branca dos lugares que esta acha que são os únicos que lhes convém.

1116
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

mudança na formatação do serviço doméstico que hoje majoritariamente é


executado por apenas uma empregada por casa e esta concentra todas as
tarefas ocupando o lugar da “dona de casa”. Já as atividades especializadas
tais como jardineiros e motoristas são atribuídas aos homens e, nesse sentido,
acabam gerando também uma desigualdade remuneratória tendo em vista que
só famílias mais abastadas contratam serviços domésticos setorizados e mais
específicos e, tanto pelo poder aquisitivo, quanto pela valorização social
dessas funções, os salários sempre são mais altos.
Quando associamos o racismo à questão de gênero, essa
interseccionalidade destaca a perversidade histórica que continua relegando à
mulher negra, não só lugares sociais, mas um estigma cultural difícil de
desengrenar. A divisão sexual do trabalho atingiu às mulheres negras de forma
particular posto que sobre elas precedia a imposição de uma opressão racial.
Tratar da inserção das mulheres no mercado de trabalho exige uma atenção à
essa não coesão nesse grupo social uma vez que as mulheres negras estavam
em via oposta na luta de emancipação e autonomia empreitada pelo
movimento feminista tradicional (de mulheres brancas). Ao se mobilizar para
pleitear a ocupação nos postos de trabalho, esta militância passou ao largo de
pontuar a quem delegaria ou com quem compartilhariam as responsabilidades
domésticas, logo, foram as mulheres negras que ficaram com esse legado da
inserção das mulheres não-negras no mercado de trabalho.
Especialmente nas décadas de 70 e 80, ocorre uma entrada maciça
de mulheres no mercado de trabalho brasileiro. Ao sair de seus lares
para desempenhar funções profissionais, parte das mulheres deixou
de poder realizar certas tarefas e afazeres domésticos, que na
sociedade brasileira são consideradas como tipicamente femininas.
Houve assim a necessidade de contratação de profissionais para a
execução desses serviços. (DIEESE, 2006, p. 12)

Há, portanto, nesse momento, uma nova onda 268 de perpetuação de


lugares sociais para as mulheres negras ratificando o legado histórico e
confirmando que há um hiato na discussão de gênero no mercado de trabalho
quando se buscam respostas aos dados com as inferências relacionadas a
raça.
Enquanto as mulheres brancas rompem estereótipos e atingem
números significativos em áreas antes restritas aos homens, as
mulheres negras ainda têm que lutar para ter acesso a funções como

268
Considerando que a primeira foi no período pós-abolição.

1117
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

as de secretária ou recepcionista, ocupações tidas como “femininas”,


mas com que podem ser melhor descritas como “femininas e
brancas”. Mais de um século após a abolição da escravatura, após
décadas de avanços no status das mulheres em todo o mundo, no
Brasil, a mulher negra continua associada às funções que ela
desempenhava na sociedade colonial e imediatamente após abolição.
(RUFINO, 2003, p. 33-34)

Desse modo, é indubitável que há uma impossibilidade científica,


técnica e política de tratar dessa temática sem fazer uma abordagem
interseccional, destacando a forma que as questões de gênero que afetam às
mulheres negras são intrínseca e particularmente relacionadas ao seu lugar
racial.

3. Da invisibilidade à marginalidade jurídica do trabalho doméstico

O Brasil está na oitava Constituição e só no período pós-abolição, final


do século XIX e início do século XX, começou a se projetar no país um
arcabouço legal de temáticas afetas às relações do trabalho. Só na
Constituição de 1937 o Direito do Trabalho foi inscrito explícita e
especificamente e em 1939 foi criada a Justiça do Trabalho na estrutura do
Poder Judiciário. O Código Civil de 1916 abordou incipientemente a prestação
de serviços, mas não delineou explicitamente a categorização do trabalho
doméstico. Em 1923 foi promulgado o decreto-presidencial 10.607 que elencou
amplamente as trabalhadoras que pertenciam ao âmbito doméstico. Em 1941,
voltou a restringir o rol de trabalhadores domésticos e disciplinou o aviso-
prévio. Em 1943 foi editada a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT,
primeiro instrumento normativo específico do direito do trabalho e que tentou
agregar senão todas, mas a maioria das questões que diziam respeito à
temática. A CLT não disciplinou nenhum tema referente ao trabalho doméstico
e durante 29 anos permaneceu o silêncio legislativo acerca dessa categoria
que só veio a ser perfilhada conceitual e legalmente no rol de classes
trabalhadoras na Lei 5859 de 11 de dezembro de 1972.
Com o fortalecimento de suas bases políticas e o advento da Lei nº
5859/72, as trabalhadoras domésticas conseguiram sair da invisibilidade
jurídica e deram início a uma nova fase de busca pelo reconhecimento
institucional. A lei supramencionada trouxe novidades, mas também graves

1118
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

limitações, não só de direitos, como no plano conceitual, a exemplo da


definição de trabalhadora doméstica como sendo aquela “que presta serviços
de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no
âmbito residencial destas” 269. A doutrina justrabalhista entende que o que a
caracteriza é a inexistência de fins econômicos na sua atividade e que o
legislador teria cometido um equívoco terminológico. Mais um equívoco, posto
que essa interpretação reduz as funções social e econômica das trabalhadoras
domésticas. O serviço doméstico proporciona autonomia a quem o contrata ao
lhe poupar tempo e disposição física, mental e intelectual que são direcionados
na transformação em produtos ou outros serviços cujos lucros se destacam
dentro da redoma do capital. Assim, é evidente que as trabalhadoras
domésticas executam, sim, uma atividade com uma finalidade lucrativa para
seus empregadores e econômica para a país.
A Constituição Federal de 1988 - CF/88 trouxe os direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais inscritos no Título que trata dos direitos e
garantias fundamentais. No parágrafo único do art. 7º foi feita a ressalva e
seleção dos direitos que seriam aplicáveis às trabalhadoras domésticas. Essa
norma as colocou em uma situação inegavelmente mais confortável, uma vez
que aumentou o leque de garantias que as alcançaria, mas ainda as manteve
distante de uma equiparação plena aos demais trabalhadores e acabou por
reiterar discriminações. A superficialidade da Lei nº 5859/72 e a explícita
seletividade de direitos cedidos às trabalhadoras domésticas nas Constituição
Federal de 1988 demonstram que elas migraram de um status de invisibilidade
para uma marginalidade jurídica.
A Proposta de Emenda Constitucional - PEC inicialmente pretendeu
excluir o parágrafo único do Artigo 7º da CF/88 no intuito de que todos os
direitos assegurados aos demais trabalhadores, fossem estendidos às
trabalhadoras domésticas. No trâmite legislativo a revogação do parágrafo
único foi substituída por alterações no próprio texto, alterações estas que
deram seguimento a algumas discriminações, sobretudo pela pendência de
regulamentação da maior parte do texto que só veio a ocorrer 3 anos depois,
pela Lei Complementar nº 150 de 1º de junho de 2015. Ainda com a

269
Art. 1º da Lei 5859/72.

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promulgação dessa regulamentação, restaram diversas distâncias entre os


direitos resguardados às trabalhadoras domésticas e outras trabalhadoras, a
exemplo da limitação de valores e número de parcelas de Seguro-desemprego
e nenhuma atenção aos meios diretos de inspeção de trabalho.
Todo esse histórico, no mínimo, sugere que os entraves à efetivação
dos direitos das trabalhadoras domésticas, conforme já indicam alguns
estudiosos do tema, perpassam por questões discriminatórias, dentre as quais,
o racismo institucional:
Trata-se da forma estratégica como o racismo garante a apropriação
dos resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos
raciais privilegiados na sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a
manter a fragmentação da distribuição destes resultados no seu
interior. O racismo institucional ou sistêmico opera de forma a induzir,
manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas
instituições e políticas públicas – atuando também nas instituições
privadas, produzindo e reproduzindo a hierarquia racial. (Werneck,
2013, p. 17)

O aparato normativo de um Estado deve acompanhar os ideais de seu


tempo a fim de estabelecer a ordem e promover a justiça social, sobretudo no
caso de um Estado Democrático de Direito como se posiciona
constitucionalmente o Brasil. Seria ilógico que em qualquer sistema legislativo
fossem erigidas normas para não ser cumpridas. Entretanto, há distancias
abissais entre os anseios populares e a vontade de alguns grupos sociais e
políticos que se instalaram nas instâncias decisórias do país e que têm
interesse em manter as desigualdades que lhes garante suas cadeiras em
espaços de poder.

Leis não mudam mentalidades, logo, as normas constitucionais e


infraconstitucionais não operarão uma mudança imediata e absoluta nas
condições de trabalho doméstico se não estiverem acompanhadas de uma
atuação estatal que exceda os limites legislativos na regulação dessas
relações, caso contrário permanecerá o “abismo que separa o que está
prescrito na esfera do direito e o que se apresenta na realidade das relações
de trabalho dos serviços domésticos.”(GIRARD-NUNES e SILVA, 2013) . A
profissionalização do trabalho doméstico, perspectiva de melhoria da renda,
consolidação de autonomias e garantias previdenciárias, potencializam a
desmobilização das hierarquias da pirâmide social no mercado de trabalho e
nas relações sociais em geral. A limitação de autonomia financeira, também é o

1120
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

cerceadora de outras tantas autonomias e, embora leis não mudem


mentalidades, negligências legislativas evidenciam o império de interesses
outros que não os de perseguir justiça social ou menos dar eficácia plena a
direitos fundamentais. Os entraves no âmbito jurídico não se perfazem por
questões técnicas e sim por questões ideológicas que têm sido estruturais e
estruturantes do Estado brasileiro. Fica, então, mais evidente a importância da
academia viabilizar a reestruturação teórica e oportunizar que sejam aventadas
outras hipóteses ideológicas para subsidiar avanços no ordenamento jurídico e
a desmarginalização institucional de grupos de vulnerabilidade social no bojo
das relações trabalhistas.
O Direito do Trabalho como parte essencial dos Direitos fundamentais
sociais assumiu grande responsabilidade de ser instrumento de justiça social e
minimizador de desigualdades. Nesse sentido, é importante aguçar os
olhares ao tratamento institucional dado ao trabalho doméstico posto que isso
desvela as iniquidades do mundo do trabalho e, consequentemente, do Estado
Democrático de Direito. O ordenamento jurídico pátrio foi moroso no avanço da
garantia dos direitos fundamentais das trabalhadoras domésticas e há uma
imperativa necessidade destacar que as inovações (EC nº 72/2013 e LC nº
150/2015) foram insuficientes para findar a distância entre os adornos das
letras da Constituição Cidadã e as diretrizes de um Estado verdadeiramente
Democrático de Direito.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho doméstico no Brasil é extensão do trabalho escravo que foi


abolido oficialmente em 1888, mas que deixou relações sociais, jurídicas e
políticas difíceis de serem desfeitas ou, ao menos, ressignificadas. Executado
majoritariamente pelas mulheres, se consolidou na sociedade brasileira sexista
operacionalizando-se ao sabor do patriarcado e de uma divisão sexual do
trabalho, portanto, como uma ocupação eminente e tipicamente feminina. Por
ocasião desses legados históricos, é, deste modo, uma atividade desenvolvida
majoritariamente por mulheres negras que, nesse caso, ocupam a base da
pirâmide social e isso é decorrência direta da interseccionalidade de eixos de

1121
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

opressões que se impõem a elas, sobretudo raça e gênero. O Direito, assim


como outras ciências humanas e sociais, acompanha ou deveria acompanhar
as dinâmicas social, política e econômica, logo, o retrato da situação dos
direitos trabalhistas domésticos se relacionam com as iniquidades de uma
sociedade que se perfez em alicerces escravocratas e patriarcais. Foi o
arcabouço ideológico racista e sexista que permitiu e perpetuou a
marginalização social, a precarização das condições de trabalho e o não
reconhecimento institucional de quaisquer direitos durante tanto tempo.
Os caminhos percorridos pelas trabalhadoras doméstica na busca do
reconhecimento institucional da profissão foram cercados de perversidades
discriminatórias: no início, a mais absoluta invisibilidade, em seguida um
tratamento jurídico incipiente e discriminatório o que as fez migrar para um
estágio de marginalidade jurídica. Foram muitos os avanços nos quase 80 anos
de luta das trabalhadoras domésticas pelo reconhecimento dos seus direitos
trabalhistas, com a saída da informalidade e progresso no caminho da
profissionalização da atividade. Contudo, os entraves ideológicos e políticos
ainda deixam essa categoria em situação de retrocesso se comparadas aos
demais trabalhadores, mesmo após a EC nº 72/2013 e a LC nº 150/2015. Esta
última, ainda vem com diversos entraves limitando igualdade material às
trabalhadoras domésticas. Leis não mudam mentalidades, exemplo disso é o
alto percentual de informalidade de trabalho nessa categoria, mesmo sendo o
registro na Carteira de Trabalho obrigatório desde 1972. As normas
constitucionais e infraconstitucionais não operarão uma mudança imediata e
absoluta nas condições de trabalho doméstico se não estiverem
acompanhadas de uma atuação estatal (que exceda os limites legislativos) na
regulação dessas relações, caso contrário permanecerá o “abismo que separa
o que está prescrito na esfera do direito e o que se apresenta na realidade das
relações de trabalho dos serviços domésticos.”(GIRARD-NUNES e SILVA,
2013)
A profissionalização do trabalho doméstico, a perspectiva de melhoria
da renda, garantias previdenciárias e dá mais uma potencialidade às mulheres
negras de consolidar autonomias e desmobilizar hierarquias da pirâmide social
no mercado de trabalho e nas relações sociais como um todo. A limitação de

1122
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

autonomia financeira, embora não isolada, também é o cerceador de outras


tantas autonomias e, embora leis não mudem mentalidades, negligências
legislativas evidenciam o império de interesses outros que não os de perseguir
justiça social ou menos dar eficácia plena a direitos fundamentais. Os entraves
no âmbito jurídico não se perfazem por questões técnicas e sim por
marginalidade (racismo e sexismo) institucionais que têm sido estruturais e
estruturantes do Estado brasileiro. Institucionalmente os direitos são cedidos
por força das pressões populares, mas são embaraçadas pelos interessados
na manutenção do status quo social racial e de gênero. Como preleciona
Celso Antônio Bandeira de Melo (2009), “a forma mais eficiente de torná-los [os
direitos] inoperantes na prática, deliberadamente ou não, é desenhá-los em
termos vagos, genéricos, fluidos ou dependentes de normatização
infraconstitucional.” O Estado brasileiro, pelo seu histórico escravocrata e
presente genocida, não só tem omissões como coleciona ações e
intencionalidades no não funcionamento do Estado na proteção de alguns
grupos sociais, dentre os quais o das mulheres negras. Enquanto a própria
Carolina Maria de Jesus considerava a favela o quarto de despejo da
sociedade, consideramos o trabalho doméstico um "quarto de despejo" no
mundo do trabalho brasileiro.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

RACISMO CIENTIFICO:
INSTITUCIONALIZAÇÃO E SELETIVIDADE DO PODER PUNITIVO E AS
RELAÇÕES RACIAIS NO ESTADO BRASILEIRO

JEFERSON HENRIQUE DOS SANTOS CONCEIÇÃO (FTC/ MEMBRO


PDRR/UFBA)

RESUMO

O presente trabalho busca explicitar o pensamento intelectual brasileiro que


fomentou preconceitos que se cristalizaram nas consciências e até os dias de
hoje perseguem os afrobrasileiros em todos os setores da sociedade. Assim,
tem-se por objetivo evidenciar a influência do darwinismo social, da eugenia e
do racismo "científico" nas ideias de principal sustentação do pensamento da
intelectualidade nacional, que no final do século XIX e meados do século XX
foram responsáveis pela introdução da justificativa científica do preconceito
racial e social, além de estabelecer como estas causas influenciaram e ainda
influenciam a postura do Estado brasileiro no que se refere às relações raciais
e o sistema punitivo o nacional.

No século XIX, a discussão em torno da formação das nações estava


na ordem do dia. Com isso, o Brasil ficou no centro das polêmicas
estabelecidas voltadas ao tema, justamente por ser uma nação bastante
“miscigenada”.
Os principais intelectuais europeus que discutiam o tema, a exemplo de
Gobineau, acreditavam que a mestiçagem era a explicação para o atraso e até
mesmo a inviabilidade do Brasil se constituir como nação. E seguindo este
raciocínio o Conde Artur de Gobineau, que aqui ficou por quinze meses,
declarou que “trata-se de uma população mulata, viciada no sangue e no
espirito e assustadoramente feia”. Para que teve como principal seguidor de
suas ideias, Cesare Lombroso, a única solução para o Brasil seria a imigração
de europeus, pois estes seriam representantes legítimos da raça superior.
A produção cientifica brasileira da época em conjunto com a concepção
de Estado nacional, aconteceu a partir destas e de outras teorias importadas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

da Europa onde muitas delas, quando não em desuso, encontravam-se na


periferia desta produção. Essas teorias raciais “brasileiras” tiveram uma
peculiaridade. Em quase sua totalidade, foram “elaboradas” com base no
pensamento imperialista europeu muitas das vezes tendo como referência
teorias periféricas que nem mesmo à Europa sua aplicação fazia sentido.
Em meio a um contexto marcado pelo final da escravidão e definição
de um projeto político para o país, essas teorias raciais se definiram enquanto
modelo teórico próprio. Embora, a construção do pensamento cientifico da
época, fosse elaborado a partir de grupos isolados que muito mais se
interessam em construir um método que justificassem suas teorias do que
propriamente se dedicar à elaboração de um pensamento cientifico como
comenta a pesquisadora Lilian Moritz Shwarcz no livro “O Espetáculo das
Raças”:
(...) “em meio a um contexto caracterizado pelo
enfraquecimento e final da escravidão e pela realização de um novo
projeto político para o país, as teorias raciais apresentam-se
enquanto modelo teórico viável na construção do complicado jogo de
interesses que se montava. Para além dos problemas mais
prementes relativos à substituição da mão de obra ou mesmo à
conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser
preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania”.

É seguindo esta lógica que o tema racial, apesar de apresentar


aspectos “negativos” para a imagem do Brasil (a mestiçagem era vista como
um atraso) torna-se um eficiente instrumento para justificar as diferenças
sociais existentes. Frente ao pensamento predominante na Europa pessimista
quanto miscigenação, o Brasil apresentava-se como um “paraíso” miscigenado,
entretanto, essa projeção não ultrapassava os limites de um sofisticado
dispositivo de escamoteação do racismo.
Calcado nessas concepções foi que o mote racial, apesar de ser
apresentado como fator negativo, foi inserido como um argumento de sucesso
para justificar a composição das diferenças sociais estabelecidas.
Esta realidade corroborou a elaboração de teorias de cunho
formalmente excludentes. A originalidade das teorias cientificas brasileiras ao
final do século XIX não passavam de grosseiras adaptações de teorias
estrangeiras. No intuito de estabelecer um tipo de dominação onde fosse
possível dispensar o discurso declaradamente racista, a elite branca nacional

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instrumentalizou-as como forma de dominação e sustentação da estrutura


social da época.
É com a chegada da família real portuguesa ao Brasil que se
estabelece o marco inicial de origem das instituições educacionais brasileiras.
Nesse momento há um incentivo para a construção do ensino superior, assim
como o desenvolvimento de uma produção cultural referenciada nos marcos do
colonizador europeu. O que se tinha era uma elite oriunda das oligarquias
brasileiras que via no modelo “cientifico” evolucionista o referencial de análise
social.
O contraditório nesse aspecto, é que enquanto na Europa se
aprofundava a visão humanista, baseada nos ideais de “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, provenientes da Revolução Francesa, no Brasil, o que emergia
eram modelos evolucionistas e sociais darwinistas como justificativa
estruturante da sociedade.
É nesse contexto que o darwinismo social “brasileiro” é absorvido pelas
elites brasileiras, adquirindo formas altamente complexas. Ele influenciou
fortemente no desenvolvimento da ideia de que algumas raças e civilizações
encontravam-se em condições superiores às demais. Deste modo, atribuiu a
degeneração populacional brasileira à grupos étnicos que não os oriundos do
continente europeu (negros e índios), apresentando a cultura europeia como
sendo a materialização desta pseudo-elevação.
Imbuídos desse sentimento de superioridade, os darwinistas sociais
entendiam que para levar desenvolvimento e progresso aos povos menos
“desenvolvidos” poderiam se valer do “direito” de ocupar, dominar e explorar
estas culturas “primitivas”.
Acreditando na existência desta superioridade racial, é que a
intelectualidade brasileira apresenta a eugenia como sendo a única política
nacional do modelo determinista Estatal, provida da capacidade de evitar o
atraso. Os eugenistas confiavam que era preciso radicalizar em algumas
ações, a exemplo da proibição do casamento inter-racial, esterilização da
população negra e pena de morte. O branqueamento do Brasil seria a solução.
Haviam diferentes critérios de cidadania existentes ao tempo. E eles
encontram terrenos férteis para o desenvolvimento das teorias nitidamente

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racistas de Cessare Lombroso e Henrique Ferri, aqui no Brasil expandidas pelo


médico cientista, Raimundo Nina Rodrigues.
Nina Rodrigues, era adepto das teorias apresentadas pela Antropologia
Criminal, criada pelo italiano Cesare Lombroso. Lombroso, equivocadamente
acreditava num determinismo biológico e psíquico do crime presente no sujeito
antropológico delinquente, um tipo à parte do gênero humano predestinado a
cometer crimes – O criminoso nato. Entendido como selvagem este seria um
“mau” cuja sociedade necessitaria promover uma defesa antecipada a sua
inclinação à criminalidade.
Já Henrique Ferri, esteava que o crime não é proveniente do livre
arbítrio. Sustentava que ele decorria da associação do “tríptico lombrosiano”
(atavismo, epilepsia e loucura), e que por isso seria possível identificar os
sujeitos “socialmente perigosos” e “antisociais” que tanto ameaçavam a ordem
e harmonia social. E isso instiga da sociedade a devida defesa social – A morte
ou a prisão destes.
A teoria formulada por Lombroso com o auxílio de Ferri, fomentou o
rompimento de paradigmas no Direito Penal e o surgimento da fase científica
da Criminologia. Lombroso e os adeptos da Escola Positivista de Direito Penal
se contrapuseram à tese da Escola Clássica da responsabilidade penal
referenciada no livre-arbítrio e na condição social do sujeito.
Com isto, o Brasil avança para o campo da Criminologia Positivista.
Este passo, fomenta o surgimento de uma criminologia fundamentada na
criminalização das atitudes do sujeito e não nas condições sociais que lhe
conduziram àquela situação. Esta compreensão perfeitamente se ajustava
como uma autêntica engrenagem para o intensificação da criminalização dos
que há muito já estavam excluídos e marginalizados em todos os aspectos
sociais.
Nesse momento, trabalhado conjuntamente com a teoria do
“branqueamento da nação brasileira”, o sistema penal brasileiro é utilizado
como um poderoso instrumento da construção seletiva direcionada à
criminalização da população negra Brasileira. Seu modus operandi estava
direcionado para definir quem era, o transgressor, a ameaça à sociedade, o

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criminoso nato, ou seja, aqueles cuja estereótipo expressavam a pele escura e


os cabelos crespos - A população negra.
Com efeito, após longos séculos, percebe-se que este pensamento
ainda não foi totalmente superado. Ao fazer nota da composição da população
carcerária brasileira, percebe-se que sua ampla maioria é composta por
pessoas negras, oriundas de bairros periféricos, favelas e comunidades dos
grandes centros urbanos.
Outro fator de bastante relevância são os currículos de formação das
academias de polícia, que ainda trabalham com este conceito de “suspeito” que
intencionalmente é “desenhado” semelhante ao morador das comunidades
periféricas marcadamente presente nas capitais. Esta equivocada
compreensão é irradiada para o imaginário popular, associada à ideia de que
estes não merecem ser tratados como cidadãos, pois configuram-se como uma
ameaça ao Estado e às pessoas de bem, e que por isso não devem ser
tratados como sujeitos de direitos e sim como inimigos da sociedade.
Este conceito lombrosiano cotidianamente é utilizado por grandes
veículos de comunicação de massa e até mesmo em fala de chefes do poder
executivo, como maneira de justificar violações a direitos humanos e garantias
constitucionais estabelecidas em nosso ordenamento jurídico, como demonstra
declaração do Chefe do Poder Executivo do Estado da Bahia, Governador Rui
Costa, em fevereiro de 2015, sobre episódio que ficou conhecido como “A
chacina do Cabula na Vila Moisés”, onde uma incursão do batalhão de Rondas
Especiais da Polícia –Rondesp, resultou na morte de 12 jovens negros e
deixou outros 4 feridos "É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir,
em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol (...) pra
fazer o gol. (...) é preciso proteger o cidadão de bem dessa gente que só
faz o mau”.
De fato, em termos concretos, o que se percebe é a presença de um
racismo institucionalizado que escancaradamente viola os pressupostos do
Estado Liberal Democrático de Direito. Trata-se de uma manifestação
deslegitimadora dos Direitos Humanos sob uma justificativa de “guerra contra o
crime organizado” ou “guerra às drogas” onde este criminoso, de acordo com

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os conceitos da Antropologia Criminal clássica, encontra-se previamente


identificado e escolhido.
Influenciadas por ideias e declarações como estas, a população
normalmente se inclina a legitimar tais métodos, assim, equivocadamente
passa a exigir legislações mais severas e aumento dos recursos repressivos e
letais, acreditando que problemas que são irresolúveis através do Direito Penal
venham a ser resolvidos deste modo. Esta é a opção que só amplia o poder
punitivo do Estado, além de legitimar a aplicação de um direito penal que muito
mais considera o indivíduo como inimigo do que como um sujeito signatário do
Estado Democrático de Direito.
Em termos práticos, pode-se facilmente afirmar que essa estratégia
repressiva resulta no desenfreado crescimento do encarceramento da
população negra por condutas que poderíamos definir ou classificar como “de
menor potencial ofensivo”.
Para Eugênio Raúl Zaffaroni, ilusoriamente, o que se esquadrinha é o
aumento dos recursos repressivos e punitivos do Estado, como se estes
isoladamente pudessem resolver problemas localizados para além das
fronteiras do Direito Penal.
A legitimação destas práticas fazem parte do cotidiano dos meios de
comunicação de massa, que corroboram a sensação de insegurança e
consolidação do perfil criminoso” como sendo o jovem negro morador da
periferia – o inimigo interno da sociedade.
Numa abordagem estritamente brasileira facilmente se afirma que esta
situação encontra-se intimamente ligada às bases epistemológicas do
pensamento lombrosiano que dá sustentação ao Direito Penal no Brasil. É
fingir desconhecer o quão racistas são as orientações que influenciam a
concepção de segurança pública, além de ignorar que estes fatores não
possuem relação direta com a pobreza e marginalização a qual está submetida
a maioria da população negra brasileira e que, portanto necessita de ampla
política sócio equilibrante por parte do Estado.
Neste sentido, assevera a socióloga Vilma Reis: “(...) a ausência de um
conjunto de políticas sociais, que tem sido substituídas por políticas de segurança ou
penitenciais, ocupa o centro das reflexões sobre/e no contexto das sociedades multirraciais.”
(Vilma Reis dissertação de Mestrado 2005).

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Neste sentido, estas teorias racistas presentes no Brasil corroboraram


para que a criminalidade fosse definida como intrínseca ao segmento étnico
afrodescendente, atribuindo-lhe elevado potencial criminoso e que portanto
deve ser considerada como “o mau” a ser combatido. E aqueles que fazem
parte da “normalidade social” devem ser tratados como “o bem” a famigerada
“gente de bem” cuja em nome da manutenção dos privilégios de alguns, o
Estado através de uma política criminal de base “cientifica” se utiliza da
violência institucionalizada e estruturante para matar e encarcerar centenas de
milhares de jovens negros no Brasil.
Apresentam o genocídio e a prisão dos negros como cura para esta
“patologia social”. É o combate à criminalidade através de uma grosseira e
intencional fundamentação “cientifica” que apresenta o negro como destinatário
de uma política criminal que não é oriunda da vontade geral, condição
primordial para a existência do Estado Liberal Democrático de Direito, mas sim
dos finos recortes de cunho maniqueísta cuja lógica do castigo e da vingança
pessoal é a principal referência.
O que se tem é a negação da condição humana àqueles que
cometeram crimes, principalmente em se tratando dos negros. Esta negação
extremamente influenciada pela ascendência étnica sugere que estas pessoas
são dominadas pelo mau e pertencem ao universo do crime.
Estimula-se o entendimento de que sua condição de “animais” não lhes
permite estar em convívio harmônico com a sociedade, que não possuem
ligação com os outros, que elas “insultam” o gênero humano e que qualquer
tratamento violento, ainda que viole direitos humanos, normas e garantias
constitucionais.
Este sem dúvida não é um modelo harmônico de organização social. O
Direito Penal precisa ser problematizado e posto como a expressão do
interesse da vontade geral que sustenta o “contrato social” que rege a
sociedade.
Falar em criminalidade não pode ser atribuir a determinados indivíduos
ou segmentos étnicos o estigma de criminoso. É preciso entender que a
conduta não é criminal “em sí” muito menos o criminoso como sendo aquele
detentor de específicos traços de personalidade inclinada ao crime.

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A atual concepção de criminalidade deve ser entendida como algo


posto através da definição legal de crime que seleciona e estigmatiza o sujeito
como criminoso, inferindo à conduta o caráter criminal. O que há é uma
criminalização do sujeito por aquilo que ele representa cultural e
fenotipicamente.
A criminalidade não possui natureza ontológica. Sua essência está
diretamente ligada ao social onde se acentua o controle da sociedade a partir
de uma seletividade étnica. Neste mesmo sentido, o Direito Penal não pode ser
traduzido como um sistema de normas estáticas, mas sim como um processo
de criminalização, entrelaçado às agências de controle social que passa
primariamente pelo legislador, secundariamente pela polícia, pela justiça e até
mesmo pelo sistema penitenciário.
Segundo Alessandro Barata “agências” de controle social não devem
ser vistas de modo isolado umas das outras, pois assim demonstram-se
ineficazes quanto a sua função reeducadora, principalmente no que se refere
às penas privativas de liberdade na atual conjuntura.

“(...) determinam, na maior parte dos casos, uma


consolidação de uma verdadeira e própria carreira criminal, lançando
luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o
problema da reincidência. De modo que seus resultados sobre o
“desvio secundário” e sobre carreiras criminosas representam a
negação da concepção reeducativa da pena e da ideologia do
tratamento.” (BARATTA, 1991a, p. 89 e 116)

O que se percebe é uma inversão de sentido que demonstra a


incapacidade da criminologia tradicional de questionar: porque determinados
indivíduos são definidos como criminosos? Em que condições eles podem se
tornar objeto desta definição? Quem, principalmente, os define como tal? Com
isso demonstrando como o sistema penal brasileiro ainda permanece é
altamente seletivo.
A Criminologia positivista materializada no Direito Penal se afasta das
causas do fenômeno social que conduz o indivíduo à criminalidade e com isso
demonstra que a mesma define-se como um fenômeno normativo.
Com isso não se pode deixar de destacar que a população carcerária é
composta em sua maioria por pobres e negros. Isto ocorre não porque estes
possuam maior tendência ao crime, mas sim, porque dentro das condições
sociais em que se encontram a possibilidade de criminalização é ampla.

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Tendo em vista que em perspectiva global os atingidos pelo sistema


penal, em sua maioria pertencem aos estamentos sociais mais baixos, pode-se
afirmar que isso aponta para a existência de um sofisticado processo de
seleção daqueles a serem criminalizados. É um sistema penal que tem como
foco a pessoa e não a conduta.
Segundo Eugênio Raul Zaffaroni, existem poderosos grupos na
sociedade que possuem a capacidade de criminalizar alguns ao mesmo tempo
que impõem quase que a total impunidade das próprias condutas criminosas a
outros.
Não há dúvida de que devido a institucionalização do racismo, as
possibilidades dos membros deste grupos serem tidos como criminosos e
carregarem todos os estigmas que esta adjetivação confere e implica, é quase
nula. E ainda que se materialize, apresenta-se sobre a forma de justificação e
legitimação do sistema punitivo perante a sociedade. O Estado Brasileiro
permanece altamente seletivo quanto aos destinatários de sua política de
segurança e a população negra é o “alvo” principal.

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ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de


legitimidade do sistema penal. Tradução por Vânia Romano Pedrosa e Amir
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo et alli. Direito Penal Brasileiro I. Rio
de Janeiro: Revan, 2003.

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GRUPO DE TRABALHO: LITERATURAS AFRICANAS PÓS-COLONIAIS:


ESTUDO DAS DINÂMICAS DO IMAGINÁRIO E DE MEMÓRIA COMO
INSTRUMENTO DE REDESCRIÇÃO IDENTITÁRIA

PROPOSITORES: KLEYSON ASSIS (UFRB) E JEAN-PAUL D’ANTONY


(UFRPE)

Ementa:

O GT propõe reunir trabalhos que contemplem estudos de rastros

autobiográficos na tessitura narrativa de literaturas africanas pós-coloniais e de

políticas culturais que, através do imaginário e da memória, propiciem uma

recomposição identitária dos sujeitos silenciados pela história estabelecida.

Pressupõe-se aqui uma ralação pragmática com a literatura, de modo que ela

possa servir de meio para desmascarar situações que oprimam povos ou

dilacere identidades. Nesse sentido, a literatura é pensada em termos de

descrições do mundo mais úteis e melhores para discutir questões de restrição

de direitos na atual sociedade globalizada e na qual todos foram

obrigatoriamente inseridos.

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CONTORNOS IDENTITÁRIOS E PÓS-COLONIALISMO


NO CINEMA O ULTIMO VOO DO FLAMINGO

JEAN PAUL D’ANTONY COSTA SILVA (UFRPE-UAST) 270.

Este artigo nos permite problematizar o cinema africano O último voo do


flamingo (2010), do diretor moçambicano João Ribeiro, da coprodução
Moçambique/ Portugal/ Brasil, baseado na obra literária O último voo do
flamingo (2005), de Mia Couto.

Basicamente, a narrativa se inicia com os primeiros anos do pós-guerra


moçambicana, numa vila imaginária de nome Tizangara, metonímia de
Moçambique, onde uma sequência de acontecimentos insólitos desperta a
atenção de autoridades internacionais: os soldados da ONU em missão de paz
no local explodem, sem deixar vestígios, restando apenas o pênis decepado. O
corpo da narrativa se produz a partir de Estêvão Jonas, o administrador da vila;
a velha-moça, Temporina; Zeca Andorinho; o velho Sulplício, pai de Joaquim e
representante da tradição e da voz dos antepassados; a prostituta Ana
Deusqueira; Massimo Risi, o investigador da ONU e o seu tradutor-narrador
que ganha o nome de Joaquim.

A linguagem cinematográfica de João Ribeiro segue o fluxo do


pensamento crítico de Mia Couto principalmente em Pensatempos: textos e
opinião (2005) quando o escritor dessignifica e desmitifica algumas posições
histórico-conceituais em torno do “Eu” de Moçambique que é tão plural quanto
qualquer outro. Neste sentido, o cinema pensante cria outra pretensão de
verdade no momento em que, enquanto tradução, engendra novas
problemáticas nas ações e no discurso das personagens que nos permite
ampliar o campo de abordagens e da criticidade. Isso acontece porque

270
Professor Doutor de Teoria e Crítica Literária, Literatura Brasileira, Literatura e Cinema e
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal Rural de Pernambuco –
Unidade Acadêmica de Serra Talhada.

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Um filme é um golpe (às vezes, um golpe baixo), por assim dizer, não
um aviso sóbrio ou uma mensagem civilizada. Suas imagens entram
pelas entranhas e daí vão ao cérebro, e precisamente por isso têm
maior probabilidade de ir direto ao ponto principal, mais do que um
sóbrio texto filosófico ou sociológico (CABRERA, 2012, p. 27-28).

Este cinema propõe reavaliarmos o conceito de identidade, nação, e de


nação moçambicana, no bojo da globalização. Se adotarmos o conceito de
globalização sob perspectiva da pluridimensionalidade, então acordamos que
são todos “os processos, em cujo andamento os Estados nacionais vêem a sua
soberania, sua identidade, suas redes de comunicação, suas chances de poder
e suas orientações sofrerem a interferência cruzada de atores transnacionais”
(BECK, 1999, p. 30).

Neste cinema, existe uma tomada de posição do sujeito diante do


mundo que ocorre em dois polos: de um lado, João Ribeiro, estabelece suas
identificações com o discurso de poder apresentado na narrativa de Mia Couto;
por outro lado, essa identificação permite ao filme O último voo do flamingo,
através das personagens, expor suas indagações e uma nova representação
do que Mia Couto vem construindo como visão conceitual de identidade, de
reformulação do jogo de poder e, por conseguinte, do sujeito pós-colonial. Por
exemplo, em seu livro Pensatempos: textos de opinião, Mia Couto afirma que
“A palavra esconde uma briga em volta da definição do sujeito: quem
descoloniza quem? Os africanos resolveram o assunto cirurgicamente:
expulsaram a palavra <<descolonização>> do vocabulário” (COUTO, 2005,
p.52). A emancipação de um povo não lhe resgata a identidade no sentido de
pureza porque não lhe assegura a expurgação das influências do mundo do
outro, o único em-si que acontece é o rizoma identitário. A identidade em si é
uma percepção vã de um estar consigo mesmo sem seu contorno. É correto
que ela se dobra em si mesma, mas não como o fechamento de um casulo,
pois ele sempre desvelará uma outra coisa da qual esta identidade primeira
poderá apenas se identificar, não mais ser como única intocável.

As novas construções de si de uma nação e de cada individualidade


imbricada e hibridizada na pós-colonização permitem o uso do contra-poder,

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que também é poder, de Ana Deusqueira, utilizando seu corpo para punir e
subjugar os soldados da ONU ao seu desejo; o contra-poder do Velho Sulplício
representando a retomada da tradição e o contra-poder de Joaquim
conduzindo Massimo Risi pelo universo mágico e aparentemente contraditório
de Tizangara. Estas formas de ressignificação de poder são, em verdade, lutas
travadas contra um sistema de poder sutil que impõe seu saber e seu curso
subjugando aqueles que a história política intitula de pós-colonizados e
legitimando uma nova administração, um novo controle. A saber, por exemplo,
a substância do nome “Suplício”, dentro desse sistema de luta, é a mesma que
constrói a ideia de tradição no jogo da linguagem em João Ribeiro. A tradição
tal qual era almejada pelo Velho se torna um suplício quando da perda final de
seu próprio país em um abismo. Dessa forma, adiantemos o final do filme em
algumas cenas do plano sequência abaixo, e vejamos como se desvela para o
pai de Joaquim o resultado dessa tentativa, dessa luta pela retomada do poder
da tradição e como o Velho Sulplício a explica.

Fig. 01 Fig. 02

Fig. 03 Fig. 04

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A ira dos antepassados e a busca que agora se torna a espera por ser
de novo um país significam que a nação moçambicana, representada por
Tizangara, não consegue dobrar-se sobre si mesmo e compreender o afluir de
vozes diversificadas, as múltiplas narrativas, a presença implícita e simbólica
do homem europeu na nova genealogia da diversidade africana. A força da
invasão europeia criando uma unilateralidade na produção de sentidos, a
subjugação e a alegorização mística da cultura moçambicana gerou um
fechamento e/ou dificuldade de aceitação da diversidade enquanto fator de
uma nova acomodação cultural. Ficar à espera é o mesmo que a tradução de
uma memória que se desdobra na ira desses antepassados. Na realidade, se
seguirmos a visão de Unamuno (1996), esta memória, de um lado é “a base da
personalidade individual, assim como a tradição [o outro] o é da personalidade
coletiva de um povo. Vive-se na recordação e pela recordação” (UNAMUNO,
1996, p. 08).

O Eu (Tizangara) para emancipar-se e libertar-se em sua totalidade deve


reivindicar reivindicar suas identificações, aquilo que existe na cultura
estrangeira e que, mesmo através da luta contra a dominação, contra a
resistência do poder de um outro corpo subjetivo, político e histórico, estará
presente e atuando nesta nova formação cultural. Esta nova formação refere-
se também a um novo corpo identitário que é necessariamente forjado pela
recordação e pelo desejo de habitar a tradição como a única luz – como o é o
símbolo do flamingo – que permitiria o passado tornar-se porvir como
argumenta Miguel de Unamuno (1996). Daí, retornamos à casa onírica
bachelardiana (1990) como refúgio da uma identidade (ou tradição) total, plena,
sem influências externas e internas. Posto isto, nos chocamos novamente com
a ideia de simulacro como tentativa de resistência à globalização e como única
forma de batalha para “amenizar” (se é que se pode!) a influência do
colonizador (ou ex colonizador) das sombras do passado desse “Eu”
autoproclamado como único.

Aquilo que vem a ser o último voo de um flamingo no filme não deve
representar a voz dos antepassados como retomada total da tradição, mas

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uma identidade que na visão do próprio Mia Couto não seria um estado
definitivo e indelével do homem, mas sim um estado plural e transitório que é
feito de trocas dialógicas e vivenciais, no interminável processo de exotopia
bakhtiana (1997), reunindo múltiplas e variadas identidades sempre
fertilizando-se reciprocamente, independente da relação de subordinação de
quem contamina quem com maior extensão. É essa modernidade que
simboliza a luta da narrativa de Mia Couto e a produção fílmica de João Ribeiro
consegue traduzir e resgatar sem que Moçambique desapareça em um abismo
que é um estado insólito de máscaras, porque a identidade moçambicana é
apenas uma construção da memória histórica, política e mística de uma nação.
Consoante Couto,

A tentação mais forte e mais imediata hoje em Moçambique é a de


erguer aquilo que se apresenta como “tradição” para dar credibilidade
a uma certa identidade. Quanto mais perto dessa “tradição” e de uma
certa “oralidade” mais próximos estaríamos dessa tal
moçambicanidade. Mas isso é uma idéia simplista contra a qual vou
lutando. É preciso fazer um bocadinho o caminho com duas pernas:
tem que ter um pé na tradição e outro pé na modernidade. Só assim
se chega a um retrato capaz de respeitar as dinâmicas e as relações
complexas do corpo moçambicano (2005, p. 208).

A reinvenção do humano no filme O último voo do flamingo perpassa


sobre a reinvenção de um tempo que só existe na voz dos antepassados. O
que deve ser pautado nessa ordem do discurso não é a sua origem griot, mas
o seu princípio de especificidade enquanto ressignificação e restituição dos
lugares de poder (FOUCAULT, 2009). O que deve ser pautado, pelo menos
nesse tecido ensaístico, não é a causa da opressão ou da força do poder que
levou ao deslocamento dessa condição identitária, e sim o reflexo desses
novos contornos identitários. Bauman, no livro Identidade (2005), afirma que
quando se perde as âncoras sociais existe uma busca desesperada por um
“nós” que anseia identificar-se com aquele algo de original e natural que não
aceita a diferença como fruto de uma nova construção. O retorno da identidade
agora é fruto de invenção e de um esforço necessário para a proteção do

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“pertencimento” que flutua entre a opressão e a liberdade. Afirma Zygmunt


Bauman:

“identidade” um tema de graves preocupações e agitadas


controvérsias. As pessoas em busca de identidade se veem
invariavelmente diante da tarefa intimidadora de “alcançar o
impossível” [...] Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e
a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos
por toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as
decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a
maneira como age – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento”
quanto para a “identidade” (2005, p.16-17).

Esse esforço de manutenção da “identidade” e do “pertencimento” como


local do “original” sempre será negociável porque é algo que ainda precisa se
construir a partir de alternativas e de luta constantes, é um espaço íntimo e
social, e íntimo do social que multiplica as identidades e mistura as diferenças.
Ana Deusqueira, uma das personagens do romance e do filme, utiliza o corpo
como ferramenta e discurso de contra-poder, e sabe negociar os territórios
identitários no polo entre a opressão e a liberdade. É bem claro em muitas
sequências do discurso fílmico que Ana, em seu estado de consciência
histórico-política, sabe que seu corpo é uma prática que a conduz ao mesmo
tempo para a condição de objeto e instrumento, tanto na ordem do saber,
quando na ordem da verdade e do discurso. Esse instrumento não tem como
fim o reencontro com as raízes, mas para a condução da demarcação de um
território de sobrevivência identitária líquida ou talvez descontínua. É
necessário que possamos verificar parte desses planos cinematográficos no
discurso de Ana Deusqueira.

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Fig. 05 Fig. 06

Fig. 07 Fig. 08

O poder de Ana representa uma luta silenciosa que opera na tentativa


de minguar o poder totalizador, seja ele da administração local do Estevão
Jonas seja ele dos efeitos pós-coloniais, e reorganizá-los para a manutenção
do equilíbrio. A mulher no filme é a personificação de uma luta contra a
coerção, contra o controle, uma reinvindicação e reorganização do poder sem
opor-se diretamente a ele. O investimento político do corpo (FOUCAULT, 1987)
de Ana atua como força de produção e poder cuidadosamente calculado e
organizado. A força do corpo exerce um papel dúbio: serve para punir e para
dar prazer, ao mesmo tempo torna-se dócil e sutilmente explosivo. A posição
de Ana quanto a ser “meretriz por mérito próprio” (ver legenda no plano em
recorte) e dizer que as mulheres são “os verdadeiros engenhos explosivos”
desvela em que medida, no corpo do indivíduo e no corpo social, as relações
entre o poder e o saber se entrecruzam ou se apoiam, movimentando uma
série de estratégias contra a dominação e contra as sujeições. Essa relação de
Ana consigo mesma, a sua soberania sobre si mesma, ainda que regulada pelo
poder de “outro”, tem uma forte relação com o que Foucault afirma, em O uso

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dos Prazeres, à medida que vai problematizando o princípio da temperança


para explicar acerca da verdade e da liberdade:

No entanto, essa liberdade é mais do que uma não-escravidão, mais


do que uma liberação que tornaria o indivíduo independente de
qualquer coerção exterior ou interior; na sua forma plena e positiva
ela é poder que se exerce sobre si, no poder que se exerce sobre os
outros (FOUCAULT, 1984, p. 75).

Em Foucault, poderíamos dizer que a liberdade sempre olhou o poder


em suas minúcias, em suas técnicas e em suas modalidades. Neste caso, a
sexualidade e o corpo de Ana Deusqueira são instrumentos de hipnose e de
poder sobre os espaços invisíveis do sistema, sobre o sujeito ou grupo que lhe
reprime e cobiça. O uso da sua sexualidade está conectado ao pensamento
foucaultiano no momento em que mostrou como a liberdade pode ser
experienciada: tanto na duplicação da problemática política, como no campo do
cuidado ético de si, no campo do sujeito, da hermenêutica de si, no cuidado de
si ao instrumentalizar seu campo da sexualidade com o uso do seu corpo. Fica
claro que para Foucault (1984), o poder não é visto apenas como força de
repressão, de certa forma é analisado não somente como um fenômeno que
estabelece limites mas também um fenômeno mobilizador. Daí, esse poder não
pode ser descrito negativamente, porque à medida que exclui, reprime, recalca,
censura, mascara, também produz. O poder possui uma eficácia produtiva já
que também age sobre a formação do saber, o que amplia o estado de
consciência, pois é certo que para Foucault, não há saber neutro, como não há
relação de poder sem formação de saber.

Essa teoria se aplica até mesmo à conduta da “confissão” de Ana (Fig.


08) ao Major Massimo Risi, garantindo seu status moral ao direito de identidade
na formação da sua autenticidade diante desse “outro”, e lhe conferindo poder
através do discurso da verdade, já que a “confissão da verdade se inscreveu
no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder” (FOUCAULT,
1988, p.58). O contra-poder sexual de Ana Deusqueira é a forma pela qual ela
se reconhece como sujeito empreendendo um poder punitivo, cooptando

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aqueles que tentam barrar a constituição de si mesma em solo pátrio. Daí o


investimento político do corpo transforma o corpo desse sujeito, dessa mulher,
num corpo político que se expande utilizando os artifícios de micro-poderes
para tocar a genealogia e todos os domínios desses corpos sociais.

O estado de consciência alerta de Ana demarca também o estado de


sua construção identitária cambiante e amalgâmica, autêntica no sentido de
estar em todo lugar em que se encontra, restaurando diante das diferenças e
das fronteiras o seu pertencimento. Uma confirmação dessa restauração são
os planos 06-08 em resposta à pergunta de Massimo Rissi: “- A senhora é do
Brasil?”, Ana responde: “- O Brasil é que é meu”. “- Angola, África do sul e,
agora, Moçambique...”, “-Eu sou de toda parte... e vou para qualquer parte.”.
Nesse viés, aceder e agir dentro e com esta multiplicidade de aberturas permite
ao sujeito e ao corpo social destilar-se num processo de exotopia. Essa
abertura é condicionada neste discurso de Ana pela flexibilidade que o cinema
em questão permite, suscitando novas abordagens hermenêuticas dentro do
espaço pós-colonial. Quanto a esse papel do cinema, Deleuze sustenta que

os conceitos do cinema não são dados no cinema. E, no entanto, são


conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema. Tanto assim que
sempre há uma hora, meio-dia ou meia-noite, em que não se deve
mais perguntar ‘o que é o cinema?’ , mas ‘o que é a filosofia?’ (2005,
p. 167).

Ou seja, os conceitos do cinema são sobre o que ele suscita enquanto


mecanismo e enquanto técnica de problematização do mundo. Esse sentido
cinematográfico deleuziano se alia e legitima o processo exotópico bakhtiniano
porque afasta da identidade a ideia de abreviação. A identidade, ainda que
considerada como sedimentada na tradição, carrega em sua constituição o
resultado de elementos externos. A sedimentação também é um processo de
separação de misturas heterogêneas. Neste caso, o processo de
descolonização se justificaria na aceitação de que identidades foram
relacionadas ao corpo tradicional gerando novos espelhos que refletem uma
era, novas sintonias a que podemos chamar de identificação. Sendo assim,

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entendemos que exotopia e identificação no processo da pós-colonização, ou


em qualquer outro processo de coexistência, estão imbricados. Para Bakhtin
exotopia é o desdobramento de olhares através do lugar de fora. Esse lugar
permite que se observe do sujeito algo que o próprio sujeito em sua totalização
anunciada jamais poderia ver. Essa atitude fomenta o espaço do “entremeio”
que é a necessidade de se compartilhar significados em constante grau de
multiplicidade. Nesse ponto, a exotopia bem como a alteridade se aproximam
e, ao mesmo tempo, acontecem como movimentos de aproximação e
distanciamento realizados simultaneamente. Surge aí a promoção da
identificação e “de um modo microscópico, destila-se numa multiplicidade de
práticas anódinas que, de um extremo a outro, fortalecem o corpo social”
(MAFFESOLI, 2010, p. 287).

Esse fortalecimento não é somente do corpo social, mas ocorre primeiro


no corpo subjetivo do sujeito esquizofrênico que tenta, a todo custo, resgatar o
que ela chama de “minha identidade”. Acima de tudo, esse reforço é o que
Maffesoli propõe como identificação e Deleuze e Guattari (1995) como rizoma.
O rizoma é entendido como uma nova concepção da realidade, do
pensamento, da linguagem e que, na nossa problemática em estudo, está
diretamente ligado à noção de que a chamada identidade não tem início nem
fim, e tentar refleti-la a partir de uma raiz é inútil e, ao mesmo instante, uma
ilusão. No tangente ao rizoma, Deleuze contraria o conceito de árvore, porque
a árvore pressupõe ou indica um conjunto de relações fechado, um sistema,
totalizante e hierarquizante. E, se deslocarmos para a questão identitária, ou
melhor, implica dizer que a identidade rizomática é um conjunto de relações
totalmente aberto, heterogêneo e múltiplo. Esse é o princípio da multiplicidade
sugerido por Deleuze em que não existe uma unidade porque “as
multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem
às outras (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 23.25). O Inter-ser não tem filiação,
ou seja, ele não descende, sua gênese é a aliança porque nasce da
multiplicidade, não está preso na raiz, e se concentra na desterritorialização e
no desenraizamento.

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Da mesma forma, o cinema africano aqui, em sua realidade estética,


favorece e alimenta esse processo através da sua função de
redimensionamento e desdobramento do mundo nesse grande caldeirão do
hibridismo identitário. Todo esse processo também resulta não em outro
processo, mas em outra condição terminológica que é a hibridação. Para
Canclini, esses processos variados conduzem à relativização da identidade que
mostra que não podemos tratá-las como “um conjunto de traços fixos, nem
afirmá-las como essência de uma etnia ou de uma nação.” (2007, p. 78). Por
isso, pensar no Pós-colonialismo não é pensar numa configuração temporal do
que vem depois da colonização como resistência, mas como a constituição de
um discurso de negação que tenta romper com as referências que lhe foram
anexadas à “raiz” de sua existência nacional e das existências subjetivas. Essa
negação substantiva o colonialismo como um tempo histórico, político, cultural
e psicológico passado. Ao mesmo tempo, quando o pós-colonial surge, surge
também um componente utópico-revolucionário que tenta deslocar o problema
da identidade para somente o colonizado quando, de fato, atinge, numa via de
mão dupla e de forma oblíqua, ambas as margens: colonizado e colonizador.

Poderíamos ainda considerar ou entender o estado pós-colonial dessa


Moçambique ficcional como um modelo de colonialismo fantasma 271, em que o
"aqui" e "lá", o "então" e "agora", o "em casa" e "no estrangeiro" desvela a
obliquidade dos olhares e identificações que dão o tom substancial da frenética
arritmia nos impulsos vitais em cada nota das nossas circunstâncias, expondo
a conclusão de que não temos natureza e sim história, pulsação,
movimentação. Claro que isto não significa dizer que os envolvidos nesse

271
Devemos entender o termo colonialismo fantasma não como um desfavor a todo processo
histórico, político, social, econômico e cultural pelo qual passou e vem passando todos os
envolvidos nos redemoinhos identitários das pós colônias. Não existe aqui uma tentativa de
furtar o mérito das lutas pós-coloniais. Muito pelo contrário, acreditamos que essa nossa
abordagem é uma outra possibilidade hermenêutica, uma elucidação plausível acerca de todo
esse processo que pode complementar ou ampliar a abordagem pós-colonial. Uma vez que
uma nação, indivíduo ou grupo tenha coexistido com um Outro, sempre estrangeiro, está
fadado a internalizar (mesmo em negação) os fantasmas desses contatos. A resistência só
afirma que o Outro pulsa em frequências diferentes, mas que influências invisíveis sempre
estarão cruzando a nova história. O colonialismo fantasma não fere o princípio de que toda
identidade só se fabrica na história, portanto não implica dizer que, após a independência, os
imperativos coloniais continuam sendo a régua para medir a nova história em seu devir, mas
implica entender que o fantasma, os elementos invisíveis (ou visíveis) do colonialismo ainda
pulsam, ainda reverberam, mesmo sem corpo, na formação dessa nova régua, nesse novo
rizoma.

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processo são apenas sombras. Além disso, devemos pensar o colonialismo


fantasma como metáfora daquilo que existe no devir, não como um
sangramento da história que precisa ser estancado entre o tempo colonial e
pós-colonial. Essa metáfora caminha sem sombras em ambos os lados,
colonizador e colonizado, e envolve todos os processos de fertilização
cruzada 272. Não tem como apagar os contatos, nem os arrebatamentos no
interior dos personagens, espaços e tempos dessa novela ritualística da
identidade cujo capítulo final é uma verdade desauratizada, já nasce sem o
lugar autêntico ou original.

REFERÊNCIAS

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imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução


Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Emsantina


Galvão G. Pereira. São Paulo Martins Fontes, 1997.

BECK, Ulrich. O que é Globalização? equívocos do globalismo: respostas à


globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila ed. al. Belo
Horizonte. Editora UFMG, 1998.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução


Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos


filmes. Tradução: Ryta Vinagre. Rio de janeiro: Rocco, 2012.

CANCLINI, Nestor Garcia. Globalização Imaginada. Tradução de Sergio


Molina. São Paulo: Iluminura, 2007.

272
“A fertilização cruzada das culturas tem sido endêmica a todos os movimentos populacionais
[...] e todos esses movimentos na história tem envolvido viagem, contato, transmutação,
hibridização de ideias, valores e normas comportamentais." (AHMAD apud HALL, 2003, p. 74).

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COUTO, Mia. E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções — São


Paulo : Companhia das Letras, 2011.

COUTO, Mia. Pensatempos – textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005.

DELEUZE, Gilles. Imagem e tempo. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro.


São Paulo: Brasiliense, 2005.

DELEUZE, G.; GUATARRI, F. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia.


Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro: Ed. 34,
1995.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de


Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Tradução


de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber.


Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Tradução de Raquel Ramalhete.


Petrópolis, Editora Vozes, 1987.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Tradução


Adelaine La Guardia Resende, et. all. - Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

RIBEIRO, João. O Ultimo voo do flamingo. Direção: João Ribeiro. Roteiro:


João Ribeiro, Gonçalo Galvão Teles. Produção: Carlo D'Ursi, Antonin Dedet,
Luís Galvão Teles. Distribuidora: Videofilmes. Estúdio: Carlo D'Ursi Produzioni /
Fado Filmes / Neon Productions / Potenza Producciones / Slate One. Duração:
86 minutos. País: Moçambique / Portugal. Produção, 2010.

UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida nos homens e nos


povos. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins fontes, 1996.

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DIÁLOGOS LITERÁRIOS: A PENA É UMA ARMA

CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA (UNINOVE) 273

Muito se discute e se pesquisa acerca do poder transformador da


literatura. Por ela é possível a fruição, a apreciação estética, a reflexão. Não
menos importantes, há aqueles exemplares literários que carregam consigo a
enorme capacidade de refletir sobre a História. Nesse sentido, pretende-se,
neste artigo, a análise de poemas da literatura africana de expressão
portuguesa, que abordem o tema da identidade e da pertença nacional –
inclusive contemplando o problema de distopia, uma vez que alguns dos
autores estudados não são africanos, mas tiveram sua obra de vulto
representativo em países colonizados, cuja língua oficial é a portuguesa.

O recorte analítico desse artigo circunscreve-se a autores filiados pela


naturalidade de nascimento ou pela declaração de pertença a Angola e
Moçambique e tal escolha pretende refletir se essas nações mantiveram – a
partir dos anos sangrentos de luta pela libertação das mãos do colonizador,
sob as quais estiveram subjugadas até o último quartel do século XX – a
possibilidade memorialística e reflexiva de um tempo de sangue e violência e,
ainda, se a pena é uma arma de luta para aqueles que optaram por tornar a
palavra um mecanismo de representação para si e para aqueles cuja voz foi
silenciada.

Angola e Moçambique: versos sobre lutas e resistências

Conhecer a si mesmo obriga a tomar distância daquilo que somos. As


letras angolanas e moçambicanas propiciam descobrir a própria terra, mas de
uma forma avessa, talvez, até querendo desvencilhar-se de uma realidade à
qual não se pode mais retornar. Moçambicanos e angolanos, em um dado
momento da História, reconheceram-se filhos desse pedaço de uma África dita
portuguesa e buscaram, sem sucesso, sua história e suas raízes:

273
Mestranda em Educação pelo programa PPGE/Uninove. Professora do ensino fundamental
II e de formação de leitores. Contato: ccolivei@yahoo.com.br.

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Em 1948, aqueles rapazes, negros, brancos e mestiços, que eram

filhos do país e se tornavam homens, iniciam em Luanda o

movimento cultural “Vamos descobrir Angola!” [...]. Estudar a terra

que lhes fora berço, a terra que eles tanto amavam e tão mal

conheciam. (ERVEDOSA, 1979, p. 81).

O que encontraram foi um mundo mudado, distante das narrativas dos


mais velhos 274. O movimento Vamos descobrir Angola incitava os jovens a

[...] redescobrir Angola em todos os seus aspectos através de um

trabalho coletivo e organizado; exortava a produzir-se para o povo;

solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras,

mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas

válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica

natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à

sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no senso

estético, na inteligência, na vontade e na razão africanas.

(ERVEDOSA, 1979, p. 81-82).

Essa tarefa, no entanto, não era tão simples assim, pois não se tratava
apenas de resgate de uma cultura perdida, mas de uma cultura que sofreu
profundo apagamento, motivo pelo qual o que se fez foi o forjar de uma cultura,
inclusive literária, uma vez que o contexto novo trata de registros escritos em
uma língua imposta pelo colonizador, em detrimento da tradição oral e das
línguas locais. Sobre esse aspecto, a reflexão de T. S. Eliot (1965, p. 64)
acerca do colonizador e o colonizado é muito importante:

A cultura que se desenvolve no novo solo tornava-se, portanto,

surpreendentemente semelhante e diferente da cultura original: era

274
Forma respeitosa e de reverência pela qual são designadas aqueles que são investidos da
guarda das tradições, sobretudo as narrativas orais. Griôts.

1151
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complicada, por vezes, pelas relações que fossem estabelecidas com

uma raça nativa e, ainda mais, pela imigração de outros locais que

não fossem a fonte original. Dessa forma, surgiam tipos especiais de

cultura-simpatia e cultura-conflito entre as áreas habitadas pela

colonização e os países da Europa de onde partiam os migrantes.

A poesia angolana e a moçambicana sobre a qual nos debruçamos está


inserida nesse contexto de literatura-conflito calcada por Eliot.

Iniciada na década de 1960, estendendo-se até 1975, movimentos como


MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), FNLA (Frente Nacional
da Libertação de Angola) e Unita (União Nacional para a Independência Total
de Angola), Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e Resistência
Nacional Moçambicana (Renamo), respectivamente movimentos de Angola e
de Moçambique, reuniram esses jovens pela libertação desses países: muitos,
além das armas, também empunharam a pena, produzindo literatura em
contexto de resistência e guerra. Assim, o projeto literário desses poetas, para
além do valor estético inegável, é perpassado pelos temas da libertação, da
resistência, da violência.

Nesse sentido, Arlindo Barbeitos, Antero Abreu, Ruy Duarte de


Carvalho, Mutimati Barnabé, Reinaldo Ferreira e Armando Guebuza trazem ao
leitor, por meio de seus versos, reflexos de lutas e resistências.

A pena como arma – os poetas e seus poemas

Que guerrilheiro é esse que pega em armas e na pena? Tomemos a


palavra do poeta:

Amanheceu
quem diria
que inda agora hoje era ontem
e que cacos ao longe não iam ser olhos de bicho
quem diria

que patos-bravos mergulhando não eram jacarés


e que lagartos azuis iam a quatro patas

1152
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quem diria
que bosta de elefante não eram pedras
e que guerrilheiros antigos iam pisar a sua mina
quem diria
que o professor cismando não era surdo
e que os alunos não iam falar a sua língua
quem diria
que a moça do Muié
que inda agora era virgem logo já não é
quem diria
que inda hoje era ontem
amanheceu (BARBEITOS, 1976, p. 18),

No poema Amanheceu, de Barbeitos, o amanhã surge como algo que se


torna um milagre porque a situação da guerra é a incerteza: “quem diria/que
inda agora hoje era ontem”, em que o caráter atemporal se faz presente.

A natureza – mãe-terra, que também abriga a luta aos olhos dos bichos
– que, na verdade, são cacos que brilham, estilhaços que ferem e matam; os
jacarés são homens zoomorfizados, à espreita do inimigo; os de fardas azuis,
policiais angolanos partidaristas do colonizador, a deslizar como lagartos,
metáfora para animais apresentada em processo metonímico.

O poema de Barbeitos evoca a tensão entre palavra e imagem, na qual


o poeta coloca o devaneio do guerrilheiro: cansado, com sono, faminto, mas
cada amanhecer se torna um milagre, porque cada anoitecer pode ser o último.

A violência não está somente na natureza, passa também aos naturais,


companheiros que agora também são de luta, cujas vidas são tomadas,
violentadas: “quem diria/que a moça do Muié/que inda agora era virgem logo já
não é”. Nesses versos que se aproximam da oralidade, os abusos sexuais,
práticas comuns nas guerras de guerrilha soam de forma eufêmica, mas
carregam a dor da realidade de violência impingida contra as mulheres
angolanas. Mas ainda assim: “quem diria/que inda hoje era ontem/amanheceu”
e, novamente, o milagre do novo dia. Há um termo e não há.

A vontade latente é transmitida pelo eu lírico: um clamor do povo, que é


a vontade de ser livre, de estar em paz consigo e com o outro e, sobretudo,
com o lugar onde vive, reafirma o processo de criação explicado pelo próprio

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poeta, quando afirma que “[...] não existe continuidade cronológica em meus
versos. A guerra sempre esteve presente” (BARBEITOS, 1976, p. 2).

A certeza da violência e do aviltamento também está presente em Ruy


de Duarte de Carvalho (CARVALHO, 1992, p. 62). Em trecho de poema
subintitulado 4.Ciclo de Fogo, lê-se:

A guerra, ao lado,

ultrajava os pastos

aviltava o gado

humilhava a rama

sã do sentimento.

Misturava humores

de vida e ruína

confundia o sangue

lunar das barrigas

aos sangue das feridas

cuspidas pelo fogo

do aço importado

A guerra, perto, confirmava as rotas

a que apontavam decisões alheias.

(CARVALHO, 1992, p. 62).

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O verso “A guerra, ao lado” marca um movimento de distanciamento do


eu lírico e aproximação de uma cena, como se estivesse assistindo a um filme
inverossímil: está acontecendo, mas parece que não. A apresentação dos
versos, quanto à forma possui recuos e incongruências, que marcam a
confusão do eu lírico entre o que é, de fato, e os paradoxais rumos que tomam
uma guerra, tirando-o de sua ordem. O eu lírico resiste em acreditar que são os
próprios pastos, homens, barrigas e vidas que se misturam ao sangue das
feridas.

A terra é violentada, vilipendiada, transformada em campo de batalha.


Note-se que, a exemplo de Barbeitos, Ruy Duarte de Carvalho também
personifica a terra em uma figura feminina violentada aproximando o poema
das pessoas, dos filhos gerados pela guerra, pois as filhas abusadas são uma
metáfora para se compreender que o estupro também é uma arma, tal como
monstram os versos “(...) Misturava humores/de vida e ruína/confundia o
sangue/lunar das barrigas/aos sangue das feridas.” (CARVALHO, 1992, p. 62).

Como conceber que do ódio da colonização resulte em vida e amor? A


mistura de humores, amores, terrores, de luta que o poeta coloca em seus
versos remete à mesma violência já denunciada por Barbeitos; os filhos dessa
Angola que surgirão da guerra são sangue misturado – no duplo sentido de
morte e mestiçagem – com ódio e violência de que tratam os versos: “cuspidas
pelo fogo/do aço importado”.

É notável o caráter híbrido da formação do povo colonizado e a tensão


que isso gera, obrigando o eu lírico a perceber que a guerra já não está tão
longe. Ela está perto, mas suas decisões, sobretudo sua continuidade, não
implicam a decisão do povo, mas é de outrem: “A guerra, perto, confirmava as
rotas/a que apontavam decisões alheias”, conforme os últimos versos de
Carvalho.

Os versos de Barbeitos e Ruy Duarte apontam para um caminho


inevitável: se há violência, há reação. Se há terra usurpada, há revolta. Por
isso, guerra e poesia se tornam uma matéria só para esses poetas que dão voz
à terra calada pelo sangue, como nos mostra Antero Abreu:

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Aos novos gladiadores

A vós,
à vossa dor,
– como o eco que se prolonga
e se escuta,
eu dou os versos que faço,
como quem dá um abraço,
a vós,
os que sofreis,
os que quereis e não podeis,
os que sonhais e acordais,
– eu dou a minha tristeza
que trago presa.

a vós,
ao vosso sacrifício,
– à vossa morte,
aos vossos passos como um indício,
– eu dou a mão camarada,
e não peço outra mão dada.

a vós,
meus irmãos grandes,
meus irmãos heróis
ofereço quanto posso
– este imaginar de estrelas e de sóis.

e se alguma coisa mais vos for precisa


(o sangue que se adultera,
a vida que se não realiza,
a vontade fraca e mera)
– irmãos, dizei-o já,
que tudo quanto possa se dará. (ABREU, 1975, p. 62)

O eu lírico doa-se aos irmãos em guerra, dá voz àquele que não poderia
registrar sua dor; dá também àquele que precisa de ajuda (a mão), mas que
nada retribuirá, metáfora para uma problemática comum aos países marcados
pelas lutas de libertação, em que muitas pessoas não compreendiam ou não
queriam compreender as razões para lutar.

Dá voz à dor do outro – “A vós/ à vossa dor” – em uma combinação


homofônica, em que o pronome de tratamento pode ser substantivado
(vós/voz), e esse jogo de palavras e sons se completa, ampliando o duplo
sentido que denuncia os efeitos da colonização e das lutas de libertação, se os
versos “o sangue que se adultera/a vida que não se realiza,/a vontade fraca e

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mera” apontam para as violências novamente presentes, apesar de tudo isso, o


que há de preciso é “que tudo quanto possa se dará”

No meio do devaneio de Antero de Abreu, natureza e guerra, beleza e


horror se misturam e se confundem, tal qual o devaneio do guerrilheiro, que já
não sabe se é dia ou noite. Para esse guerrilheiro, Antero de Abreu oferece a
imaginação – estrelas e sóis –, a voz para expressar o que eles não podem; a
mansuetude e, ao mesmo tempo, a ferocidade da poesia.

O eu lírico desse poema, além de dar voz, pede para que aqueles em
sofrimento se manifestem: uma representação do povo angolano na sua
opressão silenciosa de colonizado, de modo que a palavra é arma e direito a
ser exercido para que a vida possa se realizar.

O poema Aos novos gladiadores nos remete a um momento na história


da humanidade cujos heróis aqui representados – os gladiadores –, eram
prisioneiros de guerra que, uma vez subjugados pelos soldados romanos,
tinham a função de distrair as plateias das arenas, em espetáculos com
animais ferozes e famintos. Note-se a analogia do eu lírico: os novos
gladiadores são os angolanos que vão para o front, para a mata descrita por
Barbeitos, lutar pela sua liberdade. A plateia que se deleita são as próprias
nações que viram o descalabro da colonização e as consequentes guerras e
guerrilhas angolana e moçambicana como se fossem filmes, ficções distantes
da realidade. Surge, assim, nas palavras do poeta, o novo herói. Um herói que
merece uma receita.

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se o pendão
E toque-se um clarim
275
Serve-se morto. (FERREIRA, Poemas, 1960)

275
Receita para se fazer um herói foi o nome dado ao poema tornado canção, que fez enorme
sucesso, pelo grupo Ira!, em 1988, no álbum Psicoacústica. À época não foram dados os

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No poema do português Reinaldo Ferreira (FERREIRA, 1960, p. 6), cuja


obra poética foi escrita integralmente em Moçambique, encontramos a receita.
A certeza aguda de que qualquer um que sofresse as violências já ditas pelos
três poetas anteriores forjaria um homem cheio de ódio.

A luta é de todos. Os gladiadores entram na arena com a absoluta


certeza de que a morte é iminente, assim como o homem tomado pela vontade
de libertação não se importa se a ordem é matar ou morrer. “Serve-se morto”,
porque é a forma mais recorrente dessa luta; a reificação presente no verso dá
a certeza de que, na frente de batalha, haverá baixas e que elas são
necessárias para a liberdade. E assim é o herói. Ainda que o poeta nos choque
com um eu lírico objetivo e trágico, não deixa de enfocar, também com
objetividade, o terror da guerra.

O resultado de viver a guerra é a cultura-conflito tratada por Eliot, pois


quando retornam à pena, os poetas do front tem o seu fazer poético mesclado
ao engajamento da batalha. Essa alternância se deu para muitos escritores
angolanos e moçambicanos, outorgando-lhes o direito de escrever sobre o
front. E se a morte é presente, o herói não cabe na terra, como dito neste
trecho do poema Dia 7:

(...) É assim mesmo


Quando alguém cresce até o tamanho do Povo
Fica por enterrar porque é muito grande
O Herói não tem sepultura (...). (JOÃO, 2008, p. 33)

Nesse trecho de Mutimati Barnabé João– pseudônimo de António


Quadros –, aproximamo-nos do herói do poema de Reinaldo Ferreira pelo viés
mais otimista da guerra: a certeza de que o herói permanece vivo na memória
coletiva e histórica desse povo: hiperbolicamente, ele fica do tamanho da
própria terra, ou seja, torna-se parte dela. Esse sacrifício também o aproxima
dos gladiadores de Antero de Abreu. O herói é maior que a terra, misturando-
se a ela, e essa é uma boa mistura: do filho que morre pela terra, a ela
retornando, e pela sua libertação em busca da independência. A imagem

devidos créditos ao poeta Reinaldo Ferreira. Segundo explicações do guitarrista da banda,


Edgard Scandurra, que estava servindo o Exército, um colega soldado chamado Esteves
mostrou-lhe o poema, dizendo que tinha sido escrito por ele. Após o lançamento do disco
descobriu-se que, na verdade, tratava-se de um poema de Reinaldo Ferreira.

1158
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poética dá a certeza da beleza de se morrer pela libertação que perfuma a


terra, motivo de orgulho e felicidade, não de pranto. O insepultamento não é
uma desonra, mas uma forma de transmitir, pelo exemplo, perfume, coragem e
irmandade da razão da luta.:

No dia 7
Morreu a camarada que vai ficar insepulta
Que vai tornar o ar perfumado e está morta
Que vai dar flor de coragem e está morta
Que era da família nossa e ninguém vai chorar (...).(JOÃO, 2008, p.
33).

Dia 7 faz referência aos Acordos de Lusaka, assinados entre Portugal e


a Frelimo, em 07 de setembro de 1974; nesse acordo, previa-se a data para a
independência de Moçambique; no entanto, o que houve foi uma declaração de
guerra civil, uma vez que houve desacordo com a tomada de poder pela
Frelimo.

Nota-se a semelhança do poema de Antero Abreu com o de Mutimati,


pois é honroso morrer em nome da terra e da independência. Inegável que tais
poemas são parte da própria História dessas nações, cada um na defesa de
um posicionamento político e representativo das suas tensões internas.

O herói de Mutimati é universal, além do feminino também simbolizar a


mãe-terra – trata-se de “uma camarada” –, ao passo que o herói de Reinaldo
Ferreira está morto movido pela barbarização e banalidade da guerra. Dito de
outro modo, ambos são heróis e sua aproximação indica que a visão da guerra
nem sempre é glorificada pela poesia, mas as razões que levaram os homens
e mulheres a morreram por ela o são. Ora o eu-lírico do poema exalta essa
condição, ora contesta a razão, e se há razão para se forjar o herói. Esse
posicionamento indefinido apresenta-se do próprio paroxismo dos conflitos
armados e das condições de seus escritores, homens de letras e de armas. Se
para uns a guerra é um motivo laudatório, para tantos outros será de perda,
como fica claro em Reinaldo Ferreira: qualquer um de nós pode ser um herói,
pois a luta é coletiva.

Armando Guebuza (1970, p. 286), no poema Se me perguntares, destoa


da voz dada por Antero Abreu. Para Guebuza, as palavras são desnecessárias,

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pois os fatos falam por si só, bastando olhar para a guerra para vê-la, porém
não de longe, como fez Ruy Duarte. Em Guebuza, no poema Se me
perguntares, a guerra é vista na plenitude de seus horrores:

Se me perguntares
Quem sou eu
Cavada de bexiga de maldade
Com um sorriso sinistro
Nada te direi
Nada te direi
Mostrar-te-ei as cicatrizes de séculos
Que sulcam as minhas costas negras
Olhar-te-ei com olhos de ódio
Vermelhos de sangue vertido durante séculos
Mostrar-te-ei minha palhota de capim
A cair sem reparação
Levar-te-ei às plantações
Onde sol a sol
Me encontro dobrado sobre o solo
Enquanto trabalho árduo
Mastiga meu tempo
Levar-te-ei aos campos cheios de gente
Onde gente respira miséria em toda a hora
Nada te direi
Mostrar-te-ei somente isto
E depois
Mostrar-te-ei os corpos do meu Povo
Tombados por metralhadoras traiçoeiras,
Palhotas queimadas por gente tua
Nada te direi
E saberá porque luto. (GUEBUZA, 1970, p. 286),

Neste poema, as imagens são objetivas. Há dor, destruição e uma


mensagem clara ao colonizador: ainda assim, luta-se. O homem é tomado pelo
negativo, lembrando-nos a receita de Reinaldo Ferreira, porque se apresenta
com “cavada de bexigas de maldade/com sinistro sorriso”, como se estivesse
cheio de uma “certeza aguda”. É o limiar do envenenamento pelo próprio ódio.

Nesse sentido, a poesia cumpre o papel de convidar o leitor a visitar os


campos em que o embate ocorreu sem riscos de ferimentos, mas com a
certeza de que a experiência, se bem conduzida, não tem volta: levará o leitor
a conhecer mais que poesia porque conduzirá à História. Conhecendo a
História, o leitor pode iniciar um processo de entendimento acerca das razões
das diferenças, do racismo, da violência e, em olhar mais aprofundado,

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perceber que as razões para a hierarquia das classes dominantes vão muito
além de um problema de cor.

Concluindo...

Arlindo Barbeitos, Antero Abreu, Ruy Duarte de Carvalho, Mutimati


Barnabé, Reinaldo Ferreira e Armando Guebuza são alguns exemplos de
autores que podem propiciar o estudo de signos da “periferia para o centro da
história literária” (CHAVES, 2003). Percebe-se que há um projeto literário que
privilegia a reflexão, ampliando o debate sobre as múltiplas violências
impingidas ao colonizado angolano e moçambicano.

As lutas pela libertação de Angola e Moçambique são retratadas de


maneira subjetiva nos poemas analisados, em que há a latência da esperança
e do exemplo, o que nos faz refletir sobre a herança colonial brasileira, que
também permeia os nossos processos multiculturais de que somos tributários,
remetendo ao pensamento de Benjamim Abdala Júnior, pois é preciso buscar
um sonho libertário – utopia de cunho ideológico, no sentido de gerar um
conjunto de ideias-força – que está intrinsecamente ligado a um grupo social.

Esse exercício do comparatismo literário nos remete ao que propicia a


Lei n.º 10.639, de 2003, que determina o ensino de História e cultura afro-
brasileira, pelos educadores brasileiros, pois, como nos explica Fanon, o
colonizado precisa descolonizar a própria mente para conseguir iniciar a sua
libertação. (FANON, 1979). Dessa forma, fruir a poesia de maneira reflexiva é
também aprender com o outro.

A reflexão específica sobre o fazer educativo lembra que “[...]


educadores críticos devem guerrear pelo interesse sagrado da vida humana,
pela dignidade coletiva dos desfavorecidos do mundo e pelo direito de viver em
paz e harmonia” (MCLAREN, 2000, p. 23). Especificamente, no que se refere
ao ensino de literatura, como visto nos poemas analisados, pode-se tomar o
caminho da educação libertadora defendida por Paulo Freire, no sentido de que
cada homem e cada mulher se compreendam como “[...] seres fazedores da
História e por ela feitos, seres de decisão de ruptura, da opção [...]” (FREIRE,
1996, p. 129).

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Para a educação e os educadores imbuídos do necessário fazer


libertador, a literatura possibilita a reflexão, para a tomada de decisão, para a
consciência e reconhecimento de si mesmo, ainda que por meio da experiência
do outro, pois, forçosamente, uma leitura do mundo angolano e moçambicano,
que a princípio soa distante, quando problematizada conduz à percepção das
inevitáveis semelhanças, encaminhando o leitor para o exercício do
comparatismo. Nas palavras de Paulo Freire

[...] para a sua união [dos oprimidos] é imprescindível uma forma de


ação cultural através da qual conheçam o porquê e o como de sua
“aderência” à realidade que lhes dá um conhecimento falso de si
mesmos e dela [da opressão]. É necessário desideologizar. (FREIRE,
1987, p. 172).

Ora, ainda que pareçam paradoxais as ideias de Abdala Júnior e Freire,


a proposição que se faz é justamente no sentido de uma prática cultural sólida
que possa “desideologizar” a opressão de que trata Freire, a ponto daquele que
está exposto à literatura possa compreender que as fronteiras geográficas ou
linguísticas que separam povos são inexistentes quando se trata de cultura,
sendo a cultura a produção que pode refletir o próprio povo, o momento
histórico ou expressar a relação do autor com o tempo vivido. Pode a literatura
proporcionar essa revisitação histórica, seguida da tomada de consciência de
si, por meio do outro.

Assim, espera-se que, através de exercícios de reflexão, de


sensibilização pela beleza, pela palavra, por suas imagens e sonoridades, a
literatura possa fazer alçar voos de liberdade àquele que a frui. Há que se
compreender que o problema da colonialidade vai muito além das cores, das
línguas. Nesse sentido, saber também é poder.

REFERÊNCIAS
ABDALA JÚNIOR, Benjamin. Necessidade e Solidariedade nos Estudos de
Literatura Comparada. In: ______. De Vôos e Ilhas: literatura e
comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. P. 65-76.

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ABREU, Antero de. Aos novos gladiadores. In: ______. MEA, Giuseppe
(Org. ) Poesia angolana de revolta: antologia. Porto: Paisagem, 1975. - p. 51-
52
BARBEITOS, Arlindo. Angola Angolê Angolema. Luanda: União dos
Escritores Angolanos, 1976.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Memória de Tanta Guerra. Lisboa: Vega, 1992.
(Palavra Africana).
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique nos anos 60: a periferia no centro do
território poético. In: ______; MACEDO, Tânia (Org.). Literaturas em
Movimento: hibridismo cultural e exercício crítico. São Paulo: Arte & Ciência,
2003. (Via Atlântica, n. 5). P. 205-221.

ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. Rio de Janeiro: Zahar,


1965.

ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da Literatura Angolana. Luanda: União dos


Escritores Angolanos, 1979. (Estudos).
FANON, Franz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.

FERREIRA, Reinaldo. Poemas. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de


Moçambique, 1960.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.


_______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GUEBUZA, Armando. Se me perguntares. In: ANDRADE, Mário de. Literatura
africana de expressão portuguesa. v. 1: poesia. Lendeln: Kraus Reprint,
1970. p. 286.

JOÃO, Mutimati Barnabé (António Quadros). Eu, O Povo. Lisboa: Biblioteca


Editores Independentes, 2008.
MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Revolucionário: pedagogia do dissenso
para o novo milênio. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

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ENTRE PISTAS E XIPOCOS: A VARANDA DO FRANGIPANI DE MIA


COUTO (A DENÚNCIA DE UM PASSADO)

REGINA MARGARET PEREIRA (USP)*

Tecendo leituras...

Na obra As estruturas narrativas 276, tratando das tipologias existentes do


romance policial, Todorov faz uma explanação sobre o de enigma, o romance
policial clássico, e ressalta as suas principais peculiaridades.

Há algumas regras definidas por S. S. Van Dine (pseudônimo de Willard


Huntington Wright) para a criação do que seria um bom romance policial, elas
serviram de base para muitos romances desse gênero produzidos. Tais regras
foram resumidas e apresentadas por Todorov. São elas:

1. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no


mínimo uma vítima (um cadáver).
2. O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o
detetive; deve matar por razões pessoais.
3. O amor não tem lugar no romance policial.
4. O culpado deve gozar de certa importância:
a) na vida: não ser um empregado ou uma camareira;
b) no livro: ser uma das personagens principais.
5. Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido.
6. Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas.
7. É preciso evitar as situações e as soluções banais (Van Dine
enumera dez delas, as quais aqui não se fazem relevantes).

Expostas as regras, é possível perceber que um dos fatores essenciais


para a criação do romance policial clássico seja a racionalidade. Esta é,
portanto, exacerbada no romance de enigma. O desvendar do crime se firma
em, principalmente, dois fatores: a razão, o pensamento racional, o qual é
baseado em pistas concretas e em um raciocínio praticamente matemático; e o
detetive, o qual conduz, com seus aguçados raciocínios, esse desvendar do
assassinato. É possível perceber também que os pilares do romance de
enigma se concentram em: um crime misterioso, um detetive, a investigação e
a existência de um criminoso.

276
TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do Romance Policial”, in: As Estruturas Narrativas.São Paulo:
Perspectiva, 2008.

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Associado ao entretenimento e à cultura de massa, o romance policial


clássico não apresenta grandes reflexões, mas o passo a passo da
investigação de um crime, passo a passo este que culmina, obviamente, na
resolução desse crime. A polícia (o detetive), como o parelho repressivo da
sociedade, e a racionalidade são os grandes vitoriosos da narrativa policial
clássica. Segundo Ernest Mandel277:

O romance policial é o império do final feliz – onde o


criminoso é sempre apanhado, a justiça é sempre feita, o crime
não compensa e no final a legalidade, os valores, a sociedade
burguesa sempre triunfam. É uma literatura reconfortante,
socialmente integrante, apesar da preocupação com o crime, a
violência e o assassinato. (MANDEL, 1988, p. 80)

Mandel também mostrou que, para satisfazer os interesses da burguesia


(que não enxergava razão para elogiar as habilidades dedutivas e a inteligência
de integrantes da baixa classe média e do alto proletariado inglês), o detetive
deveria fazer parte da alta classe.

O romance aqui analisado apresenta alguns aspectos próximos do


romance policial clássico. Porém, muitos de seus aspectos e muito de sua
estrutura, em alguma medida, subvertem os padrões descritos anteriormente.
Mais do que subverter, A varanda do frangipani parece reiventar esse tipo de
romance à medida que nele estão inseridos alguns aspectos ligados às
manifestações culturais presentes em solo moçambicano. Tal reinvenção, de
acordo com o que se pode perceber através da leitura dessa obra de Mia
Couto, dá-se a fim de iluminar uma questão que permeia toda a narrativa: o
esquecimento de um passado e de uma tradição relacionada a ele. Essa
recriação também ilumina uma outra forma de existir no mundo, forma esta
próxima das tradições locais moçambicanas.

Pensamos, para o presente artigo, na questão do sagrado como parte


inerente dessas tradições locais, já que aspectos desse sagrado possuem
destaque ao longo do romance. Os mitos que embasam o conhecimento de
mundo do homem tradicional nas muitas Áfricas existentes, incluindo
Moçambique, possuem em si um caráter sagrado, pois, como bem mostrou

277
MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: História Social do Romance Policial. São Paulo: Busca
Vida, 1988.

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Mircea Eliade em sua obra O Sagrado e o Profano 278, remontam ao tempo da


criação do mundo e de tudo que o integra, desde a origem do próprio cosmos
até a criação de técnicas de caça e/ou agricultura, por exemplo. Ao recriar
alguns mitos e crenças, como ocorre com o próprio halakavuma de A varanda
do frangipani, Mia Couto reconfigura aspectos da oralidade no âmbito literário
e, assim, traz para o primeiro plano alguns aspectos culturais.

Como exemplos dessa reinvenção do romance policial clássico, o de Mia


Couto tece, na recriação dos elementos narrador e pistas, uma visão de mundo
diversa da eurocêntrica imposta no processo de colonização. O inspetor
Izidine Naíta é um outro exemplo dessa reinvenção à medida que insere na
narrativa uma figura social própria do processo histórico pelo qual passou
Moçambique. Ele é um assimilado que estudou na Europa e serve, no tempo
da narrativa, aos interesses dos dirigentes moçambicanos. Ele faz parte do
aparelho punitivo de seu país e tal condição o afasta das tradições locais de
sua terra, fato que o apresenta sempre como uma figura deslocada entre os
anciãos da Fortaleza por ter se separado da forma de existência tradicional.
Izidine é fruto de um processo que o tornou, como afirma a enfermeira Marta
Gimo, parte das “gentes sem história”, as gentes que “vivem por imitação”.

Nesse contexto, já é possível entrever uma reinvenção dos moldes do


detetive tradicional: a figura-símbolo da razão e da perspicácia não tem lugar
na Fortaleza, onde nada é explicado sob a perspectiva da razão ocidental. O
inspetor chega ao local a ser investigado com um plano de trabalho, mas seus
intentos fracassam; no asilo, ele não possui a autonomia do detetive clássico,
tal autonomia é suplantada pela dinâmica da vida na Fortaleza, baseada nos
relatos dos velhos do asilo.

Uma outra maneira de desorganizar a racionalidade eurocêntrica na


narrativa de A varanda do frangipani se dá com a figura do narrador Ermelindo
Mucanga. Geralmente, o narrador do romance policial clássico é configurado
como um amigo íntimo do detetive, esse amigo reconhece estar escrevendo
um livro. No romance de Mia Couto, o narrador é um xipoco, um fantasma que
não teve os ritos de passagem tradicionais e por isso não passou para o estado

278
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano (a essência do sagrado). São Paulo: Martins Fontes, 1996.

1166
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de ancestral venerável, Ermelindo é um morto “desencontrado de sua morte”,


como ele mesmo se descreve. A condição de xipoco do narrador lhe confere
um alto grau de onisciência. Ele está em uma zona intermediária, localizada
entre o mundo dos vivos e o mundo dos ancestrais (os mortos veneráveis),
também é uma das personagens fronteiriças recorrentes nos romances e
contos coutianos.

Próximo ao narrador vive o halakavuma, ou pangolim, uma espécie de


tamanduá africano que, de acordo com as crenças tradicionais, mora nos céus
e desce para a Terra a fim de se comunicar com os chefes tradicionais,
transmitindo-lhes notícias sobre o futuro, é um animal sagrado na concepção
de mundo das crenças locais. Esse pangolim é um conselheiro do narrador e
também possui onisciência, além de carregar a capacidade de previsão do
futuro.

Logo no início do romance, o leitor fica sabendo da possibilidade de


morte do inspetor que chegará na fortaleza. Essa informação só é transmitida
em razão da capacidade premonitória do halakavuma e é esta capacidade,
junto com outras ligadas ao sobrenatural componente das visões de mundo
locais de Moçambique, que orienta as personagens e a narrativa desse
romance. Ao contrário do que ocorre no romance policial clássico, em A
varanda do frangipani, são os aspectos do mundo transcendental que se
apresentam para orientar as personagens e também o leitor.

Esse animal possui relevância na narrativa e tal importância já se mostra


como um fator desconstrutor da razão nos moldes europeus; o tamanduá
africano, mensageiro entre as forças celestiais e os homens, configura-se
também como uma axis mundi da narrativa aqui estudada, ele orienta o espírito
de Ermelindo Mucanga em seu mundo paralelo e o inspetor Izidine Naíta em
seu processo de redescoberta desse mundo tradicional com o qual se depara.
As pistas, elementos tão essenciais na estrutura do romance policial clássico,
são recriadas no romance de Mia Couto: elas são concretas, são cascas do
pangolim (o halakavuma), mas apontam para o universo das crenças, para o
transcendente e para o mundo das culturas locais. Essas cascas se

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apresentam para o inspetor sempre de forma misteriosa em diversos


momentos da narrativa.

A primeira aparição da casca se dá no segundo capítulo (“Estreia nos


viventes”), quando o detetive se instala em um dos quartos do asilo, em sua
primeira noite:

O polícia entrou no quarto, já sem luminosidade.


Acendeu a vela e retirou as coisas do saco. No chão tombou
uma pequena lata. Apanhou o objeto: não era uma lata. Seria
um pedaço de madeira? Parecia, antes, uma casca de
tartaruga. Izidine se intrigava: como saiu aquilo do saco de
viagem? Rodou a casca entre os dedos e deitou-a pela janela
fora. Depois, voltou a sair. (COUTO, 2007, p. 23)

A segunda aparição acontece no quarto capítulo (“Segundo dia nos


viventes”), que narra o segundo dia do detetive na fortaleza:

Izidine voltou a acordar umas horas depois. Antes de


sair ficou a olhar a roupa desarrumada sobre uma velha mesa.
Será que deixara assim tão espalhada? De repente, junto ao
chapéu, viu a mesma casca que deitara fora na noite anterior.
Levantou-se e recolheu-a. Guardou-a num dos bolsos do
casaco. Depois, deu andamento a um plano que traçara
previamente: descer à praia para calcorrear as grandes rochas,
mesmo junto à rebentação. Tinha sido ali que encontraram o
corpo. (COUTO, 2007, p. 39)

A terceira aparição da casca-símbolo do sagrado se dá mais adiante, no


décimo capítulo (“Quinto dia nos vivente”), em que os velhos simulam um ritual
de iniciação para Izidine. O inspetor concorda com o “ritual” para que possa ser
aceito entre anciãos e, assim, ter mais informações relacionadas à morte de
Vasto Excelêncio. Nesse capítulo, os velhos zombam da ignorância de Izidine
com relação à tradição e aos costumes e o vestem de mulher. O inspetor aceita
o “rito” de passagem para uma vida em idade mais avançada, conforme
impõem os velhos, sem questionar. Quando percebe que tudo não passou de
zombaria, o policial encontra mais uma vez a casca do pangolim:

Um volume no vestido chamou a atenção do inspetor.


Retirou o chumaçudo objeto: era uma outra escama. Mostrou-a
à enfermeira.

— Sabe o que é isso?

— Isso, caro inspetor...

— Me chame de Izidine.

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— Isto, Izidine, é uma escama de pangolim, o


halakavuma...

— Ah, já sei. Esse que desce das nuvens para


anunciar notícias do futuro?

— Afinal, você não esqueceu a tradição. Vamos ver se


esqueceu outras coisas... (COUTO, 2007, p. 96)

A última aparição da escama está no penúltimo capítulo do romance


(“Revelação”), em que a enfermeira Marta Gimo faz seu depoimento. Quem
mostra a casca ao inspetor, dessa vez, é Nãozinha, a feiticeira:

— O que se passa?

Mourão fez um gesto com a mão, sugerindo que ele se


calasse. A feiticeira se ergueu. Estava vestida a rigor de
cerimônia. Afinal, era isso? O inspetor constatava estar em
pleno ritual de adivinhação. Nãozinha se dirigiu para ele e fez
escorregar qualquer coisa entre as suas mãos.

— É a última.

Izidine olhou: era mais uma escama de pangolim. A


feiticeira ordenou que se sentasse. Balançou-se diante dele,
olhos cerrados. Depois de um tempo disse:

— O halakavuma é que devia aparecer, descido lá do


céu.

Nos dias de hoje, porém, o bicho já não sabe falar a


língua dos homens. Nãozinha se lamentava: quem nos mandou
afastar das tradições? Agora, perdemos os laços com os
celestiais mensageiros. Restavam as escamas que o
halakavuma deixara escapar da última vez que tombara.
Aquelas eram as últimas réstias do pangolim, os derradeiros
artifícios dos aléns. Em cada noite, uma dessas escamas tinha
trabalhado a alma do inspetor. Agora ele era chamado a
prostrar-se no chão, bem ali ao dispor das mãos feiticeiras.
Nãozinha espalhou nele as cascas do pangolim: sobre os
olhos, a boca, ao lado dos ouvidos, nas mãos. Izidine ficou
imóvel, escutando as revelações que se seguiram. Os relatos
se misturavam, os velhos falavam como se tudo estivesse
ensaiado. Nãozinha atropelava sílabas em saliva. (COUTO,
2007, p.133 e 134)

Todas essas aparições se desenrolam como espécies de ecos desse


universo sagrado afirmando sua existência, embora fragilizada em um mundo
onde as relações exaltadas são as baseadas nos valores de mercado, no
cientificismo que despreza toda e qualquer lógica que não se encaixe na
ciência empírica e não a legitime. As “pistas” levam tanto o leitor quanto o
personagem à descoberta de uma outra visão de mundo. Com os
aparecimentos das cascas, percebe-se o gradativo retorno do inspetor ao

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universo das tradições, ao seu chão, portanto, e ententenda-se por “chão” toda
uma dinâmica que engloba aspectos culturais, sociais e religiosos. No primeiro
aparecimento, Izidine ignora a pista e a joga fora; no segundo, já não a
despreza; no terceiro, após a simulação de um rito iniciático, ele se recorda da
crença tradicional ligada ao pangolim, mais um passo nesse retorno; no quarto
aparecimento, a volta aos valores de sua terra é legitimada com o ritual, já
sério, operado pela feiticeira, que espalha as escamas do animal-símbolo do
Sagrado e das tradições nele imbricadas pelos principais pontos ligados aos
sentidos do ser humano: olhos (visão), boca (paladar), ouvidos (audição) e mão
(tato).

Assim, Izidine, sem apresentar resistência, retorna a um mundo que


outrora estava esquecido; dessa forma, os valores tradicionais penetram em
sua alma. O detetive, a partir desse momento, passa a ser gente com história,
com chão, ele redescobre de onde vem, retorna ao seu caldo de cultura. Em
discurso indireto livre e em discurso direto, a feiticeira apresenta uma crítica ao
distanciamento dos moçambicanos em relação a essa lógica tradicional, cujas
consequências só podem ser o desequilíbrio e o vazio causado pela ausência
de um sentimento de pertença, isto é, a falta de uma história própria, com a
qual haja de fato identificação. Assim, portanto, são perdidos inclusive os laços
com as forças celestiais que outrora davam sentido ao homem.

Em toda a travessia de redescoberta, a lógica trazida pelo inspetor é


criticada quando apresenta prepotência, o que também se caracteriza como
parte do movimento de subversão e reinvenção do romance policial clássico,
no qual se dá o império da razão europeizante e burguesa. Tal movimento
engendra uma outra lógica que não enxerga no mistério e no insólito um
entrave, mas os vê e vivencia com naturalidade, mostrando a falibilidade da
razão, pois ela não é capaz de explicar tudo, não nesse mundo recriado no
romance a partir da perspectiva endógena. Diferentemente do que ocorre no
romance policial clássico, na narrativa aqui estudada, a razão eurocêntrica é
questionada e em alguma medida suplantada por uma perspectiva sacralizada.
Com toda essa recriação de uma forma literária importada, isto é, o romance
policial, Mia Couto propõe um olhar sobre essa perspectiva, valorizando-a e ao
mesmo tempo criticando o desrespeito sofrido por ela.

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“A terra, a árvore, o céu: é na margem desses mundos


que tento a ilusão de uma costura. É uma escrita que aspira
ganhar sotaques do chão, fazer-se seiva vegetal e, de quando
em quando, sonhar o vôo da asa rubra. É uma resposta pouca
perante os fazedores de guerra e construtores de miséria. Mas
é aquela que sei e posso, aquela em que apostei a minha vida
e o meu tempo de viver.”

Mia Couto

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras,


2007.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano (a essência do sagrado). São Paulo:


Martins Fontes, 1996.

MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: História Social do Romance Policial. São


Paulo: Busca Vida, 1988.

TODOROV, Tzvetan. “Tipologia do Romance Policial”, in: As Estruturas


Narrativas.São Paulo: Perspectiva, 2008.

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LITERATURA COMO POLÍTICA CULTURAL:


UMA PERSPECTIVA NEOPRAGMÁTICA

KLEYSON ROSÁRIO ASSIS (UFRB)

Literatura e filosofia

Ao intitular este texto de Literatura como Política Cultural, não fiz outra
coisa senão parafrasear o título do livro do filósofo norte-americano Richard
Rorty: Filosofia como Política Cultural. Uma sugestão que, talvez, não o
desagradasse, mas que, possivelmente, se ele assim o tivesse feito, não
alcançasse o público desejado. Inegavelmente, o papel que Rorty atribui à
filosofia a aproxima muito mais da literatura do que da ciência, como quer parte
da tradição filosófica – colocando a ciência, inclusive, como uma de suas filhas
(feita à sua “imagem e semelhança” e que lhe deve o respeito e a gratidão que
um filho deve ao pai). De minha parte, penso ser bastante convincente a tese
de Giorgio Colli, referindo-se ao nascimento da filosofia e do que ficou na
tradição ocidental entendido como filosofia, de que ela é um novo gênero
literário, inaugurado por Platão. Ou alguém duvida de que os diálogos
socráticos possam ser lidos como belíssimas obras literárias?

Feito esse prelúdio, justifico a ausência nesta fala de uma análise


específica de uma determinada obra literária, como se, remetendo-me a obras
filosóficas, estivesse me desviando dos propósitos dessa mesa que é discutir a
relação entre filosofia, literatura e políticas culturais e identitárias pós-coloniais.
Desde a perspectiva que estou adotando aqui, ao falar de filosofia e literatura,
estamos a falar de uma mesma coisa. A distinção ou não entre as duas está
ligada aos nossos propósitos. Para os propósitos do presente artigo, ao
pensarmos a filosofia como um gênero literário, queremos discutir como a
literatura pode ser uma questão de política cultural. Mas também é apontar
como determinadas obras tidas como estritamente literárias podem cumprir um
papel tradicionalmente atribuído à filosofia. E mais: que a literatura pode ser
mais bem sucedida em ensinar disciplinas clássicas da filosofia, como a ética,

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do que a própria filosofia. Porém, antes disso, precisamos esclarecer aqui o


que entendemos por política cultural.

Política Cultural – do que não é

Uma das primeiras dificuldades levantada pelo título deste trabalho é quanto ao
conceito de política cultural, pois o termo se presta a usos distintos de acordo
com o contexto. Uma das formas de compreender o conceito de política cultural
é oferecida por Teixeira Coelho no “Dicionário crítico de política cultural”. Eis:

Constituindo (...) uma ciência da organização das estruturas


culturais, a política cultural é entendida habitualmente como
programa de intervenções realizadas pelo Estado, entidades
privadas ou grupos comunitários com o objetivo de satisfazer
as necessidades culturais da população e promover o
desenvolvimento de suas representações simbólicas. Sob este
entendimento imediato, a política cultural apresenta-se assim
como o conjunto de iniciativas, tomadas por esses agentes,
visando promover a produção, distribuição e o uso da cultura, a
preservação e a divulgação do patrimônio histórico e o
ordenamento do aparelho burocrático por elas responsável
(COELHO, 1997, p. 293).

Embora tenha ressalvas quanto a essa conceptualização de política cultural,


não me deterei nela pelo simples motivo de que aqui o termo é compreendido
de maneira absolutamente distinta. Para explicitar o sentido de política cultural
neste trabalho, farei um breve passeio pela corrente filosófica utilizada aqui
como aporte para esta reflexão: o neopragmatismo. Ao final, retornarei à
questão da política cultural.

Realismo, antirrealismo e neopragmatismo

Diz-nos Rorty que historicamente a filosofia, sobretudo no campo


epistemológico, caiu no seu próprio engodo – a crença de que existe uma
realidade que nossa mente ou linguagem é capaz de representá-la. Essa ideia
é criticada por Rorty com uma metáfora acerca da pretensão da filosofia, a de
“espelhar a natureza”:

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A imagem que mantêm cativa a filosofia tradicional é a da


mente como a de um grande espelho, contendo variadas
representações – algumas exatas, outras não – e capaz de ser
estudada por métodos puros, não empíricos. Sem a noção da
mente como espelho, a noção de conhecimento como exatidão
de representação não se teria sugerido. (RORTY,1994, p. 27)

Nesse sentido, tanto realistas quanto antirrealistas estariam envoltos na


mesma névoa, ou presos aos mesmos grilhões, de uma disputa infrutífera que
considera o conhecimento do mundo em termos de melhor ou pior
representado, ou ainda em torno da origem de nossas representações. No
contexto da contemporaneidade, o debate realismo/antirrealismo busca
oferecer provas acerca de se há ou não conformidade entre determinadas
teorias e o mundo, “se as asserções de física podem corresponder aos ‘fatos
da questão’, ou se as asserções da matemática e da ética têm também essa
possibilidade” (RORTY, 2002, pp.14-15). De uma maneira geral, esses filósofos
são denominados por Rorty representacionalistas. Para estes, é importante
pensar o conhecimento em termos de uma representação na mente ou na
linguagem. Rorty situa a si mesmo na corrente dos antirrepresentacionalistas,
filósofos que não consideram importante a discussão do realismo, que
entendem a ideia de representação como simplesmente estéril na
contemporaneidade. Sendo assim, o problema localiza-se precisamente na
ideia de representação, comum a realistas e antirrealistas.

As proposições representacionalistas serão consideradas verdadeiras se os


fatos do mundo, itens não-linguísticos, as fizerem verdadeiras ao serem
confrontados. Ou seja, o sentido de verdade de uma proposição consiste em
apreender aquilo que seu correspondente estado de coisas é em si mesmo, de
modo a poder representá-lo. Antirrepresentacionalistas como Rorty estão
dispostos a abandonar todos os conceitos que envolvam a pressuposição de
que podemos compreender “o que significa a determinidade da realidade”
(RORTY, 2002, p. 19) e, consequentemente, representá-la. Por outro lado,
representacionalistas “veem a física como a área da cultura na qual realidades
não-humanas, enquanto opostas às práticas sociais humanas, desenvolvem
suas atividades do modo mais óbvio possível” (RORTY, 2002, p. 19).

Os antirrepresentacionalistas, por sua vez, “não veem sentido algum na


afirmação de que a física é mais independente de nossas peculiaridades

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humanas do que a astrologia ou a crítica literária”. Num tom mais pragmático,


afirmam que “as várias áreas da cultura respondem por diferentes
necessidades humanas” e não podemos nos colocar fora dessas necessidades
para então “observarmos se algumas delas são gratificadas pela constatação
de uma similitude objetiva ou diferença de natureza” (RORTY, 2002, p. 21).

Desde o ponto de vista neopragmatista de Richard Rorty, essa é uma


questão digna de ser abandonada. Deveríamos pensar no conhecimento em
termos de sendo melhor ou pior para as nossas próprias descrições da
realidade, aquilo que é melhor para nós. Deveríamos entender o conhecimento
não enquanto uma representação da realidade, e sim enquanto uma forma de
lidar com a realidade que favoreça o nosso bem-estar. Para pragmatistas, a
questão ontológica sobre a natureza das coisas já se mostrou há muito
superada, posto não existir algo como a natureza das coisas, ou uma essência
pronta a ser desvelada. Pragmatistas “querem substituir a distinção entre
aparência e realidade pela distinção entre descrições do mundo e de nós
mesmos que são menos úteis, e descrições que são mais úteis” (RORTY,
2000a, p. 27).

De imediato, as perguntas que se erguem diante da proposta de


compreensão do conhecimento em termos de descrições mais úteis e menos
úteis, melhor ou pior para nós, são: Úteis em que sentido? Quais critérios são
estabelecidos acerca do que é o melhor? Quem é esse “nós”? Estes
questionamentos não passaram despercebidos por Rorty. O problema, para
nós e não para Rorty, é que suas respostas são propositadamente imprecisas:
“Úteis para criar um futuro melhor”; “Melhor no sentido de que contém mais
daquilo que consideramos bom e menos do que consideramos ruim”, e bom é
“diversidade e liberdade”, “crescimento” (RORTY, 2000a, p.27-28); “Nós” são
os liberais, os democráticos. Essa vagueza nas respostas faz parte da
estratégia pragmática de não se conformar a nenhum modelo preestabelecido
de conhecimento e nem conformar o futuro ao presente, ao que entendemos
hoje como melhor. “Se existe algo de peculiar ao pragmatismo é que ele
substitui noções como realidade, razão e natureza, pela noção de um futuro
humano melhor” (RORTY, 2000a, p.26).

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A consequência de utilizarmos descrições mais úteis e descrições


menos úteis é o abandono da ideia de conhecimento como correspondência.
Enquanto pensarmos, à maneira da filosofia tradicional, que entre nós e o
mundo existe algo (os sentidos, a linguagem) que distorce nossa visão das
coisas tais quais elas são, permaneceremos presos a um determinado modelo
de conhecimento. Assim como enquanto pensarmos no conhecimento como
tendo um fundamento inalienável, neutro, racional, não-contingente, sobre o
qual o mesmo se assenta, não sairemos da metafísica moderna. A linguagem
não distorce nossa imagem do mundo, pois a linguagem, e, por conseguinte, a
literatura, não representa o mundo.

Tanto os órgãos do sentido, quanto a razão ou a linguagem, aparecem


ao pragmatismo de Rorty como instrumentos a fim de lidar com os objetos. O
“erro” estaria na função demasiadamente restritiva atribuída à linguagem ou à
razão enquanto uma forma capaz de representar o mundo, quando os
pragmatistas “gostariam de eliminar a distinção entre conhecer as coisas e
fazer uso delas” (RORTY, 2000b, p.60). A linguagem, assim como as teorias
científicas, constitui mais um instrumento que o homem desenvolveu no seu
confronto com o entorno – não a representação do seu entorno.

Rorty sugere o abandono da ideia de que o mundo constitui um


elemento essencial para nossas asserções acerca da verdade. Ele (o mundo)
silencia ante nosso processo de crítica e justificação das crenças. Isto significa
que enunciados que se fundamentam na observação do mundo, em
experiências imediatas com a realidade, em nada nos ajudam a esclarecer a
conexão que estabelecemos entre crença e mundo, qual seja, não devemos
buscar no mundo, pois não as encontraremos, as condições que nos
proporcionem a justificação derradeira de nossas crenças. Tal perspectiva,
advinda do fracasso da epistemologia (das ciências) em encontrar um
fundamento último do conhecimento de caráter objetivo, favoreceu a ideia de
que “o mundo não faz verdadeiros os enunciados e, portanto, não pode
desempenhar papel epistêmico algum no processo de justificação”
(KALPOKAS, 2005, p.193). Nesse sentido, a literatura nem é e nem pode ser
uma representação mais precisa ou menos precisa da realidade.

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Se o mundo não exerce um papel determinante sobre o conteúdo de


nossas crenças, ou seja, se o mundo não determina sua verdade ou falsidade,
então o que sustenta uma crença não pode ser o mundo. Na medida em que o
mundo possui apenas um papel causal na formação de crenças, ele está fora
do espaço de justificação, não pode servir de algo com que possamos
confrontar as crenças para sustentá-las. O que Rorty parece está combatendo
é uma noção de experiência com o mundo que seria em si mesma justificatória,
quando, no seu entendimento, o que o mundo faz é provocar causalmente, e
não evidentemente, em nós, através de nossos órgãos sensoriais, crenças.

Já que o mundo não exerce um papel epistêmico sobre nossas crenças,


Rorty sustenta que somente uma crença pode justificar outra crença. O mundo
não oferece nem pede razões, somente nossos pares, os seres humanos, têm
essa habilidade manifesta através da linguagem. A justificação não repousa
sobre nada além de nossas práticas sociais de conversação, do nosso jogo de
dar e pedir razões, e de necessidades estritamente humanas.

Literatura como política cultural

Ao sugerir a literatura como política cultural, estou longe de colocar a


literatura como uma política de estado. Mas estou a dizer que ela pode exercer
um papel relevante em nossa política cultural, na medida em que é convocada
a se manifestar sobre aspectos polêmicos que ocorrem cotidianamente em
nossa cultura. Naturalmente isso se dar através de sugestões que animam o
debate, fomentam a atividade humana de dar e pedir razões, reiniciando
sempre o jogo que parecia estar encerrado através de novas descrições do
mundo. Decerto, também não estou aqui a defender que a literatura tenha um
acesso privilegiado ao mundo, seja ele interior ou exterior. Da perspectiva
neopragmática que estou partindo, esse é o típico caso de dualismo que
precisamos superar, a ponto de passearmos pelo mundo como passeamos
mentalmente por nossa intimidade, como profetizou Ortega y Gasset em uma
obra já de maturidade: O homem e a gente. O neopragmatismo rortiano aposta
forte na tese de que a imaginação é o que temos de melhor e não a razão
propriamente. Nesse sentido, a política cultural é justamente

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a atividade humana menos governada por normas. Ela é o


terreno das revoltas das gerações e, por conseguinte, o ponto
de crescimento da cultura – o lugar onde as tradições e as
normas estão todas disponíveis para serem imediatamente
agarradas por qualquer um... (RORTY, 2009, p.47).

Podemos questionar se essa é uma tese para críticos literários,


sociólogos, filósofos, agentes da cultura ou professores. Tendo em vista
objetivos mais amplos, redirecionados para a política cultural, é uma tese para
todos. Note-se que, para Rorty, “O termo ‘política cultural’ abrange, entre outras
coisas, disputas sobre o uso correto das palavras” (RORTY, 2009, p.19). Ele
defende que “a política cultural deveria substituir a ontologia e também que a
questão de se ela deveria ou não fazê-lo é em si própria uma questão de
política cultural” (RORTY, 2009, p.22). Podemos questionar também se, ao
mudar o vocabulário com que descrevemos o mundo, mudamos o mundo. Se a
resposta for negativa, talvez nos apressássemos em dizer que, então, não há
nenhuma razão para abandonarmos o velho vocabulário. Mas, talvez, ao
mudar o vocabulário, embora o mundo não mude, nós possamos avançar em
aspectos éticos e políticos.

O método consiste em descrever uma poção de coisas de


maneiras novas, até criar um padrão de conduta linguística que
tente a geração em ascensão a adotá-la, com isso fazendo-a
buscar novas formas apropriadas de comportamento não-
linguístico” (Rorty, 2007, p.34).

Faço aqui uma nota que, talvez, deixe a questão em jogo mais explícita.
A velha polêmica acerca do racismo nas obras de Monteiro Lobato. O
livro Caçadas de Pedrinho contém trechos como este: “Tia Nastácia, esquecida
dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão
pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito
outra coisa na vida...”; ou este outro: “Não vai escapar ninguém, nem tia
Nastácia, que tem carne preta”. Só para citar alguns. Decerto, esta é uma
maneira de falar que não interessa aos propósitos de uma sociedade
democrática e multicultural como a nossa, afinal elas remetem a narrativas,
representações e discursos que depreciam, subalternizam. Tão preocupante
quanto as manifestações explícitas de racismo, são os silenciamentos na
literatura e na crítica literária sobre a condição racial. A recusa em se falar
numa literatura afro-brasileira ou africana, por exemplo.

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No final das contas, Rorty não pretende descrever o mundo como ele é
em si mesmo e sim como ele poderia ser descrito com vistas a fins
estritamente humanos – a “redescrição é uma tarefa da imaginação”
(GHIRALDELLI, 1997, p.26). A política cultural é justamente

a atividade humana menos governada por normas. Ela é o


terreno das revoltas das gerações e, por conseguinte, o ponto
de crescimento da cultura – o lugar onde as tradições e as
normas estão todas disponíveis para serem imediatamente
agarradas por qualquer um... (RORTY, 2009, p.47).

Conclusão

A conclusão, embora simples, é polêmica: ao pensar na literatura como política


cultural estou defendendo, na esteira de Rorty, que o “modo como as coisas
são ditas é mais importante do que a posse de verdades” (p.353). Nesse
sentido, literaturas pós-coloniais deveriam ocupar um lugar central na nossa
perspectiva de mundo.

Referências

COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. Cultura e imaginário.


São Paulo, Iluminuras, 1997.

GHIRALDELLI JR., Paulo. Para ler Richard Rorty e sua Filosofia da Educação.
In: Revista filosofia, sociedade e educação, n. 1. Marília-SP, 1997. pp.9-30.

KALPOKAS, Daniel. Richard Rorty y la superación pragmatista de la


epistemología. Buenos Aires: Ediciones del signo, 2005. (Col. Plural)
RORTY, Richard (Editor). The Linguistic turn: essays in philosophical method.
2. ed. Chicago: The University Chicago Press, 1992.

______, Richard. A Filosofia e o Futuro. Trad. Paulo Ghiraldelli Jr. In:


GHIRALDELLI JR., Paulo; PRESTES, Nadja Hermann. Filosofia, sociedade e
educação, n. 1, Marília-SP, 1997. pp.81-92.

______, Richard. A Filosofia e o espelho da natureza. Trad. Antônio Trânsito. 3.


ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

______, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Trad. Vera Ribeiro. São


Paulo: Martins Fontes, 2007. (Col. Dialética)
______, Richard. Filosofia como política cultural. Trad. João Carlos Pijnappel.
São Paulo: Martins Fontes, 2009. (Col. Dialética)

1179
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

______, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Trad. Marcos Antônio


Casanova, 2. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

______, Richard. Verdade sem Correspondência com a Realidade. In:


MAGRO, Cristina; PEREIRA, Antônio Marcos (Orgs.). Pragmatismo: a filosofia
da criação e da mudança. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000a. pp.17-52.

______, Richard. Um Mundo sem Substâncias ou Essências. In: MAGRO,


Cristina; PEREIRA, Antônio Marcos (Orgs.). Pragmatismo: a filosofia da criação
e da mudança. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000b. pp.53-92.

1180
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

PERFUMES IDENTITÁRIOS E AS SOMBRAS DA MEMÓRIA EM UM RIO


CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA, DE MIA COUTO

MANUELA SOLANGE SANTOS DE JESUS


1
(UFRB-CFP)
ROSANA DOS SANTOS SOARES (UFRB – CFP)¹
FILIPE ARAUJO DOS SANTOS (UFRB – CFP)¹
SILVANA CARVALHO DA FONSECA (UFRB –
2
CFP)

A literatura e história podem ser associadas na reflexão sobre o


passado. As profundas mudanças sociais que se verificaram tanto nos países
279
colonizados como nos antigos impérios coloniais podem ser entendidas nas
obras pertencentes às literaturas pós-coloniais. O escritor Antônio Emílio Leite
Couto, ou Mia Couto, em suas narrativas, desperta a atenção para a profunda
crise econômica e cultural que acompanha o cotidiano da sociedade
moçambicana.

Ciente de que o advento da modernidade e da globalização acabaram


por contribuir na subversão das identidades culturais, as obras coutianas
problematizam a indefinição que o povo moçambicano enfrenta face à tantas
problemáticas sociais, individuais e discursivas. A questão identitária é
analisada em função dos questionamentos até então inexplicáveis na
sociedade moderna.

O surgimento do capitalismo, e de seus movimentos estéticos e


intelectuais, bem como as novas formas de conduzir a sociedade politicamente,
acabou por apresentar uma nova visão de sujeito. O indivíduo “dono da razão”,
ou seja, aquele considerado pleno, completo e detentor de todos os poderes,
foi revelado perante suas falhas e deslocamentos.
As identidades nacionais e individuais também se fragmentaram e se
desestabilizaram. Os abalos reconhecidos quanto à identidade fez que fosse
reconhecida diferentes formas de relacionamento, interconexão e

279 1
Graduandos do curso Letras – Libras – Língua Estrangeira da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia – Centro de Formação de Professores.
2
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal
da Bahia, docente no curso Letras – Libras – Língua Estrangeira da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia – Centro de Formação de Professores

1181
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

descontinuidade.

Ao observar a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra,


de Mia Couto, em que o estudante universitário Marianinho volta à ilha de Luar-
do-Chão depois de anos de ausência, pois fora incumbido de comandar as
cerimônias fúnebres do avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome,
trabalhamos com a narração de si mesmo como alimento à fome de
identidades.

Ao mostrar uma série de enigmas que fazem parte da família dos


Malilanes, é possível, aos leitores, a compreensão de como uma pessoa é
capaz de sentir-se estranho dentro de sua família quanto entre os de sua raça.
O ressurgir das lembranças bem como o constante questionamento sobre si
atuam como símbolos do movimento das negações constantes, ou seja, da tão
conhecida identidade.

...as identidades não são nunca unificadas; que elas são na


modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas, que
elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao
longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização
radical, estando constantemente em processo de mudança e
transformação. (HALL, 2004, p. 108).

Com a modernidade, a identidade torna-se mais móvel e múltipla por


meio das inovações que acompanham a evolução histórica, bem como a
acelerada urbanização e diferenciação social e cultural.

Na atualidade, denominada por Bauman como “líquido mundo


moderno”,

“buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de


nossas identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos
grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e
tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo”.
(BAUMAN, 2005, p. 32).

Na obra de Mia Couto não é diferente. Por mais que se trate de um


romance ficcional, Mariano é símbolo da crise de identidade que se iniciou com
os novos valores da sociedade moderna e globalizada.

1182
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou?
Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me. Pois eu, na
circunstância, sou um aparente parente. Só o luto nos faz da mesma
família” (COUTO, 2003, p.29).

O conceito de ser no mundo implica a noção de que só pela


experiência o sujeito pode se constituir. Essa visão incompleta faz com que o
indivíduo busque incessantemente se reconhecer. Na narrativa, isso vai ser
refletido quando o personagem principal relembra que ao deixar a Ilha, ainda
novo, escutou do Avô que nada seria como antes.

O velho Mariano sabia: quem arte de um lugar tão pequeno, mesmo


que volte, nunca retorna. Aquele não seria o lugar de minhas cinzas.
Assim fora com os outros, assim seria comigo. E o vaticínio dele se
foi cumprindo. Na cidade, fiquei um tempo com os Lopes, um casal
de portugueses que trabalhara na Ilha. Depois, a família se quotizou
para me pagar um quarto na residência universitária. Enquanto
estudante liceal eu visitava a Ilha com frequência. Depois, essas
visitas foram escasseando, até que deixei de vir. (COUTO, 2003, p.
45).

Mesmo com o regresso das memórias, Marianinho é um sujeito


moderno, capaz de ignorar as tradições familiares sem culpa, isto é, para ele, o
fato de perder alguns preceitos, também o faz adquirir outros.

O personagem, à medida que se posiciona como um sujeito


esclarecido, até então morador de um ambiente citadino, com valores muito
diferentes daqueles mantidos em Luar-do-Chão, mostra o quanto a
globalização e a modernidade que visa o lucro pode influenciar o sujeito. Uma
cena que demonstra essa mudança é quando Marianinho vai de encontro a
uma tradição da família de não consumar o sexo quando há defunto em casa.
“Tudo acontece sem contorno, sem ruído, sem peso. Nunca o sexo me foi tão
saboroso. Porque eu sonhava quem amava, sonhando amar naquela todas as
mulheres.” (COUTO, 2003, p.112).
Ao estudar o romance, a problemática identitária do continente africano
vem à tona. No século XX, países da África ainda se encontravam sobre o
amparo de nações ocidentais, mais precisamente europeias. O continente,
durante séculos, foi visto como um bloco único, em que suas designações,
meramente simplórias, eram “negro” e “africano”. Essa passou a ser a
identidade de um povo que, aos olhos dos estrangeiros, não importava a que

1183
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

país pertencesse.

Ciente de que analisar a identidade africana é uma tarefa complexa, já


que estas estão em constante mudança e a África é um conjunto de
comunidades, com costumes, locais, trajetórias, línguas e culturas diferentes,
por meio da narrativa de Mia Couto, percebemos a instabilidade humana da
sociedade perante o estrangeiro. Com Moçambique não foi diferente.
Sociedade recorrente nas narrativas do autor, a ausência de valores éticos e
morais, a perda da memória e os desajustes culturais são constantemente
vistos no enredo de seus livros. Em Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra, Mariano que pertencente à família dos Malilanes, ou seja,
constituinte da África, aparece também como lugar instável, cuja imagem vai
se formando pelo cruzamento de várias memórias postas em seu percurso:
sua tia Admirança, sua Avó Dulcineusa, o tio Abstinêncio e, sobretudo, de seu
avô Dito Mariano.

Ao citar os outros personagens da narrativa, os próprios nomes dados


à estes são passíveis de interpretações novamente relacionadas à constituição
do ser, aquilo que apesar de está em devir, possui elementos de essência, ou
seja, fixos. Merece grande destaque o contraste entre o pai de Mariano e um
de seus tios.

O pai de Marianinho, chamado Fulano Malta, é descrito como ex-


guerrilheiro que havia lutado na guerra contra o colonialismo. Ao pensar no seu
nome, identificamos que o primeiro é entendido como nomeação vaga,
indefinida. O segundo nome também traz essa intenção de nômade, de
anônimo. Não é atoa que ele se entregou ao amargor da vida. Temos aí um
exemplo de identidade exteriotipada e desumanizada pelas máquinas
institucionalizadas, capaz de configurar o sujeito como sendo “sob rasura” , nos
termos de Hall (2004), que se vê conflituoso e fragmentado.

Fulano Malta passara por muito. Em moço se sentira estranho em


sua terra. Acreditara que a razão desse sofrimento era uma única e
exclusiva: o colonialismo. Mas depois veio a Independência e muito
da sua perseverança se manteve. E hoje comprovava: não era de um
país que ele era excluído. Era estrangeiro não numa nação, mas no
mundo. (COUTO, 2003, p. 74).

Como não analisar o tio Ultímio, símbolo maior de como a globalização

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e o capitalismo entranha no sujeito de maneira sorrateira e ao mesmo tempo


abrupta. O próprio nome já diz: último, o fim da tradição africana. Sendo o mais
novo dos três irmãos, é guiado pela cobiça e poder, o que o faz não se
enxergar integrante da ilha.

Quer companhia num passeio pela Ilha. Quer mostrar-me esses


territórios onde ele pensa fazer dinheiro. [...] Tio Ultímio tem intenção
de ficar com os terrenos, até quer instalar um casino na Ilha com
vastos terrenos em redor.

– Mas aqui há gente morando! -

Gente? Ah, estes...

– O que vai fazer com eles?

– Vai-se ver, vai-se ver. Tudo se fará legalmente, na conformidade da


lei. Para já vou colocar as propriedades em nome da minha esposa.
Lembra-se dela, não lembra? (COUTO, 2003, p. 152).

Sendo a memória, “o melhor ponto de partida para computar registros


que remetem ao nó do vinculo que todos juntou” (SANTILLI, 2003, p. 17), a
expressão dos pensamentos e a consciência reflexiva de si mesmo, refletem
enraizamento e desenho próprio. Ela nos leva a pensar em lembranças,
rememoração e, de certa forma, esquecimentos.

Um suspiro lhe remata a angústia. As memórias lhe fazem bem. A


Avó afaga uma mão com a outra como se entendesse rectificar o seu
destino, desenhado em seus entortados dedos.

- Agora, meu neto, me chegue aquele álbum.

Aponta um velho álbum de fotografias pousado na poeira do armário.


Era ali que, às escondidas, ela vinha tirara vingança do tempo.
Naquele livro a Avó visitava lembranças, doces revivências. (COUTO,
2003, p. 49).

No discurso literário, alguns escritores recorrem à memória para


estabelecer uma aproximação com suas origens identitárias e culturais.
“Lembrar é fundamental para a identidade humana, funda-se nas experiências
passadas acumuladas e que são transformadas durante a vida” (MÂQUEA,
2007, p.26). A retomada de mitos, costumes e crenças, fazem com que seja
estabelecido um diálogo do passado com o presente. O passado lembrado é
ao mesmo tempo individual e coletivo, o primeiro seja por seus integrantes
quanto pela análise do homem que se conecta às suas origens pela história, já
o segundo seja pela fragmentação do tempo e das experiências vividas.

1185
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Como a memória é o sinal de que perdemos alguma coisa em


determinado momento, ao nos depararmos com as re-lembranças, “Lembrança
desatava lembrança” (COUTO, 2003, p.117), dialogamos com o que Glissant
(2005) propõe pensar sobre trocas e contatos culturais. Os vestígios de cultura,
os rastros culturais vão está em contato com a preocupação em recontar e se
narrar. O equilíbrio entre a mobilidade e as raízes culturais, sem a preferência
de um em detrimento do outro atuam como arte e segredo das histórias
entrecruzadas.

Essa memória, capaz de buscar o deciframento do real pode também


revelar uma tomada de consciência sobre o diverso, até então adormecida no
indivíduo. “Nenhuma pessoa é uma só vida. Nenhum lugar é apenas um lugar.
Aqui tudo são moradias de espíritos, revelações de ocultos seres.” (COUTO,
2003, p. 201).

O jovem Mariano, responsável por recuperar a memória de toda a


família e os demais moradores da Ilha, ao lidar com a morte inacabada do avô,
vai perceber que as cartas, objetos até então palpáveis para ele, acabam
sendo uma estratégia de reconstruir o que estava desmoronando e até mesmo
o que ali não mais existia. As cartas, também como memórias, são signos dos
limites entre imaginação e realidade.

Estas cartas, Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, se deixe
em bastante sossego e escute. Você não veio a esta Ilha para
comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano. Você
cruzou essas águas por motivo de um nascimento. Para colocar o
nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o morto. Veio salvar a
vida, a nossa vida. Todos aqui estão morrendo não por doença, mas
por desmérito do viver. (COUTO, 2003, p. 64).

Interligado com a identidade e com a memória, o tempo, metaforizado


no rio, é outro fator preponderante na obra Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra. Deixando de lado o caráter cronológico, a noção de atenção e
respeito à tradição dialoga com esse fator de momento ou ocasião. A sucessão
de dias a fim de que ocorra finalmente o funeral do avô de Mariano, o tempo
como rio, chamado de Madzimi e abençoado por madzi, a água, assim como o
momento de passagem, crucial para o protagonista e para o seu lugar de
origem, à medida que este descobre uma série de intrigas e de segredos

1186
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

familiares e, a recordação de momentos de convivência com o avô, nada mais


são que imersões de contatos culturais, processo de formação e intermediação
entre gerações.

Aquele era um tempo sem guerra, sem morte. A terra estava aberta a
futuros, como uma folha branca em mão de criança. Vovô Mariano
era apenas isso: o pai de meu pai. Homem desamarrado, gostoso de
rir, falando e sentindo alto (COUTO, 2003, p. 43).

Na obra, os indícios temporais são descortinados também por uma


língua capaz de mostrar-se mais fecunda e verdadeira. Como espécie de
“fabricadores da palavra” (SANTILLI apud COUTO 2011, p. 98), encontramos
algumas passagens de cunho filosófico que acabam por revelar a natureza
humana perante o tempo, que nas literaturas africanas, se deslocam e se
situam em diferentes lugares. “A morte é como o umbigo: o quanto nela existe
é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência” (COUTO, 2003, p. 15)
e “O homem sábio é o que sabe que há as coisas que nunca vai saber. Coisas
maiores que o pensamento” (COUTO, 2003, p. 159).

Dessa forma, os percursos identitários e da memória, como tempos


enriquecidos, por meio das obras literárias africanas proporcionam aos leitores
nãos só um conhecimento sobre a cronologia pré- e pós-colonial, mas sim uma
revisão crítica de uma produção literária até então apagada e marginalizada.

A atenção constante à natureza política, à revisão histórica, emergente


em uma série de contextos culturais, é característica inclusive do escritor Mia
Couto. Essas contra-narrativas capazes de refletir novos olhares e lugares
debatidos, nada mais são que discursos com especificidades estéticas e
conscientizadoras. A busca incessante por si, mas também a certeza do nosso
constante devir, nos mostra a seguinte reflexão: “O que é que fica tão longe
que toda a gente vê melhor é dentro de nós? O horizonte. Pois eu estava além
do horizonte. (COUTO, 2003, p.202).

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REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.

MAQUÊA, V. L. da R. Memórias inventadas: um estudo comparado entre


Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum e Um rio chamado Tempo,
uma casa chamada Terra, de Mia Couto. 2007. 296f. Tese (Doutorado em
Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2007.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de fora:


Editora UFJF, 2005.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós – modernidade. Rio de Janeiro:


DP&A, 2004.

SANTILLI, Maria Aparecida. Literatura de língua portuguesa. A polêmica de


um denominador comum. In:_____. Paralelas e tangentes: entre literaturas
de língua portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência, 2003.

_______. Luso-afonias – A lusofonia entre viagens e crimes. In:_____. E se


Obama fosse africano? e outras interivenções. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

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GRUPO DE TRABALHO: LITERATURA, CINEMA E QUADRINHOS:


CONSTRUÇÕES DE BAHIAS

PROPOSITORES: MARINALVA LIMA (UNEB) E PATRÍCIA KÁTIA DA COSTA


PINA (UNEB)

Ementa:

A literatura, o cinema e os quadrinhos, assim como as artes em geral, são

meios pelos quais são construídas representações diversas. Essas por sua

vez, podem operar nas construções e transformações das identidades

culturais. Pensando nisso, com o enfoque comparatista, este Grupo de

Trabalho pretende reunir estudos que privilegiem em suas discussões as

representações da Bahia sob diversos aspectos: culturais, históricos, sociais,

etc. tanto em produções quadrinisticas e cinematográficas quanto em

adaptações literárias para outras mídias, proporcionando, dessa maneira,

desdobramentos tanto em relação às potencialidades das múltiplas linguagens,

quanto à (des)construção de estereótipos, às alteridades e identidades.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

JUBIABÁS: A NEGRA BAHIA DAS PÁGINAS À TELA

MARINALVA LIMA DOS SANTOS 280 (UNEB - FAPESB)

Tendo como corpora investigativa o romance amadiano Jubiabá (1935),


e sua adaptação homônima para o cinema, com direção de Nelson Pereira dos
Santos (1986), este trabalho tem como objetivo realizar um estudo comparado
a partir do romance e do filme.
Partindo da noção de que quando uma narrativa literária é traduzida
para outra linguagem artística há democratização das ideias nela presente,
assim como um alcance a um público cada vez maior. Além disso,
compreendendo também que essas artes influenciam na construção das
identidades individuais e coletivas, este trabalho terá como foco discutir
aspectos relacionados a presença de personagens negros no romance e no
filme Jubiabá.
Espera-se compreender como as diferentes linguagens operam na
produção de sentido e como a disseminação desses influenciam nas
construções identitárias negra e baiana.
Como a própria palavra já sugere, adaptar alude sempre a uma
modificação, ao ajuste de algo para que se possa adequar a um novo contexto,
a um novo formato ou a um novo público. Levando em consideração as
múltiplas mídias, torna-se recorrente refletir sobre a utilização do texto literário
como material de partida para outras produções artísticas, tais como filmes,
telenovelas, quadrinhos, dentre outras.
As histórias constantemente passam pelo processo de adaptação.
Conforme Hutcheon (2013), hoje em dia as adaptações estão em todos os
lugares, o que possibilita que as histórias adaptadas tornem-se disponíveis
para um público totalmente distinto. Segundo a autora, os adaptadores ao
longo dos séculos, não precisaram de pronunciamentos críticos para
compreender o que para eles sempre foi óbvio: “a arte deriva de outra arte; as
histórias nascem de outras histórias.” (HUTCHEON, 2013, p.22)

280
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado
da Bahia, bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.

1190
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Pina (2014), ao abordar a potencialidade das adaptações quadrinísticas


para a formação leitora, afirma que “O tradutor precisa levar a obra para
pertencimentos culturais diferentes, tornando-a legível; o adaptador reinventa a
obra, aproximando-a de outras épocas, culturas, de variados grupos leitores.”
(PINA, 2014 p.27). Diante disso, entende-se que as adaptações são
importantes ferramentas para democratização das obras adaptadas. Isso
porque, veiculado em mídias, muitas vezes diferentes do livro, consegue atrair
um público que um romance, por exemplo, talvez não atinja.
Em várias entrevistas 281, Jorge Amado, ao ser questionado sobre seu
posicionamento à respeito das adaptação feitas de suas obras para outros
meios de comunicação afirma sempre em primeiro lugar que é um escritor
profissional que vive exclusivamente dos direitos autorais de seus trabalhos,
“não tenho outro rendimento senão aquele que ganho com os meus livros”
portanto, não tem nada a ver com a adaptação, que é “um problema do
cineasta, dos homens da televisão, etc. eu não me envolvo.” (AMADO, 1978).
Ele afirma ainda que uma adaptação só pode ser boa quando for uma
recriação da obra, que o adaptador tem, portanto, uma grande liberdade de
criação. Além disso, Jorge Amado diferencia seu trabalho de outros, como do
cinema ou televisão, por exemplo, já que o ato de escrever é considerado
como algo artesanal, no qual há a interação apenas do escritor e da máquina,
enquanto um filme ou uma novela de TV passa a ser um trabalho realizado
como uma verdadeira indústria, efetivado em equipe, com a presença do
realizador, do adaptador, atores, figurinistas, dentre outros profissionais.
Menciona também as dificuldades de ordem financeira que os produtores de
filmes enfrentavam para levar um projeto à frente no Brasil, o que pode limitar a
produção.
Outro aspecto abordado pelo escritor baiano nas entrevistas, diz
respeito à questão da democratização. Ele considera a adaptação válida,
sobretudo para a televisão e principalmente em um país como o Brasil, onde há
um enorme número de analfabetos e que um escritor muito lido atinge apenas

281
Trata-se de entrevistas concedidas por Jorge Amado a vários Jornais de língua portuguesa,
no Brasil e no exterior, as quais fazem parte do acervo da Fundação Casa de Jorge Amado
(FCJA), instituição que permitiu ao grupo de pesquisa Crítica Literária e Identidade Cultural, da
UNEB, liderado pelo professor Gildeci de Oliveira Leite, o acesso e a digitalização das
mesmas. O arquivo possui entrevistas desde 1956 a 2001.

1191
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

centenas de milhares de pessoas. Além disso, adaptações para outros meios


de comunicação, aumentam o número de venda de livros e consequentemente
de leitores. Por outro lado, acrescenta que à grande parcela iletrada da
sociedade, chegam muitas ideias vinculadas nos livros e que são transmitidas
por meio tanto da televisão, quanto por meio do cinema, o que, porém, também
não é acessível a todos.
Diante disso é possível observar algumas possibilidades e
potencialidades das adaptações literárias. A primeira delas relaciona-se com
uma, de certa maneira, divulgação da narrativa literária do autor, já que seu
nome está sempre associado às recriações e estas, por sua vez, estão
constantemente sendo divulgadas nos meios de comunicação midiáticos.
Outro aspecto envolve a questão do aumento da venda de livros, o que
sugere o aumento de leitores, fator relevante, para a realidade brasileira, na
qual a formação de leitores constitui-se como um problema recorrente e
necessário de investimentos para reverter a situação. Por fim, tem-se a
democratização do acesso às ideias presentes nas produções literárias que
são adaptadas e, de certa maneira, transmitem mensagens e sentidos
presentes no texto fonte.
Para abordar questões pertinentes à identidade negra, relacionando-a
com as produções artísticas e culturais, torna-se necessário relembrar que o
processo social e histórico pelo qual os sujeitos negros passaram ao longo da
história na sociedade brasileira deixaram suas marcas registradas, ainda na
atualidade. Essas marcas podem ser evidenciadas, por um lado, por meio das
manifestações de racismo, intolerância às práticas culturais desses grupos,
assim como pela criação e disseminação de estereótipos com vistas a
implantar a ideia de inferioridade dos negros em relação aos brancos.
Ao abordar a questão da Identidade, Hall (1997) apresenta concepções
de sujeito e as constantes transformações ao longo dos tempos,
transformações essas impulsionadas pelas crises, em decorrência das
circunstâncias históricas, sociais e filosóficas
A “crise da identidade” é ocasionada nas sociedades modernas pelas
diversas posições de sujeitos que o indivíduo ocupa, já que as identidades são
deslocadas, ou modificáveis de acordo com as formas pelas quais os

1192
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

indivíduos são representados nos sistemas culturais que os rodeiam. Dessa


maneira, as identidades modificam de acordo com os diferentes momentos do
sujeito.
A identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos
temporariamente. (HALL, 1997)
Essas afirmações reforçam a noção de que a literatura, o cinema, as
produções artísticas e culturais influenciam no modo como os sujeitos
constroem suas subjetividades, ou suas identidades baseadas nas
representações que são construídas e consumidas.
Nesse contexto, a abordagem sobre identidade, elaborada por Cuti
(2010), no livro Literatura Negro-brasileira, torna-se basilar para refletir sobre a
importância das representações de negros, sobretudo quando elas partem de
autores negros. O escritor, ao defender uma literatura, que por ele é
denominada de “negro-brasileira”, enfatiza a importância e necessidade dessa
escrita ser realizada por sujeitos negros, que vivenciaram os sentimentos mais
profundos relacionados, sobretudo ao racismo, ao preconceito e à
discriminação “antinegra”.
Essa literatura tem a potência, na perspectiva de Cuti, de provocar
reflexões e até certo ponto, de provocar desconstruções no modo como
tradicionalmente, os negros enquanto tema, são representados nas produções
culturais, muitas vezes enfatizando características estereotipadas, tornando
altamente prejudiciais às construções das identidades individuais, enquanto
sujeitos negros.
A identidade negra fortalecida por meio das produções culturais, que são
consumidas tanto pelos negros, quanto pelos não negros, impulsionam
transformações e descontinuidades possibilitando reflexões e mudanças no
modo de se ver e nas estratégias de enfrentamento às constantes situações de
racismo.
Mesmo tratando-se de autor não negro é possível adentrar nesse
universo para a partir daí trazer para a produção literária as angustias e
anseios do povo negro. Leite (2012), trata sobre a aceitação de personalidades

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não negras em meios como por exemplo o seleto grupo da liturgia negra no
terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, onde, Jorge Amado “era de dentro” e
ocupou o elevado cargo de Obá de Xangô. Essas pessoas, que passaram a
entender o sentido de pertencimento ao grupo, são portanto, pessoas
capacitadas e autorizadas a produzirem uma inscrita negra.
Entende-se aqui por inscrita negra um texto verbal ou não
verbal, dentre todas as possibilidades da linguagem, guiado por
uma temática negra e que privilegie a aparição de arquétipos e
temáticas da negritude. Esta inscrita deve ser pertinente à
negritude, seja pela alteridade de sua voz negra; pela correta
abordagem da ancestralidade; por sua voz se sobressair,
elevando a autoestima afrodescendente ou ainda pelas
denúncias das injustiças contra o povo negro. Dessa forma,
não somente obras literárias são inscritas negras, mas todas as
possibilidades da linguagem. (LEITE, 2012, p.236)
Nessa perspectiva, Jubiabá seria uma literatura que carrega consigo
essa Inscrita Negra defendida por Leite, tanto por girar em torno da temática
negra, pela denúncia de injustiças sociais, pelo privilégio da aparição de
arquétipos da negritude e da ancestralidade. Isso pode ser evidenciado, além
da trajetória heroica de Balduino, também pela marcante presença do pai-de-
santo Jubiabá, atrelado às vivências e conduta voltada para o pertencimento
religioso ao candomblé.
A literatura, nesse contexto, torna-se uma potência influenciadora no
imaginário dos seus leitores, portanto contribui significativamente na escolha da
ou das identidades em construção. Esse processo ocorre não apenas mediado
pela literatura. As representações presentes em produtos artísticos e culturais
também podem ser apontadas como meios impulsionadores dessa
apropriação. Por outro lado podem também funcionar como agentes que
dificultam, ou criam conflitos existenciais entre os sujeitos e sua identidade.
Ao ler um texto literário, quadrinhos ou assistir a um filme o leitor ou
telespectador irá consequentemente ter seus personagens favoritos,
personagens com os quais se identificam ou cria repulsa. Por isso tratando-se
de um público diverso, com características físicas, psicológicas e culturais
diferentes os personagens funcionam como instrumento de identificação por
parte do leitor.
Dessa maneira, quando os leitores que possuem determinadas
características e pertencimento cultural veem sempre os personagens com

1194
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semelhanças às suas figurando situações nas quais são estigmatizados ou em


situações subalternas e de subserviência, como é na maioria das vezes as
representações de personagens negros, dificulta a identificação assunção e
valorização de seu pertencimento e identidade étnico racial.
Pensando nisso, torna-se necessário uma investigação, sobretudo nas
imagens que são construídas e disseminadas nos meios de comunicação
midiáticos. Consoante com a geração da era da revolução tecnológica, o
desenvolvimento de sistemas, redes e aplicativos, além da facilidade de acesso
a inúmeras informações, bem como as trocas de experiências, muitas vezes
reproduzidas tecnicamente, possibilitam deslocamentos no modo como os
sujeitos se vê e como veem o outro.
Nesse contexto, a Tradução Intersemiótica do texto literário para outros
meios de comunicação que utilizam diferentes linguagens para construírem
uma narrativa e atribuírem sentidos à determinadas situações, convergem nas
implicações relacionadas a construção da identidade negra na sociedade
brasileira, sob influência das produções literárias, artísticas e culturais.
Na contemporaneidade uma das preocupações da Crítica Cultural são
estudos que tematizam demandas de grupos sociais constituídos como
minoritárias, como de mulheres, de autores considerados marginais,
homossexuais, índios, negros, dentre outros. Nesse contexto, nas narrativas de
Jorge Amado, estão sempre presentes elementos constituídos historicamente
como menores, pois no interior de suas histórias estão presentes personagens
do povo baiano, suas crenças, costumes, lutas e resistência, incorporados em
malandros, prostitutas, meninos de rua, pescadores, trabalhadores braçais e
também no povo-de-santo.
Além disso, é preciso lembrar que muitos romances Amadianos foram
traduzidos para outras línguas, adaptados para novelas de TV, teatro, cinema e
quadrinhos. O que possibilita maior alcance das temáticas presentes nas
narrativas. Mesmo compreendendo que não trata-se de uma cópia fiel, mas de
uma apropriação impulsionadora de uma nova produção podendo assemelhar
ou distanciar da proposta do livro.
. Considerando o romance e o filme Jubiabá, a figura do negro torna-se
o centro dessa investigação. Pois o modo como aparece no discurso literário e

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de outras artes, entendidos como meios de disseminação de discursos e


ideologias, contribuem para a construção, fixação e reprodução de sentidos,
assim como podem também promover rupturas e colocar em trânsito os
sentidos fixados sobre os negros e suas práticas culturais.
Entendendo essas séries discursivas como meios pelos quais o sujeito
negro, suas práticas culturais, os espaços e as paisagens nos quais sua
presença prevalece são o centro das discussões, elas passam a ser aqui
entendidas também como influenciadoras na construção da identidade, a qual,
conforme Hall (2004), surge
Não tanto de um centro interior, de um “eu verdadeiro e único”,
mas do diálogo entre os conceitos e definições que são
representadas para nós pelo discurso de uma cultura e pelo
nosso desejo (consciente ou inconsciente) de responder aos
apelos feitos por estes significados [...]. Nossas identidades
são, em resumo, formadas culturalmente. (2014, p. 08)
Nessa perspectiva, é necessário levar em consideração também, as
marcas da discriminação e preconceitos que tanto os negros, quanto suas
práticas culturais enfrentaram e ainda enfrentam num constante processo de
resistência. Essas obras em questão, que trazem à tona representações de
sujeitos negros, seriam então um lugar de transformação e desestabilização
das práticas segregacionistas e excludentes e um lugar de afirmação e
valorização positiva da identidade afro-brasileira?
Este questionamento torna-se relevante quanto tem-se em mente que
quando a identidade passa a ser afirmada, diminui o preconceito e a
estereotipia. Fatores problemáticos, tratando-se da construção e afirmação da
identidade negra.
O romance de Jorge Amado, Jubiabá (1935), ambientado na Bahia, narra a
história do negro Antônio Balduíno, garoto órfão que vivia com uma tia numa
região periférica da cidade de Salvador, o morro do Capa-Negro. Local, que
como explica o sábio pai-de-santo, personagem do livro, nos tempos da
escravidão era uma fazenda de um “sinhô branco” e “Ele era malvado. Gostava
que negro fizesse filho em negra para ele ganhar escravo. E quando negro não
fazia filho ele mandava capar negro... capou muito negro... Por isso esse morro
é do Capa-Negro[...] (AMADO, 2008 p.41-42).

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Na sua trajetória de vida, Baldo foi menino de rua, malandro, sambista,


lutador de boxe, trabalhador nas plantações de fumo, artista de circo e por fim
estivador e líder grevista. Nos diferentes espaços sociais que o protagonista
ocupa, posicionava-se como liderança e tinha a atenção dos demais voltadas
para si. Ele sempre foi indignado com a situação na qual a população negra e
pobre do morro vivia, sendo explorados e em situações precárias. Já na
juventude, após ganhar lutas de boxe, transformou-se em um herói e desde
criança, quando passou a conhecer a história de Zumbi dos Palmares, tornou-
se seu maior sonho realizar atos heroicos e ter um ABC dedicado a ele. O ABC
é um texto, no qual são narrados os feitos heroicos de alguém.
O herói amadiano admirava e espelhava-se na história de Zumbi dos
Palmares. Este era seu herói favorito, um exemplo de luta e resistência, no
qual, ele busca inspiração para lutar e alcançar sua liberdade e a de seus
“irmãos” do morro.
Para traduzir cinematograficamente o romance, o diretor, na parte
introdutória, recorreu ao capítulo “Infância Remota”, no qual está disponível
uma descrição do morro do Capa-Negro, onde o garoto Antônio Balduíno
gostava de admirar as luzes da cidade. “Sons de violão arrastavam pelo morro
mal a lua aparecia. [...] A venda de seu Lourenço Espanhol se enchia de
homens que iam conversar e ler o jornal que o vendeiro comprava para os
fregueses de pinga. (AMADO, 2008, p. 15)
De início, as primeiras cenas do filme transportam o telespectador para o
principal ambiente no qual a história desencadeará. Não é destacada a poesia
que Antônio Balduíno via no acender das luzes da cidade. O filme inicia com
um grupo de sambistas tocando e cantando uma canção, a qual compões a
trilha sonora da cena, ao tempo em que surge um conjunto de crianças que
juntam-se à roda, dentre as quais está o protagonista Antônio Balduíno. Nesse
momento são apresentados os personagens mais significativos na trama, num
ambiente simples, aconchegante e festivo que é morro do Capa-Negros.
Na sequência, ao término da canção, surge o pai-de-santo Jubiabá, que
desloca em direção ao local em que o grupo de sambistas e as crianças
encontram-se, carregando consigo um conjunto de livros, e ao passar por duas
senhoras, elas levanta-se para cumprimentarem a Jubiabá. Ao chegar no

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ambiente as crianças levantam-se e escondem, demonstrando medo, ao tempo


em que os homens respeitosamente cumprimentam ao pai-de-santo.
A partir dessa apresentação é possível perceber que se trata da
representação da periferia de uma cidade, além dos laços de amizade e
cumplicidade entre os moradores da comunidade.
A temática da greve começa a ser abordada no filme quando Baldo
retorna do interior, encontra o povo triste, diferente, por conta das
necessidades financeiras que veem enfrentando devido aos baixos salários
que recebem. É nesse momento que reencontra Lindinalva que já no fim da
vida pede para que Baldo ajude Amélia a cuidar de seu único bem, seu filho.
Então Antônio Balduíno vai à procura de Jubiabá, que o aconselha a começar
trabalhar.
Foi nesse momento que Balduíno sentiu de perto a realidade que seu
povo trabalhador vivia, e passou então a conhecer a greve. Ele discursou frente
aos companheiros, vendo a saída para os problemas que encontram, não nas
orações e sim na conscientização de classe, na revolução e no protesto.
A ousadia de Antônio Balduíno para subverter a tudo o que o aprisiona
faz-se presente tanto no romance quanto no filme. Quando se trata de
construção da identidade, as suas ações podem ser encaradas como
referências de encorajamento para driblar e ultrapassar as barreiras presentes
na realidade de sujeitos negros e negras, que a cada dia tem que travar lutas,
resistir e enfrentar desafios.
É possível perceber a existência de uma divisão na cidade da Bahia, ali
representada, entre os negros e pobres, que são marginalizados, afastados
dos centros onde encontram-se os brancos e ricos. Isso evidencia a
perpetuação das desigualdades sociais históricas existentes no país. A
representação dessa realidade, seja na literatura, no cinema, ou nas demais
mídias são importantes ferramentas de denúncia social. Porém é uma situação
extremamente perigosa, pois é preciso diferenciar e mostrar também o negro e
o pobre em outras situações que não a de exclusão, para que não seja fixado
no imaginário as desigualdades, a marginalização como algo natural e
característico de determinadas pessoas.

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REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Jubiabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1935].
CUTI [Luiz Silva]. Literatura Negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010a.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais
do nosso tempo. Disponível em:
www.ufrgs.br/neccso/word/texto_stuart_centralidadecultura.doc. Acesso em: 04
maio. 2014.

HALL. Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:


DP&A, 1997.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed.


Florianópolis: Ufsc, 2013.

LEITE, Gildeci de Oliveira. Jorge Amado: Negro e de Axé. In: FRAGA, Myriam.
FONSECA, Aleílton. HOISEL, Hevelina. Jorge Amado nos terreiros da
ficção. Itabuna: Via Litterarum; Casa da Palavra, 2012.

PINA, Patrícia Kátia da Costa. A literatura em Quadrinhos: formando leitores


hoje. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2014.

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“O QUE É QUE A BAHIA TEM”: A CIDADE DA BAHIA E A CONSTRUÇÃO


IMAGÉTICA DO NEGRO

MESTRANDA: MARILENE LIMA DOS SANTOS (UNEB/FAPESB)282

1. Considerações iniciais

Ler a obra do escritor Jorge Amado é uma das formas de fazer um


passeio pelas ruas, ladeiras, becos e bairros da cidade do Salvador, mais
especificamente o Centro Histórico. Em muitas delas, o cenário da cidade de
Salvador ganhou destaque. Trata-se de narrativas de uma cidade negra, na
qual é representada a vida simples nas ruas, a luta pela sobrevivência, as
manifestações culturais locais ou regionais, os aspectos relacionados à cultura
de matriz africana e o sincretismo religioso criando ou reinventando dessa
maneira, um conceito de baianidade.

Trata-se de uma vasta produção literária, com um significativo público


leitor nacional e internacional, suas obras foram traduzidas para mais de 32
países e com um alcanço maior de público através das adaptações para filmes,
telenovelas, séries, quadrinhos, fazendo com que as imagens de uma cidade
ficcional ganhassem uma grande projeção. As representações da cidade de
salvador através da literatura amadiana tornou-se alvo para apropriação pelo
Estado, pelas agencias de turismo e pela mídia global, transformando a
estética ficcional da cidade em um espetáculo cultural para garantia das
exigências mercantis.

Assim, tornar-se-á necessário a realização de estudos que buscam


compreender a o processo de significação e interpretação dos significantes
linguísticos relacionados à cidade de salvador, os quais funcionam como
afirmação ou negação dos sujeitos negros e de suas práticas culturais. Trata-
se de estudos de uma produção literária que embora possua uma grande

282
Mestranda do programa de pós-graduação em Crítica Cultural, Campus II, Alagoinhas-Bahia.

1200
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aceitação pelos leitores, foi considerada pela critica literária como uma
literatura que não enquadrava no cânone, já que este era determinado por
critérios e valores eurocêntricos.

Talvez a forma de escrita fosse um dos motivos pelos quais justificasse


essa recusa do cânone. Trata-se de uma literatura que aproxima ficção e
realidade, que valorizava o regional, o local, os personagens eram retirados
das ruas em sua grande maioria, homens, mulheres e crianças negras,
prostitutas, jagunços e coronéis dentre outros, contrariando o gosto da crítica
tradicional. Drummond (2009), afirma na tese Pierre Verger: Retratos da Bahia
e centro histórico de Salvador (1946 a 1952)- uma cidade surrealista nos
trópicos, que Jorge Amado, Carybé e Caymmi trazem a cidade para o centro
de suas obras, assim como os surrealistas, explorando o traçado urbano, a
arquitetura colonial, porém com destaque para os aspectos da cultura negra
contrariando por sua vez, o gosto oficial.

Para este estudo foi selecionada a segunda parte do romance Os


pastores da Noite (1964), livro que será objeto de estudo para a dissertação do
mestrado. O romance Os pastores da noite é dividido em três partes, a
segunda possui o titulo “Intervalo para o batizado de Felício, filho de Massu e
Benedita ou O compadre de Ogum”, no entanto, essa mesma narrativa foi
publicada de forma independente no mesmo ano, com o título O compadre de
Ogum. A escolha se deu por a obra trazer uma representação detalhada da
cidade e pelo fato do tema central do romance estar ligado aos aspectos da
cultura afro-brasileira.

Nesse sentido, este trabalho objetiva compreender o modo de produção


da literatura de Jorge amado, bem como o espaço urbano de Salvador
representado na ficção, utilizando-se da escrita literária para estudos das
práticas culturais afro-brasileiras, bem como a produção de sentido sobre o
negro e suas práticas culturais. Trata-se de uma abordagem crítica de natureza
qualitativa, a qual visa utilizar-se da obra O compadre de Ogum como potência
para traçar discussões a cerca do negro, da cidade de Salvador, espaço
urbano no qual estão inseridas as práticas religiosas de matriz africana e afro-
brasileiras e a cultura negra no geral.

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O desenvolvimento do trabalho visa contribuir no campo da crítica


cultural com a produção de novos sentidos e representatividades sobre o negro
e as práticas culturais, com a apropriação da linguagem literária para
questionamentos dos discursos hegemônicos pautados na subalternidade do
negro, motivadores de preconceito racial e intolerância religiosa e afirmação e
difusão de estereótipos.

O estudo esta dividido em duas partes: na primeira parte, trata-se do


estudo do modo de produção de Jorge Amado. Nesse momento será
compreendido o perfil de escrita, temáticas abordadas, criação de
personagens. Já na segunda parte, farar-se-á o estudo do romance O
compadre de Ogum, tendo em vista o processo significação e as plasticidades
da linguagem literária.

2. A literatura de Jorge Amado

Na literatura e na vida, sinto-me cada vez mais distante dos


lideres e heróis, mais perto daqueles que todos os regimes e
todas as sociedades desprezam, repelem e condenam.
(AMADO, 2001, p.56)

Na epigrafe que inicia essa seção é possível perceber o perfil da escrita


de Jorge Amado. O escritor não esconde a sua opção pela representação das
minorias politicas, retratando em sua ficção, a vida do povo pobre e negro da
Bahia, fazendo de suas obras um local de denúncias e também para afirmação
de sua terra e de sua gente.

Eduardo Mattos Portella, professor, crítico literário, membro da


Academia Brasileira de Letras em A fábula em cinco tempos (1961), ao
escrever sobre a obra de Jorge Amado, considera o tamanho, a diversidade e
sucesso da novelística, devido ao fato do artista ser a favor da condição
humanal. De acordo com Portella, Jorge Amado utiliza do suporte realístico
para escrever a ficção, por entender que a realidade é sempre mais rica e nela
habita o real e o fantástico. Ele ao escrever sobre a Bahia projeta na literatura
popular a mitologia, as lendas, buscando dessa forma, uma compreensão,

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assimilação e valorização das manifestações locais ou regionais, das


expressões culturais e de vida.

Ainda segundo Portella, o realismo presente na literatura amadiana é


politizado, representado pelas imagens de uma sociedade em crise, com
problemas sociais, econômicos e morais, os quais servem de mecanismos para
a exploração do homem por meio de manifestações ambiciosas e oportunistas.
O realismo presente na obra de Jorge Amado é contra aquelas “tendências
anti-realistas da literatura burguesa.” ( Luckacs apud Portella). Para o crítico, o
trabalho de Jorge Amado transforma-o em um romancista engajado na
solidariedade humana, o que não permite a Amado se conformar em ser
romancista de alguns conflitos e de apenas uma classe. Talvez seja esse um
dos fatores que o torna responsável por uma vasta produção e aceitação de
suas obras pelo público leitor.

A obra de Jorge Amado é marcada pelo tom de denúncia social,


sobretudo denúncia dos dramas humanos, das situações pelas quais os
negros, os pobres enfrentam. A escolha pelo local, regional faz com que a
temática da cidade apareça com certa centralidade nas suas produções, a
cidade de acordo com Portella surge como um personagem. A cidade da
Bahia, Salvador, ganha vida na literatura e em torno dela surge inúmeros
outros personagens.

Para Argan (2005), existem dois tipos de cidade: a cidade ideal e a


cidade real. A primeira está no plano da obra de arte, que serve de referencial
para a cidade real, é a partir da cidade ideal que “se medem os problemas da
cidade real” (ARGAN, 2005, P.73). Nesse sentido, na cidade imaginada por
Jorge Amado coexistem aspectos do real, porém há uma troca, já que, a
formação da cidade real de Salvador e constantemente interpretada a partir do
discurso ficcional. Há uma busca pelo popular, pelas tradições da cultura
negra.

Jorge Amado, como afirma a historiadora e antropóloga Lilian Moritz


Schwarcz demonstrou grande interesse pelo popular, pela construção e
divulgação de uma representação da Bahia e do Brasil. Sua obra é pautada na

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mestiçagem cultural e racial e no sincretismo religioso. Amado de acordo


Schwarcz, no texto O artista da mestiçagem, “é movido pela utopia de pensar e
reinventar o Brasil” (SCHWARCZ, p.17).

A produção literária de Jorge Amado pode ser dividida em duas fases.


Na primeira fase, percebe-se uma literatura utópica, traduzida em militância
comunista. Suas obras durante esse período foram escritas com base nos
ideais da militância, após esse período, com o desligamento do Partido
Comunista pelo qual foi eleito deputado, inicia-se uma nova fase na literatura.
Nessa nova fase, a obra foi marcada pela utopia da mestiçagem brasileira o
que rende ao escritor muitas críticas.

Schwarcz ao escrever sobre a obra de Jorge Amado aponta que se por


um lado, Amado fazia em suas obras apologia a miscigenação brasileira, por
outro lado ele dava visibilidade ao racismo silencioso, o qual aparece
mascarado pela ideia de igualdade de direitos perante a lei. O trabalho do autor
seria nesse sentido, uma forma de reflexão crítica a cerca da realidade
brasileira. Ainda de acordo com a antropóloga, o romancista cria através da
ficção um universo de opostos, representa as minorias compostas por
trabalhadores, pescadores, prostitutas, meninos abandonados, mães de santo
dentre outros e do lado oposto, a ficção representa a elite, coronéis e políticos.
O autor demonstra que há a possibilidade de convivência, no entanto, essa
convivência se dá dentro de uma hierarquia social.

Ao focar na representação de classes sociais diferentes dentro da obra,


nas entrelinhas da narrativa aparecem as mazelas das desigualdades sociais,
isso pode ser entendido como uma forma de denuncia social. Essa leitura da
escrita de Jorge Amado já era apontada por Portella em 1961, em A fábula em
cinco tempos, quando esse afirma ser a literatura amadiana uma literatura
politizada. Por fim, Lilian Schwarcz aponta para o seguinte:

Convivência não quer dizer ausência de conflito; mistura não é


sinônimo de falta de hierarquia. Por contraposição, esse
universo complexo está todo lá: a pobreza e o luxo; os coronéis
e seus jagunços; a boemia com o labor, a religião que mistura
santos católicos com orixás africanos. O fato é que Jorge

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Amado sempre procurou inventar e reinventar esse mesmo


Brasil. (SCHWARCZ, 1999, p.40)

Jorge Amado dialoga com ideia de “democracia racial” de Gilberto


Freire, porém, com uma diferença, enquanto Amado com seu otimismo via na
mistura uma representação positiva da brasilidade, Freire acreditava na
possibilidade de “salvação” da população brasileira. A miscigenação para
Freire era compreendida enquanto processo de branqueamento da nação.
Jorge Amado, ao contrário de pensadores como Silvio Romero, João Batista
Lacerda, Tobias Barreto que entendiam o cruzamento racial como
degeneração e desequilíbrio da nação e de Freire que a entendia como a
solução para o Brasil, via-a positivamente na beleza da mistura racial e cultural.
(SCHWARCZ, 1999)

3. A cidade negra: O Compadre de Ogum

Ao som inconfundível dos atabaques e berimbaus, ressoando entre


antigos sobrados, o leitor percorre becos e vielas sinuosas que se
esparramam por um dos mais importantes conjuntos de arquitetura
colonial da Américas, o Pelourinho, na encantada cidade do Salvador
da Bahia de Todos os Santos. (BARBOSA, 2006, p.5)

Nesta seção que se inicia tem como pretensão realizar um estudo crítico
qualitativo do romance O compadre de Ogum que foi escrito em 1964, por
Jorge Amado, tendo como foco principal a construção discursiva de uma
baianidade referente à cidade de Salvador, por meio da linguagem literária.
Essa identidade afro-baiana é formada a partir da representação dos aspectos
da cultura negra e do traçado da arquitetura colonial soteropolitana do Centro
Histórico de Salvador, bem como, das subjetividades apresentadas nos
personagens relacionados aos espaços da cidade e a religiosidade, em um
processo de sincretismo étnico, cultural e religioso.

A narrativa do romance se desenvolve a partir da dificuldade de escolher


o padrinho para Felício filho do Negro Massu e Benedita. A função de escolher
o padrinho para a criança ficou sobre a responsabilidade do pai, já que a mãe

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da criança provavelmente havia morrido logo depois de ter entregado a criança


ao pai.

A avó da criança, a negra Veveva, alertou a Massu que não poderia a


criança completar um ano de idade sem receber o sacramento do batismo.
Faltando apenas quinze dias para aniversário da criança, Massu tinha a
“missão” de escolher um padrinho para a criança e organizar a festa.
Comemoraria o aniversário e o batizado no mesmo dia. A madrinha escolhida
foi Tibéria, esposa de Jesus e dona de uma das maiores casas de prostituição
da Bahia. A dificuldade era para escolher o padrinho, pois Massu vivia rodeado
de amigos e todos desejam ser o padrinho da criança, o que dessa forma,
deixava Massu numa situação desconfortável.

Em meio a uma narrativa que trata dos preparativos para a festa do


batizado e a escolha do padrinho, a obra de Jorge Amado oferece subsídios
para, a partir das plasticidades da linguagem literária estudar a configuração da
cidade de Salvador e compreender um pouco sobre as práticas culturais de
matriz africana. Com a leitura da obra o leitor é levado a um passeio pelas
ruas, ladeiras, becos, terreiros de candomblé e uma detalhada visita ao
Pelourinho, uma vez que, a igreja escolhida para o batizado foi a Igreja do
Rosário dos Negros.

A narrativa de O compadre de Ogum é breve, porem de grande


intensidade, capta a curiosidade do leitor até o desenlace, permitindo o acesso
a detalhes da cultura negra, tais como os rituais realizados nos terreiros de
Candomblé. Trata-se de uma obra ficcional, no entanto, os detalhes permite ao
leitor compreender o universo sagrado do candomblé, tais como as festas, as
oferendas, as cores que representa os orixás, o branco de Oxalá e o azul de
Ogum, as características de alguns orixás como, por exemplo, Ogum, orixá do
ferro, da metalurgia, da agricultura e da guerra, no sincretismo tem como
correspondente o santo católico Santo Antônio.

Já Exu, orixá que tem grande influência no desenrolar dos fatos,


causador de grande confusão desde o dia da escolha do padrinho até no
momento do batizado na igreja do Rosário dos Negros, é no candomblé, o

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orixá mensageiro; dono das encruzilhadas e guardião da porta de entrada das


casas. Exu de acordo com Prandi (1999) corresponde no catolicismo ao diabo
“[...] sua liberdade em aceitar qualquer pedido de devotos e clientes e seu
gosto em provocar confusão criaram uma imagem, errônea, que o associou ao
mal e ao diabo cristão.” (PRANDI, 1999, p.58)

O sincretismo religioso que justapõe o candomblé e o catolicismo é o


traço cultural principal da obra. Através dos detalhes para o batizado, da
confusão para organização já que o padrinho da criança era um encantado, o
próprio Ogum decidiu por ser o padrinho e o batizado aconteceria em uma
igreja católica. Torna-se possível através dos conhecimentos adquiridos traçar
discussões a cerca da cultura negra de matriz africana.

Ao fazer a leitura da obra, pode-se considerar Jorge Amado como um


etnógrafo da cidade de salvador, pois para presenciar o acontecimento inédito,
o batizado em uma igreja católica, no qual o padrinho era o orixá Ogum, vieram
pessoas de várias partes da capital baiana, as baianas da Ladeira do Tabuão,
moradores da Meia Portas, da Barra, Brotas todos os comerciantes, motoristas
da cidade Baixa deixaram seus afazeres para presenciar o acontecimento.
Assim, Amado vai referenciando os bairros de Salvador criando ou
reinventando uma bainaidade negra.

A epígrafe do inicio da seção, retirada do prefácio do romance, escrita


por Rogério Andrade Barbosa faz referência à presença marcante da cidade e
aos aspectos da cultura negra, o que dessa forma, vai também configurando o
perfil de escrita de Jorge Amado. O autor trazia para a escrita, marcas das
suas vivências, misturando ficção e realidade.

Tem-se no romance, personagens como o pintor Carybe, mães-de-


Santo, Doninha e Stela certamente Stela e uma referencia feita a mãe Stella de
Oxóssi, ela atualmente é dona da cadeira número 33 da Academia de Letras
da Bahia, também Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, terreiro no qual Jorge
Amado possuía cargo de Obá de Xangô. Sobre esse aspecto particular da
escrita de Jorge Amado, o qual mistura ficção e realidade, Schwarcz faz a

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proposição que se tratando da obra de Jorge Amado “é sempre difícil dizer


onde começa e quando termina a realidade”. (SCHWARCZ, 1999, p. 34).

Percebe-se ainda nas páginas do romance a apologia à mestiçagem


brasileira tal qual aponta Schwarcz 1999 no texto O artista da mestiçagem. Por
tratar do batizado de uma criança filha de negros, porem de pele clara e olhos
azulados há uma insinuação de que não havia certeza com relação à
paternidade. A partir desse detalhe o narrador busca justificar o fenótipo da
criança a partir do processo de mestiçagem brasileira.

Olhos azulados qualquer criança pode ter, mesmo sendo


o pai negro, pois é impossível separar e catalogar todos
os sangues de uma criança nascida na Bahia. De
repente, surge um loiro entre mulatos ou um negrinho
entre brancos. Assim somos nós, Deus seja louvado!

Benedita dizia ter saído o menino assim branco, por


haver puxado ao seu avô materno, homenzarrão loiro e
estrangeiro, bebedor de cerveja, hércules de feira a
levantar pesos e marombas para espanto dos
tabaréus. (AMADO, 2006, p.10)

A leitura de obras como O compadre de Ogum, embora sendo ficção é,


como afirma Mirian Alves em Literatura negra: surgimento do coletivo de
escritores-Cadernos Negros, uma forma de fazer a ressignificação da palavra
negro e nesse contexto a cultura e identidade utilizando-a de forma positiva. Os
rituais sagrados do candomblé, para muitos dos não adeptos à religião ou
desconhecedores, ainda na atualidade são interpretados negativamente.
Palavras como macumba, oferenda, fetiche e o próprio candomblé ainda são
interpretados como práticas diabólicas.

No romance encontra descrições de rituais realizados no candomblé e


para além da descrição do ritual, também é realizado a descrição do lugar,
espaço físico formado pelos barracões e casa de orixás. Em uma cena, o
narrador faz a descrição do processo de oferenda feito em homenagem a
Ogum, ritual realizado em meio a cantigas, sacrifício de animais, pombos e
galos. Estes rituais são secretos, não há por parte dos praticantes da religião
um interesse em torna-los públicos. A literatura amadiana assume a função de

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torna-los públicos, contribuindo para o entendimento dessa prática, assim a


ficção colabora também com a diminuição do preconceito e da intolerância
religiosa.

[...] A mãe de santo puxou uma cantiga, as filhas responderam.


A obrigação começara.
Prendeu Doninha o primeiro galo sob seus pés e entre colocou
a cumbuca de barro. Segurou a ave pela cabeça, tomou da
faca, decepou o pescoço, o sangue correu. Arrancou depois
penas, juntou-as ao sangue.
O segundo galo foi sacrificado, as cantigas cortavam a noite,
desciam pelas ladeiras para a cidade da Bahia, em louvor a
Ogum. (AMADO, 2006, p. 36)

A partir de fragmentos como este que se torna público noções de rituais


sagrados e secretos do candomblé e do desvendar dos fatos na obra, o leitor e
levado a criar uma imagem, nesse caso, uma imagem positiva ou repensar os
conceitos estereotipados no que se refere aos cultos dos ancestrais africanos,
fazendo o processo de desterritorialização e reterritorialização dos sentidos a
partir da linguagem, como é apontado por Deleuze e Guattari em O que é uma
literatura menor?.

Baseado nessa perspectiva, a literatura amadiana poderia ser


considerada como uma literatura menor no sentido Deleusiano, já que possui
as três caraterísticas que define uma literatura como menor: a
desteritorialização da linguagem, o fator político e a enunciação coletiva. A
literatura, nesse sentido, torna-se como afirma Deleuze e Guattari encarregada
positivamente da função de enunciação coletiva, de fazer revolução, essa
revolução pode ser entendida como autoafirmação ou também no sentido de
revolução do pensamento. (DELEUZE E GUATTARI 1977, p.27)

A partir da escrita literária, tornou-se possível o processo de


desterritorialização do sentido relacionado ao negro, muitas vezes visto de
forma negativa e em contrapartida a reterritorialização, criando um novo
sentido que o torna positivo e autêntico, ressignificando dessa forma, os
discursos sobre os negros e suas práticas culturais, nos quais os negros são
muitas vezes identificados como subalternos e suas tradições como coisas
diabólicas.

1209
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Ao refletir sobre a escrita de Jorge Amado, sobre a presença do negro e


da cultura afro-brasileira e entendendo a ficção como lugar de manifestação do
discurso no sentido apontado por Foucault (1996, p.10) “discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”, tem-
se na ficção amadiana a luta pela igualdade de direitos, a busca pela
valorização das tradições culturais de matriz africana, da cidade enquanto lugar
marcado pela presença do negro.

De acordo Hall (2006) “As culturas nacionais são compostas não apenas
de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma
cultura nacional é um discurso- um modo de construir sentidos que influencia e
organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.”
Dessa forma, a partir dessa concepção de cultura nacional é possível perceber
a representação enquanto discurso político, que ao construir sentidos podem
esses ser positivos ou negativos, no caso da cultura negra os sentidos
construídos na obra de Jorge Amado, podem ser considerados como uma
política de afirmação do negro.

A obra estudada, por possibilitar discussões a cerca da cultura popular,


torna-se evidente o lutas politicas na busca pela valorização do arquétipo negro
e das tradições negras, operando nesse sentido, no terreno das diferenças, dos
conflitos causadores da discriminação étnica racial e dos fatores motivadores
da intolerância religiosa.

Considerações finais

O estudo da ficção amadiana possibilita entender os processos de


significação, o processo de desterritorialização e reterritorialização dos
significados linguísticos, o potencial do discurso literário a ser verificada como
uma ferramenta que pretende desconstruir ou ressignificar a imagem
estigmatizada criada em relação ao negro e as práticas culturais de matriz
africana.

1210
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O estudo da obra O compadre de Ogum contribui com a criação de


novos sentidos, a capacitação para enxergar a beleza e a riqueza presente nos
cultos afro-brasileiros, servindo também para questionar os discursos
hegemônicos eurocêntricos, o cânone brasileiro. A cidade de Salvador aparece
no romance como um personagem central a partir do qual se torna possível
estudar as práticas culturais afro-baianas.

A realização de estudos como esse, torna-se importante na medida em


que contribui para o entendimento dos modos de produção da literatura de
Jorge Amado e com produção, circulação de novos discursos e sentidos
relacionados à baianidade criada ou reinventada através da ficção, pautada na
cultura negra baiana. O Candomblé, o culto aos orixás, o sincretismo religioso,
aparecem no romance como forma de afirmação do negro e da cultura negra. A
literatura de Jorge Amado, nesse sentido, pode ser compreendida como uma
literatura que valoriza o popular e as tradições locais da cidade de salvador.

REFERÊNCIAS

ALVES, Miriam. Literatura negra; Surgimento do coletivo de escritores – do


isolamento ao quilombo literário. In: BrasilAfro autorrevelado. P41-58.

AMADO. Jorge. O menino grapiúna. 20. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

AMADO. Jorge. O compadre de Ogum. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

AMADO. Jorge. Os pastores da noite. São Paulo: companhia das letras,


2009.

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como da cidade. Tradução Pier Luigi
Cabra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. O que é uma literatura menor? In: Kafka:
por uma literatura menor. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. p.25-42.

DRUMMOND, Washington Luis Lima. Pierre Verger: Retratos da Bahia e


Centro Histórico de Salvador (1946-1952) – Uma Cidade Surrealista nos
Trópicos. Disponível em: http://www.laboratoriourbano.ufba.br/wp-
content/uploads/arquivos/arquivo-114.pdf Acessado em: 15 de outubro de
2015.

1211
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida


Sampaio. São Paulo: Loyola. 1996.

HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do popular. In: Da Diáspora:


Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p.
247-63.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de


Janeiro. DP&A, 2006.

PORTELLA, Eduardo. A fábula em cinco tempos. In. Jorge Amado: trinta


anos de literatura. São Paulo: Martins, 1961.p. 13-26.

PRANDI, Reginaldo. Religião e sincretismo em Jorge Amado. In. Caderno de


leituras: o universo de Jorge Amado-orientações para o trabalho em sala
de aula. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

SCHWARCZ. Lilian Moritz. O artista da mestiçagem. In. Caderno de leituras:


o universo de Jorge Amado-orientações para o trabalho em sala de aula.
São Paulo: Companhia das letras, 1999.

1212
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: BRASIL – ÁFRICA – MERCOSUL: DIREITOS


HUMANOS EMANCIPATÓRIOS, EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS,
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO, (DE)COLONIALIDADE DO PENSAMENTO E
EPISTEMOLOGIAS DO SUL. CRÍTICA A IDEOLOGIA DA DOMINAÇÃO E
EXCLUSÃO

PROPOSITORES: JOSÉ CLÁUDIO ROCHA (UNEB), DENISE A. B. F. ROCHA


(UNEB) E LUÍS CARLOS ROCHA (UNEB)

Ementa:

O presente GT tem como objetivo receber trabalho que discutam a realidade

política, econômica, social e cultural do Brasil – África – Mercosul a partir do

referencial teórico da vertente emancipatória dos direitos humanos, da

educação em direitos humanos, filosofia da libertação, (de)colonialidade do

pensamento e epistemologias do Sul. Partimos do pressuposto de que é

fundamental produzir e difundir conhecimento a partir dessas novas teorias do

pensamento humano.

1213
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BRASIL – ÁFRICA – MERCOSUL: DIREITOS HUMANOS


EMANCIPATÓRIOS, EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, FILOSOFIA DA
LIBERTAÇÃO, (DE)COLONIALIDADE DO PENSAMENTO E
EPISTEMOLOGIAS DO SUL. CRÍTICA A IDEOLOGIA DA DOMINAÇÃO E
EXCLUSÃO

JOSÉ CLÁUDIO ROCHA 283


jrocha@uneb.br
DENISE A.B.F. ROCHA 284
dfrocha@uneb.br
LUIZ CARLOS ROCHA 285
Luizrocha.ba@terra.com.br

O conhecimento nos leva à libertação. E esta à felicidade!


José Cláudio Rocha

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo foi escrito a partir de estudos e investigações que estão


sendo conduzidos dentro dos grupos de pesquisa Gestão, Educação e Direitos
Humanos (GEDH/UNEB/CNPq) e CriaAtivos:criando um novo mundo
(CRIAATIVOS/UNEB/CNPq) sobre Direitos Humanos Emancipatórios e as
Teorias Políticas do Sul, como proposto por teóricos como Antonio Carlos
Wolkmer (2004), Enrique Dussel (2015), Boaventura de Sousa Santos (2007),
Quijano (1992) e Mance (2000), que deram origem ao Grupo de Trabalho
BRASIL – ÁFRICA – MERCOSUL: DIREITOS HUMANOS
EMANCIPATÓRIOS, EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, FILOSOFIA DA
LIBERTAÇÃO, (DE)COLONIALIDADE DO PENSAMENTO E

283
Advogado, economista e professor titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). É
mestre e doutor em educação e integra os Grupos de Pesquisa Gestão, Educação e Direitos
Humanos e CriaAtivos:criando um novo mundo. Área de Pesquisa Direitos Humanos e Novas
Economias. link para o currículo Lattes:HTTP:// lattes.cnpq.br/5068823120384244.
284
Pedagoga, professora e analista universitária da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
É mestra e Doutora em Educação. Especialista em Educação em Direitos Humanos. Link para
o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7218553892275774.
285
Sociólogo, professor de educação física e professor assistente da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB). Mestre e doutor em Educação. Integra os Grupos de Pesquisa Gestão,
Educação e Direitos Humanos e CriaAtivos: criando um novo mundo. Área de pesquisa
políticas públicas. Link para o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8268479229538782.

1214
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

EPISTEMOLOGIAS DO SUL. CRÍTICA A IDEOLOGIA DA DOMINAÇÃO E


EXCLUSÃO, realizado dentro do II Simpósio Internacional de Baianidade
(SIMBAIANIDADE) e II Congresso Internacional de Línguas e Literaturas
Africanas e Afro-Brasilidades (CILLAA), eventos que aconteceram na
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Salvador-Bahia, em outubro de
2015 286.

O objetivo do Grupo de Trabalho realizado que se estende a este artigo é o de


socializar e/ou difundir conhecimento sobre a temática escolhida, revelando o
“estado da arte” dessa teoria, assim como, formando “massa crítica” capaz de
levar a termo às transformações sociais e políticas desejadas por nosso povo,
sobretudo, os grupos excluídos.

Ainda dentro deste objetivo, está a possibilidade concreta de transformar


conhecimento tácito (fruto das vivências, experiência e reflexões do dia a dia)
em conhecimento explícito e/ou expresso (em livros, artigos científicos entre
outras formas de difusão do saber), nas lições de Nonaka e Takeuchi (2007).

O relato de experiência é uma forma contemporânea de produzir e difundir


conhecimento, onde os sujeitos podem expressar suas vivências, valorizando
as diversas formas de saberes, integrando o conhecimento popular com o
acadêmico-científico.

Esse objetivo expressa nossa metodologia de pesquisa e formação das


comunidades, um método que se afirma na pesquisa em Direitos Humanos e
nos estudos sobre comunidades; na integração da educação como objeto
fundamental de pesquisa e questão essencial a promoção da justiça; no
diálogo multirreferencial e interdisciplinar para a produção do conhecimento; na
relação com a sociedade como lócus privilegiado para a produção de
conhecimento; na organização dos grupos de pesquisa de forma solidária e

286
É digno de nota que este grupo de trabalho surpreendeu até nossa equipe ao ter, segundo dados da
organização do evento, 96 (noventa e seis) inscritos numa tarde ensolarada de domingo na cidade do
Salvador, capital do Estado da Bahia, conhecida pelo turismo e pelo patrimônio cultural. Ficamos
impressionados e, ao mesmo tempo, felizes com a receptividade da comunidade acadêmica com a
temática o que, de certa forma, nos indica que estamos no caminho certo ao pensarmos as relações
entre o Brasil , África e Mercosul a partir dos Direitos Humanos Emancipatórios, balizados pelas Teorias
do Sul.

1215
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

colaborativa; nas metodologias participativas que têm como fim a promoção da


cidadania, da democracia e dos direitos humanos; na perspectiva do
empoderamento e autonomia dos sujeitos coletivos de direito 287.

A justificativa tanto para a realização do grupo de trabalho como para a


produção desse artigo se expressa, mais uma vez, na importância de
discutirmos um paradigma para o conhecimento no Brasil baseado não num
pensamento a partir do Norte, mas nas teorias políticas do Sul que se
expressam como “vozes do terceiro mundo” e buscam refletir sobre quais os
caminhos que podem nos levar a Justiça Social e a Democracia em todas as
regiões do planeta. Nas próximas páginas daremos continuidade a essa
reflexão, tentando reunir os pontos dessa importante questão.

2. BRASIL – ÁFRICA – MERCOSUL

Os processos históricos da América Latina e África têm sido marcados por uma
trajetória construída pela ideologia da dominação interna e submissão externa,
fundada numa realidade de dependência econômica, política e social. Trata-se
de uma cultura montada a partir da lógica da colonização, exploração,
dominação e exclusão de múltiplos segmentos sociais, étnicos, religiosos e
comunitários. Nessas regiões do planeta, diferente do que ocorreu nos países
do Norte, as estruturas sociais foram erigidas nos pilares dos preconceitos de
classe social, raça e gênero e na ideologia da exclusão social.

Revela-se aqui a noção de infraestrutura e superestrutura econômica, tendo


em conta que toda a criação humana reproduz determinada espécie de
relações sociais, expressando necessidades, produção e distribuição,
tornando-se natural compreender a cultura política e jurídica dessas regiões
como um reflexo das diferenças histórico-estruturais e contradições em

287
Durante o III Congresso Brasileiro de Filosofia da Libertação: Estéticas e Culturas de
Libertação, realizado em 2015 na Universidade Federal da Bahia, ficou patente que os
pesquisadores (as) que pretendem trabalhar de fato com essa temática o devem fazer na
relação com a sociedade, isso de certa forma se apresenta nas pesquisas sobre direitos
humanos que, segundo a Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-
Graduação (ANDHEP), trazem em sua maioria uma relação direta com as comunidades
através da extensão

1216
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

diversos momentos socioeconômicos vivenciados. Em outras palavras, a


superestrutura política, jurídica, social e cultural dessas regiões vem sendo
determinada pelas relações sociais de produção que o Sul mantém com o
Norte, expressada na política econômica internacional288.

As histórias dessas duas regiões do planeta são marcadas pelo autoritarismo e


pela violência, seja ela física ou simbólica, por parte das elites dominantes e
pela marginalidade e resistência da maioria da população, especialmente,
daqueles que estão numa condição de vulnerabilidade social, como os
movimentos sociais, organizações populares, comunidades tradicionais,
indígenas, quilombolas, camponeses, entre outros grupos sociais.

A relação entre o Brasil, África e Mercosul pode ser pensada a partir dessa
ideia, isto é, das aproximações que podem ser feitas em relação aos processos
históricos que esses grupos sociais estão vivendo, principalmente, no período
pós-colonialismo, em que se procura construir uma nova identidade social,
agora não mais pela visão das elites, sejam elas nacionais ou internacionais,
mas a partir de um pensamento mais sintonizado com os anseios das classes
populares, com a luta pela libertação dos oprimidos (FREIRE, 1987). A ideia da
formação de um pensamento pós-colonial articula-se luta pela independência;
a autonomia; a libertação e emancipação das sociedades exploradas pelo
imperialismo e neocolonialismo; especialmente, nos continentes sulamericano
e africano que hoje lutam para quebrar a dependência econômica, social e
política entre regiões do planeta.

Deste modo teorias como a Filosofia da Libertação (DUSSEL,2015), as


Epistemologias do Sul (SANTOS, 2007); e a (de)colonialidade do pensamento
(QUIJANO,1992), indagam como – no processo de libertação social – é
possível os países do Sul, especialmente, latino-americanos e africanos,
descobrirem sua identidade nacional e sua independência cultural. Nesse
aspecto, importa identificar um projeto de libertação que permita erradicar as

288
Uma clara noção dessa realidade nos dias atuais se dá quando os programas jornalísticos
nacionais revelam que uma determinada agência internacional rebaixou o conceito do Brasil
em termos de confiança para investimentos internacionais, não há nada mais esclarecedor
dessa relação de dependência do que a divulgação desses indicadores.

1217
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

práticas históricas de dominação interna e externa, secularmente sustentadas


por modelos econômicos, sociais e políticos colonizadores e dependentes.

Para Wolkmer (2004,p.04), daí a importância e imperiosidade histórica de se


trabalhar na materialização de elementos iniciais e estruturantes para uma
proposta cultural teórica-prática (em sentido filosófico) que permita a
desmistificação das velhas estruturas alienantes e viabilize o avanço das
alternativas democráticas emancipadoras. É preciso introduzir, discutir e
constituir um pensamento crítico-libertador, síntese real de nossa própria
existência histórica, sociopolítica e jurídica e que seja capaz de revelar pela
primeira vez a originalidade e autenticidade do “ser” dos povos do Sul.

A história político-jurídica dessas duas regiões do planeta refletem as


contradições econômicas vividas na infraestrutura econômica, certamente, os
elos das contradições nos países da América Latina e África vão ser
encontrados na conjugação de fatores internos e externos, pois a dependência
econômica é fruto tanto das condições criadas pelo sistema de dominação
político-econômica mundial, quanto das relações de classe ação ética cultural
dos agentes e dos grupos na esfera de cada nação e cada estado (WOLKMER,
2004, p.05).

A transposição de modelos econômicos, culturais e jurídico, que são


assimilados acriticamente pelas elites locais impedem o desenvolvimento de
um pensamento próprio e de uma cultura local (ZAOUAL, 2003).

Para Dussel (2015) não se pode afirmar que inexiste uma cultura nesses
países, pois, mesmo tendo presente a dominação interna e externa, e as
peculiaridades regionais e nacionais, é admissível que cada nação postule sua
cultura. Em verdade, essa cultura será fruto dos séculos de dominação e da
confluência de diferentes culturas, expressando a mistura de comportamentos
e a inter-relação de padrões de conduta diferentes, reconhecendo-se diferentes
níveis de autonomia nessas sociedades.

3. FILOSOFIA E POLÍTICA DA LIBERTAÇÃO

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Neste cenário, qual o caminho para o Brasil, África e os países do Mercosul?


Como essas nações podem construir seu próprio modelo de desenvolvimento
social sustentável, considerando que não existe modelo único, cada povo deve
encontras as bases de seu desenvolvimento (ZAOUAL,2003)? Ao nosso olhar
não existe uma resposta pronta a essa questão, mas existem pontos que
podem e devem ser considerados como, segundo Wolkmer (2004, p.07), a
reconstrução de um projeto político pautado na destruição da dominação
interna e externa, bem como, pelo fortalecimento de sua verdadeira autonomia
cultural, prescindindo de modelos alienígenas e ideias colonizadoras, estão na
base dessa transformação cultural em direção ao respeito a dignidade humana.

Partindo da concepção defendida por Wolkmer (2004), trata-se e pensar essa


relação entre a África com a América Latina não a partir do passado de
dominação e exclusão, mas como o presente e o futuro de resistência e de
construção de sua utopia. Não está em modelos socialistas do passado, que
perderam parte de sua mística e operacionalidade, nem tampouco, no modelo
neoliberal aplicado ao terceiro mundo que só traz pobreza e miséria. Trata-se
de buscar concepções estratégicas que, rompendo com a cultura opressora,
partam da resistência e dos valores dos oprimidos, dos excluídos, dos
subalternos que agora libertos de toda a servidão, tornam-se agentes que
aassumam seu próprio objetivo na história.

As raízes de um pensamento libertário autêntico há de ser encontrado na


experiência histórica e no imaginário utópico do sincretismo cultural
proveniente dos povos tradicionais e oprimidos. Não se trata de negar as
formas teóricas de conhecimento da tradição ocidental, tampouco as
conquistas inerentes às praticas emancipadoras da modernidade, mas buscar
construir um modo de vida assentado em novos paradigmas de legitimidade e
de racionalização. Daí o compromisso por uma cultura libertadora fundada em
novos critérios e em outras lógicas de constituição, que revele, mais clara e
radicalmente nossa própria identidade histórica, sociocultural e política
(WOLKMER,2004).

1219
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

4. DIREITOS HUMANOS EMANCIPATÓRIOS

A primeira questão que se coloca nesse ponto é se pode o direito ser


emancipatório. Nesse momento, lembro da lição de André Franco Montoro no
seu livro sobre a Ciência do Direito, em que o mestre revela que em relação ao
direito podemos ter duas atitudes: a primeira delas é ver o direito como
instrumento de manutenção do status quo. Para este grupo, frisa Montoro, o
melhor caminho é tratar o direito como sinônimo de lei. A segunda perspectiva,
é tratar o direito como um instrumento de emancipação social, para esta
segunda perspectiva é preciso compreender o direito como algo muito maior do
que a lei legitimada pelo Estado, é coloca-lo a serviço das questões sociais
(MONTORO,2000).

Nesse mesma perspectiva Lyra Filho (1982) assevera que em relação ao


direito a maior dificuldade não é dizer o que é, mas dissolver as imagens falsas
ou distorcidas que muita gente aceita como um retrato fiel, é romper com as
falsas noções do direito, pois a identificação entre direito e lei faz parte do
repertório ideológico do Estado, a quem interessa negar as contradições que
existem no seio da sociedade.

Para Santos (2003), na modernidade a tensão entre regulação social e


emancipação passou a ser mais objeto da regulação jurídica e do Estado, nos
termos da distinção entre emancipação social legal e ilegal – desde então uma
categoria política e jurídica essencial – só seriam permitidos os objetivos e
práticas emancipatórias sancionadas pelo Estado. Para Santos, é possível
pensar num direito emancipatório a partir de estratégias cosmopolitas e
subalternas. Em relação aos direitos humanos emancipatórios, afirma que:

“ a crise da modernidade ocidental veio mostrar que o fracasso


dos projetos progressistas relativos à melhoria das
oportunidades e das condições de vida dos grupos
subordinados tanto dentro como fora do mundo ocidental se
deveu, em parte, à falta de legitimidade cultural. Isso mesmo
sucede com os direitos humanos e com os movimentos que
lhes dão voz, pela razão de que a universalidade dos direitos
humanos não é algo que possa ser dado como adquirido. A
ideia de dignidade humana pode ser formulada em muitas
“línguas”. Em vez de serem suprimidas em nome de
universalismos postulados, essas diferenças têm de se tornar
mutuamente inteligíveis através de um esforço de tradução e

1220
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

daquilo a que chamei uma hermenêutica diatópica (SANTOS,


2003, p.06-73.

Para Santos, a questão dos direitos humanos transcende o direito na zona de


contato. Nesta, o que está em jogo é o encontro entre direitos humanos
enquanto específica concepção cultural da dignidade humana e outras
concepções alternativas que com ela rivalizam. Enquanto a legalidade da
democracia liberal defenderá, quando muito, uma sociabilidade de
reconciliação assente no pressuposto da superioridade da cultura de direitos
humanos do Ocidente, a legalidade cosmopolita subalterna irá procurar
construir, através da hermenêutica diatópica, uma sociabilidade de
convivialidade assente numa hibridação virtuosa entre as mais abrangentes e
emancipatórias concepções de dignidade humana, nomeadamente as
concepções perfilhadas pela tradição dos direitos humanos e pelas restantes
tradições de dignidade humana presentes na zona de contacto. Afirma Santos,

Uma tal reconstrução transcultural tem por premissa uma


política de reconhecimento da diferença capaz de estabelecer
ligações entre, por um lado, as incrustações locais e a
importância e capacidade organizativa das iniciativas vindas da
base, e por outro lado a inteligibilidade translocal e a
emancipação. Uma dessas interligações reside na questão dos
direitos dos grupos, ou dos direitos colectivos, problema que na
legalidade demoliberal é suprimido ou trivializado. A legalidade
cosmopolita propõe uma política de direitos em que os direitos
individuais e colectivos se reforçam mutuamente em vez de se
canibalizarem. A exemplo do que acontece em todos os outros
casos de legalidade cosmopolita, deverão os direitos humanos
cosmopolitas da zona de contacto ser defendidos e levados por
diante pela mão de actores locais, nacionais e globais, capazes
de integrar os direitos humanos em projectos emancipatórios
cosmopolitas de âmbito mais abrangente (SANTOS, 2003, p.06
a 73).

Se o direito pode e deve ser emancipatório, falar em Direitos Humanos


Emancipatórios é pensar num projeto de ruptura com a cultura de dominação e
de exclusão social e na reconstrução da política e do direito, tendo em vista o
projeto de emancipação humana – individual e coletiva – da libertação, e da
luta contra todas as formas de dominação (conscientização) e do pluralismo
democrático, solidário e participativo, cabe assinalar os procedimentos de
crítica, tomada de consciência e de instrumentalização que irão permitir a
libertação. Ao pensarmos em direitos humanos emancipatórios, cumpre pensar

1221
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

em formas de operacionalização de uma teoria capaz de questionar e


desmontar formas hegemônicas do saber e de representação social que têm
mantido a cultura de dominação e exclusão.

Essa concepção de direitos humanos alinha-se com a ideia de libertação,


categoria diferente da liberdade liberal, mas a libertação de todas as formas de
opressão e dominação, seja ela de classe, raça ou gênero. Para Wolkmer
(2004, p.08) o conceito de libertação não só se refere a múltiplos sentidos
como tem sido utilizado para interpretações nem sempre similares. A noção de
libertação defendida, enquanto manifestação da emancipação, autonomia e
liberdade – do sujeito de direito individual e coletivo – deve gerar em
consideração critérios como o espaço físico que gera as condições de
emergência (desde onde) e os destinatários (a quem se destina) (WOLKMER,
2004, P.11).

Isso explica porque o processo situa-se, segundo Wolkmer (2004) na América


Latina onde com mais sinteticidade e com mais consciência se fez uma teoria
sobre a ideia de libertação. Igualmente, justifica-se o significado da libertação,
tendo como protagonista as maiorias populares, marginalizadas e oprimidas,
ou seja, aqueles que se encontram em um sistema social de pobreza oi
indigência, na qual as condições fundamentais para sobreviver não são
reconhecidas, nem são satisfeitas.

Nas últimas décadas do século XX o conceito complexo de libertação passou a


ser problematizado com ênfase no âmbito da teologia, da filosofia e da ética.
Essa tematização ganhou tamanha relevância que acabou propiciando o
surgimento da filosofia da libertação. Como assinala Euclides André Mance:

Não apenas consideram libertação em seu caráter negativo,


isto é, é a libertação de procedimentos ou cerceamento ao
exercício satisfatório da liberdade, quanto positivamente, isto é,
a libertação para a realização das valiosas singularidades
humanas em sua criativa diversidade (MANCE,2000,p.64).

1222
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Segundo Wolkmer (2004,p.07) ainda que se possa considerar os primórdios da


luta contra a escravidão humana e a procura pela plena liberdade entre alguns
sofistas da Grécia Antiga, foi na modernidade europeia, que conceitos como
liberdade, autonomia e emancipação acabaram por serem destacados e
aprofundados em diferentes tendências filosóficas. Por outro lado, a noção de
libertação, como substrato de uma filosofia emancipadora é formulação
relativamente recente que tem nascedouro no mundo periférico da América
Latina. No contexto de uma cultura de dominação e de dependência econômica
de negação dos direitos humanos e da democracia econômica, a violência e a
marginalização a que estavam submetidas as populações latino-americanas
ensejam a reflexão sobre a temática de libertação a partir de diversas
disciplinas e quadros teóricos.

A libertação não se confunde com a liberdade, mas, de um questionamento


sobre a realidade concreta em que vivem as pessoas submetidas a diversas
formas de dominação, bem como sobre os processos voltados a transformação
dessa situação. Assim a “práxis” da libertação tem como fundamento o outro
oprimido, a reconstituição da alteridade do excluído na história da humanidade,
o intento de libertação tem sido buscado permanentemente. Libertação de tudo
que limita e impede ao ser humano a realização em si mesmo, de tudo que
trava o acesso à sua liberdade ou ao exercício dela (GUTIERREZ, 1985, p.34).

A libertação representa a passagem da alienação à liberdade como afirmação


da exterioridade radical do outro (AMES, 1992, p.64). A libertação enquanto
práxis que subverte e destrói a ordem presente é a crítica total ao estabelecido,
fixo, normatizado, cristalizado e morto.

A libertação é o processo dialético que se contrapõe a opressão enquanto


limitação da condição humana, é uma ação de transgressão, com passagem e
ruptura, como movimento histórico de sujeitos que estão dominados e
oprimidos para a condição de pessoas que realizam a sua própria liberdade. É
a libertação como desafio, como transposição do instituído, como utopia real,
como redefinição da solidariedade e afirmação da alteridade.

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5. CONCLUSÃO

A academia vem trabalhando a questão dos direitos humanos em pelo menos


três perspectivas, a primeira delas e mais comum, principalmente, para os
cursos jurídicos, é o tratamento dos direitos humanos como direitos
fundamentais. A segunda vertente, é aquela que faz uma leitura dos direitos
humanos a partir de documentos internacionais como a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 entre outros documentos internacionais. A
terceira vertente, que está presente neste trabalho, é a que chamamos de
Direitos Humanos Emancipatórios que tem uma ligação direta com a ideia de
emancipação, autonomia dos sujeitos individuais e coletivos, e com a ideia de
libertação.

A concepção de libertação que está presente para os Direitos Humanos


Emancipatórios, é uma concepção diferente da ideia liberal de liberdade,
associa-se aos processos históricos de exploração vividos na América Latina e
também no Continente Africano. É essa concepção que se articula com as
ideias de empoderamento (empowerment) da sociedade civil, e prestação de
contas ou responsabilização dos gestores públicos (accountability) que está
presente em nossa metodologia de trabalho chamada de Abordagens
Baseadas em Direitos Humanos (Human Rights Based-Approaches – RBA),
Rocha (2013).

Com todo o respeito às duas primeiras vertentes, são os direitos humanos na


perspectiva emancipatória que traz o discurso crítico, dialético e interdisciplinar
necessário ao avanço do projeto de civilização, que caracteriza-se por ser fruto
de uma experiência social concreta, que busca examinar a conjuntura social e
política dominante, promovendo a conscientização e organização popular, e a
transformação da realidade institucional. O pluralismo jurídico, a educação em
e para os direitos humanos, são ferramentas nesse processo. Ante o exposto,
a efetivação dos direitos humanos como instrumento de transformação social
requer uma postura emancipatória perante o direito que dá aos movimentos
sociais o protagonismo das lutas, e faz da universidade uma instituição de
apoio e referencia para as lutas sociais.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMES, J. L. Liberdade e libertação na ética de Dussel. CEFIL: Campo Grande,


1992, p.64.

DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: Na Idade da Globalização e da


Exclusão, 2ª Edição, Editora Vozes: Petrópolis, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17 Edição, Editora Paz e Terra: Rio
de Janeiro, 1987.

GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação, 2ª Edição, Vozes: Petrópolis,


1985.

QUIJANO, Aníbal & WALLERSTEIN, Immanuel (1992). "Americanity as a


concept, or the Americas in the modern world-system". International Social
Science Journal, v. 44, n. 4, p. 549 - 557.

LYRA FILHO, Roberto. O que é o direito. Editora Brasiliense: São Paulo, 1982.
MANCE, Euclides André. A Revolução das Redes:A colaboração solidária
como uma Alternativa Pós-Capitalista. Editora Vozes: Petrópolis, 2000.

MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. Editora Revista dos


Tribunais: Rio de Janeiro, 2000.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Can Law be Emancipatory? (Poderá o Direito


Ser Emancipatório?). Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 65, 2003, p. 03-
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WOLKMER, A. C. Direitos Humanos e Filosofia Jurídica na América Latina.


Lumen: Rio de Janeiro, 2004.

ZAOUAL, Hassan. Globalização e Diversidade Cultural. Editora Cortez: São


Paulo, 2003.

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DIREITOS HUMANOS, DIGNIDADE,


DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO NO BRASIL

ANA MARIA MACIEL BITTENCOURT PASSOS¹ (UNEB)

RESUMO: O presente artigo aborda o tema Direitos Humanos, Democracia,


Dignidade no Brasil e objetiva discutir a Educação, a partir da Filosofia da
Libertação, e fazer uma reflexão sobre a Educação em Direitos Humanos na
América Latina enquanto um projeto emancipatório. Identifica-se que alguns
teóricos em diversas áreas do conhecimento, resolveram se preocupar com a
Dominação e consequente Exclusão e a fundamentar o pensamento político e
jurídico latino-americano na Teoria Crítica. Para afirmar-se se há emancipação,
imperioso seja estendida a compreensão sobre a democracia e a cidadania
ativa. A partir desse escopo, constata-se que sem Direitos Humanos não há
que se falar em Democracia e que o fundamento dos Direitos Humanos é o
reconhecimento da Dignidade inerente a todo ser humano.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Democracia; Dignidade;


Educação em Direitos Humanos; Emancipação.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Filosofia da libertação; 3. Política, Democracia e


Filosofia da Libertação; 4. Direitos Humanos Reais; 5. Educação em Direitos
Humanos. 6. Conclusão; 7. Referências Bibliográficas.

_______________________________________________________________

1 Mestre em Direito, Especialista em Direito Econômico, Especialista em Processo e


Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Especialização em
Direitos Humanos pela Universidade do Estado da Bahia em convênio com a Escola Superior
do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito do Trabalho pela Escola de
Magistratura do Trabalho. Aluna Especial do Doutorado em Educação e Contemporaneidade
da Universidade do Estado da Bahia. Professora Assistente pela Universidade do Estado da
Bahia.

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo é engendrar uma nova perspectiva dos Direitos


Humanos tendo como base pedagógica e jurídica os segmentos teóricos da
filosofia da libertação. Pautando assim, a construção de uma nova metodologia
do ensino dos direitos humanos tendo como fonte a práxis, a comunidade, e
luta pela dignidade de direitos, principalmente, no que tange a América Latina e
a construção paulatina de uma ruptura colonial epistemológica do pensamento.
Cabe também ao artigo, demonstrar o papel político e sua ligação ad infinitum
com a filosofia gerando como conseqüência a formação do direito na sua
ontologia, ou seja, na sua essência e formação. Portanto, a consecução dos
objetivos que se deve angariar levará em consideração a libertação dos
paradigmas econômicos, filosóficos, políticos, pedagógicos, antropológicos e
teológicos em relação a dominação européia e norte-americana, buscando
assim uma alternativa principiológica fundamentada nas lutas latino-
americanas e seus respectivos movimentos sociais, assim como sua
emergência, independência e libertação nos aspectos supracitados. Por fim, o
artigo denotará a importância do tema para uma educação em Direitos
Humanos nessa perspectiva e a consolidação e legitimação jurídico-positivista
do direito frente às diretrizes da filosofia da libertação consistindo numa
perspectiva decolonial e num novo modelo hermenêutico interpretativo legal,
assim como, a construção de uma nova democracia de viés efetivamente
social, comunitário e popular.

2. A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

A filosofia da libertação surge para responder a um contexto latino-americano


marcado pela opressão, exploração, dominação e principalmente a escravidão
econômica de seus países, onde seu povo carrega consigo as marcas desses
segmentos. Não se prendendo assim, em se pensar somente ao passado,
mas, pensar o presente e o futuro na busca da efetivação das lutas pelos
direitos sociais no objetivo do modelo de utopia latino-americano. Tendo como
precursores autores como Leopoldo Zea, Rodolfo Kusch, Augusto Salazar

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Bondy e Arturo A. Roig que desencadearam uma filosofia libertária,


sistematizadas por Enrique Dussel, Horacio Cerutti, Pablo Guattarrama e
Euclides Mance. No campo pedagógico, Paulo Freire e Ilda Danke. No
geográfico, Milton Santos. Na Sociologia, Ignácio Sotello, Florestan Fernandes,
Orlando Fals Borda. Darcy Ribeiro e Alberto Vivar Flores no campo
antropológico. E como principais defensores da teologia da libertação temos,
Gustavo Gutierrez, Hugo Assmann, Juan Luis Segundo, Clodovis e Leonardo
Boff.
É, portanto, um movimento histórico que não visa somente à liberdade do povo
latino americano, mas sim a sua libertação e porque? Segundo Euclides André
Mance “é porque ela pensa um movimento concreto, histórico de passagem de
sujeitos que estão dominados e oprimidos para uma condição de pessoas que
realizam a sua própria liberdade. E a palavra é muito boa pelo seguinte:
libertação é um movimento, uma ação que jamais estará totalmente realizada,
completa. A libertação é sempre um movimento, nunca existirá uma libertação
total, porque da mesma forma nunca existe uma dominação total; há sempre
uma margem de liberdade e há sempre uma margem de determinação na
circunstância”. Portanto, sendo a ação de buscar a liberdade, a filosofia da
libertação, deverá objetivar que os seus agentes assumam o papel de
construção de sua própria história. Sendo assim, a mesma tem como objeto à
análise da realidade concreta em que a população está inserida e o que fazer
para romper com a dominação a que elas estão submetidas, ou seja, um meio
de promover a liberdade e fazer com que o homem busque permanentemente,
como afirma Carlos Wolkmer, “a realização de si mesmo e de tudo o que trava
o acesso a sua liberdade e o exercício dela”.
Essa libertação só de dará primeiramente, através de uma consciência crítica,
ou seja, consciência essa pautada no sentido de que não existe conhecimento
desvinculado da práxis, sendo assim, a consciência crítica, no sentido de
Carlos Wolkmer “emerge como elaboração instrumental dinâmica que
transpõe os limites naturais das teorias tradicionais, não se atendo apenas a
descrever o que está estabelecido, ou a contemplar, equidistantemente, os
fenômenos sociais e reais”, ocorrendo assim, a partir da teologia, pedagogia,
antropologia, geografia, e sociologia. A partir disso, percebe-se que o campo

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de influencia da filosofia da libertação é bastante amplo tendo seu segmento e


fundamentação no que consiste, que a libertação deverá vir do individuo, ou
seja, dignidade concreta e emancipação. Sendo assim, essa libertação,
emancipação e dignidade só se dará mediante conscientização que só será,
por sua vez, possível na prática. Como afirma Dussel, pela teoria orientada
para a prática, auxiliando, concretamente, na organização e na conscientização
das comunidades, denunciando as injustiças do sistema.

3. POLITICA, DEMOCRACIA E FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

Partindo da premissa pela qual a filosofia constrói as bases da política e que


essa, conseqüentemente, cria a lei e o direito é necessário trazer o conceito de
política e de como ela se dará ou poderá ser construída a partir da perspectiva
da filosofia da libertação. Sendo assim, política tem a ver com a convivência,
ou seja, organização da vida em coletividade que resulta em disposições,
investimentos, engajamentos e condutas de seus agentes.
Portanto, não há como se pensar a política sem estar relacionada com a
vivência do povo e com suas lutas pelos direitos humanos reais, não pautados
na abstração européia, mas concebidos das lutas pela dignidade. Sendo
assim, a política não irá se traduzir, tão somente, no que tange a concepção de
liberdade do individuo, mas em denunciar a opressão e a dependência além de
desenvolver bases de transformação do sistema vigente.
Contudo, a Política Crítica segundo Carlos Wolkmer “revela-se como um
diagnóstico científico e uma práxis transformadora das patologias do instituído
e das diversas formas da negatividade material (miséria, marginalização,
exclusão, negação da cidadania)”. Partindo disso, a noção de Democracia
tendo como consecução a criação de leis, desvinculado do sentido filosófico
universalista que consiste no vínculo aos preceitos filosóficos e políticos da
Europa, e, tomado o sentido de filosofia regionalista que configura um
segmento apartado das noções européias, sendo puro e pragmatizado na
America latina e nas suas relações sociais.
Por fim, como assevera Erique Dussel “a filosofia crítica da política deve atuar
assumindo a responsabilidade pelo outro e contribuindo para implementar

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estruturas políticas justas e legitimas, mediante novas normas, leis, ações e


instituições”. Esse é o sentido da Política filosófica Crítica que a Filosofia da
Libertação objetivando os Direitos Humanos reais tenta engendrar na
Democracia. Para que a mesma, permaneça voltada a supremacia dos
interesses sociais reais, tornando o seu povo donos de sua historia, e trazendo
a noção de plena dignidade, autonomia e emancipação.

4. DIREITOS HUMANOS REAIS

Joaquin Herrera Flores traz uma nova perspectiva dos direitos ''como
processos institucionais e sociais que possibilitem a abertura e a consolidação
de espaços de luta pela dignidade''. Assim como a filosofia da libertação, os
direitos humanos devem refletir uma luta pela dignidade, onde o direito
conquistado deve se adequar a realidade social do povo, um direito visando
uma aplicação na prática. Os direitos humanos são conquistas para aqueles
que necessitam do cumprimento dos seus desejos e necessidades. Sendo
assim, a América latina precisa de direitos humanos voltados para sua
realidade social.
Partindo de uma premissa européia os direitos humanos, nascem da convicção
de que todos os seres humanos têm direito a serem igualmente respeitados,
pelo simples fato de sua humanidade, conceito esse de amplo alcance. A
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em um dos seus artigos aborda
que todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como
pessoa. Esse artigo caracteriza a idéia de generalidade, e grande abstração. E
tendo uma nova perspectiva dos direitos humanos hodiernamente, visa romper
com esse conceito, pois, como já foi visto, os direitos humanos nascem de
lutas, e são conquistas da sociedade, que refletem seus interesses para uma
vida melhor.
Os direitos humanos costumam ser divididos em dimensões, e cada período
tem um marco, pode ser uma revolução, uma constituição, todos eles são
frutos da pugna pela dignidade. A primeira dimensão é marcada pela
Revolução Francesa, traz os direitos de liberdade, pois é fruto do pensamento
liberal burguês, de caráter fortemente individualista, aparecendo como uma

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esfera limitadora da atuação do Estado representa uma atuação negativa do


Estado, uma inação. Os direitos de segunda dimensão reclamam do Estado
uma ação que possa proporcionar condições mínimas de vida com dignidade,
são os direitos sociais, econômicos e culturais, visa à diminuição da
desigualdade. Alexandre de Morais afirma que, ''direitos de terceira dimensão,
são chamados direitos de solidariedade e fraternidade, que englobam o direito
a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, ao
progresso, a paz, a autodeterminação dos povos e a outros direitos''. São
direitos coletivos. Paulo Bonavides conceitua os direitos de quarta dimensão
como “o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Deles depende a concretização da sociedade aberta para o futuro, em sua
dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se
no plano de todas as relações de convivência”.
Existe uma necessidade de romper com o padrão abstrato dos direitos
humanos da concepção européia, já que esses só terão efetividade se
estiverem baseados na prática, ou seja, é necessário a assunção de
compromissos e deveres advindos das lutas e práticas sociais. Como assevera
Joaquín Herrera Flores, ''nossa teoria crítica dos direitos humanos trabalha
com a categoria de deveres autoimpostos nas lutas sociais pela dignidade, e
não de direitos abstratos nem de deveres passivos que nos são impostos a
partir de fora de nossas lutas e compromissos”.

5. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

A teoria da libertação prega ainda, uma ruptura com a educação tradicional de


estrutura autoritária, que traz a repetição de padrões alienantes, pois essa
repetição induz a perpetuação de injustiças. Tem-se a necessidade então, de
uma educação escolar que se identifique com as necessidades reais da vida
humana e que possibilite a emancipação cultural, a libertação das
comunidades da América Latina.
Paulo Freire com a ''pedagogia do oprimido'' fornece as bases para esse novo
modelo educacional direcionado as comunidades periféricas da América

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Latina, Antonio Carlos Wolkmer, sintetiza a proposta de Paulo Freire como ''um
forte instrumento de cunho revolucionário que age íntima e permanentemente
no sentido das mudanças e das transformações da sociedade. Trata-se de uma
proposta metodológica que privilegia o diálogo, a participação, a formação de
uma consciência crítica do mundo e uma nova relação entre os homens. Desse
modo, a educação é um processo permanentemente ''refeito pela práxis,
revelando-, crítica e criativa''.
Contudo, a educação na América Latina se problematizante está ligada as
condicionantes históricas do colonialismo e, posteriormente, da colonialidade.
Esses dois fatores deixam heranças culturais de subserviência, e isso contribui
para a perpetuação da imagem de imitadores. Portanto, se faz necessário um
pensamento epistemológico decolonial, para a efetivação dos aspectos
condicionantes da filosofia da libertação. Sendo assim, a cópia dos países
ocidentais não desenvolve o pensamento, ela segue com os erros. Uma frase
de Simón Rodríguez ilustra bem essa idéia, “e sigamos imitando e errando”.

6. CONCLUSÃO

Por fim, a conclusão chegada é a de que uma filosofia política crítica vinculada
aos direitos humanos reais, tendo como base uma educação libertadora,
enraizada nos segmentos sociais e de cunho popular traz uma nova concepção
de Democracia e consolidação de leis pautadas na práxis e na comunidade,
possibilitando ao individuo a concretude dos seus direitos individuais e
coletivos em uma perspectiva humanística gerando a emancipação e sua
efetiva e real liberdade, ou seja, libertação. Sendo assim, o Direito originado
dessa perspectiva segundo Wolkmer “deixa de legitimar e assegurar o
interesse dos setores sociais dominantes, para transformar-se no instrumento
vivo de humanização da sociedade latino americano”.

Contudo, a ruptura dos aspectos epistemológicos de construção e da


colonialidade frente ao ocidente vivifica e modifica os aspectos engrenadores
do sistema vigente nos segmentos sociológicos, teológicos, antropológicos,
geográficos e jurídico-hermenêutico. Sendo assim, torna seus elementos peça
fundamental da construção de um ideário igualitário onde a referencia

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dominadora perde seu espaço, diante do desabrochar de uma América Latina


concisa em sua própria historia tendo como palco central e principal o seu
povo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos direitos – Florianópolis:


Fundação Boiteux, 2009.

WOLKMER, Antonio Carlos. Direitos Humanos e a Filosofia Jurídica na


América Latina. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004.

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação, 2 ed . Petrópolis: Vozes, 1976.


DUSSEL, Enrique D. Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, s/d.
COMPARATO, Fabio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos – 4.
ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional e Internacional


– 12 .ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2011.

DESAFIOS que a filosofia da libertação enfrenta. Disponível em:


<http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/desafios-fafimc.htm>. Acesso
em: 05/08/2015.

A CRÌTICA decolonial das epistemologias do Sul e o contexto de constituição


de coleções didáticas da PNLD-CAMPO/2013. Disponível em: <
http://www.nucleodecidadania.org/revista/index.php/realis/article/view/136>
Acesso em: 10/08/2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE O ENSINO DA HISTÓRIA AFRICANA E


CULTURA AFRO-BRASILEIRA A PARTIR DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
DOS DOCENTES DE ALAGOINHAS-BA

EDITE NASCIMENTO LOPES 289


editylopes@hotmail.com

RESUMO: Neste trabalho, tem-se como objetivo analisar o ensino de História


da África nas Escolas públicas de Alagoinhas, do Ensino Fundamental e Médio.
Trata-se de um município que se encontra situado no Leste do Estado da
Bahia. Com a implantação da lei 10.639/2003, que estabelece a
obrigatoriedade do ensino de história da África e da cultura afro-brasileira no
ambiente escolar, percebe-se grandes dificuldades encontradas por partes dos
professores na hora de aplicar o conteúdo em sala de aula, muitos desses
educadores não possuem cursos de formação sobre a temática. Diante desses
fatos, eles acabam reproduzindo em suas práticas pedagógicas imagens
negativas do continente africano, levando para sala de aula, conteúdos eivados
de preconceitos. Em geral, o continente é trazido como um espaço onde só
prevalecem as fomes, as doenças e a ausência de valores culturais.
Apresentam uma concepção de África homogênea, que em nada contribui para
entender a cultura afro-brasileira. Nesse aspecto, é preciso desmistificar a ideia
de África monolítica, enraizadas nas práticas pedagógicas, dos professores das
escolas públicas do município de Alagoinhas, para melhor trabalhar o ensino
da cultura africana e afro-brasileira na sala de aula.

Palavras-chave: História da África; Lei 10.639/03; Práticas Pedagógicas,

INTRODUÇÃO

Para melhor entendimento deste trabalho, fazem-se necessários os


seguintes questionamentos: qual África é ensinada aos estudantes do
município de Alagoinhas? O que está sendo inserida na prática pedagógica dos
professores que tiveram sua formação anterior a lei 10.639/2003? Por quais
instituições foram formados? Tiveram acesso a livros específicos sobre o
continente africano? Puderam enxergar além das concepções que os
estimulam, ainda hoje, nos livros didáticos, sobre o continente africano? Como
compreendem o conceito de cultura afro-brasileira no contexto atual?
Para além destes questionamentos, sabe-se que a história da África foi
relegada ao esquecimento ou a subalternização da sua relevância no palco das

289
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, UNEB, Campus II –
Alagoinhas-BA. II SINBAIANIDADE Simpósio Internacional de Baianidade, II Congresso
Internacional de Línguas e Literaturas Africanas e Afro-Brasilidades.

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ações humanas. Representações construídas, em geral, a partir da percepção


exterior, assentadas em mitos e preconceitos diversos romperam a barreira do
tempo, foram reformuladas, incorporaram novos esquemas e confluíram para o
desenho da imagem da África que nos chegam até hoje pelos mais diversos
mecanismos.
Incluindo nesse rol, as práticas pedagógicas dos professores. Mesmo
com a regulamentação do ensino da História da África a partir da promulgação
da Lei 10.639/03, há onze anos, percebe-se que o não-cumprimento do
dispositivo legal ou abordagens simplistas e deturpadas do tema ainda são
eminentes em algumas escolas. Essa situação persiste, pois muitos
professores ainda não foram instrumentalizados para responder a nova
demanda que foi gerada a partir da promulgação da lei supracitada. Para se
chegar a essas reflexões, foram realizadas entrevistas, com um grande número
de docentes que compõem a rede pública de ensino, no referido município,
além de observações das aulas, nas quais se abordava o ensino da cultura
afro-brasileira e africana.

DESENVOLVIMENTO

Isso se justifica pela a “ausência” de textos escritos. Sabe-se, a partir


dos diferentes volumes da coleção História Geral da África, que tal afirmação
destoa do que é efetivamente verdadeiro. A África possui fontes escritas,
apesar de estarem mal distribuídas no tempo e no espaço. Há, por exemplo,
diversos documentos que foram escritos pelos árabes e que se remetem ao
período compreendido entre os séculos X ao XV. Muitos educadores da
contemporaneidade se apegam a essa lógica de África sem história, para
reproduzir em suas práticas pedagógicas, saberes com base em valores
eurocêntricos e etnocêntrico (AJAYI, 2010).
Em entrevistas realizadas com professores da rede municipal de ensino
de Alagoinhas, identificou-se que cerca de 70% dos entrevistados não
participaram de nenhuma formação especifica para o Ensino de História da
África e da Cultura Afro-Brasileira. Em geral, o que lhes foi oferecido resumiu-
se a uma palestra, oficina ou seminário, que, segundo eles, não lhes forneceu
embasamento necessário para propor o ensino de História da África e da

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Cultura Afro-Brasileira a partir de uma ótica diferente das representações que


construíram ao longo de suas vidas. Salienta-se que os estudos de outras
culturas nos espaços escolares são extremamente relevantes para
compreender o processo de formação da identidade brasileira:
Não podemos negar que a oficialização do Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira no currículo da rede pública de ensino
do país é um marco no sentido de introduzir na educação
brasileira a valorização de nossa história e a participação de
outras culturas, além da européia. Entretanto, a essa demanda
acrescentada na LDB cumpre também a tarefa de fortalecer e
promover a reconstrução das relações étnico-raciais no
ambiente escolar em todo o país (SILVA, 2010, p. 7).

A falta de informação e formação que auxiliem o professor sobre


determinadas questões envolvendo o ensino de história da África,
corroboraram para que a implementação da Lei se tornasse ainda mais
distante das salas de aula. Sendo assim, é necessário ressignificar os saberes
docentes no que tange a questão do ensino da história africana e da cultura
afro-brasileira, os professores em análises, carecem repensar sua formação a
partir de sua própria prática pedagógica:
Significação social da profissão; da revisão constante dos
significados sociais da profissão; da revisão das tradições. Mas
também da reafirmação das práticas consagradas
culturalmente e que permanecem significativas. Práticas que
resistem a inovações porque prenhes de saberes válidos às
necessidades da realidade. Do confronto entre as teorias e as
práticas, da análise sistemática das práticas à luz das teorias
existentes, da construção de novas teorias (PIMENTA, 1999, p.
19).

No que tange a questão dos saberes docentes, remete-se ao processo


ensino e aprendizagem e a relação teoria e prática. Acredita-se, que a escola,
ocupa um espaço distinto para a construção do conhecimento e o professor se
encarrega de aprimorar esses conhecimentos com o exercício de sua prática
pedagógica:
Procurando identificar quais conhecimentos são desenvolvidos
pelo professor ao atuar, no âmbito da cultura escolar e das
condições mais adversas do seu trabalho. Também busca
especificar e estudar as necessárias articulações desses
conhecimentos do professor tanto com a prática, quanto com
os conhecimentos teóricos acadêmicos da formação básica.
Tais articulações possibilitam o desenvolvimento da
capacidade reflexiva, que favorece o compromisso com o

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ensino de qualidade e a competência para atuar (GUARNIERI,


1997, p. 6).

Os problemas e desafios que aparecem na hora de produzir


conhecimento na área de história da África e da cultura afro-brasileira, são
decorrentes de representações construídas, em geral, a partir da percepção
exterior, assentadas em mitos e preconceitos. As sociedades africanas, por
exemplo, podem até ser vizinhas, mas possuem hábitos, costumes e práticas
totalmente distintas. Não são, portanto, passiveis de serem homogeneizados
sob a perspectiva dos negros, ou mesmo de africanos. A África não é o lugar
da violência, guerras, fomes, doenças, desordem e ausência de civilização.
A recusa do passado científico e tecnológico dos povos africanos, por
parte dos estudiosos do final do século XIX, deram a impressão ao restante do
mundo de que os povos do continente africano não tiveram nenhuma
contribuição para o conhecimento universal. Isso fica bem claro quando nos
deparamos com representações eivadas de preconceitos, que colocam a África
como um continente eternamente pré-histórico, bárbaro, cujos habitantes são
desprovidos de sabedorias, incapazes de construir ou transmitir
conhecimentos, lugar de Sol ardente, com paisagens sem belezas, onde se
encontram vários animais selvagens.
Vista dessa forma, a África é o “não lugar”, e não oferece as mínimas
condições para sobrevivência de seres humanos. Só os selvagens,
acostumados com tal “lugar”, que conseguem viver em tais condições. Durante
muito tempo o ocidente conseguiu transmitir a imagem de que o
desenvolvimento, o progresso, a civilização e, sobretudo, os valores culturais
sempre fizeram parte de suas sociedades (BOAHEN, 2010).
Os povos ocidentais supervalorizam suas culturas e colocam o outro,
notadamente a África, em condições de inferioridades. Representações
construídas, em geral, a partir da percepção exterior, assentadas em mitos e
preconceitos diversos romperam a barreira do tempo, foram reformuladas,
incorporaram novos esquemas e confluíram para o desenho da imagem da
África que nos chegam até hoje pelos mais diversos mecanismos. Incluindo
nesse aspecto, as práticas pedagógicas dos professores, que enfrentam
problemas para compreender a dinâmica da cultura afro-brasileira, enquanto

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formação da sociedade brasileira a partir da heterogeneidade cultural não


considera que
A diversidade cultural é a riqueza da humanidade. Para cumprir
sua tarefa humanista, a escola precisa mostrar aos alunos que
existem outras culturas além da sua. Por isso, a escola tem
que ser local como ponto de partida, mas tem que ser
internacional e intercultural como ponto de chegada. Escola
autônoma significa escola curiosa, ousada, buscando dialogar
com todas as culturas e concepções de mundo. Pluralismo não
significa ecletismo, um conjunto amorfo de retalhos culturais.
Significa, sobretudo diálogo com todas as culturas, a partir de
uma cultura que se abre às demais (GADOTTI, 2001, p. 386).

É válido salientar que não se pode estudar o continente africano


baseando-se nos valores ocidentais. Deve-se levar em consideração todo seu
passado cultural e histórico, para que seja evitado o equívoco cometido por
muitos estudiosos, que rejeitaram por muito tempo os milhares de anos de
tradição dos povos africanos. O que se percebe é que a história desses
diferentes povos ainda é desprezada por alguns estudiosos, uma vez que
muitos deles privilegiam a historiografia vinda por parte do ocidente, alegando
que o referido continente não dispõe de fontes para ser estudadas. Argumentos
como esses, eivados de concepções eurocentristas, não dão conta de que as
heranças culturais da África contribuíram de forma significativa para a formação
de várias civilizações em outros continentes. Ademais, os vários registros
culturais, que foram deixados aqui no Brasil por esses povos, que
corroboraram de forma significativa para o alargamento da cultura afro-
brasileira (TONIOSSO, 2011).
É nesse sentido, que as Leis de Diretrizes e Bases da Educação
brasileira, destacam que é imprescindível uma mudança de postura por parte
dos educadores das escolas públicas. Carecem se preparar e se
instrumentalizar para garantir a consolidação da temática nas salas de aulas.
Nas escolas públicas, onde foram realizadas a pesquisa, percebeu-se
que os professores continuam enfrentando desafios na hora de aplicar
conteúdos sobre a história da África e da cultura afro-brasileira:
O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a
educação das relações étnico-raciais, se desenvolverão no
cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de
ensino, como conteúdo de disciplinas particularmente

1238
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo


das demais em atividades curriculares ou não, trabalhos em
salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na
utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de
recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares
(BRASIL, 2004, p. 21).

A grande maioria dos educadores, das escolas públicas de Alagoinhas,


conforme observações feitas durante as aulas, faz questões de ressaltar as
doenças, a miséria, as fomes, a escravidão e as guerras. Atitudes como essas,
transmite para os alunos a ideia equivocada de que o continente africano é um
grande país, e que nele só existem situações negativas, que em nada
contribuem, para entender a cultura afro-brasileira e sua formação no contexto
atual. É neste sentido que os professores carecem de uma formação, voltada
diretamente para o ensino de história da África e cultura Afro-Brasileira, para
que possam produzir conhecimento de forma eficaz.

CONCLUSÃO

Conclui-se que, para falar da história da África e da Cultura Afro-


Brasileira, é necessário conhecer esses povos em suas dimensões históricas.
As informações trazidas por alguns estudiosos sobre a realidade atual do
continente africano não são suficientes para julgar toda sua trajetória. Deve ser
levado em consideração também todo o conhecimento adquirido em seus
primórdios, já que o presente por si só não responde certas inquietações
advindas de um passado colonizador. Para além dos olhares negativos em
relação à história da África, é preciso desconstruir em passo acelerado a
“barragem de mitos” constituída sobre esta história. Com o apoio da
Arqueologia, civilizações inteiras foram descobertas, pondo por terra as
afirmações de que o continente africano é destituído de história.
E ainda hoje, muitos estudiosos insistem em afirmar que o continente
não possui contribuições para a história do mundo. As “Ciências”, marcadas
por diferentes preconceitos, produziram obras que difundiam absurdos de toda
ordem sobre o continente africano. Para além desta afirmação, o estereótipo é
um olhar e uma fala bem-sucedida, que possui uma dimensão sólida, ao

1239
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

constituir uma realidade em cima do objeto que está sendo estereotipado.


Dessa forma, o continente africano vem sendo discriminado, marginalizado e
estereotipado nas representações feitas por diferentes agentes da cultura
ocidental. Estas imagens chegam até nós, e ao próprio continente africano,
impregnados de valores eurocidentais. Quase sempre a África é colocada na
condição de coitadinha, seja na mídia ou fora dela, os povos africanos são
tratados de forma homogênea, como se fossem simplesmente negros, ou,
africanos. Estes estereótipos e clichês envolvem relações de interesses e
poder que de certa forma contribuem para o discurso discriminatório.
Para além destas questões, o intuito é mostrar que é possível construir
conhecimento na área da história africana e da cultura afro-brasileira, sem se
remeter somente aos fatores negativos, as guerras, a escravidão, as doenças,
as fomes e as catástrofes sociais. É preciso desmistificar a ideia de África
homogênea que ainda é trazida pelo grande número de docentes das escolas
públicas do município de Alagoinhas. Acredita-se que é possível produzir
conhecimento nessa área com confiança, dinamismo, responsabilidade social e
consciência histórica. Só assim, a escola será vista como um espaço
sociocultural em que o fazer docente contribui de forma significativa para o
processo ensino e aprendizagem. E o aluno poderá atuar como sujeito crítico e
consciente de suas ações dentro do cenário brasileiro.

REFERÊNCIAS

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década de 1880. Brasília, UNESCO/ MEC, 2010.

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Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura.


Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BRASIL. Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais


e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: DF,
Outubro, 2004.

1240
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BOAHEN, Albert Adu (Org). História Geral da África, vol. VII - África sob
dominação colonial, 1880-1935. Brasília, UNESCO/ MEC, 2010.

BRUNSWCHWIG, Henri. A partilha da África negra. São Paulo: Perspectiva,


2006.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

GADOTTI, Moacir. Pensamento pedagógico brasileiro. São Paulo. Ática. 2001.

GUARNIERI, M.R. O início na carreira docente: Pistas para o estudo do


trabalho do professor. In: Anais da Anped, 1997.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. Visita à história


contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005.

M´BOKOLO, Elikia. África negra. História e civilizações – tomo I (até o século


XVIII). Salvador/ São Paulo: Editora da UFBA/Casa das Áfricas, 2009. Pag. 17.
Os negritos são de minha autoria.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Lições sobre a África: Diálogos entre as


representações dos africanos no imaginário ocidental e o ensino da História da
África no mundo atlântico (1990-2005). Brasília: Universidade de Brasília, 2007.

PIMENTA, S.G. Formação de professores: Identidade e saberes da docência.


In: ____ (Org.) Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez,
1999.

SERRANO, Carlos, WALDMAN, Maurício. Memória d’África: a temática


africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.
SILVA, Priscila Kelly de Alencar. et all. História e Cultura Afro-Brasileira:
Caminhos Pedagógicos Abertos Pela Lei Federal Nº 10639/03 No Combate Ao
Preconceito Racial, 2010.

TONIOSSO, José P. Ensino de história e cultura afro- brasileira: da legislação à


prática docente. Dissertação (Mestrado em Educação)- Centro Universitário
Moura Lacerda. Ribeirão Preto, 2011.

1241
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: SALVADOR EM DISCURSOS: ENTRE A


RETÓRICA E A ANÁLISE DO DISCURSO

PROPOSITORES: GILBERTO NAZARENO TELLES SOBRAL (UNEB)

Ementa:

Salvador é uma cidade que, devido a sua historicidade, caracteriza-se pela

heterogeneidade e, consequentemente, uma gama extensa de diversidades

culturais, linguísticas, religiosas, ideológicas. Desde o período colonial,

destacou-se no cenário político brasileiro. Contemporaneamente, a cidade do

Salvador destaca-se, também, por ser um polo cultural e turístico, atraindo,

anualmente, muitos turistas nacionais e estrangeiros, o que proporciona o

desencadeamento de novas discursividades sobre a cidade. Tal fato é

relevante para que se realize um GT que tome como objeto a linguagem e os

discursos que circulam no espaço urbano de Salvador e área metropolitana

como também sobre a referida cidade procurando compreender processos

linguísticos e/ou discursivos de significação, gestos de interpretação e relações

de sentido, que se estabelecem na articulação do tempo, do espaço, dos

sujeitos urbanos, a partir do escopo teórico da Análise de Discurso filiada a

Michel Pêcheux, bem como, na perspectiva retórica, o emprego da tríade


retórica (ethos, logos e pathos) na construção argumentativa das práticas

discursivas na e sobre a cidade de Salvador.

1242
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ITAMAR, GAY, NEGRO, ESTUDANTE, ASSASSINADO EM UMA PRAÇA NO


CENTRO DE SALVADOR, CERTAMENTE MAIS UMA VÍTIMA DO ÓDIO AOS
HOMOSSEXUAIS: O CAMPO GRANDE E OS DISCURSOS

LILIANE SILVA DE AQUINO (UNEB) 290

Considerações iniciais

Localizada no Largo do Campo Grande, a Praça Dois de Julho,


também conhecida como Praça do Campo Grande pulsa no coração da cidade
do Salvador. Construída no século XIX, foi palco de muitos acontecimentos
históricos e passou por diversas alterações para acompanhar as modificações
urbanas impostas pela cidade em constante evolução. Nos dias atuais, além de
ser um espaço de lazer e prática de esportes, a Praça é também reduto para a
diversidade turística e cultural.

Adultos e jovens que buscam diversão e paquera encontram nela um


ponto de encontro singular, entretanto, nem sempre foi assim, a Praça, por si
mesma, é um discurso urbano, um sitio de significações, visto que a existência
de seu espaço urbano é discurso que emana diversos significados, sendo
esses o resultado de relações sociais que se constroem e se completam
mutuamente.

A Praça Dois do Julho é um importante centro de encontro alternativo


da cidade, sua localização é privilegiada por situar-se próxima do Teatro Vila
Velha, do Teatro Castro Alves e também da Casa d’Itália. Construída no século
XIX, no governo de dr. Rodrigues Lima foi pensada e erguida com o formato e
monumentos que possui nos dias atuais. Ela é, então, uma apologia aos
heróis e a vitória pela Independência da Bahia, um centro cívico de Salvador.
Segundo Orlandi (2004, p.11):

Para nossa época, a cidade é uma realidade que se impõe com


toda sua força. Nada pode ser pensado sem a cidade como pano de
fundo. Todas as determinações que definem um espaço, um sujeito,
uma vida cruzam-se no espaço da cidade.

290
Aluna regular do Programa de Pós Graduação em Estudo de Linguagens - PPGEL da Universidade do
Estado da Bahia – UNEB.

1243
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em 7 de setembro de 1822, é proclamada a Independência do Brasil


por Dom Pedro I, passando então a ser considerada a data da emancipação
brasileira das forças portuguesas, no entanto essa ruptura não ocorreu de
forma passiva, por quase todo território brasileiro houve pontos de embates, a
fim de expulsar as tropas portuguesas e evitar o domínio lusitano. Dessa forma,
entre 1822 e 1823, em algumas províncias, incluindo a da Bahia, travou-se
uma batalha para consolidar a independência do Brasil.

A História do 02 de julho começa em 1821, era notório o sentimento


de insatisfação do Brasil para com a metrópole, o coração brasileiro já
suspirava por uma autonomia completa, todavia Portugal ambicionava manter
firme seu império em terras brasileiras, por conta disso o exercito Luso foi
reforçado. Os conflitos se espalharam por uma parte do território nacional, e
mesmo após a proclamação da república, ocorrida em 07 de setembro de
1822, ainda haviam províncias dominadas pela metrópole. Há que se destacar
o Recôncavo da Bahia e alguns espaços urbanos de Salvador. A Praça da
Piedade e o Campo da Pólvora, tornaram-se lugares de combate entre os
exércitos.

É, em 02 de Julho de 1823, que o exército brasileiro obtém, de fato, a


sonhada independência, tornando-se essa a data magna da consolidação da
independência do Brasil na Bahia.

A Praça Dois de Julho, também conhecida como Praça do Campo


Grande, chamava-se Campo de São Pedro, em suas imediações foram
travados muitos combates a favor da independência da Bahia. Nela, pode-se
destacar o Monumento ao Dois de Julho, inaugurado em 1895. Possuindo uma
estética neoclássica, foi esculpido em mármore de Carrara, bronze e ferro
fundido na Itália e montado peça por peça na Praça. O destaque principal está
na estátua do caboclo, no topo da escultura, contendo 4,1 metros, o mesmo
encontra-se armado com uma lança, arco e flecha. Sua glória e honra advém
devido ao fato de representar a identidade do povo brasileiro que, tão
arduamente, lutou pela Independência. O dragão, já morto, que se encontra
aos pés do índio, simboliza e significa a opressão e tirania portuguesa. Essa
forma de significar o espaço ocupado pela imagem do caboclo busca os gestos

1244
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

de interpretação que ligam o espaço urbano, a história, a cultura e os sujeitos.


Há ainda a presença, entre outras, da escultura de Catharina Paraguaçu, com
o lema da bandeira brasileira empenhado no seu escudo, Independência ou
Morte! Para Orlandi (2004, p.29),

de um olhar organizado e organizador (do urbano) que é totalitário. A


materialidade da cidade des-organiza esse lugar totalizador e,
obrigando ao percurso/movimento, nos disponibiliza para outra
apreensão de sentidos. Daí a necessidade de um método como o da
analise de discurso para ir além desse efeito de sentido e confrontar-
se com o lugar em que esses sentidos se constituem, fazem sentido,
lugar em que o simbólico e o político se articulam na produção
desses efeitos.

Os sentidos resultam da relação dos sujeitos com os espaços urbanos,


como tais os espaços significam e para quem significam, logo pode-se afirmar
que os sentidos são construídos pelos sujeitos, porém não de forma aleatória,
é a partir das relações interdiscursivas que constroem-se os sentidos.

O interdiscurso é elemento singular na construção dos sentidos, ou


seja, no modo como esses significam em determinada situação discursiva.
Tudo que já se sabe sobre algo, todos os sentidos que já foram ditos em outro
momento, em algum lugar, por alguém e que trará um efeito sobre o objeto
proposto.
O interdiscurso trará ao momento discursivo a memória construída pelo
sujeito sobre aquele determinado fato/acontecimento. O conceito de
interdiscurso apresentado por Orlandi (2009, p.31) compreende a seguinte
definição:
Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
independentemente. Ou seja, é aquilo que chamamos de memória
discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que
retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do
dizível, sustentando cada tomada das palavras.

São filiações de sentidos, construídos ao longo da história por outros


dizeres, em outros momentos, por outras vozes e que chegam os sujeitos,
através dos seus significados e pela própria língua.

A Praça Dois de Julho nos dias atuais.

1245
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O sentido que é construído da cidade perpassa os gestos de


interpretações e a relação que os sujeitos possuem dos espaços urbanos que o
cercam e que fazem parte do seu cotidiano.

Nos dias atuais, a Praça constitui-se de um dinâmico centro social,


político e cultural, historicamente ela foi estabelecida como palco de
manifestações e embates sociais, um legado obviamente herdado do ano de
1823. Há a presença da relação entre o real da cidade e a ideologia que
passou a existir a partir do interdiscurso da independência da Bahia, instalando
no espaço urbano da praça um sentido legitimado de arena política, ou seja,
um espaço vinculado a outras possíveis independências.

Em uma rápida busca, pode-se perceber constantes manifestações


populares realizadas na Praça. Estas são planejadas e executadas neste
espaço com o objetivo de tornar os movimentos sociais e políticos ainda mais
legítimos, a partir da formação discursiva (FD) que a significa como um
histórico campo de batalha político e social,

O Conceito de FD é essencial para a compreensão do arcabouço


teórico da AD. A formação discursiva, segundo Orlandi (2009 p.43), se define
como “aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio histórica – determina o que pode e
deve ser dito”.
O conceito de FD, ainda, faz referência ao assujeitamento/interpelação
que o individuo sofre através do seu discurso, construções de sentidos já
existentes anteriormente ao sujeito que serão usadas por ele, situando-o em
uma determinada FD.
Assim, o pré-construído irá regular o indivíduo a partir de determinados
sentidos já existentes, situando-o em um certo contexto e em uma ideologia.
As FD’s irão contribuir para uma maior compreensão do processo de
produção dos sentidos, situando as escolhas de uma determinada palavra em
detrimento de outra, nesse e não naquele contexto, proporcionando uma
melhor compreensão dos sentidos, permitindo que se encontre uma
regularidade no mecanismo de funcionamento do discurso.
Ainda segundo Orlandi (2009, p. 43),

1246
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

o discurso se constitui em um sentido porque aquilo que o sujeito diz


se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um
sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não
tem sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das
formações discursivas, por sua vez, representam no discurso as
formações ideológicas.

As FD’s serão diferenciadas a partir do interdiscurso, contudo as


mesmas não podem ser pensadas como articulações automáticas, elas são
contraditórias, se contrapõem e ao mesmo tempo são fluidas.
Sendo assim, os significados herdados historicamente tornaram a
Praça palco legitimador de discursos que circulam nos espaços históricos e
sociais da cidade de Salvador.
O próprio espaço da Praça do Campo Grande, bem como seu
interdiscurso e sua localização histórica, social e urbana tornaram-se parte do
sentido, construindo-a como campo de manifestações, dentre as quais
podemos destacar movimentos em nome da paz, contra e a favor o governo
Dilma, Diga não ao Belo Monte, Passe livre já!, XII grito da água, Vem pra rua
Brasil, Campanha salarial, Unidos por um futebol melhor, Macha das Mulheres,
Cut, Campanha contra o genocídio indígena, Contra o aumento da tarifa de
ônibus, Comitê popular da copa, Protesto contra o pastor Marcio Feliciano,
Semana da diversidade, Parada Gay da Bahia, entre outros... É a Praça Dois
de Julho significando através do discurso histórico. Há que se destacar a
presença de indivíduos socialmente heterogêneos que compartilham da
mesma significação do poder social incutido silenciosamente a Praça.

Morte na Praça

Outros significados, entretanto, foram constituídos e passaram a


circular a partir do assassinado do jovem universitário Itamar Ferreira Souza,
estudante do curso de Produção Cultural da Universidade Federal da Bahia –
UFBA, ocorrido no dia 12 de abril de 2013. O estudante foi encontrado morto
na Praça do Campo Grande. O crime passou a ser pensado sob duas
perspectivas: a do preconceito devido à orientação sexual da vítima –
homofobia - e a do latrocínio - roubo seguido por morte.

1247
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Ao ser encontrado morto na Praça, o jovem atrelou ao Campo Grande


novos sentidos, a saber: a violência urbana e a homofobia. Surgem então
novos discursos, outros sentidos.
A morte do estudante fez a cidade, mais uma vez, despertar e perceber
o silenciamento dos discursos da homofobia e violência urbana. Então, na
mesma Praça Dois de Julho, outrora marco da glória de um país, pela qual
muitos brasileiros derramaram sangue, hoje, encontra-se o sangue de um
brasileiro, não por luta ou conquistas, mas pelo preconceito e intolerância
social.
Não podendo ser diferente, mais uma mobilização foi marcada para ser
realizada na Praça, desta vez para homenagear, não o caboclo símbolo da
identidade do povo brasileiro e, sim, homenagear e protestar contra a morte do
jovem estudante. Entre gritos de ordem e cartazes, pode-se ver a seguinte
frase: “Itamar, gay, negro, estudante, democrata, assassinado em uma Praça
no centro de Salvador, certamente mais uma vítima do ódio aos
homossexuais”.
Esse movimento contra a violência e intolerância de gênero retrata o
fato de que combater a agressão e os preconceitos sociais tornou-se uma luta
diária. Entre os problemas mais relevantes apontados pelos manifestantes,
destaca-se a homofobia, que, segundo Borillo (2009, p. 15), “é a atitude de
hostilidade para com os Homossexuais”. Inegavelmente, tal comportamento
encontra-se enraizado em causas culturais e religiosas. Preconceitos formados
em tempos antigos, muitas vezes, não condizem com a realidade
contemporânea, pois o que há muito tempo era considerado inadequado ou
mesmo imoral pelo tradicionalismo e seus conceitos, nos tempos atuais, já
conquistou respeito e espaço na sociedade.

A militância LGBT 291 tem alcançado maior visibilidade social a partir de


conquistas em questões como o respeito aos direitos políticos e sociais dos
homossexuais, assim como aos direitos homoafetivo. Logo, pode-se constatar
que esse momento constitui um período de grandes conquistas dessa minoria
que luta para tornar real a diminuição do preconceito referente à orientação
sexual. Entre seus anseios principais, está o direito de viver livremente a sua

291
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis.

1248
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sexualidade, como também possuir liberdade e igualdade, o que, em tese, é


garantido pela Constituição Brasileira.
Apesar de significantes avanços conquistados pelo movimento LGBT,
ainda há muito a se fazer em prol da diminuição dos índices de práticas
preconceituosas e violência contra homossexuais. As discussões a respeito da
violência urbana e do preconceito, de modo geral se mostram rasas e quase
que silenciadas, não encontram eco suficiente para que haja mobilização
política e social efetiva que tutele o fim das práticas homofóbicas.
Como resultado da morte do estudante na Praça Dois de Julho, a
PMS 292 passou a fechar as grades todas as noites, das 22h às 6h da manhã,
forma encontrada para garantir a segurança e integridade física dos moradores
do Campo Grande, como também dos usuários do espaço, tal medida ainda
intencionava preservar o patrimônio público e afastar usuários de drogas e
pedintes. Cães passaram a ser usados pela Guarda Municipal a fim de manter
a ordem social e reduzir a violência.
Tais medidas revelam o total abando que o Espaço da Praça estava
relegado quando da ocasião da morte do Jovem Itamar Ferreira de Souza.

Considerações finais

Observar as condições de produção é buscar compreender, em um


determinado momento histórico, o surgimento do discurso e suas formas de
significar.
Cada questão, à sua época, trará consigo dimensões nunca antes
vivenciadas, pois cada momento é único e, por mais que esse se repita, será
sempre realizado em condições históricas distintas, com seus questionamentos
e seus sentidos bastante singulares, nunca antes ocorridos. O sujeito
discursivo é, a todo tempo, interpelado por ideologia, o que permite a
construção do próprio sentido, sendo assim uma palavra qualquer passe a não
ser transparente, já que a mesma pode carregar em si diversos significados. O
sujeito contemporâneo, de uma forma geral, precisa lidar com questões bem

292
Prefeitura Municipal de Salvador

1249
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

mais afloradas e debatidas quando em comparação a outros momentos


históricos.
Entre os desafios da nossa atual sociedade está à luta contra os
preconceitos. Reconhecer que os mesmos estão não só presentes como
também arraigados no seio da sociedade, tem fomentado diversas reações em
vários seguimentos sociais. As minorias que sofrem com essa demanda
encontram-se em zona de conflitos, desse modo cobram da sociedade civil um
posicionamento acerca dos direitos à vida e do exercício da liberdade e da
cidadania. Sendo assim, escolheu-se a Análise do Discurso e os postulados
teóricos articulados por Michel Pêcheux para fundamentar esta pesquisa, já
que a mesma acredita que é possível analisar a linguagem no auge do seu
funcionamento, atrelando-a aos contextos sócio-histórico e ideológicos,
considerando que todo sujeito é constituído por ideologias e que as mesmas os
filiarão a determinadas Formações Discursivas.
Analisar as condições de produção dos discursos que circulam a partir
da Praça Dois de Julho é de suma importância para que se possa compreender
como novos sentidos foram construídos a partir de um determinado
acontecimento histórico a saber, a morte do estudante.
Entender a Praça como um espaço urbano antes aberto para receber a
Independência da Bahia e os filhos deste solo com bravura e honras e agora
fechado, devido a violência e para proteção do patrimônio público, evitando
assim novos homicídios em suas imediações é significar a praça a partir do
tempo, dos sujeitos urbanos e das relações de sentidos que foram construídas
entre o simbólico e o real.
Acerca da problemática social da homofobia, cabe-nos lembrar que tal
questão encontra-se inserida no seio social e que, todos os dias, os indivíduos
homossexuais estão expostos à violência que a mesma gera. Acreditamos que
o Estado deve considerar essa questão como pauta urgente, efetivando assim
leis que garantam a igualdade de direito entre os cidadãos como reza a
democracia.

1250
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

REFERÊNCIAS

BORRILLO, Daniel. Homofobia: história crítica de um preconceito. 1.ed.


Belo Horizonte: Autêntica editora, 2010.

Festas Populares. 02 de Julho. Disponível em


http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/festa-modelo.php?festa=10
Acesso em 01. Out. 2015.

Monumento ao Dois de Julho. Disponível em: http://www.salvador-


turismo.com/campo-grande/monumento.htm Acesso em 01. out. 2015.

O estudante Itamar Ferreira Souza foi morto, vítima do ódio aos


homossexuais. Disponível em:
http://www.leiaja.com/noticias/2013/04/19/praca-campo-grande-ficara-fechada-
apos-morte-de-jovem/ Acesso em 01.out.2015.

ORLANDI. Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 8. ed.


Campinas: Pontes, 2009.

________.Cidade dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2004.

1251
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

MARCA, LUGAR E ETHOS: O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO ETHOS


DISCURSIVO DA MARCA-LUGAR NA COMUNICAÇÃO PUBLICITÁRIA DA
CIDADE DE SALVADOR 293

NELSON SOARES (UFOB/UFBA) 294

Apresentação
Com o desenvolvimento de uma economia de consumo, a crescente
complexidade dos meios de comunicação e a sofisticação das estratégias
mercadológicas das corporações, a contemporaneidade vê o fenômeno das
marcas assumir posição de destaque no cruzamento dos campos da economia,
da comunicação e do consumo (SEMPRINI, 2006).
Dessa forma, com base na análise de dois filmes publicitários da Prefeitura
Municipal de Salvador, esse artigo coloca em discussão a ideia de marca-lugar
em sua perspectiva semiótica, a partir dos pressupostos teóricos da Análise de
Discurso, com destaque para as noções de ethos e cenografia.
A marca não é um fenômeno novo. Na Antiguidade, símbolos, selos e siglas
eram empregados para identificar a propriedade de animais e os fabricantes de
utensílios e produtos agrícolas, por exemplo. Na Grécia, a imagem de uma
pata de boi identificava os açougues, enquanto na fachada das casas que
comercializavam vinho havia uma ânfora (PINHO, 1996). Posteriormente, já no
século XVI, surge a noção de marca registrada como algo que pode ser
protegido legalmente – os barris de uísque escocês passam a receber
gravações a fogo com o nome dos seus produtores, ourives franceses e
italianos começaram a vender seus produtos com símbolos e nomes que
indicavam sua origem, a fim de evitar falsificações e organizar os monopólios e
seus mercados (CARRIL, 2007). Entretanto, ainda que a ideia de marca tenha
atravessado a Antiguidade e a Idade Média, é somente na Era Moderna que

293
Trabalho apresentado no GT “Salvador em Discursos: entre a Retórica e a Análise do
Discurso” do II SINBAIANIDADE (Simpósio Internacional de Baianidade) e II CILLAA
(Congresso Internacional de Línguas e Literaturas Africanas e Afro-Brasileiras), realizados de
09 a 11 de outubro de 2015, na Universidade Estadual da Bahia, Salvador, BA.
294
Professor dos cursos de Publicidade e Propaganda e Artes Visuais da Universidade Federal
do Oeste da Bahia (UFOB). Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas
(PósCOM/UFBA). Membro do Centro de Estudos e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia
(CEPAD-FACOM/UFBA). E-mail: nsoares@outlook.com.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sua lógica de funcionamento (antes fundamentada apenas na diferenciação


física dos produtos e na identificação de sua procedência) passa a adquirir
outros contornos. A compreensão da lógica da marca como motor semiótico,
como produção de sentidos sociais que não apenas diferenciam produtos, mas
que mobilizam sujeitos em torno de uma compreensão de mundo se mostra
presente muito além da comercialização de bens e serviços. Como evidencia
Semprini (2006), o desenvolvimento do turismo em escala global fez com que
governos, promotores culturais e organizações empresariais do setor turístico
pensassem os lugares, cidades e países a partir da lógica da marca-lugar – ou
seja, pensar os atributos geográficos e as diversas manifestações culturais de
uma determinada localidade enquanto serviços a serem consumidos, aos quais
podem ser vinculados sentimentos, sistemas de valores e estereótipos de
comportamentos sociais.
O contexto contemporâneo da marca: consumo, comunicação e
economia
O consumo, de acordo com Semprini (2006), adquire grande importância nas
sociedades pós-modernas. Trata-se de um fenômeno que, em determinada
medida, ajuda-nos a definir o funcionamento da contemporaneidade.
Se, por um lado, o crescimento do consumo define uma fase de aumento do
bem-estar social e de uma divisão menos desigual da riqueza – característica
própria de uma cultura de consumo em massa –, por outro lado, mais
recentemente, o consumo toma outro aspecto: torna-se um exercício da
afirmação social, de marcação de status e identidade – através da comunhão
pelo consumo das marcas, os indivíduos se definem socialmente e se
aglutinam em grupos a partir de sentimentos de pertença (QUESSADA, 2003).
De uma forma ou de outra, as práticas de consumo assumem colocação
fundamental nas sociedades atuais, o que pode ser explicado, na perspectiva
de Semprini (2006), através de traços marcantes da cultura pós-moderna, tais
como: o individualismo contemporâneo, a consciência do corpo em relação à
sua conservação e beleza, a desmaterialização do consumo, a mobilidade
geográfica, profissional e social e a força do imaginário como expressão
pessoal e de busca por explicações e sentido para a vida.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Vê-se, assim, como a dimensão contemporânea do consumo cria um ambiente


propício para o desenvolvimento da lógica do fenômeno-marca. Outra
dimensão constitutiva das condições favoráveis para o desenvolvimento das
marcas é a comunicação.
Semprini (2006) defende que as relações entre marca e comunicação são tão
antigas quanto as relações entre as marcas e o consumo – desde o surgimento
das primeiras marcas que a publicidade é posta a serviço da circulação de
seus sentidos. No entanto, o fenômeno-marca torna-se mais complexo e passa
a migrar para o centro definidor da pós-modernidade a partir do
desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, sobretudo da televisão,
na década de 1950. A fim orientar a organização dessa relação, Semprini
identifica dois momentos para o desenvolvimento da comunicação, que
correspondem a profundas transformações no funcionamento das marcas,
como se pode ver a seguir.
O início da década de 1980 é caracterizado pela ruptura de diversos
monopólios estatais dos meios de comunicação massivos – rádio e televisão –
na Europa. Com um caráter mais comercial, surge um espírito de concorrência
e as opções de ofertas dos meios rádio e televisão se desenvolve com rapidez.
As relações entre liberdade de expressão e comunicação se tornam uma
referência significativa para avaliação do grau de democracia, assim como a
estreita interação entre poder político e meios de comunicação se acentua. Em
paralelo, o setor da comunicação passa a ter um expressivo peso econômico,
movimentando altas cifras e empregando cada vez mais pessoas – ou seja, a
comunicação se constitui como um forte setor da economia, gerando emprego
e renda de forma relevante –, ao mesmo tempo em que passa a ser o fluído
vital da sociedade contemporânea. Nesse mesmo período, a preocupação com
o valor das marcas – o brand equity – se torna elemento crucial para os
gestores de grandes corporações (PINHO, 1996).
O desenvolvimento sempre constante e crescente dos meios de comunicação,
já em meados da década de 1990, configura um quadro em que a
comunicação se constitui enquanto um protagonista definidor do cenário. A
partir de então, marcas e produtos só adquirem vida no momento em que se
fazem presentes nos meios de comunicação e na publicidade – é vital, ou

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

mesmo constitutivo, a circulação da marca nos meios de comunicação, sob o


risco de não existirem, de não se efetivarem enquanto rede de sentidos para o
conjunto social.
É importante destacar que esse cenário em que a comunicação assume
posição central e que a marca só se realiza através dos meios de comunicação
e da publicidade, não permite compreender o fenômeno das marcas
contemporâneas como um apagamento do produto. Na verdade, como explica
Semprini (2006), essa dinâmica que fez da comunicação um dos traços
definidores da pós-modernidade, inverteu a ordem de relações entre marca
produto – nesse contexto, a lógica da marca (sua rede de sentidos, seu mundo
e sua capacidade de instituir um discurso pertinente) assume o centro, define
experiências de vida e de consumo, que, ao fim e ao cabo, dá as bases para o
desenvolvimento dos produtos. Ou seja, os produtos não orientam as marcas,
mas a lógica da marca conduz a constituição dos produtos de modo coerente e
socialmente pertinente.
Dessa forma, percebe-se que as transformações contemporâneas do consumo
e da comunicação, que repercutem na estruturação das marcas, geram
impactos significativos em outra instância socialmente muito importante – a
economia –, como veremos a seguir.
Embora os estudos no campo da economia já discutam amplamente as
influências que a instância do consumo tem sobre as questões de ordem
econômica, o reordenamento da esfera da comunicação e o fenômeno-marca
não são considerados nos debates acerca das interferências a que estão
sujeitos os indicadores econômicos. Semprini (2006) defende que a forte
presença da lógica de consumo e do paradigma comunicacional,
características fundamentais da condição pós-moderna, impõem também à
esfera da economia um funcionamento calcado na lógica da marca. Para o
autor, diversos setores de produção já operam de acordo com esta perspectiva,
caracterizando, assim, a passagem de uma economia de marcado a uma
“economia de marca” (SEMPRINI, 2006, p.87).
Como resultado dessas transformações, pode-se destacar, de maneira bem
geral, o crescimento da importância dos fatores vinculados aos indicadores
microeconômicos, o que coloca no centro das análises e tomadas de decisões

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

fatores vinculados à reputação e confiança que os indivíduos depositam nas


corporações, nos governos e no mercado financeiro em geral, determinando,
consequentemente, a predisposição ao consumo, à poupança e ao
investimento. Tal cenário em que os fatores macroeconômicos dividem espaço
com os fatores microeconômicos para compreensão da realidade pode ser
caracterizado, como destaca Semprini (2006), pelas seguintes transformações:
a mudança da noção de racionalidade econômica, que considera a imagem e
reputação das corporações nos meios de comunicação e internet como
elementos relevantes no processo de decisão de investidores e acionista; a
relevância dada pelos indivíduos aos valores sociais e ambientais na
constituição de análises da conjuntura econômica; a capacidade comunicativa
em interferir nas corporativas como resposta às percepções da sociedade; o
mecanismo de construção de valor baseado nos atributos imateriais das
marcas e das corporações; a lógica da marca e os mercados WTA3, baseados
no posicionamento relativo de liderança e na remuneração não mais vinculada
a uma relação direta entre a produtividade e retorno financeiro.
3 Abreviação de Winner-Take-All Society, livremente traduzido por “Sociedade
em que o ganhador pega tudo”, caracteriza o funcionamento de determinados
setores e mercado, com funcionamento semelhante à lógica das marcas
(FRANK & COOK, 1995 apud SEMPRINI, 2006).
Vê-se, assim, que a lógica contemporânea das marcas promove o cruzamos
dos campos do consumo, da comunicação e da economia, à maneira de um
motor semiótico que constitui sistemas de valores e crenças pautados nos
princípios da marca. Tal rede de sentidos sociais, como bem evidencia
Quessada (2003), promove a comunhão dos indivíduos que partilham os
valores da marca, resultando em sentimentos de pertencimento e identidade.
Assim, faz-se necessário um modelo de compreensão da marca enquanto
fenômeno de sentido e que considere a adesão dos sujeitos e a formação de
um corpo social da marca. Desta forma, a Análise de Discurso e as noções de
Ethos e cenografia se mostram bastante oportunas, como se pode ver adiante.
Ethos, cenografia e mundo ético da marca
Sendo a marca contemporânea um fenômeno eminentemente semiótico,
conforme já dito, podemos identificar inúmeras abordagens teóricas para a sua

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

compreensão. Em nosso caso, interessa discutir a marca-lugar como efeito de


sentido que promove a comunhão imaginária dos sujeitos através do consumo
simbólico das diversas manifestações da marca.
Dessa forma, entendemos que uma análise interna, restrita os mecanismos de
funcionamento da matéria significante, não se mostra adequada. Optamos,
assim, pelos pressupostos da Análise de Discurso, haja vista que nos
interessam os processos de produção, circulação e consumo das diversas
expressões da marca – seus discursos –, que promovem sentimentos de
pertença e formação de subgrupos sociais. Entre os diversos conceitos que
caracterizam o modo de apreensão da linguagem enquanto discurso,
destacamos as noções de ethos e cenografia como chaves para a
compreensão da marca-lugar enquanto efeito de sentido entre locutores, como
é possível ver a seguir. O conceito de ethos como a imagem de si no interior do
discurso que busca conquistar a adesão do auditório (AMOSSY, 2008) tem sua
origem nos estudos da retórica, cujo seu maior representante é Aristóteles.
Deixada de lado por um longo período, a retórica e o ethos são retomados no
interior da Análise de Discurso apenas na década de 1980 por Dominique
Maingueneau (2008).
A ideia de ethos está vinculada à enunciação a partir de dois aspectos: (1) na
produção de sentido, cabe ao co-enunciador atribuir qualidades humanas,
físicas e morais, à fonte do dizer – ou seja, todo discurso é sustentado por uma
voz, por um enunciador que tem um corpo e uma forma de ser no mundo, que
apresenta caracteres físicos e comportamentais; (2) por outro lado, cabe ao
enunciador operar com uma gama de recursos, tais como: postura, tom de voz,
gestual, ritmo de fala e modo de se vestir4, a fim de constituir um ethos
discursivo.
4 Tal compreensão da enunciação enquanto acontecimento, como ato
individual de colocação da linguagem em funcionamento, é marcada pelos
trabalhos de Emile Benveniste (1999).
Assim, ao mesmo tempo em que cabe ao orador planejar a constituição de
uma imagem de si, através de recursos bem variados, é necessário também
que o orador considere o auditório: seus valores, idade, nível de instrução e
sexo, por exemplo – dessa forma, fica claro que a noção de ethos tem uma

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dimensão estratégica e deve variar de acordo com as características do público


visado (REBOUL, 2004).
A noção de ethos em Maingueneau (2001, 2008), baseada numa compreensão
da enunciação enquanto ato subjetivo, a partir do qual o enunciador encarna
um corpo físico e adquire atitudes morais num contexto específico, está
vinculada a noção de cenografia. O conceito de cena de enunciação indica que
esse processo de constituição do ethos discursivo não se dá num campo
estéril, mas a partir de uma ambiência socialmente determinada. Assim, a
relação entre ethos e cenografia é o que dá sustentação e veracidade àquilo
que é dito pelo enunciador.
A ideia de cena da enunciação pode ser compreendida em três níveis: cena
englobante (que é pautada pelo tipo de discurso), cena genérica (determinada
pelo gênero de discurso) e cenografia (que é constituída a partir da enunciação
de um discurso específico). As duas primeiras cenas (englobante e genérica)
são dados pré-existentes e vinculados ao saber prévio do auditório, mas a
cenografia se constitui em paralelo à enunciação, no desenrolar do discurso
(MAINGUENEAU, 2008). Esse processo gradativo de constituição da
cenografia no desenvolvimento enunciação contribui para a formação do ethos
– tal fenômeno de discurso é denominado por Maingueneau de encarnação
(2001, 2008).
Conforme já explicamos em outro momento (PEREIRA JUNIOR; TELLES,
2015), é justamente esse processo de encarnação do ethos na compreensão
de Maingueneau que nos ajuda a elucidar, do ponto de vista da produção de
sentido, a adesão dos indivíduos aos discursos das marcas, de acordo com o
que preconiza Quessada (2003).
O processo de encarnação do ethos por parte dos co-enunciadores, que é a
base do processo de adesão aos discursos da marca, é dividido em três
etapas: (1) A enunciação produz, no interior do discurso, os atributos físicos e
psicológicos para o enunciador – trata-se de uma primeira incorporação, na
qual o ethos assume um corpo físico e traços de caráter; (2) em seguida, o co-
enunciador assume esse ethos como a fonte de sustentação do discurso,
atribuindo a essa instância discursiva padrões de comportamento, um modo de
controlar seu corpo e fluir no mundo – trata-se de uma segunda incorporação,

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que corresponde à recepção e é mais centrado na relação entre o ethos e o


mundo constituído pela cenografia; (3) por fim, os dois primeiros estágios dão
forma a um corpo coletivo de indivíduos que assimilam esse ethos e essa
cenografia a partir da qual ele emerge, com seus sistemas de valores, e
estereótipos de comportamento – ou seja, trata-se de uma adesão coletiva ao
mundo ético da marca, resultante da pertinência social e simbólica dos efeitos
de sentido produzidos pelas figuras do ethos discursivo e da cenografia.
Assim, o processo de encarnação do ethos (e de sua cenografia) explica como
o auditório adere aos discursos da marca e seu mundo ético, promovendo,
dessa forma, sentimentos de pertencimento e formação de grupos sociais que
se identificam na partilha do consumo simbólico das marcas contemporâneas.
Contudo, a própria dimensão estratégia do ethos – que assume as
características mais adequadas para cada público – evidencia contradições,
conflitos e sobreposições na constituição das marcas-lugar e,
consequentemente, suas cenografias e mundos éticos, conforme veremos a
seguir.
A cidade de Salvador e a complexidade das marcas-lugar
Os vídeos em análise, postos em circulação no meio televisão e na internet,
têm como cliente anunciante a Prefeitura Municipal de Salvador. O estudo
comparativo desses filmes explicita como a propaganda e a publicidade
operam estrategicamente seus discursos, fazendo circular marcas-lugar
distintas para a mesma região.
É evidente que as duas peças possuem públicos e objetivos de comunicação
diferentes – o que, em certa medida, explica a não coincidência entre os
recursos enunciativos postos em funcionamento. No entanto, para além da
dimensão estratégica da publicidade e da propaganda, não há o que justifique,
do ponto de vista sociocultural, a constituição de duas marcas tão distintas para
a cidade de Salvador.
O VT “Bairro a Bairro”5, que tem um minuto de duração, objetiva informar que
as obras públicas realizadas pela Prefeitura de Salvador seguiram os anseios
dos cidadãos e resultaram de consultas às comunidades – ou seja, tem como
público o cidadão soteropolitano e intenciona valorizar a voz das comunidades
e mostrar uma suposta sensibilidade das autoridades do executivo municipal.

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5 Filme publicitário publicado no canal do Youtube da Prefeitura Municipal de


Salvador, em agosto de 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=3j_vuke7uzs. Acesso em: 26 set. 2015.
O processo de constituição do ethos posto em funcionamento pelas
articulações enunciativas dessa peça apresenta um fiador masculino, que fala
a partir de uma música característica do gênero pagode, marcada por um apelo
popular, jovem, festivo e descontraído. Nos primeiros dez segundo do filme,
vemos, em espaços públicos, personagens do povo falando em um microfone
de pedestal, destacando a ideia de que as obras realizadas pela prefeitura
foram feitas a partir de consultas públicas – tanto as imagens (pessoas do povo
que passam a “ter voz” pelo uso do microfone) quanto o texto verbal afirmam
essa ideia de um ethos atencioso, preocupado em ouvir a população. Nos
últimos vinte segundo do VT, o locutor para de cantar a letra da música e
explica que as obras foram feitas após as comunidades serem ouvidas – tem-
se, com isso, um processo de valorização do auditório, enquanto o fiador
assume, estrategicamente, uma posição de inferioridade ante o co-enunciador.
Ao mesmo tempo em que se percebe um ethos fisicamente determinado –
homem, jovem, dinâmico, que transita com agilidade nos diversos espaços da
cidade –, é possível identificar traços claros de sua personalidade – festivo,
alegre, íntimo do auditório, que sabe valorizar aquilo que o público tem a dizer.
Tem-se, assim, o que se classifica como um ethos integrado6.
6 É aquele ethos que apresenta seus caracteres físicos e psicológicos
claramente definidos no discurso (PEREIRA JUNIOR, N. S., 2015, p. 224-225).
7 Marcas de comunhão são aquelas que se constituem por uma cenografia
baseada na adesão indistinta dos indivíduos, que busca a formação de um
corpo social sem restrições, destinada a todos. (ibid, p. 223).
8 Propaganda em vídeo publicada no canal do Youtube da Prefeitura
Municipal de Salvador, em julho de 2014. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1uHqkddf6EY. Acesso em: 26 set. 2015.

A cenografia a partir da qual emerge esse ethos – e que ao mesmo tempo por
ele é constituída – apresenta uma Salvador urbana, popular, negra, com
bairros pobres, ruas irregulares, escadarias, travessas e construções que se

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

desenvolveram de forma pouco ou nada planejada. Trata-se de um espaço


urbano do trabalho, no qual se veem operários da construção civil, vendedores
informais, feiras e comércio ao ar livre. Se por um lado se tem uma cidade
marcada pelo do trabalho árduo, por outro lado, trata-se da metrópole da festa
e da alegria, onde seu povo dança na varanda de casa, na laje, durante o
trabalho, nas ruas, escolas, praças, escadarias e feiras livres. A cidade de
Salvador, a partir do VT “Bairro a Bairro”, é uma cenografia que se constitui a
partir de uma ideia de coletividade, de inclusão, que é destinada a todos, que
acolhe todos, ainda que só apresente sua camada social mais pobre. Seu
sistema de valores e mundo ético colocam em destaque o trabalho físico, o
sacrifício, ao mesmo tempo em que aciona estereótipos de comportamento
fundados na ideia da alegria, da festa o tempo inteiro. Trata-se, assim, de uma
marca-lugar inclusiva, acolhedora, que tem sua lógica fundada na adesão de
todos, sem distinção – por isso, é uma cenografia que constitui uma marca-
lugar de comunhão7.
O filme publicitário “Salvador é uma festa para os sentidos. Sinta essa
cidade!”8 tem um minuto de duração e seu objetivo de comunicação é
apresentar a marca-lugar Salvador enquanto produto turístico – ou seja, a
intenção nesse caso é construir uma imagem de Salvador para o público
externo.
No referido VT, percebe-se um processo de construção do ethos que articula
um fiador homem e mais maduro. Seu tom de voz indica um modo de fluir no
mundo mais comedido, calculado e preciso. Considerando seus traços
psicológicos, percebe-se um fiador sério, que fala o estritamente necessário.
Os planos de captação de imagens e os posicionamentos de câmera situam o
auditório “dentro” da cena, como se pode perceber nas imagens de plano
próximo, que mostram olhos e bocas, e cenas como aquela em que a mulher
mergulha na praia (aos vinte e um segundos do VT), e na imagem em que a
baiana que carrega o jarro de flores (aos vinte e seis segundos do filme) e
outros planos de detalhe de rostos e objetos diversos. No entanto, a quase
totalidade dos planos em que há o elemento humano, o personagem filmado
não olha para a câmera, ou seja, não estabelece uma relação direta com o co-
enunciador.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Assim, ao mesmo tempo em que o ethos discursivo apresenta Salvador,


situando o auditório muito próximo, ele afasta, mantém certo distanciamento e
formalidade, em conformidade com os traços de tom de voz que indicam um
fiador distante e sóbrio. Como são identificados caracteres físicos mais ou
menos claros desse ethos, ainda que seus aspectos psicológicos sejam mais
expressivos, fala-se também num ethos integrado.
A cenografia constituída pelo filme publicitário “Salvador é uma festa para os
sentidos. Sinta essa cidade!” apresenta uma Salvador a partir de dois
elementos: (1) as belezas naturais, com destaque para o mar, e (2) as
manifestações cultura de origem africana, expressas pela comida, roupas e
eventos religiosos. Trata-se de uma Salvador constituída pelas praias de
bairros como Barra e Comércio e espaços do Centro Histórico, como o
Pelourinho. A música que acompanha todo o VT é baseada em sons
percussivos e arranjos vocais, sem texto verbal, que, em conjunto com outros
elementos como o acarajé e os demais alimentos, as baianas, tambores,
roupas de capoeira, eventos religiosos na Igreja do Bomfim, roupas coloridas,
turbantes, dentre outros, remetem a uma rede simbólica vinculada à cultura
africana.
Trata-se, assim, de uma cenografia que enaltece os traços culturais já
presentes nos estereótipos de padrões de comportamento vigentes no
imaginário acerca da cidade de Salvador. Nesse VT, a cenografia em
funcionamento constitui uma marca-lugar cujo mundo ético e sistema de
valores estão fundados na fruição dos sentidos, no espiritual e no sagrado, na
cultura negra, que se manifesta na música, na dança, na alimentação e na
religiosidade. Ainda que o filme busque atrair o auditório, seduzi-lo e trazê-lo
para a cidade – em outras palavras, ainda que a peça publicitária opere no
sentido de angariar a adesão dos leitores – está clara a constituição de uma
marca-lugar pela ideia de singularidade, pela distinção entre o “aqui” e o “lá”,
entre o “nós” e os “outros”, que define aquilo que é próprio da marca-lugar
Salvador e que não será encontrado em nenhum outro lugar. Assim, temos
uma marca-lugar que, ainda que concorra para conquistar a adesão do
auditório, se define pela lógica da exclusão, da singularidade e da
exclusividade. É, por isso, uma marca-lugar de exclusão9.

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9 Marcas de exclusão são aquelas que se constituem por uma cenografia


baseada na seletividade, na exclusão, no reforço das diferenças. (PEREIRA
JUNIOR, N. S., 2015, p. 223).

Considerações
A lógica de funcionamento das marcas na contemporaneidade se caracteriza
pela sua dimensão semiótica, constitui-se fundamentalmente enquanto
produção de sentidos que promove a adesão dos sujeitos em torno dos valores
e ideias postos em discurso, como bem explica Quessada (2003). Contudo,
quando pensamos no cruzamento dos campos da economia, comunicação e
consumo, de acordo com a perspectiva de Semprini (2006), percebe-se que a
cultura e suas manifestações são transformadas em produto, o que demanda
determinados cuidados a fim de manter o desenvolvimento econômico sem
impor transformações nos aspectos culturais ou reforçar estereótipos simplistas
apenas por conta da sua constituição enquanto “artefato” de consumo.
As noções de ethos e cenografia, que em nossa perspectiva são fundamentais
para explicar o fenômeno das marcas contemporâneas e o processo de adesão
dos indivíduos a seus discursos, ajudam a entendermos esse tipo específico de
marcas, as marcas-lugar, e colocam em evidência a maneira como
organizações empresariais do setor turístico e/ou governos articulam em
discurso tais marcas, de acordo com seus interesses – como se viu, há duas
estratégias de ethos e cenografias bem distintas, e em alguns aspectos até
conflitantes. Tem-se, com isso, dois efeitos discursivos de marca-lugar para a
mesma cidade, dois mundos éticos distintos para um mesmo povo e cultura,
que partem do mesmo locutor empírico.

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2005. 12

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Paulo: Futura, 2003.

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SEMPRINI, Andrea. A marca pós-moderna: poder e fragilidade na sociedade
contemporânea. São Paulo: Estação das Letras Editora, 2006.

1264
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ORNATUS VIEIRIANO: ENTRE O SENTIDO VERDADEIRO DAS PALAVRAS

THOMAZ HEVERTON DOS SANTOS PEREIRA (UFBA) 295

RESUMO

O presente texto pretende apresentar uma discussão acerca do que se pode encontrar em
textos de Vieira sobre o possível sentido verdadeiro das palavras. Ou seja, um traço no
discurso desse autor português, em cujos sermões, cartas, entre outros, não se descartam os
enviesamentos de seu discurso para a retórica. É bem verdade que o processo de construção
literária se dá no autor em questão sob a forma da retórica, que está munida das variadas
figuras que ornam as letras vieirianas. Em muitos textos pode ser verificada uma abordagem
discursiva política, religiosa como, por exemplo, no Sermão de Santa Cruz, pronunciado em
1638 na Bahia. Há, por conseguinte, um discurso construído em uma fonte de retórica
aristotélica, cuja fundamentação, sobretudo, aconteceu sob certas nuances de uma história
que se formou e se forma, profeticamente, dentro e/ou a partir de base escriturística cristã.
Sabendo que as discussões acerca da obra de Antonio Vieira não se encerram, dado o seu
caráter literário e sociocultural, tenta-se, nesse estudo, reaproximar gerações e tornar
significativa a memória e a história nas quais são apresentadas o povo luso-brasileiro. É
importante salientar que, de acordo com Coutinho (2004), foi a partir dos prosadores, dos
cronistas e dos poetas do seiscentos que tivemos a oportunidade de reconstruir a cultura
nacional de maneira fiel. Em virtude disso, é relevante e pertinente destacar a análise de textos
do escritor luso-brasileiro Antonio Vieira.

PALAVRAS-CHAVE: Antônio Vieira – retórica – Sermão

As reflexões propostas nessa comunicação são frutos de pesquisa


iniciada durante o mestrado e que se estendem atualmente na construção da
tese de doutorado, inserida no Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Cultura da UFBA. Muitas indagações podem ser levantadas acerca da obra de
Vieira: tempo, história, retórica, entre tantas outras. Nesse artigo, no entanto, a
opção de análise foi partir do Sermão da Santa Cruz, escrito na Bahia em
1638. Esta escolha se deu pela sua relevância histórica, uma vez que,
conforme Araújo (1999), aquele ano fora “de significado profundo para o
desenvolvimento da parenética religiosa em Antonio Vieira, com tons
295
Aluno do programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), tendo como orientador o Prof. PhD Igor Rossoni e coorientador Prof. PhD Jorge
de Souza Araujo.

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marcadamente políticos e especialmente quanto às intervenções militares dos


holandeses na Bahia” (ARAÚJO, 1999, p. 145). Esse período histórico retrata
um Brasil, onde os engenhos geravam renda com a produção de açúcar, além
da existência do domínio dos holandeses nas regiões da Bahia, de
Pernambuco, Alagoas até o Maranhão, que intentavam expandir ainda mais
suas fronteiras por todo o território brasileiro.

Nesse sermão, Vieira apresenta aos ouvintes a figura do português no


personagem Nicodemos, o grande fidalgo e discípulo de Jesus. Portugal ainda
está sob o jugo de Castela. Vieram os soldados portugueses e espanhóis para
a Bahia. Nesse lugar, Nassau desejava expandir os domínios dos batavos pelo
território da antiga terra de Vera Cruz. Vieira, então, chama a atenção dos
ouvintes em relação a isso e tenta persuadi-los da vitória contra os batavos
com a força da eloquência.

As (bem)ditas palavras de Vieira constroem possivelmente uma efusão


nos ouvintes em prol da intencionalidade proposta no sermão. Mas como se dá
a construção desse discurso diante da retórica? Que relação pode haver entre
aquilo que é dito e o sentido verdadeiro das palavras? Vieira, em História do
Futuro, afirma: “[...] Só é necessário declarar a significação e mistério de
algumas palavras, umas por enigmáticas, outras por menos comuas” (VIEIRA,
2015, p. 374).

O homem barroco, imerso no mistério, vive em busca da luz espiritual.


Tal busca é bem exposta pelos sermões de Vieira, porque neles se manifesta o
mistério. Em verdade, o mistério é um importante elemento retórico e evidencia
o ser de Deus. Para tanto, esta mística divina manifesta-se na imensidão e
invisibilidade. O imenso encontra-se na relação que se mantém com o universo
e todas as coisas por ele criadas; a invisibilidade, no entanto, faz-se mediante o
princípio da fé. Desse modo, o mistério costura a postura teológica nos
sermões de Vieira, estabelecendo em suas construções hermenêuticas a
valoração das Escrituras e a publicidade dos Sacramentos. Configura-se,
assim, um lugar do mistério, em cujo

esse novo lugar supõe uma constituição ambígua, dúplice,


participativa, misteriosa, em que o Ser divino se apresenta em traço

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material, mas em que esse traço, ao mesmo tempo, não dá senão


uma indicação pouco explícita de sua natureza substancial
(PÉCORA, 1994, p. 113)

Ao trazer à discussão, neste artigo, o sermão da Santa Cruz, tem-se


alusão a uma festa religiosa, que se tornou cultural, realizada na Bahia no ano
de 1638, há vinte e sete dias do escrito de Vieira, singularizando o sermão na
história. Da festa brotaram as imagens e construções elucidativas da
mensagem do sacerdote luso-brasileiro àqueles soldados da Armada Real e,
“como se para um mistério tão alto pouco tempo um dia, e pouca celebridade
uma festa, a torna hoje a celebrar com repetida veneração esta nossa Igreja”
(VIEIRA, 1998 [1679], p. 371).

É perceptível que o sermão de Santa Cruz corresponde ao lenho ou


madeiro da crucificação de Cristo que era celebrada pela Igreja Católica
Apostólica Romana, e trazido, sem dúvida, pelos colonizadores portugueses à
cultura brasileira. Duas observações, portanto, são pertinentes nesse
momento: o ato de fingimento, a abordagem metonímica de Vieira e o mistério.

Esse desempenho discursivo do orador jesuíta logicamente é retórico,


quiçá, irônico, haja vista monitorar, pela pena, tropos da oposição. Como ele
próprio afirma: “aquela solenidade, primeira e universal, foi um devido
reconhecimento de uma agradecida recordação das obrigações antigas, que a
nenhuma outra memória, depois de Cristo, as deve o mundo maiores” (VIEIRA,
1998 [1679], p. 372). O pregador dá um tom ambíguo à informação pelo uso do
determinativo “aquela”, remetendo o leitor a dois momentos, um presente e um
longínquo: referência textual à festa da Santa Cruz celebrizada dias atrás, ou
ao primaz contentamento cristão histórico que foi a morte de Cristo, fincado
numa Cruz, elucidando adiante como “sagrado lenho, que foi a tábua em que
do naufrágio de Adão se salvou o gênero humano, e o instrumento
gloriosíssimo, com que o Filho de Deus feito homem obrou nossa redenção”
(VIEIRA, 1998 [1679], p. 372).

O ato retórico seleciona um tema sublime, a Cruz de Cristo, símbolo


da cristandade e bandeira dos povos cristãos, inclusive dos portugueses, para
“tratar somente dos interesses presentes, que da virtude da mesma Cruz, ou
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da sua onipotência, podemos esperar” (VIEIRA, 1998 [1679], p. 372), cujas


benesses são várias, e que trará, incontestavelmente, a vitória sobre os
inimigos, libertando-se dos jugos dos holandeses. O tema bíblico é a cortina
pela qual Vieira há de reforçar as ideias e construir a ideologia religiosa de
“nossa Igreja”, jesuítica católica, em contraposição, evidentemente, ao
protestantismo vigente, o qual está ligado aos inimigos dos portugueses, no
caso, os flamengos.

Fingir ou falsear, no Sermão da Santa Cruz, é tornar evidente o


imaginário português de domínio e expansão a que a nação portuguesa
submeteria os povos, e isso se vincula no sermão através do destaque que o
orador faz, no introito, da sublimidade cristã, ciceroniana, mas que ganhará
contornos de estilo retórico baixo para, exatamente, gerir, em todos, movere
dessa homilia.

Vieira, partindo da concepção geral à particular, ou seja, do contexto


macro ao micro, do todo pela parte, usa metonimicamente as coisas: Igreja,
Cruz, cinco fontes na Cruz, o pé da Cruz, e a soberana Intercessora. Essas
coisas são elementos que alimentarão a fé, nesse caso, dos soldados
portugueses e espanhóis. Tais alegorias favorecem para o ensino, o saber,
docere, dos ouvintes. Em ovação, canta o padre Ave Maria e,
simultaneamente, pelos símbolos e arquétipos que designa, imanentiza as
imagens num plano, fílmico, cujas fotografias eletrônicas reconfiguram uma
história, um tempo, uma vida, uma doutrina, uma doxa: “A graça não temos que
ir longe a buscá-la, porque na Cruz temos cinco fontes delas, e ao pé da Cruz
em pé a soberana Intercessora, que no-la alcance. Ave Maria” (VIEIRA, 1998
[1679], p. 372). Um coro, um salve à Rainha dos céus, um eco que parece
brotar das letras vieirianas enaltece como uma espécie de coral verbal, força
da voz na oratória, pela língua sacra, a proposta de se fazer usar o que dará
argumentação e força ao discurso do pregador cristão: o Evangelho, as
Sagradas Escrituras.

Além disso, outro elemento faz jus ao sermão: o desejo. Segundo


Aristóteles, orator busca como fim proposto o útil e este é o bem. Vieira (1998,
[1679]) afirma “se há de deixar o mais fino pelo mais útil” por entender que é a

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vontade de todos os seres que os atos redundem nos bens da vida, que, para
Aristóteles, são: felicidade, magnanimidade, temperança, saúde, justiça,
beleza, coragem, prazer, entre tantos outros. Todos os seres almejam o bem
para os amigos e as coisas são factíveis de facilidade ou dificuldade, a
depender da preferência.

O mestre Vieira cadencia o discurso nessa perspectiva e efetiva no


ouvinte uma força conceptista que o induz à sedução e ao convencimento pelo
sabor das palavras, dizendo-lhe que é possível agir e conquistar os bens,
mesmo não os vendo naquele momento, porque ele está invisível, absconditus.

O Boca de Ouro português procura imprimir nos corações a audácia do


homem valente, porém temeroso a Deus. Essa verdade (aletheia) sobre a qual
o sermão paira, conforme Mendes (2003) é acompanhada pela Dike (justiça),
da Pistis (fé) e da Peitho (persuasão). Vieira, nesse intuito, articula
melodicamente o sermão de maneira que desliza colírio em quem o lê e
embebeda com mel ao que ouve o ritmo dos seus raciocínios.

No tomo II, o eloquente pregador utiliza apenas três versos bíblicos.


Rememorando Iser (1996), a seleção textual é uma prática do ato de
fingimento. E nessa parte do Sermão de Santa Cruz, há, por conseguinte, uma
conversa entre Nicodemos, Mestre de Israel, e o Cristo, o Mestre da parte de
Deus, sobre as questões que conduzem o homem à transformação: do
arrependimento e do reino de Deus. Isso Vieira faz valer com certo
obscurantismo, ao ocultar os versos 3 ao 13 das Escrituras, causando uma
reiteração a respeito de que é necessário reencontrar-se com Deus durante a
noite. Vieira, portanto, seleciona o discurso que pretende usar. Não tinha,
nesse sermão, lugar para se falar tão somente em mudança de vida, mas sim,
de lançar a semente de luta contra os inimigos, a partir da tipologia de
Nicodemos. Vê-se, consequentemente, que Vieira não tem um discurso
simplesmente religioso, mas também político e militar.

Esse personagem, Nicodemos, segundo o Crisóstomo Português, era


da nobreza, “e era grande fidalgo”. Encerra o padre uma enunciação e em
círculo interpretativo constrói uma hermenêutica. Nessa desarmonia-harmônica
focaliza o intérprete sagrado para aproximar duas premissas: uma relativa à

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parte visível, erat homo, Nicodemus nomine, princeps Judaeroum 296, e outra
oculta, comparada a Moisés e surgimentos do Filho do Homem.

Ademais, Vieira invoca o silêncio, metaforizado na “noite”, onde se deu


o encontro entre o Mestre de Israel, Nicodemos, e Jesus. “De dia
contemporizava com o mundo, de noite tratava com Cristo, e mais, não era
cristão” (VIEIRA, 1998 [1679], p. 373). Nessa pintura, a presença da antítese
“dia/noite” infere também o contraste barroco do claro-escuro, iluminando o
escondido, por revelação durante a escuridão.

Em verdade, o pregador frisa a condição de homem, embora não seja


a de homem qualquer, mas a de um ídolo, “fidalguia endeusada”, legitimado
pelo Senhor e que, por conseguinte, assume um discurso diferenciado e
importante no sermão: o de arquétipo alegórico. Daí tem-se o elemento
material não muito distante dos ouvintes, muito mais fácil à sedução: Erat
homo; uma figuração próxima, mas que mantinha a identidade do ser. Não que
Nicodemos fosse Deus, mas representa esse contato entre o plano superior,
transcendental, e o plano inferior, humano, unindo-os. Quase não há a
distinção entre o que é divino e o que é humano, uma Eucaristia sacramentada,
sendo um desvio argumentativo, da Cruz, que para Nicodemos tornou-se um
ato profano que se sacraliza pelo cronista sagrado e se torna semelhante aos
da Armada do Rei.

Em continuação ao sermão, através do argumento pelo exemplo, Vieira


ratifica as premissas. Destaca em Nicodemos, intitulado victor populi, o
“vencedor do povo”, cuja qualidade, segundo Vieira, ultrapassava o caráter
nobre, da “primeira nobreza: princeps Judaeorum – e ser lustre quem vai à
guerra, é levar a metade da vitória ganhada. Não sabe vencer quem não sabe
dar o sangue, e mal o pode dar quem o não tem” (VIEIRA, 1998, [1679], p.
373).

Os portugueses estavam numa guerra contra Holanda. Ir à luta


representava ter um sangue ilustre, diferenciado, de estirpe boa. E grita o
padre: “Grande título!” Ter isso é levar boa parte da vitória. Estar associado,

296
Havia um homem, de nome Nicodemos, príncipe dos judeus.

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por sua vez, à boa linhagem significava honra. Vieira, numa espécie de
memorização, circula o trecho em torno de si mesmo, repetindo as expressões
em latim e na língua vernacular. Esse eco musical e circular fixa a mensagem,
enfatizada e reforça categoricamente a palavra pensada, materializando-a ao
auditório: “tinha-lhe dito Davi – apertemos mais o ponto – tinha-lhe dito Davi”,
mesmo nesse jogo anafórico, de repetição, Vieira desloca o raciocínio não ao
que foi dito por Davi, cujo ato por si só representava a virtude humana, mas a
ênfase encontra-se na genealogia a que ele pertence, ou seja, o sangue. Pode-
se notar o uso do isócolo em “Tinha-lhe dito Davi”, por ter no período estes
membros iguais. O eloquente orador também repete isso com a expressão em
latim Ex qua stirpe est hic adolescens297, dita no início do sermão e reiterando-
a ao final. Essa prática no sermão tem a finalidade de ter atenção do ouvinte e
imprimindo-lhe, no coração, a mensagem.

Tautologicamente, em razão desse engenho barroco de vaivém dos


enunciados, Vieira ratifica a força de pertencer ao que ele, no início desse
capítulo, atribui como Grande título, a nobreza. Nobreza que noutro sermão é
severamente condenada pelos abusos da opulência, contrariando a vida pobre
da população, que padecia pela sobrecarga de inúmeros e grandiosos
impostos. Silogisticamente pode-se pensar, inclusive, que se todo homem,
nesse sermão, tem o sangue bom, nobre, português, diríamos, será vencedor;
e, cartesianamente, a batalha contra os batavos será vitoriosa.

É interessante notar que o padre busca em Orígenes reforço à prédica


e expõe através de Madalena – uma figura bíblica da rejeição, do
descontentamento, do pecado, do aviltamento, da vergonha – a condição de
sublimidade; sai o luso-brasileiro do sermo humilis ao sermo sublimis com a
imagem de Madalena em contraposição à dos discípulos. Além disso, nessa
contraposição entre a prostituta e os discípulos, exalta nosso autor a
marginalizada. O tropos da oposição, ironia, faz-se presente, o que é uma
marca antitética dos enunciados. A transgressão é evocada. Em verdade,
acontece um processo de catarse pelo estilo paradoxal existente na
personagem Madalena. Ela é o resumo barroco, um misto de sacro e profano.

297
“de que estirpe é este adolescente.”

1271
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Veja:

A Madalena, ainda que mulher, e uma, era ilustre solar, e senhora; os


discípulos, posto que homens, e muitos, eram plebeus, e sem
nobreza; e onde houve esta ou faltou, ali se luziu ou se perdeu o
valor. (...) Sendo, porém, a Madalena tão nobre por geração, e os
discípulos uns pescadores, que com o remo e a rede sustentavam a
baixeza da sua fortuna, como naquela ocasião todos perderam a
graça, claro está que, deixados à natureza, cada um havia de obrar
como quem era. Os discípulos, como gente plebéia, deitaram a fugir;
a Madalena como ilustre, posto que mulher, perseverou constante ao
lado sempre de seu Senhor. (VIEIRA, 1998, [1679], p. 374).

É bom chamar atenção para uma figura gradativa de contradição:


“como era ilustre e senhora, houve de ser cortesã, passou a cortesia a ser
cuidado, passaram os cuidados a ser descuidos” (VIEIRA, 1998, [1679], p.
374). Não usa o padre termos pejorativos, de baixo calão; pelo contrário,
eufemiza a conditio peccatoribus da mulher para um uso meticulosamente
ameno: descuidos. Um vocábulo que destoa totalmente do conteúdo negativo
que se carrega ao falar em Madalena. Essa figura é importante e se insere na
história do Sermão da Santa Cruz como um ícone de riso, humor e, sobretudo,
de valor.

Em seguida, em um ímpeto ou numa tempestividade de contrastes,


Vieira afirma: “os dias fê-los Deus para nós, as noites para si; os dias para as
ocupações do corpo, as noites para os retiros da alma; os dias para o exterior e
visível, e por isso claros, as noites para o interior e invisível, e por isso escuras”
(VIEIRA, 1998 [1679], p. 376). Mais uma vez o enfoque barroco das antíteses,
do desvendar dos mistérios que se ligam à noite, ao invisível, ao desconhecido,
mas também ao contato íntimo com o divino e, com isso, a intimidade entre
Deus e o homem, a união mística. Assim, compete ao padre, na parenética,
associar a deidade à humanidade, de maneira que o homem aplique ou
desenvolva os atos divinos e como bom português que é, faça aparecer e se
concretizar o reino lusitano ao derredor do mundo. De acordo com Pécora
(1994, p. 111): “o homem é enlevado até junto de Deus por um ato único de
sua Graça, para a da ação humana capaz de instaurar no mundo uma vontade
análoga à divina”

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Em seguida, Josué é outro personagem bíblico que entra em cena no


teatro vieiriano. Na batalha contra os medianitas, Josué, “como se o sol fora
soldado seu, mandou-lhe que parasse, e parou ou fez alto o sol” (VIEIRA, 1998
[1679], p. 376). Isso gerou uma gradação linguística: “tão grande dia – grande
na duração, grande na vitória, grande no império do general, e mais na
obediência do nosso Deus à voz de um homem” (idem, p. 376, 377). Para que
tudo isso acontecesse, foi necessário a Josué ter saído como fazia, para o
campo orar às noites.

É notória no sermão em questão a clareza, a brevidade e a


verossimilhança com que Vieira faz uso, intensificando, mediante, o
interdiscurso, o próprio discurso. Os períodos são curtos, embora anafóricos,
pelas repetições e retomadas, em cuja apresentação eles oferecem força para
a prédica religiosa. Munido dessas construções, intertexto e interdiscurso,
Vieira ratifica sua oratória cristã. Essas fraturas oracionais preenchidas com
escritos doutros autores, no sermão, ou, “lapsos”, favorecem a estratégia
vieiriana de provocar reflexões no leitor; além disso, assume um caráter de
auctoritas histórico, submetendo, inclusive, o discurso do outro ao dele, porque
assume agora a voz discursiva e anuncia como se fosse ele, quem tivesse
produzido aquele pensamento.

Por todo momento o pregador jesuíta leva o auditório, através de


curvas e espirais linguísticas à consciência política e religiosa. É necessário
saber a condição humana que está maculada pelo primeiro Adão e precisa do
segundo Adão para ser purificado. Essa consciência coletiva, todos são
pecadores e carecem da glória de Deus, é apresentada por Vieira quando
destaca que os homens devem orar e buscar ao Senhor durante a noite, como
fizeram os tipos bíblicos, para manterem uma relação de intimidade e
comungare com o Padre.

Essa evidência é materializada também pelo rito da Eucaristia. O corpo


de Cristo é absorvido pelo humano e este é inserido no Corpo de Cristo,
participante, por conseguinte, do Reino de Deus. A subserviência a Deus,
portanto, é importante para o estabelecimento político e vitorioso de qualquer
nação, em especial, a lusitana, o que para isso, vale-se de buscar, mesmo que

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à noite, às escondidas, sem que o inimigo também o saiba que esta é uma
arma poderosa para vencê-lo, a oração. Esta prática inaciana limpa o indivíduo
da penitência, da culpa, dos pecados e concede-lhes força para avançar em
qualquer batalha, porque o Senhor vai adiante, assim como ele foi, conforme
descrições em muitas passagens das Escrituras.

Vieira deseja emendar os abismos da alma, expurgar o pecado para,


assim, sacramentar a presença e autoridade divina na bandeira portuguesa
que só desse modo derrotará os adversários e traidores. Até porque perceber-
se enquanto pecador é voltar-se à consciência de que se é humus, pó, e, por
isso, fortalece a condição de dependência divina.

Esta parte do sermão serve como uma transição aos outros, tendo em
vista que o padre precisa amansar os corações pecadores, convertendo-os
para as boas qualidades presentes em Nicodemos, que o levam a victor populi,
objetivo de Portugal e propósito de Deus. Somente “Ele dá e tira as vitórias, e
só as podem esperar com confiança os que, pela emenda dos pecados e
observância de sua lei, o tiverem propício” (VIEIRA, 1998, [1679], p. 380).

A partir desse trecho “o que desigualou o poder pode-o suprir a arte, o


que errou a mesma arte pode-o emendar a fortuna; mas o que se intentou sem
conselho, ainda que o favoreça o caso, nunca é vitória” (VIEIRA, 1998, [1679],
p. 381), é o olho do capítulo V, ou resumo do discurso de Vieira nessa parte.
Mesmo como mestre, saiu Nicodemos a pedir conselho, a arte das artes, e
abusa de paralelismos “a arte prescreve preceitos em comum, o conselho
considera as circunstâncias particulares; a arte ensina o que se há de fazer, o
conselho delibera quando, como e por quem” (VIEIRA, 1998 [1679], p. 381).

O conselho nutre sabedoria e prudência humanas, como dissera Jesus,


para sermos prudentes como as serpentes e símplices como as pombas 298,
assim Vieira esclarece a importância do conselho, com muitos exemplos
históricos, bíblicos e assegura essa verdade. Mediante a máxima salomônica
“as guerras se hão de governar com os lemes: gubernaculis tractar de sunt
bella” (VIEIRA, 1998 [1679], p. 382) que passa, nesse instante, e

298
Mateus 10:16.

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proporcionalmente à máxima no sermão de Vieira, a metáfora é visível. Os


lemes, condutores das naus à vitória nos mares, trata-se dos conselhos e
diretrizes anunciadas, mas por quem? Geniosamente Vieira não conta quem
dará o conselho, pelo menos, explicitamente.

Em comparações sutilmente belas, Vieira amplia o dynamus do


conselho e o eleva à categoria de virtude da alma. Leme/conselho são termos
simultâneos no sermão e, indubitavelmente, mascaram a linguagem, tornando-
a saborosa, no escrito. A linguagem vieiriana escamoteia-se, semiotizando-se
nas metáforas que engenhosamente o padre aplica. Tal caráter ficcional é
lúcido, é fingido, é imaginado a ponto de não se perceber o que segura o leme
do barco, que se embrenha nas ideias, disfarçando-se como narrador implícito,
distante, aparentemente, do discurso o qual profere.

Então, quem exerce o papel de conselheiro dos portugueses e


ouvintes, para Vieira, são as Escrituras, dizendo que “ouçamos ao homem mais
sábio, o qual só logrou perpétua paz, porque entendeu melhor que todos a
guerra. No capítulo vinte dos provérbios de Salomão um documento militar
notável” (VIEIRA, 1998, [1679], p. 382), e, em consequência, a história, os
testemunhos, e, obviamente, o próprio pregador. Como exemplo, citou o padre
a respeito da desatenção do reino de Nabucodonosor sob o comando de
Holofernes, general do exército da Babilônia contra a Betúlia, que não teve a
hombridade para solicitar um conselho, e se o pedira não o seguiu.

Vieira é o sacerdote português por excelência, representando a palavra


de Deus aos soldados, mentor da mensagem divina, o Moisés luso-brasileiro.
Aos presentes, de modo apoteótico, aconselha Vieira: “Aprendam pois destes
funesto e formidável exemplo os generais dos exércitos a não desprezar, mas
venerar e seguir os conselhos de quem lhos pode dar”(VIEIRA, 1998 [1679], p.
384).

O penúltimo tomo, VI, retoma os caracteres para ser vencedor do povo


como Nicodemos: “nobreza de sangue, familiaridade com deus, docilidade no
juízo” (p. 385) para acrescentar mais um elemento, ou como diz o padre, um
senão, o medo. Temer ao inimigo condiciona o militante à derrota e a “ousadia
é a metade da vitória” (p. 385), e como Davi pedira ao Senhor a fim de que não

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o livrasse nem das armas, nem do poder, mas de ser temeroso ao inimigo,
deve-se, mesmo com braço forte e firme, clamar ao Senhor para afastar tal
sentimento.

Há inserção de um novo personagem: Elias. Fugia esse profeta de


Jesabel, rainha e irada, e por temer a morte a procurava. Mas como pode
temê-la e procurá-la? Indaga o padre, fazendo uso do discurso de Crisóstomo,
como se dele fora. Como resposta, Vieira destaca a palavra deserto, lugar
ermo e de recolhimento, de reflexão, de refúgio. A árvore, cujo tronco dá
sombra ao profeta, outro símbolo na cena bíblica, ganha destaque nesse
sermão. Principia Vieira aquilo que faria o profeta e todos vencerem os medos
e lançar-se à guerra, tendo como resultado a vitória. Aquele tronco assume a
figura da árvore da Cruz e a virtude da Cruz. Essa sinédoque da árvore remete
à Cruz, à Santa Cruz tão poderosa e eficaz a retirar o temor e imprimir ânimo e
valor naquele que usufrui.

A cruz é o antídoto, o remédio contra os ferimentos da alma, as


manchas de pecado; porém, ela serviu para sarar o povo no deserto, que
caminhava em direção à terra Prometida, blasfemando e desobedecendo aos
preceitos divinos, durante o exercício sacerdotal de Moisés. Assim como houve
no deserto com Moisés, assim Cristo, pela cruz, há de sarar os vitimados pelas
serpentes299.

A existência, portanto, dessa Santa Cruz surgiu no momento em que


Cristo esteve nela, transferindo-lhe valor de Cruz, de Salvação, de vida, de
vitória, de símbolo. E é com este sagrado sinal animar sua fraqueza, e
fortalecer sua pusilanimidade que se os soldados olharem, eles adquirirão
valentia, vigor, e estarão certos da conquista. Nicodemos e José de Arimatéia
após terem o contato com a Cruz, não mais se esconderam da população, dos
fariseus, tendo ato de coragem ao solicitar a Poncio Pilatos o corpo do Cristo
morto, embalsamando-o com grande cópia de espécies aromáticas. Eles

299
Esta discussão tem referência em Números 21:9, onde Moisés levantou uma cruz em forma
de serpente para que todos os que olhassem para ela, quando picados por venenosas
serpentes, seriam sarados. Cristo, então fez menção a isso no novo testamento, comparando-
se à serpente que foi levantada no deserto.

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deixam de ser ovelhas mansas e medrosas para se tornarem leões contra os


lobos sociais. Era-lhes necessária a Cruz e se revelou in post crucem.

A peroração ou epílogo direciona-se mais veementemente aos


portugueses. Solicita Vieira que eles se armem com uma arma mais firme, mais
forte e mais invencível. Firme/forte/invencível é a Cruz. As vogais i/o se
intensificam em firme/forte, absorvidos pela palavra invencível
semanticamente. E quem conduz a Cruz ou se mira nela, alcançará o Paraíso
como o bom ladrão na cruz, porque as cruzes estão perto dos punhos e a elas
cada um deve pegar e seguir avante, adiante em prol da conquista do território.

O signo Cruz é o fulcro do sermão em estudo. Com essa alegoria, que


alcança patamares de dogmatismo, Vieira provoca frescor e temor no público
pela linguagem que cativa, recria, inova, induz, seduz. Por último, com um
trecho do poema de Luís Pereira Brandão, um soldado que acompanhou D.
Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir, é mais um exemplo interdiscursivo,
agora, pertencente à genealogia portuguesa e uma voz que se confunde à voz
do próprio padre, e na modernidade ao poeta Pessoa ao dizer navegar é
preciso, viver não é preciso, “assediando” a todos a téleos portuguesa: à vitória
contra os adversários.

Finaliza o padre, dizendo que “o sinal do céu seja o farol que sigam as
armadas no mar [...] exaltados todos pela virtude da Santa Cruz” (VIEIRA, 1998
[1679], p. 392). De fato, a verdade e o sentido são termos imbricados e que
redirecionam o processo retórico de Vieira. Isso evidencia a tese de que a
verdade dos sentidos está diretamente ligada retórica, que, por conseguinte,
não preenche todo o conteúdo da verdade dos signos, preenchida, de fato,
mediante a hermenêutica. É ela quem possibilita a descoberta dos sinais
divinos, porque são formados pelo intérprete.

REFERÊNCIAS

1277
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: CULTURA DE TRADIÇÃO ORAL

PROPOSITOR: DOMINGOS AILTON RIBEIRO DE CARVALHO (UESB)

Ementa:

Este GT contempla trabalhos relacionados aos estudos dos saberes e fazeres

da cultura baiana de tradição oral. Engloba pesquisas que enfocam a produção

dos mestres da cultura popular do Estado da Bahia, as lendas, os mitos; os

cantos, as danças, os costumes, as crenças, a medicina e os folguedos das

manifestações culturais tradicionais de todos os territórios de identidade

baiana.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

CULTURA, LITERATURA DE CORDEL E AS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS


ATRAVÉS DOS ESTUDOS CULTURAIS

CLÁUDIA ZILMAR DA SILVA CONCEIÇÃO

A partir da polifonia que se encontra atrelada ao conceito de cultura, os


Estudos culturais possibilita a problematização e a compreensão do que é
culturalmente humano, criando condições de novos diálogos entre os conceitos
socioculturais que se propagam no contexto contemporâneo. Esse cenário por
sua vez, implica um descentramento da noção de cultura, esta nomenclatura
deixa o centro passando a permear, ou mesmo a visibilizar as margens
silenciadas, movimentação esta promovido pelos Estudos Culturais, pois
“nesse momento, a Cultura, com letra maiúscula é substituída por culturas no
plural” (CEVASCO, 2008, p. 38).
Pensar a noção de cultura no crivo dos estudos culturais, nos permite
compreender a cultura numa perspectiva simbólica, como nos propõe Geertz
(1989), uma vez que, a cultura passa a ser entendida/interpretada de acordo
como a experiência vivida de qualquer grupo humano. O que está em questão,
ou mesmo o que fica centralizado é a noção de cultura numa perspectiva
simbólica, possibilitando assim ao sujeito diversas interpretações, implicando
assim uma junção de culturas, o que vivenciamos no contexto contemporâneo
– o multiculturalismo.
De acordo com esta perspectiva acima proposta por Kuper (2002), Silva
(2011) também nos apresenta uma noção de multiculturalismo neste mesmo
viés, pois caracteriza como um reflexo dos diversos grupos humanos, que
mediante as suas lutas ambientais e históricas, visibilizam o potencial criativo
que seria uma característica comum de todo ser humano. “As diferenças
culturais seriam apenas a manifestação superficial de características humanas
mais profundas. Os diferentes grupos culturais se tornariam igualados por sua
comum humanidade” (SILVA, 2011, p. 86).
Portanto, o currículo multiculturalista representado na Literatura de
Cordel, sugere descrever essa literatura como uma ferramenta capaz de
operacionar práticas cotidianas que descortinem as relações etnicorraciais,
culturais e sociais propagadas pela cultura hegemônica no cenário
educacional.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A Lei 10.639/03, assinada pelo Presidente Lula, que estabelece o


ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira, nos diferentes níveis
de ensino, em especial, nas disciplinas Artes, Literatura e História do Brasil,
com a finalidade de tornar visíveis, aqueles que sempre foram invizibilizados de
forma imposta pela cultura hegemônica. Dessa forma, esses professores, no
nosso caso específico o de Língua Portuguesa deve se reinventar, buscar
estratégias para abordar de forma eficiente as relações etnicorraciais na
escola, e a melhor forma é a partir do modelo da leitura crítica. Como coloca
Carlos Magno Gomes:

Este modelo é pautado em uma pedagogia interdisciplinar de leitura,


na qual as estruturas estético-culturais do texto não podem ficar de
fora da abordagem. Tal prática interdisciplinar é possível por
deixarmos de lado a definição de literatura como objeto estético-
artístico para trata-la como produção estético-cultural, marcada pelas
diferenças ideológicas que fazem parte da construção textual e da
recepção crítica (GOMES, 2012, p.168).

O que nos leva a abrir um espaço de reflexão em torno do


reconhecimento das diversas formas de representações estético-cultural
materializadas pelos versos do cordel, repletos de elementos memorialísticos,
orais e, também ora racistas que nos permitem fazer uma leitura crítica,
desfazendo os nós do preconceito racial propagado ao longo dos anos na
literatura de cordel.

Uma reflexão de cultura perpassando pela literatura de cordel e as


relações etnicorraciais

Conceituar cultura é muito difícil, uma vez que é o campo da ciência


que estuda as origens, o desenvolvimento, as semelhanças e as diferenças
das sociedades humanas. Segundo Malinowski (1975) a teoria da cultura deve
tomar sua posição baseada no fato biológico. As necessidades orgânicas ou
básicas é um conjunto mínimo imposto a cada cultura, uma vez que, os
problemas apresentados pelas necessidades nutritivas, reprodutivas e
higiênicas do homem são solucionados pela construção de um novo ambiente
que nada mais é que a CULTURA, implicando assim, um novo padrão de vida,

1281
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

que depende do nível cultural da comunidade, e na medida em que novas


necessidades surgem, uma nova noção de cultura surgirá.
Ao percorrer os caminhos da história, a qual apresenta uma narrativa
contínua das marcas culturais do homem, designado por normas, costumes,
tradições, leis, conhecimento, crença, arte e várias outras aptidões e hábitos
adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade, na qual esses
elementos não podem ser considerados homogêneos, já que não se pode
conceber a uniformidade entre as diversas culturas. Ao acreditar que existe
uma “evolução uniforme, toda estrutura perde sua fundamentação” (BOAS,
2004, p.42).
Geertz (1989), por sua vez, considera a cultura, como documento de
atuação, é pública, porque o significado também o é, sendo assim, não
consiste numa identidade oculta. Propõe um conceito mais especializado e
teoricamente mais poderoso, essencialmente semiótico, assumindo a cultura,
numa concepção werberiana, como “teias de significados” que amarram o
homem.
O autor coloca que a cultura não é um poder, mas um contexto, dentro
do qual os signos interpretáveis podem ser descritos de forma inteligível.
Acrescenta que as descrições das culturas devem ser calculadas de acordo
com as construções que os diversos povos apresentam através da vida que
levam, alertando para o cuidado que se deve com a abordagem hermética das
coisas, a qual não se preocupa com o comportamento, tratando cultura como
sistema simbólico, tão somente, com o isolamento de seus elementos. É
através do fluxo do comportamento, ou da ação social, que as diversas formas
culturais encontram articulação. E, assim, (Geertz1989, p.47) posiciona-se “que
cada grupo cultural tem sua história própria e única, parcialmente depende do
desenvolvimento interno peculiar ao grupo social e parcialmente de influencias
exteriores às quais ele tenha estado submetido”.
Pensar a noção de cultura no crivo dos estudos culturais, nos permite
compreender a cultura numa perspectiva simbólica, como nos propõe Geertz
(1989), possibilitando o descentramento proposto por Boas (2004), já que a
cultura nesta ótica “inclui belas artes, literatura e conhecimentos, as matérias
regulares do currículo das ciências humanas, mas abrange também as artes

1282
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

negras, da mídia e a cultura popular (costumava ser chamada de folclore e arte


proletária, mais os esportes)” (KUPPER, 2002, p. 291).
Nessa perspectiva crítica, as demandas por um currículo multicultural
tornam-se urgente por fazer uma ligação de conteúdos a experiências vividas
por classes oprimidas nessa época contemporânea de pluralidade cultural,
onde denuncia-se o caráter excludente da escola, onde a cultura negra não é
valorizada.
O enfoque inicial dos estudos culturais é a resistência representada pela
cultura popular (KUPPER, 2002), na qual trazemos por meio da Literatura de
Cordel para sala de aula do ensino básico a discussão sobre as relações
etnicorraciais por entender que uma das formas de transmissão da cultura é
pela educação, como atesta Kupper (2002):

[...] a cultura é transmitida por intermédio da educação e da mídia, e


eles se preocupam com o fato de que os multiculturalistas estejam
entrincheirados em posições de poder em muitas escolas,
universidades, jornais e estações de TV, onde são colocados de
forma estratégica para fomentar a ideia de diferença (KUPPER, 2002,
p. 296).

A escola por ser um espaço aberto, torna-se um local onde as várias


culturas coexistem. Contudo, a escola brasileira está dominada por uma visão
etnocêntrica, e ao discutir outras culturas, a exemplo da cultura africana, a
maioria das vezes faz desconsiderando a tradição étnico cultural que o negro
brasileiro possui.
O etnocentrismo é marcadamente muito forte na sociedade brasileira,
em especial na escola, em que a cultura brasileira difundida é aquela
determinada pela classe dominante. Segundo Roberto Reis (1995), quando se
fala em cultura brasileira, “não se pode ater só à literatura: em primeiro lugar,
porque ela não tem a mesma representação que tinha no passado e, em
segundo, porque, no Brasil, a literatura só circula em grupos privilegiados”
(REIS, 1995, apud LEITES, 2012, p. 28).
Pela constatação da literatura só circular em grupos privilegiados é que
sugerimos o cordel para discutirmos e fazermos uma leitura crítica das relações
etnicorraciais por ser uma literatura mais próxima do povo, sem muito elitismo,

1283
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

e que também carrega em seu bojo ideologias, estereótipos, preconceitos e


visões de mundo e da época em que foi escrito.

O estudo das relações etnicorraciais na sala de aula através da literatura


de cordel

Por não se limitar a estrutura poética, como faz a literatura historicizada


que vivenciamos em salas de aula, o cordel nos possibilita irmos além,
discutirmos e descontruirmos a sua ideologia. Ivan Proença (1977) diz “que da
não-ideologia que envolve os textos de Literatura de Cordel é que emerge
exatamente a sua ideologia”. O teórico atribui a este fator o nome de
“ideologias internas”, que não estão ausentes, mas subjacentes nas temáticas
aparentemente despretensiosas próprias das narrativas fantásticas e
pitorescas.
Um grande número de poetas nordestinos não se consideram
politicamente como negros, motivados pela história de discriminação racial e
segregação social do negro na sociedade brasileira. “Reproduzem, assim,
certos estereótipos pondo em questão o problema de representação e
autoridade” (BORA, 2007, p.267).
Neste artigo, ao contrário, apresento uma reflexão em torno da
temática etnicorracial, e como esta se configura no espaço escolar a partir da
produção de um poeta popular que se identifica com o negro, Antonio Barreto.
Um baiano e professor de Língua Portuguesa, que a mais de vinte anos atua
em uma escola pública estadual de Salvador. Ao ritmo do pandeiro e da gaita,
vai declamando seus versos, de forma lúdica e divertida, ao mesmo tempo que
busca leitores críticos ao fazer poesias que retratam o contexto local desses
alunos, tratando a Literatura de Cordel como uma produção estético-cultural,
que ressignificam as marcas de uma história que por longos anos foi e ainda
continua de uma certa forma esquecida, ou mesmo embranquecida.
Assim, Barreto nos apresenta a Lei 10.639, em forma de versos, versos
esses que traz a Lei em seu lugar de atuação: a sala de aula.

Discutindo a Lei 10.639 na sala de aula

Uma aluna curiosa cheia de sabedoria

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

formulou ao professor
com muita categoria Já se foram os jesuítas,
uma pergunta tão bela não há mais Inquisição,
que a todos encantaria não existem coronéis,
nem palmatória na mão,
Ela disse: “Professor, ditadura nunca mais
Quero que o senhor inove e adeus a escravidão.
Com uma aula criativa
e agora nos comprove Foi pensando nisso então
Essa tal de Lei Dez Mil que a chamada Lei Mil
Seiscentos e Trinta e Nove. Seiscentos e Trinta e Nove
valorosa e varonil
Respondeu o professor: há muito foi sancionada
“Eu garanto lhe explicar, em nosso querido Brasil.
esse assunto interessante
que todos irão gostar Nosso presidente Lula
mas para o bem de vocês dia 9 de janeiro
primeiro vou pesquisar”(...) do ano dois mil e três
com seu gesto altaneiro
Na aula seguinte então sanciona esta Lei
ele munido chegou para o povo brasileiro.
de farto material
que com gosto pesquisou Essa Lei estabelece,
para responder à pergunta no âmbito da Educação,
que a aluna formulou.(...) o ensino obrigatório
nas escolas da Nação
“Não é de forma direta, a História e Cultura-Afro
tampouco conceitual, sem nenhuma restrição.
que vou falar de um tema
bastante fundamental, Então cabe à escola
porque trata do polêmico No currículo adotar
preconceito racial. a Cultura Africana
e a todos ensinar:
Nesta longa caminhada, a riqueza que possui
de Cabral até o momento, esse povo exemplar.
muitas coisas foram escritas
sem nenhum credenciamento: (Barreto, 2007)
assim as grandes verdades

Como podemos perceber ao satisfazer o anseio de uma aluna, que


muitas vezes representa a curiosidade da turma toda. Já que a lei existe desde
2003, mas poucos alunos têm conhecimentos, e muitos professores não a
colocam em prática. “A grande maioria dos professores prefere discutir a
escola do ponto de vista sócio-econômico, esquecendo-se que os problemas

1285
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

no ambiente escolar são também raciais e de gênero” (GOMES, 1995, p. 68).


Continuando com o mesmo Cordel:

Daí todo o professor de uma forma bem tirana:


habilidoso e sutil enfatizando a cultura
esclarece aos seus alunos europeia e “americana”
a não ter postura hostil,
impedindo que o racismo Toda metodologia
prevaleça no Brasil. exclusiva e burguesa
gera sempre preconceito,
Dentro da sala de aula, apartheid e esperteza.
cabe então ao professores Portanto precisa o MEC
gerar sempre bons debates agir com muita firmeza.
estimulando os valores,
esclarecendo a verdade Se os alunos desde cedo
sobre os colonizadores. forem conscientizados,
que os afro-descendentes
Temos que rever a História, precisam ser respeitados:
que há muito nos engana, vão notar que esses heróis
excluindo os africanos deixaram grandes legados.

Constata-se, através da leitura das estrofes acima, o papel


fundamental que tem o professor, enquanto formador de opiniões. E, este deve
estar muito atento aos conflitos sociais e raciais que acontecem dentro e fora
do âmbito escolar para saber mediar essas tensões. Como afirma Nilma Lino
Gomes: “o racismo e a discriminação racial, que fazem parte da sociedade
brasileira, estão presentes nas relações entre educadores e educandos” (
GOMES,1995, p. 68). Continuando as estrofes subsequentes:

1286
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Não é só o acarajé,
a cocada, o abará,
capoeira, caruru,
candomblé, o vatapá,
samba de roda, ebó,
axé-music, abadá:

a cultura africana
possui muito mais valia:
nas artes, religião,
na linguística, economia,
na música, na política
no teatro e na poesia.

Será que os alunos sabem


O valor de Zé Limeira,
A nobre Maria Filipa,
Inácio da Catingueira,
Zé Pretinho do Tucum,
Bule-bule, Antonio Vieira.(...)

E Machado de Assis,
Jamelão, Pixinguinha,
Noite Ilustrada, Tim Maia,
Djavan, Mãe Menininha,
Jorge Bem, Gilberto Gil,
Xica da Silva – a rainha?!(...)

E jamais terminaria
essa vasta relação
de personagens ilustres
que horam nossa nação
quem não entrou nesta lista:
Aguarde a próxima edição!

Barreto aqui finaliza


Achando que foi fiel
Registrando esses nomes
Rimados neste Cordel.
E quero homenagear
Também um negro exemplar:
O meu grande avô Miguel!
(Barreto, 2007)

O poeta mostra-se extremamente conhecedor da realidade que o


cerca, ao afirmar que cabe a escola brasileira discutir a questão racial, tratar da

1287
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

tensão existente entre colonizado e colonizador, de uma forma que possamos


desinstitucionalizar as normas estabelecidas presente no sistema escolar
quando nos apresenta as questões etnicorraciais de um modo folclorizado.

Quando, por exemplo, estudamos o folclore brasileiro, a visão que


nos é transmitida sobre a cultura do negro geralmente é
descaracterizada e se resume a algumas palavras que hoje fazem
parte do nosso vocabulário, comidas típicas e danças, sugerindo,
como exemplos marcantes o samba, o frevo, a capoeira. Dificilmente
ouvimos referências ao significado das palavras, ao verdadeiro
sentido dos cultos aos orixás e, no que diz respeito à dança, muito
pouco se fala sobre o caráter de luta que a capoeira possui. Essa
descaracterização da cultura negra não acontece somente na escola,
é bom deixar claro. Acontece também na sociedade. Todavia, a
escola desistoriciza a cultura e não enfatiza a resistência dos
africanos que foram trazidos como escravos para o Brasil
(GOMES,1995, p.93).

Corroborando com essa ideia, Cuti (2010) vai mais além ao afirmar que
o negro na literatura brasileira, é retratado sob a ótica do olhar do colonizador
branco, que induz o leitor a várias concepções como a sensual mulata, o negro
fiel e o escravo sofredor. Levando o leitor a experimentar “o reforço das ideias
de hierarquia racial, ao mesmo tempo o sentimento de aversão, e, em certos
casos, de comiseração, pois quando o leitor tem pena da personagem sente-se
superior a ela” (CUTI, 2010, p. 65).
Essa superioridade é construída de forma muito intencional, como
afirma Edward Said por “composições textuais que constituem peças da
engrenagem do projeto de dominação imperialista e justificam as práticas da
violência e opressão como recurso de adestramento destes povos ao universo
cultural do ocidente” (SAID, p.11 apud. Souza, 2005, p. 03).
A consciência crítica desses estereótipos raciais deve ser a mola
propulsora do trabalho do professor, levando “em conta que a formação de
leitores não é uma ação isolada, nem exclusiva da escola, pois esse processo
tem interferências externas, como concepções de grupos sociais dominantes,
no ato da construção dos sentidos da leitura” (GOMES, 2012, p. 169).
Por esse motivo a Literatura de Cordel é um importante operador
simbólico capaz de ampliar a noção de uma leitura crítica, numa perspectiva
crítico-cultural, por ser feita pelo povo para o povo.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Cada indivíduo tem uma cultura diferenciada e principalmente


“culturas” singulares (nem inferiores, nem superiores), pois, suas bases estão
enraizadas em estruturas anteriores formadas em um processo lento de
diversas gerações. Portanto, pensar na lógica própria de uma cultura e no
dinamismo desta, é perceber que cada sistema cultural está sempre em
mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre as
gerações e evitar comportamentos preconceituosos.
Considerando o que foi expresso neste texto, a literatura de cordel se
constitui como poderoso instrumento para uma ação política em sala de aula:
traz a voz daqueles que não são visibilizados, nem considerados como sujeitos
portadores de cultura, com uma forma peculiar de dialogar com as diferenças.
Reconhecer a diferença é ter consciência da alteridade.

[...] a descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura


para dizer que nem tudo é o que eu sou e nem todos são como eu
sou. Homem e mulher, branco e negro, senhor e servo, civilizado e
índio... O outro é um diferente e por isso atrai e atemoriza. É preciso
domar no espírito do dominador o seu fantasma traduzi-lo, explica-lo,
ou seja, reduzi-lo, enquanto realidade viva, ao poder da realidade
eficaz dos símbolos e valores de quem pode dizer quem são as
pessoas e o que valem, umas diante das outras, umas através das
outras (BRANDÃO, 1986,p.7 apud. GOMES, p.41)

É preciso que professor entenda que o seu mundo, a sua cultura são
traduzidos através do outro, da cultura do outro. Nilma Lino Gomes chama isso
de “processo de espelhamento”. (GOMES, 1995, p.41). Mas esse
espelhamento não é estático, permitem alterações tanto na conduta do
professor quanto na do aluno. A conduta da alteridade.
Mas isso tudo não acontece de uma forma simples, caberá, portanto, à
escola e ao professor dar espaço em suas aulas para que outras linguagens
sejam trazidas para discussão em sala, considerando o contexto, o que
possibilita várias possibilidades de leitura de uma realidade, que mostre esse
espelhamento, essa descoberta do outro.
Neste sentido, é válido dizer que o trabalho com textos diversificados
possibilita o encontro com outras identidades. Mas trazer o Cordel para um

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

estudo na perspectiva do ensino do Português pode propiciar um


desenquadramento da imagem que se tem do sertanejo nordestino, no
momento em que se destaca, via Literatura de Cordel, um exemplo de
linguagem autônoma e potente, por trazer marcas muito fortes da oralidade, e
por isso aproxima-se mais da linguagem do aluno, que tem uma vida social fora
da escola que precisa ser considerada.
É pertinente dizer que não se pode desvincular cultura e educação da
vida em sociedade, pois ao existir, o homem produz cultura, seja no sentido
restrito, que considera a organização simbólica de determinada comunidade,
“do conjunto de valores apoiando a representação que o grupo faz de si
mesmo, de suas relações com outros grupos” (SANTAELLA, 2003, p. 32) ou
amplo da palavra (que relaciona a cultura a costumes, crenças, linguagens,
conhecimentos técnicos etc.). Torna-se, assim importante dizer que Cultura
não deve ser reduzida aos bens produzidos, mas deve ser entendida, também,
como um processo comunicativo, cujas contribuições das teorias semióticas
representaram um passo decisivo para ampliação do escopo da cultura.

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1291
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

(EN)CANTOS DE TRABALHO NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

ELIANE BISPO DE ALMEIDA SOUZA (UNEB) 300


SILVANE SANTOS SOUZA (UNEB) 301

Este artigo objetiva discutir sobre as produções orais que animavam e


ainda animam a jornada de trabalho de um grupo de moradores de uma
comunidade rural do interior da Bahia. No Povoado Monte Alegre, em Rio Real/
BA, era comum os agricultores desempenharem suas atividades agrícolas
cantando.
Hoje, mesmo com o processo de mecanização, em que as atividades
braçais são desempenhadas por máquinas agrícolas, algumas tarefas ainda
são executadas de forma manual, como por exemplos a ranca do amendoim e
a raspa da mandioca. Assim, mesmo na contemporaneidade, quando têm
oportunidade para se reunirem, os moradores desse povoado realizam as
tarefas citadas, que normalmente são em forma de mutirões, cantando e
encantando a dura jornada de trabalho com canções ritmadas, relembrando
uma tradição de cantar versos que era muito marcante naquela localidade.
Buscando compreender o sentido dessas cantigas e seu valor cultural,
serão discutidas ideias de autores que dedicam suas pesquisas às poéticas
orais. E, visando uma melhor compreensão da produção desses cantos de
trabalho, serão apresentados também relatos de narradores que ainda
vivenciam essa experiência de cantar para passar o tempo enquanto
trabalham.

1. Cantos que eram verdadeiros encantos

O povoado Monte Alegre faz parte do Município de Rio Real /BA, uma
pequena cidade do interior, localizada a 200 Km da capital baiana e a 140 km
da capital sergipana. O município está localizado na divisa entre Bahia e
Sergipe, fator que contribui para as transformações culturais.

300
Mestranda em Crítica Cultural pela UNEB/ Campus II.
301
Mestrando em Crítica Cultural pela UNEB/ Campus II.

1292
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Nesse referido povoado, os moradores ajudavam-se uns aos outros em


forma de mutirões. Durante a jornada de trabalho, eles costumavam
desempenhar suas atividades agrícolas cantando. Eles contavam com ajuda de
vizinhos, amigos e compadres para realizar atividades que exigiam o trabalho
de muita gente, a exemplo da ranca do amendoim e feitura da farinha de
mandioca. Com essa ajuda, a interação e companheirismo entre vizinhos e
amigos tendiam a se estreitar a cada encontro.

As canções lembradas pelos moradores mais velhos da comunidade


relembram um tempo de dificuldades em que eles precisam desempenhar
atividades pesadas na agricultura, mas ao mesmo tempo um momento de
alegria animado por canções ritmadas em forma de ciranda. Essas cantigas
são denominadas por eles como cantigas de roda. Segundo relatos, a diversão
da moçada era dançar roda. Como essas canções eram cantadas durante a
execução de trabalhos braçais, elas também podem ser chamadas de cantigas
de trabalho. Para Mário de Andrade (1989, p. 108), essas canções são “Cantos
usados durante o trabalho e destinados a diminuir o esforço e aumentar a
produção, os movimentos seguindo os ritmos do canto”. Os cantos de trabalho
são construções coletivas com o intuito de alegrar a realização de um trabalho
exaustivo.

Esses trabalhadores que encantavam o seu trabalho com as cantigas


podem ser denominados também como formigas-cigarras. Usamos esse termo
emprestado da autora Edil Costa (2010) ao afirmar que:

É curioso o fato de, nas comunidades narrativas, os trabalhadores


serem formigas-cigarras, pois cantam e narram causos e contos
também durante seus afazeres, seja uma atividade individual, seja
coletiva (COSTA, 2010, p. 121).

A melodia das cantigas suavizava a execução do trabalho cansativo.


Com isso, os trabalhadores esqueciam o cansaço e a alegria era contagiante.
Na canção que segue, podemos identificar a atividade de peneirar a farinha.

Peneirou, peneirou, peneirou, gavião


Nos ares para voar
Tu belisca, mas não come, gavião REFRÃO
A massa que eu peneirar.

Vai embora, Deus te leve, gavião


E Deus te livre do perigo

1293
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O pesar que me acompanha


De eu não ir junto contigo.

Essas canções expressavam aspectos econômicos, culturais e sociais


do contexto em que os moradores estavam inseridos. Na canção que segue,
podemos perceber no refrão que eles cantavam enquanto manipulavam o
rodete para moer a mandioca durante o processo de fazer farinha.
Rodero novo, eu quero ver rodar
Quero ver rosa morena REFRÃO
Quero ver balancear.

Faz três dias que eu não como


Faz quatro que eu não almoço
Com saudade de você
Quero comer, mas não posso.

Hoje, com a mecanização do trabalho e a chegada da energia elétrica no


povoado, as casas de farinha são equipadas com forno elétrico e outros
equipamentos movidos pela letricidade. O trabalho, que era desempenhado por
várias pessoas de forma mecânica, é feito por uma pessoa que opera o motor.
A cantoria, além de se fazer presente durante a execução das atividades
agrícolas, que normalmente eram feitas em mutirões, ela também se fazia
presente nos momentos de confraternizações, em que comadres, compadres e
vizinhos reuniam-se, normalmente nas noites de lua, como forma de lazer.
Nesses encontros, os moradores cantavam e dançavam numa grande roda,
por isso que são denominadas por eles como cantigas de roda. Essas cantigas
serviam como meio para conquistar o pretendente. Esse fato pode ser
comprovado na cantiga abaixo que fala de amor, tema muito recorrente em
outras cantigas também.

Pisei na pedra, saudade


E a pedra balanceou
Amanhã eu vou embora, saudade
Eu vou ver meu amor.

A saudade é matadeira
De quem não tem alegria
Meu amor, se eu pudesse
Eu te via todo dia.

Fui pra fonte das pedrinhas, saudade


Não fui pra água beber
Fui ver as piabinhas, saudade
Na veia da água correr.

1294
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A literatura oral refere-se a um conjunto de textos transmitidos


oralmente. E, por se expressar pela oralidade, muitos desses textos acabam
não ficando na memória, o que resulta no seu esquecimento.

2. A cantoria no contexto contemporâneo.


A comunidade de Monte Alegre é constituída por pequenos lavradores
que retiram da agricultura familiar os alimentos que garantem o seu sustento.
Os moradores da comunidade em estudo recebiam ajuda de vizinhos, amigos e
compadres para realizar atividades que exigiam o trabalho de muita gente.
Nesses encontros, a cantoria se fazia presente. Com a mecanização de certas
tarefas agrícolas, essa tendência está cada vez mais diminuindo.
Os cantos ainda são percebidos, de forma esporádica, na execução de
poucas tarefas como a raspa de mandioca e a ranca do amendoim. ”Durante a
feitura da farinha ou na lavagem de roupa, os cantos e contos estão
presentes.” (COSTA, 2015, p. 126). A melodia das cantigas suaviza a
execução do trabalho cansativo. Com isso, os trabalhadores esquecem o
cansaço e a alegria é contagiante.

Normalmente, após a realização dessas tarefas, as pessoas


continuavam reunidas, confraternizando aquele encontro. O lavrador que
recebia ajuda dos amigos agradecia dando comida e bebida com fartura. Na
contemporaneidade, principalmente em cidades pequenas, ainda vemos essa
forma de cooperativismo em outras atividades. Como exemplo, podemos citar a
reunião de pessoas para bater uma laje, que normalmente acontece em um dia
de domingo em que as pessoas estão de folga. A cantoria não se faz presente
como acontecia nas atividades agrícolas, mas a forma de agradecimento é a
mesma: comida e cachaça para todos os voluntários e amigos.

Devido a diversos fatores, entre eles a mudança cultural, hoje, essa


cultura oral permanece apenas na lembrança, sendo retomada, de forma
esporádica, em algumas atividades em que há necessidade do cooperativismo.
A cantoria surge como uma rememoração de um período em que a alegria se
fazia presente durante a realização de certos trabalhos braçais.

1295
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Considerações finais

Os cantos de trabalho encantavam os trabalhadores que se envolviam


com a melodia das canções, realizando as tarefas braçais com mais
disposição. O canto pode ser considerado uma ferramenta de trabalho,
ajudando os trabalhadores a desempenharem uma tarefa cansativa com mais
leveza.

Além de suavizar o ritmo do trabalho, os cantos também serviam como


meio de entretenimento, durante o intervalo para o almoço ou no final da tarde,
depois de uma dura jornada de trabalho, como forma de descanso.

O enfoque dado a esses cantos de trabalho é para evidenciar a


importância da canção na superação de situações que exigem um esforço
físico. A cantoria contribuía para estreitar os laços de amizade e cooperação
entre os moradores da comunidade Monte Alegre.

REFERÊNCIAS

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Itatiaia, 1989.

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1297
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ENLEITURAMENTO: A MANIPULAÇÃO DOS DISPOSITIVOS DIGITAIS NO


DESENVOLVIMENTO DO SUJEITO LEITOR

SILVANE SANTOS SOUZA (UNEB) 302


ELIANE BISPO DE ALMEIDA SOUZA (UNEB) 303

A leitura é considerada um dos principais fundamentos constituintes da


concepção de ensino-aprendizagem, sendo concebida através dos processos
de interação, diálogo e manifestação da autonomia. Neste pensar, ela deve ser
concebida como um pressuposto eficaz para a formação do sujeito, o qual
necessita ser envolvido nos diferentes contextos e práticas sociais que exigem
habilidades e competências não só para ler, como também compreender o que
faz sentido para si.

Hoje, mais do que nunca, os sujeitos são formados através de uma


leitura de letramento e enleituramento. Além disso, é mister salientar que a
escrita inteligível, em suas várias nuances, acaba corroborando para a
formação do sujeito em leitor e do leitor em sujeito de sua leitura, o que é
propiciado mediante o contato entre a informação e o mundo letrado.

A linguagem é aqui veiculada como um constituinte do ser humano de


tal modo que podemos dizer que nada há fora dela, pois representa sua
totalidade sobre o mundo. Para tanto, neste artigo, buscamos respaldo em
Bakhtin (2009) que caracteriza a língua como arena de lutas; e que a leitura
deve ser usada como função social, segundo Magda Soares (2003) e que, de
acordo com Macedo (2004), funciona com regras incessantemente
interpretadas e reinterpretadas.

O presente artigo busca apresentar também a concepção de


letramento como objeto de reflexão, de ensino ou de aprendizagem a partir dos
aspectos sociais da língua escrita de acordo com Kleiman (2005). Neste
pensar, destacamos os enleituramentos realizados a partir da manipulação dos
dispositivos digitais, voltados para o desenvolvimento e reassujeitamento que
gira em torno da formação do sujeito leitor. Também, destacamos que a
Educação é decisiva para inserção do sujeito no mundo da leitura.

302
Mestrando em Crítica Cultural pela UNEB/ Campus II.
303
Mestranda em Crítica Cultural pela UNEB/ Campus II.

1298
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1. O enleituramento como prática de letramento digital

A relação entre o homem e a tecnologia vem dinamizando o acesso à


informação. No processo de enleituramento, a leitura passa a ser vista como
um mecanismo capaz de modificar a condição do leitor, contribuindo desta
forma para que o mesmo se torne crítico e consciente de seu processo
de formação social.

Na escola pública, a forma como foi vista a leitura durante muito tempo
não conseguiu configurar-se como uma prática de letramento, essencialmente
que fosse capaz de formar os seus educandos em sujeitos leitores, uma vez os
mecanismos utilizados focam a leitura em sua superficialidade.

No processo em que se configura o letramento, todos são protagonistas,


uma vez que abre espaço para a realização de práticas sociais que englobem
aspectos sofisticados a partir da multimodalidade. Com isso, a ação docente é
crucial para o trabalho de mediação do sujeito-leitor, capaz de fazer com que
os indivíduos percebam o ato de ler como ir além da leitura das palavras,
momento que estes interagem com o sujeito autor. Este processo que
reconhece todas as nuances da leitura, concebemos aqui como
enleituramento.

Vivemos no mundo digital e incorporamos elementos digitais em nossas


atividades e não nos damos conta de como esta tecnologia faz parte das
nossas ações. Fazemos parte da sociedade da revolução digital que tem o
computador como um dos principais dispositivos capazes de projetar e realizar
diferentes tipos de tarefas. Outra característica importante é a conectividade
em rede. Seu uso demanda determinadas competências que vão além do que
é ensinado na sala de aula.

A linguagem no meio digital deve ser adquirida para que o sujeito não
sofra a exclusão digital. Uma das primeiras iniciativas corresponde ao
letramento digital, em que o computador é visto como um dispositivo chave.
Dentro da gama de possibilidades que os softwares oferecem, destacamos o
navegar web, que agrega aplicativos que permitem desde a leitura de correios

1299
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

eletrônicos a navegação e interação em páginas sociais, além de tantas outras


funcionalidades.

Um marco importante no processo da educomunicação foi a criação do


arpanet que permitiu a troca de mensagens através da rede e de locais
diferentes. Como a necessidade de comunicação ampliou-se, a comunicação
na web vem facilitando a comunicação em tempo real, tornando as relações
mais presentes a partir da distância.

A imobolidade urbana também é uma das causas que direciona para a


utilização na comunicação em tempo real, como uma forma de superar as
dificuldades, além dos problemas sociais vivienciados nas ruas. Outra
vantagem é a conexão via web que agrupa vários indivíduos para discutir uma
determinada comunicação.

A leitura é o caminho privilegiado da formação cidadã, uma vez que,


como postulado por Paulo Freire, a leitura do mundo precede a leitura da
palavra, ou seja, a prática de letramento já acompanha o individuo antes do
convívio com os pressupostos do que é leitura empregado na escola.

A noção de sujeito-leitor, de acordo com Orlandi (2003, p. 180), está


alicerçada na relação entre leitura e escrita, pois “na escrita já está inscrito o
leitor e, na leitura, o leitor interage com o autor do texto”, e as práticas sociais
demonstram a aplicabilidade desta relação, o que configura a terminologia do
enleituramento.

O que caracteriza a concepção de sujeito-leitor adotada neste trabalho,


considerando a constituição do leitor idealizado de acordo com a Análise do
Discurso (AD), é a ideia de leitor que conceta à ideia de sujeito, que não se
restringe a assujeitamento, mas que constrói ideologias. Desta forma, a ação
escolar deve está voltada à premissa de que “Ensinar exige alegria e
esperança” (FREIRE, 1996, p. 72), além de planejamento e enfrentamento,
quando se propuser a adotar a mudança.

A escola, no intuito de repensar o ensino e a utilização das tecnologias,


deve, antes de tudo, discutir sobre os impactos da escrita nos meios digitais,
uma vez que estes oferecem diversas possibilidades não só para escrita, para

1300
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

diagramação e armazenamento das escritas. Vale salientar que a internet é um


dispositivo que possibilita a pesquisa de forma facilitada, além de publicar e
permitir a leitura e a escrita do que é veiculado neste ambiente.

Estabelecendo um paralelo entre a veiculação do texto impresso e o


digital, percebemos que a escrita impressa estabelece os gêneros textuais,
como o conto, a carta, o bilhete, o romance, os noticiários, os quais seguem no
processo de leitura e de escrita uma linearidade, já no meio digital não só estas
possibilidades como tantas outras são oferecidas, a exemplo o email, o blog,
chat, webjornais que além de fazerem parte da configuração da
multimodalidade também rompem com a forma linear de ler o texto, permitindo
a multilinearidade e a abertura para inferência direta com texto e o autor de
uma obra.

2. O Enleituramento e a formação do sujeito-leitor

Para Paulo Freire (2009, p. 11), a leitura é um processo que não se


restringe à decodificação linguística, uma vez que esta ação extrapola o que
vem sido chamado de “alfabetização”, uma vez que a relação com a escrita
deve ser estabelecida, ampliando-se para o letramento conforme é explicitado
por Magda Soares (2010).

O enleituramento, aqui defendido, corresponde à capacidade de fazer


com que o indivíduo se torne leitor de forma ampla. E a leitura, nesta nova
vertente, deve ser concebida como uma ação que é contínua e ampliada a
cada contato que o sujeito-leitor estabelece com o contexto que o cerca. Para
isso, “... ao professor cabe criar oportunidades que permitam o
desenvolvimento do processo cognitivo com o objetivo de formar o leitor crítico”
(KLEIMAN, 2004, p. 09). E, ao serem criadas tais oportunidades, tanto o aluno
como o professor assumem a condição de seres em processos de formação
leitora.

A leitura, quando empregada de forma eficaz, nos constitui enquanto


leitores, uma vez que cada leitura acaba nos transformando de várias
maneiras, provocando o reassujeitamento, essencialmente se este for fruto de

1301
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

um contexto que permita as inferências e interferências. Neste pensar, quando


nos direcionamos para o fazer pedagógico no ciberespaço, torna-se primordial
a conexão com as informações bem como a capacidade de inferir no que se é
apresentado. Orlandi (2003) nos apresenta alguns fatores que também são
relevantes para o que se constituem como as condições de produção da
leitura:

a) Linguagem, a qual é ampliada em sua perspectiva linguística, pela


competência gramatical escolar, como também pela ideologia de ser e
de sociedade, além do contexto o qual contribui para a formação do
sujeito;

b) Incompletude, esta por sua vez é eivada pela multiplicidade de


sentidos possíveis e pelas oportunidades de existências que as redes de
interação lhes propiciam;

c) Intertextualidade, que para nossa vertente de pesquisa se volta para os


hipertextos e aí está inclusa a ideia de implícito que abrange os
pressupostos e subentendidos, como já salientado por Foucault ao
salientar a necessidade de discordar do discurso “pronto”;

d) Legibilidade – este fator nos chama a atenção pela capacidade de dar


conta do tipo, contexto e sujeito, uma vez que além da leitura
parafrástica e polissêmica, também faz-se necessário dar sentido ao que
é apresentado.

A identidade do sujeito-leitor aqui apresentada se pauta na relação que


o mesmo estabelece com as diversas situações de interação social. Kleiman
(1998, p. 272), por exemplo, nos apresenta o conceito de identidade, o qual
vem sendo definido através da alteridade, da relação com o outro, que se
constitui na interação social.

3. Os dispositivos digitais e a formação do sujeito-leitor

A linguagem digital inclui além da manipulação dos dispositivos, a


habilidade para construir sentido a partir de textos multimodais, o que

1302
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

configura-se no letramento digital, que segundo Lévy (1993), se torna concreto


por exemplo na construção do hipertexto, o qual pode ser definido ao afirmar
que:

...é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser


palavras, páginas, imagens, gráficos, sequências sonoras,
documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os
itens de informação não são ligados linearmente, como em uma
corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas
conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto
significa, portanto, desenhar um percurso em uma rede que pode ser
tão complicada quanto possível. Porque cada nó pode, por sua vez,
conter uma rede inteira. (p.33).

Com o desenvolvimento do hipertexto, o leitor participa ativamente da


redação e edição do documento que lê, além de estabelecer contato mais
próximo às impressões que o texto traz, podendo traçar caminhos nunca antes
imaginados pelo autor, além de criar possibilidades que acabem conectando
uma infinidade de documentos, como se estivesse criando um novo documento
hipertexto a partir dessas associações, neste ambiente que é a cibercultura.

Muitos professores ainda não compreenderam a concepção de


letramento digital e não conseguem estabelecer uma comunicação que seus
alunos estejam inseridos. Isso porque não conseguem entender perfeitamente
os códigos lingüísticos, criados, modificados e disseminados, que estão sendo
usados constantemente pelos alunos na Internet.

Considerações finais

A instituição escolar, para fomentar a formação do sujeito-leitor,


necessita em vez propor um ensino autoritário e homogêneo, que ignora as
diferenças e múltiplas culturas dos alunos, repensar suas práticas, no intuito de
perceber que o ensino da língua materna deveria permitir o reconhecimento da
identidade linguística e cultural do aluno.

A sociedade da informação e a era do conhecimento exigem, além de


flexibilidade, inovação nos métodos e metodologias que superem os utilizados
no passado, a começar pela incorporação do que é letramento. Soares (2003)
afirma que letrar é mais que alfabetizar, é fazer com que o indivíduo faça uso

1303
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

da leitura e da escrita em diversos contextos sociais em que o mesmo


encontra-se inserido. Ao assumir tal posicionamento, Soares nos chama a
atenção para a necessidade da criação do sentimento de pertencimento, em
que o indivíduo não se sinta excluído, principalmente, quando nos
direcionamos para o ciberespaço, em que o digital apresenta uma amplitude do
que seria representado nos textos impressos.

Quando nos referimentos à flexibilidade, também estamos focando na


convergência digital que corrobora com a facilidade dos serviços que
asseguram o acesso à informação em qualquer tempo e lugar. Com isso, é
possível que a escola e os alunos ampliem seus conhecimentos, pois o que
seria difícil para muitos, como manter contato com autores dos livros que a
escola disponibiliza, assistir a determinados filmes, visualizar galerias e outras
tantas funcionalidades presentes na cibercultura, passa a ser possível com a
utilização adequada da tecnologia.

O enleituramento aqui apresentado está voltado para o envolvimento do


prazer de ler e fazer uso da leitura de forma a contribuir com a formação do
sujeitor leitor. Hoje mais do que nunca nossos alunos e professores precisam
conhecer e fazer uso das formas de interação que a cibercultura disponibiliza, a
exemplo do hipertexto. Ao trazer para a sala de aula tais dispositivos, é
esperado que a escola passe a ser vista como um ambiente mais acessível,
em que a aprendizagem, além de ser significativa, também passe a ser real
para os seus alunos e professores, dentro da sociedade do conhecimento.

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1304
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


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KLEIMAN, Ângela B. “A construção de identidade em sala de aula: um enfoque


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perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, Mercado das
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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

NARRATIVAS ORAIS NUM QUILOMBO DO SERTÃO: IDENTIDADE E


CULTURA POPULAR EM VOLTA GRANDE-BA

CARLENE VIEIRA DOURADO (UNEB)

Este artigo é parte integrante da pesquisa de mestrado em fase de


desenvolvimento intitulada “Poéticas Orais e Identidade Etnicorracial na
comunidade quilombola de Volta Grande” sob orientação de Ari Lima. Tal
pesquisa objetiva identificar a identidade negra/quilombola e as marcas
culturais do povo voltagrandense expressos nas narrativas orais e em seus
modos de vida.
Localizada no centro norte baiano, especificamente na microrregião de
Irecê, sertão baiano, a comunidade de Volta Grande município de Barro Alto,
dista da sede de aproximadamente cinco quilômetros e cerca de 564
quilômetros de Salvador, capital baiana. A população geral do município,
conforme dados do IBGE, está estimada em aproximadamente quatorze mil
habitantes, sendo a comunidade composta de algumas dezenas de famílias,
aproximadamente 54.
Volta Grande não é a única comunidade quilombola do município de
Barro Alto, existem, na verdade, outras cinco comunidades que foram
reconhecidas, embora nenhuma delas tenha conseguido ainda a titulação e
demarcação de suas terras.
Nenhuma delas recebeu até o presente momento, a titulação das terras
pela Fundação Palmares, direito garantido pelo artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. Isso se deve a fatores de natureza
diversa, inclusive por questões burocráticas nos vários segmentos sociais.
Volta Grande recebeu a certidão de autodefinição da Fundação Palmares em
2010, após a declaração de autodefinição da comunidade, formalmente
expressa na ata de reunião da associação de moradores datada de 28 de
outubro de 2008.
A comunidade recebeu este nome, conforme narrativa de seu Dequinha,
um dos colaboradores da pesquisa, por conta da “longa volta que tinham que
dar para chegar em Volta Grande”, tendo em vista que na época não havia
estrada e era de difícil acesso para os primeiros moradores que ali chegaram.

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Seu Dequinha, então, descreve:

Os primeiro morador, dizia o meu pai que foi os avós dele, que são
meus bisavós, vieram do povoado de Santa Cruz, vieram em busca
de terra né, fizeram a estrada né, chegando na região de Volta
Grande acharam que o terreno que dava certo pra eles, aí fizeram a
derruba, fizeram a rocinha de mandioca primeiro, fizeram a casinha
né, e depois eles foram aumentano, aumentano a família, e apareceu
outros vizinhos e foi aumentando a comunidade e aí surgiu a
comunidade de Volta Grande, surgiu a comunidade sem nome ainda
na verdade. E pra surgir o nome de Volta Grande, já existia
Queimada do Rufino e já existia também Barro Alto e ele, o velho,
meu bisavô, o nome dele era Manoel Domingo né e a esposa dele
era Maria né, tinha até apelido de Maria Preta. E o velho Rufino lá de
Queimada, inclusive traz o nome de Queimada do Rufino, o velho
Rufino já era cumpade, do meu bisavô, que era Manel Domingos e aí
tinha a estrada de Queimada/Barro Alto que ficava fora da margem
de Volta Grande né, não passava em Volta Grande não, aí cruzava a
estrada que vinha da Santa Cruz. Aí ele falava assim com os colega,
dele: “vamo passar lá ne cumpade Manel Domingos”, aí uns falava
assim: “Moço a volta é muito grande, não vai lá não que dá uma volta
muito grande”. As vez eles resolvia passar, outras vez achava essa
dificuldade né, achava a volta muito grande. Aí ficou né, por isso que
criou o nome de Volta Grande, e pronto, ficou esse nome e registraro
como Volta Grande. (Seu Dequinha – colaborador)

Um fator bastante interessante observado a partir da narrativa acima é a


forte relação dos primeiros moradores da comunidade com a fertilidade da
terra, essa relação perdura até hoje. Não pelo fato das comunidades
quilombolas estarem diretamente ligadas a questão fundiária, mas pelo valor
econômico e simbólico que a terra tem para essas pessoas. Um exemplo
dessa relação é visivelmente notado na entrada da primeira rua do povoado:
uma casa de farinha artesanal ainda em funcionamento.
É na casa de farinha de seu Lô, como é conhecida, que o passado e o
presente se entrelaçam. Enquanto realizam o processo de produção da farinha
desde a colheita e raspa da mandioca até o ensacamento da farinha, várias
histórias se passam e a memória é aflorada com imagens e lembranças do
passado.
Durante uma semana de produção no mês de julho (do corrente ano)
época propícia para a colheita da mandioca e produção da farinha, as
mulheres, os homens e as crianças que participavam dessa atividade em vias

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de desaparecimento, enfatizaram em suas falas, o desejo de manter essa


prática e fazê-la se perpetuar.
Talvez a descrição dessa tradição recriada e reinventada não reproduza
a real alegria desse povo, em manter viva uma prática em que o objetivo não é
somente a produção da farinha, mas o que o momento lhes proporciona: as
memórias, as histórias do Lobisomem comedor de crueira 304 que aparecia nas
casas de farinha, as lembranças de como tudo acontecia na casa de farinha do
passado, os namoros, as comidas que eram feitas no fogão à lenha, as
dormidas no couro de boi ou a lembrança de como tudo era bom e ficou
guardado em suas memórias.
A casa da farinha tem tanto significado para eles e elas, até para o
Lobisomem comedor de crueira, que era atraído na época da fabricação de
farinha em larga escala, já que seu alimento é parte desse processo. Daí a
importância do contexto rural como espaço singular para determinadas
manifestações, não somente para compreendermos o porquê da versão do
lobisomem comedor de crueira, mas para a compreensão de todas as práticas
e vivências que povoam o imaginário e a memória desse povo.
Além da casa de farinha e do mito do lobisomem comedor de crueira,
outras práticas culturais contribuem para a riqueza cultural de Volta Grande. A
escolha da comunidade para a pesquisa se deve ao fato do grupo rural se
apresentar de forma ativa nos eventos culturais do município e de outras
localidades. A própria comunidade promove vários eventos como campeonatos
de futebol entre as comunidades quilombolas, os festejos do padroeiro da
comunidade São João Batista que coincide com os festejos juninos dentre
outras manifestações que diferenciam Volta Grande de outras comunidades em
seu entorno.
A unidade como característica do povo de Volta Grande não se
manifesta apenas nas associações comunitárias e religiosas, há uma
cumplicidade, uma relação de irmandade facilmente perceptível entre o grupo,
isso é comum à muitas comunidades quilombolas. Segundo Souza (2013):

304
A crueira é o resíduo resultante da massa esfarelada da mandioca durante o processo de fabricação
da farinha que não serve para consumo humano, mas como alimento para animais.

1308
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A identidade das comunidades quilombolas está ligada aos seus


antepassados que depois foram formando seus descendentes, com
uma dinâmica própria de construção de moradias e de práticas
agrícolas mediadas pelo trabalho coletivo. Outra característica da
formação de algumas comunidades, a exemplo de Volta Grande é a
migração de famílias para outros lugares motivados pela notícia de
terras férteis. Alguns dos chefes de família de Volta Grande relataram
que seus pais e avós migraram para esta comunidade em busca de
terras férteis para a exploração agropecuária e a subsistência
familiar. Ao se firmarem em Volta Grande, as primeiras famílias foram
construindo suas moradias e adquirindo as primeiras áreas de terra
para a lavoura. A partir disto começaram a desenvolverem práticas de
trabalho coletivo e familiar e atividades culturais. A construção da
primeira moradia e a preparação das terras era feitos em mutirão.
Esta dinâmica perdura até os dias atuais, sendo reproduzida pelos
filhos e netos dos primeiros moradores, mesmo de forma mais tímida,
tendo em vista o advento da mecanização agrícola (SOUZA, 2013,
p.24).

A praticidade e o lidar com a terra é fruto de ensinamentos dos


antepassados, eles naturalmente sabem a época ideal para plantar e têm como
base para tal as fases da lua, as estações do ano e a relação de ambas com as
chuvas. Essas e outras práticas comuns transmitidas oralmente entre as
gerações revelam compartilhamento de saberes, de colaboração, o que acaba
por representar e valorizar a identidade local.
No entanto, percebemos em algumas falas dos moradores que a
dificuldade em afirmar a identidade parte de dois problemas, primeiro por conta
da cor escura da pele e consequente discriminação e segundo por serem
oriundos de uma comunidade rural. Em alguns depoimentos foram
mencionados alguns casos de discriminação sofrida por alguns moradores, por
pertencerem a uma comunidade negra rural, no entanto, a tentativa de afirmar
a identidade positivamente soa muito mais forte do que quaisquer
discriminações; a comunidade é em si empoderada.
A tentativa de afirmar-se positivamente tanto no que se refere ao
aspecto identitário quanto cultural, (estes se complementam) foi percebida em
vários momentos na comunidade. De forma prática os moradores trabalham
com a questão da identidade através de eventos culturais, como as palestras,
apresentações teatrais, mostra de elementos constitutivos da cultura local e
jogos de futebol que acontece regularmente e culminam no dia 20 de
novembro, dia da consciência negra. Além desses eventos, acontece também

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a troca das sementes crioulas, encontro que acontece anualmente para que os
moradores agricultores troquem entre si, as sementes nativas e em vias de
extinção, uma forma de resgatar e multiplicar o cultivo de sementes de
produtos da agricultura, hortaliças e até ervas medicinais que eram cultivadas
pelos seus antepassados.
Essas e outras práticas pensadas pela comunidade transmitidas através
da oralidade se configuram como uma arma na luta pela afirmação da
identidade quilombola e cultural do grupo. A identidade quilombola, portanto, se
configura como algo inacabado, ainda em construção. Na fala de Uilson Viana,
um dos líderes da comunidade, ele define a identidade do grupo com essa
perspectiva.

A questão da identidade quilombola, eu acho que é algo que a gente


nasce com ela, mas que tem que conquistar a cada dia; então, nós
somos uma comunidade quilombola hoje reconhecida pelas
instituições que dá essa legalidade, mas essa identidade é construída
no dia a dia nos espaços onde a gente atua. Então, hoje eu me
considero um quilombola, reafirmo isso, essa identidade. [...]
(UILSON VIANA, um dos lideres da comunidade).

Conforme a fala de Uilson, subentende-se que não são as instituições


federais, como a Fundação Palmares ou Incra, por exemplo, que definem a
identidade dos quilombolas. Essa identidade é construída no dia a dia através
dos modos de vida, das manifestações populares, da tradição etc. E apesar
das comunidades quilombolas apresentarem alguns problemas comuns, como
a luta pela posse da terra ou o sentimento de coletividade, por exemplo, elas
apresentam também histórias, culturas e crenças diferentes e não somente a
localização geográfica.
Isso reflete o caráter plural da identidade quilombola, que no caso de
Volta Grande, conforme exposto nesse artigo, se constitui de modos de vida
que a diferencia das demais comunidades em seu entorno. A maior parte,
senão todas as práticas culturais da comunidade vistas como manifestação da
tradição viva, são canalizadas através da memória dos mais velhos, são eles
os guardiões da sabedoria e dos ensinamentos veiculados através da palavra.
A prática da tradição oral e os ensinamentos transmitidos pelos mais
velhos pode se configurar como herança de uma prática dos ancestrais

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africanos. A tradição oral entre muitos povos da África era utilizada pelos
chamados “tradicionalistas” na transmissão de seus ensinamentos.
Hampâté Bâ (2010) afirma que a memória viva da África são os
tradicionalistas. Esses grandes depositários da herança oral compuseram a
história de muitos povos africanos através da palavra falada, pois transmitiam o
conhecimento da tradição e da história de seus ancestrais. Para o autor, o
tradicionalista é o “Guardião do segredo da gênese cósmica e das ciências da
vida, o tradicionalista, geralmente dotado de uma memória prodigiosa,
normalmente também é o arquivista de fatos passados transmitidos pela
tradição” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 188).
Além dos tradicionalistas, existem também na África, os griôs 305, que
dentre outras funções, levam ensinamentos através das estórias que contam.
Com várias acepções ao termo, os griôs ou griots não são simplesmente
contadores de histórias, são também narradores tradicionais e animadores
públicos, e segundo Hampâté Bâ, eles podem ser também genealogistas,
historiadores que geralmente viajam pelo país em busca de informações
históricas.
No Brasil, existem alguns representantes da ancestralidade africana e
responsáveis pela manutenção e transmissão dos saberes e tradições culturais
populares, tais pessoas são consideradas griôs/griots, em suas comunidades.
As funções que assumem são diversas, geralmente aquelas que trabalham
com a cultura, arte e educação popular, reconhecidas pela própria comunidade
como mestres das artes, da cura, líderes religiosos de tradição oral, contadores
de histórias de suas comunidades.
Sendo assim, seu Dequinha e os demais mestres da sabedoria da
comunidade de Volta Grande podem ser reconhecidos como os novos griôs e
griots e tradicionalistas de Volta Grande, que, com suas narrativas, transmitem
para as novas gerações suas histórias e sabedoria que divertem, ensinam,
provocam emoções e encantam as novas gerações. Além disso, constituem-se

305
Segundo o historiador e etnólogo Amadou Hampâté Bâ (2010), os detentores e
transmissores das tradições culturais, por meio da oralidade, são conhecidos com djeli no
noroeste africano, especificamente na região onde se situa o Mali. No entanto, eles foram
denominados griots pelos colonizadores franceses. Os griots – griotes, (no feminino) são
portadores e transmissores dos conhecimentos das ciências da vida. No Brasil em suas várias
acepções e funções, esses mestres da cultura viva são denominados griôs.

1311
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como importante legado da identidade cultural do grupo quilombola; é a


tradição viva que torna singular a identidade de Volta Grande.

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NOS BRAÇOS DE NANÃ E IRÔCO: O TEMPO ESPIRALAR NA FALA DE


REMANESCENTES

LÍBIA GERTRUDES DE MELO (UNEB)306

Resumo: Este trabalho propõe-se refletir sobre as concepções do tempo entre


os afrodescendentes, especialmente moradores da comunidade quilombola de
Alegre Barreiros, localizada no município de Itaguaçu, Bahia. Esta temática
surgiu a partir de estudos feitos na comunidade citada, em que investigo
rastros de africanias na fala dos remanescentes, através de pontos marcados,
segundo Preti (2006), e que estão presentes como demarcadores de cultura,
insígnias identificadoras, ocorrendo a todo o momento nas locuções destes
narradores e que a aculturação etnocentrista não conseguiu apagar, pois estão
além das reminiscências e das ações conscientes. Estes pontos marcados
aparecem em forma de marcadores temporais, entonações fáticas, dêixis, entre
outros recursos. Isto não quer dizer que a língua é fator determinante da
cultura, mas sim que a cultura se utiliza destes recursos linguísticos presentes
na língua para expressar suas características e, neste caso, os vestígios do
tempo. A pesquisa foi colhida em forma de entrevista narrativa, através de
gravação e transcrita, preservando toda a oralidade, as pausas, interrupções e
mudanças de tom de voz. Portanto, trata-se aqui de expor estas elucidações, a
fim de localizarmos na fala destes narradores estes marcadores que trazem
muito de suas histórias e de seus ancestrais. Nas sociedades ocidentais, o
presente é a única realidade e o passado, estagnado e inalterável, não é tão
importante quanto o futuro. Já para os bantos, segundo Kagame (In:
RICOEUR, 1975), o tempo é marcado fortemente no passado, por duas razões:
primeiro, porque sem o passado não existiria a referência para as atuais
gerações e, portanto, enquanto identidade cultural, elas não existiriam;
segundo, porque o passado é a memória dos ancestrais e a garantia da
perpetuação da própria linhagem, pois, ainda segundo o autor, os homens não
teriam a tutela dos ancestrais. O futuro, que já é uma existência atemporal, pois
ainda não se realizou, não seria a garantia individual das gerações nem de
suas descendências. A única certeza da continuidade do tempo para os bantos
é esta referência do passado, dos mitos e das cosmogonias, ou seja, de sua
ancestralidade.

306
Professora da Universidade do Estado da Bahia, campus XIV, Conceição do Coité,
libia.gertrudes@gmail.com

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Nós somos prisioneiros do futuro e de nossos sonhos: de tanto


esperar amanhãs que cantem, perdemos o único caminho real, que é
o de hoje. No entanto é preciso viver e lutar: partir para o assalto ao
céu, mesmo que esse céu não exista. Precisamos inventar uma
sabedoria para o nosso tempo. (COMTE-SPONVILLE, 2006, grifo
nosso)

Então o que é, pois, o tempo? Ele depende de nós para existir ou é


irreversível à presença humana?

A partir da epígrafe, é comum se pensar sobre o sistema de vida


capitalista que vivemos em nossa sociedade. Aprendemos a refletir sobre os
erros do passado para não mais cometê-los no presente e estes representam a
semeadura do amanhã. A importância ao futuro, que as sociedades capitalistas
dão, mostra-nos a ideia de que a única realidade que temos – o presente – é
aprisionada ao futuro. Este modo de vida está voltado à exigência econômica
que este sistema impõe, pois a geração de capital é fator preponderante e seus
atores são “operários” para sua produção.

O capitalismo, nesta análise, está relacionado a um conceito de tempo


específico, em que as sociedades se organizam: o tempo físico e linear.
Segundo Marques (2008), o tempo se classifica em: físico e psicológico. No
tempo psicológico, a autora utiliza a terminologia temporalidade para designar
uma relação entre o tempo cronológico, a memória e a formação do relato
histórico. Já o tempo físico, ainda segundo Marques (idem), independe de nós
e representa o tempo da natureza. O presente é absoluto e só ele é real. Já o
passado e o futuro só têm sentido na observação humana, dentro da
racionalização e consciência desta existência vivida. Então, a memória e a
projeção (passado e futuro) passam a fazer parte deste tempo que Marques
atribui à temporalidade (tempo psicológico).

Neste tempo psicológico, a memória passa a representar não um


passado estagnado, mas os fatos acontecidos que, segundo Marques (2008),
são concebidos por nossos sentidos e registrados como rastros. E, a partir

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destes rastros – as reminiscências e os esquecimentos – cada momento se


renova e se reinventa. Para exemplificar, Marques diz que:

[...] a infância, que já não existe presentemente, existe no passado


que já não é. Porém a sua imagem, quando a evoco e se torna
objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda
está na minha memória (p.03).

E este presente, segundo Comte-Sponville (2006), não pode se repetir


enquanto presente que é, isto é certo, pois a cada instante ele é também
passado. Reporta-se, neste sentido, à natureza de círculo do tempo que, ainda
segundo o autor, não implica em dizer sobre a concepção de um tempo circular
ou cíclico, o qual nasceu de uma cultura não-cristã, mas da própria condição do
tempo enquanto conjunto de passados, presentes e futuros.

O caminho aqui escolhido foi a partir das narrativas orais colhidas dos
contadores (anciãos e anciãs) da comunidade remanescente de quilombo
Alegre Barreiros, situada no município de Itaguaçu, a 557 km de Salvador,
Bahia, e já que os rastros de memória são analisados, obrigatoriamente incluo
aqui os vestígios do tempo. Este tempo será analisado a partir das
classificações de tempo linear, cíclico e espiralar, tratados adiante no percurso
deste texto.

Sobre essas narrativas, chamou-me a atenção o deslocamento de


tempo nas contações a partir dos usos de tempos verbais. Os contadores
referem-se ao passado, ora com verbos que indicam este tempo, ora com
verbos que indicam o presente. É como o transcrevo na seguinte passagem do
contador Marcelino:

Exemplo 31

E aí um bocado ficou aqui, outro bocado (foi) para o Barreiro, é de lá aqui ... É assim. Ele lá
morreu, tinha uma terrinha vendeu um bocado, venderam um bocado e aí... hoje dá até uma
pena, viu!? Eu não quis ir para o Barreiro [indecifrável] lá tem água, aqui tem água. Vou ficar
aqui mesmo... Aí [ruído] [pigarreando] procurei [ruído] um bocado de terra, aí lá dentro [ruído],

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pois aí tem um bando de terra. Trabalhei, trabalhei até que não AGUENTEI FIZ CAÇARINHA,
plantei mandioca muita, fiz farinha e aí (indecifrável) fiquei plantando um milhinho. Nesses dia
307
para cá até que tem chovido, mas para trás estava um TEMPO QUENTE, MINHA IRMÃ! [...]

Antes, naquele tempo em que muitas pessoas moravam na comunidade


de Alegre e se deslocaram para Barreiros, ele, o contador, não quis sair de
suas terras e adiante no segundo destaque em sublinhado (linhas 7 e 8), há um
deslocamento do tempo em que o narrador, utilizando-se dos recursos
narrativos com ênfases textuais, situa o tempo presente, aumenta o tom de voz
(e esta experiência só pode ser relatada por quem estava presente no
momento da narração, pois é um registro gestual e não pôde ser transcrito)
num gesto performático e chama a minha atenção para o diálogo, como se
perguntasse: Nesses dias para cá tem até chovido, mas antes (dias atrás, num
passado próximo, não da época em que o contador trabalhou nas terras
plantando mandioca) estava quente, minha irmã! Não é verdade?

Este deslocamento verbal, presente em diversas narrativas, foi um dos


temas centrais de minhas reflexões sobre o tempo, enquanto professora de
Linguística que, de alguma forma, acaba tentando analisar as construções
gramaticais na fala dos contadores da citada comunidade. Existiria, então,
alguma marca gramatical que assimilasse uma característica cultural e
demarcasse uma fronteira não-linear de tempo?

Em busca destas respostas, percorri diversos caminhos sobre o estudo


do tempo (físico e psicológico; linear e cíclico) até chegar a uma coletânea de
ensaios in]titulada As culturas e o tempo, organizada por Ricoeur, que conta
com a colaboração de pesquisadores de diversas partes do mundo e estudam
diferentes culturas. Na introdução, Ricoeur (1975, p.16) aponta a um possível
caminho ao citar Panikkar 308, que em seus estudos sobre o conceito do tempo
entre os hindus, encontra na linguagem o aparato principal para identificar
estes marcadores temporais. E Ricoeur continua: “Parece que o estudo da
307
Grifos nossos.
308
Doutor em Ciência, Filosofia e Teologia, nascido na Espanha, filho de pai hindu e estudioso
da cultura indiana, sobretudo os aspectos religiosos e linguísticos do Hinduismo. Seu texto
Tempo e História na tradição da Índia compõe a coletânea de ensaios organizados por
Ricoeur: “As culturas e o tempo” (1975).

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gramática sanscrítica e de seu sistema de tempos verbais é mais decisivo


ainda do que o do glossário do tempo” (idem). Ainda com Panikkar, Ricoeur
finaliza com a citação direta do autor: “[...] a linguagem representa o ponto de
partida dessas reflexões; o que é significativo”. (PANIKKAR In: RICOEUR,
idem).

Então, de fato, estes deslocamentos verbais encontrados nas contações,


principalmente do contador Marcelino, são rastros identificadores, não só de
um conhecimento não-linear do tempo, mas da marca de sua cultura e origem.

Isto não quer dizer que a língua é fator determinante da cultura, mas sim
que a cultura utiliza-se dos recursos linguísticos presentes na língua para
expressar suas características e, neste caso, os vestígios do tempo.

Na citação do contador Marcelino, percebe-se a presença dos pontos


marcados, de que nos fala Preti (2006, p. 22). Outra característica é a presença
da narrativa prototípica ou histórica, a qual estrutura sua locução através de
unidades não-narrativas.

Estas unidades não-narrativas são informações adicionais ou funcionam


como sequência introdutória constituída por uma afirmação significativa
completa ou incompleta. Geralmente, estas afirmações significativas, que
aparecem como sequência introdutória ou intercalada ao texto, deslocam-se
para o tempo presente ou a um passado recente, usadas com verbos sempre
no presente. É o que acontece no fragmento da narrativa do senhor Marcelino
(linhas 8 e 9, p. 03 deste texto).

Voltando aos questionamentos sobre o tempo, no início deste


subcapítulo, abordo aqui alguns conceitos preliminares sobre o tempo linear, o
não-linear (cíclico ou circular) e o espiralar. Segundo Azarur (2011, p. 01), “[...]
a distinção entre tempo linear e o tempo circular projeta a distinção entre dois
tipos de sociedades”, que ele denomina de “quente” e “fria”, respectivamente.
Numa sociedade de tempo linear, ainda segundo Azarur (2011, p. 01), as
pessoas vivem o conceito de história e a sucessão de dias, meses, anos
havendo, portanto, o passado e o futuro.

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Já nas sociedades de tempo circular, reproduz-se, na concepção de


Azarur (2011, p. 01), um “[...] padrão repetitivo da natureza, da manhã e da
noite, do período seco e da chuva, do inverno e verão”. Neste tipo de tempo, o
passado é visto como um eterno presente, cristalizado através da mitologia e
que influencia gerações.

Nisto estaria a grande diferença entre as sociedades de tempo linear e a


de tempo circular: a percepção de um tempo cronológico e imutável, para a
primeira concepção, e de um tempo de certa forma mutável, para a segunda.

A relação de tempo circular estabelece, nas sociedades que a adota, um


certo equilíbrio com a natureza e com todas as energias do universo. E se, por
um lado, segundo Hampatè Bâ (In: KI-ZERBO, 2010), a história do homem se
compreende a partir dos grandes mitos da criação, por outro lado, a aparição
do homem e sua função no seio da Terra representa sua ligação do presente
com os ancestrais.

Em algumas sociedades africanas, em que se acredita num tempo


cíclico, costuma-se não perceber a separação dos eventos religiosos dos
profanos. Talvez por isso se explique o fato de a comunidade de Alegre
Barreiros viver esta relação intensamente e não as separar do contexto
histórico de suas origens. É o que se pode observar em vários grupos culturais
espalhados pelo Brasil, a presença forte da religiosidade em todos os setores
da vida, seja nas artes, na ciência, na culinária e na vida social. Entre os
africanos como, por exemplo, os bambara a partir dos estudos de Hampàte Bâ
(In: KI-ZERBO, 2010), não há a separação entre eventos religiosos e profanos,
tornando-se até imperceptíveis. Também entre os bantos, segundo Kagame
(In: RICOEUR, 1975), estas atividades são indissociáveis e constituem traços
destas africanias, tratadas aqui como rastros.

É importante lembrar que esta característica cíclica do tempo não é


exclusiva de algumas sociedades africanas, mas remonta à própria origem da
humanidade. Os gregos, na Antiguidade, por exemplo, acreditavam na
circularidade do tempo.

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Ainda segundo Azarur (2011, p. 02), a escolha da sociedade a um tipo


de tempo, o que não é uma escolha aleatória, pois está vinculada à cultura e,
consequentemente, à identidade, implica no tipo de religião que cada
sociedade produz. E o autor continua:

Nas sociedades organizadas por uma premissa temporal linear as


atividades profanas são interrompidas pelos rituais religiosos, que
quebram, momentaneamente a linearidade, para a ela se voltar no
cotidiano. Nas sociedades cuja premissa é o tempo circular, não há
separação evidente entre o sagrado e o profano. Enquanto nas
primeiras a religião se exerce na Igreja, nas últimas vive-se em casa,
na praça da aldeia e no trabalho, na vida cotidiana, “no mundo”.

E nesta premissa de tempo linear, ainda segundo Azarur (2011, p. 02),


estaria a relação entre “história, Deus pessoal, consciência individual,
insegurança e medo”. Porém a escolha da religião não seria um fator
determinante da cultura, mas sua prática daria uma interpretação particular a
cada cultura.

Retornando à citação do fragmento da narrativa do contador Marcelino e


após esta análise entre tempo linear e não-linear (ou cíclico), esta facilidade de
deslocamento é possível quando não há fronteira que aprisiona o presente do
passado. Ao mesmo tempo em que o contador fala de uma época remota, um
passado distante, que data da fundação da comunidade Alegre Barreiros e das
ações do senhor João Pretinho (“Ele lá morreu, tinha uma terrinha, vendeu”),
desloca-se facilmente para o presente “Nesses dias para cá até que tem
chovido...” num único fio narrativo. Neste caso, ele utiliza suas reminiscências
(as temporalidades) para narrar os fatos que, muitas vezes, não vivenciou e
completa com as observações do cotidiano. Os tempos verbais adéquam-se
aos objetivos do deslocamento cronológico e indicam o tempo passado para
eventos do passado e o tempo presente para eventos do presente, através de
marcadores gramaticais – o presente habitual. Além disso, o contador utiliza a
recursividade discursiva e a entonação fática: “... estava um tempo quente,
minha irmã! [...]”.

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É digno também de atenção o modificador verbal “lá” em “Ele lá morreu”.


(linha 2 do fragmento, p. 91 desta dissertação). Como nas línguas bantas,
segundo Kagame (In: RICOEUR, 1975, p. 104-5), uma palavra pode
desempenhar a função de tempo e espaço, como é o caso de hantu (ntu =
povo) que exprime a unidade lugar-tempo. O nosso “lá”, advérbio de lugar e
que exerce, em alguns casos, a função de locatário, também pode significar a
função de tempo: “lá no passado”. Portanto, é indicativo de espaço e de tempo.
Na citação “Ele lá morreu”, o “lá” ultrapassa os limites de lugar-tempo e ocupa,
dentro do universo sígnico, um outro conceito: o da isenção. É como se o
contador, por medo da palavra, evitasse aproximar-se do termo morte como
uma forma de se proteger de tal ocorrência. Isto também ocorre na fala de
muitos nordestinos que evitam pronunciar o nome de certas doenças, pois,
uma vez proferidas, tornar-se-iam verdade na boca de quem as articula.

Já na citação, que transcrevo a seguir, do mesmo contador, senhor


Marcelino, há a presença de outros pontos marcados, que segundo Preti
(2006) são: o discurso direto e o presente histórico:

Exemplo 32

Aí... [ruídos] saíram uns homens aqui falando da terra escriturada que deram
para fazer um poço d’água, foi aqui e perguntou se eu vendia, eu digo: moço,
eu para fazer 309 água para nós tudo eu arranjo. É terra? E por quanto? Eu digo:
moço, eu não vendo não. Aí é... É... Olharam, olharam a terra... E aí foram
embora!

Nesta narrativa, o contador fala de um passado recente, há alguns anos,


e que foi vivenciado por ele. Intercala, durante o fio narrativo, discursos diretos
e indiretos, fazendo da estrutura textual um diálogo com bastante movimento
entre interlocutores. O que chama a atenção para os vestígios de tempo são os
marcadores gramaticais: verbos deslocados do passado para o presente.

309
Aqui o verbo fazer indica o trazer ou fornecer.

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Quando o contador transcreve o discurso direto para expressar o próprio


diálogo, utiliza o que Preti (2006, p. 25) chama de presente histórico: “... eu
digo...” (linha 02, p. 07 desta dissertação). Nesta citação, há uma ação
passada, mas que o narrador desloca para o presente. Para reforçar esta ideia,
transcrevo a seguir a citação direta do autor sobre o uso das narrativas
históricas como ficção e o uso do presente histórico como deslocamento
temporal:

O diálogo reproduzido, colocando no palco da narrativa os eventos


passados, possui uma clara intenção de tornar presente na
conversação o fato passado, porque o ouvinte acompanha na
imaginação a cena, como se ela estivesse desenrolando-se naquele
momento. Nesse processo de “ficção” do diálogo reproduzido, além
das estratégias já vistas, há outros recursos de natureza sintático-
semântica, como o emprego do presente histórico em lugar do
pretérito perfeito do indicativo, tentando descaracterizar para o
ouvinte a ideia de passado definitivamente terminado (PRETI, 2006,
p. 25).

Há duas reflexões para tal deslocamento de tempo (o presente


histórico): primeiro, trata-se de uma marca clara deste tempo cíclico, explicado
anteriormente; segundo, de uma reafirmação do contador, fazendo de um ato
passado um eterno devir. É como se ele afirmasse no passado, mas continua
afirmando no presente. Sua palavra, como nas sociedades de tradição oral, é
forte e se eterniza diante do tempo, rompendo fronteiras lineares e forjando,
como o faz Ogum, no fole metalúrgico, tecendo e moldando as palavras em
ferro e fogo, um outro tempo, talvez não-linear, entre o cíclico e o espiralar.

Por outro lado, segundo Azarur (2011, p. 02), as sociedades


organizadas por uma premissa de tempo circular “são conservadoras, pois não
há espaço para mudança cultural, nem esperada, nem desejada”. Por isso, a
comunidade estudada, Alegre Barreiros, e até ouso estender aos quilombos
espalhados pelo país, não se encaixam neste perfil. Caso isso fosse possível,
teríamos, como explicitado no capítulo primeiro, um “pedaço” de África idílica,
imaginada, que não levaria em conta a diversidade cultural do continente e
uma sociedade em que a mudança não seria possível. A própria definição de

1322
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cultura, como força híbrida e movediça, cairia por terra, abolindo todo tipo de
possibilidade de transformação. Não caberia, portanto, a nenhuma sociedade
humana, principalmente as africanas.

Então não se trata apenas de uma sociedade de tempo circular, mas


espiralar. Este tempo que, devido à bidimensionalidade, teria uma forma
helicoidal em espiral, uma "mola" (como demonstra a ilustração 01 abaixo). Há
coisas que se repetem, como a sucessão de dias, noites, meses, anos, mas,
apesar disso, nenhuma noite é igual à outra, pois representa outro lugar no
tempo. Assim, todos os fenômenos se influenciam mutuamente em outros
múltiplos espirais, que tendem ao indefinido, com inúmeros, talvez infinitos de
ciclos menores dentro de ciclos maiores, como uma matrioshka 310. Esta seria a
definição de cultura e de tempo nas sociedades afrodescendentes, e que,
apesar da influência capitalista do mundo globalizado, cujo tempo é linear,
manteve-se fiel a estes vestígios do tempo.

Ilustração 01

Este tempo espiralar é mencionado por vários autores que estudam


as africanias em território brasileiro, seja nas congadas de Minas Gerais, em
que Martins (1997) fala de um tempo que ultrapassa os limites cronólogicos
do tempo físico, linear; ou seja através do samba de roda do Recôncavo
Baiano, nos estudos de Lima (2011), em que descreve:

A performance destes sambas, as práticas culturais e o discurso de


seus agentes, de modo efusivo, nos informam sobre a tradição do
samba de roda na Bahia ao mesmo tempo em que informam sobre o
imbricamento entre tradição e história através de um tempo, melhor
definido, como espiralado.

310
Matrioshka, boneca russa; é um brinquedo tradicional da Rússia, constituída por uma série
de bonecas, feitas de diversos materiais, que são colocadas umas dentro das outras, da maior
(exterior) até a menor, a única que não é oca. (Disponível em:
http://www.planetarussia.com/archives/271)

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Voltando a Kagame (In: RICOEUR, 1975, p. 115), para os bantos311, o


tempo é uma sucessão repetitiva de eventos que só ganham importância a
partir de um referente, seja este um fenômeno natural, histórico ou social e
continua: “Assim que irrompe a ação ou o evento, o tempo é marcado, selado,
individualizado, tirado do anonimato, e se torna o tempo desse evento”. Então o
que importa, para os bantos, ainda segundo o autor, é o “tempo disso ou
daquilo” e ele terá a duração segundo o evento. Os outros momentos que
decorrem do vazio do tempo são ocupados por atividades corriqueiras e
necessárias. É o que ratifica na citação do autor:

Na cultura tradicional bantu, pelo contrário, o tempo é uma entidade


incolor, indiferente, enquanto um fato concreto não sobrevém para
marcá-lo, selá-lo. Esse evento pode ser a ação do Pré-existente, do
Homem, do Animal, ou um fenômeno da natureza (terremoto,
aparecimento de um cometa, eclipse do sol, acidente provocado pelo
raio, inundação, período de seca, etc.) (KAGAME In: RICOEUR,
1975, p. 115).

É o que acontece, por exemplo, na comunidade quilombola de Alegre


Barreiros, em que a incursão do tempo decorre não especificamente de uma
data, um ano cronológico, como nas sociedades europeias, mas o tempo
daquele evento, o tempo de João Pretinho, o tempo da fartura, em que as
águas do Rio Verde depositava seus afluentes na região. O ano de fundação
da comunidade ainda não se materializou num tempo cronológico, mas povoa
no tempo mítico, e quando perguntamos precisamente uma data, é comum
ouvirmos: “meados dos anos 20, no tempo dos réis...”
Outra explicação pertinente é o que Kagame (In: RICOEUR, 1975 p.
116) assinala sobre esta marcação do tempo, entre os bantos, a partir de um
evento importante. Relembro, para comparação deste tempo circular ou
espiralar, a citação de Comte-Sponville, feita anteriormente neste texto, sobre o
não-retorno do tempo. Mesmo que haja sucessão de dias e noites, um dia de
ontem nunca se repetirá da mesma forma, pois o presente hoje é o passado de
amanhã. Mas a diferença das sociedades africanas, no caso das bantas, como

311
Kagame (In: RICOEUR, 1975), no início do capítulo, fala-nos sobre área bantu em
estudo,que se localiza abaixo da zona sudanesa. Entretanto, o autor explica que estes últimos
também são bantu, mas que apenas servirão como referência aos estudos da área específica
indicada no mapa. (ver mapa, anexo 08).

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apregoa Kagame (idem), é que esse passado, marcado por eventos que o
individualizam e o selam, será sempre o presente, pelo menos até quando o
seu autor estiver vivo. Por isso, o marcador textual – presente histórico – na
narrativa do senhor Marcelino, em “eu digo” (linha 2, p. 07), apresenta-se como
uma continuidade daquele ato, pois se trata da ação do locutor/contador da
história, além das outras características pontuadas anteriormente.
Para as sociedades ocidentais, o presente é a única realidade e o
passado, estagnado e inalterável, não é tão importante quanto o futuro. Para os
bantos, segundo Kagame (idem, p. 117), “[...] o passado se reverte de uma
importância capital”. O autor apresenta como justificativas duas razões:
primeiro, porque sem o passado não existiria a referência para as atuais
gerações e, portanto, enquanto identidade cultural, elas não existiriam;
segundo, porque o passado é a memória dos ancestrais e a garantia da
perpetuação da própria linhagem, pois, segundo Kagame (In: RICOEUR,
1975), os homens não teriam a tutela dos ancestrais. O futuro, que já é uma
existência atemporal, pois ainda não se realizou, não seria a garantia individual
das gerações nem de suas descendências. A única certeza da continuidade do
tempo para os bantos é esta referência ancestral, que é do passado, dos mitos
e das cosmogonias.
A concepção da continuidade da vida para estas sociedades africanas
não está na certeza de sua presença individual em tais eventos metafísicos,
por se tratarem de um tempo não marcado, mas porque “seus herdeiros
continuarão a tarefa” (KAGAME, idem, p. 118). Neste caso, ainda segundo o
autor, o tempo futuro não tem limites, pois cabe aos herdeiros manter sua
história e seus territórios e aumentá-los para as gerações futuras, os seus
descendentes.
Como apregoa Kagame (idem, p. 119), as cerimônias de iniciação, de
morte, casamento etc, são realizadas de forma cíclica, pois apesar de
representarem o presente, trazem marcas do passado e assinalam a existência
desta tradição para as gerações futuras.
Retomando à reflexão do presente histórico apregoado nas narrativas do
Senhor Marcelino e em demais narrativas dos contadores tomados como
corpus desta pesquisa, o “eu digo” seria um termo atemporal, ou melhor,

1325
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supratemporal, que representaria esta transição entre passado/presente


cronológicos e o tempo da narrativa. É importante registrar esta distinção nas
línguas bantas (que possuem a mesma estrutura) feita por Ch. Sacleux (apud
KAGAME, idem, p. 126):

Zamani, tempo, época, momento; usado no plural (zamani za) como


no singular (zamani ya), no tempo de, do tempo de, na época de,
nos séculos de, na idade de (falando-se de um período de tempo).
Zamani za kale, nos tempos passados, antigamente, na antiguidade,
outrora, há muito tempo. Zamani za sasa, nos tempos atuais (op. cit.,
tomo II, p. 1036-1037).

Explicando a citação de Ch. Sacleux, Kagame apresenta esta flutuação


entre o passado e o presente de “zamani za”, delimitado apenas com os termos
“kale” e “sasa”, respectivamente, passado e presente. Sem a pretensão de
oferecer uma explicação definitiva, relaciono ao “eu digo” (citação do contador
Marcelino, p. 95 desta dissertação) como este lapso de flutuação que Kagame
nos fala, a marcação do tempo espiralar/cíclico que, assim como os bantu da
Costa Oriental, não modificaram esta concepção tradicional, mesmo com o
processo de colonização multissecular.
Apesar do equívoco apontado por Kagame (In: RICOEUR, 1975, p. 126),
nos estudos de John S. Mbiti 312, é pertinente rever estes estudos a respeito dos
termos “zamani” e “sasa”, em suwahili:

Sasa é o período mais significativo para um indivíduo, o lapso de


tempo em que as pessoas permanecem conscientes da própria
existência, projetando a si mesmas no curto futuro e, principalmente,
no longo passado. Sasa constitui em si, uma dimensão completa de
tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já
experienciado. Quanto mais velha a pessoa, mais longo seu sasa. E
após a morte, enquanto lembrada pelos familiares, continuará
existindo em sasa. As comunidades possuem um tempo de
existência, seu próprio sasa, logicamente bem mais longo que os
individuais. Tanto para os indivíduos como para a comunidade, o
momento mais vívido é o presente, o ponto agora, na sucessão
linear de eventos. Pode-se denominar o período sasa de micro-
tempo e o zamani de macro-tempo. O micro-tempo é significativo
para os indivíduos e para as comunidades somente no que se refere
às experiências vividas durante seu transcurso. Zamani, por sua vez,
não se restringe ao que chamamos de “passado”. Incui presente e
futuro. Em ampla escala, sasa mergulha em zamani. Porém, antes
de serem os eventos incorporados em zamani, precisam ocorrer em
sasa. Uma vez ocorridos, movem-se para trás, de sasa para zamani.

312
Mbiti (1969) tem formação em teologia, pastor, nascido no Quênia, estudou sobre as
religiões e a filosofia africanas.

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No pensamento tradicional africano não há um conceito de História


movendo-se para frente, em direção a um clímax futuro, bem como
não há um movimento em direção ao fim do mundo. As pessoas
depositam o olhar em zamani uma vez que, em lugar de um reino
por vir, como na tradição judaico-cristã, há história a preservar
(MBITI, 1969).

Então, a ideia cíclica do tempo se reveste em torno dos termos “sasa” e


“zamani”. Os eventos marcados em “sasa” dariam a formação deste passado a
ser preservado em “zamani” pelos descendentes. O macrotempo “zamani”
seria mais importante para a perpetuação da cultura e tradição, mas que
seriam marcados com eventos do presente, através de “sasa”.
E qual seria a relação entre este tempo espiralar e a velhice? Neste
momento do texto, pretendo estabelecer não uma explicação precisa, mas uma
abordagem geral que sugira as interrelações entre as duas temáticas como fios
de uma mesma teia. Por isso, começo contando sobre a importância da
tradição para muitas sociedades africanas.
Constuma-se afirmar ser tradicional toda cultura, crença ou religiosidade
que se liga a um passado de histórias de um povo, preservadas pela escrita ou
pela oralidade. Segundo Thompson (2002, p.13), o interesse recente pela
tradição começou na Europa com o surgimento do folclore e cita, com isso, os
estudos de Burke, que sugere que a observação da elite aos ritos e
curiosidades da “pequena tradição” plebeia levaria à conclusão que ali estariam
os vestígios da antiguidade. A tradição, contudo, inscreve-se num contexto
mais amplo como um conjunto de costumes que sofrem ou sofreram
transformações com o passar dos anos, apesar de parecer para muitos como
uma história cristalizada por séculos.
Em se tratando de tradição africana, segundo Hampatè-Bâ (In KI-
ZERBO, 2010, p.167), quando se fala em história da tradição, reporta-se à
tradição oral, pois segundo o autor:

[...] nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos


africanos terá validade a menos que se apóie nessa herança de
conhecimentos de toda espécie transmitidos de boca a ouvido, de
mestre a discípulo, ao longo dos séculos.

1327
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

E esta transmissão é dada aos mestres da palavra que, em África,


recebe um trato particular. A palavra – kuma, na tradição bambara 313, orignada
do grande criador de todas as coisas, Maa Ngala, representa, segundo
Hampatè-Bâ (idem, p. 171), a essência divina que contém a síntese de tudo,
tendo poder de criar e destruir. Só o homem – Maa – fruto da mistura das vinte
criaturas, através do ovo primordial, criadas por Maa Ngala, é que possuía a
centelha divina da Mente e da Palavra.
Os mestres da palavra, que Hampatè-Bâ (idem) faz distinção entre os
griots e domas, estes últimos tradicionalistas e responsáveis pela preservação
do patrimônio oral e histórico, assumem integralmente o papel, concedido por
Maa Ngala, de interlocutores das memórias guardadas e passadas por
gerações.
Esta função normalmente é ocupada pelos mais velhos, pois eles,
segundo Kalumba (2002), são aqueles que viram o sol antes dos mais novos,
aqueles que sabem ensinar. Eles são os pilares da família e da etnia, não só
por conhecerem a sua história e a sua cultura, como também por servirem de
referência aos costumes e aos segredos da vida. Acompanham todos os
momentos culturais da comunidade, ocupam um lugar central e presidem
celebrações nos nascimentos, na iniciação, no matrimônio e na morte.

O ancião em África é um grande Baobá, árvore secular que, segundo a


lenda, nela é enterrado um ancião ou anciã para que suas histórias se
eternizem. Assim como diz o provérbio africano que um Baobá jamais pode ser
abraçado, toda a riqueza da tradição oral, guardada nos labirintos da memória
por um ancião, jamais se esgota.

Em nossa sociedade ocidental e cientificista, valoriza-se o novo, o


arrojado, o futuro e não a tradição oral, o passado que soa como velho,
atrasado e até não-confiável. Mas, assim como as histórias contadas na boca
da noite são mais frescas e vivas do que as informações que somos obrigados
a lembrar, a memória trabalha com um tempo que não se encaixa ao sistema
linear e cronológico de marcação. Primeiro, porque a emoção é a principal
ativadora de lembranças; segundo, para lembrar é preciso primeiro esquecer.

313
Segundo Hampatà-Bâ (idem, p. 170), uma das grandes escolas de iniciação dos Mande
(Mali).

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Quando se trabalha com esta tradição oral, é preciso levar em conta


estas particularidades da memória e, principalmente, quando estas histórias se
materializam através do fio narrativo, obedecendo a um outro lugar de análise,
que é o tempo da narrativa e, acrescente-se a isso, que estas histórias estão
saindo da boca de um ancião ou anciã afrodescendente.

Partindo de uma memória que não é conduzida radicalmente por um


tempo linear e de outra memória, muito específica, que é a memória de velhos,
Tedesco (2004, p.178) chama a atenção através de uma citação de Lidz 314 que
diz que as pessoas idosas, sentindo-se excluídas das coisas e quando o futuro
parece menos promissor, seus interesses regridem em direção aos anos
passados, em rememorar as lembranças dos anos felizes ou de
acontecimentos dos quais foram protagonistas.

No entanto, é consensual entre pesquisadores, independente da idade,


quando falamos em memória, falamos em representação e recriação, nunca
em resgate. Se, para o adulto, a memória aparece como um momento de
sonho, fuga da realidade e relaxamento, segundo Halbwachs (2009), para o
idoso ela aprece como a própria vida, material constitutivo de seu presente e
única certeza de tempo, já que o futuro é duvidoso.

Tem-se, então, o ancião/anciã como este ser de temporalidades, em que


a memória do passado e as narrativas advindas deste processo de lembrança
e esquecimento são a sua principal atividade. Rememorá-las é tornar-se vivo
para o presente e para futuras gerações. O Baobá, personificado na figura do
ancião, depositário dessas lembranças, é este ser de temporalidades que
ultrapassa o conceito físico de tempo e ocupa um outro tempo, o espiralar.

Junto a este ser de temporalidades, o Baobá personificado, advêm as


lembranças de África, das histórias contadas, enquanto criança, pelos mais
velhos e de um patrimônio mnemônico herdado geneticamente. E é com estas
histórias contadas pelos anciãos e anciãs afrodescendente de Alegre Barreiros
que venho falar de um outro tempo, construído de temporalidades e de

314
(apud COLEMAN, P. L’invecchiamento e i processi della memória. Roma: Armando, 2000,
p.22).

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memórias, materializadas com a palavra – kuma – a centelha divina, concedida


por Maa Ngala – a estes sábios Baobás.

Ao que se inscreve o título deste subcapítulo: Nos braços de Nanã e


Irôco, o sentido destas memórias soa como fios condutores de histórias,
moldados no barro pelas mãos generosas de Nanã, anciã e senhora dos
portais da vida e da morte; do passado e do futuro, qual Mnemósine, cujo
trabalho é observado à sombra do Baobá, pelos olhos sábios de Irôco.

REFERÊNCIAS

AZARUR, George. O sentido do tempo: descristianização, medo e sociedade.


Disponível em: <http://www.georgezarur.com.br/opiniao/157/o-sentido-do-
tempo-descristianizacao-medo-e-sociedade>, acesso em 22/10/2011.

COMTE-SPONVILLE, André. O Ser-Tempo. (Trad. de Eduardo Brandão). 2 ed.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.

HALBWACHS, M. A memória coletiva. 2 ed.Trad. Beatriz Sidou. Rio de Janeiro:


Centauro, 2009.

KALUMBA, Leon Ngoy. Anciãos: os pilares da África. Abril, 2002. Acesso em


20 de maio de 2010. Disponível em: http://www.alem-mar.org/cgi-
bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEFlAZZpuFgpqgltZb. Acesso em
abril de 2011.

KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África, vol. 01: Metodologia e pré-história


da África. Brazília: UNESCO, 2010.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória. São Paulo: Perspectiva &


Mazza, 1997.

MARQUES, Juliana Bastos. O conceito de temporalidade e sua aplicação na


historiografia antiga. São Paulo: Revista de História, n. 158, jun/2008.
Disponível em: <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?pid=S0034-
83092008000100002&script=sci_arttext>. Acesso em 20 de agosto de 2011.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

RICOEUR, Paul. (org.). As culturas e o tempo. Petrópolis: Vozes, 1975.

TEDESCO, João Carlos. Nas cercanias da memória – temporalidade,


experiência e narração. Rio Grande do Sul: EDUSC/UPF, 2004.

THOMPSON, Paul. A voz do passado – história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2002.

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GRUPO DE TRABALHO: HISTÓRIA E FICÇÃO EM NARRATIVAS


AFRICANAS

PROPOSITORES: WESLEY BARBOSA CORREIA (IFBA), MARIA NAZARETH


SOARES DA FONSECA (PUC MINAS) E LÍVIA MARIA NATÁLIA DE SOUZA
(UFBA)

Ementa:

Há pelo menos quatro décadas, uma feição documental, sintomática e

metalinguística tem sido continuamente operada no âmbito das produções

literárias africanas. Esse aspecto se liga, dentre outras razões, à emergência

das lutas de libertação que marcaram o cenário político do continente africano,

na segunda metade do século XX, e nas quais a literatura esteve pautada

como instrumento de mobilização social, capaz de fragilizar os estereótipos que

os impérios modernos espalharam pelo mundo, ao propagarem uma

anacrônica imagem dos territórios africanos. Ao mesmo tempo que essa feição

histórico-literária se evidencia em instigantes processos de criação literária nos

quais os escritores parecem motivados a assumir fatos dispersos da História,

intensificam-se os modos de releitura do passado e novos olhares sobre o

presente. Seja pela via da ironia, humor e paródia ou pelo jogo contínuo de

alteridades que ela encena, a escrita literária africana, a promover sentidos

outros sobre o espaço de onde emerge, quer-se implosiva da mítica verdade

historiográfica que conferiu ao Ocidente natural domínio sobre os territórios

situados de fora do seu eixo. Para este GT, portanto, serão aceitos trabalhos
que discutam questões de cultura e sociedade considerando-se as

representações histórico-ficcionais de África, suas particularidades discursivas

e simbólicas, a possibilidade de, pela potencialidade da ficção retomar os

caminhos da memória.

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ANÁLISE DA ATUAÇÃO FEMININA NA GUERRA DE INDEPENDÊNCIA DE


ANGOLA E NO CANGAÇO DE JEQUIÉ, ATRAVÉS DA LITERATURA

KALYANE BÁRBARA OLIVEIRA NOVAES 315 (UESC)


SAMIR SANTANA DE OLIVEIRA 316 (UESC)
LAILA BRICHTA 317 (UESC)

RESUMO

Escrever sobre a presença da mulher na História e nos fatos que marcaram a


humanidade não é tarefa simples, pois a complexidade começa no ato de gerar
uma nova vida, que certamente acompanhará e terá forte influência na
construção da identidade dessa geração. A pesquisa consistiu em analisar a
atuação da mulher no contexto sócio político do século XX na região de
Jequié/Brasil e de Luanda/Angola, fazendo um contraponto com Anésia
Cauaçu personagem histórica presente no romance de Domingos Ailton com a
personagem fictícia Sara de Pepetela. Ao analisar o contexto histórico e sua
relação com a construção do gênero, fez-se necessária a caracterização do
objeto: Anésia e Sara. Ambas as personagens possuem representações
instigantes nos romances, sendo que na obra de Domingos Ailton a mulher é
uma personagem heroica e na de Pepetela a mulher é um fio condutor para a
construção de uma ideologia de nação livre e igualitária. A sociedade do século
XX, tanto no Brasil como em Angola, era extremamente patriarcal, limitando as
mulheres ao lar e aos afazeres domésticos, evidenciando uma nítida divisão de
papéis entre os sexos, na qual foram atribuídas ao homem, a esfera pública e à
mulher, a doméstica. O comportamento, o espaço, o tempo são partes da
estrutura narrativa que desencadeiam dúvidas em relação ao real e ao fictício.
Sara e Anésia são apenas dois exemplos de mulheres que lutaram pelos seus
ideias, seja no sertão brasileiro comandando um bando de cangaceiros ou em
uma cidade angolana assegurando uma ideologia de liberdade.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher no cangaço, Literatura, Gênero.

INTRODUÇÂO

Escrever sobre a presença da mulher na História e nos fatos que


marcaram a humanidade não é tarefa simples, pois a complexidade começa no
ato de gerar uma nova vida, que certamente acompanhará e terá forte

315
Licenciada em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Pós Graduanda em História do
Brasil pela Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail kalyane.oliveira.novaes@gmail.com
316
Estudante de graduação de licenciatura em História na Universidade Estadual de Santa Cruz; e-mail:
santanoliveira47@gmail.com
317
Professora Doutora em História e orientadora na Universidade Estadual de Santa Cruz; email:
lailabrichta@gmail.com

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influência na construção da identidade dessa geração. A construção de mitos,


heróis e heroínas sempre estiveram presentes no imaginário humano, e
quando são encontradas suas características em uma mulher como Anésia
Cauaçu é de grande interesse seu estudo. O comportamento, o espaço, o
tempo são partes da estrutura narrativa que desencadeiam dúvidas em relação
ao real e ao fictício. O objetivo geral desta pesquisa consiste em analisar a
atuação da mulher no contexto sócio politico do século XX na região de
Jequié/Brasil e de Luanda/Angola, fazendo um contraponto com a personagem
histórica presente no romance de Domingos Ailton com a personagem fictícia
Sara de Pepetela.

A LITERATURA E A ATUAÇÃO FEMININA NA ESFERA PÚBLICA

A produção historiográfica vem passando no decorrer do tempo por


longas mudanças e reestruturações. Diante das transformações no modo de se
pensar a história, surgiu à necessidade de se incorporar novas fontes ao
universo sociocultural de determinado espaço e tempo. Segundo Chartier
(1990) a partir dos “avanços” da História Cultural, nota-se uma grande
mudança nos padrões de produção historiográfica, com a incorporação de
novos elementos. Destaca-se essa “nova história” fortemente voltada, para
além da diferença dos objetos, dos territórios e dos costumes, nos mesmos
princípios que sustentavam as ambições e as conquistas das outras ciências
sociais.

Nos últimos dez anos foram essas certezas, longa e amplamente


partilhadas, que foram abaladas. De um lado, sensíveis a novas
abordagens antropológicas ou sociológicas, os historiadores
quiseram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços
sociais. Daí resultaram vários deslocamentos fundamentais: das
estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações
vividas, das normas coletivas para as estratégias singulares
(CHARTIER, 1994, pg. 98).

Portanto, o historiador deve encorajar-se para “sair das prisões


imperativas dos contextos econômicos e sociais ou socioculturais” e considerar
o que Michel de Certeau denomina de “artes de fazer”, ou seja, buscar a lógica
específica de algumas manifestações populares. Segundo Peter Burke,

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A tentação a que o historiador cultural não deve sucumbir é a de


tratar as imagens de um certo período como espelhos, reflexos não
problemáticos de um tempo. [...] os historiadores culturais têm de
praticar a crítica das fontes, perguntar por que um dado texto ou
imagem veio a existir, e se, por exemplo, seu propósito era convencer
o público a realizar alguma ação (BUKER, 2005).

Segundo Gilberto Ferreira o grande avanço trazido pela História Cultural


é evidenciar que toda história, ainda que seja a menos narrativa e até mesmo a
mais estrutural, é sempre construída a partir de fórmulas que governam a
produção das narrativas. Os grupos com que os historiadores lidam são “quase
personagens”, dotadas implicitamente das propriedades dos heróis singulares
ou dos indivíduos ordinários que compõem as coletividades que essas
categorias abstratas designam. A História Cultural enfoca não apenas os
mecanismos de produção dos objetos culturais, como também os seus
mecanismos de recepção.
Contudo, a história cultural tornou-se o principal limite dos estudos
históricos na atualidade, já que não há rigor, entradas privilegiadas, nem
exigências prévias para o estudo das culturas. Exigências prévias que faziam
parte das concepções totalizantes, fortemente marcadas por categorias
teológicas que viam a história como exemplo de evolução “progressiva” e de
conjunto de toda humanidade são minadas pela busca dos indivíduos
“comuns”, de suas produções culturais e de suas diversas formas de
sociabilidades.
A literatura fixou-se como uma fonte produtiva para a historiografia, pois
possibilitou aos historiadores a entrarem em um universo repleto de
significações/representações, pois como a incorporação da literatura na
produção historiográfica, passou-se a considerar “novas maneiras de pensar a
história” e questionar antigos padrões e verdades históricas pré-estabelecida.
Segundo Gilberto Ferreira:

Apesar de ter sido a literatura considera por muito tempo como um


objeto criado a partir dos elementos fantasiosos, da imaginação do
escritor e que não possuía os requisitos necessários de verdade e
legitimidade para servir como fonte de explicação da realidade
histórica onde esta era produzida, ou sobre a qual se referia,
percebemos que a produção literária possui um forte elo com o

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espaço, com o tempo e com as condições socioculturais onde esta é


construída (SENA JUNIOR, 2010).

Desta forma, uma obra produzida com a clara intenção de captar as


relações sociais de determinado espaço e tempo, como por exemplo, Anésia
Cauaçu (2011) de Domingos Ailton; ou uma obra com aspectos claramente
ficcionais, mas que busca demonstrar as angústias e preocupações geradas na
população angolana durante e após a guerra de independência de Angola
como na Geração da Utopia (2013) de Pepetela, Ferreira afirma que todas as
obras literárias conservam em seu interior aspectos, características e relações
socioculturais do universo em que é produzida. Neste sentido, torna-se
importante destacar o fato de que a produção da obra literária está associada
ao seu tempo, refletindo em suas narrativas angústias e sonhos de agentes
sociais contemporâneos à sua criação e mesclando elementos de ficção e das
possíveis realidades existentes no momento da criação literária.
A obra de ficção lida com ações sonhadas, com sentimentos
compartilhados, com intermediação entre o real e as aspirações coletivas. A
obra literária constitui-se parte do mundo, das criações humanas, e transforma-
se em relato de um determinado contexto histórico-social. Por isso, “qualquer
obra literária é evidência histórica isto é, situada no processo histórico”,
cabendo ao historiador se debruçar sobre estas obras como uma “nova” fonte
de percepção para a produção historiográfica, indagando, questionando,
trazendo a tona a sua visão sobre determinado tempo.
Para Sevcenko, o estudo da literatura traz consigo nova possibilidade de
análise do passado, por meio da fala dos não ajustados socialmente. A
narrativa literária cria a possibilidade do vir a acontecer, dos sonhos que
revelam outro cotidiano que não apenas o dos vencedores, fazendo alusão a
sujeitos que reelaboram sua prática social e os transforma em realizadores de
sua própria história, permitindo, finalmente, o conhecimento de uma realidade
que não apenas a sacralizada pela história dos vencedores. Nesta perspectiva,
utilizarei os romances A Geração da Utopia e Anésia Cauaçu para discutir a
atuação do feminino nos processos políticos do século XX em Angola e no
Brasil.

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Segundo Rita Chaves em O Passado Presente na Literatura Angolana a


literatura dos países africanos de língua portuguesa exerce um papel essencial
na ilustração do percurso histórico da sociedade que pressupõe ilustrar, é um
meio de preencher as lacunas da história deixadas pelo colonialismo após a
conquista da independência de cada país africano, trazendo consigo o passado
como uma de suas fontes de significados.
No romance A Geração da Utopia, Pepetela relata e faz uma crítica à
criação da nacionalidade angolana, uma pátria criada através de muitas lutas e
grandes utopias que nos leva a refletir sobre a natureza humana, suas
limitações e ambições em um cenário hostil em que as pessoas são colocadas
em situações de desumanização do homem pelo homem. Podemos dizer que
as personagens femininas do romance assumem um papel de coadjuvantes,
porém possuem uma função fundamental dentro da história.
Pepetela apresenta três décadas da vida de uma geração que possuía
um projeto para a libertação política de Angola, liberdade que quando
alcançada, despertou um sentimento de frustração entre os que lutaram por
ela, transformando o projeto de libertação em utópico.
Entrelaçando as vidas dos personagens as várias situações da história
de Angola, o livro apresenta uma divisão temática e cronológica em quatro
capítulos: “A casa” (1961), “A Chana” (1972), “O Polvo” (1982), e o “Templo” (A
partir de Junho de 1991).
As personagens femininas da A Geração da Utopia trazem consigo um
sentimento de esperança em uma Angola livre e igualitária para todos. Em todo
o romance as mulheres foram representantes dos ideais da independência.
Pepetela projeta na mulher a esperança de um renascer de uma nação gerada
com luta e ideias que com o desenvolver e a conquista de sua “liberdade” se
perde em seus ideais.

[...] Ela não tinha posição definida, sentia-se demasiado


desinformada. Acreditava em uma sociedade justa, de homens iguais.
Admirava a coragem dos comunistas, que eram presos e viam as
suas células destruídas, para logo se levantarem e continuarem a luta
[...] (PEPETELA, 2013, pg. 88).

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As personagens femininas presentes no romance são mulheres comuns


e não idealizadas, que expõem os seus sentimentos diante da sociedade em
que estão inseridas, sendo detentoras de força e dos ideais políticos.
Sara é angolana e branca, politicamente engajada, possuidora de um
olhar crítico sobre o sistema de colonização de seu país e impulsiona a si e a
todos a uma conscientização de que é necessária uma transformação para
superar a ocupação portuguesa em Angola. Sara apresenta um papel
importante durante todo o texto, expondo as ideias de liberdade que são
vividas durante todo o romance. Em várias partes o narrador utiliza o olhar de
Sara para abordar questões importantes no texto como a segregação racial.
Sara desperta desconfiança entre os amigos pelo fato de ser branca, e o
surgimento de um nacionalismo angolano pautado também nas questões
raciais acaba por excluí-la da luta armada. A personagem feminina do romance
indiretamente teve a sua participação na guerra de independência de Angola.
Apesar de ser politizada Sara ainda eram olhada de forma desigual pelos
personagens masculinos, sendo colocada sempre em segundo plano, foi
excluída da luta armada devido a sua cor e por ser mulher. Durante todo o
romance Sara foi a única personagem que não perdeu a esperança em viver
em uma Angola melhor. Algumas dessas descrições podem ser percebida nos
trechos transcritos do livro A Geração da Utopia .

Dialogo entre Sara e Laurindo


[...] Há muito tempo que sou pela independência e sei que ela vai
acontecer mais cedo ou mais tarde. Posso lutar por ela e á minha
maneira lá vou fazer o que posso. Mas também não queria que os
meus pais fossem mortos só porque são brancos ou expulsos
- Se te dessem a escolher, ou a independência ou a vida da tua
família, sem possibilidade de meio termo?
- Pessoalmente custava-me muito, claro. Mas escolhia a
independência, não tenho duvidas. Embora não fosse certamente o
tipo de independência que desejava.
- És especial Sara
- Não, há outros. Os meus pais iam pagar por crimes que outros
cometeram. Oh, o meu pai também não é nenhum santo, naquela
terra ninguém enriquece a fazer ações de caridade... Mas crimes não
cometeu. Espero que seja que permita distinguir as ações das
pessoas, que haja justiça (PEPETELA, 2013, pg. 38).

No romance de Domingos Ailton a personagem feminina é da região da


Caatinga de Jequié e por lutar heroicamente para defender a sua gente insere-
se em uma série de batalhar travadas com o clã rival, Anésia Cauaçu

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permaneceu no imaginário popular devido a sua atuação no bando dos


Cauaçus. No romance a todo o momento Anésia aparece como protagonista,
estando à frente das batalhas como líder do bando. Anésia traz na alma sofrida
a encarnação da mulher nordestina fumando o cachimbo de barro, bebendo
suas caipirinhas, conhecendo os golpes de capoeira e o manuseio das armas
de fogo, sempre se impondo e se fazendo respeitar por sua personalidade forte
de liderança. Ao combater Marcionílio de Souza, invadir Jequié comandando
vários homens, tornou-se notícia no Jornal A Tarde da capital, tornando-se
presente no imaginário da população jequieense, por ter fechado durante três
dias a cidade e por ingressar no cangaço foi a primeira mulher da região a
substituir a saia pela calça comprida e o silhão pela sela comum. Anésia
Cauaçu foi uma mulher que esteve à frente do seu tempo.
[...] Vosmicê já deve ouvido falar eu meu nome, mais não fique com
medo, não, porque eu sou uma pessoa de bem. Meu nome é Anésia
Cauaçu
- Muito prazer,D.Anésia Cauaçu. Já ouvir falar muito da senhora.
Dizque é uma muié retada, enfrenta home e mete medo em coroné
- Que nada, eu não sou tudo isso que o povo fala.
- O povo aumenta, mais não inventa. A senhora sabia que tinha uma
admiração pela senhora sem nem lhe conhecer? Eu queria ter a
coragem da senhora [...] (AILTON, 2011, pg. 133).

Com efeito, as obras literárias mantêm um vínculo estreito com a história


de onde retiram a matéria-prima que será apropriada esteticamente, e embora
a história trabalhe com evidências da realidade, a sua escrita não elimina um
pouco da imaginação. Por isso, Hyden White defina a história como “metáfora”
ou “um artefato verbal, produto de um tipo especial de linguagem”, e afirma
que,

O que o discurso histórico produz são interpretações de seja qual for


a informação ou o conhecimento do passado de que o historiador
dispõe. Essas interpretações podem assumir numerosas formas,
estendendo-se da simples crônica ou lista de fatos até “filosofias da
história” altamente abstratas, mas o que todas elas têm em comum é
seu tratamento de um modo narrativo de representação como
fundamental para que se perceba seus referentes como fenômenos
distintivamente “históricos” (WHITE, 1994, pg. 24).

Em outras palavras, a produção historiográfica não pode prescindir da


imaginação, da subjetividade, assim como a produção da narrativa ficcional
esta embutida de doses de realidade, pois esta é construída dentro de um eixo

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espaço-temporal que impregna a obra de aspectos biográficos, sociais e


conjunturais. Ela recorre à história não na perspectiva de testemunho ocular ou
repórter dos fatos, mas como intérprete, capaz de recriar poeticamente a
realidade.
Sendo assim, a literatura pode ser considerada uma espécie de “fonte
privilegiada”, uma fonte capaz de acrescentar um “algo a mais” na
compreensão dos fatos, principalmente se considerarmos que ao se buscar as
formas de representação da identidade social na literatura, deve-se levar em
conta que estas “imagens” não são nem o reflexo do real, nem a oposição
deste, e sim representações historicamente construídas que colocam em
campo, forças que se relacionam e definem o imaginário acerca do real como
construção social.
A chegada do século XXI faz com que se rediscuta o papel da mulher
dentro da sociedade. História de mulheres que fizeram avançar o século XX, as
relações entre mulher e sociedade, tendo em vista os espaços conquistados, o
exercício de poder e o respeito adquirido dentro do mercado de trabalho e nas
relações familiares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se mostrar, nesse trabalho as formas que as mulheres utilizaram


para se fazer presente na esfera pública, de forma que puderam contribuir com
o desenvolvimento da sociedade em que estavam inseridas, cada uma com
suas especificidades. Destacando a relevância histórica e mitológica da mulher,
retratando o quanto a humanidade procura respostas para suas perguntas mais
íntimas e que, por vezes, desconhecidas de seus propósitos iniciais, deixam de
apontar a importância da figura feminina para a construção de identidades e a
significação do gênero. Ao analisar o contexto histórico e sua relação com a
construção do gênero, fez-se necessária a caracterização do objeto: Anésia
Cauaçu personagem histórica de Domingos Ailton e Sara personagem fictícia
de Pepetela e suas representações nos romance Anésia Cauaçu e A Geração
da Utopia, sendo que na obra de Domingos Ailton a mulher é uma personagem

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heroica e no romance de Pepetela a mulher é tida como o fio condutor da


ideologia de uma nação livre e igualitária.
A linguagem e a textualidade presente na narrativa de Domingos auxiliou
e justificou a construção do mito Anésia Cauaçu pois a personagem se
estabelecia com determinadas atitudes ou decisões, encontrava-se então a
personagem ganhando vida mitológicas e poderes não naturais para uma
mulher. Anésia era símbolo de poder, força e respeito no imaginário popular.
Esses elementos foram os que a tornaram um mito. Anésia representou uma
figura singular e extremamente significativa para o banditismo da região de
Jequié. Foi entre as mulheres a que mais soube se impor dentro do bando e na
comunidade, deixando assim sua marca na memória coletiva. Anésia nos leva
a refletir sobre a sua importância na construção da história das mulheres,
principalmente por representar a mulher guerreira do sertão, no imaginário da
comunidade jequieense e região.
A literatura é o meio de corroborar com a construção do mito,
solidificando e firmando a sua imagem mitificada dentro da comunidade. Anésia
representa atualmente o exemplo da participação feminina através do poder
dentro da sociedade representando a força política das mulheres na construção
da história.
Uma outra contribuição se relaciona com o fenômeno do banditismo. A
princípio por estarmos frente a uma mulher que antecedeu Maria Bonita,
participando de um bando, na primeira década do século XX, como membro
efetivo, chegando, inclusive, a posição de liderança. Em seguida pelas próprias
características do bando, com sua formação de base familiar, um bando de
formação mista que possuía em seu bojo integrantes do sexo masculino e
feminino e que agiam mais como salteadores do que como assassinos, um
bando que possuía sua independência financeira e política. Elementos que
venha para repensar o fenômeno do banditismo, podendo até levantar a
hipótese de que Anésia Cauaçu tenha sido a primeira mulher cangaceira a
liderar um bando, estando na frente das batalhas, tornando-se uma mulher a
frente do seu tempo.
A personagem Sara apesar de não pegar em armas faz a guerrilha
acontecer através de sua ideologia política, utilizando do que lhe foi permitido

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para atuar no processo político, a todo momento ela se faz presente de forma
indireta no processo de independência, atuando nas passeatas ou politizando
os estudantes do império. A participação de Sara é de suma importância para o
desenvolvimento das ideologias de uma nação igualitária para todos. A
personagem feminina em destaque também contribui de forma direta na
reconstrução da esperança que se perdeu no decorrer da guerra, encontra-se
em Sara um recomeço de uma nação que mesmo independente herdou do
colonizador a maneira desigual de governar.

REFERÊNCIAS

AILTON, D. Anésia Cauaçu. 1. ed. Jequié: Via Litterarum.


AUAD, M. do C. Anésia Cauaçu-mulher-mãe-guerreira: um estudo sobre
mulher, memória e representação no banditismo na região de Jequié-Bahia.
Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013.

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BRUSCHINI, C.; BUARQUE DE HOLANDA, H. Horizontes Plurais: novos
estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, Editora
34, 1998. p.51-84.

BURKE, P. O que é História Cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

CHARTIER, R. A História Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.


______. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n° 13, 1994.

______. O Mundo como Representação. Revista Estudos Avançados, São


Paulo, vol.5 n°11. 1991.

CHAVES, R. Angola e Moçambique: Experiência colonial e territórios


literários. Cotia SP: Ateliê Editorial, 2005.
PEPETELA. A geração da utopia. São Paulo: Leya, 2013.

SENA JUNIOR, G. F.. Realidade versus ficção: a literatura como fonte para
a escrita da história. In: Anais do VI Simpósio Nacional Estado e poder:
cultura. 2010, São Cristóvão-SE. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/estadoepoder/6snepc/GT13/GT13-GILBERTO.pdf>.
Acesso em: 05 de Novembro de 2014.

WHITE, H. Teoria Literária e Escrita da História. Revista Estudos Históricos,


Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getúlio Vargas 7 (13): 21- 48, 1994.

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AS TRAMAS HISTÓRICAS E LITERÁRIAS: A POÉTICA DE NOÉMIA DE


SOUSA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA COLONIAL

CARLA MARIA FERREIRA NOGUEIRA (UNEB/NGEALC) 318

As ações libertárias irrompidas por todo o continente africano após a 2ª


Guerra Mundial foram Influenciadas pelos movimentos do pós-guerra e muitos
moçambicanos se tornaram progressivamente nacionalistas e, de forma
crescente, contestadores do contínuo servilismo da sua nação às regras
estrangeiras. Por outro lado, aqueles moçambicanos mais cultos e integrados
no sistema social português implementado em Moçambique, em particular os
que viviam nos centros urbanos, reagiram negativamente à vontade, cada vez
maior, de independência. Os portugueses estabelecidos no território, que
incluíam a maior parte das autoridades, responderam com uma incrementação
da presença militar e com um aumento de projetos de desenvolvimento para a
colônia.
Até a independência de Moçambique, em 1975, o escritor vivia entre
duas realidades existentes no âmago das relações sociais. A tensão entre os
dois eixos se expressava nas produções do período colonial, promovendo um
embate na linguagem literária na utilização da língua portuguesa em realidades
bastante complexas. Esse choque que se realizou no campo da linguagem foi o
impulso gerador de projetos literários em Moçambique e também nas outras
colônias portuguesas, como Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e
Guiné Bissau. O entendimento das literaturas africanas de língua portuguesa
desses países passa pela compreensão da dinâmica que orienta a produção
literária, que faz com que esses momentos não sejam rígidos e inflexíveis, e
permite por vezes ao escritor sua travessia.
Ao discutir a emergência da literatura nos territórios africanos
colonizados, sobretudo a poesia, Manuel Ferreira (1987) propõe a observação
de que a prática literária enraíza-se no meio sociocultural e geográfico e nos
momentos do discurso de revolta e da clareza dos problemas causados pela
colonização, isso porque, o escritor assume a responsabilidade de construtor,

318
Mestra em Estudos de Linguagem pela Universidade do Estado da Bahia/PPGEL.

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mantenedor e defensor das culturas africanas, rompendo com os moldes


europeus, e tendo a conscientização definitiva do valor do homem africano.
No período da luta, foi sempre possível identificar um discurso de
resistência e de reivindicação por mudanças no processo de releituras
constantes que liga o presente e o passado na construção de uma África que
se renovasse continuamente. O desejo de rompimento com o governo
português se intensificava, sobretudo porque era cada vez mais urgente tomar
as decisões políticas, econômicas e administrativas, devolvendo a Moçambique
sua autonomia de território nacional. A reivindicação nacionalista se afirmava
pelo reconhecimento da diferença, por valores próprios, já que havia se
ampliado fortemente a demarcação dos dois polos: do colonizado e do
colonizador. Recusar a presença do colonizador conduz a uma práxis literária
que registra as modificações do contexto e o desejo de tornar públicas as
formas efetivadas desse enfrentamento. É possível verificar o processo de
estabelecimento dos traços formadores de uma literatura de combate,
convocando o povo moçambicano para a luta de independência.
Progressivamente, a poesia de Noémia de Sousa se volta para as
questões da nacionalidade, focalizando a valorização de um território, seja no
contexto continental (macro) ou no contexto nacional (micro), estabelecendo,
assim, a demarcação da fronteira de Moçambique. Nesse aspecto, Manoel de
Souza e Silva destaca a importância da poesia moçambicana para o florescer
do sentimento nacional.

o papel fundamental para a existência de uma poesia moçambicana e


de uma pátria moçambicana, nascida, primeiro, na utopia dos poetas,
no futuro pré-sentido e tecido fio a fio. Poesia profética ou, se se
preferir profecia poética” (SILVA, 1996, p. 113).

Como exemplo da observação de Manoel de Souza, o poema “Um dia”,


é totalmente investido de esperança e calcado no vislumbrar de tempos futuros
sem colonialismo, tampouco escravidão, onde o renascer dos negros que
foram escravizados é parte de uma nova realidade caracterizada pela
igualdade de todos. A narrativa é um prenúncio de futuro pródigo ansiado, um
olhar voltado para o amanhã que se revela na crença do poder transformador
da ação coletiva em direção à independência. Vitória que será conquistada por

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meio da conjugação de forças, principalmente dos sujeitos que foram


segregados.

Quando este nosso sol ardente de África


nos cobrir a todos com a benção do mesmo calor,
quero ir contigo, amigo,
de mãos dadas, deslumbrados,
pelos trilhos abertos da nossa terra estranha,
adubada com sangue e suor de séculos...

Nas machambas,
o ruído repercutido de tractor
soará como uma canção de triunfo.
Nas matas,
as tutas já não serão aves apenas
e no centro da vida,
nosso irmão negro, quebradas as grilhetas,
celebrará seu segundo nascimento
num batuque diferente de todos os outros...

Uma luz clara e doce se abrirá para todo


e nós iremos de mãos dadas, amigo,
pelos trilhos verdes de Moçambique.

Na noite,
não mais soluçarão, estertoradas,
canções marimbadas por irmãos naufragados
(ô mamanô! Ô tatanô!),
Não mais a acusação muda dos olhos precoces
de crianças de ventres empinados
não mais jaulas erguidas para os inconformistas
gritando gritos de sangue
através de tudo!

Não mais, noite...


E nós iremos de mãos dadas,
amigo,
pelos trilhos abertos de Moçambique,
mergulhados no clarão eterno do dia infindável.
(SOUSA, 2001, p. 114-115).

O poema trata de anseios e desejos de liberdade, não uma liberdade


insípida e incolor, porém a que quebre os grilhões e que vença a ausência de
direitos básicos do subjugo do senhorio ao escravizado, do colonizador sobre o
colonizado, e sim aquela que traz e assegura direitos iguais, entremeada com o
progresso tanto econômico quanto intelectual, embasando tudo no crescimento
do ser humano, tudo aquilo que sempre justificou as ações e preocupações da
poetisa. Interessante notar, que nesse poema, o eu-poético se manifesta
inicialmente em nome de um contexto global e sequentemente volta a deixar
claro o seu pertencimento e a importância de Moçambique no processo de

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libertação, através do conclamar desejado que ora serve para a luta, venha a
servir também para a alegria, o júbilo e a esperança.
No seu processo criativo, Noémia de Sousa é movida por sua crença e
alimentada por sua esperança num futuro livre e independente, sendo também
dotada de uma confiança capaz de ver que, mesmo nas constatações diárias, é
possível a alteração social. A esperança, nesse caso, é apresentada em função
de um devir que será conquistado e não simplesmente adquirido.
A conjunção “Quando”, que inicia o poema, é indicador de um tempo
vindouro subordinado a novas expectativas de mudanças conjunturais e a
construção de nações, possível única e tão somente pelas “mãos dadas”. É o
porvir histórico almejado por todos se consumando na representação da
conjugação de ideias e propósitos na formação de países soberanos, não mais
colônias de Portugal, que, de acordo com Amílcar Cabral, não tinha condições
nem habilidades de gerir o próprio Estado. Esse político e militante cabo-
verdiano, atento ao que acontecia nas sociedades africanas, ressaltou a
importância de expandir os debates das condições políticas, econômicas,
históricas, sociais e culturais no âmbito das sociedades liberais ocidentais para
se discutir a real situação das populações africanas em seus próprios países.
Em seu discurso “A verdade sobre as colônias africanas de Portugal”, proferido
em junho de 1960, em Londres, alerta para as condições materiais da própria
metrópole.

Portugal é um país subdesenvolvido com 40% de analfabetos e o seu


nível de vida é o mais baixo da Europa. Se conseguisse ter uma
‘influência civilizadora’ sobre qualquer povo seria uma espécie de
milagre (...). O atraso econômico de Portugal reflete-se na vida
econômica e financeira das suas colônias; nunca pôde e nem poderá
criar as bases necessárias para o desenvolvimento econômico das
suas colônias. (CABRAL, 1976, p. 61)

A crítica efetuada por Amílcar Cabral revela que os problemas


provocados pela dinâmica econômica e política implantada pelos europeus
dentro do sistema colonial, no caso de Portugal, não só tornava evidente a
impossibilidade de crescimento e emancipação dos territórios ocupados na
África, como afetava diretamente as condições de vida dos lusitanos,
comprovando a tese de que não haveria base possível para qualquer mudança.

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O colonialismo, a escravatura e a repressão foram temas dos escritores


que escreveram no chamado período da Poesia de Combate, dentre eles,
Noémia de Sousa com sua obra marcadamente inovadora. Surgida na década
de quarenta do século XX com um espírito revolucionário e incitador à luta de
libertação, a poesia foi a forma de expressão literária predominante em
Moçambique e em outros países africanos de língua oficial portuguesa, obras
que via de regra eram impregnadas de palavras de ordem. Cito mais uma vez,
o crítico português Manoel de Souza e Silva, quando tece considerações sobre
a poesia de combate, destacando seu caráter subversivo.

A poesia de combate, funcionando como síntese da resistência do


homem de Moçambique à dominação colonial, fornece um retrato –
tosco, muitas vezes, mas sempre vigoroso – muito nítido, libertado de
todas as peias, podendo mostrar-se, enfim rude, terna, rica, pobre,
balbuciante, fluente, originalíssima, reciclada, telúrica, ecológica,
subversiva.
Dentre todos os aspectos da poesia de combate, o que mais se
destaca, e escandaliza, é a sua natureza radicalmente subversiva.
(SILVA, 1996, p. 118).

Em razão da perspectiva revolucionária, dificultava-se a utilização de um


tom pessoal, mais intimista. Em “Poesia não venhas!”, Noémia de Sousa fala
de sofrimentos de fórum íntimo e também dos advindos de seu engajamento
sociopolítico e a importância do conteúdo poético como manifestação desses
sentimentos. Confessa sua impotência quando renuncia às suas dores e
angústias, priorizando seu compromisso social.
Poesia:
Porque vieste hoje,
precisamente hoje, que não te posso receber?

Hoje,
em que tudo tem cor
de pesadelo e em que até a minha irmã a lua
não veio, com a sua carícia fraterna, dar-me calma?

Oh Poesia,
não, não venhas hoje!

Não vês que a minha alma


não te podes compreender?
Que está fechada,
cercada, fatigada,
e nada mais quer
senão chorar?

Hoje, eu só saberia cantar

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a minha própria dor...


Ignoraria
tudo o que tu, Poesia
me viesses segredar...
E a minha dor,
que é a minha dor egoísta e vazia,
comparada aos sofrimentos seculares
de irmãos aos milhares?
Bem sei que as minhas frouxas lágrimas
nem o mais humilde poema valeriam...

E se tu sabes que é assim, oh! Poesia!


será melhor que fiques lá onde estás,
e não venhas hoje, não!
(SOUSA, 2001, p. 123-124).

Inicialmente, a temática e o fio condutor da escritora são as aflições e os


sofrimentos da alma, inerentes ao existencialismo humano, representados por
um estado de ânimo que muito embora breve, revela-se cansado, abatido e
momentaneamente egoísta capaz de chorar somente pela sua dor. Na
continuidade da manifestação do eu-poético, a poetisa é reconduzida à
renúncia dos sentimentos mais íntimos e particulares em nome do seu
compromisso em acabar com o sofrimento de tantos. Finalmente, esse eu-
poético pede á poesia, que deve ser entendida aqui como inspiração para a
continuidade da luta, que dada à sua momentânea insensibilidade não deva
surgir. Quando o eu-poético diz “Oh Poesia,/ não, não venhas hoje” reafirma o
posicionamento de Noémia de Sousa quanto à utilização da poesia como arma,
algo comum nos seus escritos, observado nas estrofes da sua criação
intitulada “Poema”, a qual revela sua indignação pela prisão do companheiro de
batalha João Mendes.

Aqui tens o meu poema, irmão.

Meu poema insuficiente e baço,


palavras, sangue, emoção,
grito que se soltou do fundo das veias
e ficou pairando feito estandarte...
- meu poema fogueira de negros solitários
Acesa à beira da mata em noite de frio e escuridão,
meu poema seta e azagaia para os combates da vida
meu poema alma mulata amassada em dor e revolta
meu poema mão aberta estendida para o mundo
meu poema fraterno, torturado,
aí meu poema solitário, insuficiente e baço,
aqui o tens, irmão.
(Sousa, 2001, p. 105).

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Embora Noémia de Sousa se preocupe com a escrita poética voltada


para a causa coletiva, essa mesma poesia é fruto de uma injunção do indivíduo
que ela é, impregnado das suas experiências. Ela não faz só o discurso do
chamado à luta, mas trava consigo um constante embate sobre a
instrumentalização da poesia para fins determinados. O poema, desta forma,
evidencia a importância do papel do poeta, que acaba entendendo a poesia
como possível espaço de resistência e de autonomia e faz referências às
agruras da condição colonial imposta a Moçambique, ao mesmo tempo que
reivindica o discurso poético como campo de possibilidade para a manifestação
das dores e perdas resultantes dessa condição. Quando o eu-poético suplica a
ausência da poesia, abdica de sua individualidade e de seu isolamento para
estampar o seu possível compromisso com as condições vivenciadas pelos
moçambicanos. O eu-poético tem ciência que suas mágoas e decepções são
menores e insignificantes diante das demandas de seu povo.
Não somente se utilizando de uma forma poética acentuadora dos novos
caminhos da poesia moçambicana, de versos que apontam para a construção
de uma identidade cultural, de anseios nacionalistas e de um discurso de
combate, denunciador da precariedade socioeconômica e da exploração
colonial, outros temas também inspiraram a criação literária do período, porém
predominou o interesse pela ruptura com o processo de segregação imposto
pelo sistema colonial. Nos textos poéticos de Noémia de Sousa, aspectos
biográficos, lutas políticas, desejos e tensões pessoais misturam-se de modo a
emprestar sustentação à sua obra no que tange às reflexões sobre a
africanidade para o domínio da arte.
Falar de si enquanto sujeito uno não a interessava naquele momento,
mas sim dizer sobre o seu sentimento de pertença a Moçambique e África. Na
constatação desse sentimento, confundem-se biografia e manifestações
poéticas do ideário da escritora. No poema “Se me quiseres conhecer”, a
combinação de ambientes culturais da terra e a vida da mulher não se
distinguem: “Ah, essa sou eu/ África de cabeça aos pés”.

Se queres me conhecer,
estuda com os olhos bem de ver
esse pedaço de pau preto
que um desconhecido irmão maconde
de mãos inspiradas

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talhou e trabalhou
em terras distantes lá do Norte.

Ah, essa sou eu:


órbitas vazias no desespero de possuir a vida,
boca rasgada em feridas de angústia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis
pelos chicotes da escravatura...
Torturada e magnífica,
altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
- ah, essa sou eu:

Se quiseres compreender-me
vem debruçar-te sobre minha alma de África,
nos gemidos dos negros no cais
nos batuques frenéticos dos muchopes
na rebeldia dos machanganas
na estranha melancolia se evolando
duma canção nativa, noite dentro...

E nada mais me perguntes,


se é que me queres conhecer...

Que não sou mais que um búzio de carne,


onde a revolta de África congelou
seu grito inchado de esperança.
(SOUSA, 2001, p. 49-59).

O momento de grande sofrimento não lhe retira a relação estabelecida


com o continente. A simbologia da terra compõe a sua poesia a partir da
construção de uma subjetividade alicerçada no sentimento de pertença ao local
de origem. Destaca-se também na poesia de Noémia o superdimensionamento
de formas e gestos, em largas expressões de dor, inconformidade e
estranhamento às formas de dominação.
A partir do título, quando é utilizado o verbo na segunda pessoa,
percebe-se a intencionalidade de se dirigir explicitamente ao seu leitor. Em se
tratando de uma escritora militante como Noémia de Sousa, sabemos que a
quem ela se refere, quem a precisa conhecer, são os colonizadores. Na
primeira estrofe, o eu-poético usa a metáfora do pau preto como uma possível
referência ao ébano, madeira africana preta e dura. O maconde é a mímese
para indicar a perfeição da arte dessas populações, como indica no poema
estão situadas ao Norte de Moçambique, pois segundo alguns dicionaristas a
arte desses artesãos é reconhecida internacionalmente pelo seu requinte no

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trabalho em madeira. Na segunda estrofe, o eu-poético aparece em primeira


pessoa e se relaciona com vários adjetivos no encaixe direto com o substantivo
que é o ser caracterizado: órbitas vazias, boca rasgada, mãos enormes, corpo
tatuado. Também nessa estrofe, percebem-se as sequelas deixadas pela
escravidão na formação de feridas visíveis e invisíveis da escravatura, o que
comprova que o eu-poético se dirige aos colonizadores. Se em um primeiro
momento, o conhecer relaciona-se a aspectos físicos que caracterizam o eu-
poético, essa designação evolui para algo mais profundo, a partir da extensão
dos conceitos do que é África, dos elementos culturais e sua diversidade
étnica. A quarta estrofe já implica em um desabafo de insatisfação ao descaso
dos invasores e destruidores de almas e sonhos.
A fala poética em todo o seu dimensionamento dramático se desdobra
em um ritmo angustiante, no qual a identificação com a terra metaforiza a fusão
do eu-poético com a devastação do continente. As imagens de uma África
martirizada são concebidas através da construção do homem em seu
desespero de possuir uma condição digna de sobrevivência. Essas imagens
potencializam os processos de alienação do homem colonizado, e o corpo
feminino é metonímia para essa figuração e que, ao associá-las à dor do povo
moçambicano, Noémia de Sousa concede voz a um sujeito lírico feminino que
revela a desumanidade do sistema econômico e político do colonialismo
português em terras moçambicanas. Por sua vez Noémia de Sousa exalta uma
africanidade sem fronteiras, espelhando um posicionamento pan-africanista no
tratamento ao continente africano, conforme interpretação desse poema por
Alfredo Margarido,

o poeta não recorre já aos elementos abstractos da fraternidade


quando explica o que é necessário para a conhecermos, pois aqui
recorre a elementos imediatamente identificáveis, começando a se
servir de um ‘objecto’, quer dizer, de alguma coisa que não pode ser
confundida e que, podendo ser identificada à distância pelo olhar,
impossibilita qualquer confusão dos sentidos. É este, exactamente, o
objectivo de Noémia de Sousa: apresentar-se como objecto, para que
a sua identificação como mulher de cor, como elemento integralmente
produzido pela África, não possa ser posta em dúvida. Por isso
‘Pedaço de Pau Preto/ que um desconhecido irmão maconde/ de
mãos inspiradas/ talhou e trabalhou. (1980, p. 487).

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O protesto é uma das vertentes mais importantes encontradas na poesia


de Noémia de Sousa, também sobre a identidade negroafricana, o trabalho
forçado (chibalo), além do grande destaque a sua posição firme e contrária à
ideia de coisificação do homem negro, transformado em mero objeto, no
imaginário falsificado do europeu. Essa homogeneização identitária do “outro”
resulta numa paradoxal reprodução da própria lógica colonial, pela anulação
das especificidades culturais e sociais, que caracterizam a complexa realidade
dos contextos de colonização. É, justamente, por apresentar uma linguagem
poética de denúncia, resultante de processos de construção e reconstrução
conceitual, que emergem de cenários culturais, sociais e políticos particulares,
veiculados por diferentes práticas discursivas, a partir de preocupações
constantes com o ser humano, que a poesia de Noémia de Sousa faz suscitar
no leitor a crença no poder transformador da história e na esperança do
restabelecimento da dignidade humana.
Noémia de Sousa se consagra pela vontade de mudanças ideológicas e
pela consciência das injustiças e divisões sociais existentes não só em
Moçambique. Dessa forma, por meio da sua poesia, recorre à metalinguagem,
declara a sua expressiva adesão contra a situação do ser humano dentro do
sistema colonial e o eu-poético acaba por assumir a responsabilidade pelo
protesto diante dos problemas apresentados.
Bates-me e ameaças-me,
agora que levantei minha cabeça esclarecida
e gritei: “Basta!”

Armas-me grades e queres crucificar-me


agora que rasguei a venda cor de rosa
E gritei: “Basta!”

Condenas-me à escuridão eterna


agora que minha alma de África se iluminou
e descobriu o ludíbrio...
E gritei, mil vezes gritei: “Basta”
Ó carrasco de olhos tortos,
de dentes afiados de antropófago
e brutas mãos de orango:
Vem com o teu cassetete e tuas ameaças,
fecha-me em tuas grades e crucifixa-me,
traz teus instrumentos de tortura
e amputa-me os olhos e condena-me à escuridão eterna...
- que eu, mais do que nunca,
dos limos da alma,
me erguerei lúcida, bramindo contra tudo:
Basta! Basta! Basta!
(SOUSA, 2001, p. 133)

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Nesse poema, o grau de conscientização do eu-poético é muito alto, não


há mais medo nem aceitação, não há mais a fase embrionária. Depois de todos
os esclarecimentos, escancara-se a descoberta, não permitindo mais nenhum
tipo de enganação frente os colonizadores que aparecem caricaturados como
um carrasco de olhos tortos, de dentes afiados de antropófago e brutas mãos
de orango. Agora é hora de dar um basta a toda submissão anterior em relação
ao sistema colonial, revelando o reconhecimento de todas as atrocidades
promovidas e principalmente reagindo contra qualquer opressão. Desvincula-se
do ideário colonial português, até então dominante, que sempre esteve
profundamente empenhado em apresentar as populações negras como
destituídas de cultura, civilização e história.
O eu-poético se identifica com Noémia de Sousa, pois assume uma
adjetivação feminina “me erguerei lúcida, bramindo contra tudo” a qual lembra
a representação do pássaro Fênix que ressurge das cinzas. Metáfora para uma
identidade que está começando a se formar desgarrada da submissão colonial
e reforçada através do conhecimento das reais condições impostas ao
colonizados. Além de seu empenho em denunciar, por meio de sua poesia, os
abusos do regime colonialista português na África, Noémia de Sousa concede
voz a um sujeito lírico declinado no feminino, de maneira a desvelar a
desumanidade do sistema econômico e político então vigente. Colocamo-nos,
assim, perante um exemplo da necessidade de contextualizar social e
culturalmente o posicionamento da mulher africana, para uma análise rigorosa
da sua condição.

REFERÊNCIAS

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria: unidade e luta I. Comitê Executivo da luta


do PAIGC. Seara Nova, 1976.

MARGARIDO, Alfredo (1994) ¨Projectos e limites da CEI¨, em Discursos (tema:


¨Literaturas africanas e língua portuguesa¨), n. 9 (Fevereiro 1995), Coimbra,
Universidade Aberta.

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_________________. A literatura e a consciência nacional. In:


FREUDENTHAL, A.; MATEUS, Dalia Cabrita; MATEUS, Álvaro. Nacionalistas
de Moçambique. Da luta armada à independência. Portugal: Texto editores,
2010.

SILVA, Manoel de Souza e. Do Alheio ao Próprio: A poesia em Moçambique.


São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Goiânia: Editora da UFG,
1996. SOUSA, Noémia de. Sangue negro. Maputo: AEMO, 1998.

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NAÇÃO E ENCENAÇÃO: OS HERÓIS, O MÍTICO E O HISTÓRICO NA


LITERATURA DE BOAVENTURA CARDOSO E DE MIA COUTO

EVERTON FERNANDO MICHELETTI 319 (USP)

Em seus contos e romances, CARDOSO e COUTO mostram-se


preocupados com a situação histórica de seus países. Grande parte das obras
concentra-se no período de luta anticolonial e no pós-Independência, com a
guerra civil e outros problemas do meio social. Ao mesmo tempo em que
trazem às narrativas as representações da realidade, recorrem aos mitos, em
especial os africanos, mas não deixam também de explorar os mitos extra-
africanos. Nesse sentido, recorrem a valores mítico-religiosos que advêm do
imaginário humano desde tempos remotos, como nas constantes referências
aos quatro elementos da matéria - água, terra, fogo, ar. Estabelecem, assim,
relações entre o histórico e o mítico.
Geralmente abordados como opostos, o histórico ligado à realidade
material, que se aborda de modo objetivo, e o mítico como criação imaginária,
subjetivo, os autores subvertem essa oposição, utilizando o mítico como forma
de representação do histórico. É o que se pode observar nos romances Noites
de Vigília de CARDOSO e A varanda do frangipani de COUTO, no caso da
escolha e homenagens aos heróis nacionais em Angola e Moçambique. No
período posterior à Independência nos dois países, tem sido recorrente a
construção de memoriais, estátuas e espaços vários em homenagem aos que
teriam lutado contra o colonialismo e na guerra que se seguiu. Nos dois
romances supracitados, porém, as contradições surgem e são desveladas pelo
mítico.
Em Noites de Vigília (2012), o protagonista Quinito é um ex-
combatente do MPLA, um mutilado da guerra que reúne outros mutilados,
inclusive da UNITA, para reivindicar formas de indenização e de apoio do
governo, formando uma Associação. Nesse processo de conversar com
amigos e fazer várias reuniões, Quinito relembra o passado, a narrativa,

319
Doutorando do Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Letras, área de Estudos Literários,
pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).

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portanto, não é linear. E além do uso da analepse, há também a prolepse,


quando se narra no quinto capítulo a construção de um Panteão. Trata-se de
um espaço para colocar os restos mortais dos heróis nacionais, o que gerou
muitas makas, isto é, muitas discussões. A inauguração seria em
comemoração aos cinquenta anos da Independência, logo, a narrativa avança
ao ano de 2025.
Sobre a definição dos heróis para o Panteão, consultaram os membros
da Associação dos Mutilados, que, após muito discutirem, chegaram a decisão
de que "cada partido deveria indicar cinco nomes de heróis da luta de
libertação nacional" (CARDOSO, 2012, p. 163-4). Em seguida, a maior parte
dos membros da Associação pediram que se fizessem os rituais tradicionais ao
levar os corpos para o Panteão, que "foi inaugurado com pompa e
circunstância... Mas, decidiu-se eliminar tudo o que pudesse parecer ao mundo
que nós éramos um país mergulhado num tradicionalismo retrógrado"
(CARDOSO, 2012, p. 164). Os líderes políticos, então, optaram apenas pela
benção de um representante católico, deixando os outros religiosos
descontentes. Pouco tempo depois, fenômenos estranhos estariam
acontecendo no local:

Se dizia que no Panteão se ouviam durante a noite as vozes estranhas, porcos a


grunhirem, gatos a miarem, noitibós a cirandejarem no memorial, gente a chorar à
mistura com as fortes batucadas. Rumores se espalharam por todo o país, o que
punha as pessoas intrigadas sobre o que realmente se estava a passar. Muita gente
se deslocou lá de dia para confirmar com os seus próprios olhos e ouvidos o que
estava realmente a acontecer naquele monumento. Acontecia que de dia nada de
anormal acontecia, as visitas ocorriam dentro da normalidade, sem nada de especial
para registo. Que as pessoas até admiravam aquela imponente obra de arquitectura e
elogiavam o Governo por ter se lembrado de acomodar em local tão digno o corpo
dos nossos grandes heróis. À noite é que as estranhas coisas aconteciam, por isso
ninguém que ousava lá ir. (CARDOSO, 2012, p. 165)

O Panteão torna-se um espaço do histórico de dia e do mítico à noite.


Com o receio aumentando em relação aos fenômenos, a Associação reuniu-se
novamente. Em meio às conversas e discussões, lembraram de uma voz
misteriosa que ouviam, algumas vezes, durante as reuniões, que repetia a
frase "não se esqueçam dos espíritos dos nossos antepassados e dos génios"
(CARDOSO, 2012, p. 168). Muitos atribuíram a voz a um membro já morto da
Associação, Lau Pedro Nkanga, considerando que ele tinha sido um grande

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combatente e não devia estar satisfeito de não haver um lugar para ele no
Panteão.
Decidem que é necessário ir ao Uíge consultar um kimbanda, vão três
membros da Associação. Quando chegam, o velho kimbanda diz que precisa ir
à mata em busca da solução para o caso. Depois volta e afirma que terá de ir
com eles para Luanda. Mas antes, conversaram, o kimbanda passou a falar de
Lau Nkanga:

Questionou-se sobre por que motivo seus restos mortais não tinham sido depositados
no tal Panteão; que Lau Nkanga tinha sido realmente um grande combatente; que ele
que vivera e viajara por quase todo o Congo Português, que convivera com muitos
nacionalistas, nunca tinha ouvido falar tanto de um guerrilheiro como o defunto
Nkanga. Lutara desde Março de sessenta e um até muito tarde, que começara a
combater ainda jovem... (...) comentavam que aquela força e bravura dele não vinha
de Deus, era qualquer coisa que ele tinha adquirido com a intervenção de um
kimbanda, só podia ser, como é que ele conseguia se safar sempre nas operações
mais difíceis? (...) Não jogaria ele, no fundo, com pau de dois bicos, de um lado do
lado da guerrilha e do outro a colaborar com a tropa tuga? Disse... que... aquelas
maldosas palavras e suspeitas não tinham razão de ser, pois tinha e tenho a firme
certeza que o defunto Kanga fizera muito em prol da nossa independência. (p. 171-2)

O kimbanda apresenta, assim, a sua versão sobre quem teria sido Lau
Nkanga, em uma perspectiva que reúne aspectos históricos e mítico-religiosos.
Enquanto essa conversa ocorria em volta de uma fogueira, à noite, os
membros da Associação bebiam e contavam estórias. Depois, passaram a ter
visões a partir dos movimentos das labaredas: "viram gigantes se
metamorfoseando em animais; viram almas penando no inferno; que viram,
real, sílfides pinoteando lá nas alturas; viram elfos a brincar na fogueira"
(CARDOSO, 2012, p. 173). Notam-se, portanto, os mitos extra-africanos,
surgindo outros, ainda, quando o kimbanda traz uma esteira com a qual viajam
para Luanda:

Entretanto, durante o voo que os três notaram que a esteira em que viajavam mais o
kimbanda se desdobrara e transformara em quatro cavalos com asas grandes, as
patas recolhidas para trás, cada um montado no seu... (...) voando, os cavalos
desapareceram para dar lugar a centauros - as caras deles medonhas... (...) voando,
as montadas se metamorfosearam em minotauros... (...) alucinados, três homens
ainda viram três anjos voando pertinho deles - só podiam ser os seus anjos da
guarda, que eles pensaram; maravilhados, viram voando, tronos, serafins e
querubins; voando, os minotauros se transformaram depois em pássaros... (...)
voando, assim, a esteira voltou a ser o assento da viagem deles. Quando chegaram a
Luanda o espanto foi total, pois os viajantes apareceram assim de repente na sede da
Associação, sem que ninguém lhes tivesse visto chegar sentados no tapete voante.
(CARDOSO, 2012, p. 176)

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Mesmo que possa ser algo decorrente da bebida, uma alucinação ou


algo do sonho, chamam a atenção os mitos gregos e o tapete que lembra a
história de Aladim. Voltando ao caso do Panteão, o kimbanda foi até lá, fez
alguns breves rituais na parte onde estavam depositados os restos mortais,
entrando em transe em seguida. Quando voltou a si, afirmou "em voz alta que
os restos mortais que estavam naquele jazigo tinham de ser dali retirados
imediatamente, pois se tratava de um grande assassino" (CARDOSO, 2012, p.
178). Houve preocupação das autoridades em como resolver a questão política
envolvida, mas o kimbanda insistiu que era a única maneira de trazer a
normalidade para o Panteão, que substituíssem pelos restos mortais de um
outro herói; Lau Nkanga, porém, não é mais mencionado nesse capítulo.
Fizeram como pediu o kimbanda, que ainda sugeriu outras mudanças no lugar.
Assim, "o Panteão teve de ser reinaugurado... E tudo ficou na ordem e na paz
dos heróis, dos espíritos e dos génios" (CARDOSO, 2012, p. 180).
Como se nota, a questão político-histórica sobre a definição e
reconhecimento dos heróis nacionais é abordada a partir do mítico-religioso.
De modo semelhante, ocorre no romance A varanda do frangipani (2007a). A
história se passa em uma antiga fortaleza colonial transformada em asilo, onde
ocorre o assassinato de um administrador do local e um inspetor de polícia vai
até lá investigar. O lugar é isolado devido às minas em terra e às pedras no
mar, por isso o acesso só é possível de helicóptero. Lá vive um grupo de
anciãos, praticamente abandonados, esquecidos pela jovem nação
independente. Ao final do romance, é resolvida uma das questões da realidade
histórica representada na narrativa, a destruição das armas que eram
guardadas ali, subentende-se que o local era usado por administradores para o
comércio de armas.
Mas as várias situações relacionadas a essa realidade surgem
juntamente com o mítico, a começar pelo narrador, um morto. Ele se apresenta
como um xipoco, "essas almas que vagueiam de paradeiro em desparadeiro.
Sem ter sido cerimoniado" (COUTO, 2007a, p. 10), uma vez que não lhe
fizeram as cerimônias tradicionais. Ele tinha sido um carpinteiro que trabalhava
para os portugueses na fortaleza, tendo morrido na véspera da libertação

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nacional, sendo enterrado próximo ao frangipani. Até que um dia ele é


acordado porque estão mexendo em sua tumba, ele descobre o seguinte:

os governantes me queriam transformar num herói nacional. Me embrulharam em


glória. Já tinham posto a correr que eu morrera em combate contra o ocupante
colonial. Agora queriam os meus restos mortais. Ou melhor, os meus restos imortais.
Precisavam de um herói mas não um qualquer. Careciam de um da minha raça, tribo
e região. Para contentar discórdias, equilibrar as descontentações. Queriam pôr em
montra a etnia, queriam raspar a casca para exibir o fruto. A nação carecia de
encenação. (COUTO, 2007a, p. 11-2)

O morto, então, quer desfazer esse engano, caso contrário acreditava


que nunca mais teria sossego. Ele consulta o halakavuma, o pangolim, "este
mamífero" que "mora com os falecidos" (COUTO, 2007a, p. 13). Fica decidido
que ele irá tomar o corpo de um vivente, ele passa a "residir" no inspetor que lá
chega para investigar o assassinato, e assim narra a história. Ao final, ele ajuda
o inspetor e os outros anciãos a resolver o problema das armas, quando um
helicóptero lá aparece. É nesse momento, próximo ao desfecho, que ele pensa:

toda minha vida tem sido falsidades. Eu me coroara de cobardias. Quando houve
tempo de lutar pelo país eu me recusara. Preguei tábua quando uns estavam
construindo a nação. Fui amado por uma sombra quando outros se multiplicavam em
corpos. Em vivo me ocultei da vida. Morto me escondi em corpo de vivo. Minha vida,
quando autêntica, foi de mentira. A morte me chegou com tanta verdade que nem
acreditei. Agora era o último momento em que podia mexer no tempo. E fazer nascer
um mundo em que um homem, só de viver, fosse respeitado. (COUTO, 2007a, p.
140-1).

No momento da explosão que derruba o helicóptero que vinha com


gente ligada aos negócios das armas, o morto narrador percebe que a
plataforma que ele ajudou a construir "para servir a matança de prisioneiros
cumpria agora funções de ajudar" os "companheiros viventes" (COUTO, 2007a,
p. 141). Com a explosão, a árvore tinha sido destruída, mas o morto toca nela e
a faz renascer, assim ele vai em direção à árvore. Nesse caminho à árvore, ele
percebe que os demais anciãos estão indo com ele, ficando para trás apenas o
casal formado pelo inspetor e pela enfermeira do asilo. O morto conclui assim a
narrativa:

Aos poucos, vou perdendo a língua dos homens, tomado pelo sotaque do chão. Na
luminosa varanda deixo meu último sonho, a árvore do frangipani. Vou ficando do
som das pedras. Me deito mais antigo que a terra. Daqui em diante, vou dormir mais
quieto que a morte. (COUTO, 2007a, p. 143-4).

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Como se nota, tanto em Noites de Vigília como em A varanda do


frangipani, há o caso do reconhecimento dos supostos heróis nacionais,
resultando numa forma de revisão histórica em que se desvela a inconsistência
desse reconhecimento. CARDOSO e COUTO recorrem ao mítico para
demonstrar esse problema que faz parte da construção da identidade nacional.
Ao analisar as figuras heroicas moçambicanas de Ngungunhane e de
Mondlane, RIBEIRO demonstra que a heroicização é mais uma construção, ou
invenção, do que algo espontâneo: "foi preciso que aqueles que têm autoridade
para definir e colocar em prática políticas de identidade decidissem proceder o
trabalho, inevitavelmente porfioso, de os transformar em heróis" (2005, p. 273).
A heroicização, de que faz parte a "panteonização" (RIBEIRO, 2005, p.
261), pode ser questionada, revisada e reescrita, como se observa no caso de
Ngungunhane na obra Ualalapi de KHOSA (1990) e mais recentemente em As
andorinhas de CHIZIANE (2013). Nesse último caso, a autora também "relê" a
biografia de Mondlane, destacando o papel das mulheres - mãe e avó - na vida
dele. Em Angola, a figura de Agostinho Neto como herói também gera apoio e
crítica, tendo sido inaugurado um memorial em sua homenagem em 2012,
após trinta anos do início da construção.
Mas além das grandes figuras heroicas, ocorre também a heroicização
dos soldados que lutaram nas guerras (anticolonial e civil), entre outros, o que
se questiona nos romances Noites de Vigília e A varanda do frangipani.
Quando o kimbanda fala sobre os feitos de Lau Nkanga, menciona a
desconfiança de que ele poderia ter traído os angolanos e colaborado com os
portugueses. No caso do morto narrador de COUTO, a invenção do herói está
evidente na escolha conforme a raça, tribo e região, pois para fazer a nação,
como afirma RIBEIRO, "não bastavam... a disseminação de uma língua
comum, inevitavelmente a do colonizador, e a exaltação de uma história,
inevitavelmente a da luta contra o colonialismo" (2005, p. 273), era necessário
encontrar "símbolos 'nacionalizáveis', como os heróis, com os quais os
indivíduos se pudessem identificar e o Estado produzir discursos de alteridade"
(ZONABEND, apud RIBEIRO, 2005, p. 273).

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Os romances revelam, por meio do mítico, os falseamentos históricos,


as contradições em torno do estabelecimento dos heróis nacionais. O
questionamento na obra de CARDOSO se dá também com o protagonista
Quinito, que era um criminoso, possuía uma "gangue", até se tornar um
justiceiro e, depois, um combatente do MPLA. Mutilado, torna-se influente na
Associação, sendo seu presidente por muitos anos. Quando morre, observa-se
um grande número de pessoas no cortejo fúnebre, subentende-se que era
admirado. Se poderia ser considerado um herói, então, não seria um herói
"puro", talvez seja essa uma das hipóteses levantadas no romance, de que não
existam heróis imaculados, perfeitos.
Para questionar esse aspecto histórico, CARDOSO recorre ao mítico,
no caso do kimbanda, próprio de uma religiosidade angolana, mas apresenta
também mitos extra-africanos, em grande parte europeus, como sílfides, elfos,
centauros, minotauros, anjos, assim como a esteira voadora remete à narrativa
árabe de Aladim. Sobre isso, ABDALA JR. já afirmou que CARDOSO utiliza
repertórios míticos tanto locais como universais para abordar as questões
angolanas (2007, p. 258-9). Assim faz em outros romances, como em Maio,
Mês de Maria (1997), em que aborda as questões históricas do maio de 1977,
em Angola, utilizando a perspectiva mítica do culto à santa católica Nossa
Senhora de Fátima.
COUTO utilizou um morto narrador, o qual consulta o animal mítico
halakavuma, ao final os mortos se dirigem à árvore, numa forma de
reconciliação com as tradições, ameaçadas que estavam pelo modo como os
anciãos eram tratados, abandonados naquele lugar. O morto que, quando era
vivo, nada tinha feito pela libertação, pelo contrário, tinha trabalhado para os
portugueses construindo as prisões e objetos de castigo, reverte a situação ao
ajudar na destruição do depósito das armas e do helicóptero. Toda essa
questão histórica surge por meio do mítico, o morto acerta contas com a
história de seu povo enquanto morto, recupera-se tanto historicamente quanto
em relação às tradições, para então, quiçá, tornar-se mesmo um herói.
Enquanto ele e os anciãos seguem à árvore, fica para trás um casal que
poderá dar à luz novas gerações, o país tem a chance de recuperar a
harmonia.

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Ambos os escritores têm um postura inquieta em relação ao mítico,


abordando as tradições, muitas vezes, em tensão, como afirmam FONSECA e
CURY sobre COUTO (2008, p. 77). Tanto podem recorrer às tradições como
forma de valorizá-las como também para criticá-las, para mostrar que algumas
não se sustentam mais, por exemplo, as que oprimem as mulheres, caso de
Farida em Terra sonâmbula (2007b) e de outras mulheres das obras de
COUTO; ou que não se isolam, que não há "pureza" cultural, como nos casos
de hibridismo nas obras de CARDOSO.
Outro questionamento é quanto à separação entre o mítico e o
histórico, os autores recorrem ao mítico-religioso, também, porque é algo que
faz parte da realidade, sendo a necessidade de heróis e a panteonização os
mais claros exemplos. Nesse sentido, como afirma ELIADE, mesmo na
situação histórica mais terrível, como na Segunda Guerra Mundial, "nos
campos de concentração... homens e mulheres cantaram romanças, escutaram
histórias..." (1996, p. 15). Para o autor, mesmo quando perde os valores
mágico-religiosos, o mítico permanece e é característica humana.
Em suma, CARDOSO e COUTO são autores que se aproveitam da
riqueza do universo mítico, utilizam-no como fonte para a literatura por si só,
mas também recorrem a esse universo de modo a refletir aspectos da
realidade, como fonte para a representação de situações históricas. É o que se
observou com os mortos e a escolha dos heróis nacionais, desvelando a
"encenação" da nação, como bem disse o morto narrador de COUTO.
Subvertem a divisão entre mítico e histórico, problematizando a definição dos
heróis, mas resulta em suas obras, de qualquer forma, aproximando-se da
perspectiva de ELIADE, que a sociedade se caracteriza pelo histórico e pelo
mítico.

REFERÊNCIAS

ABDALA JR., B. De Voos e Ilhas: Literatura e Comunitarismos. 2.ed. Cotia:


Ateliê, 2007.

CARDOSO, B. Noites de Vigília. São Paulo: Terceira Margem, 2012.

___________. Maio, Mês de Maria. Porto: Campo das Letras, 1997.

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CHIZIANE, P. As andorinhas. Belo Horizonte: Nandyala, 2013.

COUTO, M. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia das Letras,


2007a.

__________. Terra sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.

ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o simbolismo mágico-


religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

FONSECA, M. N. S. FONSECA e CURY, M. Z. F. Mia Couto: Espaços


ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

KHOSA, U. B. K. Ualalapi. Lisboa: Caminho, 1990.

RIBEIRO, F. B. A Invenção dos Heróis: Nação, História e Discursos de


Identidade em Moçambique. Etnográfica. Vol.IX. N.2. Lisboa, 2005, p. 257-75.

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SUBJETIVIDADES: GÊNERO, LITERATURA E HISTÓRIA EM CHANGES

MEYRE IVONE SANTANA DA SILVA (UFMT)

Ama Ata Aidoo é uma escritora que tem transitado pelos mais diversos
gêneros literários, sendo poeta, dramaturga, contista e romancista. Nascida em
Gana em 1942, teve a oportunidade estudar nas melhores escolas do país,
graduando-se na Universidade de Gana, localizada em Legon. Suas obras
publicadas incluem duas peças, The Dilemma of a Ghost(1965) and
Anowa(1969); duas coleções de contos, No Sweetness Here(1970) and The
Girl who Can and Other Stories; dois romances, Our sister Killjoy(1977) and
Changes(1991); e uma coleção de poemas intitulada Someone Talking to
Sometime(1985).

Aidoo não narra apenas histórias em Gana, mas teoriza, inscrevendo-


se como uma das precursoras de uma teoria feminista no continente africano.
A autora utiliza sua obra literária como um meio de intervenção na ordem social
vigente e de reconstrução do espaço de poder feminino na sociedade ganesa
pós-colonial. Aidoo argumenta que a presença feminina é primordial neste
processo de desenvolvimento, pois a simples inversão de papéis, ou seja, de
homens europeus por homens africanos, como propagou a retórica
nacionalista, pode ser insuficiente no processo de reconstrução da nação.
Neste sentido, ao propagar a necessidade de ocupar as esferas de poder com
a presença feminina, a obra de Aidoo pode ser concebida como um germe de
um feminismo africano, um movimento que tem compromisso de promover uma
mudança na situação feminina naquele contexto.

Aidoo tem sido uma das poucas autoras que revela publicamente sua
adesão ao movimento feminista. No entanto, a autora repudia uma teoria que
priorizou as experiências das mulheres brancas ocidentais em detrimento das
mais diversas Outras. Posto assim, a partir das histórias das suas
personagens, a autora une-se a outras mulheres no intuito de formular uma
teoria feminista que dê visibilidade às questões das mulheres africanas. Esta é

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a singularidade desta teoria que denuncia o privilégio do patriarcado, bem


como seus novos poderes criados ou ampliados pelo sistema colonial, mas,
também, sugere uma união entre homens e mulheres para superar os
problemas que atingem Gana e uma grande parte das nações africanas.

Por isso, suas personagens são ambivalentes, fragmentadas,


buscando um espaço entre dois mundos: o masculino e o feminino, o africano e
o ocidental, ou melhor, as angústias de suas personagens refletem os
sentimentos contraditórios de muitas mulheres nas nações africanas pós-
coloniais. As personagens de Aidoo subvertem a lógica masculina e colonial,
ao tentar compreender as implicações da colonização na vida feminina.

No ensaio, Unwelcome Pals and Decorative Slaves, Aidoo ressalta que


as personagens femininas no romance Things Fall Apart de Achebe nunca
ocupam o centro da narrativa. Elas são sempre personagens periféricas,
exercendo papéis completamente de acordo com as convenções sociais e
valores tradicionais. Sobre o romance, o próprio autor declarou que um dos
seus objetivos seria dar uma resposta aos colonizadores, reescrevendo a
história de seu povo. Portanto, Aidoo afirma que se Achebe pensou em utilizar
a literatura para reeescrever a história, seu propósito foi plenamente alcançado
em relação a história dos homens africanos, pois há um silenciamento do
sujeito feminino em Things Fall Apart.

Aidoo não refuta apenas a retórica nacionalista, presente em Things


Fall Apart e em outras obras do período de descolonização de África, mas
também questiona as feministas ocidentais que excluíram de sua agenda
algumas questões importantes, tais como raça, e classe. Neste sentido, as
mulheres do mundo ocidental são acusadas de centralizar sua ênfase na
opressão das mulheres brancas pelo patriarcado, negligenciando outros níveis
de opressão que atingem a mulher negra, colonizada e de Terceiro Mundo. As
feministas costumavam fazer uma analogia entre a opressão das mulheres e a
dos sujeitos coloniais, entretanto, ao aplicar tal analogia, deixavam de
considerar as especificidades das ideologias patriarcais e colonialistas, além de
homogeneizar tanto as mulheres quanto os colonizados. Desta maneira, o
sujeito colonial passa a ser um homem enquanto o sujeito feminino será

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sempre uma mulher ocidental e universal. Quando estes paralelos são


construídos, a mulher negra é excluída enquanto sujeito feminino e sujeito
colonial.

No romance Changes, publicado em 1991, Aidoo traz para o centro de


sua narrativa as contradições da vida cotidiana de sua protagonista Esi Sekyi,
uma profissional bem sucedida, capaz de subverter os papéis femininos e as
convenções sociais ao divorciar-se do marido, tornando-se a segunda esposa
de um charmoso e poderoso homem polígamo. Esi também refuta a
importância da maternidade em sua cultura ao deixar sua única filha aos
cuidados da sogra.

Em Changes, romance ambientado em Acra, capital de Gana, Esi mora


em uma casa confortável cedida pelo governo, tem um carro, faz muitas
viagens e tem uma extrema preocupação com sua carreira. Vivendo e
trabalhando na zona urbana, Esi constantemente encontra algumas amigas
para beber e conversar sobre sexo e a respeito das dificuldades da vida
conjugal. Apesar de ter apenas uma filha, a protagonista acha que ter mais
filhos pode restringir sua liberdade e interferir em sua carreira, por isso, não dá
atenção aos apelos do marido, simplesmente resiste sua imposição. Esi não
parece preocupada com o rótulo de semi-estéril e despreza o status que
poderia receber na sociedade se quisesse ter outros filhos e tivesse a sorte de
conceber um menino.

Ao construir uma personagem africana que tem apenas uma única


filha, Aidoo liberta sua personagem da obrigatoriedade de ter muitos filhos,
dando-lhe o direito de escolha. Em entrevista a Adeola James, Aidoo
demonstrou sua indignação com a supervalorização da maternidade em
detrimento de outros papéis exercidos pelas mulheres africanas. A autora
reitera que “tradicionalmente, a mulher não pode ser nada além de mãe.”
(Aidoo, 1986 13)

Por outro lado, o fato de ter uma filha única, receber um salário menor
do que o de sua esposa e, de certa forma aceitar passivamente, faz com que
Oko, o marido de Esi, sinta-se menos masculino e menos africano. Por isso, na
tentativa de confirmar para si e para os amigos sua masculinidade, Oko, em um

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momento de descontrole força uma relação sexual com sua esposa.

Oko puxou os lençois, empurrou Esi, e ficou sobre ela. Esi começou a protestar, mas ele
continou fazendo o que havia determinado. Ele apertou seus seios, forçou a língua dentro da
sua boca, afastou suas pernas utilizando a força e iniciou os movimentos até penetrá-la.
Pronto. Estava terminado. (Aidoo,1991:9 tradução minha)

Esi começou a pensar que aquele ato teria sido um estupro marital. (Aidoo,1991:11 tradução
minha)

Oko pratica o ato violento como forma de resgatar uma identidade que parece
esvair-se, escapando-lhe dentre os dedos. Se Oko, por um momento, sente-se
seguro ao resgatar sua posição, Esi Sekyi considera a atitude de Oko, violência
sexual, ou seja, o que aconteceu naquela manhã, enquanto vestia-se para ir ao
escritório, foi um estupro marital. Desta vez, a identidade africana de Esi
parece fragmentar-se e mesmo tendo a certeza de ter sofrido violência sexual,
não consegue expor publicamente o motivo do divórcio, temendo ser
ridicularizada, pois o termo estupro marital teria algum significado nas línguas
ocidentais, no mundo ocidental, mas em Gana, África, o conceito não passava
de uma invenção feminista. Esi tenta explicar o conceito inexistente em um
contexto onde sexo é algo que o homem tem direito e deve tê-lo quando quiser.
Neste caso, Oko tinha direito a ter relação sexual com sua esposa a qualquer
momento, mesmo sem o seu consentimento. Enquanto pensava no problema,
imaginava-se ouvindo vozes fervorosas gritando: “este feminismo importado
está nos destruindo.” (Aidoo,1991: 55)

Um movimento feminista importado, mais um artefato ocidental. Em um


primeiro momento, a protagonista não consegue sair deste impasse, a situação
incoveniente de estar presa a dois mundos aparentemente excludentes. Ou
afirma sua subjetividade e refuta certas práticas tradicionais, correndo o risco
de ser acusada de renunciar a identidade africana, ou não questiona a
sociedade patriarcal e afirma sua identidade. Como afirma Marie Linton Umeh,

A mulher africana, mais que o homem africano, é colocada contra parede. A fim de liberar-se,
ela precisa renunciar sua identidade africana. Se deseja afirmar sua africanidade, ela deve
renunciar sua independência e sua autosuficiência. De qualquer forma, há perdas para esta
mulher que sempre se sentirá subalterna ao tentar espaço entre dois mundos.
(Umeh,1986:175).

Desta forma, sempre haverá uma sensação de perda para as mulheres como
Esi que se vêem presas entre estes dois mundos, em um lugar de negociação,

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onde a cultura ocidental, assim como as instituições tradicionais precisam ser


reinventadas. Tanto Esi quanto Oko, seu esposo, precisam encontrar um ponto
de equilíbrio e negociação.

Segundo Stuart Hall, aqueles, como Esi e Oko, que habitam um entre-
lugar geralmente não conseguem renunciar valores e heranças de culturas
muito distintas. No entanto, há uma necessidade de aprender a interagir com
culturas diferentes e habitar este entre-lugar onde é necessário reinventar as
linguagens a fim de compreender e traduzir o que tornou-se estranho e fora do
lugar. (Hall,2003:89) No contexto pós-colonial, as identidades são ambivalentes
e fragmentadas, contraditórias e em constante fluxo de negocioção e
reposicionamento.

Entretanto, enquanto Esi parece aceitar a contradição que sustenta sua


identidade, Oko continua preso a fantasia de uma identidade estável, unificada,
indissolúvel, entrando em paranóia ao imaginar os outros homens africanos em
sua comunidade, rindo de sua situação. Oko sabe que alguns amigos
duvidarão de sua masculinidade, pois não consegue exercer seu papel de
marido.

Esi, após divorciar-se do marido, passa a ter um relacionamento com


um homem muçulmano. Neste novo relacionamento, sua condição seria a de
segunda esposa. Apesar dos conselhos da mãe e da avó sobre seu
relacionamento, Esi, completamente envolvida por um homem sedutor, decide
ir adiante, tornando-se segunda esposa de Ali. Para ela, a poligamia lhe dará
liberdade para ficar mais tempo em casa, trabalhando até tarde sem preocupar-
se com filhos ou marido. Na condição de segunda esposa, ela teria outra
mulher para dividir a atenção do marido.

Ali Kondey, um homem rico, é muçulmano e defende a poligamia.


Segundo ele, esta instituição faz parte de sua identidade, pois acredita que em
África sempre existiu poligamia e o repúdio a esta instituição demonstra a
aceitação da norma imposta pelos colonizadores. Ali revela sua resistência à
interferência ocidental através da reiteração da poligamia.

Poligamia. Bigamia. Para as pessoas que criaram este conceitos, estas instituições podem ser
criminosas, como homicidio, estupro, e roubo. Por que nós aprendemos a descrever nossa

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dinâmica cultural com o mesmo tom de condenação utlizado pelos nossos senhores? Há
casamentos em África, Esi, na parte muçulmana, ou na não muçulmana. Em nossos
casamentos, um homem escolhe se quer ter uma ou mais esposas. (Aidoo,1991:90)

O posicionamento de Ali Kondey em relação a poligamia revela o ponto de


vista de muitos intelectuais africanos que no período pós-independência
defenderam a adesão às instituições tradicionais como resistência ao
imperialismo ocidental e sinônimo da identidade africana.

Ngugi Wa Thiong, escritor e revolucionário queniano, por exemplo,


reiterou a prática da mutilação genital. A prática foi amplamente defendida
pelos revolucionários do movimento Mau Mau como forma de resistência às
imposições da igreja católica. Neste caso, podemos entender a ambivalência
de mulheres que decidem resistir às instituições tradicionais.

Durante os rituais que antecedem o matrimônio, Ali visita a aldeia onde


vivem os parentes de Esi para fazer a proposta de casamento, além de
explicitar sua intenção de torná-la sua segunda esposa. Em um primeiro
momento, a família de Esi não recebe Ali, pois ele apenas poderá fazer o
pedido na presença de um ancião representante de sua família. Da segunda
vez, já com o representante presente, o pedido é realizado e Ali entrega muitos
presentes à família da futura esposa. Os presentes de Ali funcionam como o
dowry, quantia devida pelo noivo e sua família a família da noiva. Algumas
feministas questionam o pagamento do dowry, por exemplo, Molara Ogundipe-
Leslie afirma que esta quantia equivale a um pagamento por uma compra, na
qual a mercadoria seria a noiva.( Ogundipe-Leslie 1993)

Após o casamento, Ali passa a não visitar a segunda esposa com tanta
freqüência, pois prefere passar as datas festivas, como o Natal, com a primeira
esposa e os filhos. Em um destes momentos de solidão, Esi lembra-se dos
conselhos da avó a respeito do desprivilégio da segunda esposa. Neste tipo de
acordo, Ali parecia ser o único beneficiado, um homem sem compromissos,
sem muitas responsabilidades. Esi começava a entender que esta versão
moderna de poligamia apenas beneficiava o patriarcado.

Por outro lado, Fusena, primeira esposa de Ali, desespera-se ao tomar


conhecimento da intenção do marido de ter uma segunda esposa, e mesmo

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sendo muçulmana, o que sugere a aceitação da poligamia, esta possibilidade


nunca existiu em seu relacionamento com Ali. A atitude do marido parece uma
traição, pois no relacionamento deles havia um pacto silencioso. Fusena optou
por não graduar-se ou pós-graduar-se, preferindo assumir os papéis de mãe e
esposa. Enquanto Ali estudava em Londres, Fusena cuidava da casa e dos
filhos. A atitude de Fusena, assim como a de Esi, ao aceitar a condição de
segunda esposa, é também surpreendente, pois não apenas as tradições, mas
também sua religião permite a poligamia.

Ali defende a poligamia, mas casa-se com Esi sem o consentimento de


sua primeira esposa, além de não dividir sua atenção igualmente entre as duas
esposas. Neste contexto, Ali defende as instituições, clamando uma identidade
africana, mas não hesita em burlá-las quando necessário para satisfazer seus
próprios interesses. A poligamia proposta beneficia uma única parte, a de Ali
Kondey. Até mesmo Esi, em um primeiro momento, pensa que será
beneficiada com a nova situação, no entanto, não consegue superar as longas
esperas e os dias intermináveis sem um único telefonema.

No romance Changes, Aidoo questiona a poligamia em uma sociedade


urbana e pós-colonial. Durante o período pré-colonial e na zona rural, a
primeira esposa participava do processo de escolha e aprovação da segunda
esposa. Naquele contexto, a poligamia era aceita, senão encorajada,
principalmente entre os ricos e poderosos, pois significava sinônimo de status
na sociedade ter muitas esposas e muitos filhos homens para ajudar no
trabalho na lavoura. Isto não se aplica ao contexto urbano onde a instituição
passa a servir interesses individualistas.

Ao subverter os aspectos culturais que geralmente funcionam em


detrimento dos interesses femininos, a narrativa de Aidoo ocupa um espaço
simbólico na reconstrução dos papéis femininos na sociedade ganesa. Neste
sentido, sua obra estabelece uma relação entre o mundo ficcional e a realidade
extranarrativa. O próprio título da obra, Mudanças, já nos informa a intenção da
autora de informar ao leitor que após a colonização, as estruturas sociais foram
reinventadas. Mesmo os relacionamentos íntimos e as questões cotidianas
geralmente estão intimamente relacionados às questões de poder. Ao focalizar

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o local feminino em uma sociedade africana pós-colonial, Aidoo nos informa a


respeito da existência de um lugar diverso daqueles que fazem parte das
representações que povoam os livros de história, as obras literárias, os
discursos científicos e o nosso imaginário.

REFERÊNCIAS

ACHEBE, Chinua.Things fall apart. London:Heineman,1976.

AIDOO, Ama Ata. Changes: A love story, London: The Women’s Press, 1991
AIDOO, Ama Ata. Unwelcome pals and decorative slaves or glimpses of
women as writers and characters in contemporary African literature. In:
AZODO, Ada Uzoamaka; WILLENTZ, Gay (orgs) Emerging perspectives on
Ama Ata Aidoo.Trenton: African World Press, 1999.

HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In MONGIA, Padmini (org)


Theorizing black feminisms: The visionary pragmatism of black women.
London and New York: Arnold and Oxford,1997.

OGUNDIPE-LESLIE, Molara. African women, culture and another development.


In STANLEY, M. James; BUSIA, Abena (orgs) Theorizing black feminisms:
The visionary pragmatism of black women. London and New York,
Routledge, 1993.

THIONG, Ngugi Wa. Writing against colonialism. Wembley: Vita Books,


1986.

UMEH, Marie Linton. Reintegration with the lost self: A study of Buchi
Emecheta. In DAVIES, Carole Boyce Ngambika: Studies of women in
African literature. Trenton: African World Press, 1986.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: FESTAS NA BAHIA DE TODOS OS SANTOS

PROPOSITORES: FÁTIMA TAVARES (UFBA); FRANCESCA BASSI (UFBA) E


CLEIDIANA PATRICIA COSTA RAMOS (UFBA).

Ementa:

A proposta deste GT é reunir pesquisadores dedicados ao estudo das

manifestações festivas, que são um dos mais fortes traços identitários dos

municípios localizados no entorno da Baía de Todos os Santos. Tanto em

Salvador, capital do Estado, como em outras localidades, eventos em que se

imbricam dimensões religiosas e profanas (procissões e festas de largo, shows

musicais, espetáculos como nos festejos de São João) constroem memórias

através de suas rememorações e ressignificações, constituindo laços de

reconhecimento ou de diferenciação entre comunidades de áreas urbanas,

rurais e litorâneas. O estudo dessas manifestações pode ajudar a compreender

as dinâmicas entre tradição/modernidade; religiosidade/religião e

cidade/comunidade. Embora, na Bahia, as festas ocupem um lugar de

destaque na organização sociocultural de diferentes localidades, a ponto de o

Carnaval ter se tornado uma poderosa força econômica para Salvador, a sua

abordagem a partir da pesquisa acadêmica continua reduzida diante da sua

importância. Mas, nas últimas três décadas, principalmente, os pesquisadores

desse campo têm aprimorado a busca por uma estruturação teórica e

metodológica específica a partir de bases antropológicas, históricas e

sociológicas. Promover a interação e debate entre esses estudiosos é de

extrema importância para a percepção sobre avanços e desafios na produção

de conhecimento sobre a presença desses eventos nas redes das trocas

culturais baianas.

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A FESTA DO DIVINO EMSALVADOR: UMA PERFORMANCE


COLONIZADORA?

VIVIANE PARAGUAÇU NUNES (UFBA)


Resumo:
A tradicional festa do Divino Espírito Santo na cidade do Salvador acontece há
mais de dois séculos e tem como personagem principal um menino, que
durante a sua performance realiza a libertação depreso (s) do sistema
penitenciário da Bahia. Este estudo de mestrado possui um caráter
multidisciplinar que abarcam os campos: cultural,religioso, etnográfico,
histórico, sociológico e com bases nos estudos daperformance e da história
oral. Entendemos que estes festejos compõem uma fronteira entre a Arte e o
Sagrado, entre a performance do menino Imperador e a fé no Divino.
Palavras-chave: Divino, performance, tradição.
Introdução:
A festa do Divino Espírito Santo ocorre todos os anos no período de
Pentecostes, ou seja, cinquenta dias após a páscoa, e constitui-se em uma
manifestação cultural herdada diretamente dos colonizadores Açorianos. Seu
protagonista–o Menino Imperador,simboliza aomesmo tempo oEspírito Santoe
o poder Imperial. Eleito anualmente pormembros da Irmandade do Divino,
organizadora destes festejos, a performance que este “ator mirim” realiza é o
cerne deste estudo em fase de conclusão.Neste sentido, este artigoconstitui-se
como um recorte destapesquisa de mestrado etem comoobjetivo analisar os
elementos estéticos e religiosos, a tênue fronteira entre religião e arte, mas
especificamente, adesta performance que se constituino ápice desta festa-o
momento da soltura do(s) preso(s). Apontamos como uma das
proposiçõesdeste estudo, que as festas religiosas organizadas por estae outras
instituições similares(braçosda Igreja Católica), possuíam em suas origens,um
caráter político colonizador. Segundo a professora Dra. Edilece Couto, no
século XIX na cidade do Salvador, “a vivência religiosa era, em grande parte,
organizada pelas irmandades, associações leigas para a promoção do culto
aos santos. Os irmãos estavam reunidos por critérios sociais e de cor.”
(COUTO, 2013, p.1).

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Desta forma, essas associações leigas funcionavam para diversos fins sociais
e religiosos, um deles, talvez o mais importante, era a promoção de suntuosas
festas para os seus santos padroeiros. Quanto mais rica a Irmandade mais
incrementos esta festa recebia.Na festa do Divino Espírito Santo que acontece
no bairro do Santo Antônio além do Carmo não era diferente.
Os fundadores da Irmandade eram os Açorianos e seus descendentes,
segundo os dados da própria Irmandade do Divino em Salvador, esta
Irmandade é uma referência da cultura açoriana na Bahia e fora criada em
fevereiro de 1770. A sua manifestação mais forte era a festa do Divino e até os
dias de hoje é mantida da “mesma forma”. As modificações foram poucas
durante todos esses anos, ainda segundo os seusmembros, a principal
mudança na sua estrutura, foi em relação ao Imperador que era um adulto e
passou a ser uma criança de até doze anos de idade. Esta mudança ocorrida
em meados do século XIX não possui maiores informações sobre os motivos.
No entanto, o historiador William de Souza Martins (2008), que trata da
vertente transgressora da festa, em seu artigo: “Divina Transgressão. A festa
do divino arrastava multidões e dava dor de cabeça às autoridades do Brasil
Colonial”. Ele conta como esta festa foi considerada uma “ameaça à ordem
pública” e gradativamente, foi desaparecendo das grandes cidades,
permanecendo majoritariamente em municípios pequenos e medianos.
Nesta passagem do texto, William de Souza Martins diz que foi no ano de
1765, em Salvador que “um grupo de devotos da Irmandade do Divino
organizou uma folia com acompanhamento musical de tambores e pandeiros,
seguidas por mulatos”. Conta ainda, que o governo da Bahia (nesta época,
formado por uma junta interina composta do arcebispo, do chanceler do
Tribunal da Relação e de um comandante militar) “entrou em pânico” quando
soube que a comitiva estava determinada a “soltar os presos de dívidas civis,
pagando eles – isto é, os irmãos do Divino- toda a quantia por que estavam
presos, mas sem requerer mandado de soltura, tendo na ideia de que o
carcereiro lhes devia soltar, sem outra alguma diligencia prévia”. (MARTINS,
2008, p. 36).
A irmandade tinha ainda, a intenção de ofertar um jantar público para os
pobres, com “fartos toneis de vinho e império com música”. Este registro,

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demonstra alguns fatos importantes: que a festa em Salvador realmente iniciou


em 1765; que a Irmandade foi “registrada” somente após este episódio no ano
de 1772 (data oficial da sua fundação); que pelo relato era uma festa ainda
desconhecida das autoridades; e, acima de tudo, demonstra o quanto as
autoridades temiam os negros e seus descendentes, segundo um documento
(uma carta enviada ao Conselho Ultramarino), representavam três quartos dos
habitantes da Bahia e participavam dos festejos.
O autor, registra ainda, que a folia foi realizada, “mas acompanhada apenas
por doze irmãos brancos da Irmandade - e com a condição de que o
“Imperador se abstivesse da insolência de mandar parar gente na rua para o
cortejar”. E os jantares públicos foram proibidos. (Idem, p. 36)
Com isto, entendemos o caráter subversivo da festa, e como ele foi
rapidamente contido, pois, os negros e pardos foram impedidos de
protagonizar e até de participar mais ativamente desta festa durante muitos
anos. Era preciso impedir, como disse Martins, “o envolvimento desta
população com os rituais de alteração simbólica da ordem e da hierarquia
social, característicos daquelas festas”. (Idem, p.37)
Em entrevista, o atual Juiz da Irmandade, Paulo Silva, informa que o primeiro
Imperador negro da história desta festa foi no ano de 1984 e que este era filho
de um homem importante da cidade. Ou seja, era negro, mas não era
“qualquer negro”, era filho de um secretário de educação do Município. O
menino, Alex Cerqueira Aleluia, foi o primeiro Imperador negro da Festa do
Divino em Salvador. Este fato marcou a história da Irmandade e a partir deste
ano, começou a haver, progressivamente, uma maior “abertura” para que
pessoas das classes subalternas pudessem participar da disputa para ser
“Imperador”. Ainda nesta entrevista, Paulo Silva, conta que os Imperadores
eram escolhidos sempre por serem da classe alta, ou seja, “somente os
meninos ricos”, podiam ser Imperadores do Divino, pois a festa era bancada
pela família do Imperador. Esta família por sua vez, fazia questão de mostrar-
se para a sociedade, pois, ter um filho ou neto Imperador do Divino era um
orgulho para estas famílias e, principalmente, um pretexto para usando uma
palavra da moda – ostentar- as suas riquezas.

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Corroborando com a informação de que esta era uma “Festa de Elite”, em


Notícias da Bahia de 1850, Pierre Verger, narrando sobre as festas da Bahia,
oferece a seguinte notícia:
[...] Um jovem menino em geral filho de lojista, foi eleito para ser Imperador do
Divino até o domingo de Pentecostes (...) durante o seu reino efêmero, o
menino é considerado como tendo uma espécie de autoridade espiritual. Ele é
rodeado por uma corte, a imperatriz e os ministros, todos mais ou menos da
sua idade.(VERGER, 1981, p.93)
No entanto, a presença de Imperatrizes não é destaque nas festas de
Salvador. Marcos Muniz, mestre de cerimonias da Irmandade, conta em
entrevista que as festas eram muito lindas e muito ricas antigamente (período
que corresponde ao predomínio de membros da elite soteropolitana como
Imperadores), que a imprensa estava sempre presente e, que um dos
Imperadores, que ele não lembrou o ano, mandou fazer toda a sua
indumentária na Espanha. Completando que “foi um verdadeiro luxo! ”
Consta na “galeria de fotos” dos Imperadores, na sede da Irmandade, numa
sala no primeiro andar no altar lateral da Igreja de Santo Antônio Além do
Carmo, fotos de Imperadores desde 1937 até o ano de 2013, com algumas
poucas lacunas, dentre essas fotos contamos apenas dois Imperadores
negros, o primeiro em 1984, como já citado e, o segundo em 2009, Adailson
Ângelo Santos da Silva.
Inclui-se também, nesta galeria a presença de três meninas Imperatrizes ao
lado de seus irmãos Imperadores, nos anos de 1953, 1974 e 2006. Perguntado
sobre este fato incomum, Muniz informou que: “se o menino tiver uma irmã em
idade permitida (8 a 12 anos mesma idade exigida para ser Imperador), esta
pode ser coroada Imperatriz, mas não é obrigatório, é opcional”. No entanto, o
nome das Meninas Imperatrizes não consta nos livros ou atas da Irmandade,
não são registrados. Podemos depreender daí que elas foram meras figurantes
no espetáculo do Império Divino, que a sua real importância, no ritual, é ínfima.
O papel feminino é bem demarcado dentro da Irmandade do Divino, que por
sua vez, demonstra bem a nossa antiga família patriarcal. Não há na festa
aspectos visíveis de subversão da tradição. As mulheres executam papéis
marcadamente femininos, como limpar, cozinhar, servir os lanches, apesar de

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não haver de forma assumida um caráter “machista” dentro da Irmandade,


como afirmam os seus próprios membros.
No entanto, podemos entender que o “Império do Divino”funcionou como uma
forma de ostentação de riquezas e poderes, discriminaçãosocial e racial, bem
como econômicae política, e foiutilizado, conforme pudemos apurar, pela elite
soteropolitana, como controlador do espaço públicoeaté nas questões
degênero, já que a participação feminina,assim como ados negros e dos
pobres erabastante restrita.

1. Uma Performancecolonizadora?

Podemosencontrar a raiz destes festejos, a partir do século XVII na corte de


Luiz XIV, na França, quando essas celebrações das monarquias ganharam
grande repercussão, principalmente com o surgimento do absolutismo e o
fortalecimento dos Estados Nacionais. Com isto, ocorreu a reapropriação de
antigas tradições ligadas às festas gregas e romanas, tendo por finalidade
homenagear as figuras reais. Segundo o artigo de Cybele Vidal Neto
Fernandes:
Naquela época, observou-se a reapropriação de antigas tradições ligadas às
festas gregas e romanas, para homenagear a figura divina do rei e criar os
magníficos cenários das festas reais, que se tornaram cada vez mais
elaboradas. Sua realização promoveu a formação de equipes dos mais
diversos profissionais, cada vez mais bem preparadas.(FERNANDES, 2011,
p.52)
Esse modelo francês espalhou-se por toda a Europa, inclusive em Portugal,
que por sua vez, ampliou e enfatizou essas cerimônias com elementos
barrocos de dramaticidade e excesso. Ainda segundo Fernandes as
celebrações dos séculos 17 e 18 tinham ênfase na festa barroca, com todos os
elementos que traduzissem o dramático, o excesso, o simulacro, o êxtase, a
luz, a vida, a morte. Portugal soube interpretar com entusiasmo esse
fenômeno, com celebraçõescomemoradas com toda a pompa, fosse na capital
ou nas demais cidades e vilas do país e das colônias. Esse modelo alcançou o

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Brasil de forma oficial, ou chegou através dos artistas e artífices


migrantes.(Idem).
Dessa forma, podemos “localizar” aorigem desta tradição colonialista,que nos
chegou de Portugal e aqui se instalou até os dias de hoje,com a finalidade de
encantar, de demonstrar a força e o poder colonizador e, ao mesmo tempo,
encantar e trazer os valores e ideologias Imperialistas para os recém
colonizados.
Conforme vimos acima, uma das maiores e mais significativas mudançasna
festa se deu nos finais do século XIX, quando o Imperador passou a ser
“representado” por uma criança de até doze anos de idade, pois segundo o
ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) em seu art 2: “Considera-se
criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos e, adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.
Segundo conta Janival Augusto da Silva, um dos membros mais antigos e
presentes da Irmandade, essa mudança se deu por conta da “simplicidade e
pureza” que a criança representa, sendo mais indicada, portanto, para
representar o poder do Divino, o poder libertador, no entanto, os estudos do
historiador Willians Martins, conforme vimos, mostra que foi o poder repressor
do Estado Português, que “forçou” essa modificação, pois, um Imperador
Menino e sua Corte, oferecia menos perigo que um Imperador adulto, diante de
uma grande população negra, que tinha de ser mantida sob forte controle, por
medo de revoltas.
Essa prática católica colonial renovou-se e, ao mesmo tempo, enfrentou e
enfrenta os novos desafios e obstáculos decorrentes das transformações da
sociedade soteropolitana, que aos poucos foi empurrando essa festa, outrora
tão importante, para a periferia dos festejos soteropolitanos. Percebemos que
ela atravessa nos dias de hoje, grandes dificuldades, como a pouca
participação popular e escassa divulgação midiática. Os motivos são amplos e
diversificados, podemos trazer alguns dados dosestudosde Martha Abreu,
sobre a festa no Rio de Janeiro, que talvez, também possam ser associados,
ao que aconteceu desde os primórdios da festa em Salvador:
De uma forma geral, grande parte das elites políticas e intelectuais, dentro do
espírito liberal e secular do período, assumiu uma posição anticlerical e,

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progressivamente, associou o catolicismo ao obscurantismo e ao atraso;


algumas autoridades policiais e municipais condenaram as festas nas ruas,
com suas barracas e diversões, por serem locais de jogos e vagabundagem; os
médicos por sua vez, passaram a considerar as festividades religiosas como
bárbaras, perigosas, vulgares e ameaçadoras da “família higiênica”, e,
finalmente, a liderança religiosa começou a se preocupar mais
sistematicamente com as ditas deficiências do catolicismo brasileiro, marcadas
pelo despreparo do clero e pela prática religiosa distantes dos cânones
oficiais.(ABREU, 1999, p.37)
Como sugere esta autora, tantas transformações exigem uma investigação
mais aprofundada e embasada histórica e geograficamente, portanto, para não
deixarmos ao largo, citaremos algumas modificações ocorridas em Salvador
após a República.
Segundo os estudos supracitados de Edilece Couto, as transformações na
estrutura urbana, tais como, as demolições de algumas Igrejas e partes de
outras, no sentido de “modernizar” a cidade, acabaram por reordenar o espaço
urbano e cultural, atingindo em cheio, a conformação das Irmandades em
Salvador:
A construção da Av. Sete de Setembro foi a mais controvertida das obras de
Seabra. O governador tinha o apoio do arcebispo Dom Jerônimo Thomé da
Silva (18931924), que aceitava suas ideias de civilidade e modernização.
Estavam previstas a destruição de parte da igreja do Mosteiro de São Bento,
da Igreja de São Pedro Velho, das fachadas da Igreja do Rosário e do
convento das Mercês (irmãs Ursulinas). A sede do distrito de São Pedro foi
demolida. As demais igrejas perderam parte de suas edificações. Porém,
houve inúmeras manifestações contrárias às demolições, especialmente da
igreja do mosteiro beneditino. O abade Majolo de Caigny movimentou a
sociedade baiana na defesa do edifício. Publicou matérias nos principais
jornais da cidade, escreveu e distribuiu panfletos e organizou um número
especial da revista feminina A Paladina do Lar com textos dedicados a
discussão do projeto de demolição do mosteiro, contendo plantas originais do
edifício e de como ficaria após o que chamou de “mutilação da igreja abacial”.
Os protestos do abade surtiram efeito. O Mosteiro de São Bento perdeu

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apenas a varanda lateral. (COUTO, 2013, p. 91) Assim sendo, as Irmandades


tiveram que adequar-se aos novos tempos, pois além dos fatores comentados
acima, a promulgação de novas regras eclesiásticas, por meio do Código do
Direito Canônico (1918) contribuiu para uma espécie de “reforma da vivência
religiosa dos leigos”. Ela nos conta ainda que:
A partir deste Código, as Irmandades deveriam reformar os seus
compromissos; aceitar que os párocos ocupassem cargos nas mesas
administrativas; excluir elementos de outras crenças nas missas, novenas,
procissões e festas; prestar contas, anualmente, de todas as suas atividades.
Tudo isso deveria ser observado,e já fazia parte das cobranças do clero, mas
ganhouforça de Lei. (Idem, p. 98).
Apesar destas regras impostas pela modernidade, idealizadas e colocadas em
prática pela elite branca e letrada, através dos intendentes e governadores,
com o apoio do clero, tais festividades resistem ainda nos séculos XX e XXI,
evidentemente, com suas devidas adaptações e transformações. Alguns
autores consideram as festividades do Divino, como festas rurais, interioranas,
o que pode também, servir de justificativa para o desaparecimento de algumas,
ou a baixa popularidade de outras.
Mas, alguns fatores como: apersistência dos fiéisdas organizações mais ricas
(que possuíam templo próprio e/oufontes de renda), aliada às maiores doações
dos seus membros (médicos, advogados, autoridades políticas, etc.), homens
de boa condição econômica e influência na sociedade, devem ter contribuído
para a continuidade de algumas destas festas.
Além disto, a própria performance do menino Imperador que se constitui em um
espetáculo simbólico que misturaas fronteiras entre a arte e o ritual. Fronteiras
estas bastante tênues desde as suas origens, conforme apontam diversos
estudos nestas áreas.
O termo Performancemuito popular nos últimos anos numa série de atividades
humanas, apresenta trabalhos muitos diferentes entre si, com corpusde
escritos também bastante extensos e complexos, sendo de difícil definição,
pois como mostra Carlson citando Gallie (1964) a performance é “um conceito
essencialmente contestado”. (CARLSON, 2009, p. 11). Isso implica reconhecer
usos complementares, mas também rivais deste conceito. A performance está

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geralmente caracterizada, como uma forma de expressão humana que articula


vários campos científicos e artísticos, tais como, estudos antropológicos,
etnológicos, sociológicos, psicológicos e estéticos.
Entendemos a performance neste estudo, conforme explica o autor Patrice
Pavis um dos maiores estudiosos da encenação contemporânea:
A performance, no uso francês do termo, é aquilo que chamamos em inglês de
performance art, um gênero frequentemente autobiográfico em que o artista
procura negar a ideia de “re-presentação”, ao efetuar ações reais e não
fictícias, apresentadas apenas uma vez. (PAVIS, 2013, p.4).
E neste sentido que a performance do Menino Imperador do Divino acontece. A
cada ano operformerliberta preso (s) do sistema penitenciário baiano no
momento ápice de sua apresentação. No domingo de pentecostes todo a Igreja
do Santo Antônio além do Carmo se transforma em palco para esta
performance divina.
No entanto, para os seus organizadores e fiéis partícipes esta éuma festa em
que a fé e a solidariedade, constituem-se em volante e motor. A festa é a
exteriorização da sua fé e toda a performance do menino Imperador é para
louvar e agradecer ao Espírito Santo pelas bênçãos e graças alcançadas.
Destarte, a festa permanece sob o controle da Igreja, com a exaltação pública
da fé no Divino, a encenação da libertação de preso (s) e, se constitui como
uma herança da tradição colonizadora.
Podemos ressaltar também a partir destes estudos que, a espetacularização da
festa, agrandiosidade, o marketing, a fusão com elementos externos, enfim,
todas as características de uma grande festa, algumas vezes cooptada pelo
“Mercado” ou, pela indústria do turismo, como ocorre em algumas cidades
atualmente, podem concorrer para o esvaziamento da fé, pois as tensões entre
a tradição e as transformações impostas pela Industria Cultural, ou pelo
“Mercado” existem e não podem ser negadas.
Em Salvador, a festa segue sem esta cooptação pela Industria Cultural e/ou
turística, esvaziada de um grande público e de notoriedade na mídia local,
embora, ainda empolgue seus organizadores e a comunidade, que lota a igreja
no dia da festa, enfeita suas varandas e fachadas para esperar o cortejo do
menino Imperador passar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O OLHAR PÓS-PANÓPTICO DO DOIS DE JULHO: A COBERTURA DA


FESTA DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA BAHIA NO TELEJORNAL
BAHIA MEIO DIA, EM SALVADOR 320

321
ANAELSON LEANDRO DE SOUSA (UNEB, DCH III)

Na Bahia as festas de rua assumem um significado importante ao


aglutinarem em só lugar manifestações que conferem ao sagrado uma
dimensão secular e, em sentido oposto, quando sacraliza eventos de origem
cívica. As comemorações do Dois de Julho pode ser o exemplo mais duradouro
dessa mistura de intensões.
Carvalho (2012) alega que a festa esteve presente em todas as
civilizações, e que elas funcionava, e ainda funcionam, como "liga" do
sentimento de pertença à comunidade produzindo, assim unidade (p.34). Para
Miguez (2012) a festa é uma manifestação do campo da cultura que deve ser
entendida como um fenômeno trans-histórico e transcultural, que está presente
no Brasil desde a colonização. O autor alega que o ambiente festivo muito
ampliou-se com a incorporação do imenso repertório de procissões e cortejos
típicos do mundo ibérico-católico-barroco que aqui chegaram pela mão dos
portugueses (p.507).
Miguez também reconhece que a festa vai além de suas caracteristicas
mais tradicionais, como musicas e danças, e que também é uma arena de
conflitos, um território marcado por disputas e tensões de várias ordens. Ele
explica que "as tensões que hoje se instalam no interior da festa decorrem do
seu deslocamento do âmbito da comunidade, território privilegiado de
organização da festa, para o campo da cultura de massa" (MIGUEZ, 2012, p.
509).

320
Trabalho apresentado no GT Festas na Bahia de Todos os Santos do II Sinbainidades 2015.
321
Professor do curso de Jornalismo em Multimeios, Universidade do Estado da Bahia,
Campus III, Juazeiro, BA, email: anlsouza@uneb.br

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Nesse sentido, é fundamental estudar a festa do Dois de Julho a partir


da da cultura vigente, que encontra nos meios de comunicação o seu principal
meio de difusão. A televisão como parte desse conjunto encontra-se em uma
posição privililegiada por se tratar de uma mídia de natureza audiovisual, que
ao mesmo tempo que incorcora em sua estrutura modificações em sua
linguagem, reproduz também novas formas de discursos.
Neste trabalho vamos analisar como um programa telejornalístico
anuncia a festa Dois de Julho a partir de instrumentos modernos de captação
de imagens. Apoiado nos apontamentos de Bauman (2001 e 2013),
reconhecemos que tal captação realizada pela televisão no momento da
transmissão de eventos festivos pode ser entendida como um olhar pós-
panóptico. O recorte que faremos uso para cosntatar tal objetivo será a
cobertura realizada pelo helicóptero Redecop, no programa Bahia Meio Dia, da
TV Bahia, no periodo de 1 a 3 de julho de 2015. O instrumento metodologico
que faremos uso é a Análise de imagem em movimento, de Rose (2003).

Dois de Julho

A Festa do Dois de Julho, que celebra a Independência do Brasil na


Bahia, é uma festa cívica que acontece em Salvador e acolhe diversas
manifestações do povo. A sua origem data de quando os militares baianos se
recusaram a obedecer a Carta Régia nomeando o Brigadeiro português Inácio
Luís Madeira de Melo para o cargo de Governador das Armas, substituindo o
brasileiro Manuel Pedro de Freitas Guimarães. Outros incidentes locais
fortaleceram a resistência baiana e essa luta estendeu-se de fevereiro de 1822
a julho de 1823, com características de guerra civil.
De acordo com Araújo, as lutas pela independência do Brasil na Bahia
foram fundamentais para a manutenção da integridade do território brasileiro
após a nossa independência e que a saída dos portugueses “foi a coroação
dos enormes esforços de mulheres e homens, negros, brancos, índios e
mestiços que deram suas vidas pela conquista da liberdade” (ARAÚJO, p.9).
De acordo com Kraay (1999) o desfile cívico teve início quando um
grupo de patriotas encontraram uma carruagem ou carreta, abandonada na

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batalha de Pirajá, e pretendendo homenagear os combatentes, a decoraram


com folhas verdes e amarelas; também foi colocada a imagem de um velho
mestiço como símbolo vivo da nação brasileira. Por volta de 1825 e 1826 outra
imagem passou a ser reverenciada em um novo carro alegórigo: a do caboclo.
Para Kraay (2001) a imagem passou a ser o símbolo principal da festa e
representa a figura de um indígena pisando a serpente da tirania - associada
aos portugueses -, e matando-os com uma lança. "O símbolo de um indígena
idealizado mas indubitavelmente americano apresentava uma imagem clara do
que não eram os brasileiros e os baianos: nem portugueses, nem africanos"
(2001, p.80).
No entanto, essa alegoria que deveria ser neutra gerou muita polêmica
nas primeiras décadas do festejo: devido as hostilidades sofridas pelos
portugueses civis residentes em Salvador cogitou-se que o caboclo não mais
desfilaria e seria substituído por uma cabocla. Porém, em 1846 a escultura da
cabocla não o substituiu, e desde então os dois desfilam lado a lado como
símbolos oficiais da festa (Kraay, 1999, p.60).
No início da década de 1860 a Sociedade Dois de Julho começou a
construir um pavilhão para guardar as imagens e os carros alegóricos. Kraay
aponta ainda em sua pesquisa que o caboclo e a cabocla ganharam uma
dimensão quase religiosa semelhante a dos santos católicos.

A semelhança do Dois de Julho com as procissões dos santos


também salta aos olhos. O pavilhão na Lapinha parece um
santuário secular e o caboclo um santo secular a ser conduzido
pela cidade, da mesma maneira que se conduziam seus
congêneres católicos, enquanto todos os baianos lhe
mostravam sua devoção (Kraay, 1999, p.57).

Para Durkheim (1989) toda festa apresenta determinadas características de


cerimônia religiosa. Para ele “o homem é transportado para fora de si mesmo,
distraído de suas ocupações e de suas preocupações ordinárias (1989, p. 456).
Amaral (1998a;1998b) também entende que as festas oscilam mesmo entre os pólos:
cerimônia (como forma exterior e regular de um culto) e a festividade (como
demonstração de alegria e regozijo), ou seja, de alguma forma a festa transita entre o

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profano e o sagrado. Independente de sua origem ela altera as relações que


estabelecemos com o tempo e com o espaço.

Toda festa acontece de modo extra-cotidiano, mas precisa


selecionar elementos característicos da vida cotidiana. Toda
festa é ritualizada nos imperativos que permitem identificá-la,
mas ultrapassa o rito por meio de invenções nos elementos
livres (AMARAL, 2008a, p.17).

Amaral baseia-se na classificação de Jean Duvignaud para entender a


festa no caso brasileiro. Duvignaud divide as festas em: Participação e
Representação. Na primeira, incluem-se cerimônias públicas das quais
participa a comunidade e os participantes são conscientes dos mitos que ali
são representados, assim como dos símbolos e dos rituais utilizados, e todos
participam; as Festas de Representação, são aquelas que apresentam “atores”
e “espectadores”. Os atores, que podem ser em número restrito, participam
diretamente da festa organizada para os espectadores, ou seja, poucos
participam e muitos assistem. Amaral destaca que com a possibilidade da
transmissão direta da televisão é possível estabelecer uma terceira categoria: a
intermediária. Segundo ela festas como o Círio de Nazaré, o Carnaval, o São
João, e outras festas que são televisionadas encontram-se numa categoria
intermediária, pois um grupo numeroso tem acesso aos códigos da festa in loco
e outro grupo, muito mais numeroso e indeterminado tem contato com a festa a
partir da transmissão televisiva.
Em Salvador as festas de rua podem ser classificadas como
"intermediárias" por possuir as mesmas características apontadas por Amaral,
e por serem, muitas vezes transmitidas parcialmente pelos canais locais. De
acordo com Carlos (1996) a rua é o principal espaço da cidade e nas grandes
cidades ela é um importante cenário gerador de acontecimentos que são
retratados pelos meios de comunicação, e dispostos para o consumo de um
público denso e variado.
Na rua se tornam claras as formas de apropriação do lugar e
da cidade, e é aí que afloram as diferenças e as contradições
que permeiam a vida cotidiana, bem como as tendências de
homogeneização e normatização impostas pela estratégia de
poder que subordina o social (Carlos, 1996, p. 86).

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Para Canclini (2008) as cidades não existem somente como ocupação


de um território e de interações materiais entre seus habitantes. Para ele,
atuamos na cidade também pelas cartografias mentais e emocionais que
variam segundo os modos pessoais de experimentar as interações sociais. O
pesquisador chama de "cidade do espetáculo" aquela onde acontece a
fragmentação das experiências. “O rádio e a televisão, comprometidos nessa
tarefa de narrar e dar coerência à cidade, redesenham suas táticas
comunicacionais para arraigarem-se em espaços delimitados” (CANCLINI,
2008, p. 22). Nesse sentido ele analisa a importância do uso do helicóptero
como ferramenta para produzir narrativas que conecte os fragmentos da
cidade.

Um que me atrai particularmente é o dos helicópteros que, em


grandes cidades, percorrem-nas todas as manhã, ocupados,
habitualmente, por uma dupla de policiais e algum jornalista
que transmite por televisão e por rádio. O jornalista vai
informando onde houve algum acidente, onde há
engarrafamentos, como está o trânsito. Ele não somente dá
informações úteis para comportar-se em distintas zonas da
cidade. Atua sobre os imaginários e se constitui em
reconfigurador de uma totalidade que ninguém percebe. Uma
variante dessa rearticulação comunicacional é oferecida pelos
celulares que permitem interagir à distância, embora não
brindem o imaginário abarcador multilocal do helicóptero
televisionado, como o evidencia a frase mais frequente ao
iniciar conversações sem fio: “Onde é que você está? (2008,
p.21).

Em trabalho anterior Canclini (2002) deduz que vivemos em uma


sociedade sob a vigilância dos meios de comunicação. Para ele evoluímos do
simples passeio do flâneur às novas tecnologias. “Passamos, em cinqüenta
anos, ao helicóptero que sobrevoa a cidade e oferece a cada manhã, através
da tela do televisor e das vozes do rádio, o panorama de uma megalópole vista
em conjunto, sua unidade recomposta por quem vigia e nos informa”
(CANCLINI, 2002, p.41).
Para Canclini imaginamos e sabemos sobre a metrópole não apenas
pelas limitadas experiências diretas que temos ao viajar por ela, mas sim pelas
notícias e reflexões que o olhar “onisciente” da televisão instala nos lares. Para
ele é importante o papel que o helicóptero assume como novo instrumento de
divulgação do espaço urbano. “Com o auxílio de helicópteros que percorrem a

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urbe, com câmeras 'no lugar dos fatos', com convidados que os viveram
diretamente, constrói visões verossímeis que simulam recompor o sentido
global da vida cidadã (Canclini, 2002, p. 48).
As observações de Canclini (2002; 2008) nos levam a outros postulados
sobre a relação comunicação e vigilância na contemporaneidade que não
podemos desconsiderar.
Para Lyon (2013) a vigilância é uma dimensão-chave do mundo
moderno e em meio a isso não podemos deixar de lado as considerações
sobre o modelo panóptico de vigilância. Esse modelo foi pensado por Jeremy
Bentham, no século XVIII, como modelo de prisão e foi planejado para facilitar
o controle mediante a organização semicircular dos blocos de celas. Um
“inspetor” deveria situar-se no centro, de modo que pudesse ver sem ser
percebido pelos detentos.
Michel Foucaut retomou na década de 1970 o modelo pensado
originalmente para as prisões inglesas e elaborou conceitos que culminaram
com a ideia de poder disciplinar. Ele alegava que “a nossa sociedade não é de
espetáculos, mas de vigilância” (FOUCAUT, 1987, p. 190).
Porém, Bauman (2001, p.18) ao realizar uma releitura do dispositivo de
vigilância denominado de panóptico alerta que sua vigência está superada e
afirma categoricamente que já estamos vivendo em um mundo “pós-pan-
óptico”. Para ele, na modernidade liquida o poder pode se mover com a
velocidade do sinal eletrônico e o tempo requerido para o movimento de seus
ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade (BAUMAN, 2001).

O que importava no Panóptico era que os encarregados


“estivessem lá”, próximos, na torre de controle. O que importa,
nas relações de poder pós-panópticas é que as pessoas que
operam as alavancas do poder de que depende o destino dos
parceiros menos voláteis na relação podem fugir do alcance a
qualquer momento — para a pura inacessibilidade (2001, p.18).

A televisão é um meio de comunicação que reúne condições de


aprimoramento desse olhar pós- panóptico, que por sua vez vem sendo
utilizada de maneira constante em seus programas jornalísticos. Nas cidades
com grandes aglomerados populacionais, o principal problema está relacionado

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a mobilidade, e por isso os canais vem investindo no uso de helicópteros. O


objetivo deste trabalho é mostrar como a televisão utiliza este olhar pós-
panóptico na transmissão da festa do Dois de Julho, no telejornal Bahia Meio
Dia, da TV Bahia, em Salvador.
Na metodologia Análise de imagem em movimento, Rose (2003) sugere
que o conteúdo seja analisado em diversas etapas. O primeiro passo é a
seleção: nessa etapa é importante separar o que será analisado utilizando-se
de critérios que possa estabelecer o seu registro e deixando de fora o que não
prejudique a análise.
Para Rose (2003, p.348) é importante identificar em que espaço e em
que tempo ocorreu a gravação. Na sequência temos a transcrição, cuja
finalidade é gerar um conjunto de dados que se preste a uma análise
cuidadosa e uma decodificação, pois esta translada e simplifica a imagem
complexa da tela. Nesse momento é importante definir a unidade de análise.
Quando uma tomada diferente for feita de uma câmera ou quando se muda o
conteúdo, uma nova unidade de análise surge. Um critério bem simplificado
pode ser a mudança de uma cena para outra. Portanto, para esse fim
destacaremos a narração e a descrição das imagens.

Resultados

O programa jornalístico Bahia Meio Dia é exibido pela TV Bahia, de


segunda a sábado, das 12 horas às 12 horas e 45 minutos. A emissora faz
parte da Rede Bahia de Televisão, foi fundada em março de 1985, e é afiliada
à Rede Globo desde 1987. Desde o início de 2014, a TV passou a utilizar os
serviços do helicóptero Redecop. Durante o período da pesquisa o programa
foi apresentado pelos jornalistas Ricardo Ismael e Silvana Freire.
O período de observação do telejornal foi do dia 1 a 3 de julho de 2015.
No dia 3 de julho não foi registrada nenhuma ocorrência sobre a festa. Nesse
dia o helicóptero apenas mostrou fatos corriqueiros decorrentes do trânsito da
cidade. No dia 1 de julho registramos apenas uma referência, conforme
Tabela 1, com o apresentador Ricardo Ismael. A inserção começou com uma
vinheta do Redecop, com duração de 7 segundos, conforme a Figura 1, e em

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seguida entrou a imagem de corredores que saíram do Recôncavo carregando


uma tocha que representa o fogo simbólico. Quando a imagem produzida pelo
helicóptero entra ao vivo, imediatamente aparece no lado esquerdo da parte
inferior da tela uma logomarca do Redecop.

FIGURA 1 – detalhe da vinheta do Redecop

TABELA 1

Fogo simbólico se aproxima de Salvador

Data/Duração Tema/Narrador Descrição da Imagem

01/07/2015 RICARDO ESMAEL: Imagens ao vivo no nosso Vinheta RedeCop


(24 segundos) RedeCop mostrando os atletas do Recôncavo (7 segundos)
Baiano que chegam nesse momento na cidade
de Simões Filho trazendo a tocha, o fogo Imagens de dezenas de
simbólico, representando aí as lutas pela corredores em meio a avenida
Independência do Brasil na Bahia. De Simões conduzindo uma tocha.
Filho a tocha segue para Salvador.

A maior parte da cobertura realizada pelo Redecop ocorreu no dia 2 de


julho, ápice do evento. Foram mais de 2 minutos disponibilizados pelo
helicóptero, sem contar as reportagens que chegaram a usar como ilustração,
imagens feitas no periodo matinal. No começo do telejornal, em primeiro plano
aparecem os apresentadores que inciam o programa tecendo considerações
sobre a festa cívica, e podemos perceber que em um telão, atrás deles,
aparecem imagens aéreas do cortejo em segundo plano. Em seguida, as
imagens aéreas, que foram previamente gravadas, mostram de forma
acelerada todo o percurso do cortejo, da Lapinha até o centro histórico de

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Salvador (Ver Tabela 2 ). A narrativa é produzida em tempo real no estúdio do


programa pelos jornalistas e a imagem mostra, em uma única tomada, as ruas
tomadas por milhares de pessoas. Em um dado momento é utilizado, em forma
de zoom, uma aproximação da imagem para mostrar do alto o carro do
caboclo. Enquanto isso a narrativa segue explorando fatos históricos e detalhes
do evento. Essa dinâmica só é interrompida quando é anunciada a participação
da reportagem.

TABELA 2

Destaque da festa pela manhã

Data/Duraçã Tema/Narrador Descrição da Imagem


o

02/07/2015 Abertura do jornal (20 segundos);


RICARDO ESMAEL:... e desde cedo milhares
(1 minutos e 8 de pessoas foram às ruas de Salvador para Imagens gravadas do helicóptero
segundos) do telão do estúdio – percorre a
participar do cortejo em homenagem aos heróis
rua em aceleração - mostra a
da Independência e a data, que é considerada a
concentração na Lapinha, largo
mais importante da Bahia. de Julho – convento da Soledade;

Sai imagem dos apresentadores


e a imagem toma toda a tela;
SILVANA FREIRE: Pois é Ricardo, esse ano o
cortejo saiu por volta das 9 e meia da manhã de
lá do Largo da Lapinha com o carro do caboclo,
Muda plano para imagem mais
a imagem da cabocla também, a gente daqui a
próxima da rua mostrando o carro
pouco, as nossas equipes acompanharam toda do caboclo;
essa manhã de comemorações, comemorações
que continuam agora a tarde, né. Esse ano 470
alunos da rede municipal de ensino participam
Plano mais próximo do carro
do desfile com 7 fanfarras. Daqui a pouquinho
mostra o início do desfile;
vamos mostrar todos os detalhes das
comemorações nessa manhã, que nesse ano
homenageia as mulheres, as guerreiras dessa
Independência: Maria Quitéria, Joana Angélica e Plano mais aberto da rua como
imagem em aceleração
Maria Felipa.
mostrando a rua em sentido
contrário até a Lapinha –
convento da Soledade;
RICARDO ESMAEL: Exatamente, o desfile
cívico que deve chegar ao Campo Grande por
volta das 5 horas da tarde. A gente vai fazer
agora contato com a nossa colega Georgina
Mainard que está lá em baixo, na Praça

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Municipal, pertinho do caramanchão onde estão


os carros com o caboclo e a cabocla que são os
símbolos da participação popular nessas lutas... Corta para os apresentadores e
duas telas no estúdio mostram as
imagens aéreas e a imagem da
repórter ao vivo.

FIGURA 2 – imagem da saída do cortejo

Após a participação da repórter Georgina Mainard, outros enfoques


foram dados a festa detalhando fatos que ocorrem pela manhã como abertura,
participação de politicos, de pessoas que desfilaram fantasiadas de
personagens do Dois de Julho, e os protestos de sindicatos e movimentos
sociais. Em um segundo momento o Redecop mostra imagens ao vivo (Figura
3) desta vez localizando os carros do caboclo e da cabocla.

TABELA 3

Chegada do cortejo na Praça Thomé de Souza

Data/Duraçã Tema/Narrador Descrição da Imagem


o

02/07/2015 Vinheta RedeCop (7 segundos);


RICARDO ESMAEL: Dois de julho feriado da
(56 Independência no Brasil e na Bahia e você Abre imagem ao vivo da praça
segundos) confere aqui no Bahia Meio Dia as imagens ao Thomé de Souza, ao lado do
vivo de nosso RedeCop sobrevoando a Praça Elevador Lacerda;
Thomé de Souza, a Praça Municipal, onde
tradicionalmente ficam os carros com a Cabocla e
o Caboclo, símbolos da participação popular nas
lutas pela Independência, que saíram lá do O helicóptero de desloca
Pavilhão Dois de Julho, no Largo da Lapinha e seguindo a rua no sentido
chegaram aí. Esse é o caminho feito há 192 anos Pelourinho;
pelos heróis da Independência; homens,
mulheres, gente do povo, gente simples do

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Recôncavo e também da Capital que expulsaram


no dia 2 de julho os últimos portugueses do Brasil.

SILVANA FREIRE: E Olha Ricardo nesse


caminho, aí nesse trajeto hoje de manhã, olhares
curiosos, muita gente que participou da festa
homenageando, inclusive, personagens ilustres
como a heroína Maria Quitéria.
Corta para a repórter.

RICARDO ESMAEL: Nas janelas e nas sacadas


das casas, decoração especial. Quem
acompanhou tudo de pertinho foi a repórter Ana
Valéria....

FIGURA 3 – imagem do Caboclo na praça Thomé de Souza

Passados 192 anos, a festa continua a chamar a atenção dos baianos


pela sua grandiosidade demonstrando a sua vitalidade centenária. Os
telejornais cumprem a função primordial de mostrar a festa por ângulos que
permitam ao telespectador o consumo desse produto simbólico de forma
diferenciada. O uso do helicóptero sem dúvida modificou a estética do
telejornal ao mostrar a cidade do alto, com seus problemas no trânsito, mas
também o seu lado festivo. O programa Bahia Meio Dia ao utilizar todo o seu
potencial de olhar pós-panóptico, reforça a caracteristica de festa
"intermediaria", conforme Amaral, e coloca o telespectador nas alturas. O
Redecop é o olho do telejornal que comprova que cada vez mais estamos
vivenciando de forma mais intensa essa sociedade "pós-pan-ótica", como
reconhece Bauman. O exemplo da cobertura do Dois de Julho é cabal, no

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sentido de tornar comum às instituições jornalísticas a capacidade de mostrar


em tempo real e de forma regular o que antes ocorria de forma experimental.

REFERÊNCIAS

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Revista Mediações, Londrina, v. 3, n. 1, p. 13-22, jan./jul. 1998a.

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que “não é sério”. 1998. 380 f. Tese (Doutorado em Antropologia). Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1998b.

ARAÚJO, Ubiratan Castro de. A Consolidação da Independência do Brasil


na Bahia. In: BAHIA. Secretaria de Cultura. Fundação Pedro Calmon. Cartilha
2 de Julho: a Bahia na independência nacional. Salvador, s/d.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

_________________. Vigilância líquida: Diálogos com David Lyon; trad.


Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

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comunicação. Opinião Pública, Campinas, Unicamp, 8(1), 40-53, 2002.

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desconhecimento. In: COELHO, Teixeira (Org.). A cultura pela cidade. São
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CARLOS, A. F. A. O Lugar no/do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.

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totêmico na Austrália. Tradução de Pereira Neto; revisão José Joaquim. São
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; trad. Ligia M.


Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987.

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KRAAY, Hendrik. Entre o Brasil e a Bahia: As comemorações do Dois de Julho


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_____________. Definindo nação e Estado: rituais cívicos na Bahia pós –


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ROSE, D. Análise de Imagens em Movimento. En: Bauer, M. W; Gaskell,


G.(Ed.) Pesquisa Qualitativa com texto, imagem e som: um manual
prático. Trad. Pedrinho A. Guaresch. 2º edição. (343-364). Petrópolis: Editora
Vozes, 2003.

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GRUPO DE TRABALHO: A BAHIA ESTÁ EM TODO LUGAR – DIAS GOMES


E JORGE AMADO: A BAIANIDADE NO MUNDO

PROPOSITORES: MARIA ANGÉLICA ROCHA FERNANDES (UNEB)

Ementa:

Este GT pretende fazer uma reflexão geral sobre as adaptações literárias

televisivas, a linguagem midiática é explicada de uma forma simples e objetiva

preparando o espectador para os próximos capítulos. Para atingir tais objetivos,

busca-se o apoio em teorias sobre literatura e mídia, a fim de observar

aspectos como as possíveis leituras do texto literário, que possibilitam


diferentes adaptações midiáticas – como as novelas Roque Santeiro, Tieta do

Agreste e Gabriela cravo e canela, casos específicos, da literatura à TV –, com

a finalidade de levar o espectador a compreender a televisão como uma grande

simuladora de imagens, que condensa o tempo e o espaço na ação,

mergulhando-o no mundo da fantasia; a intenção é promover uma leitura do

diálogo entre novela e romance, verificando como as produções adaptadas

pela mídia podem promover uma interação entre Bahia, sociedade, literatura e

mundo, Dias Gomes e Jorge Amado – adaptam-se autores muito prestigiados

ou muito populares – a Bahia está em todo lugar!

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A BAHIA ESTÁ EM TODO LUGAR –DIAS GOMES E JORGE AMADO- A


BAIANIDADE NO MUNDO

MARIA ANGÉLICA ROCHA FERNANDES (UNEB)

RESUMO: Nessa proposta faremos uma reflexão geral sobre as adaptações


literárias televisivas e fílmicas, a linguagem midiática é explicada de uma forma
simples e objetiva buscando preparar o espectador para os próximos capítulos,
ou páginas. Para atingir tais objetivos, busca-se o apoio em teorias sobre
literatura e mídia, a fim de observar aspectos como as possíveis leituras do
texto literário possibilitam diferentes adaptações midiáticas. Como as novelas:
Roque Santeiro, Tieta do Agreste e Gabriela cravo e canela, nesses casos
específicos, da literatura à TV e/ou cinema, com a finalidade de levar o
espectador a compreender essas mídias como uma grande simuladora de
imagens, que condensa o tempo e o espaço na ação, mergulhando-o no
mundo da fantasia, a intenção é promover uma leitura do diálogo entre
novela/filme e romance, verificando como as produções adaptadas pela mídia
podem promover uma interação entre Bahia, sociedade, literatura e mundo. O
método será de pesquisa bibliográfica, fílmica e televisiva. Com aporte em
teóricos de períodos distintos, no discurso crítico, especialmente abordaremos
Linda Hutcheon (2011), Marinyze Prates de Oliveira (2002), Tânia Pellegrini
(2003), dentre outros. Dias Amados-adaptam-se autores muito prestigiados ou
muito populares – Bahia está em todo lugar!

Palavras-chave: Jorge Amado, Dias Gomes; Adaptações, Televisão; Cinema

“Ah! Imagina só que loucura essa mistura


Alegria, alegria é o estado que chamamos Bahia
De Todos os Santos, encantos e axé, sagrado e profano, o baiano é...”

A obra de Jorge Amado e Dias Gomes quer na própria palavra restituir a


força simbólica, permanecendo inevitavelmente presa ao saber como amiga ou
inimiga, a fé perpetua a separação na luta para superá-la. Amado se diz “um
ateu que crê em milagres” na contradição imanente que consiste em fazer da

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reconciliação sua vocação. A fé não cessa de mostrar que é parte da história


universal, sobre a qual gostaria de imperar; nos tempos modernos, ela até
mesmo se converte em seu instrumento preferido, sua astúcia particular, e no
Brasil multicultural em que vivemos Jorge Amado e Dias Gomes são um rico
manancial para esse estudo. Eles souberam como ninguém falar do seu povo,
contar suas histórias e costumes, trazendo para as páginas dos seus livros
uma mistura bem feita de política social e misticismo da Bahia, temperada pela
sexualidade de sua gente,dessa forma propaga a baianidade para todo o
mundo.

“A arte deriva de outra arte; as histórias nascem de outras histórias.” No


entanto, na crítica acadêmica, por exemplo, as adaptações populares
contemporâneas são com frequência vistas como secundárias e derivativas, e
as profissões jurídicas prosperam através de ações contra o “roubo” e o
“plágio” de materiais por meios digitais, ao mesmo tempo em que as forças
capitalistas buscam conter o fluxo dessa reformulação radical da questão da
originalidade. Mas todos nos ensinaram que a arte – literária, visual, musical ou
o que quer que seja – é criada a partir do nosso conhecimento de outras artes,
e as teorias da intertextualidade, que floresceram desde o final dos anos 60,
mostraram como esse diálogo textual funciona.

O cinema está em constante transformação; todos os dias surgem novos


artifícios que contribuem para a inovação dessa arte, possibilitando as mais
incríveis experiências, que nos levam à alegria, ao riso, ao espanto, às
lágrimas e também à reflexão e à indignação. São essas emoções que
encontramos nas obras de Jorge Amado e Dias Gomes adaptadas para
diferentes mídias. Em algumas investigações preliminares, foram localizadas
adaptações cinematográficas e televisivas que atualizam as obras desses
autores, que passam informações, trocam opiniões, etc. Observamos, ainda,
uma organicidade dialética entre montagens narrativas e montagens
expressivas capazes de dar conta das traduções criativas articulando as
significações das linguagens literárias e cinematográficas e/ou televisivas.
Geralmente, o motivo apontado por esses críticos e espectadores é a falta de
“fidelidade” à obra original, ou seja, quase sempre, as pessoas saem do
cinema com aquela sensação de que o filme não foi tão bom quanto o livro, ou,

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melhor dizendo, de que o filme não seguiu à risca os mínimos detalhes do livro.
Embora soe pertinente, tal crítica é um tanto complexa, visto que a adaptação
consiste, exatamente, em basear-se numa obra e não em reproduzi-la
totalmente de fato. Como colocou Stam (2000), a noção de fidelidade ganha
força a partir de três observações realizadas por parte dos espectadores:
algumas adaptações não conseguem captar o que eles mais gostam no livro;
algumas adaptações são melhores que outras; e algumas perdem, pelo menos,
algumas características originais, presentes na narrativa do livro. Hutcheon
(2011) se ocupa ainda em observar como as diferentes mídias lidam com
elementos como ponto de vista, interioridade/exterioridade, tempo, ironia,
ambiguidade, metáfora, símbolo, silêncios e ausências. A autora aponta, na
metáfora e no funcionamento da adaptação, o emblema para compreender as
mudanças estéticas que caracterizam a passagem do século XX para o século
XXI.

Jorge Amado, um autor de tantas obras de sucesso, traduzido em


dezenas de outras línguas, teve diversos títulos adaptados tanto para a
televisão como para o cinema, dizia-se resignado com as alterações que os
adaptadores de seus textos faziam, e os considerava – os roteiros – como
outras obras, que não as suas, mas transposições literárias ou interlocução. As
traduções no exterior ajudaram a aproximar as imagens de Jorge Amado e do
Brasil. Já em 1937, aos 25 anos, mesmo ano em que o Estado Novo queimou
seus livros em praça pública, teve dois de seus primeiros romances, Suor e
Cacau, traduzidos para o russo. Em 1984, quando recebeu a Legião de Honra,
a maior condecoração francesa, o nome de Jorge Amado já era uma espécie
de etiqueta de qualidade das coisas e dos temas brasileiros. Três anos depois,
com a criação da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, ele se tornou,
em definitivo, uma instituição nacional. Tivemos um momento em que o diálogo
entre seus livros e cinema se realizou de modo intenso, no período do Cinema
Novo, em transposições literárias.A Bahia é transposta para o mundo em
cheiro,cores,sabores e axé.

Os romances de Jorge Amado foram sempre um grande sucesso de


vendas. A partir de Dona Flor, as traduções se multiplicam,
ultrapassando a faixa de quarenta países. Mas no mundo de hoje,
dominado pela imagem e pelos audiovisuais, como o cinema, a TV e a

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internet, eles romperam e ultrapassaram as páginas dos livros. Em


1946, Jubiabá e, logo em seguida, São Jorge de Ilhéus foram
adaptados pela Rádio São Paulo. Três anos antes, Eddi Bernoudy e
Paulo Machado levaram Terras do sem fim para o cinema —
rebatizado como Terras violentas. Em 1961, a extinta TV Tupi levou ao
ar uma adaptação de Gabriela dirigida por Maurício Sherman. A
primeira adaptação de um romance de Jorge Amado no exterior
aconteceu no ano de 1941, quando Mar morto se tornou uma radio
novela na Radio El Mundo, da Argentina — e que ajudou os argentinos
a entenderem um pouco mais seus vizinhos brasileiros. Dez anos mais
tarde, consequência das fortes ligações de Jorge com o movimento
comunista internacional, o canal manchete noticia a estreia da
adaptação de Gabriela, cravo e canela na TV. Mais recentemente, em
1996, foi a vez de o cineasta Cacá Diegues dirigir Tieta do Agreste,
mais uma vez com Sônia Braga no papel-título. Nesse ponto as
adaptações dos romances de Jorge já tinham se espalhado pela
televisão. Em 1975 Walter George Durst realizou para a TV Globo uma
segunda adaptação de Gabriela, com Sônia Braga como a
protagonista. Terras do sem fim, adaptada por Walter George Durst,
em 1981, Tieta, por Aguinaldo Silva, em 1989, e Tocaia grande, por
Duca Rachid, em 1995, se tornaram também telenovelas da Globo. Em
2001, a emissora lançou a novela Porto dos milagres, dirigida por
Fabrício Mamberti e Luciano Sabino e inspirada em dois livros de Jorge
Amado: Mar Morto e A descoberta da América pelos turcos, seu último
romance, de 1994. Atores do porte de Sônia Braga, Nelson Xavier e
Betty Faria tiveram interpretações consagradoras de personagens de
Jorge Amado. Enquanto assistia na TV às encenações das histórias de
Jorge, o Brasil via a si mesmo, e aprendia quem estava predestinado a
ser. A forte identidade entre Jorge Amado e o Brasil também chegou às
escolas de samba. Em 1989 o Império Serrano, do Rio, levou para a
avenida o enredo “Jorge Amado, axé, Brasil”. Logo depois de lançar
Gabriela, Jorge recebeu o título de obá Arolu do Axé Opô Afonjá, uma
das mais altas condecorações do candomblé da Bahia. Quando em
1961 ele foi eleito para a cadeira da Academia Brasileira de Letras,
esse reconhecimento da elite literária do país vinha apenas ratificar a
consagração Jorge Amado popular. No mesmo ano, o presidente
Juscelino Kubitschek o convidou para ser embaixador de nosso país na
República Árabe Unida, criada três anos antes, com a união política
entre o Egito e a Síria. Jorge delicadamente recusou o convite. A essa
altura, ele já era o embaixador brasileiro não para esse ou aquele país,
mas para o mundo. (CASTELLO, online)

A contemporaneidade configura-se como um momento em que as


hibridizações, entrelaçamentos e empréstimos — de linguagens, técnicas,
procedimentos, imagens — transformou a tradição em um rico depósito de
materiais, passível de ser livremente apropriado e ressignificado. Isto acontece
de maneira particularmente fértil na área da produção audiovisual, na qual as
novas tecnologias facultam possibilidades praticamente infinitas de intercâmbio
com outros territórios expressionais. Na construção da malha fílmica, o diretor

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não apenas dialoga com a produção anterior de Jorge Amado, como recorre a
inúmeros recursos para conferir densidade ao filme, e mantém um estreito
diálogo como autor, ao recuperar não apenas suas memórias, mas o espírito
de um momento histórico caro à sua geração. Seguindo essa linha de
entrelaçamento Marinyze Prates de Oliveira, mestre e doutora em
Comunicação e Cultura Contemporâneas, vem se dedicando ao estudo dos
laços entre cinema, literatura e outras artes. Publicou os livros E a tela invade a
página: cinema, literatura e João Gilberto Noll (2002) pela Fundação Cultural
do Estado da Bahia, e Olhares roubados: cinema, literatura e nacionalidade,
pela FAPESB. A despeito das particularidades de cada linguagem, é possível
admitir que haja frequentes entrecruzamentos, no que se refere à relação entre
as duas artes. Oliveira (2002) afirma que entre a superfície em branco da
página e o espaço vazio da tela há laços mais estreitos do que nos é dado
suspeitar à primeira vista, e reitera que literatura e cinema são vias de mão
dupla. Entrementes, ao longo dos anos, a sétima arte adquiriu autonomia e
especificidade e hoje “encontra se na condição de disponibilizar uma série de
recursos que muito tem contribuído para o alargamento do poder de expressão
inclusive da literatura.” (OLIVEIRA, 1997, p. 2).

Dias Gomes viveu o momento considerado por muitos críticos


especialistas como o pior da história do Brasil: a Ditadura Militar dos anos de
1964 a 1985. Nessa época, o autor estava no auge de sua carreira com o
sucesso alcançado em O pagador de promessas (1959), bem como vinha
alcançando visibilidade cada vez maior junto ao grande público com peças de
teatro que traziam histórias e personagens marcantes. Já perseguido há
tempos por seu caráter subversivo, essa caçada se tornaria agora bem mais
ativa, visto que o autor se mostrava cada vez mais descontente com o que
vinha acontecendo em seu país e expunha em seu trabalho toda sua
indignação, revoltando assim todos aqueles que eram incididos pelas suas
críticas.

A produção artística, literária e intelectual do país passou então a ser


controlada pela censura estabelecida neste período, que só teria fim 21 anos
após o seu início. É aí que, nesse contexto, surge um grupo de escritores
chamado por Antônio Candido (1987, p. 209) de “geração da repressão” ou,

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conforme complementa Lígia Chiappini (1998, p. 203), a “geração da


representação”, pois assume a tarefa de dar conta dos fatos que a imprensa
censurada não podia narrar e que só a literatura parecia poder salvar do
esquecimento, através das múltiplas facetas criadas pelos autores para não
serem percebidos pela “vigilância” governamental. Os militares temiam o poder
que estes grupos da sociedade tinham de influenciar o povo brasileiro contra os
seus governos e, por isso, proibiam a veiculação de qualquer forma de
expressão artística que, para eles, pudesse ser “prejudicial” ou “ofensiva” à
nação. Assim, para que não fosse censurada ou exilada, grande parte dos
autores brasileiros da época publicava suas obras utilizando-se de metáforas
para não ser percebida pelos censores do governo.

Em relação às obras produzidas durante o período ditatorial brasileiro,


Santiago (1982, p. 52), diz que, nessa época, “a censura não afeta, em termos
quantitativos, a produção artística, ela, no entanto, pode propiciar a emergência
de certos desvios formais que acabam sendo características das obras do
tempo”. Sobre a postura do escritor diante dessa mudança pela qual passava
sua literatura, diz ainda que:

Num momento (raciocina ele) em que os chamados meios de


comunicação de massa não podem informar a sociedade do que
realmente acontece, o texto não precisa ser “literário”, basta que
veicule a informação justa e necessária. O livro passa a ser um mero
suplemento do jornal censurado, ou da televisão pasteurizada,
competindo em igualdade de condições com o documentário
cinematográfico. Torna-se instrumento oportuno de alerta e de
conscientização; endereça-se à insatisfação de possíveis e certos
leitores, conduzindo o mal-estar social deles a um estágio mais
organizado – partidário – de insubordinação, rebeldia e participação.
(SANTIAGO, 1982, p. 130-131)

Olhando linearmente para a produção cultural dos anos 70, a tendência


é vê-la como um reflexo puro e simples dos efeitos da censura estabelecida
neste que foi o período em que os censores mais “perturbaram” produtores de
peças, filmes, novelas, canções, entre outras manifestações, ao cortarem,
proibirem ou engavetarem suas obras. (PELLEGRINI, 2001b, p.79) Nessa
época, são produzidos romances, poemas, crônicas, autobiografias e
narrativas que mais parecem reportagens, com sinais e fotomontagens,
justapondo recortes, documentos, lembranças e reflexões oriundas do impacto

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social vivido naquele dado tempo da história. (CANDIDO, 1987, p. 210) No


entanto, seria necessária uma maneira de conseguir publicar o que se produzia
sem a perseguição constante da censura, exigindo dos autores uma habilidade
cada vez maior de inserir elementos que visassem burlar a percepção do
censor, tais como alusões, elipses, signos e alegorias. Tais elementos
funcionavam como uma arma para desviar a atenção daqueles que estavam
sempre a vigiar as ações de todos e alcançavam, muitas das vezes, resultados
satisfatórios, uma vez que só conseguia decifrar esses códigos o indivíduo que
possuísse conhecimento prévio e detalhado do assunto. (PELLEGRINI, 2001,
p.79)
O eixo de ligação entre a realidade e o enredo ficcional que aqui se
propõe defender diz respeito à maneira como o autor de uma determinada obra
escreve seu texto inserindo ali aspectos da sua vivência enquanto ser social.
Como se tem falado até agora, em todos os tempos, a narrativa, oral ou escrita,
está intimamente ligada à vida social dos grupos, em todas as suas práticas
significantes. (MESQUITA, 1987, p.16)
Nesse sentido, Dias Gomes, ao escrever o texto teatral O Berço do
Herói e posteriormente a sua adaptação para televisão como o nome de Roque
Santeiro, teve proibida a sua veiculação, uma vez que o autor era um dos que
não concordava com a prática política vigorante naquele momento e utilizava a
sua engenhosidade como escritor para poder criticar ferozmente os detentores
do poder no Brasil. O autor, bem como outras pessoas censuradas nesta fase,
fazia uso de artimanhas para driblar os censores e poder divulgar suas obras
sem ser punido por estar expondo uma opinião que os desagradava. Silviano
Santiago (2002, p. 14), crítico assíduo desse período da literatura no Brasil,
avisa:
Refletindo sobre a maneira como funciona e atua o poder, a literatura
brasileira pós-64 abriu campo para uma crítica radical e fulminante de
toda e qualquer forma de autoritarismo, principalmente aquela que,
na América Latina, tem sido pregada pelas forças militares quando
ocupam o poder, em teses que se camuflam pelas leis de segurança
nacional.

Assim, a literatura está intimamente ligada à sociedade, ao assumir


voluntariamente ou não a missão de retratá-la, inserindo aí as suas mazelas,
sejam elas políticas, religiosas, econômicas, mas também as suas virtudes,

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desde a apresentação de aspectos valiosos de sua gente, até a abordagem


panorâmica de toda a sua composição. Dias Gomes insistentemente fazia por
não se contentar com os paradigmas seguidos em sua sociedade. Em seu
estudo sobre a obra do escritor baiano, Anatol Rosenfeld (1982, p. 57) diz que

A dramaturgia de Dias Gomes apresenta e analisa, em todas as


peças um mundo de condições, atitudes e tradições cerceadoras, de
forças mancomunadas com a inércia, a estreiteza ou a hipocrisia;
mundo carregado de pressões e conflitos que tende a suscitar a lutar,
franca ou dúbia, coerente ou não, pela liberdade e pela emancipação,
pela dignidade e pela valorização humanas.

Apesar de ter sido o teatro a grande fonte de inspiração de Dias Gomes,


no qual seu trabalho de maior destaque foi O pagador de promessas,
encenado em diversos países mundo afora e adaptado para o cinema por
Anselmo Duarte no ano de 1962, ganhando prêmios nacionais e internacionais
pelo feito, foi também na televisão, como novelista, que ele conquistou o seu
público com grandes sucessos, até hoje memorizados por aqueles que se
divertiram e se emocionaram com personagens e histórias criadas pelo homem
subversivo nascido na Bahia e que inseriu também nas suas novelas para a TV
a sua indignação, o seu ponto de vista frente às problemáticas e fatos ocorridos
na vida real. Dias Gomes escreveu sobre tragédias, dramas, farsas, mas
qualquer que fosse o gênero a que se dedicasse, “seus personagens moviam-
se em espaços sociais conflitantes e seu problemas, enfocados muito
diretamente, resultavam sempre num questionamento da realidade nacional
com forte presença do homem brasileiro no palco”. (CAMPEDELLI, 1982, p.
102) Sobre as produções de Dias Gomes para a TV, a Revista Língua
Portuguesa (2008, nº 34) publicou a seguinte fala do autor:

Pensei em fazer novelas que espelhassem a nossa realidade e


acabassem com o maniqueísmo exagerado dos personagens da
televisão, os heróis com todas as virtudes e os maus com todos os
defeitos. Procurei também introduzir problemas reais do país como o
preconceito racial, o conflito de gerações, o fanatismo religioso, o
poder de corrupção do dinheiro, etc. Ao lado disso, fui acrescentando
um elemento pouco frequente nas telenovelas até então: o humor, o
humor mesmo na tragédia, pois, como diz o poeta, ao lado de quem
chora, há sempre alguém que ri.

Meio avesso às produções televisivas, talvez por sua paixão insaciável


pelo teatro, Dias Gomes afirma ter ido trabalhar nela por falta de opção nos

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palcos, uma vez que na época todas as suas peças vinham sendo proibidas e
ele se encontrava desempregado, mas reconhece sua importância,
principalmente pelo alcance que suas obras poderiam tomar com a exibição em
um canal de TV aberto, em um instrumento de comunicação novo e que se
popularizava cada vez mais entre as pessoas. Além do mais, como ele mesmo
afirma, “quase todas as novelas que fiz foram, basicamente, extraídas de
minhas peças: O Bem-Amado é uma peça teatral, Bandeira 2 foi tirada em
parte de A Invasão, Quando os Homens criam Asas virou Saramandaia, Roque
Santeiro é O Berço do Herói”. (GOMES, 1998, s/p)Esta última, aliás, tornou-se
um grande sucesso na carreira do dramaturgo, não só por trazer em seu
enredo histórias comoventes e ao mesmo tempo hilárias de personagens que
compunham um retrato da sociedade brasileira, mas por ter sido rigidamente
censurada desde seu lançamento, com O berço do herói, seu texto de origem,
até o surgimento da telenovela. Assim, sua vinda para a TV nunca o afastou do
seu universo teatral, pelo contrário, permitiu que fossem surgindo novas
roupagens dos seus textos, levando-o a construir histórias entrelaçadas com
seus personagens de sucesso no teatro para a TV e vice-versa. Igualmente
sincréticas, talvez tenha sido outras obras do autor, tais como O Santo
Inquérito (1966), que trazia à tona o embate entre católicos e judeus,
promovendo sérios conflitos ideológicos; e Roque Santeiro ou O berço do
herói, que mostrava o dia-a-dia dos habitantes da cidade de Asa Branca,
vivendo em torno de uma história que misturava o imaginário popular às
práticas religiosas difundidas pelos líderes católicos do local. Tendo como
mesmo foco, Dias Gomes escreveu novelas para a televisão que levavam ao
seu público a possibilidade de se ver retratado nas mais diversas situações do
cotidiano, nas quais podiam ser percebidas retratações do dia-a-dia num
contexto ficcional que mais parecia a realidade nua e crua que mesmo a
fantasia. Ao colocar determinado personagem ou contar determinada história,
havia sempre uma analogia presente, algo com o que se baseava para criar
aquilo apresentado ao seu espectador, pois todo o seu trabalho tem a marca
do inconformismo e da necessidade de denunciar algo que lhe perturbava
enquanto ser social. Assim aconteceu com O berço do herói, quando adaptada
para a TV com o nome de Roque Santeiro, na qual o novelista expandia sua

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crítica para um público bem maior, abordando temas que coincidiam com o
cotidiano do cidadão brasileiro, desde as suas maneiras de agir em família até
o comportamento em coletividade, no trabalho, na escola ou na igreja. O
desenvolvimento tecnológico — incluído aqui o surgimento do cinema e da
televisão — desempenhou um papel relevante para aguçar e reconfigurar os
hábitos perceptivos: diferentes formas de captar e olhar o mundo desponta,
então, como possibilidades estéticas alternativas. Não é sem tensões, contudo,
que os laços entre cinema e literatura são estabelecidos. Quando da aparição
das novas tecnologias, as duas artes, pode-se afirmar, pertenciam a pólos
opostos: o da cultura de massa e o da cultura erudita. Quanto à arte literária,
observa-se uma preocupação em resistir às influências nocivas de um novo
meio de expressão considerado sem aura. Por outro lado, o cinema, em busca
de legitimação no campo das artes, tende a aproximar-se da literatura —
sobretudo da sua narratividade — com vistas a obter uma consagração que
somente as artes tradicionais possuíam. As adaptações de textos literários
canônicos e a proposta da existência de um cinema autoral foram formas
encontradas para conferir uma aura ao filme. Para se adjetivar um texto em
prosa como cinematográfico, não lhe basta apenas a alusão ao cinema. É
necessário mais, como afirma Oliveira (2002) acerca de Noll, é preciso buscar,
por meio da técnica narrativa, “projetar a imagem diretamente na página do
livro.”

O início da televisão [...] foi o primeiro intimamente relacionado à


literatura, por exemplo, por tomar emprestados histórias e temas. Nos
anos 50, a televisão West German, por exemplo, produziu não menos
que 479 adaptações de bem conhecidos trabalhos literários. Quanto
mais o mercado do vídeo se expandiu, mais o mundo da literatura
tornou-se uma fonte de histórias. Consequentemente, através das
necessidades do sistema de vídeo, a literatura ganhou um
imprevisível campo de potencial eficiência no amplo mercado do
vídeo. (SCHMIDT, 1990, p. 13)

Podemos entender que tanto o cinema quanto a TV são vistos com os


signos diferentes do literário; no entanto as mobilidades plásticas que ambas
as formas de expressão possuem (cinema e TV), podem perfeitamente ajudar
na releitura das obras literárias. Admitimos realmente que as linguagens são
diversas e específicas, mas, por outro lado, conseguimos identificar um enorme
número de semelhanças entre as três linguagens, mantendo o cinema e a TV

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em sincronia com a literatura. Na adaptação de obras literárias, as versões


cinematográficas e as televisivas fazem uma intertextualidade com os códigos
literários: enquanto a literatura se define como um código verbal, o cinema e a
TV pertencem ao domínio das chamadas linguagens complexas: som, imagem
e texto Jorge Amado s destaca-se em relação ao número de obras adaptadas,
no total, treze delas foram reproduzidas nas telas. Suas adaptações,
especialmente dos romances Tieta do Agreste, Gabriela Cravo e Canela e D.
Flor e seus dois maridos, foram ousadas quando mostraram outra face do
Brasil. É na sua produção cultural que um povo se reconhece e, se
reconhecendo, pode se transformar. O cinema e a televisão criam imagens, a
literatura cria imaginação. Jorge Amado e Dias Gomes escreveram e
propagaram uma Bahia de todos os santos ,encantos e axé,levaram para o
mundo o sagrado e o profano do nosso povo,o impresso e a tela fizeram a
Bahia cruzar um oceano largo.

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pródiga, melodramático folhetim em cinco sensacionais e empolgantes
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AS BAIANIDADES NA OBRA “CAPITÃES DE AREIA” DE JORGE AMADO

ADRIANA MENDES ANDRADE (UFRB) 322


ANTONIO MAURICIO DE ANDRADE BRITO (UFRB)
MÔNICA MENEZES (UFRB) 323

A partir da Semana de Arte Moderna surge no Brasil o Modernismo,


movimento literário que rompe com todas as normas e parâmetros da criação
literária vigente até o momento, e no lugar surgem uma literatura moderna que
reúne características inconfundíveis como a liberdade de expressão, linguagem
coloquial, novas técnicas de escrita, contextualização e inclusão do cotidiano.

Nesse contexto, a historiografia literária costuma dividir esse novo


movimento em três fases. Na qual o referido movimento vive sua segunda fase
em 1930, momento em que escritores conhecidos como os Romancistas da
década de 30 trouxeram para a Literatura Brasileira um evidente compromisso
ideológico, no sentido de contestar as estruturas estabelecidas e se colocar de
maneira deliberada, ao lado dos desfavorecidos.

Assim, nos Romances de 30, há certa preocupação em representar o


Brasil a partir dos silenciados, dos invisíveis, dos marginalizados, visto que a
literatura nesse momento volta-se para questões políticas e sociais. Desse
modo, os escritores denunciam através de suas obras às desigualdades de
classes, o preconceito racial e a sociedade excludente.

Essa fase também é conhecida como o período de uma produção literária


regionalista, pois os escritores tratam de apontar o que há de especifico de
cada região brasileira, desse modo, há toda uma preocupação de representar o
nacional pelo local,

Nunca desejei senão ser um escritor do meu tempo e de meu país.


Não pretendi e não tentarei nunca fugir ao drama que nos coube
viver, de um mundo agonizante e um mundo nascente. Não pretendi
e nem tentarei jamais ser universal senão sendo brasileiro e cada vez
mais brasileiro. Poderia mesmo dizer, cada vez mais baiano, cada
vez mais um escritor baiano” (AMADO, 1961, p. 20).

322
Graduando(a)s do curso Letras/Libras/Língua Estrangeira da UFRB/CFP/Amargosa-Ba.
323
Prof.ª Drª. da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

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É nesse contexto que Jorge Amado como Regionalista traz para a sua
obra as representações do seu povo da sua terra em diferentes aspectos da
realidade da região da Bahia. Segundo Rufino a obra desse escritor é de suma
importância para a “disseminação de um discurso identitário para a própria
Bahia, para o Brasil e o mundo”.

“A obra de Amado é, sem dúvida, uma obra pragmática de pesquisa e


reflexão sobre os fundamentos culturais de sua terra” (MATOS, 2011, p. 12),
com seus múltiplos e multifacetados personagens Jorge Amado recria em seus
livros a paisagem Humana e social da Bahia, desde as pessoas humildes das
ruas de salvador, até os coronéis das fazendas de cacau.

Desse modo, pode-se dizer que há na obra de Jorge Amado uma forte
relação com a sua biografia, pois como baiano o escritor torna como núcleo
marcante de seus romances a encantada cidade de Salvador e seus
habitantes. Além disso, “sua obra, fornecerão um material correlacionado com
as suas atitudes ou atuações no cenário social e político do Brasil, na Bahia e
no mundo” (PERES, 2000, p. 20).

Amado através do uso de uma linguagem marcada pela oralidade, da


busca da liberdade,ao destaque de personagens do povo, as denúncias aos
preconceitos raciais, ás desigualdades entre as classes traz uma literatura
próxima das camadas populares, na qual se coloca ao lado dessas camadas
desfavorecidas.

Em sua obra “Capitães de areia” Jorge Amado traz atona como denúncia
social a questão do menor abandonado, e as situações de vulnerabilidade que
esse se encontra diante de uma sociedade marcada por opressores e
oprimidos. Assim, o romance é iniciado com o seguinte título “crianças
Ladronas”, e seguido do comentário jornalístico,

“Já por várias vezes o nosso jornal, que é sem dúvida o órgão das
mais legitimas aspirações da população baiana vem trazendo noticias
sobre atividade criminosa dos “Capitães da Areia”, nome pelo qual é
conhecido o grupo de meninos assaltantes e ladrões que infestam a
nossa urbe”. (...) (AMADO, 1988, p.03)

Fica evidente que na visão do jornal e da sociedade dominante da época,


as “crianças abandonadas” foram definidas como um perigo para a sociedade

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como um todo.No qual a sociedade se coloca como não culpada pela situação
de abandono em que se encontram essas crianças. Desse modo, a sociedade
deixa a entender que a culpa são das próprias crianças, dos pais ou até
mesmo por falta de valores cristãos como se observa em trechos escritos no
jornal “crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado á sua educação
por pais pouco servidores de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor
dos anos a uma vida criminosa”. (p. 3)

Em cartas ao jornal informando dos perigos que corre a sociedade diante


desse bando e exigindo das autoridades providências no sentido de extinção
dessas “crianças ladronas”, o juizado de menor, aqui entendido como sendo
uma autoridade responsável em criar meios no sentido não de punir mais de
acolher e garantir pelo menos os direitos básicos que são garantidos por lei a
todo e qualquer cidadão como a alimentação, moradia e educação, diz:

Ainda nestes últimos meses que decorreram mandei para o


Reformatório de Menores vários delinquentes ou abandonados. Não
tenho CULPA, porém, de que fujam, que não se impressionam com o
exemplo de trabalho que encontram com o estabelecimento de
educação e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente onde se
respiram paz e trabalho e onde são tratados com maior carinho.
Fogem e se tornam ainda mais perversos, como se o exemplo que
houvessem recebido fosse mau e daninho. Porque? Isso é um
problema que aos psicólogos cabe resolver e não a mim, simples
curioso da filosofia.(CAPITÃES DE AREIA, 2002, p. 09).

Então essas são as respostas e medidas tomadas pelo excelentíssimo Dr.


Juiz de menor, no qual a ele não cabe resolver o problema mais aos
psicólogos, a não ser levar esses indivíduos para um ambiente de total
repressão e punição que é o tal do Reformatório, lá como relata uma mãe “o
menos que acontece pros filhos da gente é apanhar duas e três vezes por dia”
(p.10) “o diretor gosta de ver o chicote cantar nas costas dos filhos da gente”,
(p.10), e o padre José Pedro também relata “a crianças na aludido reformatório
são tratados como feras, essa é a verdade”. (p.12)“...e em vez de conquistarem
as crianças com bons tratos, fazem-nas mais revoltas ainda com
espancamentos seguidos e castigos físicos verdadeiramente desumanos”
(p.12). Assim, a sociedade se revela diante de opressores e oprimidos.

Até a própria Igreja que se encarrega de levar a lição do suave Mestre se


revela opressora diante das “crianças abandonadas”, essa puniu severamente

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o Padre José Pedro que se compadeceu das crianças e tentou ajudar esses
indivíduos que viviam em situações desumanas, por isso, o Cônego chama o
padre e diz,

O senhor tem ofendido a deus e a igreja. Tem desonrado as vestes


sacerdotais que leva. Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido
como um comunista. Por isso nos vemos obrigado a não lhe dar tão
cedo a paróquia que o senhor pediu. (CAPITÃES DE AREIA, 2002, p.
144-145).

Nesse trecho também observa-se que quando o cônego diz “ tem agido
como um comunista” há uma relação com aponta Peres (2000) a biografia do
escritor, pois ele tinha um forte envolvimento político no cenário social do
Brasil, no qual se apresentava como comunista.

Assim como a igreja muitas pessoas ditam “alta da sociedade” também


via na atitude do padre uma atitude vergonhosa que ia contra os valores da
sociedade, como se observa em trechos da fala de dona Margarida “O senhor
não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um
homem de responsabilidade no meio dessa gentalha... cuspiu a velha. Tenha
mais cuidado com as suas relações” (p. 72).

Diante da situação de abandono em que se encontravam as crianças


essas estavam vulneráveis á toda e qualquer situação de desumanidade. A
fome, a miséria, a prostituição, a falta de moradia e a violência eles conheciam
como ninguém. Pedro Bala o chefe do bando se revelava o mestre nas brigas,
no qual se observa no relato, “e o resultado é que, quando pensava ter seguro
o chefe da malta, o jardineiro recebeu uma punhalada no ombro em seguida
outro no braço” (p.5)

“O Trapiche casarão abandonado que durante anos foi povoado


exclusivamente pelos ratos que os atravessavam em corridas brincalhonas,
que roíam a madeira das portas, que habitavam como senhores exclusivos” (p.
20), “até que os capitães da Areia lançam as suas vistas para o casarão
abandonado” (p. 20) e esse lugar torna a sua moradia.

Nesse ambiente algumas crianças conheciam precocemente a


sexualidade, Pedro Bala o chefe do bando com apenas 13 anos saia quase
sempre nas noitadas á procura de uma donzela para matar os seus desejos,

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Pedro Bala vacilava. Os seios da negrinha estavam intumescidos sob


seus dedos. As coxas duras, a carapinha do sexo. Então propôs ao
ouvido da negra (e fazia cócegas a língua dele): _ Só boto atrás. Não.
Não.Tu fica virgem igual. Não tem nada.Não. Não, que dói. Mas ele a
acarinhava, uma cócega subiu pelo corpo dela. Começou a
compreender que não o satisfez como ele queria, sua virgindade
ficaria ali. E quando ele prometeu ( novamente sua língua a excitava
no ouvido) se doer eu tiro...ela consentiu.Tu jura que não vai na
frente? Juro. (CAPITÃES DE AREIA, 2002, p. 83 – 84)

Muitas dessas crianças também eram grandes vítimas de doenças


infectocontagiosas “Almiro mostrou os braços cheios de bolhas. Professor
disse: _É alastrim. Bexiga negra fica logo preta” (p. 138), e viviam em situações
miseráveis“vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando
palavrões e fumando pontas de cigarros...” (p. 21).

Na obra Jorge Amado além de trazer uma denúncia social ao menor


abandonado e ás situações de vulnerabilidade na qual as crianças
abandonadas estavam expostas, traz também questões que afirma essa obra
como regionalista, pois percebe-se certa valorização da cultura popular da
Bahia como por exemplo, o candomblé, os “capitães de areia” sempre que
precisavam contavam com Don`Aninha, “por último veio Don Aninha veio onde
estavam os capitães de areia, seus amigos de há muito, porque são amigos da
mãe-de-santo os negros e todos os pobres da Bahia. Para cada um ela tem
uma palavra amiga e maternal” (p. 86 - 87).

Porém é uma valorização embutida ao mesmo tempo de uma critica a


sociedade da época que acha a sua cultura superior e única, Don Aninha “viera
no trapiche pela tarde, precisava de favor deles. Numa batida num candomblé
a polícia tinha carregado com Ogum, que repousava no seu altar” (p. 86). Isso
evidencia toda uma negação da cultura do outro, dita por essa sociedade como
inferior. Diante disso relata Don Aninha,

Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres
em paz. Pobre não pode dançar, não cantar pra seu deus, não pode
pedir uma graça para seu deus __sua voz era amarga, uma voz que
não parecia da mãe-de-santo Don Aninha. __Não se contentam de
matar os pobres de fome... Agora tiram os santos dos pobres... __e
alçava os punhos. (CAPITÃES DE AREIA, 2002, P. 87).
Nota-se também uma valorização do discurso direto o registro quase
bruto da oralidade popular, com seus erros de concordância, suas gírias e seus
chavões: “Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia? “Já fechei a cancela,

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Boa vida.Passei da idade”“Negro quando pinta, três vezes trinta” “Era um que
toda tarde vinha dar dois dedo de prosa comigo, gostava de tirar pilhéria” (p.
84).

Há também através dos nomes dos personagens a representação


tipicamente da camada popular como:Pedro Bala, João Grande, Professor,
Gato, Sem Pernas, Pirulito, Boa Vida, Volta Seca.

Entende-se a partir dessa obra que Jorge Amado faz toda uma denúncia
social a uma sociedade excludente marcada pelas desigualdades sociais na
qual não atende as mínimas condições de sobrevivência do ser humano.
Assim, acredita-se que o problema se apresenta ao contrário do que se
noticiou em cartas para o jornal, é essa sociedade que se revela como perigo
para essas crianças e não o inverso, visto que, se elas se tornaram seres tão
ofensivos foi á própria sociedade que os tornaram.

Nota-se também que há uma representação do nacional pelo local, pois o


problema social das crianças abandonadas, abordado pelo autor, não é uma
questão regional, mas uma mazela nacional, típica das grandes cidades
brasileiras.

Além disso, pode-se dizer que essa é uma obra atemporal, pois está
inserida em outro momento histórico da Literatura Brasileira e consegue
dialogar com a realidade social dos dias atuais, sobretudo em relação ao
menor abandonado, pois observa-se cotidianamente nos noticiários
jornalísticos que mesmo diante de uma lei que diz: Artigo 4º do (ECA) “É dever
da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder PÚBLICO
assegurar COM ABSOLUTA PRIORIDADE, a efetivação dos direitos referentes
à vida, à saúde, à alimentação, à educação” [...], muitas crianças ainda se
encontram abandonadas vulneráveis á toda e qualquer situação de
desumanidade na Salvador de hoje.

Nesse contexto, pode-se observar que essa realidade vivida pelas


crianças da obra “capitães de areia” de Jorge Amado’ não é uma realidade
vivida apenas pela cidade de salvador, mas também de muitas cidades do
interior do Recôncavo da Bahia onde muitas crianças se encontram nas
mesmas situações (de miséria, de falta de moradia, exposta a violência, ao

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

roubo, a doenças, às drogas), apontada por Jorge Amado na obra “capitães de


areia”. Além disso, nota-se que convivemos com a mesma sociedade apontada
na obra, uma sociedade excludente que “fecha os olhos” para essa realidade,
pois acredita-se que a responsabilidade dessas crianças compete apenas a
família, e não a sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge, Capitães de Areia; romance; ilustrações de Poty _ 108ª ed. _


Rio de Janeiro, 2002.
BENEDITO, Veiga Jorge Amado de todas as cores... [ et al ]._ salvador:
Fundação Pedro Calmon, André: Casarão do verbo, 2011.
MYRIAM, Fraga Bahia, a cidade de Jorge Amado, revisão de Vera
Rollemberg; textos de Fernando da Rocha Peres...[ et al. ]; ilus. De Calasans
neto[ et al. ]; capa pintura de Carlos Bastos. _ Salvador. FCJA/ MUSEU
CARLOS COSTA PINTO, 2000.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: BAIANIDADES, AFRICANIDADES E OUTRAS


LATITUDES

RESPONSÁVEL: JOABSON LIMA FIGUEIREDO (UNEB)

Ementa:
Este GT reúne trabalhos em temáticas distintas das propostas pelos demais
GT, mas relativas aos temas gerais do II Sinbaianidade e do II CILLAA.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

AVALIAÇÃO DO CONHECIMENTO NUTRICIONAL EM ATLETAS DE


CAPOEIRA DE SALVADOR-BAHIA

MARIANA PEREIRA SANTANA REAL (UNEB)


NADJA GOMES DE SANTANA (UNEB)

Resumo
A capoeira é reconhecida internacionalmente como uma modalidade esportiva
criada no Brasil. Atualmente, apesar deste esporte ser bastante difundido em
vários países, ainda vem resistindo às várias repressões e vencendo alguns
desafios que visam à valorização desta arte, considerada como Patrimônio
Cultural do Brasil. Objetivou-se, no presente estudo, avaliar o conhecimento
nutricional de atletas de capoeira de Salvador-BA. Trata-se de uma pesquisa
de campo, descritiva, composta por uma amostra de 31 atletas, com a faixa
etária entre 18 e 51 anos, filiados à Federação de Capoeira da Bahia. Foram
utilizados dois questionários para a execução do estudo, onde o primeiro mediu
nível sócio econômico e escolaridade e o segundo o conhecimento nutricional.
Os dados foram tabulados com auxílio do software Microsoft Excel 2007 e
analisados com uso do programa SPSS for Windows 13. De acordo com os
resultados encontrados, a amostra foi composta por 74,2% participantes do
sexo masculino (n=23) e 25,8% do sexo feminino (n=8). Entre os domínios que
avaliaram o conhecimento nutricional dos atletas, o domínio 1, referente à
gorduras trans foi o que obteve maior pontos na média, onde atletas com o
nível superior completo (0,84 ± 0,21) e pessoas pertencentes às classes
sociais mais elevadas (0,81 ± 0,24), foram as que obtiveram as maiores
pontuações. No entanto, não houve diferença estatisticamente significativa
entre o conhecimento nutricional, os domínios estudados e a raça dos
participantes. Dessa forma, verificou-se a necessidade de orientação
nutricional que ressalte a saúde e bem estar no esporte tanto para aqueles
atletas que alcançaram menores pontuações, onde classes sociais são menos
favorecidas, quanto os que obtiveram maiores médias.
Palavras-chave: capoeiristas. Nutrição. saúde.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Introdução
Ao longo da sua história, a capoeira que hoje é encarada não só como
uma arte, uma dança, mas principalmente uma modalidade esportiva, vem
resistindo a muitos percalços provenientes em sua maioria do preconceito
relacionado à sua origem (CAMPOS, 2009).
Segundo a Federação Internacional de Capoeira (1993), a modalidade
é reconhecida internacionalmente como um Desporto de Criação Nacional,
surgido no Brasil e como tal, integrante do legado histórico de sua formação e
colonização, fruto do encontro de suas matrizes étnicas: indígena, portuguesa
e africana, devendo ser protegida e incentivada.
Diante dessas transformações e visando um melhor rendimento e
desempenho dos atletas de capoeira, é sabido que vários aspectos contribuem
para um bom desempenho esportivo, que vão desde a aptidão física a uma
alimentação adequada.
Para isso, na busca de obter esses resultados é de extrema
importância a realização da avaliação do conhecimento nutricional deste
público, que de acordo com SOUZA (2009) permite descobrir o que os
indivíduos sabem sobre a alimentação e isso concede atuar em possíveis
programas de educação nutricional.
Segundo Wolinsky e Jr. Hickson (1996), os estudos do conhecimento
nutricional proporcionam um ponto de partida para a educação nutricional não
somente dos atletas, mas também dos seus treinadores e dos profissionais que
cuidam deles, sendo que as informações obtidas através dessas pesquisas
devem ser traduzidas em alterações nos hábitos alimentares, servindo assim
como base para a educação nutricional esportiva por toda a vida.
Dessa forma, é de grande valia aprofundar os conhecimentos em
relação aos aspectos nutricionais dos atletas de capoeira, sendo de suma
importância o desenvolvimento de mais estudos, pois são raros os trabalhos de
avaliação nutricional na literatura científica com este grupo que também
representa uma herança cultural para o Estado da Bahia. O presente estudo
teve por objetivo avaliar o conhecimento nutricional em atletas de capoeira de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Salvador-Bahia e correlacioná-lo com os níveis sócios econômicos, as


variáveis de escolaridade e com a raça/ cor dos atletas.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de campo, descritiva, que, segundo GIL
(2002) têm como objetivo primordial a descrição das características de
determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações
entre variáveis.
A amostra foi composta por 31 capoeiristas residentes da cidade de
Salvador- Bahia. Foram incluídos atletas com a faixa etária entre 18 a 51 anos,
do sexo masculino e feminino, devidamente filiados à Federação de Capoeira
da Bahia. O critério de exclusão da pesquisa foi a participação de atletas
oriundos de outro Estado ou País. Na coleta de dados, foi solicitado aos
voluntários assinarem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
autorizando a sua participação na pesquisa.
A coleta de dados foi realizada no I Campeonato Baiano de Capoeira e
em uma academia de capoeira, ambos na cidade de Salvador- Bahia. Foram
utilizados dois questionários na pesquisa:
Um visou obter dados sobre o perfil socioeconômico dos indivíduos,
através da estimativa do poder de compra das pessoas e famílias urbanas. As
informações foram adaptadas, utilizando-se do Critério de Classificação
Econômica Brasil – 2014, da ABEP (Associação Brasileira de Empresas de
Pesquisa). A classificação deste ocorre mediante a somatória de pontos, em
que se obtém: Classe A1 (42 – 46 pts), classe A2 (35 - 41 pts), classe B1 (29 –
34 pts), classe B2 (23 – 28 pts), classe C1 (18 – 22 pts), classe C2 (14 – 17
pts), classe D (8 – 13 pts), classe E (0 – 7 pts).
O outro instrumento foi o Questionário de Conhecimento Nutricional
para Adultos (QCNA), criado para avaliar o conhecimento de participantes de
um programa de educação nutricional onde foi elaborado por três nutricionistas
e uma psicóloga e validado pela Universidade de Brasília em 2010. O
questionário de conhecimento nutricional possui caráter abrangente e é
subdividido em cinco Domínios: I) Conhecimento em gorduras trans; II)
Percepção de alimentação saudável; III) Conhecimento sobre práticas

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

alimentares saudáveis; IV) Conhecimento sobre conteúdo de sal nos alimentos


e V) conhecimento sobre doenças relacionadas à alimentação.
O instrumento foi composto por 20 questões, sendo que para os itens
de múltipla escolha, cada uma das alternativas foi considerada um item
separado. Para a determinação dos escores, foi definida uma pontuação
separadamente para cada alternativa variando de 0 a 1. O item recebia valor
nulo quando o sujeito errava, valor 0,5 quando optava pela resposta “não
sei/não tenho certeza” e 1 quando acertava. Em seguida, calculou-se a média
dos valores dos itens para obtenção do escore médio de cada domínio.
Portanto, para cada respondente a pontuação em cada domínio específico
poderia variar entre 0,0 e 1,0, sendo que 0 (zero) corresponde a nenhum
conhecimento ou nenhum acerto no domínio, e 1 (um) corresponderia a
conhecimento ou acerto total nos itens do domínio (GUADAGNIN, 2010).

Os dados foram tabulados com auxílio do software Microsoft Excel


2007 e analisados com uso do programa SPSS for Windows 13. Foi realizada
análise descritiva univariada, obtendo-se a distribuição de frequências para as
variáveis qualitativas investigadas no estudo e cálculo de medidas descritivas
como média e desvio-padrão para as variáveis quantitativas. Para investigar as
diferenças nos escores de conhecimento nutricional entre as categorias das
variáveis qualitativas de interesse foi utilizado o teste não-paramétrico de
Kruskal-Wallis, adotando-se nível de significância de 5%.

Resultados e discussão

A amostra foi composta por 31 atletas, sendo 74,2% do sexo masculino


(n=23) e 25,8% do sexo feminino (n=8). A média de idade dos atletas
correspondeu a 29,35 anos (DP = ± 7,15) variando de 18 a 51 anos.
Não houve atletas caracterizados nas raças indígena e amarela, no
entanto, a maioria dos atletas declarou-se da raça negra 74,2% (n= 23),
resultado característico da população soteropolitana onde em sua maioria é
composta por negros (80%), sendo considerada a maior cidade com a
população negra fora da África (TEIXEIRA; ARAÚJO, 2013).
Em relação ao grau de escolaridade observou-se que 48,4 % (n=15)
possuíam o ensino médio completo ou superior incompleto, não havendo

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

indivíduos identificados como analfabeto ou fundamental 1 Incompleto. Quanto


ao nível socioeconômico a classe C1 obteve maior frequência de indivíduos,
equivalendo a 32,3% (n=10), correspondendo em média à uma renda familiar
mensal de aproximadamente um salário mínimo e meio. Na tabela 1, são
apresentados os dados referentes à caracterização sociodemográfica da
população estudada.

TABELA 1: Caracterização sociodemográfica de atletas de capoeira de


Salvador-Ba.

Características N %
Sexo
Masculino 23 74,2
Feminino 8 25,8
Idade
< 25 anos 8 25,8
25 a 34 anos 18 58,3
35 ou mais 5 16,1
Raça
Branca 3 9,7
Negra 23 74,2
Indígena 0 0
Amarela 0 0
Parda 5 16,1
Escolaridade
Analfabeto/Funda 0 0
mental 1 Incompleto
Fundamental 1 1 3,2
Completo/ Fundamental 2
Incompleto
Fundamental 2 6 19,4
Completo/ Médio
Incompleto
Médio Completo/ 15 48,4
Superior Incompleto
Superior 9 29,0
Completo
Nível
Socioeconômico
A1 0 0
A2 1 3,2
B1 3 9,7
B2 7 22,6
C1 10 32,3
C2 9 29,0
D 1 3,2
E 0 0
No que concerne ao questionário que avaliou o conhecimento
nutricional, este foi dividido em cinco domínios, nos quais abrangeram assuntos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

diretamente ligados à ciência da nutrição, tais como: conhecimento em


gorduras trans (domínio 1); percepção de alimentação saudável (domínio 2);
conhecimento sobre práticas alimentares saudáveis (domínio 3); conhecimento
sobre conteúdo de sal nos alimentos (domínio 4) e conhecimento sobre
doenças relacionadas à alimentação (domínio 5). A tabela 2 mostra uma
comparação entre os domínios estudados.

TABELA 2: Média dos escores obtidos por atletas de capoeira para diferentes
domínios de conhecimento em nutrição, Salvador-Ba.

Domínios em Nutrição Média (DP)

Conhecimento em gorduras trans 0,70 (0,21)

Percepção de alimentação saudável 0,53 (0,19)

Conhecimento sobre práticas alimentares saudáveis 0,47 (0,40)

Conhecimento sobre conteúdo de sal nos alimentos 0,70 (0,19)

Conhecimento sobre doenças relacionadas à alimentação 0,47 (0,43)


DP= desvio padrão.

De modo geral, os atletas apresentaram, um nível de conhecimento


nutricional moderado em todos os domínios, com escores médios entre 0,40 e
0,70, sendo que a pontuação mínima é 0,0 e a máxima é 1,0. Os atletas
evidenciaram menor conhecimento com relação os domínios 3 e 5
(conhecimento sobre práticas alimentares saudáveis e conhecimento sobre
doenças relacionadas à alimentação, respectivamente), obtendo menores
médias e com maiores variabilidades nos escores individuais.

O Domínio 1, referente ao Conhecimento em gorduras trans, foi aquele


que mais se destacou, apresentando maior média (0,70 ± 0,21). A gordura
trans é um lipídio encontrado principalmente na gordura vegetal parcialmente
hidrogenada, frequentemente encontrada nos alimentos industrializados, sendo
o seu consumo comprovadamente prejudicial à saúde humana, pois favorece

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

tanto no desenvolvimento de doenças crônicas, quanto na depuração do


estado nutricional. A Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu a
eliminação do consumo de gordura trans industrial como uma das metas da
Estratégia Global para Promoção da Alimentação Saudável, Atividade Física e
Saúde (PROENÇA; SILVEIRA, 2012)
O Ministério da Saúde (2008) em parceria com a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (ANVISA) obriga informação do teor de gorduras trans na
rotulagem de alimentos processados. Isso pode despertar o interesse de
grande parte da população em relação aos malefícios que o consumo de
alimentos industrializados pode provocar à saúde, e isso resulta em uma maior
atenção na leitura dos rótulos e assim melhor seleção dos alimentos para o
consumo.

Na tabela 3 são apresentadas a correlação dos domínios que


avaliaram o conhecimento nutricional com as variáveis raça/ cor, grau de
escolaridade e nível socioeconômico, utilizadas no estudo. Visando uma
melhor compreensão dos dados, foi necessário o agrupamento dessas
variáveis para uma melhor interpretação dos resultados.

TABELA 3: Correlação entre os Domínios e as variáveis: Raça, Escolaridade e


Nível socioeconômico de atletas de capoeira de Salvador-Bahia.

Variáveis DI D II D III D IV DV

Média Dp Média DP Média Dp Média Dp Média Dp

Raça
Branca 0,87 0,23 0,57 0,29 0,78 0,38 0,78 0,25 0,67 0,58
Negra ou Parda 0,66 0,20 0,52 0,19 0,44 0,39 0.69 0,19 0,45 0,42
P-valor 0,121 0,711 0,165 0,450 0,414
Escolaridade
FI até MI 0,61 0,17 0,57 0,24 0,38 0,41 0,67 0,19 0,14 0,24
MC a SI 0,63 0,18 0,54 0,19 0,42 0,34 0,72 0,22 0,60 0,43
SC 0,83 0,21 0,47 0,18 0,63 0,48 0,68 0,15 0,50 0,43
P-valor 0,043* 0,692 0,459 0,536 0,063
Nível
socioeconômico
A ou B 0,81 0,24 0,53 0,21 0,55 0,49 0,69 0,17 0,55 0,42
C ou D 0,62 0,15 0,53 0,19 0,43 0,36 0,69 0,21 0,43 0,44

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

P-valor 0,017* 0,851 0,562 0,882 0,442


DP = desvio padrão; DI (Domínio 1); DII (Domínio 2); DIII (Domínio 3); D4 (Domínio 4); D IV (Domínio 5); FI
(Fundamental incompleto); MI (Médio incompleto); MC (Médio completo); SI (Superior incompleto); SC (Superior
completo); *p ≤ 0,05 - diferença mínima significativa.
*= nível de significância para o teste Kruskal-wallis.

Na análise que associou o conhecimento nutricional com a variável


raça/cor, observou-se que pessoas da raça branca apresentaram uma média
maior de pontos, em todos os domínios em relação às que se declararam
pardas ou negras. Entretanto, não foi verificada diferença estatisticamente
significativa entre o conhecimento nutricional entre os domínios e a raça.
Estudos que avaliam o conhecimento nutricional de atletas e
desportistas associando a Raça/Cor são escassos. No entanto, as relações
entre cor/raça e saúde vêm sendo objeto de uma série de iniciativas centrada
na criação de um campo de reflexão e de intervenção política no Brasil, como
por exemplo, os estudos sobre a saúde da população negra (MONTEIRO, et al.
2008).
Na correlação do conhecimento nutricional e o nível de escolaridade
foram constatadas diferenças significativas para o domínio 1 (p- valor <0,05),
observando-se que atletas com o nível superior completo apresentaram maior
conhecimento (0,83 ± 0,21) em comparação aqueles dos demais níveis, sendo
que o domínio 5 ficou próximo de acusar diferença.

O nível de instrução dos atletas é um fator que merece atenção, pois


tem influência direta de como estes compreendem e tem acesso a
determinadas informações que podem influenciar em escolhas alimentares
mais criteriosas e também no cuidado de um modo geral da sua saúde.

Para Castro et al. (2010) o nível de escolaridade pode influenciar na


procura por informações e tomada de atitudes em busca de conhecimentos
associados à nutrição e alimentação. Em seu estudo, chegaram a conclusão de
que o conhecimento nutricional pode estar associado com o estado nutricional
e o nível de escolaridade de mulheres, com idade entre 20 e 60 anos. No
entanto, os autores não associaram esta variável como um contribuinte direto
para o aumento do conhecimento específico, em função de não serem
ensinados conteúdos estruturados a respeito do assunto em longo prazo no
período escolar.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Ao avaliar a relação entre o conhecimento nutricional e o nível


socioeconômico observou-se que indivíduos pertencentes a classe A ou B
(0,81 ± 0,24) que apresentam maior renda de acordo com a classificação
econômica do Brasil, obtiveram pontuações significativamente maiores (p=
0,017), no domínio 1 em relação a classe C ou D (0,62 ± 0,15).
Costa et al. (2012) relatam resultados semelhantes à estes, quando
explanam a respeito do estudo realizado com mulheres praticantes de atividade
física na cidade de Aracaju - SE, apontando que indivíduos que apresentaram
maiores renda foram os que obtiveram notas significativamente maiores no
conhecimento nutricional. No entanto, aqueles que foram considerados com
conhecimento moderado e atingiram notas inferiores, foram os que
apresentavam menor renda, o que mostra a necessidade do desenvolvimento
de ações de educação nutricional nesta população para promoção de hábitos
alimentares saudáveis.

Já Campos et al. (2006) realizaram uma pesquisa no município de


Fortaleza onde foi analisado a relação entre o nível socioeconômico e a
prevalência de sobrepeso e obesidade em adolescentes escolares. Os autores
concluíram que existe uma relação diretamente proporcional entre o nível
socioeconômico e o excesso de peso, sendo maior nos estratos sociais mais
elevados, em adolescentes do sexo masculino daquele município. No mesmo
estudo, os autores elucidam a respeito do progressivo aumento da obesidade
para indivíduos sem escolaridade, fator essencial na obtenção de
conhecimentos associados a nutrição e alimentação.

È de suma importância a avaliação do conhecimento nutricional de


determinada população, pois tais conhecimentos podem auxiliar em escolhas
alimentares saudáveis e se tratando de indivíduos que praticam atividade
física, o domínio deste tema constitui um fator eficiente no rendimento e
performance. Pires et al. (2010) mostraram em uma amostra composta por 25
atletas profissionais de futebol do gênero masculino e com idades entre 18 e 21
anos, que a sua maioria 44 % apresentaram baixo conhecimento, seguidos por
36% moderado e 20% alto conhecimento nutricional. Os autores atribuíram
estes resultados, em parte, às fontes escolhidas por parte dos atletas a fim de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

obter informações sobre nutrição que nem sempre possuem embasamento


científico, tornando-as errôneas não fidedignas.

Em sua pesquisa, Araújo (2012) investigou o conhecimento nutricional


de praticantes de corrida de Araguari- MG, representada por uma amostra de
30 atletas de ambos os sexos, com idade entre 15 e 50 anos. Os resultados
mostraram que todos eles demostraram possuir conhecimento acima de 50%
quanto a identificação dos alimentos fontes de carboidratos, proteínas e
lipídeos, entretanto a maioria desconheceu as funções, a importância e o
consumo adequado dos alimentos. Dessa forma, chegou-se à conclusão de
que a maioria
dos avaliados possuíram conhecimento insuficiente para a prática de atividade
física.
Em outro trabalho, realizado por Pereira e Cabral (2007) com um grupo
de 141 indivíduos, foi avaliado os conhecimentos básicos sobre nutrição de
praticantes de musculação na cidade de Recife- PE. Os resultados apontaram
um certo conhecimento quando foi estabelecida a relação alimento-fonte.
Porém, esses resultados foram considerados insatisfatórios, no que se referiu
ao grau de conhecimento sobre suplementos nutricionais, já que estes
constituem uma ferramenta atrativa para pessoas que frequentam academias.

Conclusão
• Entres os domínios que avaliaram o conhecimento nutricional de
atletas de capoeira de Salvador-BA, o DI, referente à gorduras trans foi
o que mais se destacou, onde atletas com o nível superior completo e
pessoas pertencentes às classes sociais mais elevadas obtiveram
maiores pontuações na média.
• Com relação às variáveis estudadas, apesar de não haver diferença
estatisticamente significativa, pessoas que se declararam brancas
obtiveram maior médias de pontos.
• Demonstra-se com isso, a necessidade de orientação nutricional que
ressalte a saúde e bem estar no esporte tanto para aqueles que
alcançaram menores pontuações, onde classes sociais são menos

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

favorecidas, quanto os que conseguiram maiores médias, sendo


imprescindível a criação de estratégias nutricionais educacionais que
também possibilitem a correlação do conhecimento a respeito de
informações sobre alimentação e a prática alimentar.

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BAHIA E AFRODESCENDENTES VERSUS HEMOGLOBINOPATIAS E/OU


TALASSEMIAS EM HETEROZIGOSES – UMA REVISÃO DE LITERATURA

MARIA DE FÁTIMA BRAZIL DOS SANTOS SOUTO (UNEB) 324,


MARIA DE LOURDES PIRES NASCIMENTO (UFBA) 325,
HELEN LACERDA EDINGTON FONSECA (UNEB) 326

Conceitos e origens das hemoglobinopatias e talassemias

São alterações genéticas na estruturada hemoglobina (Hb), tendo como


consequência a deficiência de oxigenação dos tecidos, sendo responsáveis por
anemias genéticas. Existem diversos tipos de hemoglobinopatias e de
talassemias.
As hemoglobinopatias são substituições anormais de aminoácidos em
uma das quatro cadeias da globina. As mais frequentes no Brasil são HbS,
HbC e HbD, que foram inicialmente identificadas em povos da África
(ORLANDO, NAOUM, SIQUEIRA, 2000). As hemoglobinopatias podem ser em
heterozigose (geralmente assintomáticas) e homozigose (casos com
sintomatologias clínicas).
As talassemias (Th) são deficiências na intensidade de produção de uma
ou mais das quatro cadeias da globina. A depender do tipo de intensidade na
heterogeneidade das alterações nas cadeias da globina é que surge ou não o
quadro clínico. As talassemias podem ser alfa (α) e beta (β), com as seguintes
denominações na dependência da sintomatologia clínica e quadro laboratorial:
talassemia maior ou major (quadro clínico/laboratorial com os resultados mais
intensos), talassemia intermédia (quadro clínico/laboratorial com média
intensidade), talassemias minor (casos com ausência de sintomatologia clínica
e eritrograma com microcitose, hipocromia e valor normal de RDW- Red Cell
Distribution Width).
As Thβ têm suas origens em povos do Mediterrâneo, principalmente
italianos e gregos, ou seja, povos da raça branca, e as Thα são freqüentes em

324
Professora da Universidade do Estado da Bahia, Doutora em Biotecnologia/Farmácia/Parasitologia
325
Professora da Universidade Federal da Bahia, Mestre em Educação.
326 3
Professora da Universidade do Estado da Bahia, Doutora em Filologia Galega

1430
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

povos africanos (CANÇADO, 2006; HERSHKOVITZ e EDELSON, 2006;


WAGNER, 2005; WENNING, 2000; LOREY, ARNOPP e CUNNINGAM 1996;
WONG, 1986).
A presença da HbS, HbC e Thα protege e/ou atenua os quadros clínicos da
malária, que é uma doença endêmica em regiões africanas (MODIANO et al.,
2008; MAY et al., 2007; WELLEMS e FAIRHURST, 2005; MIN-OO e GROS,
2005; WILLIAMS et al., 2005; MOCKENHAUPT, et al., 2004; RIHET, 2004;
MODIANO, LUONI e SIRIMA, 2001). Entretanto, existem referências de que
populações pré-históricas do Mediterrâneo também tiveram malária,supondo-
se que esta seja a origem da Thβ (HERSHKOVITZ e EDELSON, 2006).

Importância das heterozigoses para hemoglobinopatias e talassemias

Estes casos geralmente são assintomáticos, têm a sua maior


importância quando um casal de heterozigotos procria, existindo a
possibilidade do nascimento de recém-nascidos homozigotos, ou seja, com
anemias genéticas do tipo doença falciforme, doença da hemoglobina C,
talassemia intermédia, talassemia major, interação falcemia/talassemia etc.
Entretanto,as talassemias minor assintomáticas apresentam um quadro
laboratorial eritrocitário semelhante ao da anemia ferropriva, isto é, com
presença da de microcitose e hipocromia (WAGNER et al., 2005;
NASCIMENTO, 1999).
Em populações nas quais as infecções parasitárias e as desnutrições
são frequentes, quando existe a presença de talassemias minor
(assintomáticas), esta associação pode ser fator que dificulte o diagnóstico
laboratorial das deficiências de ferro, se não houver exames específicos para
evidenciar a presença das talassemias (NASCIMENTO, 1999; NASCIMENTO,
2005). É necessário que exista esta diferenciação e o diagnóstico correto das
talassemias minor porque existem implicações nos procedimentos terapêuticos
à base de ferro (WAGNER, 2005, HEINRICH et al., 1973; OLIVARES, 1999;
WEATHERALL e CLEGG, 2001; STEPHENSON, LATHAM e OTTESEN,
2000).

1431
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Frequência de hemoglobinopatias e talassemias em heterozigoses na


Bahia

Aproximadamente 7% da população mundial apresenta desordens


genéticas da hemoglobina. Há uma referência de que 300.000 a 400.000
crianças no mundo nascem anualmente com alguma forma de alteração
genética da hemoglobina e que estas condições têm frequências mais
elevadas nas regiões tropicais (WEATHERALL e CLEGG, 2001).
Vários trabalhos se referem à presença destas anemias genéticas em
heterozigoses na Bahia. Em 1994, em 2.097 candidatos à doação de sangue
no Hemoba, Salvador, Bahia (NASCIMENTO e BORJA, 1999), foram
encontrados 5,3% com heterozigoses para Hb S (Hb AS). No Laboratório
Prevlabor, Previna em Salvador-Bahia (NASCIMENTO e SILVA, 2005), na
avaliação de 1.537 amostras enviadas ao setor de Hematologia, através de
cromatografia líquida por alta resolução (HPLC - High-performance liquid
chromatography), foram identificados vários casos com heterozigoses, para
diversos tipos de hemoglobinopatias: Hb AS = 10,60%, Hb AC = 3,97%, Hb AD
= 0,26% e casos com Hb A/Thβ minor = 3,20%. Em 590 recém-nascidos de
uma maternidade pública em Salvador (ADORNO, COUTO e MOURA NETO,
2005), uma avaliação do sangue em cordão umbilical através de técnicas de
biologia molecular mostrou que 19,7% apresentaram heterozigose para Thα,
9,8% heterozigose para Hb AS (FAS) e 6,5% heterozigose para Hb AC (FAC).

Miscigenação e afrodescendentes

Os índios brasileiros não apresentaram relevantes diferenças genéticas entre


si. Os portugueses que vieram para o Brasil, embora fossem de uma população
eminentemente européia, já trouxeram séculos de integração genética e
cultural com outros povos: celtas, mouros do norte da África, judeus. Os
escravos africanos pertenciam a muitas etnias e nações: por exemplo, bantos
(Angola, Congo e Moçambique). Na Bahia predominaram escravos da Nigéria,
Daomé e Costa do Marfim (FLORENTINO e MACHADO, 2002).

1432
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A maioria dos colonos portugueses foi de homens, que deram origem a


relações de concubinatos com as índias e principalmente escravas africanas,
formando a raiz étnica brasileira. Com a abolição da escravatura, entraram no
sul e sudeste do Brasil os imigrantes europeus, principalmente italianos, que
unindo-se aos mestiços e negros,diluíram a população negra brasileira.
A união entre imigrantes europeus e brasileiros apenas alterou o
fenótipo, pois a população brasileira continuou com o genótipo mestiço
(FLORENTINO e MACHADO, 2002).
A utilização do termo raça é muito mais uma construção social e cultural do que
biológica. Do ponto de vista genético não existem raças humanas, porque o
homem se distribuiu geograficamente desenvolvendo características físicas
que muitas vezes foram adaptação ao ambiente de cada nicho geográfico.
Geneticamente não houve diversificação biológica suficiente entre esses
grupos geográficos para caracterizar uma raça (PENA e BORTOLINI, 2004).
Através de estudos da genética molecular e da genética de
populações,a avaliação quantitativa da contribuição africana na formação do
povo brasileiro revelou que aproximadamente dos 30% de brasileiros auto
classificados como brancos e dos 80% de negros, todos eles apresentaram
linhagens maternas características da região do continente africano ao sul do
Deserto do Saara, que tem predominância de povos com a pele escura, por
isto é chamada de África Negra. Os estudos genéticos de DNA de brasileiros
brancos revelam que a esmagadora maioria das linhagens paternas foi
transmitida da população branca que veio da Europa, mas que 60% das
linhagens maternas são africanas e/ou ameríndias (PENA e BORTOLINI, 2004;
PENA et al., 2000).
Através dos estudos mitocondriais foi estimado que pelo menos 89 milhões de
brasileiros são afrodescendentes e este número é bem maior do que os 76
milhões de pessoas que se declararam negras (pretas e pardas) no censo de
2000 do IBGE (IBGE, 2006). As análises de polimorfismos nucleares
mostraram resultados ainda mais expressivos porque146 milhões de brasileiros
(86% da população) apresentam mais de 10% de contribuição africana em seu
genoma, e a maior concentração de afro-brasileiros está no estado da Bahia
(FLORENTINO e MACHADO 2002; PENA e BORTOLINI, 2004; PENA, 2004).

1433
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Por que existem hemoglobinopatias e talassemias na Bahia

Através do que já foi referido, podemos deduzir que a presença de


determinados tipos de hemoglobinopatias (Hb S, Hb C, Hb D) e a Thα foram
provenientes de africanos e que a Thβ teve origem dos povos europeus
(CANÇADO, 2006; WAGNER et al., 2005; LOREY, ARNOPP e CUNNINGAM,
1996; WONG et al., 1986; FLORENTINO e MACHADO, 2002; PENA e
BORTOLINI, 2004; PENA, 2004; VIANA FILHO, 1988).
Com o tráfico dos escravos, as HbS, HbC, HbD e Thα vieram para o
Brasil e nas regiões onde existiram maiores números de escravos, a presença
destas hemoglobinopatias e talassemias também foi mais elevada. Dos 3.6
milhões de escravos traficados para o Brasil, estima-se que 25%, ou cerca de
1.067.080, nas contas do historiador baiano Luiz Viana Filho (VIANA FILHO,
1988), tenham sido transportados para a província da Bahia. Barickman (2003)
afirma que segundo estimativas de David Eltis, (1999) a Bahia importou
410.000 escravos procedentes da Costa da África entre 1786 a 1851, enquanto
que no mesmo período as importações em todas as províncias ao norte – de
Sergipe até o Pará – não passavam de 260.000 escravos. No fim do tráfico dos
escravos (VIANA FILHO, 1988; RIBEIRO, 2009; SILVA, 2007), as importações
de escravos para a Bahia foram quase que duas vezes maiores (68.000
indivíduos) do que para as demais províncias do norte e do nordeste (35.500
indivíduos).

Afrodescendentes e exames hematológicos

Em relação aos afrodescendentes, quando se procuram características em


exames hematológicos, comumente se faz o Teste da Falcemia, que quando o
resultado é positivo, significa somente a presença da HbS. Este teste não
identifica a presença das outras hemoglobinopatias que também são
características de afrodescendentes.

1434
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Após a revisão do presente artigo, podemos observar que outros tipos


de hemoglobinopatias e talassemias também podem evidenciar características
afrodescendentes (HbC, HbD e Thα) e que a presença da Thβ evidencia a
presença de características européias,desde quando os afrodescendentes não
são exclusivamente afros, existindo também características européias.
Existem outros exames hematológicos que não são raros, mas que
também podem evidenciar características afrodescendentes, tais como:
a) as talassemias Thαe Thβ, em heterozigoses, através do eritrograma por
automação, quando existe a presença de RDW com valores normais,presença
de microcitose, hipocromia, micrócitos e ausência de infecções parasitárias ou
de situações espoliantes do ferro (NASCIMENTO, 2005; PAIVA, RONDÓ e
GUERRA-SHINOHARA, 2000; BEUTLER e WEST, 2005);
b) em algumas raças e grupos populacionais específicos (negros africanos e
norte-americanos, indianos, judeus iemenitas) existem indivíduos
assintomáticos com valores leucocitários totais mais baixos (3.500 a
4.500/mm3). São Valores Étnicos (DAVIS, 1967; EZELLO, 1972;
KARAYALCIN, ROSNER e SAWITSKY, 1972; NASCIMENTO e SILVA, 2007;
SHAPER e LEWIS, 1971; SHOENFELD, 1978). A presença de valores
leucocitários totais sugestivos de etnia precisa ser mais bem caracterizada,
principalmente em populações muito miscigenadas.
A presença de características afrodescendentes, hemoglobinopatias em
heterozigoses, talassemias alfa minor, diminuição dos valores de leucócitos
totais, são características genéticas que estão presentes no sangue,
especificamente nas hemácias e nos leucócitos e nem sempre estão
associadas a características físicas externas, tais como: a cor da pele, a textura
do cabelo, o formato dos lábios e nariz, nem a determinadas características
faciais, etc.

Importância das Avaliações Populacionais

Através da Portaria nº 822/2001do Ministério da Saúde (BRASIL, 2001) foram


incluídas as hemoglobinopatias no Programa Nacional de Triagem Neonatal. A

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

obrigatoriedade desta portaria representa um passo importante para o


diagnóstico precoce das hemoglobinopatias. Deste modo, muitas crianças
nascidas após a existência deste programa, através do Teste do Pezinho, têm
principalmente o diagnóstico neonatal das hemoglobinopatias HbS, HbC, HbD,
facilitando o acompanhamento médico para os casos que são homozigotos.
Este resultado das hemoglobinopatias, tanto em homozigose como em
heterozigose, também é uma informação de que existe afrodescendência.
Entretanto, as talassemias não são identificadas através do Teste do Pezinho
e, geralmente, quando suspeitadas, são após um ano de idade através de
sintomatologias, de resultados de eritrogramas ou anemias que não
respondemà terapêutica com ferro.
Para a Doença Falciforme (aqueles que são homozigotos e têm
sintomatologias clínicas e laboratoriais explícitas) ainda existem casos com
diagnóstico tardio (NASCIMENTO, 2008), ou sem diagnóstico quando já estão
na adolescência e/ou idade adulta, porque na Reumatologia (NASCIMENTO,
COSTA e QUEIROZ, 1994), em 55 pacientes de ambulatório com dores
articulares, 40% apresentaram hemoglobinopatias do tipo Hb AS, Hb AC, Hb
SC e Hb S/Thβ. Existem casos que podem estar sendo denominados de
heterozigotos para Hb AS e ou Hb AC, mas que podem apresentar algumas
sintomatologias discretas e através de exames laboratoriais mais específicos
se identificam associações de heterozigoses para Hb AS e ou Hb AC com Th
(αe ou β) (NASCIMENTO e GESTEIRA,1988).
Crianças, adolescentes e adultos que nasceram antes da existência da
Portaria do Ministério da Saúde do Brasil (BRASIL, 2001), quando são
heterozigotos (com ausência de sintomatologia clínica) podem estar sem este
diagnóstico e muitas vezes somente serão identificados quando geram filhos
com anemias genéticas. Avaliações populacionais de hemoglobinopatias e
talassemias em assintomáticos através de exames laboratoriais adequados
serão de grande utilidade para aconselhamento genético (nos casais com
heterozigoses para hemoglobinopatias e ou talassemias minor) e para o
tratamento médico (nos casos com infecções parasitárias associadas a
talassemias minor).

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Conclusões

A revisão de literatura permitiu conhecer que o Brasil é um país com


miscigenação acentuada, com a maior população de origem africana fora da
África, sendo muito difícil a classificação racial. Praticamente não há pessoas
puramente brancas ou puramente negras, mas sim diferentes graus de
mestiçagem que deve ser mais intensa nas regiões onde existiu maior número
de escravos (a Bahia é uma destas regiões). Os afrodescendentes são
denominados de mulatos, morenos, sararás, pardos, escurinhos, moreninhos
etc. Poucos países no mundo tiveram tão rica interação de “raças” e etnias
como ocorreu no Brasil.
O conceito de “raça” faz parte do arcabouço canônico da medicina,
associado à idéia de que cor e/ou ancestralidade biológica são relevantes
como indicadores de predisposição a doenças ou de resposta a fármacos. O
baixo grau de variabilidade genética e de estruturação da espécie humana é
incompatível com a existência de raças como entidades biológicas.
Considerações de cor e/ou ancestralidade geográfica pouco ou nada
contribuem para a prática médica, especialmente no cuidado do paciente
individual, mesmo quando se tratam de doenças ditas “raciais”, como é o caso
da anemia falciforme, pois são conseqüência de estratégias evolucionárias de
populações expostas a agentes infecciosos específicos. Segundo Gilroy
(2001), “o conceito social de raça é tóxico, contamina a sociedade como um
todo e tem sido usado para oprimir e fomentar injustiças, mesmo dentro do
contexto médico”.

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Endereço para correspondencia: fbrazuotmail.com

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

INDÍGENAS E NEGROS: RETRATOS DO BRASIL


EM CRÔNICAS COLONIAIS

CARLA DA PENHA BERNARDO (DCH-I – UNEB)

Ao professor Antonio Martins de Araujo.

Teceremos algumas considerações a partir da leitura do Noticiário


maranhense, descrição do Estado do Maranhão, suas contendas e
peregrinas circunstâncias, de 1685, de João de Souza Ferreira, fazendo-o
dialogar com outras antigas crônicas. O texto, cedido pelo professor Antonio
Martins de Araujo (UFRJ), foi copiado a partir do microfilme do lexicógrafo
Antônio Geraldo da Cunha, que, por sua vez, fizera cópia do manuscrito
original que pertencera ao bibliófilo francês J. J. Renoux.

Todos os que se referiram ao Noticiário chamaram a atenção para


seus problemas, sobretudo para sua oscilação ortográfica, tanto que Francisco
Barata, que editou o texto em 1919, afirmou: “Manuscripto singular é o que ahi
vai por cópia! /..../ Tem defeitos e erros tão numerosos, que quase se pode
dizer não haver nelle uma palavra portuguezmente escripta” (APUD
BERNARDO, 1996, p. 8). Não se pode deixar de notar, no entanto, o valor
documental da obra. As ideias nela presentes, quando lidas junto com as obras
contemporâneas, permitem uma melhor compreensão de importantes fatos
históricos do país.

O Noticiário maranhense é uma forma de angariar a simpatia real


para as terras brasílicas, em especial as do antigo Estado do Maranhão e
Grão-Pará. O texto mostra as adversidades enfrentadas pelos portugueses em
uma terra desconhecida, de climas e hábitos completamente diversos dos
seus, repleta de matas, índios violentos, doenças, animais ferozes, mas
também de bens naturais e de riquezas, cujo principal produto, o pau-brasil,
oferecia o lucro de 500%.

No livro, defende-se o cativeiro indígena como solução para eliminar os


problemas do norte do país, visto que a mão-de-obra negra, além de mais cara,

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era difícil de ser adquirida no Estado – é isso o que o autor tenta provar em
suas 236 páginas manuscritas.

Havia, de um lado, a proibição do cativeiro defendida pelo Reino e


pelos jesuítas, por isso era preciso não apenas mostrar a necessidade de
submeter os índios, como os europeus os chamavam, mas sobretudo prová-la
com fatos. Isso foi motivo de muitos conflitos no Maranhão, o que levaria o
povo local a se revoltar, a perseguir e a expulsar os jesuítas. Sequer o padre
Antônio Vieira escaparia.

A dependência do português em relação ao indígena era total,


‘comendo o branco por sua mão’ e sendo salvo, pelos nativos, das matas
desconhecidas onde os europeus morriam por não poderem encontrar a saída:

Demais que, se há razão para se captivarem pretos, desterrando-os de


suas terras, menos escruplo, parece, se podia fazer de pessuir Tapuias
captivos, ficando no seu natural senhores de suas plantas e criações os que
delas querem tratar, como se não fossem captivos; nem tal captiveiro se podia
tomar pelo reputado dos teólogos na Europa, onde há t[al] fome e frio, que
vestem e comem o que seus senhores lhe[s] dão; e no Brasil vai tanta
diferença, que, baste saber-se, não há fome, nem frio: comemos por sua mão,
e quando eles querem. (APUD BERNARDO, 1996, p. 176-7).

Nem esse fato, no entanto, foi suficiente para permitir que a maioria
dos brancos visse no índio um semelhante. Á época, homens simples ou
nobres, seculares ou religiosos não viam no nativo senão um animal, o que já
ocorrera com o negro.

Ainda em 1720, Rafael Bluteau, renomado autor do Vocabulário


latino-português, escreveria, a respeito dos negros, as seguintes linhas,
representantes do pensamento da época:

Tem o [salvagem] cara quasy da feyção de homem, com o nariz chato,


& revolto, cabeça grossa, peyto sem cabello, & as costas cubertas de cabello
negro. Tem este animal muyta força, & muyta agilidade. Sabe porse em pé, &
quase sempre anda direyto. Há salvagem macho & salvagem fêmea; esta tem
peytos, & ventre a modo de mulher /..../. Em Hollanda trouxerão ao Príncipe
Frederico Henrique hua salvagem fêmea do tamanho de hua rapariga de três
annos, ainda que gorda & repleta, era muyto ágil, bebia & comia com aceyo, &
dormia em cama com lençóis como gente. (APUD ARAUJO, 1992, [p.7]).

Esse pensamento acerca dos negros e dos índios também se


apresenta no Noticiário em vários pontos. Havendo um grupo destes sido

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levado a Lisboa, diante da repugnância manifestada pelo povo, que “se


retirava, ou pelo menos intojava, não lhe sabendo o nome, mais que de ‘papa
gente’” (APUD BERNARDO, 1996, p. 173), J. S. Ferreira conclui como Bluteau:
“/..../ os Indios, tão alheios dela [são, i. é: da capacidade], que, de gente,
parece, não têm mais que a similhança /..../. (Id., ibid.)

O mesmo tipo de exposição se daria com seis indígenas levados a


Paris, anos antes, onde receberam nomes franceses e se casaram com
francesas. Três deles teriam morrido, segundo Malherbe, “pelo ar não lhes ser
saudável”. (APUD PIANZOLA, 1992, pp. 22).

Séculos passados, parece-nos tristemente risível o exotismo e a


exploração desses europeus que tudo nos levavam, desde “papagaios falando
já algumas palavras de francês”, (APUD PIANZOLA, Id., p. XV) até nossos
homens. Portugueses e franceses, portanto, davam o mesmo tratamento aos
maranhões brasilianos. Assim, pode-se delinear uma resposta à pergunta
tantas vezes feita sobre os resultados de uma colonização, no Brasil, realizada
por povos que não o lusitano.

Pode-se dizer que enquanto os primeiros pretenderam, de certa forma,


criar a Nova Lusitânia imaginada por Gândavo, os últimos fundaram sua
efêmera França Equinocial. Os próprios brasílicos, com o tempo, puderam
percebê-lo. Por isso, diante do armistício entre franceses e portugueses no
Maranhão, os índios tomam uma lúcida atitude: ‘/..../os índios /..../
manifestavam a intenção de fugir /..../; nas aldeias, espalhara-se o rumor de
que se os brancos haviam chegado a um acordo, era para reduzi-los, todos, ao
cativeiro /..../” (PIANZOLA, 1992, p. 238).

Em pleno século XVI, vivia-se no Brasil um atemporal medievalismo,


falando-se em “liberdade sujeita”, em servos, em distribuição desigual de
terras, problemas que se estenderiam aos séculos seguintes. Não se pode,
pois, deixar de admirar a forma mais moderna e humana de colonização
adotada pelos religiosos, sobretudo os jesuítas, o que levaria os habitantes da
Colônia a perseguirem-nos, fato que se repetiria em outros países. As palavras

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de alguns religiosos, no entanto, dão conta de sua ideia de conversão, como


nos lembra J. G. Merquior: “Anchieta acha os silvícolas ‘sem engenho’;
desenganado, chega a recomendar ‘espada e vara de ferro, que é a melhor
pregação’. Quanto a Nóbrega, seu desabafo é franco: ‘São tão bestiais, que
não lhes entra no coração coisa de Deus’”. (APUD MERQUIOR, 1977, p. 18)

Apesar disso, o tratamento atribuído aos indígenas pelos padres no


Grão-Pará, como indica Souza Ferreira, se podia, por vezes, ser de extrema
crueldade, também podia ser mais humano, sobretudo quando comparado ao
que era dado aos negros. Contudo, nem isso foi suficiente para impedir que os
índios fossem tachados de “naturalmente preguiçosos”, ainda que até suas
crianças fossem forçadas ao trabalho.

Esse ‘bom tratamento’ dado aos índios era uma necessidade, caso
contrário, como se indica no Noticiário, eles morriam – naturalmente ou por
vontade própria – ou se rebelavam, matando os brancos, o que, pouco a
pouco, também os seculares perceberam.

As crônicas da época mostram que o indígena jamais se submeteu


espontaneamente. Mesmo os curumins fugiam diante da primeira
oportunidade. Muitos, incapazes de lutar, preferiam a morte de formas variadas
e “desasperadas”, como indica Ferreira, fato que a literatura romântica
apresenta com menos idealismo do que hoje se imagina:

/..../ muitos que, desno principio da conquista estavam servindo aos


Portugueses por amigos e companheiros; outros que, quando buscavam a paz,
que com sinal de cristandade se lhes havia premetido, então se achavam com
a liberdade rendida, e assim permaneciam, como se expirimentava, matando
aos senhores e fugindo; outros, comendo terra e morrendo; e as femeas
tomando medecina, para não gerarem; e se alguas chegavam a ter fructo, lhe
faziam, como me succedeo, que, comprando duas Indias com ua cria, se
meteram pelo mato, e daí a tres dias, voltaram fartas, mas sem o filho,
ensinando outros a comer carvão, cinza, cascas de pao, terra e outras
desasperações [desesperos] com que uns e outros se malogravam. (APUD
BERNARDO, 1996, p. 178-9).

Por que teriam os índios ‘escapado’ ao jugo, ao contrário dos negros?


Por muitas razões, mas, principalmente, porque, como vimos, os brancos deles
dependiam e porque, eles, ao contrário dos negros escapavam com facilidade
pelos matos:

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Nem estas terras eram como as do Brasil, onde todos os meses lhe[s]
entravam [sic] cantidade de negros, o que não tinha o Estado do Maranhão, por
suas deficuldades, e que, se os estilos das terras faziam lei, não eram estas
capazes, ainda que em algu tempo tevessem pretos, pra se viver só com eles,
e sem alguns Indios para guias e pilotos dos mares, por não haver outras
estradas de que os pretos nem a si se saberiam livrar, quanto mais aos
brancos, e menos entrarem e saírem dos matos com a caça, de que no Estado
se vive, pelo menos no Pará /..../. (APUD BERNARDO, 1996, Id, p. 48)

Apesar desse conhecimento geográfico e do fato de muitos


conhecerem a língua túpica ou geral ao lado da sua, os índios sucumbiram. Os
negros, por outro lado, resistiram, mas ainda hoje se reflete o tratamento de
séculos idos.

A abolição da escravatura só se deu quando esta era já um fato. E os


libertos de então, sem meios de subsistência, tinham poucos caminhos:
vinganças contra os senhores, assaltos em estradas, roubos a fazendas ou
nova sujeição aos senhores. Aptidão para o crime e subserviência, diriam
alguns, palavras que são repetidas, irrefletidamente, passados mais de cem
anos. E esclarece o samba-enredo de 1988, da Escola de Samba Mangueira,
do Rio de Janeiro, que o negro está “livre do açoite da senzala,/ preso na
miséria da favela” por problemas que refletem os do passado. No Noticiário,
contudo, fala-se principalmente da causa índia pelas peculiaridades da região a
que se refere.

No que diz respeito à religião, Ferreira indica “/..../ assim como não há
nenhu [índio] que reze de sua devação [devoção] mais que enquanto os fazem
repetir o que se lhe[s] ensina; da mesma maneira, é necessário, para fazerem
algua cousa, estar-se-lhes sempre apontando com o dedo.” (APUD
BERNARDO, 1996, p. 205).

Também os franceses reconhecem que “ensinam” práticas aos índios,


inclusive as religiosas e que eles, segundo Yves d´Évreux, “embora não
compreendam nada /..../, avançaram tanto que dir-se-ia que viveram toda a sua
vida entre os franceses” (APUD PIANZOLA, p. 159). E, apesar das evidências,
o padre Yves d´Évreux concluiria que a terra estava toda conquistada “não pela
força, mas pelo amor”. (Id., p. 163).

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Diferença foi e continua a ser sinônimo de estigma. Por isso, em


relação à língua túpica, acreditaram os portugueses – inclusive João de Souza
Ferreira – não possuir o F, o L e o R entre seus fonemas por ser falada por
gente ‘sem Fé, nem Lei, nem Rei’. Dessa ideia, não escaparia sequer o lúcido
e competente Franco Barreto em sua Ortografia da língua portuguesa.

Mas o preconceito lingüístico não se ateve ao século de Ferreira.


Acreditou-se que a pretensa “preguiça natural” dos nativos se devesse também
ao calor tropical, que atingiria, inclusive, sua pronúncia. Em texto de
Caldcleugh, de 1825, transcrito em “A vitória do português no Brasil colonial”,
de José Honório Rodrigues, lê-se:

O português falado pelos brasileiros /..../ distingue-se facilmente do


português de Portugal. O modo de falar é muito mais vagaroso, uma
particularidade que se nota em todas as colônias, e pode somente ser atribuído
ao clima, ao privar seus habitantes da atividade de espírito, da qual não há
deficiência na Europa, produzindo de fato considerável lassidão. (APUD
RODRIGUES, 1983, p. [23])

Apesar da ideia de lassidão e subserviência que os brancos passaram


acerca dos índios, o que se observa nas crônicas antigas é seu desejo de
escapar ao jugo de todas as formas, até mesmo asfixiando-se, provocando o
aborto e comendo terra. Isso ocorre, por exemplo, com uma índia prestes a ser
devorada por uma tribo inimiga, a qual, liberta pelos portugueses, segundo
João de Souza Ferreira, “/..../ vendo que a desamarravam, voltou o
contentamento em lagrimas, mostrando que queria mais morrer e deixar nome
em tão celebrada festa do que ser escrava dos brancos” (APUD BERNARDO,
1996, p. 209).

Anos antes, no mesmo Maranhão, houve conflitos entre os próprios


índios em razão de alguns se renderem aos franceses. Nesse momento, uma
índia lhes gritaria:

Não, não, disse ela, jamais nos renderemos aos tupinambás, eles são
traidores. Eis que nossos principais estão mortos e morreram por essas bocas
de fogo [os mosquetes], coisa que nunca vimos. Se for preciso morrer,

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morreremos de bom grado como nossos grandes guerreiros. Nossa nação é


grande para vingar nossa morte. (APUD PIANZOLA, 1992, p. 108).

Há inúmeros casos de violência dos indígenas, apresentados não só


no Noticiário maranhense, mas também nas várias crônicas da época. Ao
lado dessa, ocorre a violência dos portugueses, narrada por Souza Ferreira,
como o sacrifício público de índios diante da boca do canhão (APUD
BERNARDO, 1996, pp. 37-38). Por vezes, Ferreira critica seus compatriotas,
inclusive os religiosos, de forma extremamente dura, como aqui: “/..../ na
verdade, mui odioso era o [titolo] de captivos dos brancos, pela falta de justiça”,
(APUD BERNARDO, 1996, p. 214) ou aqui:

/..../Porém, sendo este o tempo em que se deviam fazer as jornadas de


conducções pelo rio das Almazonas, não davam repetidas ambições lugar a
esperar monção [estação apropriada] porque todo o tempo lhe parece pouco
[ao colonizador], sendo que no inverno são aquelas jornadas matadoras, assim
pelo ruim tempo e pouco sostento que se acha, como pela agoa que então se
bebe, turba, das terras que as enchentes vão quebrando e envolvendo,
alimpando os lagos e matas que vêm batendo, de que saem nuves de pragas a
beberem o sangue da gente: de dia, muita mosca, e, de noite, mosquitos,
tantos, e taes, que por melhor que ua pessoa se cubra, tudo passam por
chegarem ô couro e carne, que atravessam sem darem lugar a que se possa
dormir, a que os pobres Indios remeiros fazem descuberta barreira, de que,
suposto adoecem brancos e negros, destes morrem mais tanto quanto com
maior diferença lhes custa.
Mas, muito sadio é o Almazonas naquele tempo, quando as agoas
apuradas correm, retiradas de toda a praga, e as praias providas de todo bom
agasalho, cinco meses de boa monção; se se subisse pelo natal, e descessem
de setembro por diante, serviria de recreação o que servia de ruína, e tudo,
assim, aproveitaria, mediante o Creador /..../. (APUD BERNARDO, 1996, pp.
214-5).

Pelo que se vê, houve violência e equívocos entre brasílicos,


portugueses e franceses no Estado do Maranhão. A antiga colonização se
mostra como a grande responsável pelas desigualdades sociais hoje vividas no
Brasil. O problema da distribuição de terras, o preconceito racial, o subemprego
dos descendentes dos negros, a redução dos grupos indígenas, os
apadrinhamentos – tudo isso está contado nas velhas crônicas, inclusive no
manuscrito tricentenário de João de Souza Ferreira. O Noticiário maranhense
é um dos documentos que, lido junto aos demais, serve de subsídio para a
História do Maranhão passado e de seus reflexos no Brasil contemporâneo.

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Mesmo em nosso tempo, que enfoca estudos da contemporaneidade, é


preciso que se perceba a importância de ler textos de todo o tempo sobre o
Brasil. Se queremos de fato nos pensar e conhecer identitariamente, devemos
olhar para trás e, aprendendo com o já ido, caminhar mais confiantes,
projetando o que há de vir, sob pena de incorrermos em semelhantes erros dos
antepassados e de sermos por igual duramente criticados pelas gerações que
nos sucedam.

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PRESENÇA DO BLACK ENGLISH EM THE COLOR PURPLE


JOEL MENEZES BARRETO JUNIOR¹ (UESC)
LAURA DE ALMEIDA² (UESC)

INTRODUÇÃO
É evidente nas diversas comunidades de fala que as variantes
linguísticas estão sempre em uma relação de concorrência e inferioridade em
relação à língua padrão, Tarallo (1985) ressalta a necessidade de discussões
que busquem quebrar os paradigmas do “certo” ou “errado” numa perspectiva
sociolinguística. Desta maneira temos como fio condutor o estudo da variante
Black English Vernacular nas obras de literatura Afro-Americanas, em
específico o livro The Color Purple de Alice Walker (1983).
Com base no exposto, o presente estudo decorrente do projeto de
iniciação cientifica em andamento “Estudo da variante linguística Black English
Vernacular (BEV) na Literatura Afro-Americana” busca mostrar a complexidade
dessa variante, bem como sua importância que segundo Przybycien (1995) é a
reafirmação de uma identidade cultural, onde os afrodescendentes consideram
a língua padrão elemento de dominação. Temos como fio condutor o estudo da
variante Black English Vernacular nas obras de literatura Afro-Americanas, em
específico o livro The Color Purple de Alice Walker (1983).
O estudo foi realizado partindo da presença do BEV na obra “The Color
Purple” de Alice Walker, através de análise dos dados coletados. No primeiro
momento foi feita uma verificação da frequência dos termos e estruturas
gramaticais do BEV e um tratamento estatístico dos mesmos usando a
metodologia proposta por Labov (1972) e que Tarallo (1986) chama de
“sociolinguística quantitativa”. Diversos trabalhos já foram desenvolvidos em
torno da variante linguística Black English Vernacular, como o do próprio Labov
(1972), onde evidencia os problemas enfrentados pelos professores na
formação de jovens que falam essa variante, além de estudos sobre tradução
dessa variante como o de Przybycien (1995).
Nosso objetivo geral visa destacar a importância dessa variante
linguística para a reafirmação da identidade cultural dos afrodescendentes que
a utilizam. Já os objetivos específicos contemplam os itens abaixo:

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• Pesquisar exemplos do Black English Vernacular (BEV) em obras de


Alice Walker;
• Fazer um estudo sociolinguístico com base na coleta dos dados;
• Relacionar língua, cultura, sociedade com base no estudo do BEV.

REFERENCIAL TEÓRICO
A pesquisa foi desenvolvida sob a luz dos teóricos Tarallo (1986) e
Labov (1972). Com base nos autores mencionados foi possível fazer uma
análise e identificação dos termos e estruturas especificas da variante
linguística Black English no livro de literatura Afro-Americana The Color Purple
de Alice Walker.
Tarallo (1986) ressalta em sua obra os estudos realizados por Labov
(1972), sobretudo no que se diz respeito à “sociolinguística quantitativa”, onde
se trabalha com números e tratamento estatístico dos dados coletados. Tarallo
também afirma que a língua falada ao mesmo tempo é heterogênea e
diversificada, além de afirmar que a língua é um fator muito importante na
identificação de grupos, em sua configuração, como também uma possível
maneira de demarcar diferenças sociais. Ainda em seus estudos ele conceitua
“variantes linguísticas” como diversas maneiras de dizer a mesma coisa em um
mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade, onde sempre há uma
relação entre a língua padrão vs. não padrão, de prestigio vs. estigmatizada.
Além de estabelecer um forte elo entre a língua e sociedade, evidenciando que
a língua não é algo que algo estagnado ou a parte das influências sociais.
Na mesma perspectiva de Tarallo, Bagno (2002) através de seus
estudos sociolinguísticos trata dos preconceitos linguísticos e os reflexos
causados pelos mesmos, que acaba por supervalorizar a língua padrão e
deixar a variante linguística a margem da sociedade. Ainda sobre as variantes
Bagno busca ratificar sua legitimidade atestando que:
“[...] não existe nenhuma variedade nacional, regional ou local que
seja intrinsecamente “melhor”, “mais pura”, “mais bonita”, “mais
correta” que outra. Toda variedade linguística atende às
necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam.
Quando deixar de atender, ela inevitavelmente sofrerá
transformações para se adequar às novas necessidades” (BAGNO,
2002, p. 47).

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Labov (1972) assim como Tarallo (1986) afirma que se deve considerar
a língua, a organização social e politica. Em sua obra expõe e discute sobre o
problema que é enfrentado ao lidar com essa variante no ensino de jovens,
ainda na sua obra ele apresenta as estruturas e características dessa variante
da língua inglesa. Outro ponto muito importante é que por falta de
conhecimento de uma grande parcela da sociedade o Black English Vernacular
é considerado inapropriado na literatura, por mais que segundo Przybycien
(1995) seja classificada como “literatura menor”, não deve ser entendida como
menos importante ou de menor valor estético, mas como uma manifestação
literária que subverte a língua oficial. O uso dessa variante é uma forma de
assegurar que a identidade cultural do povo no qual a história está sendo
contada esteja sendo respeitada, ainda em seus estudos Przybycien (1995)
afirma que:
A literatura afro-americana recria, portanto, o Black English (dialeto
rejeitado pela cultural oficial como signo da ignorância e
subdesenvolvimento do negro) e faz dele a sua língua literária.
Realiza, portanto, uma luta de guerrilha à língua oficial, introduzindo
nela, nas palavras de Deleuze e Guattari, "seu próprio patoá, seu
próprio terceiro mundo, seu próprio deserto. (PRZYBYCIEN, 1995, p.
136).

Almeida (2012) segue a mesma linha de pensamento de Przybycien


(1995) acerca dessa variante da língua inglesa, afirmando que não há nada de
errado com o BEV como variante, uma vez que é usada para expressar ideias
e pensamentos. A autora realiza um estudo sobre o hip hop como uma forma
de autoafirmação de uma identidade que é negada pela cultura dominante que
quer sempre impor os meios e visões de mundo homogêneas. Sendo assim
esse estilo musical almeja através da manifestação da língua peculiar dos
falantes do BEV retratar sua realidade e ressaltar sua cultura.

Finalizamos assim com as ideias de Przybycien (1995) e Almeida (2012)


trazendo a problemática da variante linguística numa perspectiva de
consolidação cultural através da música e no nosso estudo em questão na
literatura Afro-Americana, a fim de imprimir sobre ela a autenticidade e
veracidade aos traços indenitários. Aliando os autores citados podemos fazer
uma análise de forma explicitar a presença do BEV em The Color Purple, além
de entender a importância da aplicabilidade de tal variante na obra analisada.

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A seguir na próxima seção apresentamos algumas características que


são específicas da variante linguista Black English Vernacular e, ao mesmo
tempo fazemos uma comparação com o inglês padrão.

CARACTERÍSTICAS DO BLACK ENGLISH VERNACULAR


Abaixo na tabela 1 apresentamos algumas características do BEV que
foram identificadas no livro The Color Purple de acordo com os estudos de
Labov (1972).

Aspectos BEV Inglês padrão


Geralmente o verbo to be “She happy, cause he good to “She is happy, because he
é omitido her now” (Walker 1983, p.3) is good to her now”
Em alguns casos o verbo “I be the one to cook” (Walker “I am the one to cook”
to be não é conjugado 1983, p.3)

Usa-se o (do/don’t) para “He don’t say nothing”(Walker “He doesn’t say nothing”
todos os pronomes 1983, p.4)
pessoais
O S na terceira pessoa do “She don’t know but he say “She doesn’t know but he
singular é omitido she gon fine out”(Walker 1983, says she is going to find
p.8) out”
Dupla negação “She ain’t no stranger to hard work” “She isn’t stranger to hard
(Walker 1983, p.9) work”
Alteração da sintaxe “How old she is?”(Walker “How old is she?”
1983, p.10)
“Ain’t” para todas as I ain’t, you ain’t, he ain’t, she I’m not, you aren’t, he isn’t,
pessoas ain’t, it ain’t, we ain’t, you ain’t, she isn’t, it isn’t, we aren’t,
they ain’t. you aren’t, they aren’t.
Tabela 1- Aspectos do Black English Vernacular

É importante destacar que existem outras estruturas do BEV que serão


analisados mais detalhadamente ao decorrer da pesquisa que está em
andamento. Na tabela 1 foram registradas todas as estruturas encontras no
livro até o momento, mas não foi levada em consideração a frequência, nos
resultados da pesquisa apresentamos a tabela 2 com as estruturas gramaticais
levando em consideração o fator frequência.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
O trabalho foi desenvolvido através da coleta dos termos e estruturas
gramaticais da variante do Black English Vernacular. Após identificar, os

1453
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

vocábulos foram organizados em uma tabela onde foi analisada a frequência


de cada termo identificado na obra, além de fazer a somatória total dos termos
identificados na obra The Color Purple também foi feito um levantamento das
estruturas mais recorrentes até o ponto analisado, resultando no gráfico 1 e na
tabela 2 .
Foram identificadas cerca de trinta e oito incidências de BEV com
grande frequência, aproximadamente 305 vezes durante a narrativa, em 61
páginas, que somam 25% dos dados coletados, além de estruturas gramaticais
particulares dessa variante linguística, como é possível visualizar no gráfico e
na tabela abaixo.

Gráfico 1- termos de maior frequência.

Como é possível observar o termo que aparece com mais frequência é


“ast” ou “ask” no inglês padrão, pois aparece em diversos diálogos das cartas
enviadas por Celie para “God”, especificamente 63 vezes. O segundo com
numero de 52 empregos é “ain’t”, pois ele tem uma ampla aplicabilidade, sendo
que ao traduzi-lo para o “standard English” representaria o (am not, is note are
not), seguidos pelo “git” (44 vezes) e ”bout” (35 vezes) que correspondem a get
e about no inglês padrão, o último termo em grau de frequência foi o “gonna”
e/ou em alguns casos “gon” com 14 ocorrências.

CARACTERISTICAS GRAMATICAIS

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BLACK ENGLISH STANDARD ENGLISH


Ausência do S na Terceira “She say, he took the “She says, he took the
pessoa do singular wagon” wagon”
“He start to choke me” “He starts to choke me”
Omissão do to be “I think she mine. My heart “I think she is mine, My
say she mine” heart says she is mine”
“Now she bout six” “Now she is about six”
Uso do to be não “She be dress to kill” “She is always dressed to
conjugado “I know she be big” kill”
“I know she is big”
Uso do don’t na terceira “He don’t measure” “He doesn’t measure”
pessoa do singular “He don’t want to hear” “He doesn’t want to hear”
Tabela 2- Estruturas gramaticais encontradas com maior frequência na obra.

Na tabela 2 é possível observar quais as características estruturais da


gramática do BEV que aparecem com maior frequência até o momento na
pesquisa. É muito recorrente a omissão do “S” que marca a conjugação dos
verbos na terceira pessoa do singular no simple present, a omissão do uso do
verbo “to be” é um aspecto muito comum nessa variante linguística, além de,
como se pode observar, o uso do verbo “to be” não conjugado e uso do “don’t”
na terceira pessoa do singular, eliminando o “does” que segue a mesma lógica
da omissão do “S” na terceira pessoa do singular.

ANÁLISE DOS DADOS


Através dos dados coletados é possível ter uma visão que a obra The
Color Purple é uma ótima referência literária quando estamos tratando da
variante linguística Black English, na obra a autora utiliza de diversos termos e
estruturas peculiares do BEV para dar veracidade à narrativa que é
desenrolada durante a obra através de cartas que Celie destina a “God”.
Essa variante foi utilizada de forma a dar vida às falas da personagem
Celie, que segundo (WALKER, 1982, p. 1 apud SILVA 2009, p. 5) é uma
menina afro-americana pobre e assustada, pois o homem que ela acredita ser
seu pai a abusa sexualmente desde a tenra idade, evidenciando assim os
traços culturais e o contexto que são expressos através desse dialeto. Alice
Walker emprega essa variante para dar ênfase na identidade cultural da
personagem, evitando assim recriar um discurso na língua padrão que
descaracterizaria a essência da mesma. Portanto é possível observar que o
uso da BEV na literatura, sobretudo na Afro-Americana é de grande

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

importância justamente para que as particularidades inerentes ao grupo em


que a narrativa se desenvolve sejam protegidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com essa pesquisa pretendeu-se fazer uma análise sociolinguística
dos dados coletados, buscando fazer uma relação não só da língua de forma
isolada, mas também de sociedade uma vez que o BEV representa a
identidade cultural de uma comunidade que vem lutando ao longo do tempo
para conseguir sua autonomia principalmente linguística, a fim de quebrar as
barreiras estigmatizadas pelos falantes da língua padrão. O Black English
possui estruturas gramaticais complexas e uma grande variedade de termos,
devido à falta de conhecimento da maioria das pessoas que usam a língua
padrão, além dos pensamentos preconceituosos em relação a essa variante,
acabam por desvalorizar as características que são de matriz africana.
Por se tratar de uma pesquisa em fase inicial ainda não temos uma
visão total da obra em estudo. Entretanto, apresentamos os resultados
esperados, no que se referem à utilização de termos e estruturas gramaticais
na obra The Color Purple encontrados em quantidade expressiva, evidenciando
que essa variante possui os requisitos para serem utilizados na literatura,
principalmente nas obras Afro-Americanas, no sentido de dar veracidade a fala
dos personagens afrodescendentes.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, L. Hip-hop e a formação da identidade cultural no ensino de


língua inglesa. In III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III
SIDIS): Dilemas e desafios na contemporaneidade, Campinas. 2012, 10p.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 11. Ed. São
Paulo: Loyola, 2002. 186p

LABOV, W. Language in the inner city: studies in the Black English


Vernacular, Philadelphia, Pennsylvania Press,1972.

PRZYBYCIEN, Regina M. LITERATURA "MENOR": Linguagem e Identidade


Cultural num Conto Afro-Americano. Letras, Curitiba, Editora da UFPR. n.44,
p.135-140. 1995.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

SILVA, M. R. A constituição da identidade de Celie em The Color Purple.


In: IV COLÓQUIO INTERNACIONAL CIDADANIA CULTURAL: DIÁLOGOS DE
GERAÇÕES, 2009, Campina Grande. Anais. P.5.

TARALLO, F. L. A pesquisa sociolinguística. 3. Ed. São Paulo: Ática, 1986.


96p

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GRUPO DE TRABALHO: LITERATURA, EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO DE


IDENTIDADE E COMBATE AO RACISMO

PROPOSITORES: DOMINGOS OLIVEIRA DE SOUSA (UNIVERSIDADE DO


PORTO)

Ementa:
Este grupo de trabalho tem como propósito provocar a apresentação de
pesquisas realizadas no Espaço Escolar da Educação Básica, onde a literatura
foi utilizada como de partida para a construção de identidade, bem como ao
combate ao racismo.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

A IDENTIDADE DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA NA PÓS-


MODERNIDADE

FELÍCIA DOURADO GOMES (UNEB) 327


JÔNATAS NASCIMENTO DE BRITO (UNEB)
JENIVALDO MONTEIRO MACHADO (UNEB)
LUIZ FELIPPE SANTOS PERRET SERPA (UFBA/UNEB) 328

Introdução

O presente artigo buscará reflexões sobre a identidade do professor de


língua portuguesa na pós-modernidade, com o propósito de descobrir qual a
identidade do sujeito professor diante dos discursos que o atravessam. Para
isso, teremos como base Maria José Coracini, em sua obra Identidade e
Discurso (2003).
Essa iniciativa é fruto de muitas indagações a respeito do sujeito
professor em especial o de língua portuguesa, e de leituras de autores como a
já citada Maria José Coracini, Beatriz Eckert-Hoff (2003) e Stuart Hall (2011).
Essas indagações nos permitiram perceber como a questão da identidade é
complexa e rodeada por uma série de fatores sociais e históricos que
influenciam diretamente na sua constituição.
Esse trabalho permitirá entender a questão da identidade no âmbito
social. Com isso, proporcionará uma reflexão mais atenta sobre o sujeito
professor e assim nos permitirá entender esse sujeito que se constitui a partir
do contexto em que está inserido.
Para que possamos entender melhor essa questão da identidade do
professor consideramos importante falar sobre as concepções de identidade
trazidas por Stuart Hall, onde são discutidas três concepções importantes sobre
a identidade dos sujeitos e como essas concepções são concebidas no âmbito
social, discutiremos também os aspectos que ocasionaram a crise de
identidade na pós-modernidade, abordando as possíveis causas dessa crise.

327
Graduandos em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pelo
Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB Campus XVI Irecê.
328
Orientador e professor auxiliar da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), ministrando
disciplinas no curso de Letras, na área de Prática e Estágio, no campus XVI, Departamento de
Ciências Humanas e Tecnologias, em Irecê/BA. Doutor em Educação pela Universidade
Federal da Bahia – UFBA (Faculdade de Educação da UFBA).

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Por fim, discutiremos o sujeito professor frente os discursos que lhe atravessa,
propondo entender a força que os discursos têm e como essas forças são
impostas sobre os sujeitos.
Dessa forma, terão destaque nesse estudo dois aspectos que, para
nós, são essenciais para um bom entendimento da questão da identidade: as
concepções de identidade e os discursos dos espaços sociais.

1. As concepções de sujeito na constituição das identidades

As ideias sobre sujeito e identidade estão atreladas em três


concepções discutidas e problematizadas por Stuart Hall (2011). Tais
concepções definem as identidades dos sujeitos e sua postura dentro dos
espaços sociais. São respectivamente, sujeito do Iluminismo, sujeito
sociológico e sujeito pós-moderno.
Antes de tecermos nossas ideias sobre o sujeito do Iluminismo, é
conveniente que façamos primeiro uma breve explanação desse movimento
tão importante ocorrido no século XVIII, o Iluminismo.
O Iluminismo surge a partir de um grupo de pensadores que lutava pela
renovação de pensamentos e ideias. Tais pensadores se empenharam em
denunciar as injustiças, as dominações religiosas, o estado absolutista e tudo
mais que afastasse o homem de sua liberdade, segundo concepções dos
iluministas.
Para o Iluminismo, a razão é o elemento propulsor capaz de melhorar e
ajustar todos os espaços sociais.
Segundo os iluministas, a intromissão da Igreja em questões de cunho
social e político influía negativamente no desenvolvimento e progresso da
sociedade. Ainda conforme os iluministas, o homem possuía certos valores que
o inclinavam à bondade e igualdade. E, quando o homem se encontrava
afastado desses tais valores, a culpa era direcionada à sociedade por suas
falhas.
Entre outras questões, o Iluminismo é um movimento que defende a
existência de verdades absolutas, a racionalidade humana e a implantação de
leis liberalistas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Com essa ideia de homem racional, entramos, então, na primeira


concepção de identidade problematizada por Hall, a concepção de identidade
do sujeito do Iluminismo.
Segundo Hall (2011, p.10), o sujeito do Iluminismo consiste no
indivíduo desprovido de heterogeneidade, sendo, portanto, unificado e
homogêneo. Essa ideia define o sujeito como sendo o centro de si. Aqui, o
indivíduo é portador de consciência e razão constituintes de sua própria
personalidade. Temos um sujeito que possui um núcleo, um “eu” que é
formado individualmente, dispensando assim influências externas. Sendo
assim, o sujeito constrói sua identidade sozinho, é integral e individualmente
responsável pelo seu desenvolvimento no espaço em que está inserido.
O Iluminismo do século XVIII descreve esse indivíduo como sujeito da
razão, ou seja, temos um sujeito centrado e portador de independência com o
exterior.

Muitos movimentos importantes no pensamento e na cultura


ocidentais contribuíram para a emergência dessa nova concepção: a
Reforma e o Protestantismo, que libertaram a consciência individual
das instituições religiosas e a expuseram diretamente aos olhos de
Deus; o Humanismo Renascentista, que colocou o homem (sic) no
centro do universo; as revoluções científicas que conferiram ao
Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e
decifrar os mistérios da Natureza; e o Iluminismo centrado na imagem
do Homem racional, científico, libertado do dogma e da intolerância, e
diante do qual se estendia a totalidade da história humana, para ser
compreendida e dominada (HALL, 2011, p. 26).

Conforme vimos no trecho acima, o sujeito do Iluminismo traz consigo


“o poder de escolha”. É esse sujeito que vai ser chamado de “indivíduo
soberano” pela sua forte influência no seu espaço. Ele que vai trazer o
conhecimento sobre o mundo e assim, vai discernir tudo que lhe rodeia.
O filósofo francês René Descartes (1596-1650) foi aquele que
introduziu a ideia primária do sujeito do Iluminismo. Ele concebeu o sujeito
como sendo um ser pensante, capaz de raciocinar e tomar decisões próprias.
Nessa concepção, o sujeito é colocado na parte central do conhecimento,
assumindo assim o lugar mais importante na esfera da existência.
Porém, à medida que as sociedades foram tomando formas mais
complexas, os sujeitos foram deixando sua forma centrada e unificada para
assumir uma postura mais interativa e social. O sujeito estava mais enredado
nas maquinarias burocráticas do estado moderno. As leis da economia e
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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

política tinham agora que atuar voltadas para as grandes formações de classe
do capitalismo. Surge então, o sujeito sociológico.
O sujeito sociológico surge no momento que as sociedades se
encontram em um momento de complexidade. Essa complexidade vai sugerir
uma relação mais interativa entre os sujeitos. A partir daí, os elementos sociais
passam a focalizar os indivíduos como peças integradas à sociedade. Essa
integração sugere que o sujeito se constitui em seu espaço a partir das
relações com o outro, dos contatos efetivados com o social. O sujeito, nessa
concepção, encontra-se mais enredado nas maquinarias burocráticas do
estado moderno, ou seja, ele estava mais destacado dentro das estruturas
sustentadoras da sociedade. Ele agora interage mais ativamente no processo
de construção da sociedade. Além disso, o sujeito absorve os sentidos do
exterior, das trocas e externaliza o seu interior. Dessa forma, estabelece uma
relação de interação com o espaço. Segundo Hall,

Essa “internalização” do exterior no sujeito, e essa “externalização”


do interior, através da ação no mundo social (como discutida antes),
constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e
estão compreendidas na teoria da socialização (HALL, 2011, p.31).
Podemos dizer então que houve um rompimento entre sujeito e
espaço. Se antes o sujeito era vislumbrado como “centrado”, “separado”,
agora, visualiza-se a ideia de sujeito integrado, ativo.
Dois eventos foram importantes para fundamentação dessa ideia de
sujeito sociológico ou moderno. O primeiro foi a biologia darwiniana, onde o
sujeito foi “biologizado”. “A razão tinha uma base na Natureza e a mente um
“fundamento” no desenvolvimento físico do cérebro humano” (HALL, 2011, p.
30).
O segundo foi o surgimento do estudo das origens, desenvolvimento e
organização das sociedades – as ciências sociais. Essa ciência estuda e
analisa a sociedade objetivando identificar os conflitos sociais, entender a
construção das identidades, os grupos e instituições sociais.
Vale ressaltar alguns pontos que esses eventos puseram em ação:

• O “indivíduo soberano” continuou a ter seu núcleo, seus desejos e


vontades. O sujeito continuou a ser a figura central.
• A ideia de “mente” e “matéria” (dualismo) do sujeito cartesiano ganhou
uma divisão nas ciências sociais, sendo assim objeto de estudo da
psicologia e de outras áreas.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Portanto, o sujeito moderno tem forte fundamento nas ciências sociais,


na primeira metade do século XX. Nesse período em que grandes movimentos
intelectuais relacionados ao surgimento do Modernismo acontecem, emerge
um quadro mais complexo de sujeito na sociedade. Um indivíduo deslocado e
descentrado, que se constrói a partir de fragmentos, “fragmentos esses que
formam um aparente tecido homogêneo que, na verdade, é constituído de
pequenas unidades fraturadas, esfaceladas, fragmentadas, o que evidencia a
heterogeneidade que o constitui” (Eckert-Hoff, 2003, p. 271). Surge, portanto, o
sujeito pós-moderno.
O sujeito do pós-modernismo ou modernidade tardia é aquele sujeito
que não possui autonomia e controle sob sua formação, não é também aquele
sujeito que apenas estabelece relações de interação com o espaço social, é
muito mais que tudo isso. Esse é um sujeito que não possui apenas uma
identidade, mas várias. Essas identidades se constituem a cada momento, a
cada troca, e são essas mesmas identidades que vão empurrar o sujeito para
diferentes e contraditórias direções, constituindo assim um sujeito deslocado e
descentrado.
Esse deslocamento e descentração acontecem à medida que os
sistemas da sociedade se multiplicam e essa multiplicidade vai desconcertar as
possíveis e conquistadas identidades dos sujeitos. A globalização como um
processo de mudança na modernidade tardia também causa impactos na
constituição da identidade desse sujeito descentrado. Hall (2011, p.14) citando
Marx que diz que a modernidade:

é o permanente revolucionar da produção, o abalar ininterrupto de


todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos.Todas
as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas
representações e concepções, são dissolvidas todas as relações
recém-formadas envelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudo
que é sólido se desmancha no ar. (Marx e Engels, 1973, p.70).

Portanto, as sociedades modernas estão em constante mudança.


Estão a estabelecer movimentos, produções e ligações múltiplas com todo o
contexto globalizado. A mudança rápida e constante é a principal, e não única,
característica da sociedade pós-moderna. Diante desse contexto de
movimentação intensificada o sujeito vai se encontrar em deslocamento, ou

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

seja, o seu “centro” sofre uma ruptura e deixa de ser “centro” para se tornar
uma pluralidade. Como afirma Hall (2011): “Uma estrutura deslocada é aquela
cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma
‘pluralidade de poder’” (p. 17).
O deslocamento ou descentração da identidade e do sujeito é
constituído a partir de cinco movimentos de descentração ocorridos no período
da modernidade tardia. Esses movimentos representaram grandes avanços na
teoria social e nas ciências humanas. O primeiro movimento refere-se às
tradições do pensamento marxista. O segundo diz respeito à descoberta do
inconsciente por Freud. O terceiro está associado ao trabalho do linguista
estrutural, Ferdinand de Saussure. O quarto movimento de descentração
ocorre no trabalho do filósofo e historiador francês, Michel Foucault. E o quinto
movimento é o impacto do feminismo.
Cada um desses cinco descentramentos é esboçado por Hall (2011) e
serão destacados aqui no próximo item.

2. Crise de identidade: em que consiste?

Pensar o sujeito moderno como objeto de análise de um estudo sobre


identidade, sem antes fazer uma contextualização histórica sobre ele, é tentar
construir argumentos sem uma base sólida que possibilite o progresso dos
mesmos. Então, partindo por essa lógica, vamos seguir por um caminho mais
consistente, e usando dos fundamentos de Hall (2011) como suporte,
desenvolver um raciocínio acerca dessa crise que sofre o sujeito desde tempos
anteriores.
Quando se fala em crise, o que se pretende em primeiro plano é
mostrar essa inconstância na forma como é definida a identidade do sujeito no
decorrer desse percurso histórico até o atual, ou seja, a partir do momento em
que o sujeito do Iluminismo entra em declínio com as novas formas de
pensamento impostas pelas novas ciências e teorias. Depois que Darwin
“biologiza” o homem novas possibilidades aparecem com ele, novos
questionamentos surgem, e novas justificativas; a razão, por exemplo, passa a
ter ligação direta com a natureza, e o desenvolvimento cerebral entra como o
responsável pelas capacidades de armazenamento das memórias.

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Quando Marx, filósofo alemão do século XIX, é re-interpretado no


século XX, trazendo a ideia de que o sujeito constrói sua história a partir de
todo o contexto que o cerca e que já existia anterior ao seu nascimento, já
quebra essa ideia iluminista de que o sujeito é dotado de uma essência interior
que permite a ele ser o único responsável pela construção da história assim
como do seu perfil, entendendo que o meio social, histórico e cultural não eram
os principais responsáveis pela constituição deste sujeito.
Freud deu sua contribuição para a queda da ideia de identidade do
sujeito iluminista quando trouxe a descoberta do inconsciente à tona, esse que
funciona diferente da teoria de Descartes, “penso logo existo”, ligada à razão.
De acordo com Freud, as nossas escolhas na formação como sujeito, nossos
desejos e sexualidade entram em contato direto com processos psíquicos e
simbólicos que estão no nosso inconsciente, e que portanto são fatores
determinantes na constituição das identidades de cada um (Hall, 2011, p.36).
Seguindo por esse caminho e classificação como Hall fez na obra aqui
trabalhada, o terceiro pensador influente foi o linguista Saussure. Ele que
afirma a importância do outro para a formação do sistema linguístico,
entendendo a língua como algo social que está totalmente entrelaçada com a
rede de sujeitos, costumes, história e cultura, e que, assim como Freud coloca,
a identidade do sujeito é algo que vai se construindo com o passar do tempo.
Saussure traz a lógica de que as palavras adquirem outros significados e isso
pode ocorrer com o passar do tempo ou simplesmente de acordo com cada
espaço geográfico, em que cada povo e cultura podem dar novos significados
às palavras.
O filósofo e historiador francês Michel Foucault traz a sua contribuição
para a descentração da identidade e do sujeito ao destacar uma forma de
poder que percorre desde o século XIX, e vai se desenvolvendo com o passar
do tempo, tomando forma com as mudanças na estrutura da sociedade; o
poder disciplinar que têm como principal objetivo garantir a ordem e
funcionamento de todos os mecanismos que fazem o sistema funcionar. É um
poder que tem como prioridade manter a ordem da sociedade através disciplina
(Hall, p. 42). É claro que não se trata de uma disciplina dura e autoritária, mas

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de uma disciplina capaz de garantir o funcionamento das relações nas classes


humanas.
O feminismo fecha o grupo dos cinco fatores que contribuíram nesse
processo de descentração do sujeito. Movimento que nasceu com o intuito de
mostrar que a mulher objetivava um novo lugar e olhar na sociedade, mas que
tomou proporções ainda maiores quando outros grupos sociais se juntaram
para juntos lutarem por seu espaço e direitos na sociedade; as várias
identidades envolvidas nos movimentos e reivindicações, e a cada momento
um novo rosto a ser defendido fez com que “a política das identidades” viesse a
nascer.
Na modernidade tardia ou pós-modernidade, o descentramento finca
suas raízes de vez na construção das identidades. O sujeito agora não é mais
unificado como foi em outrora; a construção de seu perfil é algo que está aberto
a inúmeras possibilidades, e tende a sofrer mudanças a cada momento diante
do bombardeio de informações e diferenças no meio social em que está
inserido. Com o avanço das tecnologias, o acesso a outras culturas e
conhecimentos se tornou algo muito acessível, e isso é um fator preponderante
na construção de identidades, visto que o sujeito sofre mudanças quando
acrescenta novos costumes, crenças e ideologias ao seu modo de vida. Sendo
assim, tendo como característica própria de seu tempo a heterogeneidade, o
sujeito da modernidade tardia se encontra livre ao acréscimo constante de
conhecimento e à mudança, podendo ser em um período curto de tempo o
oposto do que foi anteriormente, ou assumir várias personalidades ao mesmo
tempo.

3. O professor de língua portuguesa frente os discursos que o atravessam

Diante dos argumentos trazidos anteriormente sobre identidade e a


partir do que vamos trazer agora, far-se-á uma análise a respeito do sujeito em
questão, com o propósito de problematizar sua identidade e de destacar o
poder dos discursos na constituição dessa identidade.
Elencamos em nosso estudo alguns elementos que aqui serão
denominados como discursos. E são esses tais discursos que atravessam o
sujeito professor em sua trajetória. Esse professor que se depara com um

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espaço diversificado que é a sala de aula, que se relaciona com várias outras
diversidades que são os alunos, que se constrói enquanto realiza o seu
trabalho docente. Esse professor, sujeito atravessado por múltiplas vozes, que
constrói sua identidade quando os discursos encontram lugar no seu
inconsciente.
Segundo Freud (apud Hall, op. Cit., p. 40), nossas identidades são
formadas no inconsciente através de processos psíquicos e simbólicos. O
sujeito internaliza os elementos constituidores de identidade em seu
inconsciente, ou seja, ele não é mais aquele sujeito que se constrói através da
razão, do consciente e sob o seu controle. Temos, portanto, um sujeito que não
mais controla essa construção, mas que é construído através dos discursos
captados pelo inconsciente. Aqui,
a lógica do inconsciente, em constante tensão entre desejos
recalcados e busca incessante e sempre adiada de realização dos
mesmos [...], não se submete ao controle do ego, mas se manifesta
em sonho, quando o nosso consciente está adormecido, ou na língua
enquanto sistema simbólico (através de chistes, atos falhos,
deslizes...), apesar de sua função de tamponamento do inconsciente
e graças à porosidade que a caracteriza (Coracini, 2003, p. 242).

Com essa ideia, a identidade não é mais constituída no momento do


nascimento do sujeito, como afirma algumas vertentes linguísticas. A
identidade se forma ao longo do tempo, através de internalizações do
inconsciente e mesmo assim continuará em um processo de busca por uma
completude, em um processo de formação contínua e inacabada.
Agora discutiremos a respeito dos discursos que são internalizados no
inconsciente do sujeito professor de língua portuguesa e assim constituem a
sua identidade.
Primeiramente, focamos na imagem desse sujeito professor, que é
encarregado de transmitir conhecimentos, de mediar e orientar seus alunos.
Esse sujeito que já possuiu, no passado, um lugar de destaque na sociedade e
que agora sofre com a desvalorização e o descaso. Hoje, o professor enfrenta
uma série de problemas envolvendo sua própria profissão e ainda assim tem
de atender às necessidades do espaço em que atua. Ou seja,
o professor precisa, ao lado de conhecimentos de informática, ter
conhecimentos de psicologia, uma sensibilidade e observação
aguçadas para compreender as dificuldades dos alunos e as diversas
situações em que se encontram, como problemas familiares que,
muitas vezes, atrapalham o seu desempenho em aula; enfim, o

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professor precisa estar preparado para assumir as múltiplas funções


exigidas pelo mundo atual [...], embora perceba as dificuldades que
isso acarreta, tendo em vista a sua história e a sua formação
(Coracini, 2003, p.245).

Temos aqui, um sujeito preocupado em ajudar o seu aluno a resolver


seus problemas, inclusive os problemas pessoais. Temos um sujeito que
insiste em ser o corpo que possui o saber necessário para sanar as
insuficiências dos alunos. Um corpo que vai abarcar toda sorte de
conhecimento e assim ter possibilidade de contribuir na construção do
conhecimento do seu aluno.
Nessa ideia de relação entre o sujeito professor e o aluno demarcamos
o lugar onde esses corpos se encontram e se relacionam: a sala de aula. Esse
espaço como um discurso que vai exigir do professor uma postura interativa e
diversificada. Nesse espaço, o professor vai ler, vai escrever, vai mandar ler,
vai mandar escrever, vai explicar, vai propor exercícios, vai decidir, vai sentar-
se, vai levantar-se, vai movimentar-se, vai estabelecer uma relação de trocas,
de interações com os alunos. Emerge, então, uma imagem de professor, que
segundo Coracini (2003, p. 247), atua desempenhando vários papéis. O
espaço da sala de aula se constitui, dessa forma, como um discurso que faz
surgir um sujeito multifacetado e interativo.
E nessa interação entre sujeito professor e sujeito aluno, temos este
último como um discurso que atravessa o sujeito professor de língua
portuguesa. O olhar que os alunos lançam sobre os seus professores é um
discurso que constrói diversificadas imagens sobre esse professor, que
aparentemente é tão unificado. Tais imagens podem ser positivas ou negativas.
Conforme Coracini (2003) nos apresenta, as imagens positivas podem
constituir um professor: “sábio, amigo, modelo, ser vocacionado, modificador
de destinos, heroi, paciente, responsável” e as imagens negativas vão
representar um professor: “incompetente, desocupado (só dá aula, não
trabalha), mal-educado, insuportável, autoritário, esnobe, sofredor, humilhado”.
Dessa forma, nos deparamos com um sujeito que vai se encontrar em
discursos paradoxais e diversos. Se por um lado temos um sujeito professor
que representa o modelo de amigo, que assume o papel de modificar destinos
e que tem responsabilidade, por outro, nós temos um sujeito insuportável,

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incompetente e autoritário, ou seja, um conjunto de imagens que podem


encontrar lugar em um único corpo, o do professor.
Outro elemento que podemos considerar como um discurso presente
na vida do professor é o livro didático. O livro didático assume uma posição de
discurso de poder sobre o sujeito professor, claro que não estamos aqui
fazendo generalizações. Mas é fato que o livro didático assume uma posição
que influi diretamente no percurso do professor. Para muitos, o livro didático
serve como norteador de seu trabalho, essa não é uma questão de atribuir
culpa unicamente ao professor, tendo em vista que os livros vêm carregados
de direcionamentos e instruções que mais parecem imposições, imposições
essas que abrem margem para supormos que se trata de um professor
limitado, incapaz de desenvolver uma aula, desprovido de ideias que cativem
os alunos, capaz apenas de reproduzir conhecimentos e ideias prontas e
assim, o livro didático também entra em cena como limitador da autonomia
docente. Nessa perspectiva, temos um sujeito professor vazio, sem opinião e
sem voz.
E como um discurso, o livro didático é também atravessado por
múltiplos discursos, como por exemplo, a gramática que vai ser aquele
discurso que vai impor a forma do bem-escrever e do bem-dizer, objetivando
assim, manter a ordem e a unidade; os textos que vão representar uma
determinada realidade social; os conjuntos literários que vão privilegiar uma
determinada camada, os chamados “cânones” da literatura, sendo esses,
aquele discurso que classifica os da “literatura do norte” e os da “literatura do
sul”, enfim, encontramos múltiplos discursos, que por sua vez, são constituídos
por múltiplas vozes, e toda essa multiplicidade vai formar esse discurso
intencionado que é o livro didático.
Como podemos ver, os discursos podem se manifestar de diversas
formas. Aqui, preferimos dar ênfase a três, mas sabemos que a multiplicidade
de vozes que existem no espaço é mais que isso. Cada discurso é construído a
partir de outro conjunto de vozes, entrelaçado e unido. E são esses discursos
que vão formar as identidades dos sujeitos. Escolhemos aqueles que
consideramos mais “próximos” do sujeito professor de língua portuguesa,

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porém, sabemos que há mais discursos envolvendo esse sujeito, que se


encontra em um lugar diversificado e múltiplo que é a escola.

Considerações finais
Todo o percurso que aqui foi traçado objetivou mostrar que a crise de
identidade passou por períodos que constituíram a identidade dos sujeitos
inseridos naquele dado contexto; entre esses sujeitos destacamos aquele que
foi discutido aqui, o sujeito professor de língua portuguesa.
Esse sujeito que na pós-modernidade mostra-se como um indivíduo
constituído por identidades diversas. Esse sujeito que não mais é unificado,
“centrado”, mas múltiplo e deslocado. Esse sujeito que vai construir toda essa
pluralidade de identidades através dos discursos que o atravessam nos
espaços de convívio pessoal, nos espaços de formação e nos espaços de
atuação. Entendemos que cada espaço possui os seus discursos e cada
discurso impõe o seu poder sobre os sujeitos, mas preferimos aqui, enfatizar os
discursos que atravessam o sujeito professor em seu espaço de atuação.
Esse espaço que vai conter uma série de elementos, que aqui optamos
por chamar de discursos. A sala de aula como um discurso, o aluno como um
discurso, o material de trabalho – o livro didático – como um discurso, e cada
um desses discursos impõem poder sobre esse sujeito professor e, dessa
forma, constitui um indivíduo multifacetado.
Desse modo, temos um sujeito que é atravessado e constituído por
múltiplos discursos. Essa multiplicidade, como já frisamos anteriormente, vai
constituir um sujeito diversificado. Um sujeito que vai se deparar com várias
identidades que o empurram para várias direções. Um sujeito que sempre está
em busca de uma completude que nunca será alcançada, pois a cada
momento, novos discursos estão a atravessar e a constituir novas identidades
desse sujeito pós-moderno que é o sujeito professor de língua portuguesa.

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REFERÊNCIAS

CORACINI, Maria José (org.). Identidade e Discurso: (des) construindo


subjetividades – Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora
Universitária, 2003.

ECKERT-HOFF, Beatriz. Processos de identificação do sujeito-professor de


língua materna: A costura dos fios. In: CORACINI, Maria José (org.). Identidade
e Discurso: (des) construindo subjetividades - Campinas: Editora da Unicamp;
Chapecó: Argos Editora Universitária, 2003, pp. 269 – 283

HALL, Stuart (1992). A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução:


Tomas Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro – 11. ed., 1. reimp. – Rio de
Janeiro: DP&A, 2011.

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ACONTECE QUE SÃO BAIANOS: FOTORREPORTAGENS DE PIERRE


VERGER E EXPRESSÃO GRÁFICA NA REVISTA O CRUZEIRO

RONALDO DOS SANTOS DA PAIXÃO1 (UEFS)

Acontece que são baianos: Pierre Verger- Bahia-golfo do Benin

As páginas da revista O Cruzeiro durante os anos de 1940 - 1950,


abrigaram em seu conteúdo reportagens e fotorreportagens sobre a Bahia, e
muitos desses conteúdos referentes as práticas culturais da população baiana,
em particular, da cidade de Salvador. Os trabalhos de repórter fotográfico de
Pierre Verger enquanto trabalhou para O Cruzeiro o proporcionaram
aproximação e aprofundamento das práticas culturais religiosas de matrizes
africanas, o que posteriormente o tornaram umas das principais referências em
pesquisas sobre o assunto. Dessa aproximação, um caso especial foi o
conjunto de cinco reportagens publicadas pela O Cruzeiro nas edições dos
meses de agosto e setembro de 1951 intituladas de: Acontece que são
baiano1. Segundo informações Cida Nobrega (2002) e de Angela Lühning
(1999) a responsabilidade de Pierre Verger aumentou depois que Theodore
Monod, ofereceu-lhe uma bolsa de estudos para realiza-se pesquisas em
busca das conexões entre a cultura afro-brasileira e a cultura do golfo do
Benin. Verger viajou em 1948 e após um mês redigia carta ao seu colega de
revista, o fotojornalista José Medeiros, demonstrando seu entusiasmo com a

viagem à região do Daomé, e com as descobertas.

“20 dec 48, Meu caro José Medeiros, cheguei por fim no Dahomey
adonde vou ficar um ano. Encontrei aqui coisas superinteressantes,
tantos brasileiras como os “descendentes” dos que voltaram aqui no
ultimo siglo com todas as tradições brasileiras – já vi “bumba meu
boi”, “samba” estilo de Bahia – vou fazer a festa do Bonfim em janeiro
com segunda-feira como na “boa terra”. Do lado africano é estupendo
vi cerimônias incríveis .Espero colher bom material e mostrar-lhe
algum dia. (TACCA,2009, p.81)

A carta de Pierre Verger fala das suas primeiras descobertas do lado


brasileiro em Daomé, entre elas os descendentes de brasileiros, e as
manifestações culturais relacionadas a estes demonstrando que há um
caminho de contrapartida cultural entre a Bahia e o Daomé; também que estas

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manifestações têm uma periodicidade, acontecendo em janeiro, motivo que faz


com que Pierre Verger se interesse e realizasse os registros fotográficos que
resultarão em duas reportagens sobre as festividades na cidade de Porto
Novo, no Benin, antigo Daomé. Angela Lühning (2004, p.21) informar que
durante a vigência de seu primeiro contrato com a revista(1946-1951), Pierre
Verger havia produzido mais de 100 artigos, sendo que metade desses fora
publicado, o que não favorecia a divulgação do trabalho de Pierre Verger, já
que a revista era uma importante difusora de sua produção fotográfica.
A revista mantinha um perfil editorial sendo uma revista versátil, eclética,
lida por um público diversificado, de todas as classes sociais entre homens e
mulheres. Mesmo com esse perfil, as reportagens, a depender da temática,
eram avaliadas e em alguns casos até mesmo censurada. Accioly Netto (1998,
p. 82) revela esse procedimento por parte da então diretora - presidente Amélia
Whitaker, casado com diretor- presidente e primo de Assis Chateaubriand,
Leão Gondim. Amélia Whitaker, ou dona Lili, era filha de banqueiro,
representava a alta sociedade e interferia também na redação e publicação da
revista, devido ao seu senso moralista, esta vetava a publicação de algumas
reportagens, que considerava inadequadas, constrangedoras, furo de
reportagem, ou até indecentes. 1As temáticas enfocadas por Pierre Verger
traziam certo desconforto ao demonstra uma forte ligação do Brasil com a
África negra e com o legado africano aqui muito presente. Angela Lühing
(2004, p. 33) nos conta o seguinte episódio acerca das reportagens de Pierre
Verger e Gilberto Freyre:

Verger ainda ressaltou que os colaboradores de o Cruzeiro


provavelmente eram racistas e não se colocaram de forma muito
favorável em relação aos artigos sobre assuntos da cultura de origem
africana. A única exceção foram os quatro artigos já mencionados
sobre descendentes de brasileiros na África, que foram “salvos” pelo
próprio Chateaubriand, que se empenhou pela sua publicação,
confiando os textos a Gilberto Freyre.

A intervenção de Assis Chateaubriand fora providencial, para que o

conteúdo “atípico”, “pitoresco”, “exótico” das reportagens de Pierre Verger e


Gilberto Freyre pudesse ser editado e divulgado de forma seriada a cada nova
edição. Mas os detalhes sobre o episódio da intervenção e empenho de Assis

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Chateaubriand, não foram encontrados ainda, mas provavelmente, Assis


Chateaubriand pelo seu perfil também de incentivador da Cultura no Brasil,
entendeu a importância dos conteúdos abordados por Pierre Verger e Gilberto
Freyre e ordenou a equipe de redação que publicasse de qualquer forma.

Acontece que são baianos: uma festa baiana no golfo do Benin

Para fazermos uma análise gráfica e fotográfica das fotorreportagens de


Pierre Verger optamos em trabalharmos com a primeira das cinco reportagens.
O exemplar n.43 de 11 de agosto de 1951 de O Cruzeiro que diz respeito às
festas populares na cidade de Porto Novo, (na ocasião antiga Daomé) então
Benin, a festa destacada é a da Burrinha (Bourinhan), folguedo levado da
Bahia e mantido por associações de brasileiros em algumas cidades do Benin
e da Nigéria. Sobre as origens e importância da festa da Burrinha, Milton Guran
esclarece:

Divertimento de um povo e dos escravos no Brasil, a burrinha, levada


por estes últimos para a África, foi lá utilizada como um indicador de
identidade que lhes permitiu exibir suas origens brasileiras. Ela deu
aos ex-escravos retornados do Brasil a oportunidade de se reunirem
em torno de uma memória comum carregada de indicadores de
identidade cultural, tais como a língua portuguesa através das
canções, o ritmo musical e a maneira de dançar, bem como o caráter
profano da festa, que se opunha às danças e cantos africanos
geralmente ligados ao universo mágico-religioso. (GURAN, 2000, p.
156)

Milton Guran(2000) vê na festa da Burrinha uma prática cultural onde


uma memória atrelada a outros elementos, como língua, cantigas, demarcam
uma identidade cultural que os distingue os retornados ou agudás, dos demais
grupos étnicos locais. Ao olharmos para os registros das fotorreportagens de
Pierre Verger percebe-se que estes encadeiam os vários momentos da festa a
partir de uma sequência compondo uma narrativa fotográfica, principal
característica da fotorreportagem, que é um estilo jornalístico onde o cerne
principal dos acontecimentos são os registros fotográficos, sendo que o texto
fica em segundo plano. Quando pensamos a narrativa fotográfica e sua
sequencialidade devemos considerar que está se inscrever no leiaute da
página e que por meio da diagramação as fotografias de Pierre Verger sobre a

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

festa da Burrinha e os demais elementos gráficos ganham um sentido para o


conjunto que compõem a visualidade da página.
Na composição da visualidade da página Collaro (1996, p.104) destaca
a importância do ato de desenhar como modo de projetá-la onde “desenhar
uma página significa muito mais que apenas dispor textos, fotos e ornamentos
no papel; é construir, estruturar elementos que irão compor uma mensagem
que deve ser trabalhada conscientemente.” Pensando na articulação e de
sentidos, percebe-se que fotorreportagem (fotografia) reportagem (texto verbal)
e diagramação (desenho de página) formam três eixos de sentido onde
fotorreportagem e diagramação são analisados aqui.
Depois a narrativa da diagramação ou do desenho das páginas que
reordena as fotos que já assumem outra qualidade, a de elemento gráfico que
estarão sujeitos a uma nova ordem de visibilidade, em que a hierarquia
estabelece a disposição em que estas ficaram ou ocuparam o arranjo da
página, ou seja, o seu layout, o que se tem em vista sobre as páginas que
compõem a fotorreportagem aqui trabalhada é que os arranjos diferem de uma
página para outra ou até mesmo estabelecem uma relação de continuidade

Imagem 1 - O Cruzeiro ano 23, nº43, 11 de agosto de 1951, p.74-75

Fonte: LabIMAGE-UEFS/BSMG-UEFS

A imagem acima se refere às páginas das reportagens de Gilberto


Freyre e das fotorreportagens Pierre Verger onde na página da esquerda uma

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foto1 com uma legenda onde se lê: África. As roupas e os enfeites evocam a
Bahia. Para Nadja Peregrino (1991, p.59) a estrutura gráfica e a diagramação
da fotorreportagem da revista O Cruzeiro como narrativa assim se comportam:”
A narrativa parte de um ponto inicial, geralmente sublinhada pela publicação de
foto de página inteira, que indica os elementos pelos os quais se faz a
descrição das motivações que originaram a trajetória de um determinado fato.”
A motivação são as supostas semelhanças entre os baianos de Porto
Novo e os outros os baianos da Bahia, de Salvador como na 2 foto no topo da
página a direita em que Deodato Rodrigues da Silva é descendente de
brasileiros e fala muito bem o português e é músico e pelos seus trajes, a
distinção social fica evidenciada e logo abaixo a conversão para o título das
reportagens que fica no meio da página dando início para a leitura verbal. As
fotos 3 e 4 têm a marca de Verger:” Ele deixa o outro vir até ele, não procura
surpreendê-lo ou pegá-lo em “flagrante delito”. Por isso nunca faz alguém
posar para um retrato. Trata-se de uma experimentação intuitiva entre
observação, participação e fotografia. (SOUTY, 2011, p. 57).

As fotos 3 e 4 são registros exemplos em que Pierre Verger registras as


expressões corporais demonstrando a dinâmica da festa e a alegria e
entusiasmo de seus participantes. O encadeamento da diagramação pontua a
foto 1 como sendo a abertura para o assunto, uma foto de afirmação e
legitimação pra as demais fotos e para o texto; 2 a apresentação de
determinado personagem devidamente identificado seu refinamento; 3 a
presença dança representada a partir do público feminino e 4 a música como
de responsabilidade masculina. A foto 5 que se trata de uma faixa com anuncio
da festa da burrinha é um elemento flutuante e de segunda ordem dentro do
conjunto da página, mas reforçado por meio da legenda que informa: “anúncio
de uma grande festa brasileira na África, em que se dança “bumba-boi” e
samba”. Informando da presença do samba um dos principais ícones da cultura
afro-brasileira e nacional e conhecida internacionalmente. O samba é sugerido
nas fotos 3 e 4 no destaque para o homem que segura um adufe que era muito
comum na época e muito presente nas fotos que Pierre Verger fez de algumas
festa de largo e de rua de Salvador1.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O trabalho de repórter fotográfico de Pierre Verger implica em uma postura no


ato fotográfico não só pelo que Pierre Verger nos dá a ver, mas sim uma relação de
proximidade com o que é visto:

Existe uma ambiguidade fundamental na fotografia, pois ele é um


objeto, um resultado: uma fotografia; e ao mesmo tempo, uma
prática, um meio de expressão; um jeito de ser: o fotógrafo. A partir
do momento que ela fixa, isola uns olhares, que ela imobiliza umas
dadas olhadelas, a fotografia revela tanto o que o observador viu
quanto a sua própria intimidade, através do seu olhar incorporado às
suas produções fotográficas. (apud.MALYSSE, 2000, p. 334)

Mesmo estando pouco tempo na Bahia, 1946 e em 1948 momento em


que faz os registros da festa da burrinha, Pierre Verger procurava os elos de
proximidade entre as práticas culturais baianas e de Porto Novo e como
também aspectos da personalidades de seus retratados, como o jeito de sorrir,
os gestos e as vestimentas dos descendentes de baianos.

Imagem 2 - O Cruzeiro ano 23 n° 43, 11 de agosto 1951, p. 74-75

Fonte: LabImagem- PPGDI-UEFS/BSMG-UEFS

As páginas logo acima, compreendida entre fotos e texto, são as de


conteúdo fotográfico mais denso, contando com oito fotos, onde as fotos da

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página da direita excedem na página esquerda. Os registros de outros


momentos e de outros personagens da festa , no leiaute da página da
esquerda têm-se duas fotos sequenciais em plano geral, sugerindo que a
primeira seja a do canto inferior esquerdo onde estão Maria-Watta, Mamy
Watta ou mamiwata1 segurando duas cobras envolta da cintura e de braços
dados com o seu parceiro, papay(papai) que aparecem desfilando em trajes de
“gala”, ambos usando luvas e a figura masculina está com um chapéu que se
assemelha a uma cartola e na foto seguinte, no lado superior esquerdo da
página, aparecem dançando, sob um ambiente aberto e com bastante luz
natural. As outras duas fotos 3 e 4 que encerram a página identificam as
retratadas; Verger teve que se aproximar primeiramente para estabelecer
contato, e saber de quem se tratava Guilhermina Santana e sua e sobrinha,
noticiando ao leitor a segunda e terceira geração de brasileiros em terras
africanas.

Na página da direita há uma predominância das fotos em relação ao


texto, e nela Pierre Verger fez o registro noturno da festa da Burrinha com os
seguintes personagens: o cavalo-marinho, o boi, a ema e a iaiá grande. Na
maneira de fotografar de Pierre Verger, estão os personagens, separados e
cada um interagindo e demonstrando sua participação. Nos casos do cavalo-
marinho (cavaleiro montado) e do boi estes aparecem no centro das fotos
enquanto que a ema e a Iaiá grande e o papa giganta (papai gigante)
interagem com as pessoas. Ao olhar para as estampas que compõem o
figurino do boi, da ema de da iaiá grande e do papa giganta, essas têm o
mesmo padrão (com desenho de estrelas e bolas1) que podem indicar que
pertencem a uma mesma associação ou que foi adquirida em um mesmo
fornecedor. A posição dos personagens no momento que Pierre Verger vez a
tomada da foto, dão a ideia de que a evolução que os personagens fazem são
movimentos circulares, entres os outros participantes.

A página da esquerdar tem uma dinâmica de diagramação onde fotos de


Pierre Verger têm um espelhamento com a página oposta, o intuito foi o de
aproveitar do conjunto as quatro fotos possibilitando que os personagens da
festa da burrinha fossem ressaltados. As fotos acabam que rompendo as

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margens, ocupam a mancha gráfica, fazendo com que os leitores possam tocá-
las diretamente, passando a idéia de contato.

Imagem 3 - O Cruzeiro ano 23 n° 43, 11 de agosto 1951, p. 76-77

Fonte: LabImagem – PPGDCI-UEFS/BSMG-UEFS

A página 76 encerra a fotorreportagem colocando novamente em


evidenciando a dança, nesse caso o samba o principal ritmo brasileiro de
matriz africana e também mobilizador dos festejos da burrinha. A figura 10 é
mais um registro da dinâmica da festa da Burrinha. A legenda assim se refere
ao momento captado pela máquina fotográfica de Pierre Verger:” COM FÔRÇA
NO SAMBA. Aqui está uma descendente brasileira - filha de país que
estiveram no Brasil – dançando com todo requebro nacional.” O destaque dado
para a descente de brasileiros é do recorte em plano médio onde os gestos
com os braços abertos, o requêbro referido pela legenda e com o semblante
sorridente sob uma luz diurna. Ao fundo da foto, árvores e uma plateia, com
pessoas em pé e sentadas parecem se organizarem entorno de uma roda que
envolve os que dançam os que tocam, e os que assistem. Uma toma de foto
que traz para próximo do espectador o motivo fotografado, de maneira que o
fotógrafo parece não ser notado e nem interferir com a sua presença a
evolução da sambista. A dança, a música acontecendo a céu aberto, o espaço

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da rua como local de encontro, de celebração, integração, de acesso permitido


e não restrito, situação bastante conhecida para Pierre Verger enquanto estava
na Bahia fotografando as festas de Salvador.

Acontece que são baianos: arranjos fotográficos

O que se pode perceber nas fotorreportagens de Pierre Verger foi, a


princípio, uma das preocupações da linguagem da fotorreportagem: o de contar
um acontecimento, por meio de uma sequência fotográfica que culmina com o
desfecho do acontecido, algo muitas vezes mostrada de uma maneira
impactante ou cinematográfica. No caso de Pierre Verger, nada de impactos e
de cinematografia, e sim “[...]expressa a idéia de que a fotografia é menos uma
técnica de registro de imagem que uma qualidade e uma capacidade do olhar
de entrar em contato com o outro. O que prima, portanto, é relação com o
sujeito fotografado.” (SOUTY,2011, p.62).

Por meio dessa relação às fotorreportagens de Pierre Verger nos


mostram nos demonstram os conteúdos das práticas culturais dos
descendestes de baianos, práticas que outrora eram vigentes e que foram
passando por processos de mudança na Bahia, como no caso da festa da
burrinha. Vimos que a festa de burrinha é um reduto de uma memória rodeada
por cantigas, comidas, danças que aproxima os retornados de um outro lado do
atlântico e o que os distingue dos demais, consolidando um grupo étnico
fundamentado em valores de um grupo dominante no Brasil.

O espaço de composição gráfica das fotorreportagens de Pierre Verger,


estabelece uma ordem em que o arranjo da página, no caso do leiaute, é
montado considerando as fotos como elementos gráficos preponderantes tais
elementos no momento de sua montagem recebem o destaque dado pela
posição em que serão distribuídos, como também pelo trabalho de ampliação
das imagens que estabelecem o que deve ser ressaltado ou equiparado na
visualidade da página.

Tudo o que remete a uma identificação dos sujeitos das fotorreportagens


são colocados tanto pelos enquadramentos que Pierre Verger usa como pelo
processo de edição das fotografias no que diz respeito aos cortes e as

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ampliações. São estratégias da diagramação para dar feições as páginas em


que um conteúdo visual tenha a sua mensagem decodificada pelos leitores e
que possa desperta-lhes as mais variadas intenções e entendimentos,
principalmente sobre a relação de proximidade estabelecida da Bahia com a
África.

REFERÊNCIAS

BONI, Paulo César. Revista discurso fotográficos, Londrina, v9. N14, p.243-
270, jan/jan. 2013. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/article/viewFile/14
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VERGER, Pierre; BASTIDE, Roger.Verger – Bastide. Dimensões de uma


Amizade.Org. Angela Lühning. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002

Pierre Verger e Gilberto Freyre. Acontece que são baianos: Festas


populares. O Cruzeiro. 11 de agosto de 1951. p. 72, 73, 74, 75, 76, 104, 45.

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A IDENTIDADE EM IMAGEM: RETRATOS DA FEIRA-LIVRE DE COITÉ-BA

MOISÉS DOS SANTOS VIANA (UNEB)

RESUMO: O objetivo do artigo é apresentar e analisar o processo das


interações simbólicas através das imagens da feira-livre de Conceição de
Coité-BA, buscando relacionar as imagens como amostra das referências
culturais que esse evento representa. Toda sorte, mais que uma categoria da
política cultural, observa-se que as referências culturais se apresentam em um
campo reflexivo de ordem comunicacional. Para tanto, fez-se uma análise
sobre as fotografias da feira-livre ao observar a construção de significados das
imagens que retratam formas, processos e interações específicas no local.
Palavras-chave: identidade, imagem, Conceição do Coité-Ba.

INTRODUÇÃO

A feira-livre de Conceição do Coité-BA parece ser um acontecimento


tradicional em que são comercializados diversos produtos como roupas,
calçados, utensílios, objetos, frutas, legumes, verduras. Ela acontece
tradicionalmente às sextas-feiras, constituindo-se um evento celebrado por
toda comunidade local. A feira possui diversos elementos atraído por
determinado fator adjunto à comunicação, seja ele visual ou verbal, construídos
por meio da convivência como um conjunto de valores, percepções,
preferências e comportamentos .
Assim sendo, dentro das características expostas acima apresenta-se as
manifestações culturais expressivas como formas de construção de
identidades. Nessa perspectiva faz-se a análise das interações simbólicas,
manifestação cultural humana elementar, pois através delas que se percebe o
mundo. Por exemplo, as manifestações culturais populares estão em
consonância com o ethos da comunidade e se desdobram em manifestações
que acontecem como comemoração do povo espontaneamente e são
apropriadas com interesses diversos (público ou privado). Destaca-se as
tipologias das pessoas que vivem, e se definem no processo de compra e
venda de mercadorias, que longe de ser algo estanque e acabado, se torna um
processo material, plástico, comunicativo e conflituoso (VIANA, 2010).
Assim, chega-se a seguinte questão: de que maneira a feira-livre se
constitui referência cultural dentro do contexto local, em que as imagens são

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assimiladas como elementos de interacionismo simbólico? Para tanto, foram


feitas 04 visitas de campo na feira-livre, onde se retratou (coleta de imagens) e
se fez observações de campo. A análise das imagens é feita nas interfaces das
pesquisas na área de comunicação: mensagens e contexto. As mensagens e o
território dessas no contexto que estas são criadas e os diferentes ordens das
linguagens (SANTAELLA, 2002). Apresenta-se a questão da identidade e
patrimônio imaterial e os conceitos de memória e referências culturais e a
comunicação. Daí o propósito de tentar analisar esse fenômeno: primeiro se
faz uma incursão na questão do interacionismo simbólico (BLUMER, 1980),
destacando três premissas para haver interação: 1) os seres humanos agem
em relação ao mundo fundamentando-se nos significados que este lhes
oferece; 2) estes significados são provenientes da interação social; 3) estes
significados são manipulados pela interpretação e utilizados pelas pessoas que
entram em contato. Em especifico, em sua competência na comunicação,
sabendo que o universo simbólico das imagens passam pela espontaneidade
das culturas regionais e locais como referências culturais.

Espaço e acontecimento: patrimônio, legado e referências culturais

O conceito de patrimônio, do latim patrimonio, nasce como herança do


sistema jurídico romano, com o conceito de bem da família, domus, e envolve
um conjunto de pertenças materiais de um determinado grupo. (CHOAY, 2001).
Desse modo, como afirma Bomfim (2009), o conceito de patrimônio está
intimamente ligado a transmissão, à memória e herança transmitida. Ela
contém significados, formando valor e laços culturais simbólicos que unem e
cimentam as identidades.
O patrimônio, identificado assim como legado de uma geração para
outra, é justificado socialmente por envolver diversas relações sociais que
carregam símbolos pertencentes aos grupos que o tem como referência e
como solidificador de identidade. Faz-se um resgate da história, da memória do
lugar, dos eventos e dos elementos, constitutivos do patrimônio cultural.
Segundo Le Goff (1990, p. 428), a memória nesse jogo de resgate tem papel
fundamental: “O primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos

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povos sem escrita é aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico –


à existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem”.
Daí as mnemotécnicas para guardar e reproduzir a riqueza étnica das
comunidades e suas memórias. Le Goff (1990), por seu turno, conceitua
memória segundo os seguintes termos:

A memória, como propriedade de conservar certas informações,


remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas
(1990, p. 423).

Para manter-se dinâmica e ao mesmo tempo viva e significativa na formação


da identidade é possível registrar, identificar, gerar conhecimento a face
imaterial do patrimônio inseridas nos incisos I - as formas de expressão e II - os
modos de criar, fazer e viver.
Afirmar a partir disso o valor do patrimônio cultural que de alguma
maneira passa pelo processo de integração como as identidades da
comunidade representada pelos bens culturais imateriais. “A imaterialidade é
relativa e, nesse sentido, talvez a expressão ‘patrimônio intangível’ seja mais
apropriada, pois remete ao transitório, fugaz, que não se materializa em
produtos duráveis” (FONSECA, 2003, p. 66). Nessa perspectiva

Entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas,


representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com
os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são
associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos,
os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio
cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de
geração em geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua
interação com a natureza e de sua história, gerando um
sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
(UNESCO, 2006, p. 04).

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Figura 01: A mandioca, a técnica de cultivo, conhecimento


associado, parte da cultura local e do patrimônio imaterial. (VIANA,
2015).

A UNESCO vai classificar esse patrimônio como uma série de conhecimentos e


técnicas que junto às pessoas possuem um valor excepcional à comunidade,
resgatando um saber único e singular: linguagem, música, manifestações
culturais (festas, ritos de passagem), modos de vida, costumes. Por isso, as
abordagens interpretativas da cultura captam as relações da cultura com as
formas mais sutis de viver dos sujeitos sociais. O importante é o conjunto de
significados que a cultura encerra para os sujeitos que tem nas suas
manifestações os sentidos identitários, suas memórias coletivas e individuais.
As diversas formas de expressão simbólica que constituem a singularidade das
comunidades: as forma de falar, o artesanato, as narrativas, os contos e os
cantos permitem que a feira se faça como um microcosmos dessas
expressões. Por isso mesmo pode ser atribuída a elas co conceito de
referência cultural para comunidade de Coité e região.
Desse modo, a cultura alcança o mercado de produção, distribuição e
consumo, diferenciando das outras formas de fomentar uma economia
específica para os seus produtores, sem precisar passar por intermediadores
ou concorrer com as formas de produção cultural mercantilizadas e
potencializadas no capitalismo, por exemplo. A relação entre mestres e
aprendizes, o tempo da produção, a transmissão do conhecimento, o trabalho
em equipe, a sensibilidade e os valores estéticos vão de encontro ao processo
atual, desumano e destruidor das singularidades e das tradições pré-modernas
e não alinhadas ao processo de produção capitalista.

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Reconhecendo que os processos de globalização e de


transformação social, ao mesmo tempo em que criam condições
propícias para um diálogo renovado entre as comunidades, geram
também, da mesma forma que o fenômeno da intolerância, graves
riscos de deterioração, desaparecimento e destruição do
patrimônio cultural imaterial, devido em particular à falta de meios
para sua salvaguarda, […]. (UNESCO, 2006, p. 3).

Figura 02: A cultura material, mercantil e patrimônio


cultural formam identidade. (VIANA, 2015).

Preservar o patrimônio cultural imaterial e seus aspectos humanos é resistir à


fragmentação, é ser integralmente sujeito de seu passado, presente e futuro,
alimentar suas identidades. Com a virada cultural diagnosticada por Hall
(2005), é importante destacar o fim das certezas que fundamentam as
identidades na modernidade.

O impacto das revoluções culturais sobre as sociedades globais e


a vida cotidiana local, no final do séc. XX, pode parecer
significativo e tão abrangente que justifique a alegação de que a
substantiva expansão da ‘cultura’ que experimentamos, não tenha
precedentes. Mas a menção do seu impacto na ‘vida interior’
lembra-nos de outra fronteira que precisa ser mencionada. Isto
relaciona-se à centralidade da cultura na constituição da
subjetividade, da própria identidade, e da pessoa como um ator
social (HALL, 2005, p.01).

A memória viva se constitui depositários das identidades. Não é o passado


lembrado por símbolos estanques e conservados por leis, mas o intangível, os
efeitos de sentido, suas contradições e multifacetadas ações, a ligação entre
passado e presente, afirmando a cultura e as identidades de uma determinada
população.

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Figura 03: Objetos das vendas, tipos de alimentos, organização


se constituem elementos da referência da cultura de Coité-BA.
(VIANA, 2015).

Desse modo, segundo Fonseca (2000), observa-se as representações


que marcam e constroem identidades de uma localidade e da comunidade,
envolve os habitantes, as paisagens, objetos e edificações, saberes e
tradições, hábitos e cotidianidade. Assim, ao conceder significado a
determinada referência cultural, um determinado grupo social reconhece
valores, representa coletivamente as identidades narradas.

Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem por si


mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre
atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados
critérios e interesses historicamente condicionados (FONSECA,
2000, p. 112).

As referências culturais não são objetos estanques, parados no tempo,


mas são identificados como elementos vivos da comunidade, mesmo que para
um estrito grupo, socialmente constituído, que usam esse conjunto de signos
para formação de sua identidade .

Pois trata-se de identificar, na dinâmica social em que se inserem


bens e práticas culturais, sentidos e valores vivos, marcos de
vivências e experiências que conformam uma cultura para os
sujeitos que com ela se identificam. Valores e sentidos esses que
estão sendo constantemente produzidos e reelaborados, e que
evidenciam a inserção da atividade de preservação de bens
culturais no campo das práticas simbólicas (FONSECA, 2000,
p.119).

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Assim sendo, valores e sentido se complementam em uma interação


comunicacional que se abrange em expressões plásticas, comunicacionais,
imagéticas, materializando-se como parte de um universo simbólico local,
dotado de narrativas identitárias ricas e mais que do que tudo, expressiva, rica
e profunda.

Imagens da feira de Coité: interações simbólicas e identidades

A região classificada como território do Sisal (ou sisaleira) está inserida


no semiárido baiano, o nordeste do estado da Bahia, a 200 km de Salvador.
Abrangendo uma área de 21.256,50 Km² e subdividida em 20 municípios:
Monte Santo, Nordestina, Queimadas, Quijingue, Serrinha, Teofilândia,
Valente, Barrocas, Biritinga, Conceição do Coité, Ichu, Lamarão, Retirolândia,
Santaluz, São Domingos, Tucano, Araci, Candeal, Cansanção e Itiúba, de uma
população de aproximadamente 570.720 habitantes (58.238 agricultores
familiares, 2.482 famílias assentadas, 2 comunidades quilombolas e 1 terra
indígena), segundo a EMBRAPA (2015). Essas informações básicas trazem à
luz os elementos que se pode caracterizar as relações de identidade típicas do
local. A feira-livre é um acontecimento, não se constituem apenas um aspecto
físico, mas uma referência cultural, pois envolvem elementos funcionais, um
conjunto de elementos comunicacionais que se apresentam como singulares
em suas forma e constituição. Como um todo, surge um conjunto de narrativas
identitárias, pois faz para de uma rede de interações simbólicas
(comunicativas, sociais e culturais).
Assim, as imagens da feira-livre forma a dialética em que se reconhece
os sujeitos, a comunidade os processos de criação de bens e suas referencias
culturais no sertão baiano. “Para um indivíduo, o significado de um elemento
nasce da maneira como outras agem em relação a si no tocante aos
elementos. Todas as suas ações preocupam-se em defini-lo para o indivíduo”.
(BLUMER, 1980, p. 121). O que se tem aí é uma comunicação imagética limpa,
com uma mediação que ilustra o modo de vida campesino e sua relação
conflituosa não só com a natureza, mas também com a cidade. . Pois na
urbanidade há mais relações humanas mediadas pelo Estado, pelos conflitos
civis que alteram as percepções e narrativas da comunicação de uma maneira
mais densa. A imagem comunicativa é de que mesmo com a dureza e rigidez

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da vida, percebe-se a leveza e proteção da cultura que reveste o humano em


seus contextos mais agrestes e ríspidos.

Figura 03: Os chapéus, as palhas e as cordas são objetos que ilustram na


comunicação as identidades narradas. É o atemporal da cultura. (VIANA,
2015).

As Figura 03 e 04 destacam e comunicam as redes de interação


simbólica que funcionam como grande alegoria do sertão, o sol, a natureza, a
luta do sertanejo da área rural, ou mesmo o convívio com a seca, com a
dialética da vida atroz que o sol representa. O conglomerado dos símbolos
úteis, dos utensílios e da relação comercial narra o drama da morte e vida, das
severas batalhas do trabalho. Tem assim uma interpretação para si e para o
outro, dos significados que nasce dessa interação que forma a ação social dos
sujeitos. Daí cabe à questão dos significados dos objetos: “tudo que for
passível de ser indicado, evidenciado ou referido”, ou seja, “objetos físicos”.

Tal significado determina a maneira pela qual vê o objeto, pela qual se


encontra preparado para agir em relação ao mesmo e pela qual
apronta-se para comentá-lo. O significado dos objetos para um é,
basicamente, gerado a partir da maneira pela qual lhe é definido por
outras pessoas com quem interage. (BLUMER, 1980, p. 128).

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Figura 04: Cada utensílio é um ponto das narrativas construídas para


poder ilustrar as identidades dos sujeitos no semiárido baiano. (VIANA,
2015).

Os chapéus e as cordas lembram mais do que nunca, os aspectos


estéticos são bem específicos senão sóbrios, limitados nas cores, arquétipo
das regiões extremas, onde negociação homem-natureza não é tão pacífica.

O significado de qualquer elemento deve ser formado, assimilado e


transmitido através de um processo de indiciação, o qual,
necessariamente, é também social. A coexistência grupal humana ao
nível da interação simbólica representa um complexo sistema no qual o
indivíduo forma, mantém e transforma os objetos de seu universo, à
medida que lhes concede significado. (BLUMER, 1980, p. 128).

As referências culturais ligadas à palha, aos trabalhos com esse insumo,


ilustram riqueza material/imaterial das identidades dos sujeitos da região do
sisal, o uso do Agave1 como matéria prima para compor os utensílios,
aproveitando a fibra como ícone da resistência, da utilidade e da riqueza local.
No processo de interação, os sujeitos sociais se encontram com um mundo
que deve interpretar, orientar-se e responder as questões fundamentais de sua
existência e do cotidiano.

1 Agave Sisalana Perrine pode ser cultivada em locais de baixa pluviosidade e tem sua origem no
México. Foi trazido para o Brasil no início do século XX. (SANTOS et al, 2011).

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Figura 05: A estética da produção se modifica de acordo com as


formas de comunicação. A quem se quer comunicar. (VIANA,
2015).

Como ilustra a Figura 05, o modo de produção toma um nova vertente,


diferente, plasticamente mais colorida, segue uma estética mais urbana dos
utensílios, as formas mais femininas apontam para um fazer-saber misto,
mesclado pela cor, pela beleza das alternâncias cromáticas. O salto qualitativo
da cultura é parte dos movimentos recíprocos de interação. A mercadoria não é
apenas mercadoria, é arte, é expressão de vida. Então o trabalho do campo é
artesanato, designer e mais do que tudo, processo de significado, amplitude
simbólica-comunicacional dos sujeitos que se narram em seu cotidiano,
formando e transformando suas identidades.

A comunicação é um meio de agir sobre os outros para obtermos a


satisfação de nossas necessidades, constitui um processo
intencional, pelo qual as pessoas influenciam o comportamento dos
demais, levando-os a realizar certas ações cuja premissa não se
encontra em sua própria motivação, mas na mensagem que recebem
de seu semelhante, e isso no quadro de interações sucessivas, que
determinam a formação de verdadeiros sistemas de ação social
(RÜDIGER, 2011, p. 67).

Ou seja, forma-se um conjunto de ações que é possível de se narrar e


descrever, fruto de uma composição assimilável nos processos de interação.
Os processos de comunicação daí não são um simples estímulo-resposta, mas
expressão e interpretação de significados identitários, referências culturais. Por
seu turno, os sujeitos sociais desenvolvem interações simbólicas, estabelece
novas formas de estar no mundo de maneira a criar um universo de
significados abrangentes que o ligue ao universo social.

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CONSIDERAÇOES FINAIS

As interações simbólicas fazem com que haja uma unidade das


referências culturais como elemento típico da comunidade. Funciona como
algo comum, típico e comunicacional. A feira-livre de Conceição do Coité-BA
mais que uma tradicional ação de comércio, é síntese de um grupo social, é
determinador de uma comunicação visual, encerra valores, percepções,
preferências e comportamentos .
As culturas expressivas se baseiam em identidades. Estas são narradas
cotidianamente nas interações simbólicas que fazem com que haja uma visão
de mundo específica dos sujeitos que aqui vivem e se materializam nos
objetos, nos gestos, nas cores, nas formas de se comportar. As imagens
apresentam as interfaces das mensagens e contexto da cultura regional e
envolve memória, legado cultural, saberes e fazeres, verdadeiro fluxo de signos,
por isso mesmo comunicável.
Uma imagem, vale mais que mil palavras, mas é uma chave de leitura,
onde as palavras se fazem descritivamente como interpretantes das mil e uma
imagens que se desdobram nas interações dos sujeitos sociais. Daí o desafio da
comunicação. Interpretar essas iterações e mais do que nunca assumir o desafio
de por-se a serviço das referências culturais locais, para poder nutri-las, ampliá-
las e fortalecê-las.

REFERÊNCIAS

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São Paulo: Hacker Editora, 2002.

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Silva. “Fala aí, freguês!”: Estratégias de Comunicação na Feira Livre de Itapetinga-
Bahia doi: 10.5007/1984-8951.2010 v11n99p93."Cadernos de Pesquisa
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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BAIANIDADES VISUAIS: CONTRIBUIÇÃO DE ARTISTAS AFRO-


BRASILEIROS NAS ARTES PLÁSTICAS DO BRASIL

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NELMA CRISTINA SILVA BARBOSA DE MATTOS (IF BAIANO)

Introdução

O presente trabalho propõe uma breve reflexão sobre a participação de


alguns artistas baianos afro-brasileiros no panorama das artes visuais de
origem negra no Brasil. No passado, o estado da Bahia recebeu, além de
europeus, um contingente significativo da população de diversos pontos da
África. Esses povos tornaram-se não só a base da sustentação econômica
colonial, mas marcaram a cultura nacional com seus modos de vida. Dos
conflitos gerados pela convivência entre culturas diferenciadas (europeias,
indígenas e africanas), herdamos os traços fundamentais do que se nomeia de
cultura brasileira. No entanto, apenas a contribuição europeia vem sendo
valorizada histórica e socialmente, traduzindo a visão preconceituosa e
hierarquizadora que organiza nossa sociedade até os dias atuais.

As diferenças entre os povos que aqui chegaram também produziram


maneiras de expressão diferenciadas. A identidade nacional brasileira é repleta
de ícones desses processos relacionais, pois a representação dos emblemas
identitários passa também pelo uso de imagens, de discursos visuais. Porém,
como aconteceu em outras áreas, a contribuição dos negros nas artes
plásticas, foi negada durante séculos.

O tema arte afro-brasileira configurou-se como um espaço de disputas


de muitas ideias, reflexos da complexidade e das transformações que o tema
da identidade brasileira assumiu, particularmente após a Abolição da
Escravatura, em 1888. Embora o termo sintetize uma dinâmica intensa de
pensamentos e de tendências, usaremos no presente estudo a indicação da
pesquisadora Marta Salum (2000, p.113), que define a arte afro-brasileira como
“qualquer manifestação plástica e visual que retome, de um lado, a estética e a

329
Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano),
doutoranda no Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos da Universidade
Federal da Bahia (POSAFRO/ CEAO- UFBA)

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religiosidade africanas tradicionais e, de outro, os cenários socioculturais do


negro no Brasil”.

A arte visual de origem negra tem recebido mais atenção por parte da
comunidade acadêmica nas últimas três décadas, mas ainda passa pelo
desafio da sistematização e divulgação de informações e conhecimentos
acerca da criação dos descendentes de africanos no país (SALUM, 2004.
MUNANGA, 2000). A pesquisadora Marta Salum (2004) informa que para se
conhecer a dinâmica da arte afro-brasileira, o mecanismo mais eficaz na
atualidade é o estudo das histórias de vida dos profissionais negros. É
fundamental o reconhecimento de alguns dos principais artistas de origem
negra para compreendermos a complexidade que envolve a arte afro.

Ao iniciarmos nossa pesquisa sobre a arte afro-brasileira, no âmbito do


doutorado em Estudos Étnicos e Africanos, identificamos alguns artistas
baianos importantes para o campo do referido estudo. Através de uma
pesquisa bibliográfica, escolhemos três trajetórias artísticas significativas: a de
Manoel Querino (1851-1923), Agnaldo Manoel dos Santos e Rubem Valentim
(1922-1991). Esses sujeitos, imersos em processos históricos e sociais
experimentados pelo povo negro na Bahia, foram profissionais da arte que se
destacaram em momentos importantes para as artes plásticas brasileiras.
Paralelamente, seus trabalhos inspiraram o discurso visual de baianidade,
explorado na contemporaneidade.

Baianidade: imagem-síntese de um povo

A Bahia, entre os séculos XIX e a metade do século XX, traçou uma


rede de práticas culturais definidoras da especificidade cultural baiana, mas
conseguiu ocultar os conflitos sociais desse processo. Nesses pouco mais de
cem anos, aumentou significativamente o número de jejes, haussás e nagôs
trazidos à força e se reduziu a quantidade de imigrantes europeus. A
ressocialização desses povos baseou-se em trocas interculturais com
diferentes culturas africanas que já se encontravam neste território, a exemplo
do povo bantu, oriundo de Angola e Congo, e isso favoreceu certa coesão
cultural. A conexão com suas terras de origem e com o grupo de repertório
simbólico-cultural similar estimulou uma peculiar experiência do espaço urbano

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soteropolitano, compactando ainda mais esses grupos humanos (OLIVEIRA,


2002).

O relativo isolamento, a ausência de fluxos migratórios e a semelhança


entre as línguas portuguesa e africanas facilitaram a fixação de uma realidade
lingüística própria dos baianos. Mas a cidade se empobrecia presa aos seus
arranjos econômicos agrário-mercantil frágeis e tecnologicamente obsoletos,
ao mesmo tempo em que vivia uma ebulição cultural, fosse nos circuitos
aristocráticos, fosse nos terreiros e ruas. Inspirada nas mudanças do Rio de
Janeiro, Salvador teve um momento modernizante nas primeiras décadas do
século XX, marcado principalmente pela urbanização. Tais alterações não
trouxeram mudanças para a sociedade baiana, que continuou baseando as
relações nos grupos de prestígio, mas procurava destruir todas as lembranças
materiais do passado recente colonial.

A cultura oficial soteropolitana resistiu, hostilizou ou simplesmente ficou


indiferente ao novo ideário modernista do início do século XX (mas isso se
mudou na segunda metade do mesmo século). Nesse período, também as
manifestações e práticas culturais populares (e negras) foram duramente
reprimidas, rechaçadas e perseguidas. Em nome da ordem e da civilização,
muitas ações foram engendradas contra as expressões culturais e artísticas
dos segmentos menos favorecidos da cidade, tratadas inclusive como caso de
polícia. Foi no rádio que as formas musicais populares encontraram espaço. Os
músicos negros e mestiços da Bahia surgiam como intérpretes ou
compositores, participavam de programas de auditório e na formação de
orquestras. O samba encontrou aí total visibilidade.

Houve na época a maciça investida numa imagem soteropolitana que


lhe afirmava a tradição e o conservadorismo. Oficialmente, a cultura baiana era
definida pela apologia da palavra, demonstrada na oralidade portuguesa e
católica, e o discurso identitário baiano confundia-se com o discurso da nação
(MATOS, 2004). Assim, a fundação da nação confunde-se com a da capital,
que nasceu para ser a sede do governo-geral. A cidade de Salvador, desde
sua criação, recebeu uma importância que a projeta para além do local e,

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

através do mito fundador, reivindica seu lugar de direito na nacionalidade


brasileira: o lugar da origem.

Nas décadas de 1960-1970, a política de turismo baseada na exploração


da herança africana começou a transformar as feições da cidade e de sua
cultura. Segundo Matsuda (1995), tal política visava formar um público jovem
mais consciente e para isso era preciso incentivar a revelação de aspectos
como “a história, os monumentos, os costumes, a tradição do povo, o
artesanato, formas de trabalho, o folclore as belezas naturais” (MATSUDA,
1995, p.47). A cultura popular (notadamente negra) assumiu nesse contexto o
papel de vetor de desenvolvimento turístico, recebendo apoios institucionais.
Diversas ações governamentais colaboraram com esse quadro, a exemplo da
formação profissional dos artesãos, em paralelo à expansão de equipamentos
culturais eruditos com a expansão universitária e ampliação de cursos de
graduação na Universidade Federal da Bahia; incentivos aos festivais teatrais e
de cinema; realização da 2ª Bienal Nacional de Artes Plásticas... As festas
populares passaram a ser mais valorizadas, atraindo artistas plásticos para a
participação em concursos de decoração da cidade na ocasião de eventos
como o carnaval, entre outros, de origem popular.

O governo apoiou as artes visuais, desde que se conectassem à uma


linguagem plástica modernista e ilustrativa de um ideal de Bahia, excluindo
pesquisas artísticas inovadoras ou arte contemporânea. Mas muitos temas
afro-brasileiros foram divulgados por artistas patrocinados pelo estado baiano,
responsáveis pela criação de obras como os murais, espalhados nas novas
edificações urbanas soteropolitanas, construídas sobretudo nos anos 70.
Artistas baianos como Calasans Neto, Carybé, Juarez Paraíso, Floriano
Teixeira, Hansen Bahia, entre outros, elaboraram painéis baseados na temática
afro-brasileira, localizados em espaços governamentais, tais como as
secretarias de estado e outros órgãos. ” (MATSUDA, 1995)

Norteada por uma nova política de desenvolvimento turístico, deflagrada


especialmente nos anos 1990, a cidade de Salvador teve algumas áreas
escolhidas como legítimas representantes da modernização e afirmação negro-
mestiça. A área mais importante foi o Centro Histórico de Salvador

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(Pelourinho), lugar onde ocorreu a fundação da cidade e que, após declínio


econômico foi abandonado pelas classes mais altas e completamente ocupado
pelos menos favorecidos socialmente. Entretanto, todo um jeito negro de ser
passou a ser veiculado como parte do cotidiano soteropolitano.

A baianidade, “uma espécie de nacionalidade que confere aos baianos


uma condição tão própria” (ESPINHEIRA, 2002, p.85), tornou-se o produto
para o consumo turístico, assim como a cultura material e imaterial afro-baiana
e a identidade de Salvador. É interessante notar que o carnaval em Salvador e
sua musicalidade de matriz afro-brasileira é o ícone mais forte da “nação”
soteropolitana. Paradoxalmente, a mesma baianidade que incorpora, entre
outros mitos, os da preguiça e da felicidade, é desintegrada através do expurgo
da cultura popular e da exclusão do povo. Há uma constante tentativa oficial de
desafricanização pelos incrementos da atividade turística na renovação urbana
e tecnológica, desfavelização das festas de largo e centro histórico
(ESPINHEIRA, 2002). A baianidade, veiculada pelas estratégias de fomento ao
turismo, carro chefe da política de desenvolvimento adotado pelo Governo do
Estado e do município no final do século XX, não explicita a diversidade
soteropolitana.

Manoel Querino

Manuel Querino (1851-1923) foi um artista estudioso da questão negra


e das artes na Bahia. Nascido numa época em que o racismo científico fazia
escola na Bahia, sua história de vida é um exemplo de luta pela afirmação da
contribuição negra na arte brasileira. Na sua produção como historiador da
arte, apresentou alguns importantes artistas afro-brasileiros daquele período, e
foi um dos raros autores que se preocuparam com a origem étnica dos artistas,
ainda que limitando seus estudos à Bahia (ARAÚJO, 2010).

Querino inventariou profissionais ligados aos fazeres artísticos em


Salvador (NUNES, 2013). Recorreu aos arquivos da Igreja Católica e se utilizou
de fontes manuscritas e orais, o que lhe rende muitas críticas entre os
acadêmicos até hoje. A partir de biografias, estabeleceu um recorte entre a arte

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baiana antes e depois da instalação da instituição oficial de ensino de arte


(academia).

Manoel Querino (1851-1923) era filho de um carpinteiro, mas ficou órfão


de pai e mãe aos quatro anos de idade. Mudou-se para Salvador sob os
cuidados de amigos dos seus pais. Desde criança manifestava talento para o
desenho e buscou estudar para desenvolver suas aptidões. Em 1871, prestou
exame de língua portuguesa e em 1874, o de língua francesa no Liceu de
Artes e Ofícios, instituição que ajudou a fundar (SODRÉ, 2001). Como
professor primário, galgou um importante passo para a ascensão social no final
do século XIX. (GUIMARÃES, 2013). Aluno do espanhol Miguel Navarro Y
Cañizares no curso Superior de Desenho do Liceu, Manoel Querino juntou-se à
ele e a outros professores para fundar da Academia de Belas Artes da Bahia,
em dezembro de 1877. Foi um dos primeiros a se matricular na classe de
desenho da Academia e se tornou um dos melhores discípulos de Cañizares,
em 1882. Também cursou arquitetura. Lecionou gratuitamente Desenho
Industrial e Geométrico no Liceu de Artes e Ofícios, entre 1905 e 1921.
(SODRÉ, 2001).

Trabalhava na cidade de Salvador ocupando-se de ambientar


artisticamente os bondes, residências e edifícios públicos, uma moda da época.
Era um pintor influente, que executava pintura de pano de boca para o teatro,
função exercida só por artistas gabaritados. Infelizmente, suas pinturas em tela
foram perdidas, inviabilizando uma análise técnica das obras. Sabe-se, porém,
que o artista colaborou como pintor decorador do prédio no qual instalou-se a
Academia. Participou de exposições públicas de arte, promovidas pela
instituição de ensino, nas quais chegou a ser premiado algumas vezes.
Ressaltamos que não havia galerias de arte ou algo similar na Bahia. Então, os
Salões de Belas Artes e do Liceu de Artes e Ofícios difundiam a arte oficial,
prestigiados por um discreto público. (SODRÉ, 2001). Querino escreveu livros
didáticos sobre o desenho, utilizados em escolas profissionalizantes do século
XIX e é considerado o precursor do Design na Bahia.(REIS, 2012; SODRÉ,
2001)

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Militante abolicionista, republicano e líder operário, Manoel Querino


elegeu-se vereador de Salvador (1897-1899). Sua preocupação com a classe
operária, que crescia na Bahia, o fez porta-voz dos artistas e intelectuais, ora
como vereador, ora como jornalista em jornais da época. (GUIMARÃES, 2013).
Decepcionado com a política, dedicou-se a contribuir com a historiografia das
artes e da cultura popular. Foi pioneiro em estudar as artes visuais de origem
negra no Brasil (ARAÚJO, 2010). Uma dessas suas obras, o livro Artistas
Bahianos: indicações bibliográficas, publicado em 1911, tornou-se um
importante trabalho para o desenvolvimento da historiografia crítica baiana e
das artes. (SODRÉ, 2001).

Para Guimarães (2013), o baiano foi o primeiro a publicar livros com a


temática da história e cultura afro-brasileira. Porém, não chegou a ser
reconhecido como cientista, sendo tratado no meio intelectual brasileiro como
autodidata, curioso ou jornalista. Só recentemente começou a ser visto como
pensador negro (GUIMARÃES, 2013). Na análise de Lysie Reis (2012),
Querino sofreu preconceito racial por parte de alguns importantes teóricos
brasileiros, que desqualificaram seu trabalho.

Agnaldo Manoel dos Santos

O trabalho de Agnaldo Manoel dos Santos é icônico do período de


valorização de artistas chamados “primitivos”, ocorrido em paralelo ao florescer
da arte moderna no Brasil. Os artistas modernistas, oriundos de abastadas
famílias do país, em sua maioria possuía formação acadêmica no exterior. Ao
explorar a temática afro-brasileira, esses criadores eram reconhecidos por seu
intento de valorizar a cultura e identidade nacionais. Mas, o mesmo não
acontecia com artistas negros.

Os artistas negros frequentemente eram autodidatas, considerados


primitivos, uma categoria desprestigiada no campo das artes visuais. Porém,
na metade do século XX, o mercado de arte brasileira passou a se consolidar
com a comercialização e o interesse no trabalho de artistas “primitivos”.
Entretanto, estes eram intermediados por algum especialista em arte, que

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mediava sua relação com os curadores, galeristas, colecionadores e


consumidores. Nas décadas de 1960 e 1970 houve uma explosão de artistas
“ingênuos”. (ANDRIOLO, 2009). Nesse contexto, destacaram-se artistas como
Agnaldo Manoel dos Santos, “descoberto por” Clarival do Prado Valladares e Mário
Cravo Junior (VALLADARES, 1966).

Agnaldo nasceu na Ilha de Itaparica, Bahia. Filho de lavradores,


aprendeu as primeiras letras e contas com uma professora leiga. Trabalhou em
serviços pesados desde criança, ocupando-se em trabalhos como corte e
transporte de madeira; extração de blocos de arenito calcário dos recifes;
plantio de lavouras, entre outras ocupações típicas da população pobre da
região. Aos 18 anos, deixou a Ilha em direção à capital, Salvador, aonde
tornou-se auxiliar no ateliê do escultor baiano Mario Cravo e desenvolveu sua
obra.

Segundo o crítico e historiador de arte Clarival do Prado Valladares, a


obra de Agnaldo refletia sua experiência de vida através da “rusticidade da
origem” (VALLADARES, 1983, p.25). Suas esculturas usavam cânones
próximos ao da arte africana e usava principalmente pedra sabão e madeira.
Inspirava-se em temáticas religiosas afro-brasileiras, “imagens e santos
católicos, além de carrancas (esculturas de animais exóticos, mitológicos e
lendários de barcos que navegam no Rio São Francisco, na Bahia.” (SILVA, A.,
1983, p. 181).

O premiado escultor negro brasileiro contava com convites de algumas


galerias paulistas e cariocas. “Ele produziu para um mercado de arte
assegurado por um amplo reconhecimento crítico e fez sua obra na mais
completa liberdade de imaginação” (VALLADARES, 1983, p. 28), mas isso não
lhe rendeu uma vida confortável. Viveu na extrema pobreza, vendendo poucas
peças a preços muito baixos aos poucos compradores locais. Portador da
doença de chagas (contraída na infância), o artista faleceu ao insistir no
tratamento da esquistossomose, aos 36 anos de idade, em 1962. Sua obra
recebeu o Prêmio Internacional de Escultura na exposição de arte
contemporânea do I Festival Mundial de Artes Negras (I FESMAN), em 1966,
no Senegal(SALUM, 2000) . Essa mostra elevou nome de artistas afro-

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

brasileiros em âmbito internacional, gerando debates em torno da temática


negra na arte, bem como sobre a condição social de seus profissionais no
Brasil.

Rubem Valentim

Rubem Valentim (1922–1991) teve uma carreira profissional singular.


Ele foi um dos poucos artistas visuais reconhecidos que se preocuparam em
afirmar uma identidade negra na arte do Brasil com sucesso (AMARAL, 2010).
A consagração do artista no meio da arte erudita dos anos 1960 aconteceu em
paralelo à uma explosão de artistas ingênuos, primitivos, populares ou naif.

Como os anos 1950-1960 iniciaram novas possibilidades de


configuração da obra de arte, o artista Rubem Valentim apropriou-se dessas
condições, inovando no meio artístico brasileiro. Ele conseguiu o
reconhecimento local, fato marcante para um artista afro-brasileiro, a partir de
suas pesquisas visuais. Valentim explorou plasticamente a racionalidade do
Construtivismo 330 e a mitologia das religiões afro-brasileiras. Essa equação
desdobrou-se num processo de crítica ao racional e de amplificação da
plasticidade de diferentes cosmologias (CONDURU, 2007). Sua carreira
ascendeu, o artista acumulou prêmios internacionais, projetando-se no cenário
contemporâneo das artes visuais. Rubem Valentim foi um dos artistas afro-
brasileiros pioneiros a obter projeção local e internacional da arte brasileira,
além de ser o artista afro-brasileiro que mais se vinculou aos ideais
modernistas do país (CONDURU, 2007).

Valentim nasceu em 1922, na cidade de Salvador (Bahia).


Roberto Conduru (2013) cita a importância da convivência de Rubem Valentim
com um certo Artur Come Só, pintor-decorador de paredes, que o ensinou a
técnica da pintura à têmpera. Mais tarde, chegou a frequentar a Escola de
Belas Artes, mas formou-se em odontologia. Pintor autodidata, contribuiu com
a renovação das artes visuais baianas juntamente com outros artistas,
sobretudo entre 1946 e 1947. Formou-se em jornalismo na Universidade

O Construtivismo foi uma corrente artística russa na qual pintura e escultura eram pensadas
330

enquanto construções, aproximando-se da arquitetura. (ITAÚ CULTURAL, 2015)

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Federal da Bahia, em 1953 e no ano seguinte realizou suas primeiras


exposições individuais em Salvador.

Rubem Valentim foi professor assistente de Carlos Cavalcante, no curso


de História da Arte do Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, entre 1957 e
1963. Vencedor do prêmio de viagem ao exterior do Salão Nacional de Arte
Moderna, residiu em Roma entre 1963 e 1966. Integrou a comitiva de artistas
plásticos brasileiros participantes do I Festival Mundial de Artes Negras, em
Dacar, 1966.Tornou-se professor no Instituto Central de Artes da Universidade
de Brasília em 1967. Ao longo de sua vida, participou de importantes eventos
de arte no Brasil e no exterior. Após seu falecimento, em 1991, foi
homenageado com diversas exposições no exterior e no país. Em 1998, o
Museu de Arte Moderna da Bahia inaugurou a Sala Especial Rubem Valentim,
situada em seu Parque de Esculturas. (ARAÚJO, 2010)

Considerações finais

No final do século XIX, os artistas negros se depararam com uma nova


realidade: a necessidade da formação acadêmica e a preparação da mão-de-
obra livre. Manoel Querino foi aluno do Liceu de Artes e Ofícios, posteriormente
professor nas escolas de educação profissional organizadas na época. Além
disso, ajudou a fundar a Academia de Belas Artes da Bahia, que por um tempo
ofereceu educação profissional a alunos de origem humilde.

Agnaldo Manoel dos Santos representa o primitivo, popular ou naif,


categorias às quais foram relegados os produtos artísticos de influência
africana no Brasil. Intermediado por especialistas brancos, o baiano se tornou
um dos mais preciosos criadores de artes visuais desde os anos 1960.

No mesmo período, Rubem Valentim conciliou, com sucesso, a temática


afro-brasileira com o universo da arte erudita nacional e internacional. Sua
carreira foi uma exceção entre os afro-brasileiros.

O tema da obra desses artistas era voltado principalmente para a Bahia


e sua herança negra, o que foi rapidamente associado ao discurso de uma

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identidade de lugar. Sobretudo a partir dos anos 1970, houve impulso oficial
para promover uma ideia visual de baianidade, ou seja, a presença negra nos
modos de vida dos baianos. Esse tipo de investimento foi retomado nos anos
1990, com uma intenção de produção visual também voltada para o
desenvolvimento turístico.

Por um lado, o esforço para uso de imagens da cultura negra baiana


criou um imaginário de lugar, de democracia racial na Bahia. Por outro, a
produção visual dos negros não recebeu o mesmo prestígio, pois mestiços e
negros continuam a ser vistos como artistas de qualidade inferior ao retratar
seu universo cultural.

REFERÊNCIAS

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forma e da expressão da arte contemporânea. In: ARAÚJO, Emanoel (org). A
mão Afro-Brasileira: Significado da contribuição artística e histórica. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Museu Afro Brasil: 2010.
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ARAÚJO, E.(Org.). A mão Afro-brasileira: Significado da contribuição artística


e histórica. São Paulo: Tenenge, 2010.

CONDURU, R. L. T. Arte Afro-Brasileira. Belo Horizonte: C/ Arte, 2007.

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CEAS, Salvador, n.º 200, p.79 -98, 2002.

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no Brasil, entre 1890 e 1920. In: 28º ENCONTRO NACIONAL DA ANPOCS.
2004, Caxambu. Comunicações... Disponível em:
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1505
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VALLADARES, C. do P. Agnaldo Manoel dos Santos: origem e revelação de um
escultor primitivo. Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 14, p.22-40, 1983.

VALLADARES,C. do P. Sobre o Festival de Arte Negra. Correio da Manhã, 13


mar.1966, p. 02

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CUBA BAHIA

REGIANE DE SOUZA COSTA (UEFS)


RONALDO DOS SANTOS DA PAIXÃO (UEFS)
EDSON DIAS FERREIRA (UEFS)

Resumo: Este trabalho tem por meta analisar as relações interculturais entre
Brasil e Cuba presentes na religião, arte e gastronomia. Essas relações não
são apenas similitudes, contém em sua historicidade conexões muito mais
profundas entre o Brasil especialmente a Bahia e a ilha caribenha Cuba. A
diáspora negra em Cuba assim como no Brasil foi muito intensa, Cuba foi um
dos últimos países a acabar com o tráfico negreiro, a escravidão na ilha foi
abolida em 1886, enquanto no Brasil a abolição ocorreu em 13 de maio de
1888. Mais da metade da população cubana é composta por mestiços
descendentes de várias etnias, entre elas a mais numerosa foi a Yorubá assim
como na Bahia especialmente Salvador e no recôncavo, motivo pelo qual a
religião dessa etnia se firmou tanto em Cuba com a santeira, como em
Salvador na Bahia com o candomblé. Na dança os laços entre Bahia e Cuba
estão presentes entre outros no samba e na salsa, a gastronomia também teve
sua herança, a feijoada é ainda um dos pratos que definem a culinária
brasileira, todavia o que podemos falar então do frijol cubano? Tanto o frijol
cubano quanto a feijoada derivaram de estratégias de sobrevivência e
criatividade dos antigos escravos que dispunha de pouca comida. Em suma
existem ligações profundas entre a Bahia e Cuba, relações essas que fogem
dos estereótipos dos livros de história, e são resultados da rica e multicultural
herança africana.

Palavras-chave: Brasil, Cuba, interculturalidade.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar las relaciones culturales
entre Brasil y Cuba presente en la religión, el arte y la gastronomía. Estas
relaciones no son solamente similitudes, contiene en su historicidad conexiones
más profundas entre Brasil, en especial Bahía y la isla caribeña Cuba. La
diáspora Negra en Cuba, así como en Brasil fue muy intensa, Cuba fue uno de
los últimos países a poner fin a la esclavitud, que solo fue abolida en la isla en
1886, mientras que en Brasil la abolición se produjo el 13 de mayo de 1888.

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Más de la mitad de la población cubana está compuesta por mestizos de


diversos grupos étnicos, entre ellos los más numerosos fue el Yoruba, así
como en Bahía especialmente Salvador, que es la razón por la religión de este
grupo étnico se ha consolidado tanto en Cuba con la Santería, como en
Salvador en Bahía con Candombeé. Lazos de baile entre Bahía y Cuba están
presentes entre otros en la samba y la salsa, la gastronomía también tuvo su
herencia, feijoada es todavía uno de los platos que definen la cocina brasileña,
sin embargo podemos entonces hablar del frijol de Cuba? Tanto el frijol cubano
como feijoada son derivados de las estrategias de supervivencia y la
creatividad de los antiguos esclavos que tenían poca comida. Hay conexiones
profundas entre Bahía y Cuba, las relaciones que están más allá de los
estereotipos de los libros de historia, y son el resultado de la rica herencia
multicultural y africana.

Palabras clave: Brasil, Cuba, relaciones culturales.

Introdução

Esta trabalho tem por meta analisar as relações interculturais entre Brasil e
Cuba presentes na religião, arte e gastronomia. Essas relações não são
apenas similitudes, contém em sua historicidade conexões muito mais
profundas do que fantasiamos entre o Brasil especialmente a Bahia e a ilha
caribenha Cuba. A diáspora negra em Cuba assim como na Bahia foi muito
intensa, milhões de africanos foram capturados e levados a esses países para
serem escravizados. Após a dizimação dos índios, os africanos foram forçados
a trabalhar nas plantações de cana de açúcar que era o produto base da
economia cubana principalmente entre 1820 e 1840. Cuba foi um dos últimos
países a acabar com o tráfico negreiro, a escravidão na ilha foi abolida em
1886, enquanto no Brasil a abolição ocorreu em 13 de maio de 1888. Mais da
metade da população cubana é composta por mestiços descendentes de várias
etnias, entre elas a mais numerosa foi a Yorubá assim como na Bahia
especialmente Salvador e no recôncavo, motivo pelo qual a religião dessa etnia

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se firmou tanto em Cuba com a santeira, como em Salvador na Bahia com o


candomblé. Na dança os laços entre Bahia e Cuba estão presentes entre
outros no samba e na salva. A salsa tem um ritmo rápido e sensual que
descende das ritmadas percussões africanas, assim como o nosso samba tem
sua raiz provinda do semba que é um estilo musical de matriz africana. O
samba de roda em sua cantoria remete ao cotidiano do trabalho na lavoura da
cana ou da mandioca, no recôncavo o samba de roda ganha a viola machete.
O axé music estilo musical bem conhecido dos baianos e que no ano de 2015
completou 30 anos, também recebeu influências caribenhas.

Havana velha é a cidade mais antiga da capital cubana, e sua arquitetura é no


estilo colonial-barroco assim como no Pelourinho em Salvador-Bahia; com
cores vibrantes e ruas estritas e de pedra não é difícil lembrar-se da história,
inspiração e efervescência cultural do Patrimônio Cultural da Humanidade. A
gastronomia também teve sua herança, a feijoada é ainda um dos pratos que
definem a culinária brasileira, todavia o que podemos falar então do frijol
cubano? Tanto o frijol cubano quanto a feijoada derivaram de estratégias de
sobrevivência e criatividade dos antigos escravos que dispunha de pouca
comida. Porém tanto um quando o outro tem sua origem questionada, pois já
existiam pratos semelhantes na Europa. No entanto os condimentos que esses
povos trouxeram para o Brasil fizeram de uma simples combinação de carnes e
legumes, a nossa tão brasileira feijoada que ainda hoje um dos pratos mais
populares e consumidos em todo país.

1. Religião

A religião consiste em um importante elemento para qualquer povo, e não foi


diferente para os africanos escravizados no Brasil e em Cuba. Como a
quantidades de africanos foi numerosa, pessoas de várias etnias se misturaram
e tiveram dificuldades para se comunicar, e isso não foi de forma inocente.
Devido a essa mistura de povos, as crenças também se misturaram o que fez
da santería e do candomblé uma representação única das religiões de matriz
africana que se mesclaram durante o período do tráfico negreiro. No Brasil e
em Cuba os orixás ou orisha são reunidos em um panteão, para as 16
divindades mais populares, mais existem muitos outros cultuados nessas

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religiões, porém menos conhecidos, em sua essência na África cada casa tinha
seu próprio orixá, para os praticantes dessa religião na África ainda é assim
apenas um orixá para toda a família.

1.1 Santería
Como já foi dito a santería ou regla de osha, é uma mescla de religiões
africanas, e assim como no candomblé as divindades correspondem às
forças da natureza, exemplo, Oshún orixá das águas doces. Os orixás têm
suas cores e rituais próprios e suas personalidades se mesclam com
“pedados” humanos e características divinas.

Directamente emanados de Oloddumare, los y las Orishás son


guardianes e intérpretes del destino universal. Algunos fueron
humanos en un remoto pasado, y por su vida extraordinaria llegaron a
la dignidad espiritual de los Orishás. Son venerados con rituales,
música, comidas especiales y oraciones, y se manifiestan a través de
sacerdotes y/o sacerdotisas que poseen o habitan temporalmente.
Ofrecen ayuda y consejo en todos los campos de la vida.(
RODRÍGUES, E.A 2011,p-4)

A santería é muito importante para a compreensão do processo cultural


cubano, ela é uma síntese do sincretismo em Cuba, a santería tem elementos
Yorubá (principalmente), congo e católico. É interessante estudá-la tanto do
ponto de vista diacrônico quanto cultural histórico.

1.2 Candomblé
O candomblé assim como a santería, teve inicio na África onde atualmente
encontra-se a Nigéria, Benin, Angola entre outros. Quando os portugueses
e espanhóis traficaram os africanos, não conseguiram fazê-los cristãos,
pois eles trouxeram às suas crenças e à sua fé com seus rituais e
costumes. Foram catequizados de maneira opressora, eram batizados, mas
nada compreendiam da religião que lhes era imposta, e assim o catolicismo
funcionou com um disfarce para suas crenças tradicionais. O candomblé é
uma religião milenar de tradição oral, não possui uma “bíblia”, e cultua a
ancestralidade e a natureza.

Dança

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O tango, o merengue, o samba e a salsa têm herança musical africana, a


salsa nasceu em Cuba no século XVIII, recebeu influência entre outros
estilos, do jazz, e nos Estados Unidos ganhou popularidade, até hoje se
divide essa dança em salsa e salsa cubana. O samba por sua vez é uma
das mais populares manifestações culturais no Brasil, ele assim como a
salsa tem raízes africanas. Existe uma polêmica ainda hoje em torno da
origem do samba no Brasil, se ele não sei na Bahia ou no Rio de Janeiro,
verdade é, que, o samba de roda que mantém as tradições, e remetem a
roda dos orixás, não só nasceu como continua vivo e efervescente na Bahia
e especialmente no Recôncavo baiano.

Até os anos 70 do século XX, nas festas populares o samba de roda


já era um elemento importante incorporado ao calendário de festas,
mas não era visto como elemento desencadeador de reforço da
construção de imagens sobre a cidade que a qualificavam como:
Santo Amaro da Purificação – berço do samba, da chula [...] (NUNES,
2002).

E como não falar do axé music, ritmo baiano que completou 30 anos em 2015,
o próprio nome já traz consigo a ancestralidade, em yorubá axé significa poder,
força que cada individuo possuí, na candomblé é uma saudação que significa
energia positiva.

Pode-se dizer que, ainda que alguém veja o megafenômeno da axé


music como produção menor do cenário da cultura baiana, a questão
em pauta é o seu relevo na difusão da negritude baiana, apesar de
ser lida por muitos como negativa, na pauta sempre recorrente das
canções está o drama da afro descendência numa retomada notável
da autoestima da população negro-mestiça de Salvador (PEREIRA,
2010, p. 36).

Gastronomia

A gastronomia cubana é uma fusão das cozinhas africana, espanhola e dos


povos originários, com a Bahia não é diferente, temos heranças gastronômicas
dos indígenas, africanos, português e de quem mais passou por essa terra. Um
prato em comum nas duas cozinhas, cubana e brasileira é a tão conhecida de
qualquer brasileiro, a feijoada, ou como se diz em Cuba frijoles negros. Muitos
estudiosos questionam a origem da feijoada, pois já existiam receitas
semelhantes na Europa, no entanto os condimentos que esses povos
trouxeram para o Brasil e para Cuba,fizeram de uma simples combinação de

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carnes e legumes, a nossa tão brasileira feijoada e o tão popular entre os


cubanos, frijoles negros, que ainda hoje um dos pratos mais consumidos em
ambos país.

Conclusão

Mediante tantas evidencias fica claro o papel protagonista da cultura yorubá no


desenvolvimento do processo cultural brasileiro (especialmente o baiano) e o
cubano. Existem ligações profundas entre a Bahia e Cuba, relações essas que
fogem dos estereótipos dos livros de história, e são resultados da rica e
multicultural herança africana, è preciso que levemos para as salas de aulas
essas histórias, para que os aprendentes não continuem acreditando em uma
única versão, para que aprendam mais do que os estereótipos, mostrar a
importância do negro que tanto são diminuídos em esfera nacional, e de sua
cultura que hoje é nossa, e o papel decisivo para a construção do Brasil que
temos hoje,também destaco a necessidade de formação de professores
sensíveis a diversidade cultural, para que possam assumir o papel de
mediadores interculturais, imprescindível num país tão diverso como o nosso,
em que não há espaço para o preconceito.

Referencias

ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina, 1800-2000. Tradução: Magda


Lopes. São Carlos: EdFUSCar, 2007.

BASTIDE , Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia


das Letras, 2001.

CABRERA, Lydia. Iemanjá e Oxum: Iniciações ialorixás e olorixás. São


Paulo:Universidade de São Paulo, 2004.

DOMÍNGUEZ, Esteban Morales (2007). Desafíos de la problemática racial en


Cuba. La Habana: Fundación Fernando Ortiz.

NUNES, Erivaldo. Cultura popular no Recôncavo Baiano: tradição e


modernização no samba de roda. Salvador. BA., 2002, 346 f. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras, 2002.

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Ortiz, Fernando 1950. La Afrocania de la musica folklorica de Cuba. La


Habana, revised ed 1965.

ORTIZ, Fernando. Los negros brujos. La Habana: Editorial Ciencias Sociales,


1975.

ORTIZ, Fernando. Los negros curros. La Habana: Editorial Ciencias Sociales,


1986.

PEREIRA, I.S. Axé-Axé: o mega-fenômeno baiano. Revista África e


Africanidades. Ano 2 , n. 8, p. não paginado, fev. 2010.

VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo: do tráfico de escravos entre o Golfo do


Benin e a Bahia de Todos os Santos, dos séculos XVII a XIX. 2a Edição.
São Paulo: Editora Corrupio, 1987.

SANDOVAL, Mercedes. La religion afrocubana. Miami: Playor, 1975.

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DITOS POPULARES –
UMA EXPERIENCIA NA ESCOLA PEDRO PARANHOS

IDÁLIA MARIA TIBIRIÇÁ ARGOLO ( SEMED BAHIA)


CAROLINA TIBIRIÇÁ ARGOLO DOS SANTOS FUNDAÇÃO
(CEDERJ/UFRRJ)

1. INTRODUÇÃO
Os ditos populares ou “ditados” estão sendo esquecidos no decorrer do
tempo na nossa sociedade, em razão da não aplicabilidade pelas gerações
mais recentes. A juventude atual vem adotando cada vez mais um vocabulário
globalizante para comunicar suas idéias e sentimentos. Tratar do resgate dos
ditos populares é muito importante, pois constituem verdadeiras sínteses da
sabedoria de um povo, ao mesmo tempo em que perpetuam a sua cultura e
memória.
Estes provérbios populares eram muito utilizados na segunda metade do
século XIX e primeira metade do século XX, expressando valores, conselhos e
advertências. De modo geral, costumavam ser aplicados em situações
corriqueiras e no momento em que o problema se apresentava. Assim, neste
estudo buscamos resgatar parte desses pensamentos que existem
principalmente na memória de pessoas mais idosas, através de entrevistas
realizadas por alunos do 8º e 9° ano da Escola Municipal Pedro Paranhos, com
pessoas do seu universo familiar.
Além disso, vale ressaltar a importância de se divulgar essas metáforas
como uma forma de trazer para os mais jovens um pouco da nossa tradição, da
nossa cultura, de valores que estão se perdendo ao longo do tempo, por conta
do fenômeno da informatização, onde grafamos terminologias que, pouco a
pouco, vão nos distanciando da nossa cultura popular.
Na atualidade, o nosso desafio é unir tradição e modernidade, através
da transcrição dos ditos populares comentados e levá-los para a sala de aula a
fim de que os mais jovens possam conhecê-los e utilizá-los, pois acreditamos
que não os aplicam no seu cotidiano porque não os conhecem.

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2 – FUNDAMENTACÃO TEÓRICA E METODOLOGIA

Para a realização desse trabalho utilizou-se a História Oral Temática


através de diálogos realizados com senhoras de mais de 60 anos do bairro de
Portão, na cidade de Lauro de Freitas Bahia.
A História Oral foi introduzida no Brasil na década de 1970, durante os
anos de chumbo, no período da Ditadura Militar, que “acabou por excitar o
aparecimento de uma História Oral vibrante, contestatória” (BOM MEIHY, 2007,
p. 111). Ela surge como instrumento para a afirmação da democracia pelo
registro de outras versões da história que não a versão oficial. Durante o
período da Campanha pela Anistia, nos fins de 1970 e com a Abertura Política,
observa-se a necessidade de registrar a memória de um tempo difícil. É nessa
época que museus, arquivos e grupos isolados, entre outros, começam a
assumir o direito de registrar as suas trajetórias.
Porém, somente no início dos anos 1990 a História Oral passou a ter
uma expressão mais significativa com a multiplicação de seminários e sua
incorporação pelos programas de pós-graduação de História, além de cursos
voltados para a discussão de Fontes Orais. Por outro lado, contatos com
pesquisadores estrangeiros e com programa de reconhecido mérito
internacional, deram início a seminários e criaram condições para – debates e
troca de experiências; a criação da Associação Brasileira de História Oral, em
1994; e as publicações de seu Boletim, que passaram a estimular a discussão
entre pesquisadores da História Oral no país.
Nos três grandes encontros realizados no Brasil em período recente, a
saber: II Encontro Nacional de História Oral – Rio de Janeiro, 1994; I Encontro
Regional da Região Sul/Sudeste –/Londrina, 1995, e III Encontro Nacional –
Campinas, 1996 foram apresentados trabalhos temáticos com a participação
de pesquisadores, estudantes, doutores e demais membros da academia,
demonstrando um quadro animador para a História Oral no Brasil. Na Bahia,

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em 2003, foi realizado o II Encontro Norte Nordeste da Educação, sob a


coordenação do grupo História Oral da Professora Yara Ataíde.
Segundo Amado e Ferreira (2006) são três as principais posturas a
respeito do status da História Oral: a primeira advoga a História Oral como
técnica; a segunda a História Oral como disciplina e a terceira a História Oral
como metodologia.
No âmbito da História Oral como técnica – interessam as experiências
com gravações, transcrições e conservação de entrevistas, e o aparato que o
cerca; tipos de aparelhagem de som, formas de transcrição de fitas, modelos
de organização de acervo etc...
Sob o enfoque da História Oral como disciplina - os que defendem esta
concepção partem de uma ideia fundamental: a História Oral inaugurou
técnicas específicas de pesquisas, procedimentos metodológicos singulares e
um conjunto próprio de conceitos; este conjunto, por sua vez, norteia as duas
outras instâncias, conferindo-lhes significados e emprestando unidade ao novo
campo de conhecimento.
Por sua vez, a História Oral como metodologia – apenas estabelece e
ordena procedimentos de trabalho – tais como os diversos tipos de entrevista e
as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de
transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes
maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências
disso sobre seu trabalho – funcionando como ponte entre a teoria e a prática.
Os depoimentos obtidos a partir do testemunho oral oportunizam o
acesso a informações que não são encontradas na literatura, pois, segundo
Mikka e outros autores citados por Amado e Ferreira (2006, p. 16) “o uso
sistemático do testemunho oral possibilita à história oral esclarecer trajetórias
individuais, eventos ou processos que às vezes não têm como ser entendidos
ou elucidados de outra forma”.
Ao utilizar História Oral como metodologia, parte-se do princípio que esta
é uma história do tempo presente, numa perspectiva temporal por excelência,
onde a memória do entrevistado é constantemente revisada dando um toque
especial ao depoimento, numa constante relação entre escrita e oralidade,
memória e história ou tradição oral e história, atribuindo uma característica

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singular à geração dos depoimentos, ou seja, aos diálogos entre entrevistador


e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo.
Em muitos casos, as fontes orais dão informações de povos iletrados ou
oprimidos, daqueles grupos que não têm voz na sociedade ou não podem
transmitir suas histórias através de fontes escritas.
Para realizar esta proposta – “Ditos populares – uma experiência na Escola
Municipal Pedro Paranhos” optou-se pelo método da História Oral Temática
que, segundo Bom Meihy, (2007, p. 38) “o caráter documental decorrente das
entrevistas é o cerne deste ramo”. A História Oral Temática, apesar de
subjetiva, é passível de confrontos a partir de datas, fatos, nomes e situações,
que são formuladas através de documentação, embora tenha um caráter
social. Para o levantamento do conteúdo desse estudo foi solicitado aos alunos
do 8° e 9° ano do Ensino Fundamental II, da referida escola, que
conversassem com senhoras da comunidade com idade superior a 60 anos
sobre os ditos populares usados no seu cotidiano. Em seguida, selecionamos
alguns ditos para serem analisados pelos alunos.
Segundo Bom Meihy (2007, p. 39) “além da caracterização do
colaborador – quem é, onde estava na circunstância do evento, o que viu,
ouviu, contou -, é crucial saber como se porta em face de outras versões”.
Durante os diálogos, buscou-se conhecer melhor as pessoas entrevistadas,
investigando-se sobre o que fazem atualmente e o que pensam sobre o fato
dos ditos populares serem pouco utilizados atualmente, desenhando assim o
seu perfil.
Essas pessoas comentaram que os ditos populares, ou seja, toda a
cultura popular está sendo esquecida pelos jovens pois, com a modernidade,
muitos elementos foram introduzidos à cultura de massa, como o rádio, a
televisão, o vídeo cassete, o DVD, os computadores, os celulares e suas
inúmeras funções e através desses, a internet, que, com o surgimento das
redes sociais permitem à população, principalmente aos jovens se
comunicarem entre si e com pessoas em diversos locais do mundo, em
questão de minutos. Com tanta tecnologia, observamos que a cultura popular,
está sendo relegada ao segundo plano e/ou esquecida. As crianças, antes
telespectadores passivos dos programas de televisão, hoje são reféns dos

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computadores, tabletes e outras tecnologias, pouco se interessam pelos


conhecimentos oriundos da sabedoria popular, que antes era passada de pai
para filho, durante suas rotinas do cotidiano. Os mais velhos – pais e avós –
passavam aos jovens esses conhecimentos a partir de depoimentos.
MacDonald fala da existência de três culturas:
superior, média e de massa (subentendendo-se por cultura de massa
uma cultura “ inferior”) . A cultura média, do meio, é designada
também pela expressão midcult , que remete ao universo dos valores
pequeno-burgueses; e a cultura de massa não é por ele chamada
mass culture mas sim, pejorativamente, de masscult – uma vez que,
para ele, não se trataria nem de uma cultura, nem de massa” (1981,
p.14)

Para MacDonal, cultura superior seria “todos os produtos canonizados


pela cultura erudita, como as pinturas do Renascimento, as composições de
Beethoven...”. Mas, para classificar a cultura média, a midcult, não se tem a
mesma facilidade pois, em determinado momento, um elemento como as
história em quadrinho foi considerada como massacul, porém, “hoje esse
conceito não é tão pacífico assim, em relação a toda e qualquer história em
quadrinhos”.
Porém, Teixeira Coelho (1981, p. 15) resume a cultura popular como
“[...] (a soma dos valores tradicionais de um povo, expresso em forma artística,
como danças e objetos, ou nas crendices e costumes gerais) abrange todas as
verdades e valores positivos, particularmente porque produzida por aqueles
mesmo que a consomem..”
Seguindo essa lógica, podemos concluir que os ditos populares, são
elementos integrantes da cultura popular, visto que são produzidos pelos
próprios consumidores. Mas, a cultura popular está se perdendo no tempo, pois
sofre a influência ou pressão da cultura média com suas tecnologias, já aqui
referidas.
Nosso objetivo ao realizar esse trabalho, junto com senhoras idosas, é
trazer para a população jovem esses ditos populares, usando, na medida do
possível as novas tecnologias, transcrevendo e comentando alguns deles, para
que seus conteúdos se tornem compreensíveis.
Para a realização desse trabalho, solicitei aos alunos do 8º e 9° ano da
referida escola, que conversassem com mães, avós e outras senhoras com
mais de 60 anos sobre ditos populares e pedissem para que elas escrevessem

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a medida que fossem lembrando. Após o levantamento e análise do material,


os ditos populares foram selecionados e agrupados em três categorias –
valores, conselhos e advertências. Em seguida, foram feitos comentários sobre
o conteúdo desses ditos populares para que os mesmos se tornem mais claros
àqueles que os venham apreciar. Além disso, solicitei aos alunos que fizessem
desenhos sobre alguns ditos populares. O objetivo desse trabalho é tornar os
ditos populares conhecidos pelos alunos jovens e possam resgatar um pouco
da nossa memória quase esquecida.

3 - RESULTADOS E DISCUSSÃO

Grande parte das colaboradoras entrevistadas pelos alunos são pessoas


pertencentes à família dos entrevistados e são moradoras do bairro de Portão,
situado em de Lauro de Freitas, uma cidade da região metropolitana de
Salvador. Essas senhoras exercem diversas profissões como operárias de
pequenas indústrias, empregadas domésticas, diaristas etc... São filhas de
mulheres que também nasceram e se criaram no bairro e convivem sempre
próximas uma da outra o que facilita a transmissão da cultura oral.

A região onde hoje está situada a cidade de Lauro de Freitas, foi um


aldeamento dos indígenas Tupinambás, destacando-se a ação dos Jesuítas na
Fundação da Freguesia de Santo Amaro de Ipitanga. O ano de 1578 é
considerado como a data oficial de instalação da freguesia, sendo Dom Antônio
Barreiro, Bispo do Brasil. Segundo o historiador João da Silva Campos, foi o
padre Anchieta o responsável pela construção da igreja Santo Amaro de
Ipitanga. A Lei Municipal 502 eleva a freguesia à categoria de Distrito em
1954. (Freitas,2008, p.38)

O nome Lauro de Freitas foi dado ao município em homenagem ao


baiano Lauro de Ferrani Pereira de Freitas, que faleceu num acidente de avião,
durante a campanha para o cargo de governador da Bahia, na mesma época

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em que se discutia a emancipação do município. Consideraram que a proposta


do nome do candidato falecido daria mais força nas negociações para a
emancipação do município. O município de Lauro de Freitas foi emancipado
pela Lei nº 1.753/62 publicada no D. O. de 31/07/62. (Freitas, 2008, p.39)

A cidade de Lauro de Freitas começou a apresentar sinais mais seguros


de modificações urbanas a partir da construção da Estrada do Coco e nas
últimas décadas teve um grande crescimento comercial e urbano.

O bairro de Portão surgiu de uma fazenda e é uma comunidade rica em


tradições populares como comenta Edneuza Moura, morador do bairro há
cerca de 40 anos
“moro em Portão desde que nasci hoje estou vendo muitas
mudanças em meu bairro nada como antigamente. Antes tinha
samba de viola, lambada, bumba meu boi, escola de samba, a
Banda a Força de Elite, as lambadas de Bené, discotecas e
várias outras coisas. O que não faltava era alegria.”

Ainda sobre as antigas manifestações populares de Portão, a Professora


de Língua Portuguesa da Escola Pedro Paranhos, Rita de Cássia, que também
é moradora do bairro de Portão, comenta sobre a Escola de Samba Juventude
de Portão:
“A organização da escola dirigida por Valmir que tinha muita
preocupação com todos os participantes. Eu achava um projeto muito
interessante para a comunidade pois a população se divertia porque
a escola de samba trazia alegria ao bairro de Portão. Ela durou cerca
de seis anos. Nessa época não havia a violência que tem hoje e a
população apreciava e acompanhava a escola de samba pelas ruas
de Portão com a maior tranquilidade.”

De acordo com os moradores mais antigos no bairro de Portão existiam


bastante rios e fontes onde a comunidade ia lavar roupas e buscar água.
Nesse encontro das mulheres com seus filhos havia uma interação maior e
eram passados os saberes e consequentemente os ditos populares eram
utilizados entre eles.

O nome da Escola Municipal Pedro Paranhos é uma homenagem ao Sr.


Pedro Carlos Paranhos, nascido em 26 de setembro de 1920, no bairro de

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Portão, distrito de Santo Amaro de Ipitanga, que segundo sua filha Maria
Bernadete:

“Desde jovem se interessou pela política apoiando candidatos de


Salvador. Quando Santo Amaro foi emancipada em 31 de julho de
1962 passando a cidade, continuou a apoiar os candidatos do seu
partido....muito preocupado em ver Lauro de Freitas crescer e
progredir. Além da política, era muito religioso. Esteve à frente do
Padroeiro de Portão “São Bernardo”, na qual dava sua contribuição e
apoio”.

A filha do Sr. Pedro Carlos Paranhos, Professora Larrúbia e o seu neto,


Silvano trabalham na referida escola. Os alunos que realizaram o trabalho não
viveram nessa época, mas têm as informações passadas pelas mães, avós e
bisavós. E foram essas informações sobre os ditos populares que trouxeram
para a sala de aula, onde realizamos o nosso trabalho.
Selecionamos alguns desses ditados populares e os classificamos como
valores, conselhos e advertências, aos quais foram associados os significados.

1- Valores
1.1- Com ferro fere, com ferro será ferido
Significado: O mal que causar a alguém poderá voltar para você.
1.2- Vão os anéis e fiquem os dedos
Significado: Os bens materiais não são os mais importantes, mas sim as
coisas sentimentais.
1.3- Paga o justo pelo pecador.
Significado: A pessoa que anda corretamente pode sofrer punição no
lugar daquele que comete o erro.
1.4- Uma andorinha só não faz verão.
Significado: Uma pessoa sozinha não consegue fazer muitas
mudanças.
1.5- Casa de ferreiro... o espeto é de pau
Significado: Aquele que têm uma profissão ou produz com alguma coisa,
mas não utiliza ou aplica esse conhecimento para si.
1.6- Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura

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Significado: Destaca a importância da persistência em alcançar uma


meta, fazer algo até conseguir.
1.7- Quem nasce torto, morre torto
Significado: Aquela pessoa não vai mudar nunca suas atitudes.
1.8- A corda sempre arrebenta pelo lado mais fraco
Significado: Os mais pobres ou com menos destaque na sociedade,
sempre sofrem as consequências e as punições.
1.9- Não se deve dar pérolas aos porcos
Significado: Não se deve dar mais do que a pessoa merece.
1.10-Quem meu filho beija, minha boca adoça
Significado: Quem agrada ao meu filho, está agradando a mim também.
1.11-Dois duros não fazem um muro.
Significado: Duas pessoas teimosas, não conseguem chegar a um
acordo e não constroem nada.
1.12-O vício do cachimbo, deixa a boca torta
Significado: Quem se acostuma a fazer uma determinada coisa sempre
do mesmo jeito, tem uma tendência para fazer igual.
1.13-Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.
Significado: É melhor garantir o que já está conquistado do que se
arriscar numa aventura para conquistar algo difícil.

2- Conselhos
2.1- Dias melhores virão
Significado: Devemos sempre ser otimistas
2.2 – Quem tudo quer, tudo perde
Significado: As pessoas ambiciosas correm o risco de perder tudo que
possuem
2.3- Quem em sua casa faz, dorme em paz.
Significado: Quem está em casa, está seguro
2.4- Mas vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto.
Significado: Alerta para as pessoas apressadas, sendo apropriado a
motoristas e pedestres, pois no transito, a vida pode ser perdida em
questão de segundos.

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2.5- O homem prevenido vale por dois.


Significado: Uma pessoa prevenida, cautelosa, evita problemas.
2.6- Mato tem olhos, parede tem ouvidos
Significado: Cuidado com o que vai fazer ou falar em certos lugares, pois
pode ter alguém vendo ou escutando.
2.7- Cavalo dado não se olha os dentes.
Significado: Não se deve criticar o que se recebe.
2.8- Quem dá o que tem, a pedir vem
Significado: Não se deve dar tudo o que tem, pois podemos precisar
depois.
2.9- Casa de pai, escola de filho
Significado: As ações do pai, servem de exemplo para os filhos.
2.10- Antes tarde do que nunca
Significado: Não se deve deixar de fazer algo, ainda que seja fora do
prazo.

3- Advertências
3.1- Quem não ouve conselho, ouve coitado.
Significado: Quem não ouve ouve conselho, pode se dar mal.
3.2- Quando você vinha com os cajus, eu voltava com as castanhas.
Significado: Demonstra que aquela pessoa se antecipou na realização
de algo.
3.3- Laranja madura na beira da estrada, está bichada ou tem
maribondo no pé.
Significado: Cuidado com as coisas fáceis demais, pois podem ser uma
armadilha.
3.4- Manda quem pode, obedece que tem juízo
Significado: Advertência para quem não quer seguir regras.
3.5- Cesteiro que faz um cesto faz um cento, só depende de cipó e
tempo.
Significado: Quem faz algo de ruim para o outro, poderá fazer sempre,
só depende de oportunidade.
3.6- Bote sua boca para a maré de vazante.

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Significado: Se aplica quando alguém diz algo que não se quer que
aconteça.
3.7- Estou lhe cozinhando em fogo baixo.
Significado: Quando se tem uma pessoa em observação.
3.8- A vingança é um prato que se come frio.
Significado: (guardar uma mágoa, e esperar uma oportunidade para se
vingar).
3.9- Quando um não quer, dois não brigam.
Significado: Basta uma pessoa não querer, para se evitar uma briga.
3.10- Um dia é da caça, o outro é do caçador.
Significado: Um dia se ganha, no outro se pode perder.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os ditos populares estão caindo em desuso pela população,
particularmente, pelos mais jovens devido ao advento das novas
tecnologias, novas linguagens associadas às tecnologias modernas, como
televisão, computadores, tabletes e celulares com acesso à internet, onde
os jovens se comunicam rapidamente com pessoas de várias partes do
mundo.
O resgate e o registro de conteúdos da cultura popular a partir da
memória de pessoas idosas é de grande importância para uma sociedade
conhecer a dimensão e a evolução do seu universo vocabular. Por conta
disso, o uso da História Oral nesse trabalho, junto à senhoras com mais de
60 anos permitiu resgatar ditos populares cujos conteúdos guardam
mensagens diversas – conselhos, valores e advertências. A transcrição dos
mesmos, bem como a interpretação dos significados, pelos alunos da
Escola Pedro Paranhos em sala de aula nas disciplina História e
Sociologia, ajudou a difundir a cultura popular, unindo tradição e
modernidade, na medida em que trabalhamos com os alunos os ditados
populares de forma lúdica, através de desenhos e dramatizações.

5- FONTES ORAIS

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Registros feitos a partir de depoimentos de alunos da Escola Pedro Paranhos.


[ago.2014].

PARANHOS, LARRÚBIA.: depoimento [marc.2015]. Entrevistadora:


I.M.T.Argôlo. Lauro de Freitas, 2015.

BARBOSA, Rita de Cássia: depoimento [julho 2015] Entrevistadora


I.M.T.Argôlo, Lauro de Freitas, 2015.

PARANHOS, Maria Bernadete: depoimento [julho 2015] Entrevistadora


I.M.T.Argôlo, Lauro de Freitas, 2015.

MOURA, Edneuza: depoimento [julho 2015] Entrevistadora I.M.T.Argôlo, Lauro


de Freitas, 2015.

6- FONTES BIBLIOGRÁFICAS
7-
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1525
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DO MORRO AO ASFALTO OU COMO O SAMBA SAIU DOS TERREIROS


PARA ENTRAR NO PALÁCIO

PAULO ROBERTO ALVES DOS SANTOS 331


(FACULDADE DE ILHÉUS)

A configuração da música popular brasileira de temática urbana foi


moldada a partir da influência de três grandes fatores que, embora de natureza
distinta, estão interligados: o surgimento da indústria do disco, a instalação das
primeiras emissoras de rádios e o nascimento do samba. A fonografia chegou ao
Brasil com a fundação da Casa Edison, em 1900 (ALBIN, 2015), revolucionando
o processo de circulação da música, pois até então o que existia eram as
apresentações ao vivo dos artistas e a divulgação das obras por meio da venda
de partituras impressas (TINHORÃO, 1981). Em consequência, também se
transformou o modo de produção, o qual passou a ser por meio de gravação e
da prensagem do disco, fazendo surgir um produto para comercialização em
escala maior, alterando a relação de consumo, uma vez que a reprodução exigia
o gramofone, outro objeto industrializado que completava o ciclo das mudanças
introduzidas. Uma segunda revolução aconteceu no final dos anos 20 com a
chegada da tecnologia de gravação elétrica, que propiciou o aumento da
qualidade na fixação do som e da quantidade de produção de discos
(CALDEIRA, 2007), impulsionando as atividades musicais e permitindo a
consagração de cantoras, cantores e compositores.
De acordo com Jairo Severiano (2008), a Odeon foi a primeira a
gravadora a utilizar a novidade, empregando-a em um disco de Francisco Alves,
de 1927, que trazia, de um lado, a marcha “Albertina” e, do outro, o samba
“Passarinho do má”, seguindo o formato da época. No que se refere à qualidade
técnica da fixação, o acréscimo parece ter sido significativo: “Dotado de recursos
impossíveis no sistema mecânico, que se limitava a armazenar no disco a
energia mecânica, o sistema elétrico transforma ondas sonoras em energia
eletromagnética” (SEVERIANO, 2008, p. 99), melhorando significativamente a
qualidade das gravações, segundo o autor. Jairo Severiano acrescenta ao
esclarecimento técnico que várias gravadoras se instalaram no Brasil naquele

Professor Doutor em Letras, integrante do Grupo de Pesquisa Literatura, História e Cultura:


331

Encruzilhadas Epistemológicas (CNPq).

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período: a Parlophon e a Columbia, em 1928; a Victor e a Brunswick, no ano


seguinte.
No mesmo momento, tomava impulso a proliferação de emissoras de
rádio, depois de experiência pioneira que integrou os festejos do centenário da
Independência: “ No Brasil, a primeira demonstração do que então se chamava
de radiotelefonia, foi realizada em 1922, no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro
[...]. Um ano mais tarde, foi fundada a primeira estação radiodifusora nacional [...]
(JAMBEIRO, 2015, p. 47). A partir de então, surgiram a Rádio Clube de
Pernambuco, a Rádio Sociedade da Bahia e a Sociedade Rádio Educadora, de
São Paulo, que “se estabeleceu como a mais poderosa emissora de rádio da
América Latina” (JAMBEIRO, 2015, p. 15). Segundo o pesquisador, “O
crescimento do número de emissoras foi significativo. Em 1930 o país tinha 19
delas funcionando regularmente. Oito anos mais tarde, somavam 41” (2015, p.
16). O impulso definitivo para a solidificação das atividades veio no início dos
anos 1930, por meio da definição da radiodifusão como serviço de interesse
nacional e de fins educativos e da permissão para a veiculação de anúncios
publicitários.
Soma-se a esses fatos o início da transmissão de “A Hora do Brasil”, hoje
“A Voz do Brasil”, que se incorporou ao esforço para a divulgação das ações
Getúlio Vargas, e a aquisição, pelo governo, da Rádio Phillips (ALBIN, 2015), que
passou a se denominar Rádio Nacional. A emissora contratou os grandes nomes
da música, criou uma programação que serviu de modelo para outras emissoras
e, mais tarde, foi adaptada para a televisão. Segundo o autor (2015), a Nacional
manteve-se como a principal emissora do país da época e símbolo da Era do
Rádio, sendo líder de audiência praticamente desde a fundação até o
aparecimento da TV. Enquanto, por um lado, teve papel fundamental para o
desenvolvimento da música brasileira e para a integração cultural, por outro, a
Nacional esteve à frente de uma estrutura que atendeu aos interesses de Vargas.
O ditador enxergou nos meios de comunicação um instrumento
eficiente para levar os fundamentos que orientaram a sua política de ações a
todas as instâncias da coletividade e passou a se utilizar das rádios, dos
jornais, das revistas e do cinema com assiduidade e mantendo-os sob seu
controle, conforme destaca Jambeiro (2015, p. 12-13): “O modelo de

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funcionamento do rádio [teve] [...] severo controle do conteúdo [...]; implantação


de algumas emissoras estatais, a exemplo da Rádio Nacional”. Ao mesmo
tempo em que os influxos externos propiciavam a modernização das formas de
produção, circulação e recepção da música em decorrência do advento de
tecnologias inovadoras e de relações mercantis correspondentes, no âmbito
interno, paralelamente à expansão da radiodifusão, transcorriam
transformações sociais relevantes que estão relacionadas ao desenvolvimento
do samba.
A abolição da escravatura provocou a transferência de muitos libertos
para o Rio de Janeiro, segundo Sérgio Cabral (2011), parte saiu do Vale do
Paraíba, região que concentrava grande quantidade de negros por conta das
plantações de café, e outra parcela partiu da Bahia. A comunidade baiana,
entretanto, não totalizou número de relevância notável, porque “entre 1872 e
1890, a Bahia perdeu apenas sete mil habitantes através da migração
interprovincial”, tronando-se “fornecedora de migrantes internos apenas a partir
de 1900 e nos vinte anos seguintes, quando perde por esta via 116 mil
habitantes” (GOMES, 2015). Embora a demonstração de que numericamente os
baianos não formaram o contingente mais volumoso, tudo indica que são
procedentes as informações de que um grupo tenha se instalado nas
proximidades do porto, na esperança de encontrar ocupação, e nele estavam
indivíduos que protagonizariam o surgimento do samba, como é o caso de Tia
Ciata e Hilário Jovino.
Alice Rezende Carvalho (2004) aponta fatores que explicam a forma
como viviam os segmentos menos afortunados que habitavam no Rio de Janeiro
no início do século XX, contribuindo para questões relacionadas ao
desenvolvimento do samba, no que se refere aos traços de personalidade, o
espaço que ocuparam, as atividades que exerceram, ao papel social que lhes
coube e a procedência étnica dos indivíduos que tomaram parte do processo. Os
fenômenos mencionados pela pesquisadora estão relacionados à realidade que
os recém-chegados à cidade encontraram para sobreviver e às alternativas que
buscaram para superar os obstáculos com os quais se defrontaram. Como não
havia trabalho para todos, restou aos excedentes ir atrás de alternativas, motivo
que levou alguns deles a fazerem do baralho, da sinuca e da chapinha uma

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forma de sustento, porém houve quem transformou a trapaça, a habilidade no


manuseio da navalha e a desenvoltura na capoeira em meio para alcançar um
emprego.
Em A negrada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro (1994), o
historiador Carlos Eugênio Líbano Soares estuda a participação de capoeiristas
na vida partidária do século XIX. Por outro lado, são fartos os relatos históricos
a respeito das fraudes eleitorais nas décadas iniciais da República por meio de
ações violentas que envolviam a participação de sujeitos impulsivos e
habilidosos no uso de arma branca ou de fogo. Esses fatos permitem concluir
que os indivíduos mais destros no uso da navalha, de mais agilidade corporal,
de maior ousadia participavam de adulterações de votação, recebendo em
troca o apadrinhamento para ingressar no serviço público, como sugere Alice
de Rezende Carvalho.
A exploração da prostituição também foi fonte de renda para os mais
dotados de destreza nos pés e nas mãos, pois ao se tornarem temidos,
habilitavam-se a oferecer proteção ás mulheres, algo fundamental para elas
porque trabalhavam em um ambiente violento, no qual estavam expostas aos
mais diversos perigos. Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl (2015): “O
malandro [...] era forçado a viver na base do improviso, entre a ilegalidade e a
miséria, entre a oferta de pequenos serviços mal pagos, trabalho braçal pesado
e igualmente mal pago”. Quando isso se mostrava impossível, recorria ao jogo,
à cafetinagem, ao furto e a golpes que lhe permitissem amealhar algum
dinheiro. Contíguo a esse mundo ligado à delinquência, à exploração e de
ações questionáveis, existia outro, o dos quintais das famílias que conseguiram
se instalar mais confortavelmente, que se transformaram em espaço para
congraçamento de parentes e amigos, em festas para expressar tradições de
dança, canto e religião.
As mulheres tiveram papel fundamental nesses encontros, segundo
José Ramos Tinhorão, foram "mais importante do que os homens" (1982, p. 3),
pois tinham a responsabilidade pela preparação da comida e portavam o
conhecimento dos rituais e das práticas do candomblé. Assim, ao seu redor
ocorriam confraternizações e a preservação de práticas culturais e religiosas de
origem africanas. As mais lembradas são tia Amélia, mãe de Donga; tia

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Prisciliana, mãe de João de Baiana; tia Veridiana, mãe de Chico da Baiana; e a


mais conhecida, Tia Ciata. Ao seu quintal acorriam pessoas de todas as
camadas sociais, desde boêmios, malandros, prostitutas, a políticos e poetas,
em busca do sabor de seus afamados pratos, dos aconselhamentos espirituais
ou de diversão nas rodas de samba que lá aconteciam, animadas por
Pixinguinha, Donga, Sinhô, Ismael Silva e outras tantos que se tornaram
nomes respeitáveis do samba.
A casa de Tia Ciata foi o “berço de ‘Pelo Telefone’” (SEVERIANO,
2008, p. 73) e, segundo fontes indicadas por Jorge Caldeira (2007), há registro
da “data em que a canção teria sido cantada por várias pessoas, entre elas
Donga” (p. 13), circunstância irrelevante não fosse a polêmica envolvendo a
autoria dessa música. Discussões à parte, o fato é que o cenário sociocultural
do Rio de Janeiro da época emoldura a narrativa de Desde que o samba é
samba, romance de Paulo Lins, publicado em 2011, no qual estão
representadas figuras com participação decisiva para o surgimento e a
consolidação do gênero musical que se transformou em uma das, se não a
mais, importante expressão de nossa cultura. Na obra são transformadas em
personagens Brancura, Baiaco, Francisco Alves, Valdemar, Donga, Tia Amélia,
Tia Ciata, Zé Espinguela, Ismael Silva, Sinhô, Bide, Pixinguinha, João da
Baiana, Cartola, Benedito Lacerda, Edgar, Francisco Alves, Carmem Miranda,
todas personalidades ligadas às origens do samba. Ainda são mencionados
Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Frederico Augusto Schmidt, Carlos
Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos, entre outros.
A narrativa tem como fio condutor o triângulo amoroso envolvendo
Brancura, Valdirene e Sodré e descreve os conflitos vivenciados por eles em
consequência do antagonismo das forças que movem os seus sentimentos.
Brancura é um malandro negro que ganha a vida com roubos, trapaças, o jogo
da chapinha e a exploração da prostituição. Por mais que pense em mudar por
causa do amor que sente por Valdirene, não tem energia para se afastar desse
ambiente ou para buscar outra forma de viver, por se sentir preso àquele lugar,
pois ali diminui o tormento pelas lembranças do pai com quem nunca conviveu,
mas que o introduziu naquele meio, iniciando-o na bebida, nas artimanhas e no
proxenetismo.

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Sodré, procedente de família portuguesa dona de pequena marcenaria,


procura se equilibrar na linha que separa dois mundos opostos, o de bom filho,
bom genro, bom marido, funcionário exemplar do Banco do Brasil e o de gigolô.
Valdirene, a mulher que proporciona mais ganhos para Brancura, é apaixonada
pelos dois, sentindo-se atraída tanto pela segurança que Brancura lhe dá como
protetor nas ruas do Estácio quanto por aquela que o outro pode lhe
proporcionar instalando-a em uma casa com todo o conforto e situada em um
bairro que pode lhe garantir a condição de mulher respeitável. Filha de
prostituta, também se sente enraizada à Zona do Mangue e, a exemplo de
Brancura, tenta outro tipo de vida, mas, mesmo depois de empregar-se como
faxineira da Confeitaria Colombo e mudar-se para outro lugar,
esporadicamente vende seu corpo.
Esse núcleo narrativo desenvolve-se simultaneamente a outro, no qual os
protagonistas estão mais diretamente vinculados ao surgimento do samba, porém
antes de mencioná-lo, convêm algumas considerações mais gerais a respeito da
obra. Nesse sentido, Desde que o samba é samba enquadra-se como romance
histórico, gênero com qual se identifica, porque ficcionaliza indivíduos de
existência concreta e situações que eles viveram de forma semelhante à descrita
por registros factuais. Além desses aspectos, é o próprio autor que o classifica

como tal: “É tudo muito estudado, muito pesquisado. Inventaram o surdo,

inventaram o tamborim” (LINS, 2015). Uma das personalidades representadas no


romance é Ismael Silva, talentoso compositor da música brasileira e sambista
reconhecido como um dos fundadores do samba que conhecemos hoje e do
“Deixa Falar”, bloco carnavalesco que criou o modelo que se transformou nas
atuais escolas de samba.
Na obra, quem toma essas iniciativas é Silva, ao lado de outras
personagens que recebem os mesmos nomes ou apelidos de figuras históricas e
que também são reverenciados pelos mesmos motivos, como Bide, (Alcebíades
Barcelos) e seu irmão, Rubem (Rubem Barcelos), Edgar (Edgar Marcelino dos
Passos), Bastos (Nilton Bastos), Baiaco (Osvaldo Caetano Vasques), Brancura
(Sílvio Fernandes), entre outros. A diferença é que nem todos alcançaram a
mesma notoriedade como compositores, pois a maioria morreu jovem, antes de
registrar suas criações. No que se refere às alusões a fatos históricos, tão

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importante quanto as personalidades são alguns espaços, em particular o Café


do Compadre e o Bar Apolo, lugares frequentados pelo grupo e onde se
reuniam para beber, conversar, tocar, cantar e, principalmente, compor
sambas. E nessa comparação entre o real e o ficcional, cabe ao próprio samba
um dos principais papéis, porque está presente em quase todas as cenas
direta ou indiretamente, constituindo-se em um dos elementos fundamentais
para a narrativa. Tal incidência decorre do fato de seu desenvolvimento
enquanto gênero musical entremear os acontecimentos vivenciados pelas
personagens, assumindo a função de uma segunda linha de condução da
trama, com a mesma relevância da primeira.
Quanto a esse aspecto, é importante ressaltar que a descrição da
trajetória evolutiva do samba constitui uma segunda moldura temporal para os
fatos representados. Em primeiro plano, aparece um presente situado entre os
anos de 1927 e 1928 e, no outro, a história, aqui entendida como oposição a
discurso e correspondente à realidade evocada por acontecimentos e
personagens. Nesse particular, são recorrentes as referências às perseguições
por policiais que, pela vestimenta, pelo porte de instrumento ou até mesmo pelo
jeito de andar pudessem ser associados ao samba. Atos violentos com
espancamentos indiscriminados a homens, mulheres e até crianças, ou a
destruição de objetos das residências onde havia algum tipo de festividade com
canto, dança eram comuns na casa dos negros no Rio de Janeiro, segundo a
maioria dos pesquisadores aqui mencionados.
Uma das razões para a fundação do “Deixa Falar” foi a necessidade de
criação de entidade cujos membros pudessem se divertir durante o carnaval com
a devida autorização da polícia, portanto seguros de que não seriam agredidos.
No romance de Paulo Lins, esses fatos são mencionados seguidas vezes, em
passagens que mencionam bloco e ranchos existentes e comparam o modelo
que a turma do Estácio pretende desenvolver. As mudanças propostas por Silva
na maneira de dançar, de tocar, na organização do bloco e no relacionamento
com a polícia expressam modificações profundas na forma de festejar o carnaval,
fato que efetivamente aconteceu: “Além de inovar no samba que cantava, o
bloco veio cheio de novidades em matéria de percussão e samba. Uma delas
foi o surdo, também chamado de caixa surda, uma invenção de Alcebíades

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Barcelos, o Bide [...]” (CABRAL, 2011, p. 41-2). As referências à invenção do


surdo aparecem seguidamente no romance de Paulo Lins, sendo que em uma
delas acontece a descrição da forma como o instrumento se apresenta e do
material com o qual foi construído: “Bide já tinha levado o tamborim e o seu surdo,
instrumento que ele havia inventado. Era uma lata de manteiga em forma de
cilindro com aros de madeira por dentro, encouraçada com couro de cabrito”
(LINS, 2012, p.194).
Importa registrar que, antes da turma do grupo do Estácio e do Deixa
Falar, o vocábulo samba designava ritmos musicais um pouco diferentes daquele
que hoje recebe esse nome. Há dois exemplos bem conhecidos para ilustrar esse
fenômeno, um é “Pelo telefone” a primeira musica gravada com o nome de
samba, ainda que os próprios autores divergissem a esse respeito, pois, como
afirma Jorge Caldeira (2007), para Mauro Almeida, autor da letra fixada pelo
registro, tratava-se de um tango-samba, enquanto para Donga, que fez a
certificação junto à Biblioteca Nacional, tratava-se de um samba amaxixado.
Outro caso que exemplifica o problema em torno do samba na época
da qual estamos tratando, é a posição de Sinhô (José Barbosa da Silva). Em
atividade desde 1917, ele foi autor de vários sucessos, que o levaram a ser
chamado de Rei do Samba e cuja carreira culminou com “Jura” (1929). Sua
importância é tanta que Jairo Severiano afirma: “Foi ouvindo as músicas de
Sinhô que o Brasil aprendeu a gostar de samba” (2008, p. 74). Com relação a
“Pelo telefone”, composição da qual Sinhô “disputou a autoria [...], dizia tratar-
se de um ‘tango’” (CALDEIRA, 2007, p. 12). Ainda em relação ao problema,
Sérgio Cabral transcreve trecho de entrevista do compositor que, ao mencionar
seus colegas do Estácio, afirma: “[...] os modernistas, porém, escrevem umas
coisas muito parecidas com marcha e dizem que é samba” (CABRAL, 2011, p
38).
Para o ouvinte de hoje certamente fica mais difícil distinguir as
diferenças diante da reprodução das gravações originais de algumas dessas
músicas, em razão da precariedade técnica das gravações (CALDEIRA, 2007)
e pelo fato de que parte dos músicos que acompanham os cantores nos discos
era de geração anterior à do grupo do Deixa Falar, consequentemente ainda
sofriam influência do andamento mais lento do ritmo. No que se refere aos

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arranjos, nada indica que no período houve alguém com a mesma importância
de Pixinguinha, um dos criadores dos “padrões básicos de arranjo para a música
popular brasileira, servindo seus trabalhos de paradigma para os músicos
nacionais que pontificam nas décadas de 1930 e 1940” (SEVERIANO, 2008, p.
193). Em relação ao debate sobre o nascimento e o andamento do samba, vale a
pena mencionar depoimento dado pelo autor de “Carinhoso”, segundo transcrição

de Sérgio Cabral: “O verdadeiro samba que eu conheço é do tempo do falecido

Hilário... não é do Sinhô também não... do tempo do João da Mata. Esses eram os
verdadeiros sambistas, não é? Depois, apareceu ‘Pelo telefone’” (CABRAL, 2011,
p. 39).
Parece indiscutível, porém, a contribuição do pessoal do Estácio para a
configuração do samba e isso se evidencia por um dos motivos pelos quais
decidiram acelerar seu andamento, conforme as palavras de Ismael Silva

registradas pelo mesmo Sérgio Cabral: “O estilo não dava para andar. [...]. O

samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Com é que um bloco ia andar
na rua assim? Aí a gente começou a fazer um samba assim: bum bum
paticumbumprucurundum” (CABRAL, 2011, 269). De acordo com a
representação em Desde que o samba é samba, as razões são as mesmas:
“[...] precisava aumentar o andamento para quem quiser dançar e cantar ao
mesmo tempo. Tinha que ter ritmo quente, com mais notas, com mais
entrosadez de repinicado, mas rebusco de ritmo. Assim Bum bum paticumbum
prugurundum” (LINS, 2012, p. 140).
A animação também era importante para a divulgação dos sambas, pois
quanto mais contagiante fossem a melodia, o andamento e a instrumentalização,
maiores eram as suas chances de circulação. Nesse sentido, é importante lembrar
que antes da popularização do rádio e do disco, isso acontecia em festividades
religiosas, como a de Nossa Senhora da Penha, e nas casas das tias baianas.
A título de considerações finais, retomam-se questões relacionadas ao
romance de Lins. Nesse sentido, a aplicação dos pressupostos de Jauss (1994)
permite a compreensão de uma obra literária pela perspectiva do diálogo com a
série e com o meio social no qual aparece e, desse modo, Desde que o samba é
samba se robustece enquanto produção artística. Se o gênero a que pertence é
tradicionalmente uma forma instável, essas oscilações são ainda mais intensas

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nas últimas décadas, como afirmava, em 1984, Silviano Santiago ao dizer: “Torna-
se difícil classificar o que seja ou não romance hoje” (2002, p. 33). Duas décadas
mais tarde, Flávio Carneiro dria que “não havia mais modelos a seguir e que isso
não era exatamente um problema” (2005, p. 31), assim, o menos irrelevante é
definir se a narrativa consiste em um romance histórico ou não ou a definição dos
limites entre a ficção e a história. Importa, acima de tudo, perceber que Desde
que o samba é samba nos leva a reflexões profundas sobre um momento da
vida cultural brasileira e sobre manifestações de um segmento populacional
fundamental para a nossa formação.
Em relação ao primeiro aspecto, a leitura da obra de Paulo Lins desperta
nosso interesse pelo processo de evolução de um gênero musical que em pouco
mais de uma década deixou a marginalidade para se transformar em grande
expressão da nossa cultura, prestando-se inclusive como mecanismo importante
para a integração nacional e como sustentação para um regime político
discricionário, a ditadura de Getúlio Vargas que, ainda como deputado, em 1928,
ano da fundação do Deixa Falar, foi autor de lei que tratava da organização das
empresas de diversão e de indivíduos que recebiam direitos autorais
(SIQUEIRA, 2012). Por outro lado, o samba também se prestou para que os
negros conquistassem espaços de manifestação e de luta, que dificilmente
ocupariam de outro modo ou de forma tão rápida. Desde o seu surgimento, as
agremiações carnavalescas aglutinaram ao seu redor os segmentos
populacionais marginalizados: “Inicialmente crida por negros e mulatos, que
ainda hoje constituem sua base, com o tempo a escola de samba foi ampliando
seu alcance social e aceitando em seus quadros também brancos não tão
pobres [...]” (GALVÃO, 2009, p. 19). A autora acrescenta: “Para a população
pobre e mestiça, a sede da escola ou quadra, obrigatoriamente situada no bairro
[...], constitui um centro de sociabilidade, desempenhando o papel de um clube
de vizinhança informal” (p. 23).
Com relação à ocupação de espaços de expressão, embora o samba
tenha uma contribuição relevante desde o seu surgimento, é preciso dizer que,
nesse processo, se pode perceber certa opacidade do elemento negro. Sinhô
não chegou a gravar suas composições, apesar do seu reconhecimento em vida
nos diferentes círculos sociais; boa parte das músicas dos compositores do

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Estácio foi para o disco na voz de Francisco Alves, que comprava parcerias;
Ismael Silva, um desses parceiros, também compôs com Noel Rosa. Do mesmo
período, ainda podem ser citados outros sambistas negros de primeira grandeza,
como é o caso de Assis Valente e Wilson Baptista, no entanto, nem sempre
lembrados merecidamente e, por vezes, parece que foram menos importantes
que Ari Barroso e Dorival Caymmi, seus contemporâneos, para o
desenvolvimento do samba.
Pixinguinha, Donga, Sinhô, Ismael, Bide, Wilson, Assis e outros tantos
que vieram depois deles serviram de alento para a população negra de maneira
geral e ainda podem ser tomados como exemplo de esforço para a conquista de
seu espaço social. O grupo da década de 1920, ainda que divergisse quanto
àquilo que expressava o samba, fez de sua música uma forma de manifestação
da herança africana que procurava preservar e reavivar, o que era uma forma de
resistência à cultura europeia das elites brancas e conservadoras. Se, do ponto de
vista artístico, a permanência de sua obra demonstra que foram talentosos, pela
perspectiva do embate cultural também são merecedores do mesmo
reconhecimento. Afinal, talvez em nenhum outro momento tenha ficado tão claro
como se mostra hoje o quanto nossas elites são retrógradas. Se esse fato, por um
lado e a primeira vista, pode parecer desalentador, por outro, pode servir de
motivo para a luta dos que se sentem oprimidos, como fizeram eles.

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Vargas. Unesp, 2012.

TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone, ao rádio e à TV. São


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______. História da música popular brasileira: samba. São Paulo, Abril Cultural,
1982.

VIANNA, Hermano. O mistério do samba. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES E ENSINO DE LITERATURAS


AFRICANAS DE LÍNGUA PÒRTUGUESA: UM CURRÍCULO POSSÍVEL

ELIANE GONÇALVES DA COSTA (UFES)

Tendo em vista que a educação formal brasileira, somente com o


advento da Lei de Diretrizes e Bases 9394/96 e da Lei 10.639/03, permitiu a
inclusão de temas até então pouco discutidos no ambiente escolar, como
pluralidade cultural e desigualdades raciais e de gênero. Podemos observar
que os cursos de licenciatura estão aos poucos se adequando a essa nova
realidade para que os futuros profissionais da educação possam efetivar
trabalhos com estes temas em sala de aula.
Na educação básica, em especial na área de Língua Portuguesa, o
currículo já é bastante abrangente e de acordo com a nova proposta da LDB,
observamos que há a inclusão de mais um conteúdo programático, como
descrito no excerto:

Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,


oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1ª – O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e políticas pertinentes à História do Brasil.
§ 2ª – Os Conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.

Acreditamos que a formação inicial e continuada desses profissionais


que atuam na educação básica são imprescindíveis para que se possa adequar
as necessitadas de mudanças no currículo de algumas áreas do saber.
O ensino superior ainda está pouco adequado e ainda com baixa adesão
à temática supracitada. No caso de Letras, na área de ensino de Língua
Portuguesa, o desafio torna-se ainda maior, pois no espaço escolar, o texto
literário encontra-se cada vez mais escolarizado e subutilizado.
Desta forma, esta comunicação busca pensar novas estratégias
metodológicas para adequar o ensino de língua portuguesa a nova realidade
sócio-cultural, de maneira a atender os propósitos da Lei 10.639/03, mas,

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sobretudo, refletir sobre o ensino de Língua Portuguesa, atentos à inclusão de


todas as culturas presentes no ambiente escolar.

Refletindo sobre práticas pedagógicas

Numa bela citação, o escritor português José Saramago


(2002), nos lembra: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Repara-se é, pois, um exercício difícil para quem foi
insistentemente treinado para não se enxergar. O senso comum diz
que as mulheres “sempre reparam”; “reparam muito mais do que os
homens”. Caso tais afirmativas tiverem cunho de verdade, como
vivemos de olhos fechados para não ver e logo não reparar?
O que contamos são frutos de nossas experiências – esses
eventos são, pois, marcados pelo dado da realidade, que a priori é
sempre uma pequena parcela de um fato. De acordo com W alter
Lipmann (2004), vivemos num espaço ínfimo da Terra, e das
coisas que sabemos nos limitamos aos detalhes filtrados pelo
nosso olhar, que nem sempre vê.
Nossa limitação em ver nos desloca para a necessidade de
fazermos uso de relatos de outros e da nossa capacidade de
imaginar para que possamos ampliar nosso campo de visão. No
entanto, afirma o filósofo, “não vemos primeiro para depois definir,
mas primeiro definimos e depois vemos”.
O pedido de Saramago nos desperta todos os sentidos. Ele
nos solicita um ato quase heróico em que reparar é transpor as
barreiras das ilusões impostas pelo olhar que inventa realidades
por meio do discurso e da imaginação.
Reparar, em uma de suas definições dicionarizada, associa-
se à ideia de renovação e restabelecimento. Talvez uma forma de
ver, livre de estereótipos impostos pela sociedade.
A escola na sua concepção apresenta-se como espaço laico,
pluricultural e democrático. No entanto percebemos que a
predominância do eurocentrismo ocupa boa parcela do currículo
formal. Essa distorção tem levado a educação brasileira a

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organizar-se de maneira excludente, tomando as diferenças e as


diversidades apenas como tema.
Mesmo versando artigos: 215,§1°; 216,§5° e 216,§1°da
Constituição Brasileira de 1998, que salienta o caráter multirracial,
pouco observamos sobre a efetivação desse reconhecimento.
Somente com a publicação da Lei 10.639/03 e 11.645/08, podemos
observar passos mais firmes nessa direção. A lei altera a LDB
9394/96 e gera uma movimentação dos governos municipais e
estaduais para a reorganização de novos currículos na educação
básica e de forma indireta questiona e recoloca a formação de
professores, sobretudo nos curso de pedagogia, letras e história.
De acordo com as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-raciais e para o ensino de História Afro-brasileira e Africana (2004),
documento que fundamenta a revisão do currículo escolar e que apoia os
postulados pela lei 10.639/03 e 11.645/03 constitutivas da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação (LDB), torna-se necessária a construção efetiva de um
espaço de discussão e de elaboração de novas práticas pedagógicas, capazes
de ultrapassar o momento e a localidade em que se darão os encontros de
formação de professores/gestores, alcançando, portanto, a comunidade escolar
como um todo, por uma educação para a convivência em e na diversidade
étnico-racial.

Oficinas desenvolvidas

Oficina I
Políticas para implantação de uma educação etnicorracial
• Apresentação e debate: Leis 10.639/03 e 11.645/08 e suas
aplicabilidades;
• Ensino e aprendizagem de ERER como política pública;
Avaliação e encaminhamentos.
Oficina II
O lugar das literaturas africanas e afro-brasileira no campo da
Educação para as relações étnico-raciais
• Currículo e Ensino de Literatura
• Representação e identidade na literatura afro-brasileira;
Avaliação e encaminhamentos.

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Oficina III
Literaturas Africanas e Afro-brasileira
• Literaturas e Arte – contextos africanos e brasileiros;
• Transcriação de gêneros da tradição oral para a letra;
• O papel artístico-pedagógico desempenhado pelo contador de histórias;
• O papel do Griot: Técnicas de Contação de Histórias;
• Estratégias para a criação de acervo no espaço escolar;
Avaliação e encaminhamentos

A metodologia aplicada recaiu sobre a interatividade, a fomentação da


criticidade, da discussão em grupo, buscando a construção de relações
dialógicas entre todos os participantes envolvidos no projeto de pesquisa.
Ocorrerão encontros mensais nos quais serão desenvolvidas leituras e
interpretação de textos orais e gráficos, dinâmicas de grupo, projetações de
filmes /imagens, produção de material pedagógico. Pesquisa de campo com o
propósito de observar e analisar as práticas docentes em sala de aula, além de
aplicação do material produzido a partir do projeto.
A avaliação deu-se por meio da elaboração de um plano de atividade ou
sequência de atividades, a partir do material bibliográfico sugerido pela
pesquisa. Os planos ou as sequências de atividades deverão ser
desenvolvidas em sala de aula e/ou junto ao corpo docente da unidade escolar,
onde o projeto será aplicado. A ideia é que o resultado do projeto de pesquisa
possa culminar numa publicação de práticas de ensino de Língua Portuguesa e
Arte, evidenciando as Literaturas Africanas e Afro-brasileira.

Um currículo possível: apontamentos

Em linhas gerais as oficinas buscaram aprofundar discussões e munir os


educadores de ferramentas pedagógicas para a identificação e enfrentamento
ao racismo e para a convivência com a diversidade no cotidiano escolar. O
levantamento e análise crítica da percepção dos professores sobre o racismo e
seus desdobramentos no cotidiano escolar, associado à leitura dirigida de
textos literários africanos e/ou afro-brasileiros e da cultura latino americana,
foram o mote para a criação partilhada de estratégias para abordar e acionar
as expectativas e acúmulos sistematizados do projeto de Orientações
Curriculares (Expectativas de Aprendizagem para a Educação Étnico-Raciais)

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e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-


Raciais no fazer escolar.
Preocupou-se em oferecer subsídios teóricos e metodológicos para a
abordagem das leis 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais, contribuindo para a construção
partilhada de instrumentos pedagógicos que dialoguem com o conceito de
“diversidade étnico-racial” e seus desdobramentos nos diferentes níveis de
ensino e de aprendizagem. Nossos objetivos específicos centraram-se em :

• Propor aos professores ferramentas teórico-pedagógicas no campo da


Educação para as Relações etnicorraciais, para o desenvolvimento de
atividades junto aos educandos;
• Apresentar e discutir conceitos como preconceito racial, diversidade,
estereótipos, identidade, corporeidade, ancestralidade.
• Tecer interrelações entre questões etnicorraciais e linguagens artístico-
pedagógicas plurais como estratégia possível à construção de novas
práticas pedagógicas;
• Analisar o material didático disponível nas escolas. Selecionar e criar
materiais adequados para a efetivação de um trabalho em sala de aula
que vise o desenvolvimento de ações voltadas à questão étnica racial;
• Contribuir para a difusão de informações sobre a situação do negro no
Brasil ontem e hoje e estabelecer propósitos que favoreçam seu
presente e futuro;
• Integrar toda a comunidade escolar em prol da valorização da
diversidade cultural que permeia o espaço escolar, seja na perspectiva
do espaço físico, seja no currículo.
• Levar à reflexão sobre as diferenças raciais e a importância de cada um
no processo de construção do nosso país, estado, comunidade, escola.
• Selecionar textos, imagens e livros de literaturas africanas e afro-
brasileira para organizar sequências didáticas que valorizem a
diversidade e possibilitem novas perspectivas para o currículo .

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Preocupados com as práticas desenvolvidas no universo escolar e no


desvelamento de situações corriqueiras na seleção de atividades e materias
utilizados pelos educadores. Recorremos a uma metodologia pautada na
interatividade, fomentação da criticidade, e de discussão em grupo, buscando a
construção de relações dialógicas entre todos os participantes envolvidos na
vivência em sala de aula.
Numa das oficinas, uma das práticas que avaliamos demonstra que a
rede está empenhada em pensar e colocar em andamento um currículo voltado
para a efetivação de um espaço escolar que aborde as diferenças e as
diversidades.
A partir dos objetivos do projeto e da sistematização apresentada pelos
educadores e educadoras participantes das oficinas; percebemos que as
atividades fomentaram as discussões para a organização de questões teóricas
e práticas. Observamos que ao garantimos durante os encontros, além das
discussões teóricas acerca da temática, as perspectivas legais e a simulação
de práticas e seus desdobramentos e, que os educadores foram reformulando
algumas atividades. Questões comuns para a organização de projetos de
educação para a as relações etnicorraciais, tais como a escravidão; a
dicotomia bem-mal nas religiões; o exotismo e estereótipos foram
ressignificados. Os professores perceberam que seria preciso ter um olhar
diferenciado para estes temas e que precisamos contextualizar de forma
significativa a história que consta nos livros didáticos e no currículo comum.
Percebemos que o caminho traçado durante o curso, deu base teórica e
reforçou a opção já bem sucedida da escola. As formações pautaram-se na
relação profícua entre teoria e prática, preocupada em perceber as marcas do
currículo eurocêntrico desenvolvido cotidianamente. Os educadores, durante o
curso, puderam analisar algumas práticas aparentemente corretas mas que
estavam marcadas por estereótipos. Refletiram ainda sobre o papel que a
gestão e os educadores têm como implementadores de políticas publicas, bem
como responsáveis pela escolha didática dos materias que dão base a um
currículo preocupado com a diversidade. Portanto o desenvolvimento das
atividades na unidade escolar foi acompanhado pelas reflexões e o
desenvolvimento concomitante dos encontros. O cursistas trouxeram para as

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oficinas questões práticas do cotidiano escolar. Podemos afirmar que um


currículo diferenciado é preciso e que toda vez que a escola se dispõe a
mobilizar à comunidade para temáticas que afirmam as identidades que
constituem esse espaço de educação, temos trabalhos que marcam a vida dos
estudantes.
O papel do professor deve estar cada vez mais focado na construção de
um currículo que agregue a diversidade. Os educadores responsáveis pelo
projeto e todos os alunos envolvidos, dão cara e voz para discursos muitas
vezes silenciados no espaço escolar. Esses educadores nos mostram como
tornar o espaço escolar um ambiente voltado à diversidade e cabe a esta
geração de educandos e educadores, reescreveram a história de micro-
espaços e refletirem e ressignificarem a história do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Ana Elisa de Santana (Org.). Eu mulher em Moçambique. Moçambique:
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. (2010). Pode o Subalterno Falar? Belo


Horizonte: Editora UFMG- 2010.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

“L’ETUDIANT NOIR” A VOZ DA NEGRITUDE

ANTONIO MARCOS DE ALMEIDA RIBEIRO (UNEB/CAMPUS XIII)

Introdução

O presente trabalho faz uma breve análise do movimento de negritude


em um contexto historiográfico. Sendo discutindo através de uma publicação
militante como propulsora dos princípios de valorização do negro a nível
internacional. O veículo de comunicação utilizado por jovens negros para
expandir esse pensamento foi o jornal “L’Etudiant Noir” (O Estudante Negro).
Que preconizava a valorização de sua cultura em dimensões universais e
definindo o papel do negro no mundo em qualquer circunstância. Esse
periódico tornou-se espaço de fermentação intelectual significativa nos estudos
sobre identidade negra, no qual iremos abordar.

O pan-africanismo como elo de ligação

A gênese das publicações lançadas a partir da década de 1930 com


teor essencialmente de combate ao racismo teve suas raízes na ação política
do pan-africanismo. Esse movimento de caráter ideológico questionou,
reinterpretou e readaptou o conceito de raça de forma positiva aos negros. Isso
em resposta as formas exacerbadas de violência institucional e simbólica que
concebia o negro como cidadão de segunda classe ou indivíduos sem direitos.
Por isso, uma das principais, bandeira de luta para intelectuais negros era a
incorporação de forma positiva ao conceito de raça combatendo diretamente o
racismo científico. Estimulados por ideias e valores relativos a temática, o pan-
africanismo, com raízes filosóficas e sociais, iria potencializar a luta pelos
direitos ao povo africano e afrodescendentes. Seus idealizadores tomavam a
independência do Haiti como o locus simbólico de afirmação dessa liberdade,
igualdade e aptidões intelectuais.

Porém, cabe ressaltar que o pan-africanismo teve sua efervescência


intelectual fora das fronteiras do continente africano. Foi gestado e idealizado
fora da África e propunha ser uma voz no contexto internacional promovendo
os direitos dos negros e a unidade do continente. Segundo Hernandez (2008,
p. 138) o pan-africanismo foi “um movimento político-ideológico centrado na

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noção de raça, noção que se torna primordial para unir aqueles que, a despeito
de suas especificidades históricas, são assemelhados por sua origem humana
e negra”.

A ênfase estava em combater a elaboração e identidades forjadas pelo


europeu com base na pseudociência da eugenia referente ao negro. Além
disso, com a prerrogativa de que a abolição da escravatura não era suficiente
para quebrar as relações de conquista e de dominação ainda sentidas. Sendo
assim, todos os africanos e descendentes eram conclamados a unir-se ao pan-
africanismo num sentimento e consciência comum sobre sua atual situação no
mundo. Esses ideais e corpus doutrinário propunha uma alternativa radical
contra o colonialismo. Abordava os problemas sociais, discriminação e
promoção de um Estado soberano, da defesa cultural e busca de soluções aos
problemas oriundos do imperialismo; Onde seus precursores acreditavam ser a
raiz da opressão. O pan-africanismo tornou-se o mais sólido movimento na
busca de justiça e direitos para os negros.

A militância do pan-africanismo possuía atores com características de


luta bem diferenciadas entre si, vozes que davam combustível a ideologia do
combate ao racismo. Dentre eles Marcus Garvey, William Edward Du Bois e
Kwame Nkrumah, considerados os pais do movimento. A gestação desse
espaço de luta inicia-se no século XIX de forma modesta como uma
manifestação de solidariedade aos negros livres e negros escravizados,
através de uma ação denominada “de volta à África”. Foi uma experiência de
repatriamento que operava juntamente com os movimentos abolicionistas. Já
no século XX a escravidão já havia sido abolida, mas a militância e ativismo
desse movimento continuaram contra o preconceito racial e a luta por justiça.
Como ressalta Raíssa Brescia dos Reis (2014, p.404):

O intelectual surge como um mediador que, investido de autoridade


por uma posição de especialização universitária ou ligada à
celebrização pelo trabalho artístico ou literário, alçaria lugar
privilegiado diante do Estado, podendo se fazer ouvir e, para alguns,
tendo nessa atividade um compromisso ético de não se calar diante
das injustiças perpetradas a sua volta.

Significa dizer que o intelectual negro usaria sua influência e posição


utilizando sua intelectualidade como ação política para promover sua
identidade nos aspectos históricos e sociopolíticos. Estabelecendo a
conciliação de sua identidade em bases autênticas pensadas por negros e para
os negros. Definindo assim cosmologias e cultura com prerrogativas de ação
política engajada seja ela com suporte teórico-metodológico ou nas artes.

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Vale ressaltar a contribuição com suporte teórico-metodológico para o


movimento de William Edward Du Bois (1868-1963) que representou a linha
intelectual do pan-africanismo contemporâneo. Em uma época marcada pelo
segregacionismo obteve uma educação privilegiada vindo a ser o primeiro
negro a adquirir PhD em Harvard. Com formação em História e Economia,
doutorou-se em História com o tema “A supressão do comércio africano do
escravo aos Estados Unidos da América, 1638-1870”. Sua militância, como
mostrada na obra “As Almas da gente Negra” (1999) do próprio Du Bois, unia
pensamento e ação através de uma conscientização e importância dos direitos
civis sem distinção. Isso decorreu pela experiência empírica dos negros em seu
país e restante do mundo, mostrando que o imperialismo tolhia as liberdades
dos negros em toda parte. Seus estudos buscavam a compreensão do racismo
em linhas teóricas denunciando as barreiras raciais impostas e das políticas
que invalidavam a cidadania dos negros. O seu projeto para o pan-africanismo
elucidava a união das raças onde cada uma possuía características próprias a
contribuir para a humanidade.

Literatura engajada

Dentro desse contexto do pan-africanismo e suas vozes existia uma


intelectualidade também propulsora da formação do pensamento através da
literatura. Os livros e periódicos faziam parte das manifestações político-
culturais que pontuava a circulação de obras que forneciam elementos
filosófico-literário de combate às opressões. Algumas obras passaram a
teorizar sobre racismo e etnicidade abrangendo desde a exclusão do negro e
os mecanismos do preconceito instalado na sociedade. Dentre os periódicos
que circulavam os ideais de ação política intelectual contra as opressões e
valorização do negro, em ordem do ano de publicação, estavam: La Revue du
Monde Noir (1931), Légitime Defense (1932), L’Étudiant Noir (1934), Présence
Africanine (1947). E as obras literárias importantes: Pigments (1937) de Léon
Damas, Cahier d’un Retour au Pays Natal (1939) de Aimé Cesaire e
L'Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgaxe de langue française (1947)
de Léopold Sédar Senghor. Vale ressaltar que o termo amplamente usado em
todas essas obras era “negritude”, que iremos abordar mais adiante.

Damos destaque ao Présence Africaine (1947) que mais tarde tornou-


se uma editora especializada em trabalhos acadêmicos. Vendo na literatura
uma representatividade que dava voz aos intelectuais negros, numa força tão
importante quanto a política partidária. Esses periódicos, ferramenta de
articulação, eram a concretização escrita da positivação do homem negro, de
sua alma. Um espaço importante de falarem de seus posicionamentos, sua

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militância, suas demandas assumindo a vanguarda de estudantes


representativos dos jovens negros. A editora acabou sendo a continuidade do
movimento de negritude, referência própria para se conhecer o seu processo
histórico.

Esses idealistas concebiam a linguagem como principal instrumento de


poder e deveriam no mesmo terreno combater a ideologia dominante do
racismo. Dentro dessa concepção, quero destacar a obra de Aimé Césaire que
em 1939, que escreveu "Cahier d'un retour au pays natal". Sendo muito mais
que uma obra literária era um ato político que reivindicava a consciência de ser
negro, um levante da identidade cultural. Um poema lírico com voz de
manifesto que denunciava as desigualdades e injustiças, além de subtrair a
conotação pejorativa que a palavra “negro” inspirava. A manifestação artística e
cultural transformava-se em forma de luta sendo essência do termo negritude.
Eis um trecho da obra:

(...) Minha negritude não é uma pedra


E sua surdez arremessada contra o clamor do dia
Minha negritude não é uma gota d`água morta
Sobre o óleo morto da terra
Minha negritude também não é uma torre ou uma catedral

Ela mergulha na carne vermelha do solo


Ela mergulha na carne ardente do céu
Minha negritude perfura a aflição de seu sossego correto.

O conceito de negritude circulava nos escritos dos expoentes desses


periódicos imbuído do aspecto anticolonial como é visto no poema de Damas
(1956):

Jamais o branco será negro

pois a beleza é negra

e negra a sabedoria

pois a resistência é negra

e negra a coragem

pois a paciência é negra

e negra a ironia

pois o encanto é negro

e negra a magia

pois o amor é negro

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e negra a ginga

pois a dança é negra

e negro o ritmo

pois a arte é negra

e negro o movimento

pois o riso é negro

pois a alegria é negra

pois a paz é negra

pois a vida é negra.

Nesses fragmentos é nítido perceber o discurso engajado com ênfase


na identidade negra. Isso explicitando que o negro não poderia ser outra coisa
há não ser negro. O ser negro é um aspecto ressaltado com a repulsa pelo
eurocentrismo e branqueamento, valorizando elementos de sua cultura. É ao
mesmo tempo estético cultural e ideológico com intenso lirismo, com
problemática que afligia o autor, eliminando influências da colonização e
ressaltando a negritude de forma positiva.

Um termo militante

A busca da historicidade do termo negritude aponta para uma reflexão


dialógica sobre identidade e reafirmação. Na etimologia vem do francês “nègre”
que no início do século XX era usado para caluniar e desmerecer os
afrodescendentes. Também se utilizava “noir” com mesmo significado, mas
com sentido de respeito. Em oposição, a essa ideia negativa da palavra,
negritude passou ser usada dentro dos círculos literários negro de forma
positiva com reafirmação da identidade. No contexto atual temos vários
sentidos, no que diz respeito, ao movimento de afirmação racial. Tendo caráter
político, ideológico e cultural possuí dilemas dentro do seu papel revolucionário
aglutinador dos valores de matiz africanos e rompimento da ideologia
eurocêntrica.

O próprio Léopold Senghor (1978) em discurso na cerimônia fúnebre


de Dama discursou sobre como eles resinificaram o termo “nègre”:

Foi no Quartier Latin em plena Paris dos anos 30. Um grupo de


estudantes negros composto de antilhanos e africanos tinha decidido

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pegar da lama a palavra “negro” para fazer dela um sinal de


congregação, uma bandeira. Havia Léon Damas o guianense. [...] Ele
já era um modelo, era o mais “negro” porque o mais rebelde por suas
ideias, sobretudo por sua vida. [...] Dos três mosqueteiros que
éramos, Léon-Gontran Damas quem primeiro ilustrou a Negritude por
meio de um livro de poemas que trazia o significativo título de
Pigments.

O movimento de negritude foi concebido em um ambiente com


cotidiano marcado pela humilhação, escárnios e zombarias. Diante disso
passaram a dar uma resposta a esse sentimento de marginalização.
Estudantes, da pequena burguesia negra passaram a renegar valores do
‘universo branco’ ocidental e reagir contra a cultura de ‘branquitude’. O discurso
de afirmação racial surge do rompimento desse processo de branqueamento
que os negros eram submetidos, principalmente a pequena burguesia da
negritude como fala Petrônio Dominguez (2005. p. 200) “dar uma resposta a
esse sentimento de marginalização racial e frustação existencial que a
pequeno-burguesia negra resolveu revalorizar sua identidade no “mundo dos
brancos”“.

Ressaltando assim, a emancipação cultural e política em direção a


liberdades individuais, com princípios de nacionalidade com uma história
propulsora da identidade e dignidade do homem negro. Nos primeiros anos a
proposta era essencialmente cultural com a ideia de rompimento a todos os
valores pregados pelo eurocentrismo. À medida que o movimento foi crescendo
a abordagem foi convergindo para outras bandeiras de luta.

O movimento de negritude inserido dentro do pan-africanismo foi


criando identidade própria para além de uma manifestação literária engajada.
Passaram a protestar contra o domínio colonial e requerer a emancipação
política das nações africanas. A fase propriamente militante efetua-se logo
após a Segunda Guerra Mundial, onde de forma mais efetiva militavam pela
independência dos países africanos sob domínio imperialista. Ressaltando
repudio ao eurocentrismo e discriminação racial como já abordamos. A década
de 60 vai ser o ápice dessas articulações, marco importante por ampliar em
torno do movimento organizações políticas e fundar sindicatos negros. Seria
assim o auge com alcance mundial, inclusive a adesão dos países
subdesenvolvidos.

No Brasil, por exemplo, os ideais de negritude chegam durante a


década de 1940, através do teatro negro. José Petrônio Dominguez (2005, p.
204) fala que bem antes disso Luís Gama (1830-1882) já preconizava a
ideologia de negritude, materializada em sua militância e produção literária com
um discurso de afirmação racial.

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A voz no jornal

É dentro desse contexto do pan-africanismo, de movimentos e ações


de combate ao racismo que surge o jornal “L’Etudiant Noir” (O Estudante
Negro) que não evocava nacionalidades separadas, mas estudantes unidos.
Foi editado pela primeira vez em março de 1935 na Universidade Internacional
de Paris por um grupo de estudantes movidos por uma militância com estéticas
voltadas a valorizar a identidade negra. Em seu único número o objetivo era
combater o racismo e as discriminações com ênfase em refletir as relações
entre colonizado e colonizador. René Despestre Apud Dominguez (2005, p.
196) relata como foi concebido o título do periódico:

Debo decir que cuando fundamos L’Étudiant noir yo queria em


realidade llamarlo L’Étudiant nègre, pero hubo gran resistência em los
médios antilhanos... Algunos consideraban que la palavra nègre
resultaba demasiado ofensiva: por ello me tomé la libertad de hablar
de negritud (négritude). Hábia em nosotros uma voluntad de desafio,
uma violenta afirmación en la palavra nègre y em la palavra
négritude.

O periódico foi idealizado quando alguns jovens tomaram consciência


na condição da situação colonial no mundo. Juntam-se Léopold Sédar
Senghor, Léon Gontran Damas, Aimé Césaire entre outros e editaram o jornal.
Tornaram-se, dessa forma, precursores do movimento literário da negritude
com visão militante ativa a ser voz de restauração da identidade dos negros.
Eles formavam um grupo essencialmente militante da causa negra, como
escreveu Damas (1935) no próprio periódico:

...L’Étudiant Noir, jornal corporativo e de combate que tem por


objetivo o fim da tribalização, do sistema clânico em vigor no Quartier
Latin. Deixamos de ser um estudante essencialmente martiniquense,
guardalupeano, guianense, africano, malgaxe, para não ser mais do
que um único e mesmo estudante negro. Não vivemos mais numa
redoma.

L’Étudiant Noir entra como o argumento da negritude entre esses


jovens que se reuniam para debates e saraus na casa de Paullete Nardal.
Sendo ponto de ignição do periódico com curta existência de apenas um único
número, editado em março de 1935, com oito páginas. Era fruto dos encontros

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dos intelectuais que buscavam a valorização cultural fundamentado nas ações


politicas de combate ao racismo fazendo emergir entre eles o sentimento de
emancipação racial. Esse papel combativo no interior da intelectualidade negra
definia o lugar do negro na modernidade numa crescente que mais tarde seria
classificado como movimento de negritude. Essa nova esfera de ação diferia
das posições anteriores, de uma década antes, onde o partidarismo e
discursos políticos eram essencialmente os lugares de luta. A literatura
engajada tornava-se mais um elemento de intervenção.

Paralelo ao jornal o grupo já vinha organizando exposições, reuniões,


assembleias e encontros o que viabilizou a construção de um periódico
engajado. Os seus artigos eram discutidos e reproduzidos em outras
publicações ganhando cada vez mais espaço. O jornal sobreviveu a um
número, mas sua importância e influência foi uma voz repetida em outras
publicações. A sua essência estava cristalizada em cada novo periódico que
surgia depois. Uma voz engajada na luta por uma nova sociedade justa e
igualitária.

Considerações finais

O presente artigo teve como base historicizar as ações de combate ao


racismo, principalmente compreendendo o contexto da concepção do periódico
L’Etudiant Noir, sem se aprofundar nas análises textuais no conteúdo do
periódico em pauta. Sendo o primeiro jornal a concretizar de forma acentuada o
movimento de negritude, conscientizando e positivando o negro. Tendo como
idealizadores os intelectuais que traziam em sua concepção de ação política a
escrita engajada, condição que para o grupo era de liberdade política
interligada à sua comunidade.

O jornal foi concebido dentro do movimento de Negritude, tendo uma


carga semântica que lhe servia de fôlego para as ações politicas do movimento
negro. Multifacetado e polissêmico como é e foi o termo negritude, cumpriu um
papel inovador rompendo com o colonialismo intelectual servindo de modelo
para vários movimentos que concomitantemente estavam inseridos no pan-
africanismo. O que se propunha dentro desse espaço de lutas era a libertação
cultural e política do negro.

Mesmo com o término da revista os idealizadores continuaram com


mesmo espírito fazendo reuniões, publicando em outras revistas inflamando
progressivamente positivar a imagem do negro no mundo. Dois polos
norteavam a revista: a denúncia contra a opressão colonial e do outro lado a
valorização da cultura Afro. A linguagem foi o campo utilizado de forma ampla

1552
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

na divulgação das ideias de reafirmação racial durante todo período de


efervescente produção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2012.

DAMAS, Léon Gontran. Black-Label. Paris: Gallimard (1956).

DOMINGUEZ, Petrônio José. In: África: Centro de Estudos Africanos,


Movimento da Negritude: Uma breve reconstrução histórica. USP. São Paulo.
24 25 26: 193-210,2002/2003/2004/2005.

DU BOIS, W.E.B. As almas da Gente Negra. Tradução de Heloísa Toller


Gomes. Rio de Janeiro, Lacerda ED., 1999.

HERNANDEZ, Leila Leite. África na sala de aula – visita à história


contemporânea. 2ª Ed., São Paulo, Selo Negro, 2008.

L’Étudiant Noir, no 1, ano1, mar/1935.

OLIVEIRA, Waldir F. Léopold Sedar Sénghor e a Negritude. Afro-Ásia, 25-26,


2001, pp. 409-419.

REIS, Raíssa Brescia dos. In: Revista de Ciências Humanas, Ação política
intelectual como modelo de participação negra: o movimento da Négritude
(1930-1960). Departamento de História da UFMG. Viçosa, Vol. 14 Nº 02 jul-
dez. 2014.

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MONTEIRO LOBATO: IDEOLOGIA, RACISMO E DISCURSO EM DUAS


NARRATIVAS

ÍTILA RAIANE DA SILVA (UNEB) 332


CRISTIAN SOUZA DE SALES (UFBA) 333

Introdução

A pesquisa tenciona refletir sobre o processo de silenciamento do sujeito


negro através do poder que a linguagem exerce em duas narrativas de autoria
do romancista, contista e jornalista brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948).
Para tanto, serão analisados, a luz da teoria da Análise do Discurso, dois
contos Negrinha e O Jardineiro Timóteo, da antologia de Negrinha, publicada
em 1920, na qual o escritor reúne vinte e duas estórias de seu repertório não
infantil, mesclando diferentes perspectivas e interpretações sobre o Brasil.
No conto O Jardineiro Timóteo, é possível perceber que o narrador,
embora em terceira pessoa, apropria-se dos estereótipos negativos que
circulavam, em nosso país, durante o processo do escravismo colonial. Modos
de representação do sujeito negro pautados nas teorias raciais importadas da
Europa pelos intelectuais brasileiros no século XIX: o darwinismo, o
evolucionismo, positivismo e o determinismo social, entre outras, conforme
chama atenção Espetáculo das raças Lilian Moritz Schwarcz (1993). A
narrativa é um relato atento aos episódios de violência contra os negros em
nossa sociedade. Contudo, flagramos nos diálogos entre os personagens um
processo de silenciamento do sujeito negro, o que nos faz inferir como o autor
acomoda discursivamente mecanismos de representação presentes em outras
obras canônicas, no contexto histórico mencionado.
Já no conto Negrinha, é impregnado de uma carga emocional que
chama atenção do leitor para as condições de produção do discurso do
narrador em terceira pessoa. A narrativa parece denunciar a violência contra a
criança, notadamente a menina negra. Lobato elabora um retrato negativo da

332
Graduanda em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia- UNEB
333
Doutoranda em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, professora
orientadora na Universidade do Estado da Bahia – UNEB

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sociedade brasileira no século XX, apontando, através de chavões, a hipocrisia


dos personagens. Negrinha é tratada como bicho-gente que suportava
beliscões e palavrórios de todos. Sem identidade e sem voz, a estória enfatiza
que seu corpo negro é utilizado apenas para exercício de castigos físicos na
casa de Dona Inácia.
Os personagens dos contos mencionados são colocados em uma
fotografia da população brasileira das décadas iniciais do século XX. Por meio
de suas vozes e representações, Lobato procura desnudar os bastidores de
uma sociedade que deixa entrever os vestígios de uma persistente mentalidade
escravocrata e racista, mesmo décadas após a abolição. Nos contos Negrinha
e O Jardineiro Timóteo, flagramos o poder que a linguagem exerce, através da
literatura canônica, afirmando e reafirmando ideologias racistas presentes em
outros contextos.
Para Eni Orlandi, em As Formas do silêncio (2007, p. 49), é possível
dizer que a ideologia representa a saturação, o efeito de completude que, por
sua vez, produz o efeito de “evidência”, sustentando-se sobre o já-dito, os
sentidos institucionalizados, admitidos por todos como “naturais”. Na ideologia,
não há ocultação de sentidos, mas apagamento do processo de sua
constituição. Conforme Orlandi, “o trabalho ideológico é um trabalho de
memória e do esquecimento, pois é quando passa para o anonimato que o
dizer produz seu efeito de literalidade, a impressão do sentido-lá”.
Complementando a ideia, Orlandi argumenta que “é justamente quando
esquecemos quem disse “colonização”, quando, onde e por que, que o sentido
de colonização produz seus efeitos”, o que pode observado nas narrativas em
estudo.
Para análise das afirmações acima fez-se necessário a leitura dos livros:
Espetáculo das raças Lilian Moritz Schwarcz (1957); com as teorias raciais do
século XIX .Assim o escritor Monteiro Lobato no século XX , retoma esses
discurso do século anterior e as reafirmam.Utilizando também o livro: Análise
do discurso: reflexões introdutória Cleudemar Fernandes Alves Fernandes
(2008), com: As ideologias; condições de produção; interdiscurso e memória
discursiva.

1. Monteiro Lobato um escritor do século XX

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Falecido em 1948, um dos escritores Pré-modernista mais conhecido na


literatura infantil, foi um dos primeiros autores infantis de nosso país e de toda
América Latina. Suas obras permanecem eternizada, a mais conhecida é o
Sitio do Pica-Pau –Amarelo. Estas são obras infantis: A Menina do Narizinho
Arrebitado (1920), Emília no país da gramática (1934), Histórias de tia Nastácia
(1937), O museu da Emília ( 1938) , o saci (1921) , entre outras. Algumas de
suas obras com temática adulta são: O Saci Pererê(1918), Urupês (1918),
Idéias de Jeca Tatu (1919), O macaco que se fez homem (1923), Mundo da
lua (1923) O garimpeiro do Rio das Garças (1924) . As caçadas de Pedrinho”
com a representação do negro de fora discriminatória. Além das obras já
citadas, entre outras publicações destaco os contos: Negrinha e Jardineiro
Timóteo que estão no livro Negrinha (1943) , que será o corpus dessa
pesquisa.
Nascido em 1882, na cidade de Taubaté: São Paulo, no século XIX,
Monteiro Lobato foi um liberalista que sofreu influências de teorias racistas.
Sua família pertinência a uma elite que era escravocrata. Apesar de Monteiro
Lobato viver um período de transição entre a escravatura e a abolição, ele
tinha a escolha ao invés de representar o negro como inferior, não citá-lo em
sua obra , ou não reproduzir esses discursos , porém a elite se beneficiava
dessa imagem do negro, então será que os escritores estavam comprometidos
com questões sociais ou simplesmente em reproduzir o que fosse favorável a
sua classe?
O período denominado pré-modernista em que os escritores brasileiros
buscavam se modernizar em um foco europeu que era racista. Através dos
contos de Monteiro lobato é possível perceber um escritor do século XX, mas
sua escrita estava fortemente ligada as teorias raciais do século XIX (Nota-se o
Interdiscurso, ou seja, a presença de diferentes discursos de outros momentos
da história, que são “entrecruzados constitutivos de uma formação discursiva
dada; de um complexo dominante.” (FERNANDES,2008,P.49)), período em
que as teorias europeias ganhavam força no Brasil. Os estudiosos dessas
teorias atribuíam qualidades morais, intelectuais e psicológicas de acordo com
os atributos fisiológicos das populações.

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Essas teorias tiveram influencias dos pensamentos: Positivista,


evolucionista; Determinista. Existiam grandes controvérsias entre esses dois
pensamentos, a teoria determinista considerava os negros como o “atraso”,
raças inferiores. Acontece que essas teorias não têm teor cientifico porque,
para considerar um sujeito menos desenvolvido intelectualmente pela cor de
sua pele, seria pensar que os genes da pele determinariam o cérebro,
acontece que os genes que determinam a cor da pele de uma pessoa não têm
nada haver com os genes que determinam a formação do cérebro (Schmidt,
2005, p.207). Por outro lado, a visão positivista tentava enxergar alguma
maneira de fazer a sociedade brasileira progredir, “evoluir”, aqui entra a teoria
do branqueamento, que consiste da marginalização do negro e a introdução no
Brasil de populações consideradas brancas (imigrantes), para purificar o
sangue e esperavam que no futuro houvesse mais brancos.
De acordo com Schwarcz (1957), essas discussões que ocorria na
Europa chegaram ao Brasil sem nenhum espírito crítico, o brasileiro não estava
preparado para questionar a cientificidade das teorias, que não tinha nada de
cientificas. E um século depois Monteiro Lobato traz implicitamente para seus
contos esse discurso:(“a palavra discurso, epistemologicamente, tem a ideia de
curso, percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o
homem falando.”(FERNANDES, 2008, p.14)), utilizando–se da figura, ou seja,
de uma voz criada a partir de um meio manipulador, que queria a aceitação
daquelas ideias pelo sujeito negro, para introduzir: costumes, valores,
memórias, através desta representação.
uma cultura nacional é um discurso- um modo de construir sentidos
que influenciam e organiza tanto nossas ações quanto a concepção
que temos de nós mesmo. As culturas nacionais ao produzir sentido
com os quais podemos identificar constroem identidade. (HALL, 2011
p.51).

Assim o discurso de nação e sujeito é criado, através dos símbolos, o


próprio sujeito busca se reconhecer nessa cultura. O negro, por exemplo, era
considerado outra “raça” (Termo que advém de uma determinada condição
produção , pois as palavras não tem sentido em si mesma, há uma carga
ideológica e discursiva no termo), como se existisse a raça branca e a raça
negra. A história brasileira camuflou durante séculos a importância dos negros
1557
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na sociedade brasileira, apagou as lutas sangrentas que eles enfrentaram, os


negros não foram passivos com a escravização.

2.Tipos de Silenciamento Ligados as Ideologias

Ao analisar o conto Negrinha de Monteiro Lobato, fica evidente um


discurso manipulador e preconceituoso, no qual o escritor ao utilizar alguns
termos demonstra prosseguir naquele pensamento apresentado anteriormente,
ou seja, ideais dominadores sobre um povo com força física e intelectual, mas
que estava saindo de um sistema opressor, no caso, a escravização tanto
através da violência física, no século da escravização, quanto no discurso
dominador depois de um século de abolição. Os termos utilizados no conto
são:

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de
carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-
choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a
mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia
andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo
apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-
no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho
só na vida — nem esse de personalizar a
peste…(LOBATO,2008,p.20)

A personagem negrinha é aparentemente colocada no centro da


história, mas os atributos e característica desse sujeito representado no conto
são: depreciativos, motivo de chacota, sem nenhum valor, ou seja, Negrinha é
como um objeto da casa, que aparece sempre pela perspectiva de Inácia:
“branca, gorda, rica e ótima”, muitas contradições que demonstram o
silenciamento que Lobato traz do povo negro, pois este não acontece
simplesmente pela falta de fala da personagem negra, porque mesmo que ela
se expressasse ativamente no texto, os valores ideológicos implícitos nos
termos que definem Inácia, na sociedade, já anulariam a fala de Negrinha,
levando em conta nesta questão de silencio, o que diz Orlandi(2007):

“O silêncio não é a ausência de palavras. Impor o silêncio não é calar


o interlocutor mas impedi-lo de sustentar outro discurso. Em
condições dadas, fala-se para não dizer ( ou não permitir que se
digam ) coisas que podem causar rupturas significativas na relação
de sentidos. As palavras vêm carregadas de silêncio (s). ( ORLNDI,
2007, p.102) .

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Desta forma não há o discurso de Negrinha , em contraste com o de


Inácia, assim o não dito é significativo, pois impõe ao leitor a impressão de que
era algo aceito na sociedade daquela época nos anos pós-abolicionista, até
porque o autor do conto imprime ao texto um tom de zombaria a atos de
crueldade sem levar em conta que o sujeito é representado por uma criança,
assim fica evidente que a única questão para tratá-la desta forma cruel, é a cor
da pele e as marcas de um passado sem prestígio, que o ser negro carrega.
O texto ainda é mais desagradável, por tratar-se da personagem ser
uma criança, está em uma condição de vulnerabilidade em relação a Inácia,
neste ponto pode-se questionar a noção de silenciamento provocado, junta-se
ao medo a falta de conhecimento o qual lhe é inacessível, porque Inácia lhe
nega o crescimento formativo (intelectual), fica evidente a noção de poder
exercido por um discurso dominador, autoritário, assim Orlandi(2007) coloca:
Se é assim teoricamente, a situação típica da censura traduz
exatamente essa asfixia: ela é a interdição manifesta da circulação do
sujeito, pela decisão de um poder de palavra fortemente regulado. No
autoritarismo, não há reversibilidade possível no discurso, isto é, o
sujeito não pode ocupar diferentes posições: ele só pode ocupar o
“lugar” que lhe é destinado , para produzir os sentidos que não lhe
são proibidos. A censura afeta, de imediato, a identidade do
sujeito.(ORLANDI,2007,p.79)

Então a passividade de negrinha no conto, está ligada também a


condição ideológica do sujeito, pela condição dele em relação ao contexto.
Esse silenciamento provocado refere-se também ao estado dos negros no
Brasil, que por mais que tivessem um conhecimento próprio, tivessem suas
sabedorias, sustentavam com a força do seu trabalho o país, eles também
estavam em uma condição de vulnerabilidade em relação ao sistema
escravocrata ,sustentado ideologicamente por teorias racistas, foram lhes
negado o direito a uma educação que os levassem agir contra o sistema pelo
sistema, isto foi implantado culturalmente, tradicionalmente e depois da
abolição, os reflexos ainda visíveis desta forma de tratar as pessoas negras, no
caso negando-lhe a uma educação, ficou enraizado na sociedade e no modo
de ver o negro.

3. Discurso Manipulador: “Passividade do Negro”

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Estas questões ideológicas e culturais que são construídas para o sujeito negro
é perceptível também em Jardineiro Timóteo, assim a construção da imagem
do negro, onde o discurso do próprio negro, ou seja, a fala de Timóteo
juntamente com a descrição que se narra sobre ele, são utilizadas para
reafirmar um discurso em que o negro seja: ingênuo, preso ao sistema
escravocrata mesmo após a abolição, sem vida própria, um sujeito que tem
uma mentalidade que não corresponda com sua idade cronológica, ou seja, o
personagem dialoga com plantas como se fossem gente, assim, os “: Espaço
de memória como condição do funcionamento discursivo constitui um corpo
sócio-historico-cultural. Os discurso exprimem uma memória coletiva na qual
os sujeitos são inscritos. (FERNANDES,2008,P. 49), para criar uma submissão
e aceitação daquela condição de vida, como em:
– Tenha paciência, minha negra! – conversa ele com as roseiras de
setembro, teimosas em espichar para o céu brotos audazes. Tenha
paciência, que aqui ninguém olha de cima para o Sinhô-velho.(...)
Ele era um homem simples, pouco amigo de complicações. Que
fique ali sozinho com o periquito e as irmãzinhas do cravo.
– Este é o de Sinhazinha; e como ela um dia há de casar, fica a par
dele o canteiro do Sinhô-moço.(..)Tal qual a moça, que desde menina
se habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos
escravos, chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea,
nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura!
Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as
algemas da doce escravidão?( LOBATO,2008,p.54)

Assim, o autor neste conto traz implicitamente uma ideologia


manipuladora onde o negro seria visto como “passivo”, “sem perspectiva”, e
Timóteo traz, justamente, essa ideia através de sua fala, ou seja, Lobato se
utiliza do personagem negro para inserir um discurso da sociedade branca.
Assim ao contrário da obra de Negrinha, em Timóteo o escritor traz, além do
discurso do branco a respeito de Timóteo, como também, ele próprio se
expressa quanto ao seu modo de ver a vida, desta forma aparentemente não
teria como haver um silenciamento, mas por outro lado isso acontece em
Jardineiro Timóteo, pois quando o autor escolhe utilizar a própria fala do negro
não é inocentemente, pois a fala do personagem negro anula e desconstrói os
valores, o orgulho, a identidade do negro, deixando através da ação de
Timóteo uma falsa ideia de “passividade”.
Fica evidente que o personagem mesmo tendo a carta de alforria
prefere a “doce escravidão”, este é um discurso que exclui outros discursos, no

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caso o do sujeito negro. Esta maneira como Lobato coloca o negro se torna
mais fácil manipular, interiorizando nos sujeitos esse discurso que vê o negro
por uma única perspectiva, ou seja, pela visão da sociedade branca. Como diz
ORLANDI (2OO8):
Como o silêncio, ultrapassa-se o sentido do não dito como aquilo que
se pode dizer mas não é preciso, ou o não dito que exclui,para atingir
o fundacionamento da significação em que estão em jogo a
constituição mesma do processo de significar e o ponto de efeito
discursivo de onde faltam as “outras” palavras. ( ORLANDI
,2008,p.170).

Segundo Marx, o homem faz a história, mas apenas sob as condições


que lhe são dadas, essa relação de ideologia dominante fica evidente na obra
de Lobato, onde faltam as “outras” palavras, ou seja, o negro está
aparentemente no centro da história, mas o discurso é totalmente contrário ao
modo dele contemplar a si, do olhar para a sua cultura, por outro lado, na obra,
esse olhar está justamente em desconstruir esta contemplação de si, com
certeza se ao invés de se utilizar a ótica elitista e branca, mas fosse o olhar do
negro sobre estas questões, o texto teria outras características que não
ocultaria os sentimentos do negro pela escravização, e com certeza não seria
uma “doce escravidão”, mas uma monstruosa escravização, um período de não
aceitação, pois muitos negros preferiam a morte, muitas mulheres abortavam
os seus filhos para que estes não nascessem cativos, os negros não foram
passivos, mesmo que alguns historiadores e a literatura do século XX tentem
apagar do processo histórico brasileiro os reais embates que estes
enfrentaram.
Os negros lutaram até o fim, eles incendiaram senzalas, fugiam, eles
tinham mais horror à escravidão do que a morte. Mesmo com as condições que
lhes foram negadas pela sociedade brasileira, eles formaram uma sociedade
muita mais justa, através de quilombos que mantinham a todos em situação de
igualdade, os negros invadiam as senzalas para resgatar outros prisioneiros,
eles se mantinham no quilombo com o seu trabalho. Então o escritor para
manipular e criar outra imagem do negro para a sociedade brasileira como
também para o próprio negro, criando uma imagem estereotipada, como se
este, pudesse amar um sistema tão cruel e violento que foi a escravização.
Esse negro que é “inserido” por Lobato em sua obra na verdade é só
um corpo “negro”, mas com ideologias do pensamento branco, ou seja, esse

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sujeito, através de sua fala e de suas expressões, nega a sua cultura, seus
valores, e nega o que hoje no século XXI chamamos de identidade. Assim
discursos como este de Lobato, foram se reproduzindo e ao longo dos séculos
foram se interiorizando no sujeito, e nos dias atuais vemos os impactos desses
discursos na vida do negro.
Infelizmente esses discursos que nega a identidade, foram se
reproduzindo através da literatura, da mídia, da concepção brasileira sobre a
sociedade e os valores dessa sociedade. A escravização deixou marcas
profundas pelos discursos que camuflaram e anularam um povo, que sustentou
a economia brasileira durante séculos, esses discursos ainda estão fortemente
enraizado na sociedade brasileira, e foram se interiorizando na própria
identidade do negro. Porque se legitimou uma única cultura, a branca, mas
aparentemente vivemos em um país da diversidade cultural, um Brasil
acolhedor, mas no fundo a história e a literatura revelam um país que mesmo
no século XXI trás o racismo como herança cultural. Segundo Gilroy,1992, p.87
apud ( HALL,2011,p.64)
Enfrentamos de forma crescente, um racismo que evita ser
reconhecido como tal, porque é capaz de alinhar “raça”com
nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Um racismo que tomou
uma distância necessária das grosseira ideias de inferioridade e
superioridade biológica busca,agora, apresentar uma definição
imaginária da nação como uma comunidade cultural unificada. Ele
constrói e defende uma imagem de cultura nacional homogênea na
sua branquidade, embora precária e veneravelmente ao ataque dos
inimigos internos e externos.. Este é um racismo que responde à
turbulência social e política da crise através da restauração da
grandeza nacional da imaginação. Sua construção onírica de nossa
ilha coroada como eticamente purificada propicia um especial
conforto contra a devastação do declínio (nacional).

Chega a ser ridículo como uma sociedade que se considerava tão


moderna tenha pensamentos tão irracionais a ponto de violar um sujeito, uma
cultura. Será que os europeus ao introduzirem teorias racistas no Brasil, não
sabiam da não cientificidade dessas teorias? Acontece que para eles era muito
mais lucrativo que essas teorias fossem vistas como realidade absoluta, e
como eles manteriam esse sistema econômico. Com os brasileiros
economicamente mais favorecidos não foi diferente, ou seja, a elite se
beneficiou dessas ideologias desumanas durante séculos.
Porque os escritores, consideradas as pessoas representantes do
conhecimento, reproduziam esses pensamentos alienantes que consideram o

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negro com o cérebro menos desenvolvido, simplesmente pela Cor da pele?


Acredito que pensar que eles acreditavam nessas teorias seria muita
ingenuidade para pessoas intelectuais, acontece que o sistema capitalista é
impiedoso. E para legitimar uma cultura como “boa”, é preciso demonizar a
outra, ou como se justificaria esses atos cruéis que submeteram os negros,
primeiro tentou-se a religião para justificar sua violência com os negros, mas
tarde eles tentam a justificativa pela ciência, mas nenhum desses argumentos
são as reais motivações.

Considerações Finais

Fica evidente que a construção da imagem do negro de forma


depreciativa não foi pela questão religiosa, nem científica, nem cultural, estes
foram justificativas descabidas para argumentar um sistema de alta-
lucratividade tanto no Brasil quanto na Europa. É chocante, o Brasil depois de
passar por um sistema opressor pela colônia portuguesa, reproduziu da mesma
forma violenta com o “outro”, que na verdade este outro tem uma história bem
semelhante a do Brasil, uma história de colonizados. E a literatura foi um
veiculo de se propagar as ideologias da época, mas os escritores poderiam
está menos preocupados em imitar um padrão europeu, e em colocar a
questão econômica a cima do sujeito, ou seja , não se preocupava com o
social.
Monteiro Lobato poderia ter rompido, mas reproduziu esta imagem que
colocava o negro na condição de “objeto”, “coisa sem valor”. Muitos estudiosos
podem argumentar que foi a sociedade em que ele estava inserido que o
condicionou a escrever desta forma, ou que não tinha outras possibilidades,
porém na argumentação poderia ter dito que era para sustentar o sistema, era
menos desumano para a sociedade branca ser cruel, mas ter justificativas
como: “O cérebro deles negros são menor”, “ele tem mais resistência para o
trabalho braçal”, ou seja, parece menos violento, utilizar-se desse discurso. Ao
se construir esses discursos, silenciou muitos outros do negro, será que a
literatura do século XIX e XX trás o discurso do negro, será que os negros não
tinham nada pra contribuir, ou seja, seu próprio ponto de vista? Acontece que
era justamente está imagem do negro sem voz, sem conhecimento que era

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conveniente no momento, através desta imagem se “legitimava” todas as


justificativas do sistema opressor.
E no século XXI como estas questões são compreendidas?
Infelizmente esse discurso apesar de parecer do século passado ainda não foi
superado. São mais de um século de literatura que reproduziam esse discurso,
além da mídia: televisão, internet, entre outras que são mantidas por um
mesmo sistema, que quer legitimar uma padrão fenótipo, estético de acordo ao
europeu, a industria tem investido pesado nesse padrão. São formas sutis e
muitas vezes implícitas.
Aparentemente temos os mesmo direitos, mas o Brasil trás em seu
DNA um passado de negação da sua própria cultura, esses discurso sutilmente
foi se interiorizando na criança negra, que foi se reproduzindo. Apesar de a
literatura negra brasileira ter um papel fundamental de desconstruir esses
estereótipos, pois mostra o discurso da perspectiva do silenciado, mas ainda
assim a maioria não são cânones, são invisibilizados apesar da população
negra no Brasil ser maioria.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introducão a analise do discurso .


Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.- 2ª ed.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária uma introdução. São Paulo: Beca


produções, 1999.

FERNANDES,Cleudemar Alves. Análise do discurso : reflexões


introdutórias. Sãopaulo:Editora Claraluz,2008. 2ªed.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós –modernidade. ; tradução Tomaz


Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro-11.ed.,1.reimp-Rio de Janeiro: DP e A,
2011.

LOBATO, Monteiro. Neginha. São Paulo: Globo,2008.1º edição


ORLANDI, Eni PUCCINELLI. As forma do silêncio. Campinas , SP: editora da
Unicamp, 2007.6ª Ed.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica.São Paulo: editora nova


geração,2005.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e


questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
Referências webgráficas
http://blogdositiodopicapauamarelo.blogspot.com.br/2013/05/lobato-e-
escravidao.html
http://Globo.com/ sociedade/educação/MEC-rejeitou-parcerdo-CNE-caçadas-de
–Pedrinho-acusado-de-rascista.html.
WWW.algosbre.com.br/literatura/pré-modernista- e algumas de -suas obras

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GRUPO DE TRABALHO: BRASIL E PAÍSES DA ÁFRICA: PARCERIA SUL-


SUL PARA A COOPERAÇÃO E PARA O DESENVOLVIMENTO

PROPOSITORES: ACÁCIO SIDINEI ALMEIDA SANTOS (UNILAB), JUVENAL


CARVALHO (UFRB),WILSON ROBERTO DE MATTOS (UNEB)

Ementa:

Apesar de a África ter se tornado um dos principais temas da agenda externa

do Brasil, ainda é escassa a produção científica sobre esta temática nas

instituições brasileiras de ensino e pesquisa, especialmente no que se refere

ao universo da cooperação sul-sul. Esta situação contrapõe-se ao crescente

interesse que os temas ligados às relações Brasil /África têm conhecido ao

nível internacional, testemunhado pelo número de pesquisas desenvolvidas

nos países do norte. Nos últimos 10 anos os gastos do Brasil em projetos de

cooperação técnica nos países africanos tiveram um aumento de 40 vezes e

atingiram o recorde de US$ 20,2 milhões em 2010 e atualmente governo da

presidente Dilma Rousseff está implementando uma agenda de ações para

ampliar as relações do Brasil com a África. Estão em jogo o aumento do

comércio e dos investimentos brasileiros no continente e também o reforço da

cooperação Sul-Sul. O ST tem por objetivo reunir pesquisadores que

desenvolvem pesquisas e tenham interesse em temas ligados à política

externa do Brasil para a África, especialmente, mas não exclusivamente, nas

áreas da educação (PEC-G e PEC-PG), saúde, migração, segurança alimentar,

combate à pobreza, agricultura, trabalho, sociedade civil, internacionalização

de empresas brasileiras e dívida externa. Esperamos que os pesquisadores

reunidos no ST contribuam para a criação, de um “grupo multidisciplinar de

reflexão sobre as relações Brasil / África” no interior da ABPN.

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COOPERAÇÃO BRASIL-GUINÉ BISSAU NA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO


PERÍODO DE 2003-2013: O CASO DO PROGRAMA ESTUDANTE-
CONVÊNIO DE GRADUAÇÃO (PEC-G).

LORENA DE LIMA MARQUES (UFBA) 334

Resumo

O presente artigo tem como objetivo investigar as práticas de Cooperação Sul-


Sul entre o Brasil e a Guiné Bissau. Para tal, escolheu-se a modalidade de
cooperação acadêmica e o Programa Estudante-Convênio de Graduação
(PEC-G), percebidos como uma forma de aproximar os países e integrar os
povos, promover valores comuns e construir relações mais duradoras entre os
cooperantes. Desta forma, analisaremos a forma como está desenhada a
cooperação brasileira para a Guiné Bissau, as principais áreas, o histórico
desta aproximação e a relevância da cooperação acadêmica e do PEC-G para
ambos os países.

Introdução

A Cooperação Sul-Sul, uma das vertentes da Cooperação Internacional


para o Desenvolvimento (CID) tem constituído eixo central no processo de
projeção internacional do Brasil. Esta modalidade de cooperação tem se
apresentado desde os anos 70 como alternativa e complementar, mas não
excludente, ao modelo de cooperação até então vigente, o modelo Norte-Sul,
institucionalizado em um contexto de pós-Segunda Guerra Mundial e tido por
muitos analistas e autores como um modelo de cooperação top down,
verticalizado e pautado nos interesses dos países desenvolvidos (MILANI,
2012). A Cooperação Sul-Sul (doravante CSS) fundamenta-se no incentivo às
relações entre os países em desenvolvimento a fim de que pudessem cooperar
para resolver os seus próprios problemas com base em identidades
compartilhadas, esforços comuns, interdependência e reciprocidade (PUENTE,
2010; MILANI, 2012).

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o


Desenvolvimento (PNUD) a CSS constitui-se como:

A broad framework for collaboration among countries of the South in


the political, economic, social, cultural, environmental and technical
domains. Involving two or more developing countries, it can take place

334
Mestranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA.

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on a bilateral, regional, subregional or interregional basis. Developing


countries share knowledge, skills, expertise and resources to meet
their development goals through concerted efforts. Recent
developments in South-South cooperation have taken the form of
increased volume of South-South trade, South-South flows of foreign
direct investment, movements towards regional integration,
technology transfers, sharing of solutions and experts, and other
forms of exchanges (Unidade Especial de Cooperação Sul-
Sul/PNUD) 335.

A cooperação entre o Brasil e a Guiné Bissau ocorre, sobretudo, no


âmbito técnico, com destaque para o campo da educação e formação. A
cooperação técnica é a principal forma de relação entre o Brasil e os países
africanos, entretanto, como observa M’BUNDE (2015) em países como Angola,
Líbia e Moçambique são relevantes também as ações no campo do
agronegócio, investimentos, trocas comerciais, apesar de não serem
contabilizados pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC) como ações de
Cooperação para o Desenvolvimento e, por isso não entram nas contas do
governo brasileiro como CSS.
Apesar da cooperação técnica internacional do governo brasileiro não se
efetivar em bases comerciais, interesses econômicos e a solidariedade
aparecer como elemento motivador na maior parte dos discursos, esta não é
desprovida de dinâmicas de poder e de interesses outros que não apenas a
promoção do desenvolvimento, pois a cooperação técnica pode originar novas
frentes de relação entre o Brasil e os países parceiros, sejam elas políticas,
econômicas, comerciais ou financeiras (IPEA, 2010). Este fato ocorre, por
exemplo, em Moçambique onde a cooperação técnica e a ampliação das
relações políticas abriu caminho para que as empresas brasileiras se
instalassem no país, a exemplo da Vale, da Odebrecht, da Camargo Corrêa e
OAS, além de grupos voltados ao agronegócio como a FGV Agro, o Grupo
Pinesso, entre outras (ROSSI, 2015).
De acordo com relatório do Instituto de Pesquisa Econômica e
Estatística (IPEA, 2013, p. 27), intitulado Cooperação Brasileira para o
Desenvolvimento Internacional (COBRADI), a cooperação técnica é uma
modalidade de cooperação que visa:
À capacitação de indivíduos e ao fortalecimento de organizações e
instituições no exterior. A essência de seu processo é a transferência
e o compartilhamento de conhecimentos e tecnologias nacionais com

335
http://ssc.undp.org/content/ssc/about/what_is_ssc.html. Acesso em: 02 de junho de 2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

potencial de adaptação, absorção e geração de impactos positivos no


desenvolvimento autônomo de outros países. Fundamenta-se na
experiência acumulada por instituições governamentais nacionais na
formulação, no planejamento, na execução e no acompanhamento de
políticas públicas setoriais e intersetoriais no plano doméstico,
reconhecidas como inovadoras no plano internacional. A demanda
externa é condição indispensável para o envolvimento do governo
brasileiro nesta modalidade.
No que concerne à cooperação educacional, esta pode ser de caráter
técnico, que visa à formação de quadros eminentemente profissionais ou
acadêmica, que visa exclusivamente à formação acadêmica complementar de
estrangeiros nos âmbitos da graduação e da pós- graduação. Dados do IPEA
(2013) revelam que a cooperação educacional totalizou aproximadamente R$
63 milhões. Deste total, R$60 milhões (97%) foram destinados à cooperação
acadêmica, enquanto a cooperação técnica somou aproximadamente R$2
milhões (3%). Ademais, entre 2005-2009 a COBRADI alcançou a cifra de
aproximadamente R$2,9 bilhões, sendo que 76% deste valor corresponderam
a contribuições para organizações internacionais e bancos regionais, cabendo
às demais modalidades (assistência humanitária, bolsas de estudo e
cooperação técnica) quase 24% do total. Desses 24% restante, 10% são
destinados às bolsas de estudo para estrangeiros, a segunda modalidade que
mais destina recursos para a cooperação (IPEA, 2010).
Para melhor compreendermos a relevância da cooperação acadêmica
entre o Brasil e a Guiné Bissau, o próximo item busca conhecer e refletir sobre
a realidade social e política deste país africano e a sua relação com o Brasil, a
fim de compreender as limitações que tornam fundamentais os acordos de
cooperação acadêmica como maneira de formar e qualificar os quadros
guineenses.
Guiné Bissau: a realidade da terra e as relações com o Brasil
A Guiné Bissau é um país situado na África Ocidental e que faz fronteira
ao norte com o Senegal, ao sul e ao leste, com a Guiné Conacri e a oeste com
o Oceano Atlântico. Está entre os países com menor Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo (0,396) 336, que o coloca na 177º
posição num total de 187 países. Possui uma população de 1.520.830337

336
Disponível em: http://www.pnud.org.br/arquivos/RDH2014pt.pdf. Acesso em: 28 de
novembro de 2015.
337
Disponível em: file:///C:/Users/Acer%20Espire/Downloads/ddi-documentation-portuguese-
9.pdf. Consultado em: 23 de novembro de 2015.

1569
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

habitantes distribuídos em mais de 30 grupos étnicos, entre eles: Balantas,


Fulas, Mandingas, Manjacos, Pepeis, Beafadas, Bigajós, Mancanhas, Felupes,
Nalus. Além das línguas nativas faladas por cada grupo e o português (língua
oficial), existe o kriol, utilizado pela população em geral como primeira língua. O
‘‘crioulo da Guiné Bissau’’ é resultado dos contatos entre os povos da terra e o
colonizador português.

A sua construção enquanto Estado soberano é recente, tendo alcançado


a independência em 24 de setembro de 1973 (declarada unilateralmente, mas
reconhecida por Portugal apenas em 10 de setembro de 1974), após onze
anos de luta armada contra o colonialismo português. A luta armada foi iniciada
pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde em 1963,
fundado e presidido por Amilcar Cabral até o ano de sua morte, 1973.
A independência, todavia, não representou estabilidade e
desenvolvimento para o novo Estado; os anos que se sucederam, sobretudo
após 1980, foram de violência e instabilidade, com uma série de golpes e
tentativas de golpes de Estado. Mesmo hoje, 42 anos após a conquista da
independência política, o Estado e o povo da Guiné Bissau agonizam com uma
economia em colapso, um Estado frágil, pobreza extrema, desemprego, baixa
expectativa de vida, altos níveis de corrupção e instabilidade política.
Desde o ano de 1980, quando se perpetrou o primeiro golpe de Estado
na Guiné Bissau, liderado por João Bernardo Vieira (o Nino Vieira) e
denominado de ‘‘Movimento Reajustador’’, o país vivencia uma espiral de
conflitos que impede o desenvolvimento social, econômico e político. Amado
(2005) considera que as suas causas (profundas e multifacetadas) reportam ao
período de luta pela libertação nacional e às contradições mal resolvidas,
relacionadas às expectativas criadas pelos combatentes durante as lutas de
libertação. Anos após o golpe liderado por Nino Vieira, já na década de 90, teve
início o processo de ‘‘transição democrática’’ por exigência das instituições
financeiras internacionais, nomeadamente o Fundo Monetário Internacional
(FMI) e o Banco Mundial (BM) como condicionante da manutenção da ajuda
externa, haja vista a parceria do governo com essas instituições por meio dos
Programas de Ajustamento Estruturais (PAE). Em 1994 foram realizadas as
primeiras eleições multipartidárias com a vitória de Nino Vieira.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em junho 1998 eclodiu a Guerra Civil que durou até maio de 1999 e
opôs o então residente Nino Vieira ao Chefe de Estado Maior, general das
forças armadas, Ansumare Mané. Este conflito traduziu as dificuldades do país
em conciliar os anseios civis e os militares que remontam às lutas de libertação
nacional e que ainda hoje criam sentimentos de instabilidade no país; ademais,
destruiu as incipientes infraestruturas e afetou negativamente as esferas
sociais, econômicas, políticas e ainda hoje suas consequências são
percebidas.

As eleições seguintes (presidencialistas e legislativas), convocadas e


realizadas ainda em 1999 confirmaram a vitória de Kumba Yalá do Partido da
Renovação Social (PRS) em detrimento do PAIGC que estivera no poder
desde a independência. Kumba Yalá foi deposto em 2003, sendo em seguida
reeleito Nino Vieira. Este governou até 2009, quando foi assassinado. Em abril
2012, a Guiné Bissau enfrentou um novo golpe de Estado orquestrado por
militares que destituíram o presidente interino Raimundo Pereira e o Primeiro-
Ministro Carlos Gomes Júnior. Dois anos depois, os guineenses voltaram às
urnas e escolheram como presidente José Mario Vaz, movidos pela crença na
reconstrução da liberdade conquistada a duras penas em 1973, nas
possibilidades de mudanças políticas, fortalecimento das instituições
democráticas e do estado de direito, no fortalecimento do sentimento nacional
e, por conseguinte, na possibilidade de desenvolvimento econômico e social.

Depois da independência, a Guiné Bissau se confrontou com a


carência de quadros qualificados para levar a diante a construção do Estado e
da nação, já que o colonialismo português deixou como saldo o índice de 98%
de analfabetismo (CÁ, 2009), poucas e ineficientes escolas, poucos
diplomados com curso superior e nenhuma instituição de ensino superior, fatos
que constituíam obstáculos para a formação interna dos guineenses. A
cooperação internacional no domínio da educação tornou-se então uma
necessidade. Os acordos bilaterais eram firmados com países parceiros,
sobretudo União Soviética e os países da Europa Oriental, Cuba, Portugal e
Brasil para o envio de estudantes guineenses para a formação no exterior. É
nesse contexto que a Guiné Bissau e o Brasil realizam acordos de cooperação
educacional, cultural e científico responsáveis pela presença de estudantes

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guineenses nas Instituições de Ensino Superior do país, por meio do Programa


Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G).

Apesar de remontar ao século XV e se inserirem em um contexto de


tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, as relações Brasil-Guiné Bissau
começaram a ser pensadas estratégica e sistematicamente a partir dos anos
de 1970, quando finda a ambiguidade que permeou as relações afro-brasileiras
desde 1953, ano em que foi assinado o Tratado de Amizade e Consulta com
Portugal e que previa a consulta mútua entre as duas partes em assuntos
internacionais. Por isso, até a década de 1970, o Brasil apesar de recriminar o
colonialismo na África e na Ásia, não adotou ações efetivas a favor da
descolonização portuguesa (RIZZI, 2012). Este quadro mudou em 1974,
quando o Brasil, primeiro país fora do bloco socialista, reconheceu a
independência da Guiné Bissau. Neste mesmo ano foi aberta a Embaixada do
Brasil em Bissau.

Rizzi (2012) observa que o reconhecimento foi positivo para a imagem


do Brasil e o posicionamento político do país no sistema internacional daquele
momento; além disso, esta postura, de acordo com a autora, concretizou a
aproximação do Brasil com a Guiné Bissau e com o Continente de uma forma
geral. Os anos seguintes foram de contatos diplomáticos e de missões técnicas
da Guiné Bissau em busca de apoios aos problemas enfrentados pelo país e
de cooperação, e também de delegações brasileiras com o objetivo de
vislumbrar as demandas guineenses na área de cooperação. Esses contatos e
visitas resultaram no Acordo Básico de Cooperação Técnica e Científica
assinado em 1978 que até hoje é a base legal que rege as relações bilaterais
entre o Brasil e a Guiné Bissau e possibilitou o início das atividades do PEC-G
para os estudantes guineenses (RIZZI, 2012).

Os anos de 1990, de forma geral, representaram a diminuição


acentuada dos contatos entre o Brasil e a Guiné Bissau, devido ao
aprofundamento da crise da dívida externa e das reformas neoliberais em
ambos os países, o aprofundamento das relações com os países
desenvolvidos. Ademais, a Guiné Bissau passava por um período de
instabilidade política, social e de guerra civil (1998-1999). Nos anos 2000,

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

sobretudo a partir de 2003 com o Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-
2010) a política externa brasileira entrou em uma nova fase, baseada no
aprofundamento das relações bilaterais com os países em desenvolvimento e,
por conseguinte, com a Guiné Bissau, por meio da CSS e da cooperação
técnica. (RIZZI, 2012).

Considera-se que a cooperação, sobretudo na vertente técnica é a


base da política externa do Brasil para a Guiné Bissau, assinalada por cinco
projetos em execução, nas áreas de agricultura e desenvolvimento social,
educação e saúde 338. A cooperação brasileira também teve papel importante
no processo de reabertura, em 2013, da Universidade Amilcar Cabral 339, por
meio do Programa de Trabalho em Matéria de Educação Superior e Ciência340
financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) que tinha como objetivo auxiliar na qualificação, entre 2007
e 2010 de profissionais da UAC, além de promover projetos conjuntos de
pesquisa, apoiar programas de pós-graduação para qualificá-los, prestar
consultoria técnica, e dessa forma, apoiar a reabertura da universidade.

O ensino superior na Guiné Bissau, mesmo nos dias atuais enfrenta


problemas como: fraca qualidade do corpo docente, já que funcionam na sua
maioria com docentes licenciados e conta com um baixo número de mestres e
doutores; baixo investimento do Estado; problemas de ordem financeira, baixos
salários pagos aos professores, infraestrutura precária (AUGEL, 2009). Por
essas razões, a formação no exterior ainda é uma realidade e uma
necessidade para o povo guineense como forma de obter um diploma de nível
superior.

A cooperação acadêmica do Brasil

O PEC-G é uma das ações de cooperação mais antigas realizadas


pelo governo brasileiro e que ainda se encontra em andamento. Surgiu na

338
Disponível em: http://www.abc.gov.br/projetos/pesquisa. Acesso em: 28 de novembro de
2015.
339
Primeira Universidade Pública do país; teve suas atividades iniciadas em 2003, porém suas
atividades foram suspensas em 2008 sob a alegação do governo de impossibilidade de manter
a única universidade pública do país
340
Disponível em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-internacionais/bilaterais/2007/b_7.
Consultado em: 5 de novembro de 2015.

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década de 20, de modo pontual e no a ano de 1964 foi sistematizado sob o


nome de Programa Estudante-Convênio de Graduação, com o objetivo de
organizar a vinda de estudantes estrangeiros ao Brasil. É fruto de uma
articulação do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério das Relações
Exteriores (MRE).

OS PALOP 341 são a origem da maior parte dos estudantes do PEC-G,


com destaque para Cabo Verde, Guiné Bissau e Angola que respectivamente
contaram com 2.657, 1336 e 583 alunos selecionados 342. Participam
atualmente do programa 56 países, sendo 24 da África, 25 das Américas e 7
da Ásia. O decreto nº 7.948, de 12 de março de 2013 dispõe sobre o PEC-G e
torna explícito que:

O PEC-G constitui um conjunto de atividades e procedimentos de


cooperação educacional internacional, preferencialmente com os
países em desenv

olvimento, com base em acordos bilaterais vigentes e caracteriza-se


pela formação do estudante estrangeiro em curso de graduação no
Brasil e seu retorno ao país de origem ao final do curso (...). Destina-
se à formação e qualificação de estudantes estrangeiros por meio de
oferta de vagas gratuitas em cursos de graduação em Instituições de
Ensino Superior - IES brasileiras 343.

O acordo que possibilitou o início das atividades de cooperação


Brasil-Guiné Bissau, o Acordo Básico de Cooperação Técnica e científica foi
assinado em 1978, no bojo da aproximação entre os dois países intensificada
em 1974 com o reconhecimento brasileiro da independência deste país
africano. Neste contexto de busca pela universalização das relações
internacionais do Brasil, em uma fase de Détente, distensão da Guerra Fria e
busca por maior poder de barganha e autonomia do país em um cenário
marcado pela emergência dos novos Estados africanos e asiáticos recém
independentes, a CSS apresentou-se como instrumento estratégico para atrair
e aprofundar as relações com os países do eixo sul que se tornavam
independentes (M’BUNDE, 2015; PUENTE, 2010). O Brasil se apresentou

341
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau,
Moçambique e São Tomé e Príncipe.
342
Disponível em: http://www.dce.mre.gov.br/PEC/G/historico.php. Consultado em: 1 de
novembro de 2014.
343
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-
2014/2013/Decreto/D7948.htm. Consultado em: 3 de novembro de 2014.

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como um novo parceiro político e econômico, uma alternativa aos países


desenvolvidos, muitos, ex-colonizadores.

Em um primeiro momento, o governo guineense disponibilizou bolsas


de estudos para os estudantes, com o agravamento das instabilidades políticas
e econômicas, principalmente a partir dos anos 2000 os estudantes passaram
a vir por conta própria, geralmente financiados pela família. Por essa questão,
como nota Cá (2009), muitos dos selecionados não chegam a sair do país,
visto as dificuldades financeiras em arcar com as passagens áreas que
atualmente chegam a custar R$ 5.000,00 e com os custos de manutenção no
Brasil.

Devido a não concessão de bolsas por parte do seu governo e das


dificuldades financeiras enfrentadas pelas famílias guineenses, os estudantes
da Guiné Bissau são em sua maioria dependentes das bolsas e auxílios
concedidos pelo Estado brasileiro, a exemplo da bolsa MRE, da bolsa
emergencial e do Programa Milton Santos de Educação Superior
(PROMISAES). Apesar da existência desses auxílios, criados em razão das
dificuldades financeiras enfrentadas pelos estudantes no Brasil, os gastos com
passagens áreas e permanência são de inteira responsabilidade do estudante
ou do país de origem, que garante este requisito por meio da apresentação do
Termo de Responsabilidade Financeira. À vista disso depreende-se que boa
parte do financiamento dos estudantes guineenses no Brasil não fica a cargo
do governo deste país, mas sim dos familiares e do governo brasileiro, o que
constitui um fator limitante para o sucesso do programa, uma vez que muitos
selecionados não possuem condições de vir para o Brasil e os que conseguem
vir, em sua maioria, acabam por enfrentar dificuldades financeiras. Esta
situação torna-se ainda mais difícil diante da impossibilidade de exerceram
qualquer atividade remunerada que configure vínculo empregatício, já que são
portadores do Visto Temporário IV.

O governo brasileiro desde esse contexto compreende que a melhor


forma de se cooperar com os países africanos, mas, sobretudo, com países
como a Guiné Bissau que possui volumes econômicos pouco expressivos
(LEITE, 2011; M’BUNDE, 2015) é por meio da cooperação técnica. No caso da

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Guiné Bissau, além de ser essencialmente técnica, a cooperação da educação,


formação e desenvolvimento de capacidades humanas é o fio condutor da
cooperação, como reforça o Embaixador brasileiro em Bissau, Fernando
Apparicio da Silva ‘‘entendemos que a melhor forma de cooperar com a Guiné-
Bissau é apoiar a formação dos seus recursos humanos e quadros superiores,
este é um dos caminhos para fortalecimento das instituições públicas
guineenses’’ (SILVA, 2015, apud M’BUNDE, 2015, p. 95).

A educação, neste sentido é compreendida como um bem público


global, ou seja, resultados que tendem para a universalidade no sentido de que
beneficiam a todos os países, grupos populacionais e gerações (KAUL, et al
2012); ademais, a cooperação acadêmica gera benefícios mútuos para os
países, estabelecendo uma agenda da política externa positiva, ao passo que
promove desenvolvimento econômico, social e a convivência cultural entre as
sociedades e promove a imagem no exterior do país que presta a cooperação.

Considerações Finais

O Brasil e as universidades brasileiras estão formando os quadros


guineenses, formando a futura elite deste país e este fator implica nas relações
internacionais entre as duas margens do Atlântico. Entre os séculos XV e XVIII
as relações afro-brasileiras ocorriam por meio do tráfico transatlântico de
pessoas escravizadas, no contexto atual, o PEC-G é um fomentador dos
contatos entre as duas regiões. Os guineenses cruzam o Atlântico com o intuito
de vir ao Brasil, graduarem-se, pós graduarem-se e voltar para o seu país de
origem.

O ensino universitário no país ainda é recente; as primeiras


universidades iniciaram as atividades em 2003 (Colinas de Boé e Amilcar
Cabral) e, além disso, não estão interiorizadas, todas se localizam em Bissau,
capital, dificultando o acesso de estudantes do interior do país. Por isso, para
muitos, a solução é emigrar. Além disso, para uma numerosa parcela dos
estudantes que aqui estão, retornar ou não para o país não é apenas uma
questão de vontade. A Guiné Bissau ainda atravessa momentos de
dificuldades, sociais e econômicas, instabilidade política, dificuldades de
acesso ao mercado de trabalho e, por não encontrar um ambiente apto para o

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desenvolvimento das potencialidades, muitos profissionais formados no Brasil


ou no exterior optam por firmar residência no país de acolhida.

Djaló (2014) apresenta dados extraídos juntos à Embaixada do Brasil em


Bissau que revelam que entre 2002 e 2012, cerca de 705 guineenses foram
formados pelo PEC-G, destes, 437 retornaram para o país e, 268 não
retornaram ou não foram retirar os diplomas na Embaixada. Essa questão
chama a atenção para a necessidade de comprometimento do governo
guineense, que se limita a enviar estudantes para o Brasil sem se preocupar
com o acompanhamento destes, com o incentivo de retorno ou com a inserção
profissional dos quadros formados, fator que faz com que o país perca quadros
qualificados ainda tão necessários para a reconstrução nacional. Por isso, faz-
se necessário que as Embaixadas trabalhem conjuntamente, a fim de que o
governo guineense possa acompanhar os estudantes que estão no exterior,
além criar estratégias e políticas que fomentem o regresso e inserção
profissional dos quadros para que assim o PEC-G possa cumprir com o seu
objetivo principal que é formar quadros qualificados para atuar no
desenvolvimento dos seus países, seja em universidades, na administração
pública, nas áreas de saúde, tão carentes na Guiné Bissau.

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Disponível em http://www.africanos.eu/ceaup/uploads/AS08_109.pdf. Acesso
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IMAGENS E ELEMENTOS SIMBÓLICOS “AFRICANOS” NAS


COMUNIDADES NEGRAS RURAIS BRASILEIRAS CONTEMPORÂNEAS:
UM OLHAR SOBRE O “QUILOMBO DOS VICENTES”

ITAMARA SILVA DAMÁZIO (UFBA)

Os dispositivos legais brasileiros que tratam da regularização dos territórios


quilombolas vêm circundando a memória coletiva dos grupos negros rurais no Brasil,
na perspectiva em que “aquilombar-se” remete a expectativa da constatação dos
elementos diacríticos de caráter cultural e religioso pelas agências governamentais e
não-governamentais, estas últimas representadas especialmente por movimentos de
militantes, setor progressista da igreja católica, determinadas instâncias de partidos
políticos, dentre outros setores da sociedade civil, sendo esta expectativa de caráter
substancialista, corroborando com construtos ideológicos tecidos e reconstruídos
não-somente a partir dos dispositivos legais, mas também fortalecidos no imaginário
das comunidades através da presença agora constante dos antropólogos,
agrônomos, entidades políticas e religiosas envolvidas e/ou interessadas no pleito
pela garantia e posse dos territórios quilombolas.
O caráter substancialista da qual me refiro refere-se a uma posição a qual
Arruti (2006), considera como “primordialista” na compreensão do processo histórico
das comunidades quilombolas no Brasil contemporâneo, na medida em que um
quilombo é tornado, em primeiro lugar, como ícone da “consciência” e da “cultura
negra.
É válida e importante, principalmente do ponto de vista político, a
reivindicação de utilizar a “cultura negra” como proposta de conscientização e
afirmação de identidade, também na reivindicação dos quilombolas em prol de seus
direitos. Não obstante, as comunidades negras rurais no Brasil possuem suas
especificidades culturais e religiosas que foram sendo construídas e ressignificadas
ao longo dos anos de acordo com suas demandas econômicas, sociais, afetivas,
organizacionais e globais. Não se deve perder de vista que o acesso a mídia e as
novas ferramentas tecnológicas da sociedade contemporânea também têm
promovido influências e mudanças nas dinâmicas socioculturais dos indivíduos e
grupos.

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Esses novos sujeitos políticos acionados nas comunidades negras rurais se


apropriam destes discursos e reativam, reforçam ou constroem símbolos culturais
condizentes com as necessidades de atender às leis para então serem reconhecidos
enquanto donos do território, bem comum necessário e metaforicamente
representado nos fatos agora rememorados. Entretanto os “quilombolas” são, de
certa forma, imbuídos a acatar os propósitos muitas vezes não condizentes com
suas crenças e práticas sociais para atender a necessidade do reconhecimento
legal. Isso não significa dizer que eles são vítimas desse processo legal e político ou
que não tenham realmente reativado enquanto sujeitos sociais a auto-estima e o
desejo de reconhecimento, significa muito mais entender que, como afirma
Habermas (2002, p. 230): “num Estado Democrático de direito, o texto legal
necessita ser interpretado de forma diversa a partir das necessidades e situações de
interesse (...). Aquele que está mediando o direito deve abrir-se para as demandas
políticas da sociedade”.
Através de conversas informais com antropólogos do INCRA- BA, estes
afirmam que os itens legais dos procedimentos administrativos internos do Órgão,
baseados nos textos legais para andamento e titulação territorial das comunidades,
necessitam ser reinterpretados no nível das intersubjetividades dos moradores em
seus contatos sociais. Segundo os antropólogos, num primeiro momento talvez não
pareça claro os sinais diacríticos de diferenciação da identidade do grupo, mas com
visitas freqüentes ao campo, observam-se hábitos, gerenciamento de valores e
normas, relações de afetividade possíveis de uma associação aos elementos
caracterizadores de uma ancestralidade e origem étnica deste grupo.
Houve um complexo “ir e vir" de interpretações a respeito do direito a terra
aos remanescentes de quilombos, presente primeiramente no artigo 68 da ADCT
(ato das disposições transitórias) da constituição de 1988, elaborado como uma
proposta inicial de atender aos interesses dos grupos negros fixados em territórios
que se apresentassem enquanto vestígios arqueológicos dos antigos quilombos
históricos da época da escravidão, depois reestruturadas por alguns antropólogos
brasileiros através de interpretações aos constructos teóricos da teoria de Barth
sobre a definição de grupos étnicos no sentido de atender as demandas e
particularidades das inúmeras comunidades que estavam se espalhando pelo país.

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Em seguida, o Decreto 4.887 de 2003, primeiro a regulamentar o artigo


constitucional, desdobrou-se em instruções normativas no âmbito do INCRA
(Instituto de Colonização e Reforma Agrária), como a IN (Instrução Normativa) 57 de
2009. Afinal, quais aspectos culturais da “cultura negra” são esperados ou devem
estar presentes nos contextos das comunidades atualmente reconhecidas como
“quilombos” para a validação do reconhecimento e da titulação fundiária? Itens
acordados nos textos legais são realmente claros e precisos quanto à observância
de imagens e representações de uma suposta base étnica? Pode um texto legal
englobar e atender, de forma generalizante, à realidade dinâmica e culturalmente
diversificada dos grupos em foco? Estes e outros questionamentos fazem parte de
um rol de outros debates apresentados em estudos na medida em que cresceu o
número de comunidades certificadas pela Fundação Palmares. Hoje, segundo o site
desta Fundação, ligado ao Ministério da Cultura, são mais de 2.000 grupos
certificados em todo país.
Não obstante, será observada mais especificamente a situação da
Comunidade Quilombola dos Vicentes, localizada no município de Xique-Xique na
Bahia, no curso sub-médio do Rio São Francisco, a 577 quilômetros de Salvador.
Vicentes está a 25 km da sede do município de Xique-Xique, situada às margens do
Rio São Francisco, circundada pela vegetação caatinga e composta por uma
população atual de uma média de 80 habitantes. Esta comunidade quilombola está
há oito anos certificada pela Fundação Cultural Palamares e há alguns meses em
processo de demarcação territorial e produção do laudo RTID (Relatório Territorial
de Identificação e Delimitação)1 junto ao INCRA.
Portanto, buscaremos compreender as práticas culturais e religiosas
presentes na comunidade desde sua formação e após o reconhecimento identitário
étnico, chegando ao momento atual, observando se ocorreram possíveis mudanças
no sentido de atender as exigências legais para a certificação e a compreensão dos
membros da comunidade a respeito da imagem que representa uma comunidade
detentora de uma identidade étnica recém conquistada. Por fim, antes do contato
com o campo, quais imagens eu havia construído sobre a comunidade dos Vicentes,
a partir de leituras de textos acadêmicos sobre diversos grupos quilombolas pelo
Brasil? E, depois das visitas ao campo, quais análises poderão já ser então
realizadas.

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Serão feitas referências neste texto de estudos acerca das manifestações


culturais e religiosas dos “quilombos”, discutindo as percepções dos estudiosos
sobre cultura negra no Brasil e imagens construídas da cultura negra rural no
nordeste brasileiro, através da análise de expressões como danças denominadas
genuinamente como de origem e influxos africanos: o samba de roda, ou de coco; a
presença das religiões de matrizes africanas nesses contextos. Não perdendo de
vista, entretanto, que grande parte da crença religiosa no nordeste construiu-se em
bases católicas, em decorrência da atuação dos missionários católicos por séculos
nessas áreas.
O uso de imagens para a caracterização das comunidades negras rurais
nos relatórios antropológicos e textos acadêmicos evidencia suas variadas intenções
de produção para fins específicos e, obviamente, são utilizadas com propósitos não -
somente estéticos. Assim, é relevante tomarmos os estudos da iconografia e da
história cultural das imagens como fundamentos teóricos no sentido de
compreendermos as maneiras pelas quais são interpretados e constituídos os
discursos em torno dessas imagens para retratar contextos dos “quilombos”.
Relatos dos moradores do povoado dos Vicentes, bem como fotografias do
lugar e divulgação de notícias pela mídia da região e pelos órgãos do Estado
envolvidos no processo de legitimação da identidade quilombola desta
comunidade, serão analisados como fontes testemunhais do contexto em foco.
Não perdendo de vista, portanto que as imagens expressam uma força a respeito
da validação e reconhecimento no tecido social.
É interessante salientarmos que as imagens são experiências sensoriais e
emotivas do ser humano provocando sensações múltiplas e que, também,
segundo Pesavento (2008) as imagens são mentais pelo fato de serem fruto da
percepção que nos conduz a processos cognitivos de reconhecimento,
identificação, classificação e atribuição de significados e são constituídas de
desejos, conflitos e experiências diversas, produzindo a memória social dos
grupos, importante para a compreensão de sua história e reconhecimento
identitário.
Símbolos materiais e imateriais da resistência dos escravos originados de
diversas regiões da África, do tráfico à chegada ao Brasil e dos horrores que se
seguiram no período escravocrata são retomados e reforçados nos discursos da

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militância negra, acadêmicos e simpatizantes a exemplo da figura mítica de


resistência à opressão, o líder negro Zumbi, do histórico Quilombo de Palmares
em Alagoas. Assim, monumentos em sua homenagem são erguidos no país, mais
vigorosamente, após a promulgação da Constituição de 88, na comemoração dos
cem anos de abolição da escravatura no Brasil, cujo artigo 68 dispõe sobre a
aprovação de direitos legais, possivelmente propondo uma reparação a divida
histórica devida pelo Estado aos ex-escravos e descendentes destes. Estes e
outros símbolos foram apropriados pelo Estado brasileiro muito mais por pressões
dos grupos citados do que por interesses em valorizar símbolos de uma “origem
africana”.
Por outro lado, estudos sobre a identificação de traços culturais
africanos em festas e celebrações no Brasil descrito por Antonacci (2014) e a sua
relevância para o entendimento da memória de culturas africanas na cultura
brasileira, são preponderantes no sentido em que pensemos em “culturas e não
simplesmente numa única “cultura negra” enquanto redefinição de elementos
trazidos da África ao nosso país pela adaptação criativa à opressão e ao racismo.
É necessária a reflexão de que os traços culturais africanos foram
negociados e adaptados na diáspora. Portanto, a questão problemática de se
realizar estudos que tratem dos elementos caracterizadores da cultura negra, é a
de acatarmos uma proposta de caráter essencialista e pouco preocupada em
realizar um estudo mais pormenorizado de tais elementos em seus contextos
locais. Sobre isso, Sansoni (2002, p.267) conclui:

Os objetos, a língua e o ritmo musical são definidos como africanos,


não através de uma pesquisa cuidadosa, que ainda é rara, e sim,
muitas vezes, por uma associação superficial, por semelhança ou por
observação. “Parecer africano” ou “soar como africano” é, na
verdade, o que torna algo “africano”.

Determinadas danças e ritmos, como o samba de roda, o lundu, os


batuques em geral e rituais religiosos como o candomblé fazem também parte
deste conjunto de práticas de influências africanas na cultura brasileira
utilizadas nos discursos políticos. Certamente isso não significa que essas
influências não sejam existentes e significativas, pois estaríamos negando a
história do próprio país. No entanto há uma supervalorização dessas

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influências ou até mesmo um desconhecimento de contatos e misturas de


outras culturas, tais como a indígena por exemplo.
Segundo French (2002), ao estudar a comunidade negra rural de
Mocambo em Sergipe, práticas culturais largamente encontradas no Nordeste
brasileiro, como o samba de coco, dança que se acredita ter origem africana,
foi considerada nos anos 90 para o reconhecimento das comunidades como
remanescentes de quilombo. Entretanto o samba de coco, de acordo com
estudos do folclorista Araújo (1964) possui origem “afro-amerindia”. É
interessante tal constatação até por que é inegável que muitos descendentes
de escravos tenham convivido com indígenas em aldeamentos por terras do
Nordeste no período escravocrata e também pós-escravocrata do Brasil.
As comunidades foram acionando a identidade quilombola por diversas
questões a depender da relação construída em seus contextos territoriais:
garantir a posse da terra; adquirir benefícios sociais até então pouco
alcançados; continuar num território cujas relações de afetividade e de
pertencimento foram sedimentadas ao longo dos anos; conquistar visibilidade e
respeito do Estado e dos governos locais; afirmar sua negritude e valores
baseados na constituição negra da família; reconhecer a amplitude das suas
práticas culturais e religiosas para a reconfiguração histórica, dentre outras
razões que não interessam neste artigo, mas que representam motivações dos
sujeitos que, como qualquer integrante de outro grupo, aciona uma identidade
com fins específicos.
Na comunidade quilombola dos Vicentes a realização o samba de roda
sempre se constituiu uma prática cultural exercida por seus moradores desde
muito antes do reconhecimento étnico quilombola. Esta manifestação acontece
em períodos específicos do ano, geralmente atreladas a comemorações
religiosas, tais como a Trezena de Santo Antônio realizada no mês de junho; a
páscoa, na Semana Santa e o Natal, em dezembro.
Não obstante, uma antropóloga, técnica pericial do Ministério Público
Federal, ao visitar em 2012 a comunidade com objetivo de preparar um laudo
antropológico e dar entrada com processo junto ao INCRA no intuito de agilizar
o processo de identificação, delimitação e titulação da área de Vicentes, pediu
que algumas pessoas da comunidade dançassem o samba de roda da forma

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como faziam na Trezena e na Páscoa. Ou seja, a comunidade precisou


performatizar uma prática já comum, mas em separado do universo festivo o
qual já estavam habituados, para garantir o sucesso do pleito pela posse do
território.
Imagens divulgadas pelo site do MPF da comunidade dos Vicentes em
2012, dos moradores, do aspecto físico do lugar, da igreja, são referências
utilizadas também por outros sites oriundos de Xique-Xique e por moradores e
ex - moradores da cidade para divulgar informações relativas ao
reconhecimento da comunidade junto à Fundação Cultural Palmares e a
demora do INCRA na elaboração do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação, necessário ao avanço do processo até a fase final da titulação
fundiária. No entanto, essas são as únicas imagens que circulam na internet
sobre o assunto. Pouca importância tem se dado a situação da comunidade
depois dessas divulgações. Não há um interesse da mídia local em dar
visibilidade ao pleito dos quilombolas dos Vicentes.
Obviamente que a divulgação pelo MPF das imagens dessa comunidade
demonstra interesse específico do Órgão que apresenta como um dos seus
objetivos básicos a defesa dos direitos individuais e dos grupos garantidos
constitucionalmente no âmbito das Instituições Federais. Assim, pode-se
perceber que a compreensão pretendida da função imagética precisa ser
analisada partindo-se de um dado contexto social tal como afirma Burke
(2004):
O testemunho das imagens necessita ser colocado no “contexto”, ou
melhor, em uma série de contextos (cultural, político, material, e
assim por diante), incluindo as convenções artísticas para representar
as crianças (por exemplo, em um determinado lugar e tempo, bem
como os interesses do artista e do patrocinador original ou do cliente,
e a pretendida função da imagem.

Os habitantes da comunidade dos Vicentes é na sua maioria adepta ao


catolicismo como grande parte do povo do sertão nordestino. Possuem uma
pequena igreja onde acontecem as celebrações religiosas quando das raras
visitas dos padres ao lugar, sendo que muitos dos ritos católicos são
conduzidos pela própria população local. Inclusive são freqüentes as
reclamações de que o custo cobrado pelas celebrações realizadas pelos
religiosos é alto para suas condições financeiras.

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Aliás, o espaço da igreja da comunidade quilombola dos Vicentes é


utilizado para a realização dos rituais religiosos e da mesma maneira para
promover atividades da Associação de Moradores Locais e de outras
atividades, a exemplo do samba roda e de comemorações festivas diversas.
Após o momento de orações e cantos dedicados ao Santo Padroeiro, Santo
Antônio na Trezena de junho, acontece à frente da Igreja, ao redor do cruzeiro,
a roda de São Gonçalo. Em seguida as pessoas adentram novamente à igreja
para dançarem o samba de roda ao som de palmas, dos instrumentos como
um pequeno tambor, de um pandeiro e do som produzido pela força que os
dançarinos imprimem aos pés nos passos de samba. A alegria é do mesmo
modo intensa e há poucas interrupções nas performances das pessoas que às
vezes buscam se abastecer de vinhos, refrigerantes e bolos em meio a
aglomeração de jovens e crianças geralmente atentas aos passos dos mais
velhos.
A pesquisa em andamento tem revelado que a igreja em Vicentes, é um
espaço onde tanto as atividades religiosas bem como as profanas atuam sem
maiores problemas, sendo o catolicismo uma referencia decisiva nessa
comunidade e também nas localidades circunvizinhas na busca pelo bem-estar
na vida diária. Segundo afirma Antonacci (2014), influxos desde o século XVIII
dos missionários católicos nos sertões como pregadores das Santas Missões
(grupos de padres de diferentes ordens religiosas e nacionalidades que
percorreram os sertões nordestinos), principalmente em regiões carentes de
párocos e acompanhamento assíduo de membros do clero, ainda são parte
significativa do universo social e religioso destas pequenas comunidades,
tendo o cruzeiro fincado à frente das igrejas a representação material imagética
da fé católica.
Enquanto pesquisadora esperava realmente identificar em Vicentes a
manutenção de práticas culturais e religiosas tradicionais de base ou influência
africana trazida ao grupo por seus ancestrais originados do processo
escravocrata brasileiro e mantida ao longo dos anos nesta comunidade. As
perspectivas iniciais se constituíram no sentido de encontrar uma “pequena
África” nessas terras do sertão baiano. A comunidade desenvolve suas
atividades culturais como o samba de roda, a roda de são Gonçalo, como boa

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parte de comunidades do nordeste brasileiro, bem como possuem uma


relevante relação com as crenças tradicionais religiosas do catolicismo também
comuns nessas áreas.
Atualmente na comunidade dos Vicentes, o samba de roda somente é
performatizado em datas específicas e não é dançado com indumentárias
tipicamente usadas em rituais do candomblé ou em atividades turísticas tais
como àquelas utilizadas pelas populações de áreas do Recôncavo Baiano,
bem como não foram identificados nesta localidade centros religiosos de
matrizes africanas.
A terceira visita à comunidade, entre 30 de maio a 8 de junho deste ano
aconteceu no período da realização da Trezena de Santo Antônio e estive
acompanhando as primeiras noites do evento, bem como pude observar parte
do seu processo de organização, mais especificamente envolvendo ativamente
o posicionamento de liderança de um grupo de mulheres da comunidade: a
arrumação diária da igreja, as idas a comunidades circunvizinhas para realizar
o pedido de esmolas em nome do Santo Padroeiro; a produção dos alimentos
para cada noite da trezena; a direção na realização dos ritos em homenagem
ao Santo. Neste sentido, de acordo com Foucault (1979), percebe-se a
presença universal do poder, pois se dissemina em todo e qualquer lugar e
considera-se que todos têm acesso a ele. Assim o que há na estrutura social
são relações de poder entre os sujeitos e coisas.
Na verdade, os habitantes desta comunidade ainda não se apoderaram
de um discurso ideológico e político de reconhecimento das expressões
culturais e religiosas conhecidas como de “matrizes africanas” para afirmação
da sua identidade negra, tal como reivindicam movimentos de militância.
Assim, não parece relevante tal apropriação, se eles realmente não se
identificarem com tal proposta.
A Lei é um forte instrumento social para a obtenção de mudanças,
entretanto não resolve as questões práticas das populações, é o que podemos
notar no artigo constitucional 68 da Constituição Federal de 1988 a respeito do
direito às terras aos “remanescentes de quilombos”, composto de um texto de
conteúdo generalizante que não reflete as especificidades culturais e religiosas
das inúmeras comunidades negras rurais da contemporaneidade no Brasil, a

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

exemplo de estudos e pesquisas diversas sobre tais comunidades e da análise


aqui realizada da situação do “Quilombo dos Vicentes”, situado no Município de
Xique-Xique, Bahia.
Muitos indivíduos pertencentes a esses territórios vinham construindo,
desenvolvendo e adaptando suas práticas culturais ao longo dos anos sem
nenhuma preocupação em obter o reconhecimento do outro e do Estado
enquanto pertencente a uma comunidade “quilombola”. Ainda que
reconheçamos a importância da Lei no âmbito político e social em atender as
demandas de grupos estigmatizados e desrespeitados pelo poder público
quanto aos direitos negados e também a ampla visibilidade que a Lei está
dando a essas comunidades, promovendo a auto-estima dos indivíduos, não se
pode esperar ou exigir que os “quilombolas” atuem ou sigam modelos de
discursos apropriados e enfatizados por grupos de militantes, acadêmicos,
Igreja Católica, grupos políticos e demais simpatizantes como em atribuir aos
quilombolas à prática de manifestações representativas de uma “cultura negra”.
Como discutimos neste texto, torna-se complexo identificarmos uma
cultura negra única e “engessada”, representativa de uma ancestralidade do
africano na diáspora brasileira. As dinâmicas produzidas aqui desde o tráfico
de escravos, aos trezentos anos de escravidão, até os dias atuais, dos
elementos de base ou influência africana, compõem um mosaico rico e diverso
em diálogo com as demais culturas presentes em nosso país, inclusive por que
somos influenciados – e isso não é diferente nas comunidades quilombolas –
pela mídia e ferramentas de comunicação da sociedade moderna atual. Não
queremos afirmar com tais análises que devamos desconsiderar a importância
dos elementos culturais trazidos pelos africanos e aqui desenvolvidos, pois
estaríamos negando parte da nossa própria história enquanto país, apenas
reiterarmos que os indivíduos agrupados nestas comunidades negras rurais
brasileiras da contemporaneidade possuem o direito de se apropriarem dos
símbolos com os quais se identifiquem, utilizando-os conscientemente em seus
contextos sociais, independentemente de serem ou não representativos de
uma “cultura negra”.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

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1589
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: SONS, VERSOS E SENTIDOS NA PRODUÇÃO


LITERÁRIA ÁFRICA-BAHIA

PROPOSITORES: RAFAEL ALEXANDRE GOMES DOS PRAZERES (UNEB)


E LÍLIAN LIMA GONÇALVES DOS PRAZERES (UFES)

Ementa:

Este GT se propõe a discutir a musicalidade presente na produção literária

baiana, africana e afro-brasileira da contemporaneidade, buscando identificar

nessa literatura a carga de sentido presente no texto a partir da sonoridade e

dos aspectos de literariedade, configurando-se estes em elementos

indispensáveis para compreensão do texto. Com isso, pretendemos expressar

o quanto esta sonoridade na literatura corrobora com a tradição local seja nas

expressões culturais populares, a exemplo da capoeira, seja na canção, em


narrativas e em poesia.

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IDENTIDADE E ANCESTRALIDADE AFRICANAS NA MÚSICA MANDUME,


DO RAPPER BRASILEIRO EMICIDA

TAMIRES DE LIMA SOUSA SANTOS (UNEB)1


CÉRES MARISA SILVA DOS SANTOS (UNEB)1

Resumo

Neste trabalho fazemos uma Análise Crítica de Discurso (ACD), seguindo


proposta metodológica de Teun Van Dijk (1997) da música Mandume, do disco
do rapper paulista Emicida: Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de
Casa, lançado em agosto de 2015, com o propósito de identificar e conhecer
como Emicida verbaliza, através do gênero musical Rap, a sua identidade
ancestral e sua produção literária. Cabe destacar que para essa música
Emicida teve, como parceiros, mais cinco rappers – e recorreu a uma
variedade de elementos das culturas negras brasileiras e africanas, mostrando,
segundo Stuart Hall (2002), deslocamentos e fragmentações de sua identidade,
unindo culturas brasileiras a africanas. Nesse artigo também contamos com o
apoio de Paul Zumthor (2010), Martin Bauer (2002), Ecio Salles (2007), e
Deleuze e Guattari (1975) sobre rap e literatura. Na música analisada, Emicida
e seus parceiros tecem comentários e críticas ácidas sobre a escravização do
povo africano, o racismo, violência policial, exclusões de ordem religiosa, social
e econômica. A partir da identificação do discurso deste músico, acreditamos
que alcançaremos nossos propósitos de tornar mais explícita a forma como
Emicida, através do gênero musical rap, amalgama seu estilo poético e o seu
jeito pessoal de protestar contra as desigualdades. Ora extremamente
agressivo, visceral, ora suave, romântico. Esse disco é fruto de sua recente
viagem a países africanos de língua portuguesa: Cabo Verde e Angola e o
título da música, Mandume, é uma referência ao nome de um rei do país hoje
chamado de Namíbia.

Palavras-chaves: Rap, Literatura, Identidade e Ancestralidade.

1. Apresentação

Até ganhar legitimação urbana, a música negra, no Brasil, precisou


atravessar algumas barreiras ideológicas e, segundo Martín-Barbero (2008),
dois desses entraves foram a concepção de que a cultura popular deveria estar
ligada às raízes, ou seja, ao mundo rural, e a ideia colocada pelos intelectuais
de que a cultura popular, para ser arte, deveria assumir moldes burgueses (p.

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241). O autor então explica que a incorporação da música negra se deu da


seguinte forma:

(...) a “suja” indústria cultural e a perigosa vanguarda estética é


que vão incorporar o ritmo negro à cultura da cidade, legitimando o
popular-urbano como cultura: uma cultura nova “que procede por
apropriações polimorfas junto com o estabelecimento de um
mercado musical onde o popular em transformação convive com
dados da música internacional e do cotidiano citadino” (MARTÍN-
BARBERO, 2008, p. 241-242).

O Rap é um dos exemplos da música negra urbana surgida nos EUA, na


década de 70, que conquistou grande notoriedade no Brasil. O gênero
apresenta diversificadas temáticas e bases rítmicas e ganham destaque, em
cenário nacional, os grupos de Rap que aderem o estilo consciente, com
músicas de caráter político voltado para a contestação e transformação social.

Nesse contexto, esse trabalho tem por objetivo fazer uma Análise Crítica
do Discurso (ACD), segundo Teun Van Dijk, da música Mandume, do rapper
brasileiro Emicida, com o propósito de identificar como esse artista evoca a sua
identidade ancestral, para trazer em suas canções referências rítmicas e
poéticas das culturas negras, brasileira e africana; e como ele se apropria do
estilo de Rap político/consciente para realizar críticas às desigualdades sociais
e ao racismo.

2. O gênero musical Rap


De acordo com Salles (2007), o Rap surgiu em Nova Iorque/EUA, com a
destacada contribuição dos DJ’s Kool Herc, Grandmaster Flash e Afrika
Bambaataa. Com raízes africanas, este tipo de música ganhou voz política,
principalmente, ao se inserir na cultura urbana Hip-Hop, também surgida na
década de 1970 e que uniu outros elementos artísticos como o break dance1 e
o grafite1. No Brasil, Thaíde e DJ Hum foram pioneiros no Rap:

Em 1988, a pioneira dupla Thaíde e DJ Hum fez parte da primeira


e mais importante coletânea de rap nacional, a Hip Hop cultura de
rua, com músicas ‘Homens da Lei’ e ‘Corpo Fechado’. (...) No ano
seguinte sairia Pergunte a Quem Conhece, primeiro álbum
individual da dupla. A partir daí, ao lado dos Racionais MC’s, seria
um dos principais responsáveis pela popularização do rap e do
movimento Hip Hop brasileiro (ALVES, 2004, p. 13).

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Salles (2007) considera que os Racionais MC’s, MV Bill e Gog são


rappers, do estilo político, de grande expressividade no Brasil (p.33), mas
outros MC’s também trabalham na vertente de crítica e conscientização, de
forma recorrente ou não, a exemplo de Emicida, em seu disco Sobre crianças,
quadris, pesadelos e lições de casa.

3. O rapper Emicida
A mistura entre a sonoridade da palavra ‘MC1’ e o termo ‘homicida’,
utilizado de maneira metafórica para caracterizar o rapper Leandro Roque de
Oliveira, 30, que nas batalhas de rap1 ‘destruía’ os seus adversários com seu
freestyle1, deu origem ao nome artístico Emicida.

A sua carreira teve início em 2008, com a música Triunfo. Em 2009,


Emicida produziu a mixtape1 Pra quem já mordeu um cachorro por comida, até
que eu cheguei longe. Já em 2010, lançou Sua mina ouve meu rep também,
em formato de EP1, e, nesse mesmo ano gravou a sua segunda mixtape,
Emicídio. No ano seguinte, em 2011, o EP Doozicabraba e a Revolução
Silenciosa. Somente em 2013 surgiu o primeiro álbum de estúdio, intitulado O
glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. Uma das faixas desse disco, a
música Trepadeira, causou grande polêmica devido ao explícito discurso
machista que a letra possui.

Você era o cravo e ela era a rosa/e cá entre nós gatinha, quem
não fica bravo dando sol e água, e vendo brotar erva daninha/
Chamei de banquete era fim de feira/ estendi tapete, mas ela é
rueira/ Dei todo amor, tratei como flor/ mas no fim era uma
trepadeira/ (...) Merece era uma surra, de espada de são Jorge (é)/
Chá de "comigo ninguém pode" (EMICIDA, 2013, faixa 8).

A composição provocou discussões em redes sociais como o facebook


e o twitter e também o protesto de um grupo de feministas antes do início do
show de lançamento do disco. Em resposta, Emicida declamou em show um
poema para suavizar a polêmica: “Mulheres devem ser livres pra ser fraca ou
guerreira, pra ser o que quiser inclusive trepadeira”. O rapper também disse em
sua fanpage no facebook que a música se tratava de uma história ficcional e
não representava o seu ponto de vista com relação às mulheres. Entretanto, a
fanpage feminista Marcha das Vadias Sampa se colocou dizendo que a
violência contra a mulher “se perpetua de diversas maneiras, inclusive pela
naturalização promovida pela indústria cultural”.

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Em agosto de 2015, Emicida lançou o álbum Sobre Crianças, Quadris,


Pesadelos e Lições de Casa, onde aborda questões sociais, principalmente em
faixas como Mandume – objeto de análise desse artigo – e Boa Esperança,
que compara favelas a senzalas e critica de forma ácida as diversas formas de
violência contra os negros. O tom de revolta desta última música citada se
estendeu para um videoclipe, dirigido por Kátia Lund e João Wainer, lançado
um mês antes do disco, no dia 30 de junho de 2015, que narra uma revolta de
empregados domésticos contra a injustiça de seus patrões.

A estética desse disco é integrada, pois, além de letras de denúncia,


Emicida também buscou referências sonoras e rítmicas oriundas da África,
incorporando-as em suas faixas musicais, após uma viagem feita a países
lusófonos deste continente.

Músicas como Mufete, Madagascar, Passarinhos e Baiana mostram a


versatilidade do rapper que, nessas faixas, trabalha com construções mais
leves, alegres e românticas, porém, não rompendo com temática do disco. A
viagem realizada por Emicida à África foi fruto de um projeto elaborado pelo
artista, aprovado no edital Natura Musical, um programa de incentivo à música
brasileira. O álbum conta com muitas participações, inclusive de artistas como
Caetano Veloso e Vanessa da Mata.

4. Música Mandume

Mandume é uma composição de Emicida junto com mais cinco rappers:


Drik Barbosa, Amiri, Muzzike, Raphão Alaafin e Rico Dalasam. Tem a duração
de oito minutos e 17 segundos, seis estrofes, além do refrão, e a sua é letra
bastante extensa, rica em detalhes. O título da música já apresenta um
significado marcante. Faz alusão ao rei africano Mandume Ya Ndemufayo, que
governou entre 1911 e 1917 o Sudoeste Africano Alemão, atual Namíbia, e
enfrentou portugueses e alemães. “Mandume opôs aos portugueses uma
resistência tenaz, enfrentando ao mesmo tempo o avanço dos ocupantes
alemães que vinham do sul. Face à superioridade militar dos europeus, acabou
vencido”, diz matéria publicada no Jornal de Angola Online.

5. Referencial Teórico

Nesse artigo, recorreremos à Análise do Discurso (ACD), proposta por


Teun Van Dijk (1997) e as ideias de identidade e de representação de Stuart

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Hall (2001, 2010), rap e literatura, de Paul Zumthor (2010), Delleuze & Guattari
(1975), Ecio Salles (2007) e Martin W. Bauer (2002).

Nossa escolha pela ACD proposta por Van Dijk (1997) decorre do fato de
que ele vem, desde 1980, pesquisando, principalmente, sobre dois
tópicos: poder e racismo presentes nos discursos midiáticos. Ele entende que o
discurso divulgado nos Meios de Comunicação de Massa (MCM) é um
dos principais recursos de dominação e poder, na atualidade, dos grupos
dominantes. Por isso, propõe uma metodologia capaz de desnudar tipos de
discursos transmitidos pela mídia e, também, vislumbrar as estratégias usadas
pelos segmentos que constroem e reproduzem esses discursos, muitos
deles reforçando as desigualdades e injustiças sociais sem, no
entanto, excluir o papel educativo da mídia.

O autor deseja evidenciar os problemas sociais, como o poder e a


desigualdade, por meio do discurso. Nesse caso, observamos a aproximação
de suas ideias com os conteúdos que identificamos na
música Mandume, de Emicida.

Van Dijk (1997) considera importante analisar problemas como o racismo


e a desigualdade, o governo e a autoridade e as ideologias, por exemplo,
porque além de pragmáticos, são teóricos. Ele acredita que a ACD contribui
para identificar se os MCM reproduzem ou não as desigualdades e
injustiças sociais e quem tem ou não acesso às estruturas discursivas e de
comunicação, aceitas e legitimadas pela sociedade. Nesse sentido, sua
proposta permite abordar o tema do poder em geral, e, também, a noção de
abuso de poder.

De forma metodológica, o autor orienta pesquisadores a esclarecerem


estratégias de uso, legitimação e de construção da dominação, os quais a partir
de sua perspectiva se destacam por meio de abuso de poder, rupturas e
desvantagens. Van Dijk (1997) vai tratar do que chama de ‘elite’ ou
‘elitista’, categorias que têm diferentes ordens, podendo significar grupos de
alta renda, organizações de trabalho, intelectuais e os MCM. Ambos, ‘elite’ ou
‘elitista’, têm padrões cognitivos e políticos que orientam a ação social desses
segmentos. Essas categorias, aliás, são referenciadas por Emicida, com certa
insistência na musica Mandume.

Van Dijk (1997) valoriza na ACD componentes encontrados no campo da


Comunicação, da Sociologia e da Psicologia, como as questões cognitivas e
ideológicas na formulação de discursos midiáticos. Esses
ingredientes transdisciplinares vão, segundo o autor,
desempenhar papel crucial na localização da reprodução do preconceito e do
racismo no discurso midiático. Ele esclarece que o discurso atua nos níveis
micro e macro, assim como nos registros da interação e da cognição. Para o

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autor, a mídia funciona no nível macro como um gênero discursivo capaz de


catalisar expressões políticas e institucionais sobre as relações inter-raciais,
em geral estruturadas por uma tradição intelectual elitista que, de uma maneira
ou de outra, legitima a desigualdade social pela cor da pele.

Segundo Van Dijk (1997), a ACD atua de forma descritiva e analítica e


ainda, social e politicamente. Assim, a proposta tem uma ‘missão’ social de
elucidar e compreender os problemas sociais, bem como de identificar
situações de exclusão, podendo contribuir para a busca de soluções. Em
sua proposta metodológica Van Dijk (1997) mantém uma ligação com
a lingüística, apesar dela não ser um dos elementos mais destacados, já que o
que mais lhe interessa não é se deter às palavras, mas identificar
seus sentidos nos discursos.

Nesse trabalho, também consideramos fundamental entender as ideais


de Stuart Hall (2001) quando fala de identidade, fragmentação da identidade e
hibridismo cultural na modernidade, já que a letra da música Mandume é
marcada por essas categorias, assim como a ideia de representação.

Hall (2001) observa que o sujeito do Iluminismo era centrado nele


mesmo, enquanto o sujeito sociológico já observava que o
mundo moderno não mais comportava essa ideia de unificação, pois interagia
com outros sujeitos e com a sociedade, fazendo emergir o sujeito pós-
moderno. Nesse momento a identidade é descentralizada, fragmentada e cada
sujeito passa a ter várias identidades simultaneamente.

Essa multiplicidade de identidades, segundo Hall (2001) está em


constante mudança, se intercambiando entre si e com novas identidades,
caracterizando assim uma diferença com as sociedades tradicionais, menos
híbridas a essa diversidade. Quando associamos essas ideais a Emicida na
letra da música Mandume, nota-se esse caminhar do músico entre vários
mundos: os do Brasil, os da África, os mundos dos que vivem em situação de
exclusão social e econômica etc. Uma andar de retorno a sua ancestralidade
de matriz africana e um olhar na sociedade brasileira atual.

Hall (2010) também trata a questão da representação (racial) do outro a


partir de uma ligação binária, onde ‘eu’ e o ‘outro’ são fundamentais para dar
sentido, significado a algo, a representação. Ele destaca que as culturas
dependem do sentido dado às coisas, atribuindo-lhes diferentes posições
dentro de um sistema de classificação. Assim, a marcação de "diferença", com
base no que a ordem simbólica determina e que chamamos de cultura,
depende de nossas identidades e, a partir delas, podemos classificar os
outros. Nesse caso, Hall (2010) vai contribuir na identificação dos sujeitos que
aparecem na letra da música Mandume.

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É importante destacar que o Rap, como parte oralidade, encontra


resistência sobre seu pertencimento ou não ao campo da literatura. Nesse
caso, Paul Zumthor (2010, p.22) dá pistas sobre por que isso acontece, ao
afirmar que até meados de 1900, só era considerada literatura aquele material
que fazia referência a um sistema de valores culturalmente imperialistas.
Entretanto, o autor acredita que devido à forma como as canções são
recebidas pelos ouvintes, elas podem se inserir dentro dos estudos literários:
“É poesia, é literatura, o que o público – leitores ou ouvintes - recebe como tal”
(2010, p.39).

Por sua vez, Ecio Salles (2007, p.47) afirma que o Rap pode ser
considerado como literatura menor. “Trata-se, a meu ver, de um conceito capaz
de avalizar o estatuto do rap no interior da cultura brasileira”. Salles se refere
ao conceito pensado por Delleuze & Guattari (1975):

As três características da literatura menor são de


desterritorialização da língua, a ramificação do individual no
imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale
dizer que “menor” não qualifica mais certas literaturas, mas as
condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que
chamamos de grande ou estabelecida (p.28).

Segundo Salles (2007, p.47), a composição dos MC’s - que cantam o rap
de estilo politizado - se insere nesse conceito, pois atores sociais fazem parte
de minorias políticas, negras e pobres, possuidoras de um modo próprio de se
comunicar dentro de sua própria língua; pela ação coletiva e engajada que
desenvolvem; e pelo fato de propagarem ideias que rompem com o racismo e a
opressão.

Já Martin W. Bauer (2002, p. 367) propõe que músicas podem ser


consideradas como fonte de dados. “Os sons são condicionados por seus
contextos sociais e por isso são marcados por eles. Neste sentido, podemos
considerar os sons como um meio de representação.” Dessa forma, justifica-se
a utilização do Rap Mandume para o fornecimento de informações sobre o
contexto social brasileiro a respeito de racismo e dominação, além de dados a
respeito das representações ligadas à identidade ancestral do rapper Emicida.
Para realizar essa análise serão consideradas todas as seis estrofes da música
Mandume e o seu refrão.

6. Letra e Análise

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Refrão: Eles querem que alguém/ Que vem de onde nóiz vem/Seja mais humilde, baixe a cabeça/ Nunca revide, finja que
esqueceu a coisa toda/ Eu quero é que eles se ----! (2x)
Emicida (Nunca deu nada pra nóiz, caralho/ Nunca lembrou de nóiz, caralho!) (4x)

Drik Sou Tempestade, mas entrei na mente tipo Jean Grey, Xinguei/ Quem diz que mina não pode ser sensei?/ Jinguei,
sim sei, desde a Santa Cruz, playboys/ Deixei em choque, tipo Racionais, "Hey Boy!"/ Tanta ofensa, luta intensa
Barbosa nega a minha presença/ Chega! Sou voz das nega que integra resistência/ Truta rima a conduta, surta, escuta, vai
vendo/ Tempo das mulher fruta, eu vim menina veneno/ Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não raia/ Basta de
Globeleza, firmeza? Mó faia!/ Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia/ Devasta esses otário, tipo
calendário Maia/ Feminismo das preta bate forte, mó treta/ Tanto que hoje cês vão sair com medo de bu----/ Drik
Barbosa, não se esqueça/ Se os outros é de tirar o chapéu, nóiz é de arrancar cabeça//

Amiri Mas mano, sem identidade somos objeto da História/ Que endeusa "herói" e forja, esconde os retos na História/
Apropriação há eras, desses tá repleto na História/ Mas nem por isso que eu defeco na escória/ Pensa que eu num
vi?/ Eu senti a herança de Sundi/ Ata, não morro incomum e/ Pra variar, herdeiro de Zumbi/ Segura o boom, fi é um e
dois e três e quatro, não importa/ Já que querem eu cego eu "Tô pra ver um daqui sucumbir!"/ (não!)/ Pela honra
vinha Mandume:/ Tira a mão da minha mãe!/ Farejam medo? Vão ter que ter mais faro/ Esse é o valor dos reais,
"caros"/ Ao chamado do alimamo: NkosiSikelel', mano!/ Só sente quem teve banzo/ (Entendeu?) Eu não consigo ser
mais claro!/ Olha pra onde os do gueto vão/ Pela dedução de quem quer redução/ Respeito, não vão ter por mim?/
Protagonista, ele é preto sim/ Pelo gueto vim, mostrar o que difere/ Não é a genital ou o "macaco!" que fere/ É igual
me jogar aos lobos/ Eu saio de lá vendendo colar de dente e casaco de pele//

Rico Meme de negro é: me inspira a querer ter um rifle/ Meme de branco é: não trarão de volta Yan, Gamba e Rigue/
Arranca meu dente no alicate/ Mas não vou ser mascote de quem azeda marmita/ Sou fogo no seu chicote/
Dalasam Enquanto a pessoa for morte pra manter a ideia viva/ Domado eu não vivo, não quero seu crime/ Ver minha mãe
jogar rosas/ Sou cravo, vivi dentre os espinhos treinados/ Com as pragas da horta/ Pior que eu já morri tantas antes
de você me encher de bala/ Não marca, nossa alma sorri/ Brilhar é resistir nesse campo de fardas

Muzzike Banha meu símbolo, borda meu manto que eu vou subir como rei/ Cês vive da minha cicatriz, eu tô pra ver sangrar
o que eu sangrei/ Com a mente a milhão, livre como Kunta Kinte, eu vou/ ser o que eu quiser/ Tá pra nascer playboy
pra entender o que foi ter as corrente no pé/ Falsos quanto Kleber Aran, os vazio abraça/ La Revolução tucana, hip-
hop reaça/ Doce na boca, lança perfume na mão, manda o mundo se foder/ São os nóia da Faria Lima, jão, é a
Cracolândia Blasé/ Jesus de polo listrada, no corre, corte degradê/ Descola o poster do 2Pac, que cês nunca vão
ser/ Original favela, Golden Era, rua no mic/ Hoje os boy paga de 'drão, ontem nóiz tomava seus Nike/ Os vira lata
de vila, e os pitbull de portão/ Muzzike, filho de faxineira, eu passo o rodo nesses cuzão/ Ando com a morte no
bolso, espinhos no meu coração/ As hiena tão rindo de quê, se o rei da savana é o leão?

Raphão Canta pra saldar, negô, seu rei chegou/ Sim, Alaafin, vim de Oyó, Xangô/ Daqui de Mali pra Cuando, de Yorubá ao
banto/ Não temos papa, nem na língua ou uma escrita sagrada/ Não, não na minha gestão, chapa/ Abaixa sua lança-
Alaafin faca, espingarda faiada/ Meia volta na barca, Europa se prostra/ Sem ideia torta, no rap eu vou na frente da tropa/
Sem eucaristia no meu cântico/ Me vêm na Bahia em pé, dão ré no Atlântico/ Tentar nos derrubar é secular/ Hoje
chegam pelas avenidas, mas já vieram pelo mar/ Oya, todos temos a bússola de um bom lugar/ Uns apontam pra
Lisboa, eu busco Omongwa/ Se a mente daqui pra frente é inimiga/ O coração diz que não está errado, então siga!

Emicida Dores em Loop-cínio, os cu de símio, o quê?/ Ao ver o Simonal que cês não vai foder/ Grande tipo Ron Mueck, morô
muleque? Zé do Caroço/ Quer photoshop melhor que dinheiro no bolso?/ Vendo os rap vender igual Coca, fato/
Não, não, melhor, entre nóiz não tem cabeça de rato/ É Brasil, exterior, capital interior/ Vai ver nóiz gargalhando com
o peito cheio de rancor/ Como prever que freestyles, vários necessários/ Vão me dar a coleção de Miley Cyrus/
Misturei Marley, Cairo, Harlem, Pairo, firmeza?/ Tipo Mario, entrei pelo cano, mas levei as princesa/ Várias diss, não
sou santo, imã de inveja é banto/ Fui na Xuxa pra ver o que fazer se alguém menor te escreve tanto/ Tô pelo adianto
e as favela, entendeu?/ Considere, se a miséria é foda, chapa, imagina eu/ Scorsese, minha tese não teme, não
deve, tão breve/ Vitórias do gueto, luz pra quem serve/ Na trama conhece os louro da fama/ Ok, agora olha os preto,
chama!

Na música Mandume, os rappers se colocam como porta-vozes de um


grupo social excluído, cujas raízes de sua identidade estão no continente
africano. Dessa forma, o discurso tanto vem denunciar as injustiças sociais
sofridas pelas pessoas que vivem nos guetos urbanos, formados em sua
maioria por um recorte racial negro, quanto enaltecer a identidade afrodescente
a qual esses indivíduos pertencem.

Dois dos principais aspectos a serem considerados no discurso dessa


canção são: a autoafirmação da identidade negra por meio da recuperação da
sua ancestralidade e a demonstração do hibridismo dessa identidade, que ora
caminha dentro do continente africano, retomando seus personagens históricos
e crenças, ora se coloca dentro do Brasil, no mundo marginalizado onde estão
inseridos os negros.

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No decorrer das estrofes, os enunciadores salientam elementos da


cultura negra brasileira e africana com uma ideia de pertencimento: “Sim,
Alaafin, vim de Oyó, Xangô”; “Oya, todos temos a bússola de um bom lugar”;
“Só sente quem teve banzo”. Os versos também trazem como referência
líderes históricos negros: “Pela honra vinha Mandume”; “Eu senti a herança de
Sundi”; “Pra variar, herdeiro de Zumbi”; além de traçar linhas que demonstram
a resistência negra e o seu protagonismo: “Jinguei, sim sei, desde a Santa
Cruz, playboys”; “Protagonista, ele é preto sim”; “Canta pra saldar, negô, seu
rei chegou”. A ideologia colocada no discurso dos rappers a respeito da beleza
cultural do povo negro, assim como a resistência demonstrada pelos africanos
e afrodescendentes, é fator que fortalece a identidade dos indivíduos que
pertencem a esse grupo social.

Os rappers que escreveram Mandume enunciam a ideologia de uma


coletividade e um dos traços da construção do discurso que revela essa
característica são as gírias, componentes lexicais imprimidos nos versos da
canção. A palavra nóiz é um exemplo dos que mais se repetem e faz referência
a esse grupo social marginalizado, explorado historicamente e demarcado por
um recorte racial: “Que vem de onde nóiz vem”; “Nunca deu nada pra nóiz”. A
palavra nóiz também mostra que embora esse grupo social seja explorado e
excluído, ele apresenta resistência: “Se os outros é de tirar o chapéu, nóiz é de
arrancar a cabeça”; assim como revela a indignação desses indivíduos: “Vai
ver nóiz gargalhando com o peito cheio de rancor”. Nóiz, que para algumas
pessoas pode significar a fala ‘errada’ da palavra nós, ganha um potencial
intencional e ideológico com várias leituras, designando o lugar social
determinado aos descendentes de africanos ou a postura política e ideológica
desse grupo.

Outro aspecto do discurso da música é a exposição de traços negativos


do poder cultural, étnico e econômico dominante, que reifica o povo negro:
“Mas mano, sem identidade somos objeto da história”. Os enunciadores se
reportam ao período histórico da escravidão negra para mostrar que esses
indivíduos foram e são explorados: “Tentar nos derrubar é secular/ Hoje
chegam pelas avenidas, mas já vieram pelo mar”; “Cês vive da minha cicatriz,
eu tô pra ver sangrar o que eu sangrei”; “Abaixa sua lança-faca, espingarda
faiada”.

Esses fatores são determinantes para entender os mecanismos atuais de


opressão sofridos pelos moradores dos guetos, como exclusão social e
violência policial: “Tanta ofensa, luta intensa nega a minha presença”; “Sistema
é faia, gasta, arrasta Cláudia que não raia”, “Brilhar é resistir nesse campo de
fardas”; “Olha pra onde os do gueto vão/ pela dedução de quem quer redução”.
Todas essas construções mostram uma polarização social, onde de um lado se
encontra uma classe dominante, exploradora, e do outro o grupo
socioeconomicamente desfavorecido, que sofre as opressões.

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Um último ponto a ser comentado do discurso de Mandume é a sua


primeira estrofe, escrita e cantada por Drik Barbosa, que sugere, de forma sutil,
a reconstrução da imagem do rapper Emicida após a polêmica ocorrida em
2013 com o movimento feminista, logo após o lançamento da música
Trepadeira. Os versos “Chega! Sou voz das nega que integra resistência” e
“Feminismo das preta bate forte, mó treta”, portanto, vêm como uma tentativa
de reconquistar o público feminino.

7. Considerações Finais

O Rap de contestação é um dos tipos de música negra que visa à


modificação de lugares sociais marginalizados e os rappers que o adotam
geralmente realizam críticas às exclusões sociais, culturais, políticas e
econômicas sofridas pelos indivíduos pertencentes a esse meio. Com o intuito
de identificar como o rapper Emicida se apropria desse gênero musical para
denunciar as desigualdades sofridas pelo povo negro periférico, foi realizada
uma Análise Crítica do Discurso (ACD) com base nos estudos de Van Dijk, que
permitiu identificar o léxico do discurso da música Mandume, revelando o grupo
social de onde os enunciadores falam, assim como a identidade desse grupo.
Observamos também nessa música o hibridismo identitário entre a África
(ancestralidade) e a Diáspora Negra, a partir da mistura de relatos, fatos
ocorridos na África e no Brasil.

Outro aspecto observado foi que o discurso de Mandume visa reforçar a


identidade negra por meio da apresentação e enaltecimento de sua cultura,
assim como negar o poder ideológico dominante, ao enfatizar seus aspectos
negativos através da recuperação histórica da escravização e citações de
exploração e exclusão sociopolítica.

Vimos também que após uma grande polêmica com a música


Trepadeira, lançada em 2013, o novo trabalho de Emicida, 2015, traz músicas
que operam como voz da contra cultura negra brasileira contra o processo de
escravilização do povo africano e a presença do racismo e exclusões no Brasil.

REFERÊNCIAS

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SALLES, Ecio. Poesia Revoltada. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2007.

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QUILOMBOS LITERÁRIOS: FRONTEIRAS NEGRAS DE RESISTÊNCIAS

MARIA GABRIELA BATISTA NEIVA DE MENEZES (UNEB)

De acordo com Alves (2002), o termo Literatura Negra, utilizado


recentemente, foi definido pela coletânea de cadernos negros para nomear o
produto literário de toda uma geração de escritores das três últimas décadas do
século XX. Estes escritores se definiam como negros produtores de uma
estética literária negra, consagrando assim o termo, que por sua vez, promove
o rompimento com a tradição literária, tida como masculina, branca,
heterossexual, burguesa, cristã.
Tais rupturas foram possíveis devido à conjuntura da pós-modernidade –
concatenada pela iminência dos Estudos Culturais, que propiciou um processo
de construção de novos paradigmas e que traz à tona a presença mais efetiva
de discursos que contemplem às diferenças de gênero, classe social,
sexualidade e principalmente de etnia. Logo, instaura um contradiscurso que
concede voz aos segmentos marginalizados, os quais questionam e refugam
os modelos dominantes. Corroborando com a ideia, (HALL, 2000, p. 338) diz:

Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em


relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é
agora, e isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços
dominantes, à ocupação dos de fora. É também o resultado de
políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da
produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos
no cenário político e cultural. Isso vale também não somente para
raça, mas também para outras etnicidades marginalizadas (...).

Nesse panorama delineado por Hall, do surgimento de novas


subjetividades e identidades, a formação da Literatura Negra reverbera como
fruto de uma agitação sociopolítica de posicionamento, engajamento
ideológico, denúncia, ruptura e de autoafirmação dos valores do povo negro,
tanto no panorama mundial, quanto local - Brasil, a fim de combater o racismo
explícito e/ou velado e as diversas formas de exclusão.
A Literatura Negra instaura-se contra a perpetuação do negro como
categoria mais explorada e contribui para o funcionamento de novas
manifestações sociais e culturais que se encontram à margem da literatura

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oficial. O texto da Literatura Negra implica percebê-la como parte integrante do


amplo e complexo cenário da chamada pós-modernidade. Para Bezerra (2002,
p. 119), essa textualidade “(...) se constitui a partir de uma diretriz que privilegia
uma fala/perspectiva marginal, ao mesmo tempo em que se insurge contra
modelos literários institucionalizados”.
A Literatura Negra integra-se aos movimentos sociais da negritude na
década de 70, principalmente na sua formação inicial, ora de forma conexa ou
não, mas que mantém seu sentido político-ideológico, pois, refere-se à
enunciação de grupos periféricos, de afirmação dos direitos dos negros e da
sua liberdade. Ideias estas, fortalecidas pela luta em prol da emancipação das
últimas colônias africanas, que de certo modo, provocou deslocamentos e
descentramentos aos modelos hierárquicos europeus, já que nos Estados
Unidos, França, Antilhas, Brasil (um pouco mais tarde) e a própria África, a
busca pela “reafricanização” da identidade cultural negra se fortalecia. Nesse
contexto, Ianni (1998, p. 214) vai salientar que,

A Literatura Negra não surge de um momento para outro, nem é


autônoma desde o primeiro instante. É um imaginário que se forma,
articula e transforma no curso do tempo, movimentando-se sobre a
influência dos dilemas do negro e das invenções literárias. Como
tema e sistema, ela se desloca aos poucos da história social e
cultural brasileira, adquirindo fisionomia própria. Desencanta-se da
história do povo brasileiro e da história da literatura brasileira.
Desloca-se e desencanta-se pela originalidade e força do movimento
social do negro.

A Literatura Negra, na sua singularidade artística, abre espaço para


discursos de resistência à opressão; evidencia a realidade ofuscada pelos
grupos privilegiados e resgata a imagem objetiva do homem negro, sujeito da
enunciação no discurso poético. Tal discurso faz-se o lugar de criação do
conceito de Literatura Negra que, segundo Cuti (2002, p. 32), o texto literário
vai se configurar pela ousadia no tempo. “E a Literatura Brasileira torna-se
negra exatamente porque até o presente foi, silenciosamente, de forma
abusiva, branca, em seu propósito de invisibilizar e estereotipar o negro e o
mestiço”.
Essa Literatura, portadora de uma linguagem própria, que se manifesta
contra a cultura hegemônica, contra a discriminação social, econômica e
política, busca (re)encontrar com a sua memória africana. Realizada por

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escritores que se denominam negros (por isso a legitimidade do termo),


revalorizam a sua história, a memória individual e coletiva que perpassam
pelas suas vivências, como atividade de autorreconhecimento de seu papel na
sociedade brasileira. Assumem-se como proprietários do seu discurso, em que
deixa de se ver como objeto e passa a ser agente transformador; converte-se
em sujeito pelo desejo de transpor da marginalidade.
Segundo Cuti (2002, p. 24) a Literatura Negra “(...) recupera a
personagem de fundo e ganha o primeiro plano, a libertação da voz silenciada,
a revelação de visões de mundo não consideradas”. Por tudo isso, o negro é o
tema basilar da literatura negra, sob diversas vertentes ele é o conjunto
cultural, artístico, sociopolítico, sobretudo humano, dessa arte que se revela em
um processo de conscientização de ser negro, numa sociedade que consagrou
o branco como superior.
Entretanto, a Literatura Negra não se restringe meramente às dimensões
epidérmicas, como salienta Bernd (1988, p. 32), o conceito de Literatura Negra
não se atrela nem a cor da pele do autor, nem apenas à temática por ele
utilizada, “mas emerge da própria evidência textual cuja consciência é dada
pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro”. Para autora, assumir
a condição negra e enunciar o discurso em primeira pessoa, parece ser o
aporte maior trazido pela Literatura Negra - constituindo-se em um de seus
marcadores estilísticos mais expressivos.
Desse modo, não é somente a cor da pele do escritor que determina a
existência de uma Literatura Negra, pois ela é muito mais complexa. Elaborada
a partir de um estilo peculiar, e ao mesmo tempo, atrelado à pluralidade
estética, de identidades múltiplas que se insere no conjunto geral da arte
brasileira. Por isso, é composta de fissuras, ultrapassa qualquer julgamento
essencialista. É um contínuo devir negro que transcende aos conceitos cíclicos.
Todavia, não se deve perder de vista que essa Literatura se caracteriza
pela afirmação positiva de assumir-se como negra, que traz em seu bojo uma
tessitura negra, logo, seu material poético tratará de questões pertinentes à
raça, as experiências de descendentes de escravos, o significado de ser negro
em uma sociedade preconceituosa e hierarquizada como a brasileira, bem
como, discute os problemas que dizem respeito ao racismo, à sociedade, aos

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estereótipos, a religiosidade, as inúmeras formas de resistências, enfim, a tudo


que concerne à existência do afro-descendente que, por sua vez, emerge na
obra pela expressividade da palavra, transgredindo as instâncias legitimadoras
do “purismo literário”. Para (PROENCA FILHO, 2004, p.18),

Considera-se negra uma literatura feita por negros ou por


descendentes assumidos de negros e, como tal, reveladores de
visões de mundo, de ideologia e de modos de realização que, por
forças de condições atávicas, sociais, e históricas condicionadoras,
caracteriza-se por uma certa especificidade, ligado ao intuito claro
de singularidade cultural.

A Literatura Negra é uma miscelânea de signos que resgata e valoriza a


cultura popular/marginal que tem suas raízes nas vivências, nos valores
ancestrais, na riqueza e diversidade cultural, na memória e tradição dos
diversos povos africanos. Daí sua peculiaridade e autenticidade da adjetivação
(Negra) dada à Literatura Brasileira, já que o colonizador europeu classificou o
africano numa pessoa negra/preta (pejorativamente), os escritores negros
assumem o termo, transformando-o numa conotação diferente, de sentido
positivo, de autoafirmação. Portanto, numa categoria sócio-política, que ganhou
ressignificado pelos movimentos negros, os quais irão reagir contra o
silenciamento, ocultação e invenção do negro pelos mecanismos de exclusão
e, dessa forma, produzir um discurso emancipatório que se propõe ao
despertar da consciência crítica, reafirmando a diferença étnica.
Como parte fundamental da literatura Negra e ao mesmo tempo,
fundadora e consagradora do termo, a Coletânea Cadernos Negros, configura-
se como o locus ideal para discutir e interferir positivamente no modelo de
representação e autorrepresentação dos afro-descendentes, pois representa
“as estratégias empreendidas pelos negros brasileiros para produzir e divulgar
um discurso identitário que almeja interferir na estrutura e no exercício do
poder político-cultural” (SOUZA, 2005, p. 11). É um espaço em que negros e
negras podem refutar modelos de enquadramentos, classificações reguladoras
e trasgredir pelas fronteiras, já que o poder não existe; o poder é exercido, de
múltiplas formas, por diversos segmentos de uma sociedade, coexistindo
micro-poderes, como afirma Foucalt (2002).

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Assim, nesse contexto de mudanças, a poesia engajada ganha


expressividade no cenário mundial/nacional e instaura-se como expressão
ideológica, funcionando como micropoderes em transito. A poesia que se
inspira na tomada de consciência da negritude, conforme Bernd (1992, p. 14)
“(...) está duplamente vinculada à questão da identidade: ela se origina da
consciência de sua perda e se desenvolve na busca de sua reconstrução”.
Logo, o fundamental destas literaturas é justamente sua força de revalorizar as
formas onde subsistem as culturas de resistência, substância essencial da
identidade cultural.
É esse sentimento de valorização, de autoinvenção do sujeito negro, de
reapropriar-se de sua história ancestral africana que vai favorecer-lhe o
desenvolvimento de identidades baseadas no orgulho de seu pertencimento
etnicorracial e, a Literatura Negra vem firmar o papel do negro na formação
histórica, socioeconômica e cultural do país, contrapondo a ideologia do
branqueamento e o mito da democracia racial, os quais ajudam a manter um
racismo atroz e ao mesmo tempo aparentemente cordial/sutil, do “jeitinho
brasileiro”, além disso, combatem e inovam as expressões de visões que
inferiorizam o negro. Nesse embate, o poeta negro busca livrar-se da imagem
estereotipada com que foi comumente apresentado, e o eu lírico,

Em busca de uma identidade negra instaura um novo discurso – uma


semântica do protesto ao inventar um esquema onde ele era o outro,
aquele de quem se condoíam ou quem criticavam. Passando de outro
a eu, o negro assume na poesia sua própria fala e contra a história de
seu ponto de vista. (BERND, 1988, p. 49).

Por isso, os/as poetas da Literatura Negra se dedicam à recuperação e


ressignificação de discursos identitários da negritude e seu universo simbólico
de modo a evidenciar outras formas subjetivas de expressão literária, advindas
de posicionamentos de resistências e luta pela afirmação. Assim, a poética
aparece como instrumento discursivo de combate e rupturas aos modelos
hegemônicos consagrados pela crítica literária tradicional. Nesse sentido,
(ALVES, 2002, p. 227) diz que:

A poesia, como um agenciamento de processos de expressão,


envolve-se na produção de subjetividade dos negros, que se
apropriam dos códigos próprios da escrita para criar um devir negro

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que diz respeito a todas as engrenagens da sociedade de um mundo


marcado pela subjetividade.

A Literatura Negra aparece em oposição aos discursos estabelecidos


canônicos de caráter segregacionistas, como forma de mudança, protesto,
rebeldia, ruptura, negociação, deslocamento, especialmente, reconhecimento
da memória e identidade negra. Portanto, a poética vem representar-se como
um instrumento de luta, de resistência à exclusão, em que esta literatura
marginal não quer apenas para si a reivindicação de um lugar no panorama
literário, “sua realização implica e projeta uma nova subjetividade do país, em
cuja tarefa o exercício de estar no lugar do outro consiste, para a
nacionalidade, um estar em si mesma”, (CUTI, 2002, p. 28).
Para melhor caracterizar a Literatura Negra, uma reflexão sobre
identidade se faz necessário, visto que um dos elementos mais importante que
dá sustentabilidade as identidades é a própria Literatura. Para muitos autores,
a questão identitária é um fator substancial pelo qual forma e transforma o seu
fazer poético, ou seja, o projeto de construção identitária é um exercício
fundamental da Literatura Negra, que reflete, analisa e registra a consciência
social e cultural afro-brasileira.
Nesse sentido, a concepção de identidade perpassa pela aceitação do
outro, do respeito às diferenças, isto é, do plano da alteridade, das
particularidades de cada sujeito, povo, nação, que é singular e plural ao mesmo
tempo, que se configura pelo hibridismo e pela multiplicidade cultural. Dessa
forma, a identidade está atrelada à alteridade, já que aquela é um constructo
por meio de práticas sociais, que se articula na aceitação e respeito ao
diferente. Segundo Bernd (1992) a identidade ganha uma dimensão de
exterioridade, tornando impossível conhecer o ser fora das relações que ligam
ao outro e excluir o outro leva a visão especular que é redutora.
Assim, abordar sobre Literatura Negra, conceito móvel, é trazer para a
cena questões relacionadas a diferenças, biopoder, sexualidade, diversidade
cultural, memória, multiculturalismo, alteridade, diáspora, sobretudo, abordar
sobre identidades. Pensadas a partir de sujeitos poéticos descentralizados,
com marcas fluídas e instáveis de construção identitárias, salienta Hall (2000).
Nesse sentido, torna-se importante entendê-las (identidades) como um

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imaginário simbólico, complexo, dinâmico - em constante trânsito que permite


ao sujeito, um sentimento de pertença, de autoria, de ser parte integrante de
um sistema de referências. “Referência em torno da qual o indivíduo se
autorreconhece e se constitui, estando em constante transformação e
construída a partir de sua relação com o outro” (FERREIRA, 2005, p. 47).
Portanto, pensar em re-construções identitárias positivamente afirmadas
a partir da poética dos Cadernos Negros, torna-se possível, justamente por
compreender as identidades, como esse constructo em grande mobilidade, que
se constitui nas relações sociais, no processo de alteridade, relacionados com
critérios políticos-ideológicos, imbricados nas relações de poder e em
processos de (re) negociações contínuas, como afirma Munanga (2006).
Por esta razão, as identidades, no seu sentido plural, podem ser forjadas
e manipuladas, já que seus limites são deslizantes e tênues, em que as
fronteiras culturais, linguísticas, territoriais não são fixas, unas, centradas,
assim como os sujeitos também não são. Nesse sentido é possível pensar
identidades pelos princípios rizomáticos de Delleuze e Guatarri (1995),
enquanto mapas abertos, conectáveis, desmontável, reversível e suscetível à
mudanças contínuas.
Dessa forma, ao afirmar a identidade negra, o sujeito poético demarca
fronteiras de afirmação e reafirmação das relações de poder, em que a
marcação da diferença pressupõe movimentos de inclusão e de exclusão. Nas
palavras de Silva (2000): “O poder de definir a identidade e de marcar a
diferença não pode ser separado das relações mais amplas de poder. A
identidade e a diferença não são, nunca, inocentes”. Assim, é necessário
pensar a utilização dos Cadernos Negros como micropoderes em processo de
agenciamento; pensar como lugar de desmonte de Derrida (2001), a poética
como um lugar privilegiado de rupturas, funcionando como linha de fuga para
escapar do controle biopolítico, da quebra do contínuo e da série projetada pela
elite brasileira.
Faz se necessário refletir sobre os Cadernos Negros como uma ação
política identitária; um lugar de reivindicação e desmontagem de uma forma
(canônica) para emergir outas formas, outros significantes e significados, não
para suplantar um outro modelo legitimado, mas para oportunizar outras

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poéticas, outras enunciações, outros discursos formais e não formais, ou seja,


novas formas de representação. Pois, é no interstício do processo de
descentramento do cânone que a poesia negra revela sua importância,
oportunizando insurgir um novo lugar de recuperação de sentido de ser negro-
quilombola e de construção de um novo consciente, por meio de processos de
desmontagens da subjetivação.
Portanto, para romper com o pensamento monoculturalista de mundo e
colaborar com o enriquecimento da Literatura Negra – quilombos literários de
resistências, que só recentemente vem emergindo de forma afirmativa e com
“certa” visibilidade é importante caracterizar os projetos literários
comprometidos com a valorização dos negros “como sujeito da enunciação que
se afirma e se quer negro” Bernad (1992), numa atitude compromissada; de
tomada de consciência e questionamento de conceitos socioculturais
estabelecidos: o branqueamento e mito da democracia racial – os quais
projetam um país de aparências harmoniosas, escondendo cruéis práticas
discriminatórias, pensadas a partir de um único padrão eurocêntricos.

Considerações finais

Os estudos sobre Literatura Negra vêm se tornando um grande campo


de evidência nos trabalhos contemporâneos, em que traz novas abordagens e
perspectivas para o processo de se buscar entender as peculiaridades e os
modos de escrivivências dessas produções literárias. Assim, é possível pensar
que a visibilidade da Literatura Negra na sociedade brasileira, possa interferir
na realidade, auxiliando no processo de transformação artístico-cultural, uma
vez que, estimula a valorização da pluralidade discursiva, o reconhecimento da
riqueza e variedade dos textos que circulam, sobretudo os que não circulam
nos espaços sociais.
Portanto, para promover a releitura da história do mundo africano, sua
cultura e os reflexos sobre a vida dos afrodescendentes em geral, é preciso
contemplar outras linguagens; valorizar outros saberes, outras epistemologias.
É preciso conceder voz a outras produções discursivas, de modo que se possa
apreciar contribuições de grandes escritores contemporâneos - ativistas dos

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Cadernos Negros, importantes referências para Literatura afro, para as


comunidades remanescente e para a cultura/literatura brasileira em geral.

REFERÊNCIAS
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cruzado. In: FIGUEREDO, Maria do Carmo Lanna; FONSECA, Maria Nazareth
Soares (orgs.). Poéticas Afro-brasileira. Belo Horizonte: Mazza, PUC Minas,
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______. Literatura e Identidade Nacional. Porto Alegre: Ed. da Universidade
UFRGS, 1992.

BEZERRA, Kátia da Costa. A Cor da Ternura: tecendo os fios da memória. In:


FIGUEREDO, Maria do Carmo Lanna; FONSECA, Maria Nazareth Soares
(orgs.). Poéticas Afro-brasileira. Belo Horizonte: Mazza, PUC Minas, (2002), pp.
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CUTI, Luis Silva. O Leitor e o Texto Afro-brasileiro. In: FIGUEREDO, Maria


do Carmo Lanna; FONSECA, Maria Nazareth Soares (orgs.). Poéticas Afro-
brasileira. Belo Horizonte: Mazza, PUC Minas, 2002.

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capitalismo e esquizofrenia. Trad.: Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. Rio de
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DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte:


Autêntica,
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FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção.


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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 17. ed. Trad. de Roberto Machado.


Rio de Janeiro: Grall, 2002.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade; trad. Tonz Tadeu


da Silva, 4ª ed.- Rio de Janeiro: DPBA, 2000.

IANNI, Otavio. Literatura e Consciência. Estudos Afro-Asiático. RJ, (1988), p.


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PROENCA FILHO, Domício. A trajetória do Negro na Literatura Brasileira.


Estudos Avançados. São Paulo, (2004).
MUNANGA, Kabengele. Construção da identidade negra no contexto da
globalização. In: DELGADO, Ignácio et al. (Orgs). Vozes (além) da África. Juiz
de Fora: Editora UFJF, 2006.

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SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendente em Cadernos Negros e


Jornal do MNU – Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e Diferença: perspectiva dos


estudos culturais. Petrópolis-RJ: vozes, 2000.

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SONS, VERSOS E SENTIDOS NA POESIA DE ANA PAULA TAVARES

LÍLIAN LIMA GONÇALVES DOS PRAZERES 344


RAFAEL ALEXANDRE GOMES DOS PRAZERES 345

Considerações sobre literatura e música

Remonta da antiguidade a relação existente entre literatura e música. Se


nos voltarmos para a cultura grega da antiguidade, veremos que a poesia era
feita para ser cantada, por isso poesia e música eram praticamente
inseparáveis.
Nesse sentido, Maria Aparecida Santos (2015) observa que a música e a
poesia nasceram juntas, de acordo com a tradição. Ou seja, segundo a
estudiosa, oriunda do “poema lírico”, a palavra lírica implicava, em sua origem,
numa composição literária que fora feita com a finalidade de ser cantada e
acompanhada por um instrumento de cordas, geralmente a lira.
Ao nos voltarmos para a antiguidade, veremos que por bastante tempo a
poesia teve como objeto a voz e era destinada ao ouvido. Se nos forcamos
especificamente na Idade Média, teremos as figuras do trovador e do menestrel
reconhecidas como poetas. Desse modo, foi somente na Idade Moderna,
quando houve a invenção da imprensa, que houve uma distinção mais
contundente entre literatura e música. Isso se deu por conta da grande
valorização dada à escrita no período. Diante desse contexto, Santos (2015)
afirma que houve um abando do canto por parte da lírica, a partir do século
XVI, destinando-se cada vez mais à leitura silenciosa.
Porém, apesar do afastamento, é cabal que as relações entre literatura e
música ainda existem. Sobre essa relação, sobretudo no que tange à música
popular, ou melhor, para identificar tal relação Charles Perrone (1988) indica
que é preciso:

Referir os temas, as alusões, as fontes, as figuras de linguagem etc.


sem desfigurar a totalidade músico-poético original. Um estudo da
interseção das séries literária e musical gira inevitavelmente em torno

344
Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Bolsista
CAPES.
345
Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Bolsista
CAPES.

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dos aspectos textuais, incluindo a dimensão secundária do texto


musical como o artefato impresso. A avaliação literária do texto não
implica uma completa apreciação estética da canção. Os poemas
escritos e as letras podem ser considerados como subdivisões da
categoria geral da poesia em seu sentido amplo, um texto versificado
com beleza de expressão e pensamento (PERRONE, 1988, p.16).

Dando um salto para o século XIX, temos na obra de Mallarmé, poeta


francês, um exemplar consagrado do uso da musicalidade na produção de
poemas. Sobre isso, Michele Chagas (2012) afirma que o poeta em questão
estabeleceu uma nova concepção de poesia. Essa pesquisadora está em
consonância com o pensamento de Maurice Blanchot (1997), quando aborda a
poesia produzida por Mallarmé:

O verso, substituindo as relações sintáticas por relações mais sutis,


orienta a linguagem no sentido de um movimento, de uma trajetória
ritmada, em que somente contam a passagem, a modulação, e não
os pontos, as notas por onde se passa. É o que aproxima a poesia da
música (BLANCHOT, 1997, p. 40).

Apesar dos poucos exemplos citados acima, podemos afirmar que há


sim um entrelaçamento entre poesia e música, desde tempos muito remotos.
Salientamos que a semelhança entre ambas se encontram nas técnicas
utilizadas, pois tanto a música quanto a poesia compartilham elementos e
propriedades. Assim Daniel Quaranta apud Chagas (2012, p. 22) nos mostra
que as características do texto poético chegam a ultrapassar “o signo gráfico, o
significado da linguagem, o espaço no papel, e tende a um tipo de
performance, que irrompe no domínio do som”.
Das características que música e poesia compartilham, vale destacar o
ritmo, elemento genuinamente musical, mas que garante mobilidade à poesia.
Em O arco e a lira, Octavio Paz (1982) reflete sobre o uso do ritmo na poesia,
para o autor:

O ritmo é um ímã. Ao reproduzi-lo – por meio de métricas, rimas,


aliterações, paronomásias e outros processos – convoca as palavras.
(...). A criação poética consiste, em grande parte, nessa utilização
voluntária do ritmo como agente de sedução (PAZ, 1982, p. 64).

Outra característica importante que compõe ambas expressões artísticas


é a oralidade. Para tanto recorremos a Ruth Finnegan (2008) quem observa a

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presença da oralidade em toda música performatizada pela voz, é aí que está


situada a semelhança da música com a poesia. Em suas palavras,
“interpretações iniciais da “poesia oral” (um quase sinônimo de ‘canção’)
apresentaram-na como as evocações intocadas de povos imersos em alguma
‘cultura ora’ primeva antes da intrusão letrada e logocêntrica do colonialismo”
(FINNEGAN, 2008, p. 17).
Ritmo e oralidade são características presentes na obra Ana Paula
Tavares, poeta sobre quem trataremos nas próximas linhas. Assim, no próximo
tópico apresentaremos a escritora e em seguida nos dedicaremos à análise do
seu poema November without water.

Sobre Ana Paula Tavares e o poema November without water

Ana Paula Tavares nasceu na península de Huíla, em Lubango que está


situada na região sul de Angola. Alfredo Torres (2015, p. 01) afirma que ela “é
uma das vozes femininas mais altas da literatura africana da atualidade”.
Apesar de viver em Portugal desde muito cedo, a terra natal fez parte de sua
vida e encontrou um espaço de enunciação em sua obra. Assim, os aspectos
culturais de seu país de origem, bem como a reconstrução social angolona,
após o longo processo de colonização, foram bandeiras de luta da autora. Além
disso, insere na literatura angolana forma distinta de ver a mulher no campo
literário. Nesse sentido Renata Troca (2015, p. 9) afirma:

Tavares por se negar a ser a mulher angolana conformada com a dor


e mudez que lhe seria digna [...]. Tavares teve a sorte de nascer em
um país que tem a solidariedade como laço familiar, e uma vez que
seus pais não poderiam sustentar seus estudos, mudou-se para a
casa de seus padrinhos e posteriormente, quando já independente,
para Lisboa. Ela poderia ser assim, considerada, uma intelectual que
tem a formação de pensar.

A produção literária da autora é bastante ampla. Ela já publicou vários


livros de poesia, dentre eles estão os títulos: Ritos de Passagem (1985), O
Lago da Lua (1999), Dizes-me Coisas Amargas como os Frutos (2001), Ex-
Votos (2003), Manual para os Amantes Desesperados (2007). A produção do
texto em prosa também compõe o arsenal de obras de Ana Paula Tavares,
podemos citar as obras: O Sangue da Buganvília (1998) e A Cabeça de

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Salomé (2004). Das publicações mais recentes temos um romance em parceria


com Manuel Jorge Marmelo, Os Olhos do Homem que Chorava no Rio (2005)
e a republicação, em 2007, de Ritos de Passagem, com o traço de Luandino
Vieira a ilustrar cada poema.
Antes de passarmos para análise do poema de Ana Paula Tavares, é
preciso destacarmos a presença da musicalidade na poesia angolana. A esse
respeito, Torres (2015), embasado no pensamento de Levi-Strauss, existir um
elemento comum na poesia angolana, que é a simultaneidade de sentidos
aproximando-a da partitura musical. Assim, Levi-Strauss apud Torres (2015, p.
5) afirma:

A partitura musical não tem sentido se não for lida diacronicamente


segundo um eixo (página após página, da esquerda para a direita),
mas ao mesmo tempo, sincronicamente, segundo outro eixo, de cima
para baixo. Ou seja, todas as notas situadas nas mesmas linhas
verticais, formam uma grande unidade constitutiva, um feixe de
relações (LEVI-STRAUSS, 1985, p. 244).

Com base no estudo realizado pelos autores citados acima, podemos


afirmar que a poesia angolana é dotada de ritmo e estruturada de modo
destacar a qualidade de musical das obras.
Sobre a presença da musicalidade na obra de Ana Paula Tavares,
Torres (2015) chama a atenção para o teor apolíneo nas obras da poeta, ou
seja, para ele não há um uso excessivo da melodia, pelo contrário, o elemento
melódico é utilizado com sutileza e leveza, reverberando em melopoética. A
melopoética consiste, portanto, em não admitir “os excessos e o extrato fônico
sempre está em sincronia com o sentido do texto. Trata-se de um semi-
simbolismo, pois ‘uma categoria da expressão, e não apenas um elemento, se
correlaciona com uma categoria do conteúdo’” (BARROS apud TORRES, 2010,
p. 6).
É na esteira da musicalidade que apresentamos a seguir a poesia em
estudo:

NOVEMBER WITHOUT WATER

Olha-me p´ra estas crianças de vidro


cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços

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procurando a vida
nos caixotes de lixo.

Olha-me estas crianças


transporte
animais de cargas sobre os dias
percorrendo a cidade até os bordos
carregam a morte sobre os ombros
despejam-se sobre o espaço
enchendo a cidade de estilhaços.

Chegas
eu digo sede as mãos
fico
bebendo do ar que respiras
a brevidade

assim as águas
a espera
o cansaço.
(TAVARES, 2015)

Ao lermos esse e outros poemas de Tavares é possível observarmos


que, apesar de ser um texto não metrificado, há em sua obra uma
reverberação musical, a qual é de grande importância para a geração de
sentido no texto.
O poema November Without Water é composto por 28 (vinte e
oito) versos divididos em 4 (quatro) estrofes. Quanto à primeira, a autora
apresenta em 5 (cinco) versos aliterativos cuja atmosfera principal compreende
a situação de crianças pobres e tristes que procuram o sustento em “caixotes
de lixo” (v. 5). Para apresentar este tema, Tavares fez uso de uma arquitetura
melódica forte. As repetições de sons consonantais está presente em cada
verso. Quer por via da recorrência de sílabas sonoras idênticas como “caixotes
de lixo” (v. 5, grifos nosso), quer por via da tônica paroxítona e unidade fonética
em “procurando a vida” (v. 4, grifos nosso).
Na segunda estrofe, embora continue a tratar da mesma situação citada
acima, Tavares oferece uma leitura mais abrangente do poema. As crianças
que outrora procuravam a vida em caixotes de lixo – como quem procura
comida em baldes, cestos, caixotes de lixo atrás do supermercado, em fim de
feira ou em lixões –, agora sustentam a morte nos ombros – como quem
trabalha para se alimentar e nada mais –. Nesta estrofe, as crianças assumem
a condição de um personagem da canção de Toquinho e Belchior intitulada
“Pequeno perfil de um cidadão comum”. As crianças de Tavares, “caminham

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para a morte” (TOQUINHO; BELCHIOR, 2015), mas não demonstram


claramente a corrida para “vencer na vida” (idem). Elas simplesmente se
espalham na cidade por conta da labuta e, ao mesmo tempo, fragmentam o
futuro que poderiam ter. Desperdiçam qualquer possibilidade de mudança
próxima. As crianças, apenas trabalham. Vivem o cotidiano como “animais de
carga” (v. 8).
Há uma importante cesura entre as duplas de estrofes que está
representada pelo sinal “*”. A partir dessa pausa sonora, o poema toma outro
formato. Os versos das duas últimas estrofes são mais curtos e, em alguns
deles, há a existência de vocábulos a título de verso. Na terceira estrofe,
percebe-se um paralelismo com a primeira estrofe em se tratando de número
de versos. São 5 (cinco) nas duas estrofes ímpares do poema. A musicalidade
deste bloco se dá também pelo paralelismo. Nos versos 13 “Chegas” e 15 “fico”
do poema, respectivamente 1 e 3 da estrofe em questão, os verbos são os
únicos a representar o versos. Em cada um há a ocultação de sujeitos que
reaparecem nos versos que seguintes e que apresentam uma repetição de
estruturas sintáticas que respeitam o sujeito + o verbo + o objeto +
complemento, “...digo sede as mãos” (v. 14), “bebendo do ar que respiras” (v.
16). Esse curto paralelismo percebido nos quatro primeiros versos da estrofe
só é quebrado com o seu último verso “a brevidade” (v. 17). Neste caso, o
sentido da palavra pode estar associado a celeridade e ao imediatismo pelo
qual as crianças conduzem suas vidas e desaguam suas esperanças. Vale
lembrar que a sinestesia presente na estrofe auxilia a construção de uma
observação fanopaica do poema, para utilizar o termo de Ezra Pound (1976) e
que o principal sentido incitado nos versos é o paladar, através de “sede” e
“bebendo”. Sugerindo o ato de “matar a sede” após beber água num
controverso Novembro Sem Água.
A última estrofe, a mais curta, com apenas três versos, induz ao leitor
que as águas, na sua volatilidade, pode oferecer uma dinâmica às crianças e
uma perspectiva futura. A água, neste caso, é tanto a responsável por conduzir
as crianças a sua “brevidade” quanto a responsável por dissipar o cansaço.
Neste caso, a metáfora está centrada no fato de que em Angola, o mês de
novembro é geralmente seco – como a vida das crianças da primeira parte do

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poema –, mas que é a última etapa para a estação da chuva que se inicia por
aí e culmina em março ou abril. É em novembro que esperanças são
depositadas e que levam a uma “brevidade” iminente. A água é quase certa
nos meses que seguem.
No entanto, o que chama a atenção em todo poema, além do que ele
apresenta em primeiro plano, é a informação implícita que recorre quase todos
os seus versos. O elo de ligação entre as estrofes, os versos e, em certa
medida, as palavras é sua relação musical. O título Novembro sem água
(tradução nossa) apresenta a vida dura de crianças que precisam trabalhar em
atividades hóstis, secas de perspectivas e de brincadeiras, que não para em
qualquer recipiente já que são comparadas a vidro e que têm seus futuros
comprometidos. Quebram-se e enchem “a cidade de estilhaços” (v. 3 e v. 8).
No entanto, esse tema é dito através de um recurso de linguagem que é a
repetição do /s/ e do /x/ ao longo do poema. Essa técnica sugere um constante
derramamento de água, uma água corrente de cachoeira, rio ou torneira.
Tavares dá um tom ao poema que revela um contraponto entre o sentido da
palavra e sua récita. Enquanto o sentido fala de um instante de mudança entre
o período sem água e a estação chuva, a estética sonora do poema já
apresenta abundância de água através da repetição dos fonemas acima. Tal
sonoridade pode ser observada na leitura vocalizada dos versos “cheias de
água até às lágrimas / enchendo a cidade de estilhaços” (v. 2 - 3, grifos nosso),
na bomba sonora em “animais de cargas sobre os dias” (v. 8, grifos nosso) e
dentre outras várias,“assim as águas / a espera / o cansaço” (v. 18 – 20, grifos
nosso).
Tavares utiliza diversos caminhos para sofejar notas sonoras em
aliterações dispersas. Embora o fonema sejam os mesmos – /s/ e /x/ –, a
autora, como uma musicista, requere de diversas letras as suas variações para
alcançar sempre os mesmos sons: “s”, “ch”, “c”, “ç”, “x”. Seja no início, no meio
ou no final da palavra. Como exemplo “enchendo a cidade de estilhaços.” (v.
12) em que os fonemas /s/ e /x/ somados e representados por ch-c-s-ç ecoam
um som de água corrente. A sonoridade do poema sugere perspectivas em
torno da água nos meses seguintes a novembro. Um novembro que, embora

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sem água, aguarda a brevidade, espera meses que jorrem água e esperança
para as crianças.
A musicalidade do poema não está presente em versos com métrica,
nem rima, tampouco com um sistema rigoroso de versificação. Os versos são
livres, mas são fortemente musicais. A obra é repleta pelo que Ezra Pound
(1976) classifica como “melopeia”, ou seja, uma forte carga sonora no poema.
Neste caso, o som é percebido de algumas formas. Uma delas demonstra que
o som distinto da obra é resguardado pela pronúncia (ou tentativa) do título,
November Without Water. Escrito em língua inglesa, a adstringência dos /r/s
finais e do incomum “th” /ð/ inaugura a dialética entre som e sentido, entre o
tema e a estética da obra. Esse é um prelúdio às avessas a uma outra forma
da sonoridade do poema. Por exemplo, a recorrência de /s/ ao longo do poema
dá fluidez à leitura – o inverso do que ocorre no título – e sugere justamente o
oposto do significado do título.
Essa técnica e criatividade de Tavares certamente a insere no rol de
literatas que tecem e cantam seus poemas de acordo com uma construção
musical cara a poemas que apresentam aspectos visuais, sonoros e de sentido
como uma massa indissociável. Analisar a sua obra a partir dessas pistas,
sobretudo a sonora, e perceber suas denúncias e dialéticas histórico-estético-
culturais é uma tarefa que exige leituras e releituras cuidadosas. De modo que,
é sempre possível conhecer um pouco de Angola através de sua poética. Tanto
por via do seu conteúdo quanto por via de sua técnica. Ambos direcionam a um
mesmo significado.
Percebemos ainda que o poema se vale do cotidiano como tema, a vida
comum e os habitantes da cidade. É importante notar que novembro foi o mês
em que grande seca tomou a cidade, o sofrimento causado por ela se une no
poema à condição relegada à população pela colonização, principalmente
voltado para a realidade do trabalho que usava como mão de obra inclusive as
crianças.
Os estilhaços da primeira estrofe fazem menção à guerra e a destruição
por ela causada. Sofrimentos que se vêm a tona através das lágrimas das
crianças. Essas são de vidro, frágeis, quebráveis. A qualquer momento, no

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contexto em que viviam, as vidas se esvaia, o ser humano facilmente a


perderia.
A conotação política do poema revela também uma poeta preocupada
com as causas sociais. Nos últimos versos o eu-lírico chama destaca a espera
por um mundo melhor, a espera também pela água que dizimará a seca e o
sofrimento da população. Mas a espera é longa demais, daí o cansaço.

Algumas considerações

Mostramos ao longo do texto o quanto poesia e música se aproximam,


buscando os seus antecedentes históricos que dão suporte à relação entre
elas. Essa relação se dá por meio, sobretudo, do ritmo, característica
fundamental da obra literária e de teor musical.
Tal musicalidade é uma tônica da poesia angolana. Enquanto poeta
vinculada àquele país, Ana Paula Tavares não isentaria sua obra dessa
característica. Observamos, assim, ao analisar o poema NOVEMBER
WITHOUT WATER, além do conteúdo político, o quanto a musicalidade está
presente na obra, por meio da repetição recorrente do “s”, das aliterações e
outros elementos já apresentados.

REFERÊNCIAS

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2005.

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XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura_ / V Seminário Internacional Mulher
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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: CRIANÇAS, INFÂNCIAS, LINGUAGENS E


INTERSECCIONALIDADE

PROPOSITORES: FLÁVIA DE JESUS DAMIÃO (UFBA) E ANA LÚCIA


SOARES DA CONCEIÇÃO ARAÚJO (UFBA)

Ementa:

Os Estudos sociais da infância, dentre eles, mais especificamente os aportes

da sociologia da infância nos aponta a infância como uma categoria plural, do

tipo geracional, que carrega características da sociedade complexa e

contraditória, atravessada pelas diferenciações de raça/etnia, classe, gênero,

geração, localização geográfica, religiosa dentre outras. No Brasil e na Bahia,

essas diferenciações sociais produziram desigualdades que afetam a vida de

milhões de meninas e meninos nos variados espaços e contextos sociais e

culturais onde vivem, e, onde se constituem como sujeitos concretos. Assim, o

presente GT propõe-se a discutir estudos, reflexões e investigações realizadas

no âmbito da academia, dos movimentos sociais, bem como aqueles

produzidos por profissionais da educação, acerca das infâncias, das crianças e

suas múltiplas linguagens – desde as corporais até as tecnológicas – a partir

da perspectiva da interseccionalidade. Compreendemos que esta perspectiva –

originaria do debate do feminismo negro – pode ser um caminho possível para

nossa aproximação dos universos simbólicos, culturais e sociais das meninas e

meninos do país.

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A APLICAÇÃO DO RPG NO ENSINO O IDEAL DE ESCOLA; BRINCAR


PELO BRINCAR

ANA CARLA (UNEB)

Introdução:

O presente projeto tem como principal objetivo a construção de uma proposta


pedagógica que possibilite o estudo sobre a melhora da história da Educação
na Bahia através do lúdico (O brincar). Tendo o jogo digital como apoio
pedagógico na modalidade RPG pode contribuir e ser capaz de envolver
sujeitos/jogadores no espaço escolar de ensino, voltado para o ensino
aprendizagem aprofundado a história, abordando temas transversais, fazendo
assim uma interação com o prazer(brincar) e o dever(fazer)? Pensar o recreio
como tempo e espaço de aprendizagem e brincadeira.

Como educação tem um importante papel na construção do sujeito. Ao


pensarmos na instituição escolar, vemos que ela contribui para a construção
dos sujeitos, que a frequenta como é ela própria produzida por eles e pela
reprodução da existência daqueles que nela circulam. Assim um estudo sobre
a educação na Bahia relacionado ao brincar justifica-se pela necessidade de
resgatar a memória do brincar e, ao mesmo tempo fornecer subsídios a
propostas de modelos para uma educação democrática (MENEZES, 2007)

As angustia e os anseios se deram em minhas idas e vindas às escolas


municipal em Salvador como estagiaria (professora regente) assume salas de
aula as turmas de 1 a 4 série do ensino fundamental I. Onde pode observa que
em muitas escolas a hora do recreio eram momentos muito raros dentro das
mesma, o fator principal da falta desse momento se dava por falta de espaço
que gerava a falta de tempo, pois hoje nossas escolas não possuem espaço
para as crianças interagir e brincarem entre ela, nem mesmo uma sala de
informática onde os mesmo possam estar tendo esse momento tão esperados
por todas, pois o intervalo se resume a um tempo de 10 minutos. Tempo esse
que mal dar para ir ao banheiro e lancha.

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Então tendo em vista as observações e meus questionamento e os das


crianças por ter um recreio tão limitados e em algumas chega a não ter esse
momento de interação e intervenção entre elas, surgiu a inquietação em estar
buscando, estudando e aprimorando esse momento tão prazeroso para as
criança foi quando no período de graduando fiz meu TCC sobre O RECREIO
E AS SUAS DIMENSÕES NA PERCEPÇÃO DAS CRIANÇAS onde foquei:
recreio como espaço de aprendizagem, o recreio como espaço de brincar pelo
brincar, o recreio como espaço de brinquedos, o recreio como espaço de
socialização e cultura, o recreio como espaço de conflitos e o recreio como
espaço de desenvolvimento físico indispensável na formação do educando.
Esta aproximação com o tema, somada a leituras de trabalhos de autores
como Neuenfeld (2003) que desenvolveu uma pesquisa em que procura
destacar a rotina do recreio em Duque de Caxias, Santa Cruz; Ferreira (1999)
escreve o período do recrear; Cavallari (1994) fala das semelhanças entre
recreio, recreação e lazer; Silva (1959) traz o sentido, satisfação e alegria do
termo recreação; Dumazadider (1980) o lazer após as obrigações realiza o
prazer; Dra. Romina Barros (2009) em uma reportagem relata a importância do
recreio para o comportamento; Collet (2008) a importância de se fazer
atividades físicas e Kishimoto (1993) a importância do jogo, dente outros
autores.
Mediante os problemas vivenciados relacionados às questões estruturais da
nossa sociedade e do sistema escolar, observo a necessidade de um método,
que contribua para estudos sobre a História da Educação na Bahia com um em
foque no brincar (o ideal de escola), em uma perspectiva de gênero,
objetivando disseminadores não somente sobre a história da educação, mas
que encontrem em seu universo, possibilidades de trabalho, que contemple e
contribua para formação de cidadãos críticos, participativos e ativos, que se
observem como parte integrante da escola e da história. Pensando nisso quero
criar um jogo onde as crianças possam idealizar e criar o seu ideal de escola
como um momento lúdico e saudável para as mesma.

PROBLEMA
O problema a ser investigado surgiu quando identificamos a necessidade de
uma construção problematizadora e dialógica sobre como esse momento lúdico
na vidas das crianças podem melhorar a história da educação na Bahia, que
esteja engajada também com a memória destes sujeitos e potencialize uma
aprendizagem construtiva. Assim, destacamos que é necessário desenvolver

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uma práxis pedagógica em rede digital capaz de conduzir a construção para


novas adaptações lúdicas para as crianças no contexto histórico da educação
na Bahia.

- Como entender o jogo RPG em seu formato digital como uma ferramenta
pedagógica para a educação no ensino de História para as crianças?
- Como desenvolver o jogo RPG digital para o ensino-aprendizagem da História
da Bahia?

Ou seja, o problema leva ao estudo de uma solução prática, a construção de


uma rede.

OBJETIVOS

Dentro do objetivo principal que é Construir uma proposta pedagógica que


possibilite o estudo sobre a melhora da história da Educação na Bahia através
do lúdico (O brincar).

- Proporcionar um ótimo recreio para as crianças: Onde ambas poderão


interagir, intervir, relacionar, brincar e trocas de experiência e cultura umas com
as outras fazendo assim usos das ferramentas que temos em mão
(tecnologias).
- Recreio direcionado com atividades lúdicas e que possibilite as crianças um
bom desenvolvimento físico, motor e mental, resgate de brincadeiras antigas
saudáveis fazendo uma interação com os novos conhecimento (tecnologia).
- Participação dos professores ou auxiliares nesse momento do recreio
- Resgate de novas (antigas) brincadeiras assim criando uma articulação com
as velhas brincadeiras com as novas com o surgimento da tecnologia e suas
facetas com os jogos que possibilita a criança a interagir melhor.

Como o jogo digital pedagógico na modalidade RPG pode contribuir e ser


capaz de envolver sujeitos/jogadores no espaço escolar de ensino, voltado
para o ensino-aprendizagem aprofundado a história, abordando temas
transversais, fazendo assim uma interação com o prazer(brincar) e o
dever(fazer)?

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Pensar o recreio como tempo e espaço de aprendizagem e brincadeira.

• Os jogadores seriam responsáveis por transformar uma escola


decadente na escola "ideal". A nesse desafio você colocaria os fatores
que degradam a escola, agentes externos que contribuem de maneira
negativa para o ambiente escolar e outros fatores que impactam na
construção de ambientes saudáveis para alunos e professores;

• Uma construído a escola ideal, seriam trabalhados como prover a


manutenção desse espaço, a sociabilização na de alunos e professores
e outros profissionais nesse ambiente e relação desse nova escola com
a comunidade.

• Os jogadores seriam responsáveis por transformar uma escola


decadente na escola "ideal". Nesse desafio colocaríamos os fatores que
degradam a escola, agentes externos que contribuem de maneira
negativa para o ambiente escolar e outros fatores que impactam na
construção de ambientes saudáveis para alunos e professores;

• Uma construído a escola ideal, seriam trabalhados como prover a


manutenção desse espaço, a sociabilização na de alunos e professores
e outros profissionais nesse ambiente e relação desse nova escola com
a comunidade.

• Como entender o jogo RPG em seu formato digital como uma


ferramenta pedagógica para a educação no ensino para as crianças? •
Como desenvolver o jogo RPG digital para o ensino aprendizagem da
História da Bahia?

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Fazer uma análise do contexto, pegar pequenos grupos de 3 escolas e fazer


uma análise do que os professionais e alunos acham do recreio de modo geral.

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1630
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

INFÂNCIA ENJEITADA NA SALVADOR DO SÉCULO XIX: A SANTA CASA


DE MISERICÓRDIA DA BAHIA E A EDUCAÇÃO DOS EXPOSTOS
346
ANA PAULA DE SOUZA (UFRB)

Fundada em 1549, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia (SCMB),


atuou no cenário sociopolítico da cidade de Salvador desde sua fundação no
século XVI até os idos do século XX. Criada para prestar assistência social à
população da cidade, esta firmou sua atuação político-administrativa com
ações de cunho filantrópico prestando acolhimento aos pobres e crianças
enjeitadas. Seja cuidando dos doentes, ou salvando as almas pagãs dos
indivíduos que a esta recorria, a SCMB cuidou também de educar para bem
servir os pobres e órfãos que lhe eram despejados na Roda dos Expostos,
perante o anonimato que lhe era permitido visando preservar a identidade de
quem a ela recorria. A Roda dos Expostos de Salvador fora fundada pela
Irmandade da Misericórdia em 1726. (RODRIGUES, 2003, p. 101)
A Roda cumpriu papel importante no cenário da época, pois esta foi a
única instituição de assistência à criança abandonada no Brasil (MARCÍLIO,
2011, p. 53).
Foi na prestação de serviços de assistência social e acolhimento aos
doentes que a Santa Casa ordenou boa parte de suas atividades. Em 1716
passou a ofertar o serviço educacional como demanda de seu expediente.
A SCMB mantinha suas atividades na sua sede situada à Rua da
Misericórdia, no Pelourinho. No ano de 1862 transferiu suas instalações para o
Campo da Pólvora, e no mesmo ano, mais precisamente, em 29 de junho de
1862, fora instituída a Escola Interna do Asilo da SCMB. Fundado em 1862, o
Asilo dos Expostos passou a ter um regulamento no ano de 1863, que por sua
vez vigorou até o ano de 1914, quando este foi substituído.
Dentre os propósitos do Asilo estavam o cuidado com a preservação
da ordem através da educação religiosa e do trabalho, pois a educação rígida e
disciplinar ali prestada conteria as inquietações dos internos.

346
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia, Especialista em Educação e
Relações Raciais pela Universidade Federal Fluminense e Mestranda do Programa de Pós-
graduação em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia.

1631
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

No que tange ao aspecto educacional, a SCMB não se via obrigada a


constituir escolas formais, mas assim o fez por iniciativa própria, devido ao
entendimento da necessidade de educar as crianças que chegavam a seu
abrigo. Crianças de toda ordem: órfãs, enjeitadas, doentes, mas, como “filhas
de Deus”, deveriam ser batizadas, cuidadas, alfabetizadas e preparadas o mais
cedo possível para ganharem dignamente seu sustento no mundo exterior, em
conformidade com um projeto assistencial consolidado, herdado do sistema
colonial. Pois, ainda de acordo, Freitas (2011):

Quando entra em cena a criança “brincando”, “estudando”, ou “sendo


curada”, muitas vezes esses típicos episódios dão-se à condição de
registros fragmentos de uma violência quotidiana, por assim dizer,
“interiorizada”. Quero chamar a atenção para o fato de que a criança
pode ter sido uma metáfora viva da violência numa sociedade que
proclama em inúmeras ocasiões sua destinação à civilização mas
que, via de regra, não cessou de embrutecer-se. (FREITAS, 2011, p.
252-253)

A ação educacional da Escola Interna, seguindo uma orientação


tradicional, possuía um forte vínculo com a religiosidade católica e suas noções
de formalismo, disciplinamento, avaliações quantitativas e diferenciação quanto
a sexo, pois a educação concedia às meninas deveria se diferenciar da
oferecida aos meninos ali abrigados.
O ingresso dos expostos que ali eram recolhidos se dava por meio da
Roda dos Expostos, único meio de acolhimento destes na época. Devido às
mazelas a que eram submetidas às crianças ainda no Império, a Roda com sua
função caritativa evitava que estas estivessem submetidas aos maus tratos da
fome e do frio quando jogadas à rua. E as crianças recolhidas, de acordo
SANTANA (2008, p. 83):

As crianças asiladas eram agrupadas de acordo com a idade:


meninos e meninas de 0 a 3 anos ficavam na casa de amamentação;
de 3 a 7 anos ficavam no chamado asilo inferior; meninas de 8 a 21
anos eram alojadas no asilo superior e meninos ocupavam um outro
alojamento. Cada espaço era regido por regras previstas no
Regulamento. De acordo com os Relatórios da instituição, a idade
limite para a permanência de meninos era 12 anos (ASCMB,
Relatório..., 1884-1885); acima desta idade só permaneciam meninos
“[...] anormais e incapazes de qualquer proveito intellectual.”
(ASCBM, Relatório..., 1914, p. IV); em 1921, o Relatório refere-se à
saída dos meninos ao atingirem a idade de 14 a 15 anos, sem
maiores explicações (ASCBM, Relatório..., 1921-1922). No tocante às

1632
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

meninas, o Regulamento de 1863 (ASCBM, Regulamento..., 1874,


p.12) traz textualmente, no Artigo 31: “As meninas, depois da idade
de seis anos, serão educadas no Asilo, de onde sairão para casar, ou
para companhia de alguma família capaz, debaixo de contrato, ou
ainda para viverem sobre si, se o quiserem, depois de completar a
maioridade”.

A linha tênue entre orfandade e abandono se esmiúça no sentido de


que a criança órfã era aquela sem pai e sem mãe, isenta de qualquer figura
parental que pudesse lhe prestar assistência. Já a criança abandonada era
aquela enjeitada, jogada ao desprezo e renegada socialmente. Tão logo, a
assistência lhe era prestada através do abrigo em orfanato e asilos de
acolhimento a menores, já que não havia nenhum tipo de assistência à infância
à época, pois a municipalidade, responsável pelo acolhimento dos menores
abandonados, alegavam falta de recurso (RUSSEL-WOOD, 1981, p. 234-235).
Nota-se que o cuidado com a infância durante muito tempo se deu
unicamente por meio das ações do Asilo, que cuidavam dos seus internos
desde a atenção à saúde até o cuidado espiritual – a preocupação com o
batismo dos internos era candente na Santa Casa. Registros apontam que
imediatamente o ingresso do enjeitado era providenciado seu batismo a fim de
que não se mantivesse pagão 347 –, pois a “primeira preocupação do sistema
para com a criança nela deixada era de providenciar o batismo, salvando a
alma da criança: a menos que trouxesse um escritinho – fato muito recorrente”.
(MARCILIO, Op. cit, p. 54)
O cuidado com a vida dos expostos compunha a pauta da Santa Casa,
tendo em vista as interdições legais que estes sofriam diante ações estatais.
Pois, leis imperiais eram regulamentadas impermeabilizando seu acesso à
educação escolar. Dentre elas está o Aviso Imperial 144, de 1864 – dois anos
após a fundação da Escola Interna do Asilo – que: “proíbe matrícula escolar
aos portadores de doenças contagiosas; escravos e não vacinados” (ROMÃO,
NEAB/UNIAFRO, 2013).

“A tratar do interno Marcollino de Mattos, menino pardo de idade de cinco mezes deixado na Roda do
347

Azylo pela meia noite do dia 6 de Janeiro de 1865. Baptizou-se no dia 7 de Janeiro de 1865”. ARQUIVO
DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA. Livro da Roda ou Registros de Admissão dos
Expostos, nº 2, 1865-1975. Ocorrência registrada com o número 151, de 6 e 7 de janeiro de 1865

1633
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Em contraproposta ao que dizia a Lei Imperial, a instituição se


mantinha ativa sua atenção à saúde dos expostos recorrendo periodicamente
aos cuidados médicos e de vacinação a estes:

Officio ao mesmo. Santa Casa, 14 de outubro de 1881. Illustrissimo


Senhor
Communico a Vossa Senhoria em solução ao pedido, por seu
intermedio fez o digno facultativo desse estabelecimento que o
Governo da Provincia por officio de 1º do corrente em resposta ao
desta Provedoria de 4, declarou-me ter determinado ao Dr. Director do
Instituto Vaccinico que um dos medicos do mencionado Instituto
compareça no Asylo dos Expostos, nos primeiros dias de cada mez, às
9 horas da manhã para praticar a vaccinação. Deus guarde Vossa
Senhoria. Illustrissimo Senhor Comendador Adolpho F. Hasselmann. O
348
Provedor Conde de Pereira Marinho.

É importante salientar que com o advento da Lei do Ventre Livre no


ano de 1871, o número de enjeitados no Asilo aumentou devido ao grande
número de ingênuos – filhos de escravizadas nascidos livres – que foram
recusados pelos senhores de engenho que não quiseram arcar com a criação
daquela criança.
E aqui, na Província da Bahia, no ano de 1873, logo após a primeira lei
abolicionista, fica regulamentada a instrução pública com base na lei 1.335, de
27 de setembro, em que o Artigo 83 mostra: “Não serão admitidos à matrícula,
nem poderão freqüentar as escolas (...) os meninos que padecem de doenças
contagiosas, os não vacinados e os escravos” (ROMÃO, no prelo).
Além das imposições legais do Estado sobre à população oriunda da
escravidão como era o caso dos ingênuos, a Santa Casa na sua ação caritativa
preservou o cuidado com esse grupo, prestando-lhe apoio necessário à
preservação da sua saúde física, espiritual e educacional. Pois era grande o
número de crianças de cor enjeitadas. Ainda de acordo com o livro da Roda –
livro de registro de ingressos pela Roda dos Expostos da Santa Casa –
crianças “cabras, creoulas e pardas” eram constantemente rejeitadas:

Pelas noves horas e um quarto da noite foi exposto na roda do Asylo


da Santa Casa da Mizericordia um menino cabra de idade de 15 dias
doente trouxe os seguintes objetos.

348
ARQUIVO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA. Mordomia Asylo dos Expostos,
Livro 1, nº 150. Registro de correspondência com Mordomo do Asilo dos Expostos, 1871-1899. Ofício nº
378.

1634
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

1º 1 camisa de madrasto com bico


2º 1 cueiro de chita verde
3º 1 tira de pano de madrasto servindo de cinto
4º 1 touca de cassa de carossinho com bico
Este menino trouxe consigo a carta seguinte
Illustrissimo Senhor Comendador Manoel José de Figueiredo Leite
Junto a esta vai o pequenino João Paulo filho de Jezuina Adr. de
Souza que hoje recolheo na Santa Caza de Mizericordia pelo seu
estado de saude e pobreza e como faltão-lhe os meios precizos para o
seu tratamento [ilegível] a Vossa Senhoria a fim que tenha nos
menores dos desvalidos até que torne restabelecido da sua saude.
Esperamos esta graça e caridade de Vossa Senhoria. O Menino
nasceo no dia 26 de Junho do corrente anno.
Sou com todo o respeito e estima
Placido Moreira Dantas 349

À medida que os anos se passaram mais crianças eram recolhidas na


Roda, e com isso foi aumentando o contingente de expostos. E para isso,
algumas medidas contempladas pelo estatuto de 1863 precisavam ser
suplementadas por um novo regimento, que só foi adotado posteriormente no
ano de 1914.
Também deve ressaltar que diversas mudanças transcorreram no
Império e na República no intuito de melhorar o método pelo qual muitas
crianças eram recolhidas nos asilos e casas de acolhimento. Isso se devia ao
fato de que sem haver uma medida efetiva que evitasse o abandono de
crianças à época, o revezamento entre entidades filantrópicas e Estado era
recorrente (PASSETTI, 2013, p. 348)
Da sua fundação em 1862 até o ano de 1900, a Escola Interna do
Asilo, imediatamente à Proclamação da República, sofreu mudanças no pano
de fundo da instituição. Suas ações caritativas agora estariam condicionadas
às demandas do Estado, pois com a mudança do regime político, não lhe cabia
mais suprir lacunas deixadas por aquele em tempos de reestruturação da nova
ordem social.
Ao longo dos anos outras demandas eram cumpridas no Asilo. As
crianças eram educadas nos moldes religiosos para que fosse mantido o bom
caráter do indivíduo, e separadamente, meninos e meninas cresciam
predestinados a constituírem suas famílias e se tornarem pessoas de bem.

349
ARQUIVO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA. Livro da Roda ou Registros de
Admissão dos Expostos, nº 4, 1865-1975. Ocorrência registrada com o número 449, de 17 de julho de
1869.

1635
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Educadas para serem boas mães e cuidadoras do lar, as meninas se


apropriavam de prendas transmitidas pelas irmãs de caridade, e aprendiam
rudimento de leitura. O que deixa explícito a natureza simbólica da violência
sobre a infância no panorama social brasileiro. Tão logo:

(...) Trata-se da violência simbólica que acompanha as


reconstituições da história social da infância no Brasil. Por intermédio
das representações do quotidiano da criança e de considerações
sobre seu comportamento individual, parte do pensamento social
brasileiro tem oferecido ao público leitor e à comunidade de
investigadores em geral, um passado refeito como fatalidade,
recuperado como único possível e resgatado como o “campo do
acontecido de forma inevitável”. (FREITAS, Op. cit, p. 255)

As mudanças com o novo estatuto não chegaram a ser diametrais, pois


muito do que havia sido posto no antigo estatuto, havia sido preservado no
novo. Alguns pontos de ordem administrativa foram revistos, pois cargos que
eram de ocupação da Superiora, normalmente uma irmã de caridade da Casa,
passou a ser ocupado por educadores. Tratou-se de pequenas mudanças
substanciais na ordem administrativa da entidade.
Quanto ao que concernia à admissão das crianças, condicionou-se a
manutenção da Roda, mas algumas exigências foram implantadas mediante a
admissão destas. O batismo das crianças que ingressavam na Santa Casa
passou a ser obrigatório, e isso de acordo o estatuto de 1863, ainda foi mantido
no que fora substituído, o de 1914, e consta no Art. 6º o seguinte:

O exposto que não trouxer nome receberá o do Santo do dia de sua


exposição; e se por qualquer circumstancia não for possível, o que o
Mordomo lhe der: e terá o cognome do padrinho, se elle nisso
convier, e sempre o de – Mattos – e prova do reconhecimento ao
primeiro Bemfeitor da Santa Casa (RODRIGUES, Op.cit, p. 103)

O cuidado com o registro civil das crianças busca obedecer não só ao


seu novo estatuto, mas também as leis republicanas, fazendo assim com que a
responsabilidade que era da Igreja passe a ser do Estado.
Com a passagem do Império para República nota-se a mudança da
configuração social que representava a criança. O que por sua vez não passa a
demonstrar maior atenção à criança, e sim uma preocupação em reconfigurar

1636
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

um significado social frente ao novo regime nos moldes que se esquivam de


qualquer resquício com a escravidão.
Após a Primeira República, os ares de civilização e modernização da
sociedade tomaram conta do país, de modo a fazer com que práticas
remanescentes do regime escravista fossem postas de lado para conferir à
sociedade ares de civilidade trazidos pelos novos tempos que surgiam.
Com isso, no ano de 1934, é implantado o regulamento do escritório
aberto, que passaria a admitir crianças não mais pela Roda, que passou a ser
um modo de admissão retrógrado e inadequado aos propósitos que surgiam
para a instituição.
Extinta a Roda, o Escritório de Admissão, passou a não mais admitir as
crianças por meio da clandestinidade. O acolhimento das crianças através do
escritório estaria condicionado à disposição de familiares que passariam a
explicar as razões do abandono, mas ainda assim era garantido o silêncio dos
responsáveis que deixariam sua prole aos cuidados deste.
O abandono de crianças através da Roda dos Expostos que vigorou de
1726 a 1934, na Rua da Misericórdia, e posteriormente no Campo da Pólvora,
isentou o Estado de assumir sua responsabilidade para com as crianças
abandonadas em Salvador. Mais que isso, permitiu que medidas e ações
públicas deixassem de ser tomadas em prol de um pequeno grupo que estava
vulnerável aos direitos sociais, que ora não existiam.
O acesso à cidadania, o direito à saúde, moradia e comida fora
assegurado pelo poder da Igreja através das ações da Santa Casa. Com isso a
educação também se perpetuou, já que era um direito social que libertaria das
mazelas do mundo e prepararia para o bem servir.

REFERÊNCIAS

ARQUIVO DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DA BAHIA. Livro da Roda


ou Registros de Admissão dos Expostos, nº 2, 1865-1975.

_______________________. Livro da Roda ou Registros de Admissão dos


Expostos, nº 4, 1865-1975.

1637
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

_______________________. Mordomia Asylo dos Expostos, Livro 1, nº


150. Registro de correspondência com Mordomo do Asilo dos Expostos, 1871-
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SANTANA, Ângela Cristina Salgado de. Santa Casa de Misericórdia da Bahia
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1638
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

INFÂNCIAS, CRIANÇAS E CULTURAS: A GINGA DA (DES) CONSTRUÇÃO


NA RODA DA SOCIEDADE

ANA LÚCIA SOARES DA CONCEIÇÃO ARAÚJO (DMMDC/UFBA) 350

Prenúncios para o diálogo

Abre a roda tindo-lê, abra a roda tindô- lá


Uma roda se faz assim, se faz assim
Uma roda, não tem começo
Roda e não tem fim 351

Esta canção no cotidiano da Educação Infantil é um convite para


iniciarmos uma conversa coletiva e decidirmos como e por onde caminharmos.
A roda faz parte de uma prática comum nos espaços formais de Educação
Infantil, desencadeia quebra de hierarquia entre as crianças e adultos,
possibilita uma visão panorâmica da totalidade do grupo, ninguém se esconde
na roda, todos estão a princípio em pé de igualdade, embora cada um seja
diferente e singular. Possibilita uma conversa sem transmissão de saberes e
experiências de forma unilateral, por permitir a participação coletiva - uns
falando mais, outros falando pouco ou comunicando-se com gestos, olhares
que denotam se o conteúdo da conversa agrada ou desagrada.
A roda, dependendo da concepção de criança e infância, sempre
começa um dia de trabalho na Educação Infantil. Nesse espaço circular
circunscrito às crianças e nós adultos permanecem em um lócus de abertura,
no qual falamos de nós mesmos, dos sentimentos, das curiosidades, das
descobertas, do que estar por vir. A roda é ambém o ponto de partida para se
começar uma roda de samba, roda de capoeira e outras rodas da vida porque
não tem início, nem fim, porque não há último nem o primeiro, mas por outro
lado é território de concessões, tensões, trocas, lutas, transformação.

350
Doutoranda do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento
da UFBA e professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da UFBA.
351
O primeiro verso faz parte da discografia de Lídia Hortelo e os versos seguintes da estrofe é
de domínio público perpetuado pelo tradição de convidar as crianças para fazer a roda no
espaço da Educação Infantil.

1639
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

É nesse rodar que elejo os elementos da Roda de Capoeira para


compreender as desconstruções das concepções de crianças, infâncias
necessárias romper ou ainda coexistem na contemporaneidade, que
desnudam variadas culturas infantis e perpassam nas práticas sociais cotidiana
onde as crianças estão inseridas. A escolha por alguns fundamentos da
capoeira partiu por ser o eixo norteador para compreendermos o Pensamento
Social Brasileiro e também por traduzir adaptações da sabedoria das culturas
afrobrasileira por intermédio dos motes, axiomas, referenciais históricos e
conselhos ao modo africano 352 . Nessa configuração metafórica incluo as
crianças, adultos e idosos como um grupo de pessoas que constituem a grande
roda do mundo para discutir o conceito de geração e suas interconexões. A
ginga é o movimento básico para iniciar o jogo da capoeira, a intenção desse
dançar ritmado acompanhado ao som do berimbau, com os pés sempre
deslizando no chão é manter atenção permanente à esquiva, ataque, contra-
ataque ou fugas em relação ao “parceiro-oponente” .
Esse gingar ritmado a curta distância do oponente é dotado de uma
postura mental, física e emocional de constante alerta, com ações imprevisíveis
para defesa ou combate. Nos movimentos da ginga cada “parceiro-oponente”
tem os conhecimentos dos golpes que poderão desvelar no jogo de capoeira,
sem nenhuma comunicação verbal, apenas o corpo em movimento com a
memória, singularidade e emoção de cada um estabelecem a comunicação
necessária para se defender, atacar ou fugir.
É uma parceria de cumplicidade e ao mesmo tempo tensão, pois o outro
pode a qualquer momento imputar golpes que definirão quem ganha e perde
no jogo. É nesse gingar que discuto movimento filosófico, histórico, social e
cultural das concepções de criança e a infância, que “formatam”, perpassam
na sua participação/relação em várias instituições na grande roda: a
sociedade.
Esse gingado é executado por negaça, quando posicionamos às
crianças uma infância de negar o direito a voz como “a idade do não inscrita

352
A. A. Decanio Filho no site http://capoeiradabahia.portalcapoeira.com/tags/o-que-e-capoeira/
divulga informações advindas dos praticantes e estudiosos da capoeira na Bahia com o objetivo de
propagar os princípios técnicos, pedagógicos, filosóficos e psicossocial, sem discriminações religiosas,
sociais, culturais ou raciais.

1640
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

desde do étimo da palavra latina que designa esta geração: in fans o que não
fala” (SARMENTO,2007, p.33). Mas, ao mesmo tempo, de esquiva das
crianças como movimento de defesa no jogo da capoeira para evitar um golpe
sem tocar no oponente, já que a idade as colocam, muitas vezes, em
condições de submissão ou vulnerabilidade em detrimento aos adultos porque
não pode assumir certos afazeres sozinhas.
Nesse movimento de esquiva sutil as próprias crianças no exercício da
cultura infantil, por meio das suas subversões reveladas na interatividade,
ludicidade, fantasia do real e reiteração, manifestam-se ser um sujeito histórico
e ativo. Entende-se, aqui por cultura infantil, o conceito cunhado por Manuel
Sarmento (2003) e William Corsaro (2011) a capacidade das crianças com
seus pares sistematizarem modos de significação do mundo e de ação
intencional diferentes dos modos de significação e ação dos adultos. Apesar
das crianças exprimirem a cultura societal em que estão inseridas, há ao
mesmo tempo, formas específicas infantis de inteligibilidade, representação e
simbolização do mundo, regidas pelas relações de conflito e cooperação,
atualizadas de acordo classe social, gênero, pertencimento étnico/racial,
localização geográfica, por isso se faz necessário a pluralização do termo para
culturas infantis.
Por outro, lado,Shirley Steinberg e Joe Kincheloe (2004) nos apontam
uma pedagogia cultural, que se situa nas áreas nas quais o poder é organizado
e difundido, não só na escola, nas bibliotecas, mas também no cinema, na TV,
propagandas, videogames, sites e nos brinquedos. Segundo os autores os
efeitos da pedagogia cultural fomenta a formação da identidade, sua produção
e legitimação do conhecimento, ou seja seu currículo cultural. Esse processo
de codificação, seleção incorporação, hierarquização veiculados pelos
dispositivos de transmissão de saberes e valores criados para o público
infantil, entretanto, acredito serem transformados, sorrateiramente, pelas
crianças na roda da vida como uma mandiga 353 na roda da capoeira para não
sucumbirem frente aos excessos de controle e hierarquizações gerados e
conduzidos pelos adultos, construindo juízos, interpretações, condutas infantis
criados pelos novos modos de significação do mundo e ações intencionais nas

353
Mandiga é a malícia de saber entrar e sair no joga da capoeira http://capoeira-cecab.eu/capoeira-
2/fundamentos-da-capoeira/?lang=pt-br.

1641
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relações estabelecidas com seus pares, produzindo culturas infantis plurais e


mutáveis. Como bem salienta Sarmento:

As culturas da infância são, em síntese, resultantes da convergência


desigual de fatores que se localizam, numa primeira instância, nas
relações sociais globalmente consideradas e, numa segunda instância,
nas relações inter e intrageracionais. Esta convergência ocorre na ação
concreta de cada criança, nas condições sociais (estruturais e
simbólicas) que produzem a possibilidade da sua constituição como
sujeito e ator social. Este processo é criativo tanto quanto reprodutivo (
SARMENTO ,2003, p.8).

Nessa direção, a ampliação do conceito de geração como categoria


estruturante da infância trazida por Sarmento (2005) e Jens Qvvortrup (2000),
faz-se imprescindível por considerar a complexidade dos fatores de
estratificação e a confluência sincrônica de todos eles, porque a geração não
dilui os impactos de classe, gênero ou de etnia/raça nas caracterização das
posição social numa ação de ativação/desativação desses efeitos específicos.
Assim sendo,
o conceito de geração não só nos permite distinguir o que separa e o
que une, nos planos estrutural e simbólico, as crianças e adultos, como
as variações dinâmicas que nas relações entre crianças e entre
crianças e adultos vai sendo historicamente produzido e elaborado
(SARMENTO, 2005, p.366)

É preciso, portanto, diferenciar a infância como uma categoria social do


tipo geracional e criança como um sujeito concreto que integra este grupo
etário com suas diferenças. Sendo assim, é mister um olhar do reconhecimento
crítico da alteridade da infância, a fim de conceber as crianças como múltiplos-
outro, diante dos adultos, face as variadas condições sociais.
A partir das premissas até aqui esboçadas é que proponho o estudo das
infâncias e suas culturas com base nos estudos antro-sociológicos
contemporâneos, por romper com a concepção de infância biopsicologizante
que a reduzia aos aspectos maturacionais do desenvolvimento humano,
propondo a criança como parte da construção social que traz condições de
existência afetadas e, ao mesmo tempo, afeta na estruturação do espaço-
tempo do cotidiano no espaço doméstico, na escola, nos mass-media e no
espaço público. Coloco as crianças e infâncias nessa perspectiva sob as lentes
ampliadas do olhar que propiciem serem autônomas, críticas e criativas,

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respeitando a pluralidade de seus contextos e histórias de vida como sujeitos


que fazem parte da sociedade, não como vir a ser.
Configura-se numa visão que estuda as crianças e infâncias, não numa
perspectiva pré-fabricada idealizada, como se todas exercessem suas
atividades uniformizada, calcadas por concepções filosóficas que posicionam
as crianças, ora como uma tábua rasa, ora como um ser naturalmente boa com
fim último de domesticação e intervenções institucionalizantes que traduzem a
concepção adultocêntrica de ser criança e viver a infância.
Com o objetivo de tentar fazer este olhar epistêmico complexo traço em
linhas gerais o reflexo/implicações no redimensionamento do modelo científico;
como a criança era concebida da sociedade greco-romana à
contemporaneidade, período este que estabeleço uma interlocução com o
conceito de desconstrução cunhado por Derrida para tentar rompermos com as
formas e padrões instituídos de cultura infantil universal, buscando dialogar
com a Sociologia da Infância e Antropologia da Criança para compreender
configurações das culturas infantis.

1. A negação-esquiva binômio na roda das concepções de criança(s) e


infância(s)

Embora as crianças sempre fizessem parte de toda e qualquer prática


social em todos os momentos históricos da humanidade. Nas sociedades
primitivas as crianças acompanhavam seus pais na caça com o intuito de
aprender a manusear os utensílios que pudessem garantir a sua sobrevivência
e, ao mesmo tempo, esses momentos representavam momentos de brincar
aprendendo as práticas culturais passadas de geração para geração.
Na sociedade greco-romana a infância tinha um lugar de devir
acentuado pelas compreensões de Platão na República II-IV citado por Kohan
(2008) assumindo quatro características básicas: A primeira como uma
possibilidade frente à realidade, pois uma criança representava um membro
potencial da polis, a possibilidade de um futuro cidadão. Quanto mais cedo

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preenchesse os requisitos inatos almejados pelos adultos, mais precocemente


seriam colhidos os benefícios. A segunda característica era a inferioridade
frente à superioridade para Platão as crianças não deveriam participar das
formas superiores da alma humana, que dariam lugar aos valores supremos da
polis, sendo assim, as crianças seriam inferiores aos adultos, varões
atenienses por não participarem do logos.
A terceira forma de conceber a infância era a relação da exterioridade
perante a interioridade, o adulto visto como superior, a criança ficaria excluída
de todos os âmbitos: político, ético, cognitivo, epistemológico, estético. Platão
coloca o lugar da criança junto com outros membros excluídos da polis- as
mulheres e escravos. “a infância é uma das formas de alteridade que uma
interioridade central separa e manda para fora” (Kohn, 2008, p. 44). O último
aspecto é a representação da criança como o material para os sonhos
políticos dos filósofos e dos educadores, nessa direção, concebe-se um
modelo de ser humano já posto, transcendente, imutável, eterno, educar a
infância com vistas a esses modelo era considerado o melhor para ela e para
o mundo da polis mais justa, mais bela.
O discípulo grego de Platão, Aristóteles, consagrou à criança uma visão
não muito diferente, uma vez que a considerava como um ser inacabado,
incompleto por natureza, inclusive nos planos éticos e políticos, mas um adulto
em potência, que só alcançará a sua completude e finalidade na adultez.
Essas concepções influenciaram o modo de pensar a infância e a
criança na idade média, ofuscando o seu papel na sociedade sendo tratadas
como adulto em miniatura ou vir a ser como retratado na obra de Àries (1981)
ao trazer a história social da criança e da família nesse período.
Os resquícios das concepções historicamente construídas sobre as
crianças, assim como, o conjunto de sistemas de crenças, teoria e ideias, em
diferentes momentos históricos traçaram imagens sociais da infância que são
muito bem esboçadas por Sarmento (2007). O autor classifica as imagens
sociais, a partir da modernidade ocidental, em pré-sociológica por impregnar
nas relações entre adultos e crianças no cotidiano de forma camuflada de
significado, as seguintes imagens:

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A criança má baseada no pecado original associada a ideia de que o


corpo e a natureza precisam ser controlados. A teoria filosófica de Hobbes de
acordo Sarmento (2007) teve grande influência nessa concepção por postular o
controle dos “excessos” pelo poder absoluto do Estado sobre os pais e as
crianças para evitar a anarquia social ou ações individuais. Esta visão
incentivou medidas intervencionistas, principalmente, para as camadas
populares da população com mediadas paternalistas e de repressão infantil.
Em contraposição, emerge a ideia da criança inocente, fundamentada no
mito romântico da infância como a idade da inocência, pureza, da beleza e da
bondade. Encontra em Rosseau seu paradigma filosófico. A “tese aqui
dominante é a de que a natureza é genuinamente boa e só a sociedade a
perverte” (Sarmento, 2007, p. 31). Esta concepção traz também uma visão
salvífica da criança como futuro do mundo, alicerçada na crença romântica da
bondade infantil.
Outra concepção é da criança imanente ancorada pelo modo de pensar
num potencial de desenvolvimento da criança, não a partir da “natureza boa”,
mas pela possibilidade de adquirir pela razão e a experiência o que se deseje
moldar. Esta ideia foi influenciada pelo pensamento filosófico de John Locke
no século XVII, que concebia a criança como uma tábua rasa, podendo ser
impressos o vício ou a virtude, a razão ou desrazão, sendo papel da sociedade
promover o crescimento infantil com vistas a uma ordem social homogênea,
coesa.
No século XX com influência dos estudos de Piaget desencadeou-se a
concepção de uma criança naturalmente desenvolvida. Parte-se de dois
pressupostos principais, que as crianças são seres naturais, antes de serem
seres sociais e a natureza infantil sofre um processo de maturação biológica
que se desenvolve por estágios.
Paralela a esta concepção temos a da criança inconsciente – tendo o
seu fundamento na psicanálise, Freud como expoente principal atribui ao
inconsciente o desenvolvimento do comportamento humanos, com conflitos
relacional na idade infantil, principalmente, com as figuras paterna e materna.
Sarmento (2007) salienta em relação a esta perspectiva que,

1645
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a criança é vista como um preditor do adulto, mais do que como um ser


humano completo e um ator social com a sua especificidade, a
psicanálise introduz um viés interpretativo que impede a análise da
criança a partir do seu próprio campo. Acresce ainda o determinismo
que leva, frequentemente, a imputar comportamentos desviantes a
vivências infantis, o que não deixa de ser uma deriva da “criança má”,
que se revela quando adulta. (SARMENTO, 2007, p. 31-32)

As diferentes imagens sociais da infância, muitas vezes, são


sobrepostas e confundem-se nos diversos espectros da sociedade, ora
privilegiando a concepção de uma criança que precisa ser domesticada,
controlada de forma repressora, ora incentiva-se uma criança naturalmente boa
que só precisa de um ambiente adequado para crescer e desenvolver-se,
sempre sobre égide do vir a ser na concepção do adulto ou como salvadora do
futuro mundo.
Como bem afirma Roudinesco (2004, p.9) em relação a postura atitude
filosófica de desconstrução na visão de Derrida apresentado em 1967 na
Gramatologia “desconstruir é de certo modo resistir à tirania do Um, do logos,
da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com ajuda do
próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes”.
Nesse movimento na grande roda do mundo é preciso questionar, recompor,
reorganizar os discursos até então hegemônicos que posicionam as crianças
como seres incompletos, como se os adultos fossem completos. É pensar
tornar visível as diversas crianças e infâncias no que tange a sua geografia, a
sua pertença étnica, sua opção/identidade de gênero/sexo e condição
socioeconômica.
Desse modo, conhecer o que ser criança, como vivem e pensam, assim
como o significado de infância e quando termina esta fase da vida, é preciso
nos desvencilhar das oposições binárias oriundas do pensamento ocidental e
abordar o que existe e nos revelam as crianças nos contextos. A Antropologia
aponta para esta possibilidade de desconstrução para compreensão dos
fenômenos ao propor:

Desde cedo, os antropólogos têm insistido na necessidade de abordar


as culturas e sociedades como sistemas, o que significa dizer que
qualquer evento, fenômeno ou categoria simbólica e social ao ser
estudado deve ser compreendido por seu valor no interior do sistema,
no contexto simbólico e social em que é gerado.(COHN, 2009, p.9).

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As crianças como pessoas ativas na constituição das relações sociais


engaja-se numa lógica particular, aciona a cada momento histórico o sistema
simbólico como os demais indivíduos de outras gerações para dar sentido as
suas experiências. Portanto, a desconstrução ao estudar com as crianças e as
infâncias, requer desvencilhar-se de um estudo sobre as crianças, apresenta-
se como uma estratégia política e intelectual de leitura das suas diferenças,
não de imagens pré-concebidas e universais.
Inventariar os princípios geradores e regras das culturas da infância
pode nos ajudar a conhecer ou compreender melhor as crianças, requer a
consideração de quatro eixos estruturadores das culturas da infância, citadas
inicialmente e que serão retomadas com base nas definições de Sarmento
(2004p, 14-17): a interatividade, a ludicidade, a fantasia do real e a reiteração.
A interatividade nas múltiplas e diversas realidades (na família, nas
relações escolares, comunitárias ou atividades sociais) é uma aprendizagem
eminentemente nos espaços que partilham em comum desenvolvida na cultura
de pares que lhes permite apropriar, reinventar, reproduzir o mundo que as
cerca. O convívio com seus pares por meio das atividades e rotinas possibilita
exorcizar medos, representar fantasias, e cenas do cotidiano.
A ludicidade é o traço nuclear das culturas infantis e o brincar é a
principal via de acesso, embora seja próprio dos seres humanos como uma das
atividades mais significativas. As crianças, no entanto, o brincar é sempre uma
séria porque é condição para aprendizagem e sociabilidade.
A fantasia do real possibilita transpor o real imediato e reconstroem
criativamente pelo imaginário. Esta fantasia-realidade estão associados,
imbricados e constitui-se sua capacidade de resistência diante de situações
dolorosas ou ignominiosas da existência. “É por isso que fazer de conta é
processual, permite continuar o jogo da vida em condições aceitáveis para
criança” (SARMENTO, 2004, p. 16).
E por último a reiteração, o tempo da criança é recursivo, sempre se
reveste de novas possibilidades, tempo capaz de ser sempre reiniciado e
repetido. As próprias crianças constroem seus fluxos de (inter) ação em um
processo infinito, com práticas ritualizadas, propostas de continuidades, ou
rupturas, estabelecendo nesses fluxos rotinas de ação, protocolos de

1647
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comunicação, reforçam-se regras ritualizadas das brincadeiras e jogos,


estabelecem pactos, códigos da vida em grupo.
Em suma, as cultuas das infâncias são formas de resistências das
crianças às culturas societais adultocentradas. “A relação particular que as
crianças estabelecem com a linguagem, através da aquisição e aprendizagem
dos códigos que plasmam e configuram o real, e de sua utilização criativa
constitui a base das culturas infantis”(SARMENTO, 2003, p.4). O que reforça
as crianças como seres sociais plenos, dotados de capacidade de ação e
culturalmente criativos.

Considerações transitórias

Iêêê
Menino seja humilde
E louve seu camarada
Quem disser que sabe tudo
E porque não sabe nada
Menino jogue pra lá
E depois jogue pra cá
Não carrega patuá
Menino jogue bonito
Que vou lhe acompanhar
Berimbau segure o ritmo que nós vamos vadiar
Camará 354

Finalizo algumas considerações com o convite desta ladainha que fica a


pairar na roda da sociedade onde as crianças participam, com sua malícia da
mandiga in/consciente necessária para sua afirmação como infâncias plurais e
ao mesmo tempo singulares.
Na contemporaneidade a escola, a família sofreram processos de
mudanças com a ingerência inevitável da reinstitucionalização da infância. As
crianças nas suas interações com os pares e adultos viabilizam processos
comunicativos que revelam seus modos de vida. A compreensão do imaginário
infantil é um elemento principal da compreensão e significação do mundo pelas
crianças. Ao mesmo tempo há tentativa de colonização do imaginário infantil
pelo mercado com seus produtos para infância que não devemos ignorar.

Ladainha do mestre Polaca “Menino seja humilde” disponível no site do Grupo Estudos Capoeira
354

Angola F.I.C.A. Bologna https://bolognangola.wordpress.com/category/musica/ladainhas/

1648
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As crianças resistem esquivando-se, negando essa colonização por


intermédio de si interpretações singulares, criativas e críticas dos produtos
destinados a elas, pois todas as colonizações são rompidas pelos que não se
deixam se dominados.
Contudo, desconstruir na grande roda é desestabilizar os discursos que
sustentam as crianças como invisíveis e, ao mesmo tempo, decompô-los como
operam, desvelando suas ambiguidades e contradições, delineando o lugar da
criança nas culturas da infância.
Contextos emergentes nos movem a conhecer melhor as crianças na
sua interação com as redes informáticas como nova forma de linguagem e
expressão; as crianças que trabalham/moram com suas famílias nas ruas como
alternativas de convívios alternativos; a extensão de atividades ditas lúdicas
com o controle progressivo do adulto na cultura do lazer e a reivindicação de
transformação do espaço público faz das crianças potenciais protagonistas.

REFERÊNCIAS

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. 2. Ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,


2009.

CORSARO, W. Sociologia da infância. Porto Alegre, Artmed, 2011.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã . . . diálogos.


Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

JUNIOR PEDROSO, Neurivaldo Campos. Jacques Derrida e a desconstrução:


uma introdução. IN : Revista Encontros de Vista. Ano, 5ª ed. p. 9-20.

KOHAN, Walter Omar. Infância e filosofia. IN SARMENTO, MANUEL. Estudos


da infância: educação e práticas sociais. Manuel Sarmento, Maria Cristina
Soares de Gouvea (orgs). Petrópolis, RJ, Vozes, 2008.

QVORTRUP, J. Genarations: an importante category in sociological research.


IN Congresso Internacional dos Mundos e culturais da Infância, Braga.
2000. Actas. Braga: Universidade do Minho, Instituto de Estudos da Criança,
2000, v. 2, 102-113.

SARMENTO, Manuel J. Imaginário e culturas da infância IN Cadernos de


Educação, Pelotas, v. 12, n. 21. P. 51-69, 2003. Disponível em
http://titosena.faed.udesc.br/Arquivos/Artigos_infancia/Cultura%20na%20Infanc
ia.pdf acesso em 05 de maio de 2015.

1649
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

___________________. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª


Modernidade. IN Sarmento, M.J; Cerisara, A. B. (Org.). Crianças e miúdos:
perspectivas sócio-pedagógicas da infância e educação. Porto: Asa, 2004.
(P.9-34)

______________________. Gerações e alteridade: interrogações a partir da


sociologia da infância In Educação & Socieade, Campinas, vol. 26, n. 91, p.
361-378, Maio/Ago. 2005. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br acesso
em 15 de julho de 2015.

___________________. Visibilidade social e estuda da infância IN Infância


(in)visível. VASCONCELLOS,Vera Maria Ramos; SARMENTO, Manuel
Jacinto(orgs.) Araraquara, SP, Junqueira & Marin, 2007.

STEINBERG, S. E KINCHELOE, J. Cultura Infantil: a construção


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de Janeiro Civilização Brasileira, 2004.

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http://www.negaca.com.br/negaca.html acessado 10 de julho de 2015.

http://capoeiradabahia.portalcapoeira.com/tags/o-que-e-capoeira/ acessado 10
de julho de 2015.

http://letras.mus.br/grupo-capoeira-angola/1266192/ acessado 30 de julho de


2015.

http://capoeira-cecab.eu/capoeira-2/fundamentos-da-capoeira/?lang=pt-br
acessado 30 de julho de 2015.

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“PARA A INFÂNCIA NEGRA, CONSTRUIREMOS UM MUNDO DIFERENTE”:


EM QUE A NOÇÃO DE RAÇA PODE CONTRIBUIR PARA
COMPREENDERMOS A(S) INFÂNCIA(S) BRASILEIRA(S)?

MÍGHIAN DANAE FERREIRA NUNES (FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO/ FE-USP)

Após a alteração da LBD com a Lei 10.639.03, que trata da


obrigatoriedade do ensino da História da África, da cultura africana e afro-
brasileira na educação básica e dos calorosos debates em torno de algumas
ações afirmativas por parte do governo federal no início do século 21, notou-se
que a discussão em torno da questão da raça (re)apareceu com certa
intensidade nas academias brasileiras. Este texto procura estabelecer uma
discussão acerca destes pontos realizando, inicialmente, uma breve incursão
sobre a noção de raça aqui utilizada (MUNANGA, 2003, 2006; GUIMARÃES,
2003; CASHMORE, 2000) a partir de alguns estudos sobre o tema (TELLES,
2003; D’ADESKY, 2001; MOORE, 2007). A partir destas referências, a intenção
é acrescentar ao debate educacional e as discussões colocadas pela
sociologia da infância as contribuições advindas deste campo, compreendendo
que as temáticas acima anunciadas interferem no modo como enxergamos os
processos educativos e pessoas envolvidas, a saber, as crianças.

Raça como categoria social e relacional: apontamentos

O uso do termo raça não é um consenso nas ciências sociais, por


conta de sua vinculação histórica ao campo da biologia. Nesse sentido, faz-se
importante recuperar de que modo esta expressão é vista neste texto, para
entendermos em qual dimensão ela se apresenta para nós, ao estudarmos a(s)
infância(s) brasileira(s). Segundo Sérgio Guimarães (2003)

O que é raça? Depende. Realmente depende de se estamos falando


em termos científicos ou de se estamos falando de uma categoria do
mundo real. Essa palavra “raça” tem pelo menos dois sentidos
analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela
sociologia [...]. Depois da tragédia da Segunda Guerra, assistimos a
um esforço de todos os cientistas — biólogos, sociólogos,
antropólogos — para sepultar a ideia de raça, desautorizando o seu
uso como categoria científica. O desejo de todos era apagar tal ideia
da face da terra, como primeiro passo para acabar com o racismo (p.
95).

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Em certa medida, ainda segundo Guimarães, este desejo não realizou-


se em parte porque o termo raça continuou sendo usado, tanto pela sociologia
como pela biologia, para identificar diferentes questões dentro de seus estudos
específicos. A partir das lutas dos movimentos sociais, o Movimento Negro
Unificado então

[...] vai reintroduzir a ideia de raça, vai reivindicar a origem africana


para identificar os negros. Começa-se a falar de antepassados, de
ancestrais, e os negros que não cultivam essa origem africana seriam
alienados, pessoas que desconheceriam suas origens, que não
saberiam seu valor, que viveriam o mito da democracia racial. Para o
MNU, um negro, para ser cidadão, precisa, antes de tudo, reinventar
sua raça. A ideia de raça passa a ser parte do discurso corrente [...]
se introduz de novo a ideia de raça no discurso sobre a nacionalidade
brasileira (p. 103).
O termo raça é então visto como uma categoria social e relacional
(MUNANGA, 2003; CASHMORE, 2000; MOORE, 2007) e concentra, assim,
tensão e disputa, que não se resolvem facilmente encarando-o por esta ou
aquela teoria, posto que os efeitos de seu uso encontram-se presentes entre
nós, nas desigualdades sociais por quais passam a população negra brasileira.
Parece comprovadamente ilusório pressupor que a extinção do uso do termo
acabaria com o racismo, já que ainda hoje sentimos as consequências de um
país que esteve por muito tempo sob a égide da escravização, sendo mesmo
possível mensurar o tamanho de tais marcas, através de consulta às inúmeras
pesquisas publicadas na segunda metade do século vinte sobre a condição
desta população no Brasil e a discrepância entre a qualidade de vida destes e
do grupo racial branco (D’ADESKY, 2001; TELLES, 2003).

Gloria Ladson-Billings (2002) ao explanar sobre o que vem a ser uma


teoria racial crítica, diz:

(...) tenho uma ex-aluna que recorre a uma análise de classes no seu
trabalho, mas o centro de seu interesse são as estratégias anti-
racistas. Não creio que um exclua o outro. O fato de dizer que faço
uma análise crítica de raça não significa que eu exclua as questões
de gênero. Também não significa que não estou considerando as
questões de classe. Todas estas questões estão entremeadas. Mas
necessitamos de uma ferramenta em nossa análise, de uma porta de
entrada. (grifo meu) (LADSON-BILLINGS: 2002, p. 279).
Para esta autora, a teoria racial crítica usa a raça como ponto de
partida, para análises mais complexas da sociedade. Ainda segundo Ladson-
Billings:

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Classes sociais são reais no sentido de que podemos encaixar as


pessoas na hierarquia econômica. Gênero é real no sentido que
podemos falar um pouco a respeito de biologia, de sexualidade. Mas
raça é um alvo móvel. O que é branco neste lugar não o é naquele
(p. 280)
Nesse sentido, pensamos ser possível problematizar estas questões
referentes à infância, posto que aí também estão presentes as tensões
produzidas pelos estudos sobre relações raciais. Percebemos também que
foram todas estas reflexões que deram margem a questionamentos sobre a
condição racial brasileira e abriram caminho para a implementação de leis,
visando atender grupos alijados de determinados processos de participação
social, de modo a contemplá-los igualmente em questões relacionadas a
acesso e oportunidade. Aqui, deteremo-nos nas legislações produzidas no
âmbito educacional, pensando em como elas podem colaborar para
compreendermos quem sã as crianças que temos hoje na escola, que também
é afetada pelas desigualdades presentes no cotidiano.

A importância da educação para as relações étnico-raciais na


compreensão das diferentes infâncias

Falando de infância e pensando nos espaços educativos destinados às


crianças em nossa sociedade, lembramos das creches e das escolas da
educação infantil. Em sua história, vemos que as creches foram consideradas

recurso para combater a miséria (Rosemberg, 1989; 1997; Kuhlmann


Jr., 2000). Campos e Haddad (1992) constatam que as pesquisas
sobre creche e pré-escola, entre 1970 e 1990, tratam do
desenvolvimento cognitivo e da estimulação, com vistas a obter
comportamentos previstos em escalas de desenvolvimento físico,
psicológico e social. (NASCIMENTO, 2012, p. 60)
Mas é Letícia Nascimento que também ressalta que

novas pesquisas sobre a infância, porém, questionavam o modelo de


desenvolvimento e de educação infantil, e fizeram emergir o
reconhecimento das crianças pequenas como pessoas, propondo
novos valores em relação a sua educação. (Ibidem)
Estas novas pesquisas sobre infância trouxeram à tona questões
importantes e é a partir delas que encontramos subsídios para estudar as
diferentes infâncias presentes em nossa sociedade. As crianças negras, que
fazem parte da população brasileira e que também possuem o direito de
conhecer a sua história e cultura em todas as etapas da educação precisam ter
contato com uma educação que promova a participação de todas na

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sociedade, com igual condições de acesso e oportunidade. Sem a abertura


para um debate sobre estes temas na escola, é impossível oferecer uma
educação de qualidade, posto que esta não pode ser feita com racismo.

O pensamento presente no texto da Lei 10.639.03, que alterou a LDB e


introduziu o ensino da história da África e da cultura africana e afro-brasileira
na educação básica, em comunhão com ideais defendidos pelo movimento
negro desde a década de setenta, que já demandava por alterações na
legislação desde a Constituinte (RODRIGUES, 2005), utiliza-se da noção de
raça aqui contextualizada. Segundo texto contido no parecer da Lei, esta visa
“oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da
população afrodescendente, no sentido de […] reconhecimento e valorização
de sua história, cultura, identidade” (p. 10). Estas políticas de ação afirmativa
ou reparação, em seu conjunto, pretendem

ressarcir os descendentes de africanos negros, dos danos


psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob
o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou
tácitas de branqueamento da população, de manutenção de
privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir
na formulação de políticas, no pós-abolição. (p. 11)

O racismo pode apresentar-se tanto a partir de práticas do cotidiano


(fala, gestos, olhares, “gostos e preferências”) como institucionalizado
(currículos, programas, escolha de livros para leitura etc) e dificultar o acesso à
criança negra aos espaços educativos e, por conseguinte, dos demais espaços
de conhecimento e tomada de decisão em nossa sociedade. É importante
assinalar que a formação das professoras de educação infantil deve reservar
espaço para uma discussão aprofundada sobre aspectos relacionados a raça
em seus currículos, visto que estes são valiosos para o trabalho pedagógico
com crianças pequenas. Aprender a olhar para as crianças em suas
especificidades e desconstruir a ideia de uma criança “universal” é um dos
objetivos que o debate sobre raça pode ajudar a fazer, em consonância com
outros debates, a saber, gênero e origem.

Em que a mudança da perspectiva educacional altera nossa percepção


de infância? Ver as crianças em seus próprios termos, uma das tarefas da
sociologia da infância, já é algo bastante inovador em nossos cursos de

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pedagogia. Ver a criança não como um ser universal, mas dotadas de


diferenças, colabora para a compreensão da infância que temos. Sendo assim,
devemos pensar as crianças como seres constituídos por suas diferenças de
raça, gênero, de origem, entre outras, carregando consigo múltiplas histórias
de vida, tendo percepções do mundo a partir das culturas adultas nas quais
estão inseridas e elaborando respostas próprias para questões que as afligem.

Ao alterarmos nossas percepções sobre as infâncias, também podemos,


na esteira destas mudanças, alterar a percepção sobre o conhecimento e sobre
o papel da escola, retirando nosso olhar centrado apenas nos resultados e
realocando-o para as interações construídas nos processos organizados pelas
pessoas que ali estão. Educar para as relações traduz uma nova forma de
pensar a educação, posto que sua enunciação já traz em si o questionamento
sobre a validade de saberes tido como científicos, neutros, compartimentados.
Educar para as relações não é algo novo, é um conhecido modo de aprender
coisas. O que queremos destacar é a necessidade de que, num país desigual
como Brasil, a escola colabore na compreensão do que significa pertencer a
este ou aquele grupo étnico ou racial, para que as crianças possam aprender,
desde muito cedo, como esta informação altera o modo como veem e são
vistas em sociedade. Educar para as relações raciais no relembra também que,
ao compreender a criança em sua totalidade, precisamos respeitar também sua
condição étnico-racial, assim como em outros estudos, buscamos respeitar sua
condição etária, de gênero, classe e origem (PRADO, 2012; FINCO, 2004;
SANTANA, 2007).

O material Educação Infantil e práticas promotoras de igualdade racial,


publicado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
(CEERT) e o Instituto Avisa Lá aponta para algumas dessas proposições, ao
indicar de que modo as atividades organizadas por instituições de educação
infantil podem agregar em suas rotinas, ações que incluam o debate sobre o
pertencimento racial de crianças pequenas. Nele, a crença de que “não há
conflitos entre as crianças por conta de seus pertencimentos raciais, de que os
professores nessa etapa não fazem escolhas com base no fenótipo das
crianças” é questionada, visto que, ainda segundo o texto de apresentação do
material,

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estudos de mestrado e doutorado apresentam situações em que


aquelas que são negras estão em desvantagem, pois são as que
mais vivenciam situações desagradáveis em relação às suas
características físicas. Por outro lado, as crianças brancas recebem
fortes informações de valorização de seu fenótipo. […] Se uma
criança negra se sente bem com o seu corpo, seu rosto e seus
cabelos, e uma criança branca também se sente bem consigo
mesma, pode haver respeito e aceitação entre elas. Essa é a
importância do trabalho com a promoção da igualdade racial nesta
etapa. Se houver uma intervenção qualifi cada e que não ignore a
“raça” como um componente importante no processo de construção
da identidade da criança, teremos outra história sendo construída. A
identidade tem mil faces, mas há duas características que contribuem
de forma decisiva para sua formação: a relação que estabelecemos
com nosso corpo e a relação que estabelecemos com o grupo ao
qual pertencemos. Como construir uma história de respeito e
valorização de todos os tipos físicos após tantos anos de
discriminação racial? Uma das possibilidades é repensar as práticas
pedagógicas na Educação Infantil, rever os espaços, os materiais, as
imagens, as interações, a gestão, e incluir como perspectiva a
igualdade racial – o que certamente produzirá um movimento em que
muitas ações e atitudes serão reformuladas, ressignificadas e outras,
abandonadas. (p. 9)

Indo ao encontro desta publicação, temos a Consulta sobre La


discriminación en la educación en la Primeira Infancia: un estudio desde la
perspectiva de la comunidad educativa en escuelas de Brasil, Perú y Colombia
(2013), organizada pela Campaña Latinoamericana por el Derecho a la
Educación. Nela, os grupos de pesquisadoras/es enviados à escolas de
educação infantil nos referidos países (as cidades visitadas foram Fortaleza
(CE) e Baixa Grande (BA) no Brasil, Lima e Urubamba no Peru, Bogotá e
Cartagena na Colômbia) defrontaram-se com discursos que viam esta etapa da
educação básica como neutra em relação às questões raciais. Nesta pesquisa,
deu-se especial atenção ao que as crianças pensavam sobre temas como raça
e gênero, além de questões relacionadas às pessoas com necessidades
especiais. A partir de uma metodologia específica organizada para ouvir as
crianças, foi possível perceber que crianças muito pequenas (4 a 8 anos)
constroem ideias sobre pertencimento racial que definem lugares específicos
para crianças negras e brancas em suas relações.

Parte da pesquisa consistia em dar às crianças histórias para


escreverem um fim e, numa delas, a personagem central era Juan, um menino
negro de sete anos, que estudava numa escola onde não havia muitas crianças
negras e no recreio, ninguém queria brincar com ele. Algumas crianças

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respondiam que isto acontecia porque Juan era negro, como se apenas esta
afirmação fosse uma justificativa válida para ser posto de lado na hora do
recreio. Além delas, a pesquisa também ouviu adultos, como professoras e
diretoras. Como recomendação, a consulta ressalta que

se reconheça a existência de múltiplas formas de discriminação na


sociedade como um primeiro passo para sua superação, e que elas
se produzem e reproduzem na educação da primeira infância. […]
que o projeto político pedagógico da educação, a começar pela
educação da primeira infância, deve centrar-se na superação dos
estereótipos e da valorização da diversidade, da cooperação e do
1
diálogo […] (tradução minha) (p. 116-117)
A partir destas referências, pensamos que discutir sobre aspectos como
raça, gênero e origem com toda a comunidade escolar – famílias, corpo técnico
e direção – poderá trazer outras observações sobre o fenômeno.

Infância e raça: intersecções possíveis

A partir da assunção da diferença como algo indispensável para a


compreensão das infâncias que temos, vale assinalar então, a importância dos
estudos sobre raça para elucidarmos questões envolvendo infâncias
específicas no Brasil e ao redor do mundo, visto que esta variável aponta as
desigualdades presentes entre nós e que sem dúvida afetam as crianças e o
modo como olhamos para elas. Aqui, evocamos a diferença em como faz
Valter Silvério (2006) que, em seu sentido político, a vê como a realização da
liberdade. Politizar a diferença, segundo ele, “é o meio pelo qual a denúncia de
tratamento desigual ganha visibilidade e, ao mesmo tempo, é o caminho para o
reconhecimento social das formas distorcidas e inadequadas a que
determinados grupos são submetidos na história de uma dada sociedade”. (p.
8)

As possibilidades relacionais entre infância e raça podem serão


enriquecidas se a este debate acrescentarmos a perspectiva da sociologia da
infância, que traz uma concepção de criança enquanto ator social e a infância
como uma “categoria social do tipo geracional, socialmente construída”
(Sarmento, 2008, p. 7). Segundo este autor, a infância é

atravessada por contradições e desigualdades, seja no plano


diacrónico, seja no plano sincrónico. No plano diacrónico, essas
diferenças e contradições ocorrem a propósito das várias e
sucessivas imagens sociais construídas sobre a infância e aos vários

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papeis sociais atribuídos. No plano sincrónico, essas […] diferenças e


contradições operam por efeito da pertença a diferentes classes
sociais, ao género, à etnia, ao contexto social de vida (urbano ou
rural), ao universo linguístico ou religioso de pertença, etc. Em suma,
a condição social da infância é simultaneamente homogénea,
enquanto categoria social, por relação com as outras categorias
geracionais, e heterogénea, por ser cruzada pelas outras categorias
sociais. A análise da homogeneidade mobiliza um olhar macro-
sociológico, atento às relações estruturais que compõem o sistema
social e a análise da heterogeneidade convida à investigação
interpretativa das singularidades e das diferenças com que se
actualizam e “estruturam” (Giddens, 1984) as formas sociais. (p.8)
A discussão sobre gênero entre as crianças abriu um caminho para a
inclusão destes debates e ampliou nosso olhar sobre as infâncias (FINCO,
2010; SANTIAGO, 2014); a questão intergeracional (PRADO, 2006a) também
reforçou a importância de olharmos para as diferenças1. Isso ampliou nossa
visão sobre os problemas a serem enfrentados por um campo em construção,
marcando posições no debate sobre conhecimento da infância e alterando
percepções sobre as crianças.

Entendemos assim a importância da produção de estudos sobre as


culturas infantis que não incluam as tensões travadas pela nossa existência em
sociedade, sejam elas políticas, raciais ou econômicas. A noção de raça,
assim, colabora para o entendimento das diferentes infâncias, e vai além
quando não apenas apresenta possibilidades de interpretação, mas também
altera a nossa percepção sobre os conceitos utilizados no campo, visto que a
própria noção de criança e infância pode ser contestada, se levarmos em conta
outros fatores que não apenas as idades. A noção de raça também amplia a
discussão sobre a participação das crianças, se entendermos que questões
como raça e gênero, por exemplo, devem ser levadas em consideração para a
garantia de que todas as crianças devam participar da vida em sociedade e da
tomada de decisões.

É importante relembrar que as interações produzidas entre as


categorias apresentadas não foram dadas pelas crianças, mas sim, construídas
a partir de uma perspectiva adulta, presentes num mundo social do qual elas
fazem parte. A participação das crianças neste mundo colabora para que
tenhamos outras visões sobre raça, muito embora isto ainda seja questionável
pela maioria das pessoas adultas, o que denota a importância de contínuos
estudos sobre o tema. Se concordamos que as crianças não nascem racistas,

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o debate sobre raça, assim como outras categorias que desneutralizam a


infância fazem-nos repensar até que ponto estamos construindo um espaço
favorável à livre expressão das crianças ou somos apenas nós,
pesquisadoras/es da infância, que estamos produzindo conclusões sobre as
culturas infantis.

Não se trata de dizer o que as crianças são, se negras ou indígenas,


antes mesmo que elas possam reconhecer-se no mundo: a intenção é trazer
para o debate sobre as culturas infantis mais uma contribuição sobre como as
crianças podem elaboram modos de ser, fazer e sentir sua própria vida. Assim,
para além do debate sobre em que a noção de raça pode colaborar com
nossos estudos sobre infância, parte dos nossos esforços devem localizar-se
também em compreender quais são as questões relacionadas à raça que
tocam às crianças a partir de suas próprias experiências e como as crianças
vivenciam questões relacionadas ao seu pertencimento racial, não apenas a
partir da construção que fazemos sobre o tema em nossos departamentos de
estudo.

Carecemos de estudos sobre o tema, o que nos faz termos não apenas
dúvidas, mas certo desconhecimento sobre como diferentes grupos de crianças
veem questões relacionadas ao seu pertencimento racial. Nosso
desconhecimento dificulta também que processos metodológicos possam ser
revistos ou empregados com êxito, posto que dispomos de pouca experiência
sobre como “conduzir” uma pesquisa junto aos temas.

Entre os estudos pioneiros1 feitos em instituições de educação infantil


que levaram em conta a discussão racial, destacamos a dissertação de Eliane
Cavalleiro (1998), que contou com observação e escuta das crianças. No
estudo de Cavalleiro ela evidencia como é possível presenciar eventos que
destituem a criança negra de seu lugar de educanda já na educação infantil. Na
dissertação que deu origem ao livro intitulado Do silêncio do lar ao silêncio
escolar: Racismo, preconceito e discriminação na Educação Infantil, Cavalleiro
(2000) discute de que modo a escola para crianças pequenas opera numa
lógica de exclusão das crianças que são tidas como diferentes da norma

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estabelecida, esta perceptível também a partir das relações afetivas que as


pessoas adultas estabelecem entre si e com as crianças. Cavalleiro aponta:

A existência de preconceito e discriminação étnicos, dentro da escola,


confere à criança negra a incerteza de ser aceita por parte dos
professores [...] No espaço escolar há toda uma linguagem não-
verbal expressa por meio de comportamentos sociais e disposições –
formas de tratamento, atitudes, gestos, tons de voz e outros –, que
transmite valores marcadamente preconceituosos e discriminatórios
[...] (p. 98)
Em seu lançamento, jornais e revistas divulgaram a pesquisa, por
perceberem que o trabalho trazia um tema delicado e sério, além de pioneiro1.
Cavalleiro discorreu como as crianças negras e não-negras eram tratadas na
escola e como estavam aprendendo a relacionar-se racialmente, através da
reprodução de comportamentos e falas dos adultos que as cercavam. A
pesquisa trouxe à baila a discussão de como o racismo é construído e
transmitido em nossa sociedade, com o consentimento das instituições
escolares. No estudo, há diversos relatos de crianças, registrados quando da
estadia na escola de educação infantil (EMEI) escolhida (região central de São
Paulo) pela pesquisadora:

No parque, aproximo-me de um grupo que brinca. De repente, inicia-


se um tumulto. Shirley (negra) chega perto de Fábio (branco), o xinga
de “besta” e ele revida. Letícia (branca) passa a participar da
discussão, com vários xingamentos. Letícia e Catarina (negra) até
então brincando juntas, principiam a se xingar também. Catarina diz à
Letícia: “Fedorenta!”, e esta responde: “Fedorenta é você!”. Catarina,
então, diz: “É você, tá!”. Letícia responde: “Eu não; eu sou branca,
você que é preta!”. Catarina fica paralisada e não diz mais nada. Até
então virada de frente para Letícia, dá-lhe as costas e começa a
xingar Fábio. Catarina segundos depois desfere-lhe um golpe na
cabeça. O menino chora. A professora, percebendo a confusão, se
aproxima do grupo e adverte a menina Catarina, que mais uma vez
ouve tudo calada. (Idem, p. 53)
Cavalleiro faz uma reflexão:

Silêncio, seguido de reação violenta. O que se pode ver naquele


parque infantil é nada mais que uma pequena reprodução da própria
história do negro em nosso país. Impotente diante da pressão racista,
ele parte para a violência e, consequentemente, é penalizado. Isso
transforma-se em estigma (Ibidem).
É importante ressaltar que, apesar de ter ouvido as crianças em seu
estudo, Cavalleiro não se utilizou da sociologia da infância como referencial
teórico, o que valida a escuta de crianças como uma potente ferramenta de
pesquisa não apenas para o campo, visto que colabora para a elucidação das
relações raciais entre crianças e destas com os adultos. Esta escuta, presente

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na teoria da reprodução interpretativa das culturas proposta por William


Corsaro (2011) poderá ser ainda mais potencializada, se a partir dela e com
ela, assentarmos as discussões sobre relações raciais e infância.
Atualmente, alguns trabalhos que relacionam questões raciais e
sociologia da infância começam a surgir1. Flávio Santiago (2014), em
dissertação defendida recentemente pelo Programa de Pós-Graduação da
UNICAMP, realizou um estudo sobre “a violência do processo de racialização
sobre a construção das culturas infantis”. Nele, Flávio destaca como as
crianças respondiam às violências direcionadas a elas por conta de seu
pertencimento racial e como reelaboravam as relações com as pessoas adultas
que as haviam agredido. Este é um estudo pioneiro que relaciona os temas
aqui expostos, que nos mostra sobre as possibilidades presentes nas
intersecções entre infância e raça. Ao ouvir as crianças, Santiago também
registra relatos semelhantes àqueles descritos por Cavalleiro:
Como de costume a docente pede para as crianças formarem uma
fila na hora do lanche. No entanto, hoje ocorre uma confusão entre as
crianças e Dandara (menina negra) começa a chorar. A docente olha
brava para as crianças e pergunta:
- O que está acontecendo? Por que Dandara está chorando?
Duda responde:
- Porque eu empurrei ela! Ela é suja toda preta! Iria me deixar suja!
A docente olha a cena e diz:
- Dandara não perturba a Duda, vai para outro lugar e lava esse
rosto, já estou cansada de brigas entre vocês. E Duda deixa de ser
nojenta, para de implicar com a Dandara, cada uma tem um jeito!
Para de encher o saco uma da outra! (p. 92)

Em suas considerações, Santiago aponta:

Um dos principais elementos do processo de racialização presentes


nas práticas desenvolvidas no Centro de Educação Infantil – CEI
pesquisado era a desvalorização do pertencimento étnico-racial afro-
brasileiro e a valorização de uma estética eurocêntrica. Dentro deste
contexto, as características fenotípicas brancas eram exaltadas como
padrões de beleza e os elementos de origem cultural negros eram
descartados em prol da manutenção de uma ordem pré-estabelecida.
Este processo construía elementos para a fixação de uma pedagogia
da infância branqueadora, que procurava apagar o pertencimento
étnico-racial das crianças pequenininhas negras e legitimar enquanto
única fonte de cultura os saberes eurocêntricos. O processo de
inculcação da norma se estabelecia CEI de modo violento, marcando
as subjetividades infantis das crianças pequenininhas com ranços
coloniais pautados pela hierarquização dos indivíduos. […] Por meio
deste processo, as meninas e meninos pequenininhos/as negros/as
passaram a serem denominados como bagunceiros/as, terríveis,
complicados/as, arteiros/as; e as crianças pequenininhas brancas
eram categorizadas como princesas, lindinhas, existindo um processo
de subalternização dos sujeitos negros. Atrelado a essa dinâmica de

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hierarquização existe uma supervalorização da estética branca, em


que as crianças brancas são sempre classificadas como bonitas e as
negras são deixadas de lado, esquecidas em meio ao dinamismo da
educação infantil. As crianças pequenininhas negras dentro deste
contexto são cotidianamente discriminadas e destituídas de sua
negritude, o que cria a necessidade de processos reiterativos que
apaguem o seu pertencimento étnico-racial e as tornem sujeitos
desejosos de uma cultura eurocêntrica imposta pelo colonialismo.
Este processo mutila a construção de uma visão positiva de uma
ancestralidade negra, por esta não corresponder à organização
simbólica e social determinada pelo conjunto de relações pré-
estabelecidas pelo sistema social capitalista eurocêntrico. (p. 122-
123)

No texto Infância, raça e paparicação, de Fabiana Oliveira e Anete


Abramovicz (2010), estes relatos também encontram eco. Nele, as
pesquisadoras apresentam as observações feitas numa escola de educação
infantil de São Carlos/SP, e afirmam que, apesar de verem alguma positividade
no fato de serem menos “paparicadas” por serem negras, visto que estão fora
do aparelho de controle e da captura das professoras, não acreditam que essa
seja a melhor forma de lidar com a questão do poder entre pessoas adultas e
crianças. (p. 220)

A partir dos estudos apresentados, creio ser possível reconhecer a


importância que há nos estudos sobre grupos específicos, como crianças
quilombolas, crianças negras de comunidades rurais, crianças negras
habitantes das periferias brasileiras ou crianças negras de classe média e alta,
feitos por pesquisadoras/es, professoras/es e outras pessoas adultas, visto que
eles poderão contribuir para a ampliação e o reconhecimento da importância
dos temas para compreensão de nossa sociedade atual. Estudos como estes,
que buscam visibilizar como as crianças tem (re) interpretado nossas ações e
respondido às questões próprias a elas reconhecem a participação da criança
em sociedade desde muito pequenas, reforçando o(s) debate(s) proposto pela
sociologia da infância.

Por fim, termino com um excerto da poesia Olhando no Espelho, escrita


por Abdias do Nascimento (1980) e que vai ao encontro das intenções deste
texto: a vontade de que as crianças negras possam viver plenamente uma
“vida de criança”:

Para a infância negra


construiremos um mundo diferente

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nutrido ao axé de Exu


ao amor infinto de Oxum
à compaixão de Obatalá
à espada justiceira de Ogum

Nesse mundo não haverá


trombadinhas
pivetes
pixotes
e capitães de areia

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: AS POSSIBILIDADES DA HISTORIOGRAFIA


LITERÁRIA PENSADA POR E PARA ESCRITORES BAIANOS

PROPOSITOR: THIAGO MARTINS PRADO

Ementa:

Por quem e como está sendo pensada a historiografia literária baiana?

Ademais, quais são aqueles estudiosos baianos que estão repensando a

historiografia da literatura além dos moldes da dialética, da linearidade

evolutiva ou do esteticismo pretensamente universal conferido aos produtos da

cultura? Observando a condição periférica aos centros de editoração e a

emergência contemporânea por reler a produção de escritores que foram

silenciados ou violentados pela história da literatura, busca-se a reflexão de

como escritores baianos às margens do processo massivo de distribuição de

livros estão sendo relidos pela crítica. Paralelamente, investiga-se o trabalho de

determinados críticos baianos que propõem uma nova reescrita para a

historiografia da literatura ao denunciar os sistemas de exclusão da tradição

literária. Interessam às discussões desse grupo de trabalho: 1) escritores

baianos, por vezes, marginalizados do sistema literário; 2) críticos baianos de

literatura que, imbuídos de uma proposta de releitura das margens, impuseram

procedimentos narrativos distintos que desafiam as antigas formas de

validação da historiografia literária tradicional.

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GILFRANCISCO: UM ÍNDIO BAIANO SACUDINDO A HISTORIOGRAFIA


LITERÁRIA SERGIPANA

THIAGO MARTINS PRADO (UNEB) 355

Introdução
Com estudos de diversos escritores sergipanos, o pesquisador
Gilfrancisco desafiou a tradição da historiografia literária em Sergipe ao
valorizar as perspectivas microscópicas de diversas de suas fontes utilizadas.
Sua técnica deriva da não eliminação do caráter contraditório, múltiplo ou
lacunoso que compõe as vivências dos escritores investigados, permitindo uma
interpretação plural e distante dos perfis congelados e consagrados pela
historiografia tradicional. Alimentar as contradições, no discurso da
historiografia de Gilfrancisco, é respeitar a multiplicidade de vozes que tentam
enunciar, com os meios e as formações que lhe são cabíveis, outras histórias
possíveis. Embora o projeto de escrita da história de Gilfrancisco não mais
enuncie uma orientação central ou uma verdade histórica capazes de articular
os diversos agrupamentos socioculturais, ele apresenta possibilidades de
narrativas e significados históricos dentro das próprias diversidades, diferenças
e inevitáveis conflitos e contradições.
A historiografia literária de Gilfrancisco transita predominantemente
pelos estudos da literatura baiana e da sergipana. Como um dos seus projetos
mais ambiciosos, a Coleção BASE por ele fundada acolhe críticas sobre
escritores desses dois estados. Em meio a tantas investigações desse
estudioso baiano a respeito da literatura regional, o que interessa nesse artigo
é verificar qual a metodologia da escrita da história que Gilfrancisco impõe para
a literatura sergipana.

Antecedentes: a historiografia literária de Jackson da Silva Lima, de


Ariosvaldo Figueiredo e de Austrogésilo Santana Porto
Quando focamos nos projetos de historiografia literária em Sergipe,
observaremos alguns casos bem representativos. O maior deles deve-se a
Jackson da Silva Lima, também muito conhecido como folclorista. Nos dois

Ladainha do mestre Polaca “Menino seja humilde” disponível no site do Grupo Estudos Capoeira
355

Angola F.I.C.A. Bologna https://bolognangola.wordpress.com/category/musica/ladainhas/

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volumes de História da Literatura Sergipana, Silva Lima adota uma perspectiva


centrada na valorização de personalidades literárias como se fossem
identidades já plenamente consolidadas. Dessa forma, a importância da
personalidade é presumida como indiscutível pela lógica desse projeto. Com a
visão da historiografia literária apoiada no agrupamento de personalidades
literárias em compartimentalizações de escolas, o molde dos estudos de
Jackson da Silva Lima apresenta-se deveras conservador. Nesse sentido,
todos os autores catalogados (personalidades literárias) devem ser reduzidos
aos valores dos movimentos literários para poderem se encaixar como
representantes da escola. Muitas outras interpretações possíveis sobre a
existência literária do autor ou da sua obra acabam por ser retiradas. Além
disso, o conceito de escolas literárias torna menores e subalternas em relação
a referências europeias as literaturas regionais. A lógica de se organizar o
saber estético em forma de escolas iniciou-se como uma prática europeia e
sustentou a autoridade e superioridade forjadas no eurocentrismo como pontos
de irradiação de cultura estética e erudita, que repassavam as tendências
necessárias à atualização de suas colônias ou ex-colônias. As obras da
literatura regional sergipana, nesse caso, ao se considerar essa escala
importada de valores, acabam se enquadrando na condição de cópias menos
qualificadas por sua própria dependência cultural. Dessa tentativa de justificar o
valor universal da literatura por meio de uma estrutura que reforça as
diferenças econômicas, nota-se um desconforto dos escritores de literaturas
regionais que estão à margem dos centros de poder. Embora muitas vezes
afirme-se a peculiaridade da literatura não metropolitana, o espelho que se
finca e que se estabelece como referência maior e principal reflete os padrões
das metrópoles, entendidos como originários e motivadores de tendências. Por
fim, com esse organograma a sustentar a historiografia literária, a literatura
regional somente pode ser entendida como uma propagação de uma literatura
maior. Os intérpretes locais (personalidades literárias) da literatura regional à
margem, portanto, assumiriam compromissos pela continuidade dos laços com
os centros de irradiação de movimentos estéticos em países subdesenvolvidos.
Associada a essa invenção de sentimento de pertença da literatura de países
periféricos às dos centros de irradiação de movimentos estéticos, a ilusão de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

autonomia do sistema literário, fórmula que distancia os valores da literatura


das suas motivações socioeconômicas, impôs uma série de restrições tanto na
produção quanto na recepção das obras locais. Ao se interpretarem as
literaturas regionais como reflexos das literaturas metropolitanas europeias,
determina-se um ritmo de produção local assim também como a adoção dos
critérios de avaliação para tais obras.
Um outro projeto de historiografia literária sergipana está encaixado
dentro da História Política de Sergipe. Um estudioso chamado Ariosvaldo
Figueiredo reúne uma série de fontes, principalmente jornalísticas, para
defender um valor de justiça ou de verdade por meio da articulação dessas
fontes a fim de corroborar com seu sistema ideológico. Nesse caso, todo o
conjunto literário, no sentido de reconhecimento de escritores, produção e
crítica, aparece como recortes da visão política de Ariosvaldo Figueiredo. Essa
visão macroscópica da política (com uma antecipação de um juízo superior)
absorve os entremeios da própria micropolítica que existem no estado de
Sergipe e que não são discutidos adequadamente, pois ocorre um conceito de
verdade (uma redução discursiva) nesse estudo que impera e articula todas as
interpretações do cenário sociopolítico e também outras produções da cultura,
como a literatura. O escopo de Ariosvaldo Figueiredo, uma coleção
monumental que contava com seis grossos volumes na entrada dos anos 2000,
acaba por apresentar, paralelamente à escrita da trajetória política do estado
de Sergipe, uma história da literatura sergipana como um recorte de uma
ideologia política específica – com uma avaliação baseada também no ideal
que move tal ideologia.
Como outro projeto de historiografia literária sergipana que merece
atenção, o primeiro estudo a desafiar o conceito de autonomia estética
pertence a Austrogésilo Santana Porto, com o livro O realismo social na poesia
em Sergipe, publicado no ano de 1960. Santana Porto reconhece que o objeto
estético, estando num discurso de autonomia, evoca uma pretensão (falsa) de
ser um sistema à parte dos conflitos sociais – quando, em verdade, boa parte
do fenômeno literário pode ser compreendida como resultado desses conflitos
assim também como há um emaranhado de lutas simbólico-sociais ocorrendo
dentro da própria literatura. O problema dessa publicação de Austrogésilo

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Santana Porto reside nos critérios de avaliação intrinsecamente ligados a uma


forma de pensar a estética pela filosofia marxista. Nesse sentido, O realismo
social na poesia em Sergipe valorizava a obra de escritores, muitas vezes,
baseado em questões biográficas, ou seja, quanto mais o autor estivesse
próximo das camadas desfavorecidas (origem humilde) ou expressasse essa
proximidade, mais chances ele teria de receber uma crítica elogiosa. Uma outra
forma de avaliação embasava-se em verificar o nível de confiança ou otimismo
nos projetos socialistas. Tendo como um dos critérios de uma boa arte a
necessidade de expressão da certeza de que realmente o comunismo seria
implantado no país, a literatura serviria como combustível de esperança para a
propagação do pensamento político marxista. Acontece que essa forma de
escrita da história da literatura de Sergipe é fruto de um contexto histórico
muito específico, ela surge como um reflexo da utopia sociopolítica sessentista,
um ideal de uma máxima representação de coesão sócio-histórica – que hoje já
não é mais possível. Tal modo de conceber a literatura edificou o discurso
estético como uma maneira de arregimentação política e arrasou a atividade
artístico-literária como evento criativo. O realismo social na poesia em Sergipe,
ao cobrar a proximidade com as camadas populares e a certeza na causa
revolucionária, acaba por escravizar escritores e críticos quanto às formas de
produção e avaliação estéticas.
Nos tempos hodiernos, as grandes narrativas sociológicas que
embasaram esses projetos de historiografia literária sergipana declinaram. Há
uma desvalorização da metafísica ocidental e uma desconfiança na
qualificação do saber como matéria perene, serena e universal. Na
contemporaneidade, esse saber é compreendido como ferramenta do discurso
totalitário e opressor. Portanto não foi à toa que o projeto de Jackson da Silva
Lima, depois de minuciosamente esquematizado nos anos 70 no volume um,
foi interrompido no volume dois, em meados dos anos 80. Com esse contexto,
não havia nenhuma lógica em se defender uma linha da história literária. O fim
da história da literatura é que mereceria destaque, já que ela foi associada a
uma concepção evolucionista e causalista, em que se sacrificam diversos
autores enquadrando-os numa só escola e negando ou esquecendo um

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

número incalculável de interpretações possíveis e cabíveis às suas obras. Esse


tipo de saber, desse modo, mostrou-se totalitário e opressor.
De igual modo, houve também um declínio das certezas quanto aos
discursos de verdade ou de justiça como versões unilaterais. Atualmente,
defende-se a multiplicidade das verdades ou dos modos de encarar o que é ser
justo em meio à preocupação contemporânea a respeito de um plano de
tolerância e de coabitação de verdades ou justiças. As certezas nas conquistas
sócio-históricas, impulsionadas pelas metanarrativas da modernidade, ou se
mostraram fracas, ou se mostraram tirânicas.
A escrita ampla da macro-história, que pretende traduzir todos os fatos
por meio de uma orientação sócio-política, somente pode ser entendida como
uma redução da interpretação histórica. Esse pode ser o ponto crucial que
determina o questionamento de estudos como os de Ariosvaldo Figueiredo e
Austrogésilo Santana Porto, pois quem defende uma certeza sociopolítica
suprime a multiplicidade do próprio olhar. Quem defende uma logicidade
inerente à escrita da macro-história não consegue visualizar que a história é
composta de contradições e de inevitáveis incoerências, próprias das
condições culturais.
É preciso o historiador contemporâneo afastar-se do elogio à razão,
iniciada desde o mandamento aristotélico de não contradição para a instrução
do saber; é preciso que o historiador compreenda que o saber nasce da
contradição e também é fruto de incoerências. Contemporaneamente, quem
fala em nome da justiça, da liberdade ou da verdade deve ser visto com
desconfiança. Isso porque a defesa dos universais e da igualdade destruiu o
respeito às diferenças, escravizando homens e pensamentos ou ainda os
excluindo.

A historiografia literária sergipana proposta por Gilfrancisco


Novos rumos para a historiografia literária sergipana que se
articulassem com as discussões da contemporaneidade só se deram com um
escritor baiano chamado Gilfrancisco, apelidado de índio por seus traços físicos
a confirmar sua ascendência próxima. Estando em trânsito entre Bahia e
Sergipe a todo instante como jornalista, Gilfrancisco publicou vários livros que

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

tematizam as literaturas regionais dos dois estados. Seu livro mais importante e
mais comentado dentro da historiografia literária sergipana é Flor em Rochedo
Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho.
Numa leitura apressada, Flor em Rochedo Rubro parece dar
continuidade à metodologia dos outros projetos de historiografia literária já
experenciados no estado de Sergipe, já que se vale de coletas de dados em
periódicos e documentos esparsos para orientarem enredos para a história
literária. Como esses enredos são construídos é o que diferencia os trabalhos
de Gilfrancisco dos outros estudos vinculados às concepções de modernidade.
O índio Gilfrancisco realiza um elogio à diferença e ao caráter acidental da
história, assim também como caracteriza a escrita da história como um
processo de descontinuidade (e não de evolução ou amarrada a uma lógica
causalista) – isso se evidencia em seus estudos sobre Alina Paim, Ranulfo
Prata, Enoch Santiago Filho, etc. A organização dos livros de Gilfrancisco
afirma uma metodologia da escrita da história que não se prende a uma
concepção de defesa ideológica da verdade, de justiça, ou que se fincasse a
um conceito de universalidade.
Por um lado, o recorte que impera na escrita da história de Gilfrancisco
é sempre microscópico. Nas obras de Gilfrancisco, não se nota a ambição
redutora de se alargar a diversos autores ou a momentos históricos – a
perspectiva de suas obras concentra-se no autor como processo de
experiências que o fez um fenômeno literário. Por outro lado, Gilfrancisco usa
multilateralmente as fontes pesquisadas, ou seja, as fontes não são utilizadas
para defender um discurso único ou uma versão mais verdadeira da história.
As fontes são colocadas lateralmente de forma a apontar para possibilidades
diversas de reescrita da história. O estudioso Gilfrancisco, dessa forma, mostra
que a personalidade literária é fruto de uma montagem, logo a proposta dele
passa a ser a investigação de como o discurso crítico consolidou o fenômeno
gerador da personalidade literária para o autor ora pesquisado. Todo o
encaminhamento da historiografia proposta por Gilfrancisco acaba por ser uma
análise e uma ilustração dos rituais de consagração das personalidades
literárias e dos entremeios que possibilitaram publicações ou formações da
recepção crítica. O índio Gilfrancisco entende a história como uma narrativa de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ímpeto ficcional – tal como Hayden White defendeu. A história possui diversos
recursos narrativos e, para se construir uma valência emocional (o heroísmo da
verdade ou da justiça, a tragédia do mártir ou do silenciado, por exemplo), é
necessário que os conectivos dos fatos e as imagens atribuídas de valor sejam,
portanto, enredados.
Com essa interpretação, Gilfrancisco aponta para uma questão: a
personalidade literária, em nenhum momento de suas etapas de formação
(produção ou recepção), é consolidada. A personalidade literária é entendida
como resultado de uma filtragem de valores da recepção crítica, com exclusão
e recombinação de algumas imagens (por onde a fortuna crítica já passou)
pertinentes ao crítico ou ao historiador, imbuídos de códigos socioculturais de
seu contexto histórico. Gilfrancisco, com seus estudos, realiza uma
desconstrução da personalidade literária como um evento acabado e bem
definido a habitar nossos livros de história da literatura, ou seja, uma redução
discursiva para a construção de uma coerência ideológica.
O que o historiador Gilfrancisco, em sua experiência de jornalista e
arquivista, obriga-nos a constatar é que existem potenciais lacunas que o
discurso final sobre a personalidade literária não permitiu por uma necessidade
de transparência e coerência (urgências preenchidas de códigos
socioculturais). Gilfrancisco, logo, ao colocar diversas fontes contraditórias uma
ao lado da outra, descarta, na contemporaneidade, a coerência como valor a
orientar a escrita da história. O resultado de um sujeito literário que seja
coerente, nesse sentido, só pode ser fruto da violência.
A historiografia literária de Gilfrancisco induz-nos a observar a
incoerência e a contradição nos rumos da história para notar a possibilidade e
a multiplicidade de discursos silenciosos que não afloraram ou que foram
esquecidos diante da formulação final da imagem dos escritores. Desse modo,
o índio Gilfrancisco cumpre a tarefa preconizada pelo filósofo Walter Benjamin:
escovar a história a contrapelo – nesse caso, voltar às dinâmicas de
construção das personalidades literárias para verificar o que foi colocado de
fora, excluído ou silenciado, e o que foi considerado.
A obra de Gilfrancisco também demonstra um respeito à condição
fragmentária do sujeito que escreve. O autor não é monolítico, ele tem diversas

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fases, tem diversas contradições dentro dele. Há também um respeito pela


provisoriedade do saber, pois todo o saber está articulado ao seu contexto. Se
um determinado crítico impôs um valor específico a um determinado autor ou à
sua obra, no futuro, tal consideração tombará frente a uma nova versão de
outro crítico, pertencente a um outro contexto de fala (também provisório). Com
essa consideração, Gilfrancisco não expurga a própria provisoriedade da sua
historiografia.
Nesse âmbito, os estudos de Gilfrancisco não atuam como sistemas
fechados – não se parte de uma estrutura simbólico-analítica prévia ou de
alguma imagem de orientação sociopolítica. Nenhum livro de Gilfrancisco
privilegia a definição como resultado do trabalho de investigação. Um crítico
chamado Antônio Carlos Barreto chega a essa mesma conclusão quando
afirma que os textos de Gilfrancisco não são conclusivos, eles são mais
problematizadores que definidores.
A aceitação da contradição, a demonstração da inconsistência na
costura da história e a desvalorização de definições para o trabalho
historiográfico, antes de ser consideradas uma fragilidade no discurso de
Gilfrancisco, instrumentalizam um novo rumo para a historiografia literária no
estado de Sergipe.

Considerações finais: o historiador Gilfrancisco e as tendências atuais


dos estudos de documentação
Quais são as tendências atuais que os estudos de documentação
acabam por se articular em Gilfrancisco? Primeiro, ele renuncia a todo e
qualquer projeto totalizante. Não há uma ideologia marxista, como em
Austrogésilo Santana Porto, um conceito de verdade ou de justiça, tal qual em
Ariosvaldo Figueiredo, ou um valor de universalidade que atinja um julgamento
do sistema literário como um todo, como em Jackson da Silva Lima, que
justifiquem a apreensão da história da literatura como uma trajetória unilateral.
Segundo, há uma busca por testemunhos que estejam silenciados nos
escombros. Por exemplo, é digno de nota a investigação de Gilfrancisco a
respeito da romancista Alina Paim, figura literária que se consolidou como uma
feminista da esquerda transitando entre Bahia e Sergipe. O primeiro romance

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

de Alina Paim, chamado Estrada da Liberdade, deve boa parte de seu sucesso
à compra dos exemplares pelas freiras para que pudessem ser queimados.
Como feminista implacável, no seu romance Simão Dias, ela expôs as famílias
poderosas da região e isso trouxe graves problemas para ela também. No
entanto, essa é a imagem consolidada da romancista. Gilfrancisco observou
que, depois de um determinado tempo, essas pessoas que serviram para
compor as personalidades literárias para o estudo crítico ou historiográfico,
acabam sendo retiradas do processo já consolidado. As personalidades
literárias (distantes das pessoas que lhes deram base) atuam como entidades
que não podem ser tocadas pelo material da existência dos autores
correspondentes a elas – a personalidade literária, por fim, resulta de um
processo de desumanização. Praticamente, ninguém do meio literário tinha
conhecimento de que Alina Paim, aos 88 anos quando Gilfrancisco realizou
uma entrevista com a romancista, morava no Mato Grosso e estava com um
problema sério de acuidade visual, isto é, ela foi esquecida e a sua imagem
como personalidade literária sobreviveu como parasita de si. Muitas vezes,
Gilfrancisco repete tal procedimento: ele tenta resgatar um contato pessoal que
complemente, desvirtue, reatualize ou até mesmo negue a imagem que foi
imposta pela historiografia literária oficial.
Terceiro, Gilfrancisco evita o unilateralismo discursivo. O estudioso
abre suas fontes tal como se fossem vozes múltiplas a chocarem-se muitas
vezes e a entrarem em inevitável contradição sem execução de cortes nos
documentos recolhidos. Quarto, a crítica do índio Gilfrancisco valoriza saberes
provisórios. Em Flor em Rochedo Rubro, como ilustração, Gilfrancisco
apresenta a interpretação humanista de Zitelman de Oliva sobre o poeta Enoch
Santiago Filho, logo após a Segunda Grande Guerra, quando ainda se
preconizava um valor de união dos povos acima da distinção entre capitalismo
e comunismo. Em 1960, Gilfrancisco mostra como a crítica a respeito da obra
de Enoch mudou radicalmente: Austrogésilo Santana Porto colocou o poeta no
centro da dicotomia entre capitalismo estadunidense e comunismo soviético –
elogiando os cantos marxistas que os seus poemas traziam. Como
desdobramento posterior, Gilfrancisco traz os comentários de Eunaldo Costa,
nos anos 80, que indicam a falta de maturidade de Enoch Santiago Filho por

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

exatamente estarem vinculados à filosofia de Karl Marx. Nesse exemplo,


documentam-se críticas completamente diferentes e contraditórias colocadas
lado a lado. Além disso, em Flor em Rochedo Rubro, Gilfrancisco aponta para
diversos poemas de Enoch Santiago Filho que a fortuna crítica, ao tentar
mapear a orientação política de sua produção, ainda não se deparou. Se se for
falar da poesia de Enoch Santiago Filho concentrando-se meramente na
motivação de sua recepção crítica, nota-se uma discussão démodé. Em
verdade, Gilfrancisco sinaliza que, ao contrário de uma produção fora dos
tempos, Enoch Santiago Filho recebeu críticas marcadas por uma sabedoria
provisória e que se atualizaram a todo instante conforme a perspectiva
ideológica do seu comentador.
Por último, Gilfrancisco narra a história como um sistema aberto e
multicombinatório. Dessa forma, Gilfrancisco inverte o privilégio de um
resultado bem definido e bem acabado como conclusão e fechamento de um
estudo de fontes para um outro de reconhecimento de aberturas múltiplas e
infinitas das possibilidades discursivas da recepção crítica.
Gilfrancisco observa que a coerência dos dados da história só pode ser
fruto de um fingimento, de uma redução da história. Para Gilfrancisco, a
natureza da história é feita de contradições e incoerências, e fingir coerência
seria, portanto, sinônimo de violentar, pensar num tempo homogêneo ou
acreditar numa só interpretação para a história. Essa historiografia alerta de
que é preciso reinstalar as dinâmicas do passado e, para isso, torna-se urgente
reencontrar as contradições e reviver as incoerências.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Antonio Carlos de Oliveira. Poemas: Enoch Santiago Filho. Jornal


da Cidade, Aracaju, 26 de abril de 2006. p. C-2.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas v.1: magia e técnica, arte e política:


ensaios sobre literatura e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FIGUEIREDO, Ariosvaldo. História Política de Sergipe v. 5. Aracaju: Ed. Autor,


1990.

_______. História Política de Sergipe v. 6. Aracaju: Ed. Autor, 2000.

GILFRANCISCO. A romancista Alina Paim. Aracaju: Funcaju, 2007.

1676
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

______. Flor em Rochedo Rubro: o poeta Enoch Santiago Filho. Aracaju:


Secretaria de Estado da Cultura, 2005.

LIMA, Jackson da Silva. História da Literatura Sergipana v.1. Aracaju: Livraria


Regina, 1971.

______. História da Literatura Sergipana v.2. Aracaju: Governo do Estado de


Sergipe, 1986.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994.

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GRUPO DE TRABALHO: EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: OS DESAFIOS DA


INTERSECCIONALIDADE

PROPOSITORES: ANA LÚCIA GOMES DA SILVA, IZANETE MARQUES


SOUZA E ROBERTO SANTOS TEIXEIRA FILHO

Ementa:

Discute a interseccionalidade da diversidade nas relações de gênero na

educação, sexualidade e diversidade étnico-racial. Essa discussão se dá na

perspectiva da inclusão educacional no sentido de respeitar as diversidades

afro-brasileiras em um fazer educacional que toma como instrumento de

análise as manifestações culturais, literárias ou não, que representam as

baianidades e as demais brasilidades.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: OS DESAFIOS DAS


INTERSECCIONALIDADES.

ANA LÚCIA GOMES DA SILVA (UNEB)


IZANETE MARQUES SOUZA (IF BAIANO/UNEB)
ROBERTO SANTOS TEIXEIRA FILHO (UNEB)
RESUMO:
Este texto objetiva apresentar, a partir de experiências pedagógicas aqui
relatadas, reflexões sobre a educação libertária numa perspectiva de promoção
de igualdade e equidade de gênero e etnia/raça, possibilitando construções de
sentido acerca de um fazer pedagógico implicado e engajado num projeto de
educação que nos desafia a articular as categorias de gênero, etnicidade e
sexualidade, numa perspectiva interseccional, percebendo as implicações de
um fazer pedagógico que se constitui nos desafios de educar homens e
mulheres num espaço escolar gendrado, racializado e generificante, buscando
assim descontruir estereótipos e relativizar, ressignificar e deslegitimar
discursos e verdades que são perpetuadas a partir das construções histórico-
sociocultirais e discursivas do pensamento hegemônico. Neste contexto, é a
partir da leitura analítica das interpelações dos inúmeros discursos que são
veiculados na mídia e na publicidade, das construções discursivas constituídas
pelas múltiplas linguagens, que buscamos ancorar nosso trabalho em sala de
aula e em outros espaços de aprendizagem. Para subsidiar as reflexões e
análise tecidas neste texto, escolhemos ancorar nosso diálogo em autores
como Louro (2007), Safiott (1992), Freire (2007), Kimberlé Crenshaw (2002),
Orlandi (2005), Fernandes (2008), Fiorin (2002), Teles(2003), dentre outros. A
leitura dos textos de campanhas publicitárias e de produtos foram realizadas à
luz da Análise do Discurso e de da Análise de Conteúdo. As observações
realizadas numa perspectiva de uma “etnografia crítica de sala” para utilizar
uma expressão Gerteziana , apontam para as possíveis intervenções que nós,
educadores e educadoras, podemos realizar se a sua prática pedagógica tiver
como projeto educativo o ato político implicado na formação humana com
vistas à promoção da igualdade e equidade de gênero e, apontam ainda para o
desafio de estabelecermos o enlace das interseccionalidades de etnicidade e
sexualidade, nos permitindo, assim, o exercício de buscar superar a nossa
formação limitada, a qual deve ser constante e constitutivamente “alimentada”
pela pesquisa, estudos e, diálogos interdisciplinares com outros colegas em
rede de solidariedade, realizando assim, partilhas de conhecimento numa
perspectiva multi, inter e transdisciplinar, buscando transcender ao
especialismo e ao racionalismo cartesiano e positivista que nos deforma e nos
enclausura. São as experiências exitosas que ainda são tão pouco divulgadas
e circuladas, que nos move em busca de uma educação de fato emancipatória.
Assim, sugerimos também como necessária a ampla divulgação dessas
experiências em espaços acadêmicos e transacadêmicos e, conseguintemente,
a sua catalogação para que, de forma eficaz e implicada, possamos construir
uma educação libertária – promotora da equidade e da igualdade.

Palavras-chaves: Educação libertária. Relações de gênero. Prática


pedagógica. Discursos. Etnicidade.
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INTRODUÇÃO

As nossas experiências como educadoras e educadores têm sido um


constante desafio que se coloca cotidianamente no âmbito da sala de aula e
fora dela, nos diversos espaços de aprendizagem. Como docentes de Análise
do Discurso (AD) e de componentes curriculares como Leitura e Produção
Textual, Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa, Literatura, Metodologia
Científica e Ciências Biológicas, nos sentimos implicadas(os) a, de alguma
maneira, formar leitores conscientes do seu papel e seu estar no mundo, cuja
complexidade nos move e nos (des)orienta diante das constantes exposições
discursivas acerca da mulher e da(o) negra(o), e portanto, nos remete a discutir
a promoção da igualdade de gênero, de oportunidades sociais e econômicas,
onde temos mulheres e homens, negras e negros que com seus corpos
sexuados, se expressam e se apresentam nas diversas instâncias sociais.

Como vivenciam na escola1 seu gênero, sua identidade étnico-racial e


sua sexualidade? Nesse sentido, reportamo-nos a Nóvoa (1992, p.41) o qual
afirma que o estabelecimento escolar “constitui um filtro que modela as
mudanças que essa vivência vêm do exterior, bloqueando-as ou dinamizando-
as” à medida que no seu interior desenvolvem-se padrões de relação, cultivam-
se modos de ação que produzem uma cultura própria, da qual, basta uma
observação e um olhar mais atento, ou melhor, basta ler a escola, seus sujeitos
e suas ações que engendram mulheres e homens, que perceberemos a escola
como um microcosmo social, no qual as relações sociais produzidas no
ambiente além escola se (re)produzem. Assim, nas práticas e ritos destes
lugares, tidos como naturais e educativos, percebemos como de fato, os
meninos e meninas vão aprendendo, por exemplo, seu gênero, formando filas
de meninos e de meninas separadamente, realizando atividades lúdicas e
esportivas, classificadas como de meninos e de meninas, de forma a dar
conformidade e formatação ao que se traz da produção sociocultural e
historicamente construída no ambiente social de fora da escola.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Estas práticas ratificam e legitimam o sentido de ser menino ou menina e


caracterizam a escola como um espaço gendrado. Desse modo, a primazia dos
meninos sobre as meninas também se presentifica no cotidiano escolar e é,
mesmo que de forma inconsciente, reforçada tanto no discurso docente, como
nos demais discursos que vivenciam a escola. Aos meninos é permitido pular,
correr, jogar futebol, subir nas árvores, pois são brincadeiras de meninos. Às
meninas, muitas dessas ações são vetadas ou pelo menos limitadas.

E para além dessas, geralmente, as decisões de outras atividades


também são diferenciadas. Se temos festinhas, os meninos trazem os
refrigerantes, as meninas os doces, os bolos, arrumam a sala, decoram e
servem a todos/as juntamente com a professora, as guloseimas. A assimetria
de gênero é então ratificada e os estereótipos legitimados como algo natural,
próprio da natureza feminina e dos fazeres que são de meninas, de mães, de
professoras, de mulheres. Estas ações ensinam a submissão, incutem a
incapacidade intelectiva, a fragilidade – muitas vezes associada à sensibilidade
- entre tantas outras características que vão sendo construídas e imprimidas na
formação de meninos e meninas. A escola, portanto, se consolida
historicamente como um espaço generificante cuja primazia é a do gênero
masculino.

Destarte, estes aspectos não são diferentes quanto à etnia/raça em que


a primazia de uma delas, a branca, define quem tem mais privilégios e
oportunidades, são melhores tratados, são tidos como belos, se enquadram no
modelo padrão de inteligência, racializando de forma continuada meninos e
meninas negras, que não se reconhecem no currículo da escola, pois são
invisibilizados e silenciados.

Nesse sentido, Tomaz Tadeu (2004), explicita que o currículo é sempre


o resultado de uma seleção; é uma pista de corrida; relação de poder; uma
arena, um território, um espaço, um lugar. É também discurso, documento de
identidade. Assim, no curso dessa corrida, acabamos por nos tornar o que
somos. Está, pois, o currículo inevitavelmente imbricado naquilo que somos,
naquilo que nos tornamos. E, ainda, podemos estender está análise para

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documentos políticos, tais como os planos nacional, estaduais e municipais de


educação.

Diante do exposto, a experiência que apresentaremos a seguir busca ir


ao encontro de um projeto educativo que visa a promoção da igualdade, da
equidade e da formação de leitores e leitoras críticas, autônomas que com
suas vozes e sua comunicação com o mundo poderão, com suas ações e
intervenções, reinventar a escola cotidianamente.

O espaço descrito como etinicizado/racializado, generificante e gendrado


não se limita a educação básica. Na universidade, a qual entendemos como
um espaço escolar, também precisamos construir um projeto de educação que
desconstrua estereótipos e forme profissionais à luz das relações de gênero,
sem deixar de incluir na discussão, as categorias de sexualidade, etnicidade,
classe social e geração.

É exatamente por ressoar em nós a proposta apresentada por Margareth


Rago sobre o gênero na nova escola (2007), que buscamos, ainda que de
forma limitada e inicial, uma prática pedagógica que nos desafia a buscar
constantes diálogos com colegas de profissão que discutem as categorias
supra citadas em seus trabalhos de pesquisa e estudos.

Sobre a escola que almejamos, assim afirma Rago:

Uma escola não hierarquizadora, feminista e libertária, não


pode, portanto, escapar de examinar as tecnologias
disciplinares de produção de subjetividade que promove no
cotidiano. [...] Portanto, trata-se de buscar outras linguagens,
abertas, descentralizadas, femininas, corporais, afetivas, que,
na sua diferença, permitam questionar, e nos libertar dos
procedimentos masculinos, cêntricos, “normais”, arrogantes e
onipotentes operantes em nosso mundo (RAGO, 2007, p.488).

Na disciplina Análise do Discurso e Análise do Discurso Publicitário1


temos um campo fecundo para investirmos em atividades que primem pela
análise dos diversos discursos que circulam socialmente nos diferentes
gêneros textuais e para realizar o que nos propõe Rago, já que é com as
múltiplas linguagens que operamos sobre o mundo e produzimos os sentidos e
discursos que são defendidos, difundidos e legitimados.

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Apresentaremos, a seguir, um texto analisado em sala de aula e


pontuamos, de forma concisa, os tópicos principais que foram deflagradores
das leituras realizadas e cuja mediação foi da leitora-guia1, bem como os
pontos “levantados” para discussão, apontando quais as responsabilidades que
cada um de nós tem nesse processo de transformação social pela linguagem.

Para a AD, o que fazemos ao usar a linguagem de maneira significativa


é produzir discursos, os quais envolvem certas condições, certas escolhas de
quem diz, não sendo, portanto, escolhas aleatórias.

Figura 1. Disponível em:


http://www.turmadamamadeira.com.br/uploaded_images/motel-charm-736083.jpg
Acesso em 03 de março de 2009.

Na figura acima podemos identificar, claramente, o valor ideológico


machista e racista já que, numa mesma propaganda de motel, associa o
comércio sexual à mulher, como se homens não fossem objetos de desejo.
Nessa intersecção semântica as fotos das frutas: dois gomos de laranja, uma
maçã, duas laranjas justapostas remetem o leitor a partes eróticas da mulher,
com total ausência de representação de partes do corpo masculino.
Complementando a ideia de erotismo associada à visão de mulher como objeto
de desejo “comercializável” o texto (Figura 1) apresenta um discurso gráfico
que conclama a imaginação e a fantasia com o mundo exótico “... café da

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manhã tropical”, precedida de uma frase apelativa – “Pratique hábitos


saudáveis”.

Dependendo do ponto de vista do leitor, o “hábito” de pernoitar em um


motel – cujo nome também carrega uma semântica apelativa no campo da
imagem social “Charm” – pode ser considerado saudável, isso porque de um
ponto de vista modernizado esse hábito pode ser considerado como algo
inovador, estimulante e renovador da intimidade do casal que pode ter um
relacionamento estável e pernoitar em motéis. No entanto, de uma ótica mais
conservadora, este mesmo “hábito” pode ser visto como algo que afeta
negativamente a intimidade do casal já que, historicamente, o motel é visto
como um lugar de prostituição, de adultério, de promiscuidade: um lugar para
levar o/a parceiro/a da relação extraconjugal.

Cônscios de que não nos cabe o papel defender ou refutar aqui


nenhuma dessas possibilidades de visão “moral” nos ateremos aos elementos
discursivos que podem ser debatidos em sala de aula como elementos
proporcionadores de exercício de uma leitura crítica, imbricada e engajada com
o que o leitor pretende agregar à sua identidade pessoal. Esses elementos
incluem a formação discursiva e a formação ideológica do autor; o lugar de
onde fala esse sujeito discursivo e o porquê; a existência ou não de um sujeito
coletivo nesse texto e o que ele reflete em relação à conjuntura social que
envolve esse grupo humano; a existência ou não do entrecruzamento de
diferentes formações discursivas constitutivas do sujeito e reveladoras de dada
realidade social; a assimetria de gênero; os preconceitos e os estereótipos; a
presença do não-dito; o endereçamento do discurso; a memória discursiva que
é evocada no leitor, entre outros;

Para a análise desses elementos discursivos é salutar considerarmos a


seguinte afirmação de Bordo (1997) [...] “a cultura inscreve seus sinais nos
corpos, neles se estabelecendo; o corpo é, então, um texto da cultura e
também um lugar de controle social”. O corpo é um texto a ser lido, portanto, é
performático, nos expressamos com nossos corpos, os quais apontam suas
marcas quer sejam de gênero, sexualidade, etnicidade, emotividade,
docilidade, castramento, expressividade, dentre outras marcas.

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Uma análise discursiva de textos diversos pautada nos elementos acima


citados aponta o quanto ainda temos a trilhar em busca de uma educação que
prime pela formação humana integral com vistas a uma prática educativa
emancipadora e libertária. Assim, pensar a igualdade e a democratização da
educação exige, necessariamente, a reformulação curricular, em especial nos
cursos de formação docente, para contemplar, no ensino, o enlace das
categorias de gênero, etnicidade e sexualidade, para potencializar uma
educação anti-sexista, anti-racista e anti-homofóbica. Apresentar e discutir as
categorias de gênero e etnicidade é nosso propósito neste texto..

O enlace, aqui pensado, dialoga com o conceito de intereseccionalidade


formulado por Kimberlé Crenshaw (2002) que afirma a coexistência de
diferentes fatores, vulnerabilidades, violências, discriminações, também
chamados de eixos de subordinação que acontecem de forma simultânea na
vida das pessoas. A interseccionalidade, segundo Kimberlé (2002, p.117):
“trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, grupos étnico-
raciais, classes socioeconômicas e outras”.

Na mesma perspectiva, Verena Stolck (1998) aponta a insatisfação das


mulheres negras com o que elas sentem como falta de sensibilidade das
feministas brancas em relação às formas de opressão específicamente
vivenciadas pelas negras. Para Stolck, essa problemática acrescentou uma
nova questão na agenda feminista, que é: de que modo a abordagem de
gênero, etnicidade, classe socioeconômica e geração se cruzam para criar
fatores comuns e também para criar diferenças nas experiências das
mulheres?

Portanto, cabe-nos ressaltar que o conceito de raça (etnicidade),


entendido a partir de Teles (2003, p.85), “não se pauta em perspectivas
biológicas conforme prevaleceu os ideários ‘pseudocientíficos’ dos séculos
XVIII e XIX. Ao contrário, é compreendido na acepção dos movimentos negros
sob o viés sociológico”. Assim pensado, raça, enquanto categoria sócio-

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política, se apresenta como um instrumento de combate ao racismo na


educação, que atinge particularmente os/as negros/as.

Nesse desdobramento, o sentido do gênero enquanto construto social é


encontrado na célebre frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher,
torna-se”, escrita em 1949, no livro “O segundo sexo”, onde a autora, refletindo
sobre a condição feminina, questiona o que é ser mulher. Ao fazer tal
questionamento, a autora aponta que a mulher não tem uma essência, que ser
mulher é um processo de devir. Na trilha de Beauvoir, Scott (1985) aprofunda a
discussão do gênero como uma construção social e apresenta o conceito como
uma categoria de análise dividida em duas partes e várias subpartes, ligadas
entre si e analiticamente distintas. Como categoria política, o gênero pode ser
concebido em várias instâncias, tais como, no plano da linguagem, nos
símbolos culturais evocadores de representações, nos conceitos normativos
como construção de significado, organizações e instituições sociais, identidade
subjetiva, como divisões e atribuições assimétricas de características e
potencialidade.

Nessa perspectiva, Louro (2007) afirma que o gênero pode ser relocado
para o campo social, pois é nele que se constrói e se reproduzem as relações
desiguais entre os sujeitos. A partir da concepção relacional, o conceito de
relações de gênero deve ser capaz de “captar a trama de relações sociais, bem
como as transformações historicamente por ela sofridas através dos mais
distintos processos sociais” (SAFFIOTI, 1992, p.187). Porém, as relações de
gênero não se restringem às características inerentes ao homem e à mulher.
Estas relações não são complementares, elas constituem uma totalidade
dialética, na qual suas distintas partes interagem de forma orgânica. Apoiando-
se em Beauvoir (1962), Saffioti (1992) afirma que tanto o gênero quanto o sexo
são inteiramente culturais, “já que o gênero é uma maneira de existir do corpo
e o corpo é uma situação, ou seja, um campo de possibilidades culturais
recebidas e reinterpretadas” (p. 190). Neste sentido, o corpo de uma mulher é
fundamental para definir sua situação no mundo. Contudo, é insuficiente para
defini-la como mulher (SAFFIOTI, p.190).

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É importante observar que grande parte dos discursos sobre gênero, de


algum modo englobam a questão da sexualidade. É nesse sentido, que as
observações realizadas em sala, a partir de uma inspiração etnográfica
feminista, apontam para as possíveis intervenções que educadores e
educadoras podem realizar se a sua prática pedagógica tiver como projeto
educativo o ato político implicado na formação humana com vistas à promoção
da igualdade e equidade de gênero e, apontam ainda, para o desafio de
estabelecermos o enlace das interseccionalidades de etnicidade e sexualidade,
nos permitindo, assim, o exercício de buscar superar a nossa formação
limitada, a qual deve ser constante e constitutivamente “alimentada” pela
pesquisa, estudos e, diálogos interdisciplinares com outros colegas em rede de
solidariedade, realizando assim, partilhas de conhecimento numa perspectiva
multi, inter e transdisciplinar, buscando transcender ao especialismo e ao
racionalismo cartesiano e positivista que nos deforma e nos enclausura.

São as experiências exitosas que ainda são tão pouco divulgadas e


circuladas, que nos move em busca de uma educação que nos permita, como
docentes e discentes da Universidade do Estado da Bahia, integrantes do
Núcleo de Gênero e Sexualidade – Diadorim1, do DIVERSO1 e do DIFEBA1
revisitar os nossos currículos e práticas pedagógicas a fim de contribuir com a
construção de uma educação anti-sexista, anti-racista e anti-homofóbica, ou
seja, uma educação emancipatória e libertária.

Na leitura inicial das nossas matrizes curriculares e dos nossos


documentos políticos, observamos a necessidade da inclusão das categorias
de gênero e sexualidade nos currículos - em especial nos dos cursos de
licenciatura – e nos planos nacional, estaduais e municipais de educação. A
partir desta constatação, criamos o GT “Educação, Gênero e Diversidade” com
o propósito de fomentar a discussão entre os pares para construção de um
currículo gestado coletivamente, ouvindo os diversos segmentos acadêmicos.
Depois dessa ação acreditamos que serão desencadeadas outras nesse
mesmo movimento do currículo, haja vista que a PROGRAD – Pró- Reitoria de
Graduação retomou, neste semestre 2014.2, a discussão acerca das
mudanças curriculares das licenciaturas e bacharelado na UNEB, através dos
fóruns da áreas, convidando a comunidade acadêmica para discutir e propor

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mudanças nos currículos da UNEB. Portanto, reiteramos que é fundamental


trazer para a centralidade da formação docente a diversidade, o respeito as
diferenças e sobremaneira as demandas da contemporaneidade acerca da
alteridade da inclusão.

Essa reiteração está alicerçada no fato de sabermos que a discussão de


currículo, como bem afirma Tomaz Tadeu (2004) é uma arena de poder, uma
demarcação de território que envolve tensões e dissensos. Estendemos, aqui
também, a necessidade desta análise para os planos de educação. Se o perfil
do profissional que queremos formar na nossa universidade é de um
profissional que percebe a educação emancipadora, libertária, não homofóbica,
devemos incluir em nosso debate a questão da interseccionalidade das
diferentes categorias de análise.

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: VALORIZANDO AS REPRESENTAÇÕES


CULTURAIS LOCAIS COMO FERRAMENTA EDUCACIONAL EM
CACHOEIRA-BA.

TAMIRES CONCEIÇÃO COSTA 356

RESUMO

Este trabalho pretende analisar a importância das representações e


manifestações culturais existentes na cidade de Cachoeira no Recôncavo
baiano como conteúdos pedagógicos nas escolas de educação básica do
município. Por meio de uma analise bibliográfica que vislumbra tencionar a
necessidade de possibilitar ao alunado uma educação pautada na valorização
da diversidade cultural existentes no seu próprio território, propiciando uma
aprendizagem emacipatória e mais democrática.

PALAVRAS-CHAVE:
Diversidade; Manifestações Culturais; Cachoeira; Educação; Lei 10.639/03

INTRODUÇÃO

O sistema de educação superior brasileiro sempre foi pautado numa


formação tecnicista constituída a partir de uma demanda qualificada de
profissionais. No entanto, a educação nos últimos anos vem tomando novos
contornos e concepções. Nessa perspectiva, a educação representa não
apenas a construção técnica e profissionalizante, mas considera entre outros
aspectos a educação cidadã de sujeitos críticos e construtores de sua história
na sociedade.
Desse modo, a instituição escolar no Brasil foi erguida aos moldes de
instituições que dividem e legitima um determinado conhecimento um
determinado saber, e exclui e nega o outro. Por outro lado, este mesmo espaço

356
Mestranda em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB) e bolsista na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB). E-mail: Thamirescosta06@yahoo.com.br .

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excludente, apresenta-se como um lugar privilegiado para realizar atividades


que busquem e resgate uma nova visão de educação, com uma postura mais
igualitária. Um ambiente onde deve-se explorar seu potencial, na tentativa
oferecer aos seus sujeitos um ensino que valore a diversidade, que respeitem
cada um com suas especificidades e pluralidade.
A utilização da história local, como perspectiva de introdução de
conteúdos próximos aos alunos, favorecendo assim, uma aprendizagem mais
interessante que desperte nos alunos a importância da história da sua cidade a
partir de uma visão maior e mais ampla. Assim o atual trabalho visa
problematiza a validade e potencial da utilização das histórias, representações
culturais e religiosas da cidade de Cachoeira como ferramenta de ensino nas
escolas do Município.
É valido apresentar aos alunos assuntos que perpassam os diversos
aspectos de sua vida, seja ela atual ou não, ou através da contribuição e
participação dos seus antepassados na formação do que hoje eles conhecem
no seu cotidiano como elementos formadores de sua localidade.
A partir desta relação é que entra em cena para contribuir com o debate
e desconstrução desse processo na educação do país, cria-se a Lei Federal nº
10.639 em 2003 que tem como objetivo instituir a obrigatoriedade do ensino da
história e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica. Interessado
assim, em combater o racismo e a discriminação no ambiente escolar,
possibilitando o resgate da história da população negra e sua participação na
construção da sociedade brasileira.
Desse modo, pensar uma instituição escola de educação básica que
apresente o ensino e saberes em um território historicamente marcado, com
uma sociedade multirracial e pluricultural, de grande participação na construção
da História do país, certamente é um reconhecimento e valorização da história
local, como algo valido e pertinente para a utilização em sala de aula,
especialmente através do Ensino de História.
Portanto o atual trabalho pretende discutir e problematizar questões que
devem ser tratadas com maior importância no ambiente escola, principalmente,
pois, estamos falando de uma cidade que tem em sua característica potencial

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para o trato da educação e do Ensino de História local, da Cultura e


diversidade.

A Lei 10.639 Como Ferramenta Educacional para o Ensino da História


Local

A demanda por política de reparação e reconhecimento implica garantir


a negros o ingresso e permanência na educação escolar; valorizar a história e
cultura afro-brasileira; viabilizar justiça e igualdade de direitos sociais, civis,
culturais e econômicos dessa população que por toda história brasileira foi
imposta conhecer e legitimar a cultura do colonizador como única e ideal.
Neste sentido, as discussões em torno da diversidade e das questões
étnico-raciais desenvolvidas ao longo do século XX pelos movimentos sociais,
em especial o Movimento Negro, culminaram com a aprovação da Lei
10.639/03, que estabelece o ensino obrigatório da História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana na Educação Básica. Assim a Lei 10.639/03 acendeu um
movimento em direção a ressignificação de práticas educacionais, pautadas na
valorização da identidade e autoestima da população negra e reafirmar as suas
contribuições na formação da sociedade brasileira.
Neste contexto, a Lei 10.639/03 pode apresentar-se como um
instrumento de cobate a ordem vigente, na medida em que coloca em
questionamento construções ideológicas de dominação e poder, fundadoras da
sociedade brasileira. Conforme coloca Gomes,

A Lei 10.639/03 e suas respectivas diretrizes curriculares nacionais


podem ser consideradas como parte do projeto educativo
emancipatório do Movimento Negro em prol de uma educação anti-
racista e que reconheça e respeite a diversidade. Por isso, essa
legislação deve ser entendida como uma medida de ação afirmativa,
pois introduz em uma política de caráter universal, a LDBEN
9394/96, uma ação específica voltada para um segmento da
população brasileira com um comprovado histórico de exclusão, de
desigualdades de oportunidades educacionais e que luta pelo
respeito à sua diferença (2007, p.106).

A materialização do que preconiza a lei 10.639/03, poderá acontecer


através do ensino da história local, que além de propiciar a efetividade da lei, já
que trataremos de uma escola pública de uma cidade historicamente marcada

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pela cultura africana, ainda possibilitará aos sujeitos uma aprendizagem


interessante, ao trazer à tona acontecimentos, personagens e lugares comuns
ao estudante, autorizando sua aproximação com a disciplina e fazendo com
que eles percebam a relação dialética entre passado e presente, entre o
nacional e o local. Essa nova perspectiva da História é a ressignificação do
olhar do educando, através da sua problematização afim de que perceba o seu
entorno como construídor e sujeito da história.

Desta forma, o presente artigo pretende discutir como a utilização da


História de Cachoeira nas escolas de educação básica da cidade, pode
contribuir efetivamente com os interesses da lei 10.639/03, ao propor um
ensino de História que aproxime os alunos aos conteúdos, que possam
desenvolver uma conscientização do seu valor na sociedade brasileira, como
constituinte e sujeitos históricos. Uma proposta, que objetiva movimentar o
debate e criar possibilidades de promover um ensino nas escolas municipais
que valorize o protagonismo dos negros e afrodescentes, e que apresente a
cidade como grande espaço da cultura e religiosidade do povo negro que deve
ser explorado na prática pedagógica nas escolas.
Nesse sentido podemos pressupor a necessidade de tratar a educação
no Brasil como uma ação que deve envolver diversos aspectos que compõe a
população no país. Ou seja, a formação de professores nesse processo tem
notável centralidade, pois ela pode assumir a responsabilidade de caminhar
contra os discursos racistas, unitários e preconceituosos, historicamente
enraizado nos ambientes educacionais no país. Portanto, Munanga (1999)
coloca que nessa relação histórica a população negra apresenta existência
plural, complexa, que não permite a visão de uma cultura ou identidade
unitária, monolítica.
Assim, podemos verificar a necessidade de trabalhar nas salas de aulas
uma História que represente e identifique os alunos, para buscar aproxima-lós
dos conteúdos históricos, tratando e demonstrando a importância da História
Local, e colocando como sujeitos integrantes da História, possibilitando sua
autoafirmação, e valorização da sua identidade, especialmente dos jovens
negros, que ainda são vitimas do próprio sistema educacional e social que
inferiorizam e estigmatizam enquanto individuo.

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Então, é importante que a escola represente um espaço plural, com


aspectos de todos os povos que fizeram parte da formação do país, que
discuta as populações de origem africana que delinearam o território brasileiro
e seu povo. Neste sentido, a autora coloca que os negros brasileiros constroem
suas identidades num contexto que envolve os aspectos históricos, sociais,
políticos e culturais a que são submetidos.
Como toda identidade, a identidade negra é uma construção pessoal
e social e é elaborada individual e socialmente de forma diversa, no
caso brasileiro essa tarefa torna-se ainda mais complexa, pois se
realiza na articulação entre classe, gêneros e raça no contexto da
ambigüidade do racismo brasileiro e da crescente desigualdade
social (GOMES, 2008, p:98).

Assim, podemos verificar a necessidade de trabalhar nas salas de aulas


uma História que represente e identifique os alunos, para buscar aproxima-lós
dos conteúdos históricos, tratando e demonstrando a importância da História
Local, e colocando como sujeitos integrantes da História. Sobre isso Circe
Bittencour coloca:
(...) que o ensino de História deve efetivamente superar a
abordagem informativa, conteudista, tradicional, desinteressante e
não significativa- para professores e alunos- e que uma das
possibilidades para esta superação é sua problematização a partir do
que está próximo, do que é familiar e natural aos alunos. Esse
pressuposto é válido e aplicável desde os anos iniciais do ensino
fundamental, quando é necessário haver uma abordagem e
desenvolvimento importante das noções de tempo e espaço,
juntamente com o início da problematização, da compreensão e
explicação histórica e o contato com documento. (BITTENCOURT,
2007, p. 62)

Portanto evidenciam que é de direito o (re) conhecimento destas


diversidades no processo de educação dos alunos, para propiciar os
posicionamentos críticos sobre questões ligados o seu complexidades,
enquanto sujeitos históricos e social e assim, se posicionando e explorando
suas identidades. E a lei 10.639 se aventura autorizando e mais que isto
exigindo que as escolas do país comprometem-se na luta contra todo e
qualquer segregação e preconceito, no ambiente educacional.

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Cachoeira-Ba um Território Historicamente e Culturalmente Marcado

A região do Recôncavo1 baiano é uma das regiões mais antigas do


Brasil, é um espaço de grande diversidade social e cultura, característica
herdada da sua formação histórica no inicio da colonização português no
século XVI
A escolha da cidade deve-se pelas suas especificidades que permitem o
desenvolvimento e a centralização de atividades dentro do ensino de história
aproveitando esse território historicamente marcado pela cultura e religiosidade
africana, assim como seus Prédios históricos que remetem a momentos que
foram muito importantes para a história da Bahia e do Brasil.
As características registradas a partir da colonização do Brasil, ao logo
da história foram delineando o território do Recôncavo, assim como toda a sua
população. Transformando assim a região em um território rico nos seus traços
culturais e populacionais, ou seja, um espaço marcado pela diversidade e
pluralidade de etnia, cultura e religião.
Foi nessa região de encontro de diferentes povos africanos,
indígenas e portugueses que surgiu uma sociedade culturalmente
complexa e diversificada. A diversidade desse encontro nem sempre
amistosos ainda hoje ainda hoje está presente na forma de viver e
crer das populações locais. (Fraga, 2010, p.11).

Foi dessa diversidade que surgiram as representações culturais,


religiosas, os ritmos musicais e de danças, encontrados aqui no Recôncavo
baiano. O fato é que a região teve contribuições de povos bem distintos,
primeiro os indígenas, portugueses e depois os africanos, na sua formação
cultural. Essa diversidade étnica foi responsável pela modelagem do território e
da sua população que resistem até nos dias atuais.
Neste sentido, os currículos escolares devem ser adaptados à
diversidade cultural do grupo a que se destina, abrangendo saberes, atitudes,
vivências e conhecimentos relevantes de todas as culturas representadas nos
espaços acadêmicos. Os estudantes devem ter acesso à história de sua cidade
e da população. Abrangendo suas especificidades, costumes e representações
religiosas.

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Nessa perspectiva o currículo deve assumir a responsabilidade de


disponibilizar para seus estudantes disciplinas e conteúdos que conectem de
uma maneira mais profunda os aspectos formadores das experiências locais.
Diante disto, é imprescindível a construção de um currículo que priorize as
vivências cotidianas, experiências culturais e de identidades que se
apresentará nos espaços escolares.
Assim, utilizar a História Local no Ensino de História é dar voz aos
sujeitos que foram silenciados e excluídos dos conteúdos eleitos e legitimados
como verdade e único. É uma tentativa de trazer pessoas e lugares ao cenário
escolar, trazendo a memória coletiva como perspectiva de aprendizagem no
ensino de História como conhecimento que também pode ser validado e
produzido nas instituições escolares.
Assim, é relevante aproveitar as especificidades da cidade para o
processo de ensino nas escolas da cidade e circo vizinhas. Especialmente
quando se propõe o trabalho com o papel e contribuição da população negra
para a formação da sociedade brasileira, aqui pode-se tratar da herança
patrimonial dos homens negros, assim como de maneira ainda mais forte, o
legado cultural e religioso valorizada até hoje, como aspecto formativo da
cidade e de sua população
Neste sentido, levar o aluno a discutir o conteúdo que remeta ao local ao
seu cotidiano é um meio eficaz de tornar o ensino mais prazeroso para o aluno,
garantindo também o aproveitamento das aulas. Assim como afirmam Paim e
Picolli (2007) que:
[...] quando o professor consegue cativar seus alunos com assuntos
que lhe chamam a atenção, com temáticas que o fazem refletir e
associar o seu dia-a-dia com os conteúdos escolares, os conteúdos
tornam-se mais compreensíveis. Desta forma, os alunos passam a
gostar de aprender história. (PAIM e PICOLLI, 2007, p. 44)
.
Portanto, todos os aspectos já mencionados demonstram a
potencialidade educacional da cidade, para o desenvolvimento de conteúdos
programáticos sobre a História do Brasil e da Bahia, especialmente a
participação dos negros no processo de formação do País. Os trabalhos podem

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

ser direcionados a visitas a lugares e patrimônios, como também as


manifestações culturais praticadas ainda atualmente.

Considerações finais

O atua estudo foi pensado para corroborar com as discussões acerca da


aplicabilidade da lei 10.639/03 que tem objetivo de contribuir para a superação
dos preconceitos e atitudes discriminatórias por meio de práticas pedagógicas
de qualidade, que incluam o estudo da influência africana na cultura brasileira,
a partir da utilização dos conteúdos sobre a história, e cultura local.
A pesquisa propõe discutir e entender a importância da história e cultura
local como requisito para a disciplina de ensino de história na Cidade de
Cachoeira, propondo a utilização das especificidades da cidade e região como
uma possibilidade de mostrar aos alunos as narrativas locais e de seus
antepassados, promovendo assim, a valorização da identidade negra e do seu
lugar.
É válido propor e colocar na sala de aula conteúdos que não fazem
parte do currículo escolar para assim, contrapor e propor novas pratica de
conhecimentos que compartilhem de outras epistemologias, que relacione os
mais diversos saberes na prática pedagógica.
Assim, é fato e portanto deve ser considerado que cada sujeito em
sociedade é uma fonte única e inesgotável de saberes e experiências, e que
nenhuma delas deva ser silenciada ou inferiorizada como fundamentos para
educação, deve-se possibilitar a efervescência da ecologia de Saberes
(SANTOS, 2006) o respeito à cultura das populações negligenciadas pelas
narrativas oficias. O reconhecimento destes saberes, que a priori se
apresentam além do cientifico e legitimados, seja a valorização das
experiências, vivencias e pluralidades dos sujeitos, autorizando sua
autonomeia e emancipação.

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Circe F.(Org.) O saber histórico na sala de aula. São Paulo:


Contexto, 2003.

1697
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

BITTENCOURT, Circe. Identidades e ensino da história no Brasil. In: Ensino


da história e memória coletiva. CARRETERO, Mario. (Orgs). Porto Alegre:
Artmed, 2007.

BRANDÃO, Maria de Azevedo, (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e


economia em transição. Salvador: Fundação casa de Jorge Amado;
Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998.

BRASIL, Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003. D.O.U. de 10/01/03.

BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares Nacionais para


a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino e Cultura Afro-
Brasileira e Africana, 2005.

GARCIA, Renísia Cristina. Identidade fragmentada: um estudo sobre a


história do negro na educação brasileira: 1993-2005/ Renísia Garcia – Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de


professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 167-182, jan./jun. 2003.
MUNANGA Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade
nacional versus identidade negra. São Paulo: Vozes, 1999.

MACEDO, Roberto S. Atos de currículo, formação em ato? Ilhéus: Editus:


Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, 2011.

PAIM, Elison Antonio; PICOLLI, Vanessa. Ensinar história regional e local no


ensino médio: experiências e desafios. História & Ensino: Londrina, 2007.
SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura
política. São Paulo: Cortez, 2006.

SANTOS, B. de S. Sousa e MENEZES, M. P. Epistemologias do Sul. São


Paulo, Cortez, 2010.

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VOZES E CONTRA-VOZES DE UM DISCURSO UNIVERSITÁRIO


LUSÓFONO: O CASO DA UNILAB

FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA (UNINOVE) 357

A pesquisa em andamento tem como objeto de estudo a inclusão da


diversidade cultural e epistemológica presente nos discursos da Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). Nesse
sentido, propomos analisar nos documentos institucionais e nas diretrizes
pedagógicas aspectos da colonização e da colonialidade. Para tanto, optamos
pelas Diretrizes Curriculares do curso de Letras para iluminar esta discussão e
contribuir com os encaminhamentos que esta pesquisa propõe.

1.A (re)construção do poder no contexto da educação: o currículo

A educação, ao longo da história, tem sido tratada e discutida de acordo


com os interesses de uma classe dominante para a manutenção de seu poder.
Partindo desta “lógica”, as instituições educacionais buscam perpetuar os
sujeitos no tempo e espaço de sociedades que atravessam a história
marginalizando, silenciando e subalternizando a diversidade instituída como
diferença.

Nesse sentido, o debate sobre o conteúdo a ser ensinado nas


instituições educacionais começa pela observação e questionamento do
currículo, abrangendo os ensinos fundamental e médio, e alcança as Diretrizes
Curriculares dos cursos no ensino superior. Nesses três contextos, existe a
emergência de uma proposta dialógica e crítica com a participação dos sujeitos
na conquista de uma educação que respeite e inclua, de fato, a diversidade em
todas as suas dimensões. Conforme nos direciona o pensamento de Apple:

[...] analisar o modo pelo qual operam poderosos interesses


conservadores, tanto ideológicos como materiais, é tarefa da maior
importância, que nos permite compreender melhor tanto as condições
de atuação da educação, como as possibilidades de alteração dessas
condições (APPLE, 1999, p. 47).

357
Graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).
Pós-graduação em Gestão Escolar pela Universidade Braz Cubas. Mestrado em andamento na
Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: franciscamoni@yahoo.com.br.

1699
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No entanto, a formação de um sujeito crítico por meio do diálogo


pautado no respeito e inclusão da diversidade esbarra na emergência da
formação para o mercado de trabalho. Tal realidade acompanha a
homogeneização da educação “(de)formando” sujeitos que vão atuar como
peças de um sistema a serviço da classe que opera e detém o poder. Aqui, a
educação é coadjuvante de um sistema político que visa o lucro no sistema
econômico.

Sob tal ótica, o currículo serve aos interesses de um determinado grupo


na legitimação de um conhecimento baseado no preconceito e na
marginalização da diversidade. Assim, a cultura, a história e a identidade do
sujeito, na sua singularidade, são silenciadas para dar voz à cultura, história e
identidade alicerçadas na ideologia dominante com vistas à orquestração do
poder.

A educação está intimamente ligada à política de cultura. O currículo


nunca é apenas um conjunto neutro de conhecimentos, que de algum
modo aparece nos textos e nas salas de aula de uma nação. Ele é
sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de
alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento
legítimo. É produto de tensões, conflitos e concessões culturais,
políticas e econômicas que organizam e desorganizam um povo
(APPLE, 1999, p. 59).

A ideologia construída nos currículos escolares tem reflexos nas


Diretrizes Curriculares dos cursos no ensino superior corroborando uma lógica
de formação para o mercado de trabalho. Assim, as universidades são
instituições estratégicas de desenvolvimento e formação de cidadãos tendo o
conhecimento como mercadoria apropriável pelo poder econômico.

2.A inclusão da diversidade na universidade

A Unilab foi criada pela Lei nº 12.289, de 20 de julho de 2010, e


instalada em 25 de maio de 2011. Está localizada nos estados da Bahia,
município de São Francisco do Conde, e do Ceará, municípios de Redenção e
Acarape. Busca a integração entre o Brasil e os países membros da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP (Angola, Cabo Verde,

1700
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Brasil, Portugal e Timor-


Leste) tendo como foco os países africanos.
Os processos de integração e internacionalização do ensino superior
respondem às metas desta IES. Para tanto, conta com corpos docente e
discente provenientes não só das várias regiões do Brasil, mas também de
outros países, além do estabelecimento e execução de convênios temporários
ou permanentes com outras instituições da CPLP, desenvolvimento regional
com os intercâmbios cultural, científico e educacional da região.

Além disso, com o objetivo de promover o intercâmbio entre professores


e estudantes e programas nas áreas de ensino, pesquisa e extensão, a China
também passou a integrar esta instituição, a partir de novembro de 2012, com
convênios firmados com a Universidade de Macau e a Zhejiang Normal
University e, em março de 2013, com o Instituto Politécnico de Macau.

A diversidade, como plano e meta desta universidade, responde às


formações histórica, cultural e social das diferenças ao integrar países dos
continentes africano e asiático. Deste modo, a construção destas diferenças se
dá nos processos históricos de relações sociais e de poder classificando, nos
contextos culturais, o diverso como o adverso ao sistema dominante. A respeito
da diversidade, Nilma Lino discorre que,

Do ponto de vista cultural, a diversidade pode ser entendida como a


construção histórica, cultural e social das diferenças. A construção
das diferenças ultrapassa as características biológicas, observáveis a
olho nu. As diferenças são também construídas pelos sujeitos sociais
ao longo do processo histórico e cultural, nos processos de
adaptação do homem e da mulher ao meio social e no contexto das
relações de poder. Sendo assim, mesmo os aspectos tipicamente
observáveis, que aprendemos a ver como diferentes desde o nosso
nascimento, só passaram a ser percebidos dessa forma, porque nós,
seres humanos e sujeitos sociais, no contexto da cultura, assim os
nomeamos e identificamos (GOMES, 2007, p. 17).

A inclusão da diversidade nesta IES aponta para uma inovação no


contexto do ensino superior. O modelo de universidade instituído ao longo da
história, nesta “nova” configuração, passa a ser revisto a partir do lugar das
mudanças sociais, econômicas e culturais exigidas pelo mundo contemporâneo
com reflexos em vários setores da sociedade, especialmente, o da educação.

1701
ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O processo de globalização, intensificado no final do século XX,


influencia diretamente na contemporaneidade em todos os setores –
econômico, social, cultural. Uma das principais mudanças desse processo
resultou diretamente em demandas econômicas que resvalam a universidade,
resultando na Declaração de Bolonha, mais tarde tornando-se Processo de
Bolonha, que consolidou-se na Europa até o final de 2010, com o objetivo de
reformar a educação superior para atender às bases da inovação, da
competitividade e da produtividade. Conforme apontam Rocha e Vaidergorn,

Há indícios da influência do Processo de Bolonha no Brasil, pois em


2008 o Governo Federal divulgou a intenção de desenvolver uma
política educacional de natureza supranacional com a criação de
quatro universidades públicas federais, comprometidas com a
promoção da inclusão social e da integração regional por meio do
conhecimento e da cooperação solidária. São elas: Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), localizada em Foz
do Iguaçu (Paraná); Universidade Federal da Integração Luso-Afro-
Brasileira (UNILAB), sediada em Redenção (Ceará), e a Universidade
Federal da Integração da Amazônia Continental (UNIAM), localizada
em Santarém (Pará) e por fim, a Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS) (ROCHA E VAIDERGORN, 2010, p.03).

As mudanças exigidas neste contexto mundial ecoam no ensino superior


brasileiro com a promoção da inclusão social e integração regional por meio da
cooperação solidária e interiorização da educação superior. O Processo de
Bolonha avança no Brasil no cenário político do governo de Fernando Henrique
Cardoso (FHC), com a proposta de um ensino superior que “moderniza-se”
pautado na educação a distância, em atendimento à Lei de Diretrizes e Bases
(LDB 9.394/96), até o governo de Luís Inácio Lula da Silva que, a partir de
2003, promove uma discussão sobre a “reforma universitária” em tempos de
democracia.

3.O curso de Letras da Unilab

A Unilab conta com cursos de graduação em Administração Pública,


Agronomia, Bacharelado em Humanidades (BHU), Ciências da Natureza e
Matemática, Enfermagem, Engenharia de Energias e Letras – Língua
Portuguesa. Na modalidade a distância, é oferecido o curso de Administração
Pública.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

O curso de Letras – Língua Portuguesa merece destaque e análise por


versar sobre conteúdos que envolvem a língua e a literatura portuguesas. Vale
destacar que os países que fazem parte da política de integração desta
universidade pertencem à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP). Nesse sentido, analisar as Diretrizes Curriculares do curso de Letras
pode contribuir para uma compreensão maior da integração da diversidade de
alunos brasileiros e estrangeiros.
A súmula do curso de Letras, elaborada pela pró-reitoria de graduação,
coordenação de ensino e coordenação de curso, descreve o perfil do egresso,
os temas abordados na formação, os ambientes de atuação, o corpo docente e
o tempo de duração do curso. O documento está em consonância com as
Diretrizes Curriculares para os cursos de Letras de acordo com o Parecer
CNE/CES 492/2001 e com os princípios de formação em nível superior das
Diretrizes da Unilab. De acordo com o texto,

Esta proposta de Diretrizes Curriculares leva em consideração os


desafios da educação superior diante das intensas
transformações que têm ocorrido na sociedade contemporânea,
no mercado de trabalho e nas condições de exercício
profissional. Concebe-se a Universidade não apenas como
produtora e detentora do conhecimento e do saber, mas,
também, como instância voltada para atender às necessidades
educativas e tecnológicas da sociedade. Ressalta-se, no entanto,
que a Universidade não pode ser vista apenas como instância reflexa
da sociedade e do mundo do trabalho. Ela deve ser um espaço de
cultura e de imaginação criativa, capaz de intervir na sociedade,
transformando-a em termos éticos. A área de Letras, abrigada nas
ciências humanas, põe em relevo a relação dialética entre o
pragmatismo da sociedade moderna e o cultivo dos valores
humanistas (CNE/CES 492/2001, p. 29) (grifo nosso).

Os termos destacados dão conta de uma universidade voltada à


formação de sujeitos inovadores, competitivos e produtivos para o mercado de
trabalho respondendo à política do Processo de Bolonha, iniciada na Europa,
com reflexos no ensino superior do Brasil.
Nesse sentido, o documento amplia o conceito de currículo como uma
construção cultural e o define como conjunto de atividades acadêmicas que
integralizam o curso:

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

[...] é necessário que se amplie o conceito de currículo, que deve ser


concebido como construção cultural que propicie a aquisição do
saber de forma articulada. Por sua natureza teórico-prática,
essencialmente orgânica, o currículo deve ser constituído tanto
pelo conjunto de conhecimentos, competências e habilidades,
como pelos objetivos que busca alcançar. Assim, define-se
currículo como todo e qualquer conjunto de atividades
acadêmicas que integralizam um curso. Essa definição introduz o
conceito de atividade acadêmica curricular – aquela considerada
relevante para que o estudante adquira competências e habilidades
necessárias a sua formação e que possa ser avaliada interna e
externamente como processo contínuo e transformador, conceito que
não exclui as disciplinas convencionais (CNE/CES 492/2001, p. 29)
(grifo nosso).

É importante destacar que a definição de currículo parte de uma


construção em conjunto com a Unilab e o Parecer CNE/CES 492/2001, ou seja,
“as teorias, diretrizes e práticas envolvidas na educação não são técnicas. São
intrinsecamente éticas e políticas” (APPLE, 1999, p. 41).
Nessa perspectiva, o perfil do egresso, descrito na súmula do curso de
Letras desta IES, busca localizar o profissional que irá atuar no mercado de
trabalho e na sociedade:

[...] Em consonância com as Diretrizes Curriculares para os cursos de


Letras (Parecer CNE/CES 492/2001) e com os princípios de formação
em nível superior das Diretrizes da Unilab, espera-se que o
profissional egresso do curso de Letras/Português apresente:
• formação humanística que contribua para o desenvolvimento de
uma educação linguística da sociedade pautada no respeito às
diferentes variedades linguísticas e à pluralidade cultural;
• domínio das novas tecnologias, com o fim de melhorar o processo
de ensino-aprendizagem;
• percepção de diferentes contextos interculturais que lhe permita
lidar, sem etnocentrismo, com as diferentes manifestações
linguísticas e culturais; (p. 1-2).

O perfil do egresso aponta para a formação de um profissional que


atenderá às exigências e transformações do mercado de trabalho,“domínio das
novas tecnologias” (p. 2), e respeitará à pluralidade cultural e às variedades
linguísticas. Assim, é possível pensar em um sujeito inovador, competitivo e
produtivo que respeita o outro em suas variadas dimensões culturais. Em
outras palavras, a inclusão social, base da proposta de diversidade cultural,
está nos espaços da universidade e da sociedade que receberá este
profissional para atuar no mercado de trabalho. Assim, a súmula do curso de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Letras vai ao encontro do item do Parecer CNE/CES 492/2001 que descreve a


universidade como “instância voltada para atender às necessidades educativas
e tecnológicas da sociedade” (CNE/CES 492, 2001, p. 29).
A súmula do curso de Letras descreve ainda os temas abordados na
formação dos estudantes atendendo ao princípio de flexibilização curricular
horizontal e vertical:
A proposta curricular do curso de Letras/Português Língua Materna e
Língua Adicional contempla o princípio da flexibilização curricular,
que, por sua vez, divide-se em flexibilidade horizontal e vertical. A
flexibilidade horizontal é compreendida a partir de uma ampliação da
noção de currículo na medida em que diferentes atividades
acadêmicas, científicas e culturais podem integrar o currículo do
curso. A flexibilidade vertical é compreendida como a organização
das disciplinas ao longo dos trimestres, de modo a permitir a
mobilidade discente e a interação entre as áreas do curso, entre
cursos e entre instituições (p. 03).

Vale destacar que a flexibilização horizontal amplia a noção de currículo


no que tange à conexão de atividades acadêmicas, científicas e culturais
podendo contribuir com a proposta de integração da diversidade de estudantes
brasileiros e estrangeiros nos espaços acadêmicos desta universidade. Além
disso, a palavra flexibilização pode ser traduzida em maleabilidade, ou seja, no
contexto da formação pode configurar uma abertura de espaço ao diálogo que
agregue as diversidades de vozes nas diferentes atividades acadêmicas,
científicas e culturais com a participação de todos no plano horizontal. A
proposta de integração permanece no documento com a flexibilização vertical
que propõe a organização de disciplinas permitindo a mobilidade estudantil e a
interação entre as áreas do curso, entre cursos e instituições.
As etapas formativas que serão seguidas pelos estudantes são divididas
em inserção à vida universitária, formação geral, formação básica, formação
livre e formação profissional específica. A súmula do curso define cada uma:

• Inserção à vida universitária: busca integrar os estudantes em um


universo acadêmico marcado pela pluralidade e pela complexidade
cultural dos países parceiros.
• Formação geral: visa a propiciar a construção e o aprofundamento
de conhecimentos da história e da cultura dos países parceiros, bem
como integrar o estudante nas práticas acadêmicas de investigação
científica.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

• Formação livre: busca possibilitar o trânsito do estudante entre as


várias áreas do conhecimento, tendo em vista as conexões entre os
diferentes campos do saber, de modo a enriquecer sua formação.
• Inserção no mundo do trabalho: busca fornecer ao estudante
instrumentos de integração no mundo do trabalho (p. 04).

A inserção à vida universitária, que busca a integração dos estudantes


em um espaço acadêmico marcado pela pluralidade cultural, a formação geral,
que propicia o conhecimento da história e cultura dos países parceiros, e a
formação livre, que possibilita o trânsito nos diferentes campos do saber,
corroboram a proposta e meta da Unilab: integrar estudantes brasileiros e
estrangeiros na construção e formação de conhecimentos e saberes.
No entanto, a educação superior, atendendo às demandas dos
contextos econômico, social e cultural, instrumentaliza profissionais para
atuarem no mercado de trabalho na construção de uma sociedade menos justa
e consumidora, ou seja, “em lugar de sermos definidos como pessoas que
participam da luta para construir e reconstruir nossas relações educacionais,
políticas e econômicas, somos definidos como consumidores.” (APPLE, 1999,
p. 51).
A etapa final da formação do estudante do curso de Letras da Unilab,
inserção no mundo do trabalho, pressupõe que a universidade e a sociedade
julguem esse formando capaz de atuar no mercado, pois terá instrumentos que
possibilitarão a sua integração no mundo do trabalho.
As reflexões de Apple acerca de currículo, se comparadas com a súmula
do curso de Letras da Unilab e o Parecer CNE/CES 492/2001, podem contribuir
com o entendimento dos paradoxos entre o discurso documental e a prática do
ensino superior voltada ao mercado de trabalho. Nesse sentido, a integração
das diversas culturas dos países parceiros pode configurar uma estratégia
neoliberal construindo expectativas em estudantes brasileiros e estrangeiros,
na perspectiva da promoção de uma educação superior pluricultural.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

REFERÊNCIAS

APPLE, Michael W. Ideologia e currículo. Porto: Porto Editora, 1999, p. 39-91.

BASTOS, Carmen Célia Barradas Correia. O Processo de Bolonha no espaço


europeu e a reforma universitária brasileira. ETD – Educação Temática
Digital, Campinas, v. 9, n. esp., p. 95-106, dez. 2007. Disponível em
https://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/index.php/etd/article/viewArticle/1703
Acesso em 28 nov. 2015.

GOMES, Manuel Tavares. A universidade e a pluridiversidade epistemológica:


a construção do conhecimento em função de outros paradigmas
epistemológicos não ocidocêntricos. Revista Lusófona de Educação, Lisboa,
v. 24, n. 24, p. 53-79, 2013.

GOMES, Nilma Lino. Indagações sobre currículo: diversidade e currículo /


[Nilma Lino Gomes]; organização do documento Jeanete Beauchamp, Sandra
Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. – Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007. 48 p.

ROCHA, Cintia Lins; VAIDERGORN, José. Processo de Bolonha: A criação de


um espaço europeu de ensino superior e possíveis influências nas
universidades brasileiras. Revista Ibero-Americana de Estudos em
Educação, São Paulo, v. 5, n. 2, 2010. Disponível em
http://www.seer.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/download/3476/3248
Acesso em 28 nov. 2015.

http://www.unilab.edu.br/ Acesso em 18 out. 2015.


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http://www.unilab.edu.br/cursos-de-graduacao/ Acesso em 22 nov. 2015.


http://www.unilab.edu.br/cursos-de-graduacao/letras/ Acesso em 22 nov. 2015.
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http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES0492.pdf Acesso em 30 nov.


2015.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

GRUPO DE TRABALHO: EJA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

PROPOSITORA: TÂNIA REGINA DANTAS

Ementa:

Trata-se de um grupo de pesquisadores que investigam há mais de duas

décadas a formação de professores e as políticas públicas do estado para o

campo da EJA. Pretende-se incrementar a investigação de novas tendências

na formação de professores, efetuando-se um balanço das pesquisas sobre a

educação de jovens e adultos e as políticas públicas na área de EJA. Estudos

e pesquisas vêm sendo realizados sobre a educação matemática e a EJA. O

meio ambiente e o trabalho é uma das linhas de pesquisa que denota a

preocupação com o desenvolvimento sustentável e o mundo do trabalho na

educação de jovens e adultos. As tecnologias da informação e da comunicação

também se constituem em uma das linhas de pesquisa do programa, tendo

inclusive a oferta da disciplina Inclusão digital na EJA com pesquisas sendo

desenvolvidas neste campo de investigação.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

LEITURA E ESCRITA NA EJA: UMA ABORDAGEM AMBIENTAL

YARA DA PAIXÃO FERREIRA (REDE MUNICIPAL DE ENSINO


DE CAMAÇARI)

RESUMO
Nas classes da Educação de Jovens e Adultos o processo educativo deve ser
trabalhado de forma contextualizada com as temáticas inerentes a sociedade e
interligadas ao cotidiano dos educandos. Diante de tal perspectiva o presente
trabalho tem como objetivo trabalhar a Língua Portuguesa, precisamente a
leitura e a escrita, atrelada à questão Ambiental. Através de diversos gêneros
textuais com abordagens de ordem social como: desigualdade econômica;
desenvolvimento da sustentabilidade contra a cultura do desperdício; o
consumismo e a questão capitalista; e a força do trabalho vinculada ao mundo
da produção. A metodologia utilizada será de caráter bibliográfico-empírico,
através de leituras, interpretações, discussões e construções, orais e visuais.
Tendo como suporte teórico Paulo Freire; Carvalho; Loureiro e os Módulos do
Processo Formador em Educação Ambiental Distância (2009). Tal proposta
visa favorecer a construção e expressão do sujeito. Promovendo uma
aprendizagem pautada na sua responsabilidade e no compromisso social em
relação ao futuro do planeta e dos seus habitantes.

PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos; Leitura e Escrita; Meio


Ambiente.

INTRODUÇÃO

A interação através da Educação libertadora, proposta por Paulo Freire,


conduz o aluno a desafios de leitura e escrita à partir do seu cotidiano. Diante
dessa premissa, o presente trabalho surgiu diante da rejeição dos educandos
das turmas da EJA, em ler e produzir textos. Assim, a Educação Ambiental foi
utilizada como temática para as construções textuais dos alunos. Tendo como
objetivo trabalhar a Língua Portuguesa - leitura e escrita, atrelada a questão
ambiental. Os gêneros textuais utilizados pautaram-se em abordagens de
ordem social como: a desigualdade econômica; o desenvolvimento da
sustentabilidade contra a cultura do desperdício; o consumismo e a questão
capitalista; e a força de trabalho vinculada ao mundo da produção. Como
suporte teórico tivemos a corroboração de Freire através da busca da

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

autonomia do sujeito; Carvalho que trata da Educação ambiental: e a formação


do sujeito ecológico; Loureiro e Layrargues que abordam a questão do meio
ambiente e a sociedade, dentre outros. Freire (1989) deixa evidente que “para
formar leitores-escritores, devemos focar a criação da expressão escrita e da
expressão oral, através da interação dentro de situações de comunicação”.
Assim a metodologia utilizada foi Empírica –bibliográfica através de leituras,
interpretações, discussões e construções: orais e verbais. As etapas
delimitaram em: a) Leituras de textos e/ou visualizações de imagens; b)
Discussões sobre o texto e sua relação com a sociedade; c) Construções
textuais; d) Escrita e Reescrita; e) Propagação dos textos construídos. Focando
o processo ensino-aprendizagem de leitura e escrita, na perspectiva, de
respeito ao legado histórico-cultural do indivíduo, incluindo suas relações
interpessoais, promovendo a motivação pessoal em busca do resgate da sua
autoestima, usando estratégias didáticas que lancem desafios que conduzirá o
aluno ao crescimento e desenvolvimento intelectual, social e político. Os textos
utilizados foram diversos como: poemas; letras de músicas; contos, crônicas,
reportagens e textos jornalísticos. O campo de estudo foi a Escola Municipal
Anísio Teixeira localizada em Camaçari, Bahia. Tendo como participantes
quarenta (40) alunos da EJA, pertencentes aos Eixos VI e V. As atividades e
ações foram realizadas nas aulas de Língua Portuguesa.

INTERAÇÃO E DIÁLOGO – Ler e escrever

Orlandi (1987), direciona a leitura como processo de interação entre os


interlocutores. Pois à medida que interagimos acontece a ação dialógica,
apartir da troca e da partilha. Nestas condições, ler é atuar, compreender e
dialogar com o texto e seus interlocutores. E a compreensão é que estabelece
essa interação.
Desta forma, ler e escrever é muito mais que codificar e decodificar
letras, silabas e fonemas. É interagir com o texto. Logo, ler e escrever na EJA
deve elencar questões da sociedade de forma coletiva e individual. Assim,
trabalhar leitura e escrita, interligada a questão ambiental conduz a
participação do sujeito como ser político e integrante do meio em que vive.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Neste contexto Kock e Elias (2006), sintetizam a formação de Leitores


focando: o autor como ser individual; o texto como codificação do autor e
decodificação do leitor; a interação – texto-leitor. Tendo a língua como
construção dialógica, onde somos construtores sociais constituídos pelo
diálogo. Sendo assim, o texto passa a ser visto como elemento de interação e
reprodução.
Portanto, percebemos que o foco de melhor performance para formar
leitores, principalmente nas turmas da EJA, deve conduzir a aprendizagem
através da interação entre autor–texto e leitor, pois possibilita a autonomia do
discente. Sendo assim, a aprendizagem acontece a partir do que interessa ao
educando, e aos fatos centrados no seu cotidiano. Evidenciando que, a
aprendizagem é situada através das suas percepções, da sua leitura de vida
e do seu conhecimento de mundo.
É evidente que isto não elimina a aprendizagem gramatical do código
linguístico, da codificação e da decodificação. Pois, esses seguimentos fazem
parte da formação dos leitores e escritores. Porém, o que estamos pleiteando,
é que esta aprendizagem tenha como objetivo, promover uma aprendizagem
efetiva, democrática e autônoma para o aluno. Dessa forma, deixaremos de
formar os alfabetizados funcionais, baseados na memorização. E teremos
leitores e escritores da EJA, capazes de refletir, escrevendo textos diversos
sem fazer deste momento da aprendizagem um martírio.
Tal empreendimento, requer implicações pedagógicas que direcionem
reflexões cotidianas e coletivas. Através das histórias dos alunos, das suas
próprias produções; da troca de seus conhecimentos e experiências, dentro de
uma visão interacionista, correspondendo morfe-margafema e ortografia, pois
são elementos que fazem parte do processo de aprendizagem.
Portanto, o educando deve através deste elo entre leitura, escrita e meio
ambiente (des) velar sentidos e significados. Percebendo as contribuições
efetivas que as disciplinas podem dar, a partir de suas especificidades, devem
contribuir com o entendimento, a ampliação e o enriquecimento da discussão
sobre as questões socioambientais (MENDONÇA & NEIMAN, 2003).

MEIO AMBIENTE E A SOCIEDADE

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

Scarlato e Pontin (1994), abordam as questões ambientais de forma


contextualizada, determinadas na relação: produção e consumo; informação e
conhecimento; desenvolvimento sustentável; cultura do desperdício; e a
questão da desigualdade social e econômica. Focalizando a potencialidade do
sujeito na contribuição para melhoria e sustentabilidade do Meio Ambiente.
Sendo assim, a temática ambiental traz um cabedal de propostas fundantes
para o trabalho de leitura e escrita e criação textual para os educandos da EJA.
Ao mesmo tempo os autores acima citados, associam “[...] a violência
urbana à crise dos transportes, da segurança pública, do abastecimento de
água, principalmente nos bairros com população de baixa renda [...]” delega ao
consumismo exacerbado da sociedade urbana para o desencadeamento da
emergente crise de identidades nas cidades e sujeitos que são bombardeados
todos os dias pela mídia consumista. Ocasionando a violência, devido as
injustiças sociais e a má distribuição de renda do nosso país, subdesenvolvido
e cercado de verdadeiros bolsões de pobreza. Todas essas questões fazem
parte do nosso cotidiano e da nossa sociedade. Portanto, tratar dessas
temáticas no ensino de Língua Portuguesa, sobretudo da leitura e escrita. É
fazer da aprendizagem uma ação real e eficaz.

SUSTENTABILIDADE, O EDUCANDO E A ESCOLA

Situando a questão ambiental e a educação, podemos encontrar formas


de minimizar o impacto no meio ambiente e reduzir custos, desenvolvendo
objetivos da sustentabilidade. Portanto, temos que falar nas nossas classes: do
consumismo, da exploração individual e coletiva e do desperdício dos recursos
naturais. Bem como das indústrias poluentes, que trazem malefícios à
sociedade.

Isto implica dizer que, o educando deve perceber que estamos em déficit
de serviços primordiais às nossas vidas como água potável e energia elétrica.
Pois, o caos poderá travar a sociedade impedindo sua subsistência.

Outro aspecto é a possível diminuição da geração de novas tecnologias


nas diversas áreas: saúde, educação, tecnológica dentre outras. Portanto, é
necessário que os educandos conheçam textos e documentos que abordem tal

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

temática como: a agenda 21; a Carta da Terra e a ECO-92. Pleiteando que o


aluno tenha o compromisso da ética sustentável.

Consciente desse obstáculo, a Agenda 21, um dos


importantes fóruns de debates discussões e acordos
ocorridos na conferência ECO-92, propôs dois
importantes objetivos para os países signatários: a)
promover padrões de consumo e produção que reduzam
as pressões ambientais e atendam às necessidades
básicas da humanidade; b) desenvolver uma melhor
compreensão do papel do consumo e da forma de
implementar padrões do consumo e da forma de
implementar padrões de consumo mais sustentáveis.
(SCARLATO; PONTIN, 1999, p. 70).

Logo, ler escrever requer um saber crítico. Propondo uma educação


pesquisadora, reflexiva e capaz de contribuir para o bem comum. O que propõe
engajamento dos envolvidos no processo educativo. Pois, a escola é um
ambiente de formação imprescindível aos estudantes. Visto que, vivemos numa
sociedade que necessita de sujeitos críticos, participativos e politizados.
Contribuem Scarlato; Pontin “sabemos que os conteúdos e habilidades
trabalhadas na escola deveriam corresponder às expectativas e interesses da
clientela”. Tal afirmação sugere a proposta da leitura e escrita de si e do mundo
que nos cerca.

DEMOCRACIA AMBIENTAL

A educação é um campo de luta democrática. O que sugere a


participação popular, do povo, das massas. Portanto, desenvolver a
democracia ambiental determina “[...] Ampliar o sentimento de pertencimento à
humanidade e a um planeta único, comumente identificado com a noção de
cidadania planetária ou cosmopolita [...]” (LOUREIRO, 2002). Neste âmbito, os
movimentos sociais atuam de forma democratizada nas questões ambientais
da sociedade. Por isso, os educandos da EJA são sujeitos protagonistas deste
movimentos, já que fazem parte do contexto popular. E suas escritas, leituras e
ideias são de vital importância para o desenvolvimento democrático social.
Assim, a escola é lugar de eloquência, de escrita e de ideais.

Isto implica dizer que, o ambiente educativo desencadeia o cuidado real


com o planeta, através de ações coletivas ou individuais como: a redução do

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

consumo de água e energia. Buscando ações empreendedoras através de


reciclagens, geração de renda, dentre outras ações. Não ficando focalizada em
projetos “escritos”, mirabolantes que são na maioria das vezes esquecidos e
engavetados nas escolas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que, a leitura e a escrita quando trabalhada na sua essência


viva, se focaliza no cotidiano e na sociedade. Ela se faz uma escrita e leitura
pluralizada, real e precursora de mudanças. O que sugere uma aprendizagem
efetiva, a partir da vivência e da problemática que envolve o sujeito e o seu
meio.

Neste trabalho podemos perceber a quebra da baixa estima de


educandos que se colocavam na incapacidade e no medo de expor suas
ideias, seus desalentos, seus conhecimentos através da escrita e da leitura.
Outro aspecto importante a salientar indica que os educandos adquiriram
conhecimentos diversos, além da gramática. Compreendendo-se como ser
transformador e responsável pelo meio ambiente.

Ao mesmo tempo os educandos perceberam o poder da mídia e do


capitalismo como gerador de um consumismo muitas vezes desnecessário. Tal
reflexão, foi percebida nas discussões e criações textuais realizadas pelos
educandos. Através do processo ensino aprendizagem com conteúdos e ações
pertinentes. Incorporando o estudo gramatical, semântico e sintático da Língua
Portuguesa, ampliando o campo da Leitura e Escrita e dos conhecimentos
diversos da língua. Ao mesmo tempo, estes sujeitos, perceberam a importância
do cuidado com o seu habitat. Produzindo conhecimentos e informações.

Até por que, muitas vezes a desinformação e a falta de conhecimentos


direcionam o ser humano a colaborar na destruição da natureza, da
biodiversidade, dos biomas e das riquezas ecológicas.

Outras questões focalizadas foram: a valorização dos bens naturais, o


cuidado com o meio ambiente; o estimulo a busca por soluções sustentáveis.
Desta forma, passamos a desenvolver uma postura crítica frente à realidade, à
informação e aos valores veiculados pela mídia. Desenvolvendo a

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

aprendizagem da leitura e da escrita, favorecendo sua construção e expressão,


enquanto sujeito politizado, atuante na sociedade. Promovendo uma
aprendizagem pautada na sua responsabilidade e no compromisso social em
relação ao futuro do planeta e dos seus habitantes. Deixando em evidencia
que, a escola é um ambiente de formação imprescindível para os sujeitos.
Considerando que somos povo, somos pensantes reflexivos, somos críticos e
produtores natos de conhecimentos plurais. O que sugere uma educação
participativa, emancipatória e politizada.

REFERÊNCIAS

Carta da Terra www.mma.gov.br/responsabilidade-socioambiental/...21/carta-


da-terra.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e


Terra. 150 p.

_____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. (2006). Ler e compreender: os sentidos do texto.


São Paulo: Contexto.

LOUREIRO, B. F; LAYRARGUES. R. S.C. Sociedade e meio ambiente: a


educação ambiental em debate. 3ed. São Paulo: Cortez, 2002.

NEIMAN, Zysman e MENDONÇA, Rita. À Sombra das árvores:


transdisciplinaridade e educação ambiental em atividades extraclasse. São
Paulo, Ed. Chronos, 2003.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do


discurso. 2ª ed. rev e aum. Campinas, SP: Pontes, 1987.

SCARLATO, C.F; PONTIN, A.J; O ambiente urbano. São Paulo: Atual, 1999.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Processo formador em educação ambiental


a distância: módulo 3: mudanças ambientais globais. Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília, 2009.

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GRUPO DE TRABALHO: NEGRAS-FEMININAS GRAFIAS:


INSUBORDINADAS E INSUBMISSAS NARRATIVAS

PROPOSITORES: HILDALIA FERNANDES CUNHA CORDEIRO (UNEB),


JÚLIO CÉZAR BARBOSA (UNEB) E CARLA MARIA FERREIRA NOGUEIRA
(UNEB)

Ementa:

O grupo de trabalho busca acolher pesquisas que versem sobre a produção

literária de autoria negra-feminina diaspórica: suas demandas e

potencialidades. Temas como: ancestralidade, religiosidade, autogestão do

corpo e da sexualidade, narrativas lesboafetivas e afrolésbicas, construção de

identidade positiva, estética, processos de emancipação e empoderamento,

negras memórias são recorrentes nessas pretas e poderosas grafias. A

escrevivência e a autorrepresentação são outras marcas em tais escritos e

acabam por borrar e rasurar o canon e os estereótipos históricos destinados a

corporalidade negra-feminina. Estudos que desejem explorar esse letramento

preto, bem como as possibilidades metodológicas do complexo e diversificado

acervo em sala de aula, objetivando a efetivação da lei federal 10.639/03 e

uma educação antirracista pautada na proposta de (re) educação das relações

etnicorraciais serão aceitas e bem recebidas no grupo.

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ENCONTRO DE MARIAS: VOZES DE MULHERES NEGRAS E SUAS


POTENCIALIDADES

GISLENE ALVES DA SILVA (UNEB)


SHEILA RODRIGUES DOS SANTOS (UNEB)

O que é ser escritora ou escritor? Ainda permeia o imaginário a ideia


de que a escritora, o escritor é um ser iluminado, predestinado, que nasceu
com um dom divino para a escrita. Daí, talvez a dificuldade de algumas
mulheres se reconhecerem como tais, ou ainda falarem timidamente que
escrevem. Assim, neste texto, reuniremos as vozes de mulheres negras
falando de uma coletividade, ou melhor, lançaremos um olhar sobre a
singularidade de três mulheres, três vozes negras que ousaram romper com o
silêncio ao qual foram, e em alguma medida ainda são, conduzidas. Marcas
que estas mulheres ousaram rasurar os estereótipos históricos, ao
ressignificarem seus processos de (auto)formação e empoderamento. Deste
modo, discorreremos sobre o encontro de Marias, três mulheres negras
escritoras, Carolina Maria de Jesus, Maria da Conceição Evaristo de Brito e
Margarida Maria de Souza, mulheres que resistiram as lutas, fazendo uso da
palavra como instrumento.
Para investigar como as escritoras de Alagoinhas ressignificam as suas
histórias de vida a partir das narrativas autobiográficas, promovemos o Ateliê
autobiográfico, que intitulamos de Escrevivendo1, pensamos este, enquanto
atividade específica para escritoras locais com a finalidade de promovermos
um encontro entre escritoras, uma troca, um ambiente de leituras,
preferencialmente desviantes, descolonizadoras, das escritoras memorialísticas
Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, para que pudéssemos, assim,
fortalecer o debate para criarmos dispositivos contra a dominação do discurso
patriarcal, um essencialismo e operarmos leituras críticas e reflexivas por outra
política à favor da vida.
Assim, a nossa intenção, neste curso, foi fazer com que as escritoras
de Alagoinhas tomassem maior conhecimento das escritoras Conceição
Evaristo e Carolina Maria de Jesus, mas, ao mesmo tempo, a partir das leituras
dos textos delas, refletissem sobre as suas próprias histórias de vida, tomando
a direção destas em suas mãos.

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

No Ateliê trabalhamos com os poemas Eu-Mulher, e Vozes-Mulheres e


o conto Olhos d’água de Conceição Evaristo e com a leitura de trecho do livro
Quarto de despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus.
Carolina nos fala do instante, do momento presente vivenciado por ela,
mas por tantas mulheres que habitam naquele mesmo espaço, a extinta favela
do Canindé. Na sua escrita cotidiana escreve no seu diário as mazelas da
favela pelas quais passam mulheres como ela, negra e pobre jogada a própria
sorte, nos fala da luta diária para se conseguir o que comer. Este é o cenário
do livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, escrito na década de 1950.
Em Vozes - Mulheres, Conceição Evaristo tematiza o sofrimento das
suas antepassadas, fala-se dos silêncios, mas, também, do tomar da palavra
pelas mulheres negras que foram historicamente silenciadas, reúne-se assim
as vozes de tantas mulheres que lutaram e resistiram para que hoje possamos
falar.
Conceição Evaristo produz seus textos literários a partir das histórias
do cotidiano, muitas das vezes, a partir da vivencia das mulheres negras. Em
Eu-Mulher a escritora apresenta essa mulher como uma força motriz, um corpo
singular que é o único capaz de gerar a vida, um corpo que move o mundo.
E essa força motriz, que gera a vida, é tematizada em Olhos d´água,
quando a personagem do conto vai em busca da descoberta da cor dos olhos
da sua mãe, desvelando o universo familiar de uma mulher negra que precisa
esconder a fome das suas filhas e para isso brinca com estas, virando rainha e
princesas e, assim, distraindo a fome. De tal modo, a personagem vai narrando
vários momentos vivenciados com a sua mãe na busca da cor dos olhos da
mãe, que é reflexo dos seus.
Assim, no ateliê autobiográfico promovemos o encontro de três Marias
oriundas de famílias pobres, negras, e que adquiriram o interesse pela escrita
muito cedo. Carolina Maria de Jesus, Maria da Conceição Evaristo de Brito e
Margarida Maria de Souza. Mulheres que fizeram e fazem uso da palavra como
instrumento de resistência e luta.
Carolina passou por muitas cidades do sul do estado de Minas Gerais,
quando então vem para São Paulo, trazida por umas das suas patroas,
exercendo a atividade de empregada doméstica. Carolina era neta de

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ANAIS II SINBAIANIDADE E II CILLAA - 09 A 11 DE OUTUBRO DE 2015 - UNEB

escravos, precisou abandonar a escola, que cursou até o segundo ano, para
trabalhar; quando alfabetizada lia tudo que as pessoas lhes emprestavam. Ao
escrever a Obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina já se
encontra morando na favela do Canindé, vivia do que catava no lixo para
sustentar a si e aos seus três filhos. Sempre com papel e lápis em punho fazia
do cotidiano, literatura.
Conceição Evaristo (2009) nos diz que quando sua mãe leu o livro
Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus, esta se identificou tanto que a leitura
do livro a incentivou a escrever também o seu cotidiano de mulher negra
favelada em um diário, que a escritora Evaristo guarda consigo. Conceição
Evaristo e sua mãe se sentiam muito próximas de Carolina, pois, partilhavam a
mesma vida de miséria, embora, separadas geograficamente.
Carolina conhecia as mazelas da favela de São Paulo, assim como
Evaristo e sua mãe conheciam as mazelas da favela de Belo Horizonte/MG,
ambas se sentiam representadas, personagens da obra de Carolina. Para
Evaristo (2009, p. 3) “a favelada do Canindé criou uma tradição literária”, pois
este caminho foi seguido por outras mulheres faveladas, narrando em seus
escritos “a miséria do cotidiano enfrentada por elas”.
Mas quem é Evaristo? Se a primeira Maria que apresentamos, de
quem falamos um pouco, foi Carolina Maria de Jesus, a segunda Maria que
apresentamos também é uma mineira assim como Carolina, e esta se descreve
do seguinte modo:

Sou mineira, filha dessa cidade [Belo Horizonte], meu registro informa
que nasci no dia 29 de novembro de 1946. Essa informação deve ter
sido dada por minha mãe, Joana Josefina Evaristo, na hora de me
registrar, por isso acredito ser verdadeira. Mãe, hoje com os seus 85
anos, nunca foi mulher de mentir. Deduzo ainda que ela tenha ido
sozinha fazer o meu registro, portando algum documento da Santa
Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Uma espécie de notificação
indicando o nascimento de um bebê do sexo feminino e de cor parda,
filho da senhora tal, que seria ela. Tive esse registro de nascimento
comigo durante muito tempo. Impressionava-me desde pequena essa
cor parda. Como seria essa tonalidade que me pertencia? Eu não
atinava qual seria. Sabia sim, sempre soube, que sou negra.
(EVARISTO, 2009, p. 2)

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Sobre esta cor parda no registo de Evaristo lembramos que muitos


escritores negros tiveram suas fotos “branqueadas” em estúdios e a cor
alterada em seus atestados de óbitos, Com isso mais uma vez retomamos as
palavras de Mott (1989, p.6), pois esta acredita “que se fossem feitas
pesquisas regionais cuidadosas, como também repensados os critérios que
determinam se uma escritora é ou não negra, esta lista [de escritoras negras]
seria acrescida de muitos outros nomes”. Assim, a autora nos apresenta
Teresa Margarida da Silva e Orta como uma das escritoras que certamente
configuraria esta lista de escritoras negras, pois mesmo sendo ascendente de
negros, viveu como mulher branca da elite “confirmando-se a afirmação de que
o preconceito no Brasil é de marca, não de origem”.
Evaristo, militante das questões negras, hoje é doutora em Literatura
Comparada, pela Universidade Federal Fluminense, depois de cursar Letras e
fazer o mestrado em Literatura Brasileira, no Rio de Janeiro, apos sair de Belo
Horizonte em busca de trabalho para função de professora das séries iniciais.
Conceição Evaristo começou a publicar seus textos literários na série Cadernos
Negros, que é uma produção em forma de Cooperativa, na qual os próprios
autores pagam, dividem os custos de suas publicações.
Aos sete anos foi morar com sua tia, irmã mais velha de sua mãe. A
condição de vida um pouco melhor, que tinha essa sua tia, lhe proporcionou a
oportunidade dos estudos. Filha e sobrinha de lavadeiras, Evaristo aprendeu
desde cedo o oficio das tarefas domésticas, aos oitos anos teve o seu primeiro
trabalho como doméstica e depois vieram muitos outros. Evaristo (2009, p.3)
também nos diz que trocou “horas de tarefas domésticas nas casas de
professores, por aulas particulares, por maior atenção na escola e
principalmente pela possibilidade de ganhar livros, sempre didáticos, para mim,
para minhas irmãs e irmãos”.
Se essas mulheres negras que moram em um grande centro, a
exemplo Rio-São Paulo, encontram diversos empecilhos no seu caminho para
tomar posse do seu direito à escrita, o que dizer desta mesma mulher que
mora no interior de um dos estados brasileiros que tem a maior população
negra?

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Deste modo, no ateliê autobiográfico promovemos o encontro destas


duas Marias, Carolina e Evaristo, ambas mineiras, com a Maria baiana, de
Alagoinhas, a Margarida. E fizemos pensando também no fortalecimento da
escrita literária feminina, uma escrita que também é negra.
Mas quem é esta Maria de Alagoinhas que tem nome de flor? Eis
Margarida por ela mesma:

Conheço as dificuldades que sempre ignorei pelos olhares dos que


gostariam de não me ver alí, aonde construí um trabalho no
profissional, mas cresci como pude: contadora, coordenadora do
setor contábil, professora, encarregada de administração, mulher,
mãe, avó, sogra, nora, cunhada, irmã, protetora; porque não dizer
escritora? Consegui passar por sobre todas as investidas possíveis
que me pudessem podar, mas cheguei, estou aqui querendo e
continuando a fazer tudo isso em desforra, porque nada me atingiu.
Estou bem! (Margarida Souza, Entrevista narrativa, 2014).

E talvez estas investidas, diferentemente do que pensa Margarida, mas


no mesmo sentido, tenham-lhe atingido e feito com que esta mulher tivesse
mais força para continuar trilhando o seu caminho. A partir do contato com as
escritoras, das discussões nos encontros, Margarida vai se percebendo como
essa mulher negra e nos mostra a força desta mulher, que carrega as marcas
das exclusões, desigualdades, dos silenciamentos, mas que também luta
muito, assim como Carolina e Conceição.
Para Margarida esta mulher negra “tem mais é que ir, meter a cara na
rua, ela tem mais é que sair, tem que surgir, ela tem que ir a luta”, conforme
suas próprias palavras. Esse corpo negro nunca fugiu da luta e não seria
diferente com o texto escrito, na literatura. A mulher negra, “tem que escrever,
mesmo que ela só venda um, mas ela tem que fazer, ela não tem que se
acomodar ficar ali para trás escondida, não. Eu não aceito isso”. Margarida vai
nos apresentando uma mulher negra em si determinada.

Eu acho que eu sou uma negra desafiadora, ousada, eu não quero


nem saber, ai o povo diz assim você é branca porque você veio lá da
Europa. Sua branca e eu lá quero saber se você gosta da minha cor,
não quero saber não, eu não quero nem saber eu quero é fazer, você
dê valor ou não. Eu quero fazer. (Margarida Souza, Entrevista
narrativa, 2014).

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Margarida vai se apresentando como uma mulher forte e determinada,


que “arregaça as mangas” e vai atrás dos seus objetivos, não tendo barreiras
que ela não possa ultrapassar. Assim, continua Margarida a sua narrativa:

Eu digo assim, esse livro agora “Memórias Entrelaçadas” é um livro


de memórias que eu conto desde as memórias que eu tenho do que
minha mãe contava ate os dias de hoje. Se eu fazendo quinhentos
não vende aceitação é pouca não vende, eu faço cem, eu faço
cinquenta na editora, faço cento e cinquenta, mas faço, não deixo de
fazer, é isso que eu digo. A gente tem quer ir a luta não tem que se
acomodar, ah! Porque eu sou preta eu sou branca, porque eu sou
pobre, porque… não, eu quero e eu querendo faço minha hora, tem
que ir a luta, tem que fazer.[…] então é isso a gente tem que ter essa
noção, essa garra, essa força se você quer lute. É isso que eu acho
que tem que ser, então a mulher negra, ah porque ela tem que se
acomodar, porque ela é negra e eu lá quero saber de pele, eu não
quero saber não minha filha, eu não quero saber se eu tenho a pele
preta se eu tenho o cabelo duro, eu tenho eu, eu tenho o meu eu, eu
quero eu vou eu faço. Eu acho que todo ser humano deve ser assim,
devia ser assim. (Margarida Souza, Entrevista narrativa, 2014).

E, certamente, o mito da fragilidade nunca vestiu o corpo negro


feminino, esta mulher não obteve “proteção paternalista”. Por isso que Sueli
Carneiro (2003, p. 1), insistentemente, nos pergunta “de que mulher mesmo
estamos falando?” A mulher negra, nos diz a autora, nunca foi reconhecida ou
tratada como frágil, “fazemos parte de um contingente de mulheres que
trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como
vendedoras, quituteiras, prostitutas.” Assim, ainda pontua Carneiro (2003, p.1)
que essa mulher negra jamais poderia entender quando o movimento feminista
gritava que a rua, também, pertencia as mulheres e que estas tinham direitos
de sair e trabalhar. “Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de
engenho tarados”, e ainda, “hoje, empregadas domésticas de mulheres
liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação.”
A literatura feminina escrita por mulheres negras vem construindo o seu
espaço de força e resistência, rasurando o cânone. Porém a visibilidade desses
grupos minoritários vem sendo construída no processo quase de “formiguinha”
mesmo, dentro de meios alternativos. Lembremo-nos, mais uma vez, de

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Evaristo que inicia suas publicações nos Cadernos Negros, uma publicação de
forma alternativa, divulgando, também, desta mesma maneira. Maria Lúcia de
Barros Mott nos apresenta uma possibilidade de leitura sobre as produções
destas mulheres.
Porém, são muitas barreiras que esta escrita feminina negra encontra
pelo seu caminho, tornando este caminhar mais árduo. Margarida, então, toca
em uma destas questões importantes, que é a comercialização da produção
literária de escritores e escritoras negras. A escritora, então, nos diz:

Quero ultrapassar esta barreira que ainda impera na sociedade


fazendo meu trabalho, escrevendo sem dar muita importância ás
respostas da sociedade. Se escrevendo um livro, eu sei que de uma
negra a comercialização é mais difícil, faço menos, de modo que uma
pequena clientela conheça, mas não deixo de fazer. Eu acredito
muito é na força de vontade do ser humano. Se você quer, insista e
não se deixe levar por circunstancias que possa atingir seu brilho. Sei
que hoje a tiragem de exemplares de brancos são bem maiores
porque são bem comercializados. (Margarida Souza, Entrevista
narrativa, 2014).

A discriminação racial permeia por toda a nossa estrutura, veremos isto


nas artes, como na literatura e o seu mercado editorial, mas também no
esporte como estamos presenciando nos últimos tempos, no mercado de
trabalho, na forma como os policiais abordam, e tantas outras situações
cotidianas que a população negra passa. Assim, Margarida levanta outra
questão importantíssima sobre como o racismo estar sendo tratado em casa:

A gente começa a discutir essa questão de raça, de discriminação.


Mas e em casa? Como é que estar sendo tratada essa questão? Os
pais estão dando pouca importância a formação do filho desde
pequeno. (Margarida Souza, Entrevista narrativa, 2014).

A fala de Margarida, quando esta pergunta como a discriminação racial


estar sendo tratada em casa, lembra-me de uma oficina, ministrada pelo
professor Edson Carneiro, intitulada “Racismo e desigualdade racial1”, quando
nesta este dizia que o nosso racismo é estrutural, que a atitude racista de uma

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pessoa é apenas a ponta do iceberg e se não conseguirmos tratar o racismo


até os seis anos de idade, “a casa caiu”.
E a “casa cai” todos os dias quando olhamos para a TV,
principalmente, as de canais abertos, as quais nossas crianças têm acesso, e
não nos vemos representadas, quando entramos na universidade e ainda
somos chamados de “burras”, quando nas escolas particulares não estamos
estudando nem ensinando, não temos o padrão das passarelas, capas de
revistas e reality-shows. Não somos a família feliz do comercial de margarina.
Mas, o que podemos dizer que a escrita feminina negra, enquanto
produto cultural, precisa ser potencializada, valorizada e, dessa forma,
consumida. O que percebemos é que mesmo essas escritoras que passam por
processos de silenciamento conseguem, em certa medida, romper com as
alternâncias de poder. Ao investirem em suas publicações estão ao mesmo
tempo investindo ativamente para a transformação de uma realidade
opressora.
Como nos diz a própria Evaristo, nesta sociedade discriminatória
espera-se de uma mulher negra que ela rebole, que ela saiba cozinhar, passar
e lavar. Este pensamento se faz presente nos verso de Carolina “Eu disse: o
meu sonho é escrever!/ Responde o branco: ela é louca./O que as negras
devem fazer.../ É ir pro tanque lavar roupa1”. Estas mulheres merecem todo o
nosso respeito pela coragem de ser mulher e negra, pois “é preciso ter
coragem para ter na pele a cor da noite1”, e, ainda assim, ousaram escrever.
Por estas, e tantas outras razões, que dizemos: “a experiência interior
de uma mulher negra, por razões sociais, nenhuma mulher branca ou homem,
mesmo negro, tem. Escrever ou não escrever sobre homens e mulheres
negras jamais anularia esta verdade”. (MOTT, 1989, p. 7). Deste modo, é
preciso tomar estas obras escritas por estas três Marias, mas também por
tantas outras Marias que estão espalhadas por aí, e muitas, ainda, soterradas
nos porões da história oficial, para compreendermos a nossa história de luta de
mulheres negras.

REFERÊNCIAS

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CARNEIRO, Sueli. "Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na


América Latina a partir de uma perspectiva de gênero". In: ASHOKA
EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos
contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Biografia e educação: figuras do


individuo-projeto. Tradução de Maria da Conceição Passegi, João Gomes da
Silva Neto, Luis Passegi.- Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2006.

EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo por Conceição Evaristo.


Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com.br/2012/08/conceicao-
evaristo-por-conceicao.html. Acesso em: 20 de mar. 2015.

MOTT, Maria Lúcia de Barros. Escritoras negras: resgatando a nossa história.


Rio de Janeiro: CIEC/UFRJ, 1989. (Coleção Papéis Avulsos)
PADILHA, Laura Cavalcante. Silêncios Rompidos: A produção textual de
mulheres africanas. In. REIS, Lívia Freitas de; VIANNA, Lúcia Helena; PORTO,
Maria Bernadete. (Orgs.) Mulher e Literatura. VII Seminário Nacional. Niterói,
RJ: EDUFF, 1999.

XAVIER, Elódia. O corpo a corpo na literatura brasileira: a representação do


corpo nas narrativas de autoria feminina. In: BRANDÃO, I. e MUZART, Z. L.
Refazendo nós. Edunisc/Editora Mulheres, Florianóplis, 2003.

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GRUPO DE TRABALHO: PSICOLOGIA E RELAÇÕES RACIAIS:


BAIANIDADE, AFRO-BRASILIDADES E OUTROS PERTENCIMENTOS EM
FAVOR DA SAÚDE PSÍQUICA

PROPOSITORES: CLÉLIA R. S. PRESTES (USP), CARLA FRANÇA (MP/BA)


E ANNI DE NOVAIS CARNEIRO (CRP/03/UFBA).

Ementa:

O GT reúne trabalhos da área de Psicologia e afins que se dediquem ao estudo

das relações raciais, compreendendo reflexões sobre as contribuições dos

pertencimentos sobre os processos psíquicos. Pretende discutir como o

pertencimento a manifestações africanas e afro-brasileiras pode favorecer a

ressignificação de simbolismos associados a negros(as), elevando a

autoestima. Objetiva discutir, ainda, como a saúde psíquica e processos de

superação, resiliência, autonomia, emancipação, entre outros, podem

ser facilitados por aspectos identitários negros positivados, como os que se

apresentam na noção de baianidade ou nas produções das línguas e literaturas

africanas e afro-brasileiras.

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PSICOLOGIA E RELAÇÕES RACIAIS: BAIANIDADE, AFRO-


BRASILIDADES E OUTROS PERTENCIMENTOS EM FAVOR DA SAÚDE
PSIQUICA.

TEREZINHA CONCEIÇÃO DOS SANTOS (UFBA)

Resumo:

A presente comunicação tem por finalidade esmiuçar os modos como o


racismo institucional opera no campo da saúde, especificamente nas relações
entre pacientes e profissionais de medicina e de enfermagem. A partir da
minha experiência pessoal obtida em mais de trinta anos de atuação como
auxiliar de enfermagem em hospitais das esferas públicas e privadas da cidade
de Salvador, pretendo mostrar como o tratamento dispensado a pessoas
brancas distingue-se do dado a pessoas negras, que, por sua vez,
desencadeia danos psíquicos a estas. Em muitos casos, isso exerce influência
direta na autoestima dos indivíduos que recorrem aos serviços de saúde. Não
devendo desconsiderar ações desenvolvidas por grupos religiosos de matriz
afro-brasileira e segmentos da sociedade civil organizada pra a superação de
estigmas que aviltam o ethos da população negra de Salvador.

Palavras-chave: Racismo institucional, saúde da população negra, autoestima,


saúde psíquica.

Introdução

Em 20 de Julho de 2010, o então Presidente da República Luiz Inácio


Lula da Silva através da Lei, número 12.288, instituiu o Estatuto da Igualdade
Racial destinado a garantir à população negra de maneira efetiva a igualdade
de oportunidades referentes a garantia da defesa dos direitos étnicos sendo
esses: individuais, coletivos e difusos combatendo assim todas as demais
discriminações e intolerância étnica.
Ao analisar como esse racismo se manifesta no tocante a população
negra percebemos, que na maioria das vezes esse fenômeno pode passar
despercebido uma vez que essa atitude vem revestida por fatores que tiveram
como origem vários contextos históricos que foram se estabelecendo no seio
da sociedade e se tornando de certa forma hereditários, se formos considerar
que em alguns casos as práticas de cunho racistas e preconceituosas
começam no seio de muitas famílias ou até mesmo em comunidades; sendo
assim, obrigando a essa parcela da população a ter que conviver em condições

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de desigualdade, de segregação e expostas a todo tipo de depreciação que é


destinada a uma pessoa vista perante os olhos daqueles que não os têm como
igual.
A ênfase que é dada nesse artigo se remete a população
predominantemente negra e parda que vive em Salvador-Bahia, de acordo com
a nomenclatura usada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Quase sempre constatamos o quanto essa população é obrigada a
digerir e suportar resignadamente certas mazelas que por não ter sido tratada
de forma adequada transformou-se em várias doenças crônicas; que devido à
gravidade, foi necessária a tomada de medidas profiláticas no sentido de
minimizar as dores causadas por um tratamento inadequado e assim; criar
formas de prevenção para combater futuras doenças destacando-se duas
categorias importantes que devem estar à frente deste processo: os atores
políticos e coletivos definido por Testa (1995), como responsáveis na inserção
dos respectivos atores em processos específicos no desenvolvimento de
diversas ações que no objetivo proposto será exaltado aqui o “setor saúde”.
(Kalckman, 2007).
O interesse em colocar como tema deste artigo algumas situações que
são vivenciadas pela população negra na cidade de Salvador, especialmente
no tocante ao tratamento que é dispensado as mulheres negras, tem como
base a minha experiência como profissional da saúde, atuando como auxiliar
de enfermagem. Foi possível observar algumas situações que deixavam
evidentes práticas racistas e discriminatórias como, por exemplo, irritações de
médicos devido ao paciente possuir dificuldade de compreensão a certos tipos
procedimentos e prescrições; exames físicos realizados sem respeitar a
privacidade do (a) paciente; desprezo por parte de profissionais de
enfermagem e outros envolvidos no atendimento em relação a gênero, religião
e cor, condições precárias para um atendimento digno que nos obrigava em
certos momentos a fazer improvisos, para que o procedimento ou ato cirúrgico
não fosse interrompido.
Dessa maneira farei um breve relato sobre as condições gerais de saúde
da população negra em Salvador- BA, cidade na qual onde concentrei o núcleo
das minhas anotações não sendo difícil observar as condições em que grande

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parte da população que convive com: subemprego, sub-moradia e acesso


dificultado aos serviços de saúde, estas pessoas estão propensas a certos
tipos de desequilíbrios como o estresse e a depressão e outras patologias que
quando da existência de um atendimento de qualidade, certamente essas
patologias podem ser tratadas ou até mesmo curadas devido a uma assistência
que não vise apenas o corpo físico, mais as sequelas deixadas pode vir a
afetar a saúde psíquica e mental do indivíduo.
Essa problemática é vista no livro Saúde das Mulheres Negra: Nossos
passos vem de longe, onde a autora Jurema Werneck, conhecida pelo seu
trabalho de militância ativa na área de Saúde Coletiva, e larga experiência em
saúde e vários outros aspectos relativos a população negra, relata em um
panorama bem definido uma situação, que para alguns setores da sociedade
pode parecer irrelevante ou até mesmo insignificante; a maneira como os
problemas de saúde que acometem as mulheres são encarados e
principalmente quando o público alvo envolve as mulheres negras, que
historicamente sempre foram tidas como fortes, destemidas, prontas para
qualquer tipo de serviço, resistentes a dor e outros tantos “ditos” e quando
esses serviços são os mais pesados ou em outra visão não podem ser
desenvolvidos por aquelas mulheres que por sua “boa aparência” não podem
ou não devem executá-los: neste caso estamos fazendo referência as
mulheres brancas.
Este artigo objetivou fazer um pequeno estudo baseada na obra da
autora Jurema Werneck, o livro “Saúde das Mulheres Negras”, que se refere as
mazelas vivenciadas pelas mulheres negras quanto as suas necessidades no
que se refere a saúde. Desse modo, adotamos como procedimento a amostra
de alguns dados metodológicos utilizando a pesquisa em alguns capítulos da
referida obra analisando o seu conteúdo. Houve também a contribuição de
teses e dissertações que fizeram parte do estado da arte na composição deste
artigo.
Quanto à divisão, o texto apresenta quatro partes: na primeira, há a
apresentação do contexto dos fatos históricos e cotidianos relevantes para a
narrativa. A segunda parte trata da política nacional de saúde integral da
população negra e dos aspectos que contribuíram para a sua aprovação. Nela

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fala-se da criação do (SUS) e da importância na saúde da população,


principalmente a população negra. A terceira parte corresponde aos efeitos
psíquicos causados pelo racismo que é visto no atendimento dispensados as
pessoas de baixo poder aquisitivo, em particular as pessoas negras e outras
em condição de desvantagem social. A quarta parte é dedicada a análise do
texto do livro: O livro da Saúde das mulheres negras: Nossos passos vêm de
longe e de como a autora apresenta os dilemas vividos pela população negra e
mais especificamente às mulheres negras.

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra

.A aprovação em 13 de maio de 2009, pelo então ministro da saúde José


Gomes Temporão, da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra
foi um grande marco a ser comemorado, na luta contra o racismo institucional
na área da saúde no Brasil. Visto que antes da criação do Sistema Único de
Saúde (SUS), o Estado brasileiro se comportava de forma omissa quando o
assunto era a saúde da população, principalmente a população negra, dando a
entender que cada indivíduo poderia ou deveria cuidar da sua própria saúde e
só nos casos onde houvesse risco iminente a população contaria com apoio
estatal.
De acordo com dados apresentados em um relatório denominado Saúde
Brasil (2005), apresenta uma situação que mesmo não sendo estranha revela o
quanto a população negra que como já foi citado fica a margem do abandono
quando o assunto é saúde resultado que se reflete em decorrência do
atendimento diferenciado nas consultas de ginecologia, pré-natal e obstetrícia.
Em se pensar que a mulher negra tem menor número de consultas na
gestação, os exames solicitados não são suficientes para detectar certas
patologias, no momento do parto são submetidas a um tratamento de descaso
pondo em riscos não só para a mulher, mãe, gestante mas também para os
recém- nascidos diagnosticados com baixo peso, má formação fetal, enfim,
apresentando riscos de morte para ambos.
Por conta da sua grande abrangência, a vitória concedida com a
aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra resultou
em um grande avanço. A Constituição Federal de 1988, seção II da saúde,

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versa sobre os direitos que são inerentes a todos os cidadãos e como eles
devem comtemplar a todos sem distinção de sexo, cor, religião e outras
características que sejam tomadas como causa para a sua não efetivação e
que isso deve ser administrado de igual forma não só pelos poderes públicos,
mais por toda a sociedade que deve contribuir para que os dispostos que estão
inclusos nesses artigos sejam fiscalizados e executados A comunidade deve
ter participação ativa, uma vez que o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado
com intuito de fornecer atendimento de qualidade que contemple de forma
igualitária, a toda população, porém, sem a participação da comunidade
atuante, fiscalizadora e contestadora dos seus direitos esse atendimento de
qualidade se torna inviável. (Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão
Estratégica Participativa, Brasília, 2007)

Os efeitos do racismo na saúde psíquica


Essa situação degradante atuou nas vidas dos escravizados, foram
criando feridas profundas de difícil cicatrização e em alguns casos não foi
descoberto um tratamento porque nem sempre as feridas eram ou são visíveis
é o caso do tratamento dado à população negra no que se refere aos efeitos
psíquicos deixados pelo racismo no corpo e na mente dessas pessoas.
O ambiente no qual uma pessoa habita pode influenciar nas suas
atitudes de adaptação e é determinante na sua situação da saúde não só física
como mental. É possível à verificação de que grande parcela da população
brasileira incluindo um percentual elevado de negros, pardos e indígenas
passam por sérios problemas psiquiátricos devido às condições precárias de
subsistência em que vivem e as perspectivas em relação ao futuro incerto.
Os casos de racismo na saúde por inúmeras vezes acontecem de forma
violenta e ao mesmo tempo velada, envolvida por uma máscara de
preconceitos e estereótipos discriminatórios de forma tão sutil na qual o
indivíduo que sofre a ação não se sente discriminado podendo acontecer nos
mais diferentes equipamentos do Estado, promovendo um atendimento
desigual de maneira imperceptível aos membros da sociedade, nesse aspecto
se referindo aos negros ou pessoas com baixo poder aquisitivo, onde foram
observadas situações constrangedoras, como por exemplo: um paciente na
primeira consulta geralmente é solicitada uma bateria de exames começando

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assim uma corrida em laboratórios e clinicas conveniada ao (SUS) e é


determinado a esse paciente na consulta seguinte os exames solicitados
estejam prontos e quando isso não acontece alguns profissionais no caso os
médicos explodem com atitudes e palavras grosseiras, por exemplo: você não
me entendeu eu disse que só retornasse quando os exames estivessem
prontos, então o que está fazendo aqui?
Os efeitos do racismo na humanidade já foram analisados nas mais
diversas vertentes e sabemos que os resultados obtidos são devastadores,
mas se pensarmos da sua aplicação nos espaços dedicados ao tratamento da
saúde à situação torna-se muito complicada, por imaginarmos que quando uma
pessoa procura um atendimento em um serviço de saúde as suas expectativas
são as de que vai encontrar acolhimento, bom atendimento e esse atendimento
de qualidade lhe será oferecido de maneira uniforme por todos aqueles
prepostos envolvidos no seu atendimento. (Nogueira, 1998).
Segundo (Bispo, 2010) as situações descritas por (Nogueira, 1998) são
reforçadas partindo da constatação feita pelas diversas pesquisas que dão
como certa ser a cidade de Salvador, a capital que comporta a maior
população negra fora do continente africano. Entretanto, apesar desses dados
históricos e de termos muitos adjetivos que são conhecidos mundo afora, como
uma cidade que muito abraça e sabe receber todos aqueles que aqui chegam,
ainda somos relegados e colocados entre os estados que ocupa os piores
índices no que se refere aos itens básicos como, saúde, educação, habitação
entre outros.
Nesse aspecto podemos vivenciar uma luta continua travada pelas
mulheres negras que vivem na cidade de Salvador, que construíram e ainda
estão construindo uma luta que se consolida tanto no campo da discriminação
de gênero, raça, engajando-se em outros movimentos que nasceram ou estão
nascendo em todo país.

A saúde das mulheres negras: Nossos passos vêm de longe


Quando (Werneck, 2006) menciona como título de seu livro que a saúde
das mulheres e principalmente das mulheres negras está atrelado a passos

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que vem de longe, certamente ela está se referindo a um momento crucial da


nossa história.
A partir dessa compreensão é valido ressaltar (Góes, 2011) que
compartilha das mesmas convicções de (Werneck, 2006) quanto a proposta
que havia no final do século XIX, e nos meandros do século XX, era uma
proposta que visava tornar o país composto por uma população
essencialmente branca e diante dessa ideia de pureza de raça observamos
que não foram poucos os esforços, inclusive abrindo os braços para receber
prazerosamente os imigrantes provenientes de países europeus, justificando
essa atitude pela lei Euzébio de Queiroz de 1850, que proibia o tráfico de
escravos para o Brasil, entretanto o principal motivo era que com essa
proibição fosse reduzido o número de pessoas de origem africana em nosso
país até a sua completa extinção.
Desse modo podemos observar uma tendência bastante definida de
branqueamento, ou melhor, uma raça ideal que ganhou muitos aliados no
campo da medicina e em particular na saúde pública.
De acordo com Werneck (2006, p.68) sobre a entrevista com de Ângela
Davis
O Brasil ´´e conhecido como “o país” da esterilização em massa – 12
milhões de mulheres esterilizadas. Muitas vezes, os financiamentos
internacionais – principalmente do Banco Mundial e do e do Fundo
Monetário Internacional – são condicionadas a “acordos” obrigatórios
de controle da população.

As iniquidades que foram impostas a população negra, as dores que


tiveram que aguentar foram muitas e quando pensamos que todos os tipos de
constrangimentos, humilhações e desgostos pelos quais passaram e ainda são
visíveis atualmente; a população negra e como parte dessa população as
mulheres, essas mulheres, ainda são presenteadas com certos tipos de
doenças que na classificação das pesquisas cientificas, são doenças inerentes
a população negra e muitas delas especificas das mulheres essa constatação
não é típica unicamente do Brasil, ou localizado como exemplo a cidade de
Salvador, que tem um alto índice de mortes causadas pelo câncer,
principalmente de mama.
Ainda de acordo com (Werneck 2006, p.68) sobre a entrevista com
Ângela Davis.

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As mulheres negras em todo mundo sofrem problemas enormes de


saúde. Nos EUA, por exemplo, a incidência de câncer de mama, de
pressão alta e de anemia falciforme é maior entre as mulheres
negras. Essa situação se agrava à medida que as mulheres negras
encontram maior dificuldade de acesso a tratamentos de saúde.

Werneck (2006) afirma que a AIDS, é outra doença que se alastra pelo
Brasil e pelo mundo, que tem como seus principais alvos pessoas em condição
de desvantagem social, o avanço dessa doença como já foi detectado tem uma
relação muito estreita com a falta de informação e de conhecimento dos meios
adequados para frear o seu avanço.
As pessoas não procuram os serviços de saúde sendo que através deles
poderiam conhecer os métodos adequados de prevenção de infecções e de
como essa doença deve ser tratada e isso se deve ao fato de muitas dessas
pessoas não ter um bom nível de escolaridade e também devido a um fato
bastante recorrente, ou seja, fator renda que é notado principalmente entre a
população negra e mais especificamente entre as mulheres negras. Entretanto,
essa concepção é vista não como um vaticínio onde as pessoas pela
imposição dos fatores quando descobrem serem portadores da AIDS, devem
se resignar; dessa forma é o momento onde toda população devem dar as
mãos é um momento em que as mulheres negras tem que buscar mecanismos
legais para bater de frente com todos aqueles responsáveis pela saúde pública
não só no Brasil como em outras partes do mundo.
Acredito que a cultura afro-brasileira, erguida com a contribuição das
mulheres, traz preciosas indicações de formas de pensar e agir neste
momento.
Como inserir, então, o desafio que a epidemia de HIV/AIDS oferece a
população negra – às mulheres negras especialmente -, dentro do
contexto das reflexões éticas pertinentes a este final de milênio? É a
AIDS um novo desafio para a humanidade? (Werneck 2006, p. 96)

As condições de saúde das mulheres negras incluem outras nuances


que estão diretamente ligadas a questões não podem e não devem ser
deixadas de lado, pois, o ser humano vive se questionando as suas sensações,
mais que em determinado momento essas sensações vão aflorar e
perceberemos que precisamos criar laços com o outro ainda que alguma coisa
em nós se mantenha no subjetivo.
Disso decorre o momento em que o corpo humano sente a necessidade
de um encontro mais íntimo com o outro, estamos falando do sexo, daquele

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momento tão prazeroso tanto para o homem como para a mulher, mas que
deve ser analisado não só pelo seu lado mágico, erótico mais pelo fato que em
algum momento poderá haver uma descontinuidade naquele ideal fantástico
que criamos que pode levar a um passamento parcial ou total:
É de fato uma pequena morte que experimentamos no gozo.
Orgasmo, inclusive, quer dizer, na origem grega, pequena morte. Por
mais que tentemos nos esquecer, o gozo em nosso corpo unido no
erotismo com o outro sugere também a dissolução do eu, do ser que
eu sou. Ai está sua semelhança com a morte. Para George Bataille o
erotismo é uma sensibilidade que liga o desejo, o medo, a angústia e
o prazer intenso. E assusta. (Werneck 2006, p. 96,97)

Considerações finais
Neste artigo o racismo institucional é considerado como um fracasso das
instituições envolvidas na organização do atendimento destinado à saúde da
população negra na cidade de Salvador. O foco deste trabalho teve como
objetivo fazer um breve relato de como é visto o racismo em relação ao
atendimento que é oferecido na cidade de Salvador em especial a essa grande
parcela da sociedade que depende do atendimento do (SUS), podemos
observar que mesmo com a criação e implantação da Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra em maio de 2009, e suas diretrizes que se
consolidaram com a assinatura da Constituição Federal de 1988, assegurando
o atendimento indiferenciado a todos, e em todos os equipamentos do Estado.
Ficou evidenciado no decorrer desse estudo que as medidas que foram
tomadas no sentido de assegurar a integridade do atendimento ainda não
foram suficientes para provocar um equilíbrio no que concerne à saúde da
população que depende do (SUS) e consequentemente diminuir as
desigualdades e até mesmo as situações de exclusão que são evidenciadas
através de atitudes preconceituosas e até mesmo racistas.

REFERÊNCIAS

GÓES, Emanuelle Freitas. Mulheres Negras e o acesso aos serviços


preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades/Emanuelle Freitas
Góes – Salvador, 2011. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da
Bahia, Escola de Enfermagem, programa de Pós-Graduação em Enfermagem,
2011.

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WERNECK, Jurema. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos


vêm de longe/ [organização] Jurema Werneck, Maísa Mendonça, Evelyn C.
White; [tradução] Maísa Mendonça, Marilena Agostini e Maria Cecilia
MacDowell dos Santos – 2. Ed – Rio de Janeiro: Pallas/Criola, 2006.

Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/17333/17333_7.PDF -


acessado em 16/11/2015 às 22:18

Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao
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Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/14cns/docs/constituicaofederal.pdf


acessado em 17/11/2015 às 21h48min.

Disponível em:
http://psicologiaecorpo.com.br/pdf/Isildinha%20Baptista%20Nogueira-
Significacoes%20do%20Corpo%20Negro-1.pdf – acessado em 17/11/2015 as
23:30.

Disponível em: http://www.medicina.ufba.br/pronegro/pronegro.pdf - acessado


em 06/12/2015 as 18h33min.
Disponíveis:
http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278190174_ARQUIVO_A
RTIGOF.GENERO2010.pdf. - acessado em 07/12/2015 às 00:12.

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