Sie sind auf Seite 1von 31

Marxismo e

Burocracia de Estado

OrganiZLlção

Elcernir Paço Cunha


copyrighr 2017, Editora Papel Social

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n 9.610, de 19/02/1998.


Nenhuma parte desse livro poderá ser rcproduzida ou transmitida por quaisquer meios: eletrônicos,
mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros SCl11 prévia autorização por escrito da editora.

Muito cuidado e atenção foram dedicados à edição deste livro, no entanto a metodologia utilizada, citações e
referências bibliográficas dos textos são de inteira responsabilidade dos autores.

Título
Marxismo e burocracia de Estado
Conselho Editorial - Catálogo Geral
Editor -Ailron Siqueira de Sousa Fonseca
Edson de Carvalho Júlio Ribeiro Soares
Luci Mendes de Melo Bonini
Coordenador Editorial Rosália Maria Netto Prados
Antonio Deusivam de Oliveira
Preparação e reuisáo de texto
Capa e Projeto Gráfico Livia Campos
Kelli Costa

1\ grafia deste livro segue o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ClP)


Andreia ele Almcida CRJ3-8/7889

Marxismo ~ burocracia de Estado / organizado por Elcernir Paço Cunha. Campinas: Papel Social,
2017.
20-1p.

Inclui Bibliografia
ISBN 978-85-655-10-38--1

I. Socialismo 2. MaIX, Karl, 1818-1883 3. Burocracia -I. Estado 5. Ciências sociais 1. Cunha, Elcernir
Paço.

lndice para catálogo sistemático:


1. Marxismo

17-1532 CDD 335.4

PAPEL SOCIAL
www.editorapapelsocial.com.br
editorial.editorapapelsocial@gmail.com
Rua Antonio Bertoni Garcia, 634 - Jd. Von Zuben
CEP: 13044-650 - Campinas - SP111-9 8300 9086119-3276-9859
Sumário

Sobre os autores e autoras 07

Apresentação 11

Artigo 1 15

Karl Marx: elementos da determinação material da burocracia


de Estado

Elcemir Paço Cunha

Artigo 2 39

Friedrich Engels como crítico da burocracia

Vitor Bartoletti Sartori

Artigo 3 63

Vladimir 1. Lênin e o "Serni-Estado": Classes e Luta de Classes


no Projeto de Gestão do Estado

Claudio Gurgel

Artigo 4 87

Trótski, burocracia e bonapartismo

Felipe Demier e Marina Barbosa


Artigo 5 111

Rosa Luxemburgo e a crítica aos fenômenos burocráticos

Maurício Tragtenberg

Artigo 6 123

A burocracia como modo fenomênico necessário do capitalismo:


a crítica de Lukács ao burocratismo e a necessidade da
democratização da vida cotidiana

Ronaldo Vielmi Fortes

Artigo 7 147

Antonio Gramsci e a questão da burocracia pública

Greice dos Reis Santos e Rodrigo de Souza Filho

Artigo 8 163

Nicos Poulantzas: burocracia e burocratismo

Luciano Cavini Martorano

Artigo 9 181

Os sentidos de burocracia em Ernest Mandei

Elaine Rossetti Behring

Catálogo da editora 199


Sobre os
Autores eAutoras

Claudio Gurgel
Economista, mestre em Administração Pública, mestre em
Ciência Política, doutor em Educação e professor da Faculdade
de Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF)
onde atua como membro do Programa de Pós-Graduação
em Administração. É autor de A geréllcia do Pensamento e Gestào
Democrática e Serviço Socia/princípios epropostas para a interoenção crítica
(em coautoria com Rodrigo de Souza Filho).
Elaine Rossetti Behring

Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio


de Janeiro (UFRj). Atua como professora do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERj).Publicou vários livros, entre eles Política Soaal no
Capitalismo Tardio e Política S oaai-fmrdameutos e bistána (em coautoria
com Ivanete Boschetti).

Elcemir Paço Cunha

Doutor em Administração pela UFMG,professor dos Programas de


Pós-Graduação em Administração e em Direito e Inovação ambos
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFjF).É também editor da
Revista Verinotio. Publicou o livro Relação Social de Produção em Marx:
para uma ctitica do tipo ideal de burocracia como abstração arbitrária.

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)e


professor do curso de Serviço Social da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERj).É autor de As Transformacões do PT e os RNmos da
Esquerda 110 Brasil, Longo Bonapartismo Brasileiro (1930 - 1964), Depois
do Golpe: a dialética da democracia blilldada lIOBrmil e organizou A Onda
Couseruadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios lIOBrasil.

Greice dos Reis Santos

Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de


Fora (CFjF) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRj).

Luciano Cavini Martorano

Doutor em Ciências Políticas pelo IUPERj-l\j e professor na


Universidade Federal de Alfenas (Unifal-xrc). Publicou Temia
e Prática dos Conselbos OpenÍlios, Conselhos e Democracia: em busca da
participação e da socialização e Bnrocraaa e Transição Socialista. Atua
como ediror do sítio marxismo21.

8
Marina Barbosa

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)


e professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Mauricio Tragtenberg

Foi professor da PUC-SP, da Unicamp e da Fundação Getúlio


Vargas. Autor de vários livros e artigos, com destaque para a
critica marxista anarquizante da realidade social.

Rodrigo de Souza Filho

Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ) e professor do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UF:fF).
Publicou Gestão Pública e Democracia: a burocracia em questiio e Gestão
Democrática e Serviço Socia/princípios epropostas para a intervenção critica
(em coautoria com Cláudio Gurgel).

Ronaldo Vielmi Fortes

Mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas


Gerais. e professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Autor de
As Novas Vias Da Ontologia Em G)'ó};gy LJ/kács além de revisor das
obras de Lukács publicadas recentemente no Brasil pela Editora
Boitempo.

Vitor Bartoletti Sartori

Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (usr) e


professor adjunto da Faculdade de Direito e Ciências do Estado
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) onde atua como
membro do Programa de Pós-Graduação em Direito. É autor de
Lukács e a critica ontológica ao direito.
Artigo 6
A Burocracia como Modo Penomênico
Necessário do Capitalismo: a Critica de
Lukács ao Burocratismo e a Necessidade sa
Democratização da Vida Cotidiana

Ronaldo Vielmi Fortes

o tema da burocracia dominou grande parte das discussões sociológicas


do século XX e ainda hoje repercute de maneira decisiva nas discussões sobre
o Estado e sobre as instituições sociais. Foram muitos os escritos e muitos os
teóricos que dedicaram grande parte de suas reflexões ao tema. Desnecessário
falar da importância e da influência de Weber no conjunto desses debates. Sua
presença não foi marcante apenas no pensamento sociológico em geral, mas
também no interior do próprio pensamento marxista, cujas incursões levaram
à formação da figura sincrética, por muitos contestada, do weberomarxismo.
Não é aqui o lugar para entrar em maiores detalhes sobre essa vertente
multifacetada das reflexões sociológicas, cabe apenas destacar a estranha
esperança de suprir ausências ou deficiências no pensamento de ambos os
autores, Marx e Weber, criando uma sopa eclética de pensamentos conciliáveis
apenas na superfície dos temas em comum, porém inconciliáveis nas bases e
fundamentos da compreensão crítica da realidade.
As palavras provo cativas iniciais têm simplesmente como intenção
advertir para o fato de no interior do marxismo, assentadas sobre as próprias
bases dos clássicos do pensamento marxista, o problema do burocratismo não
ter sido descurado por autores importantes. Um texto quase desconhecido
- pelo menos pouco comentado e estudado -, escrito pelo filósofo húngaro
Gyõrgy Lukács em 1940, retoma o problema e, diferentemente das tendências
de época, coloca-o sob patamares bem distintos daqueles que se tornaram
comuns nas teorias hegemônicas da sociologia, construídas em sua grande
maioria sob a influência direta ou indireta de Weber. Esse fato por si mesmo
justificaria trazer à tona as elaborações do pensador magiar. No entanto, não
apenas esse motivo nos auxilia a justificar a necessidade de retomada do referido
texto. As reflexões de Lukács permitem compreender de maneira inusitada
o fenômeno da burocracia, além de fundamentar pelas linhas próprias do
marxismo (Marx, Engels e Lênin) o tratamento crítico do problema, tornando
desse modo desnecessárias quaisquer junções atípicas de corpos estranhos e de
difícil conciliação para dar conta do fenômeno da burocracia.
O tratamento do problema aparece de modo mais evidente no artigo
"Tribuno do povo ou burocrata?", publicado pela primeira vez em 1940 na
revista Internationale Literatur. Esse não foi, contudo, o único momento em que
o autor lidou com o tema. Ao final de sua vida, mais particularmente em 1968,
como veremos, o mesmo tema é retomado pela via dos mesmos argumentos
e ideias em Demokratisiertmg heute und morgen, traduzido no Brasil sob o título
O processo de democratização. Desse modo, podemos dizer que essa não é uma
preocupação circunstancial do autor, mas pela importância da questão, enquanto
crítica da sociabilidade do capital- e 'como veremos do próprio socialismo real
-, aparece em diversos momentos de sua obra.
As reflexões de Lukács tomam como ponto de partida a obra de Lênin
Que fazer? É em torno do problema do espontaneísmo do movimento operário,
fortemente criticado pelo autor dessa obra, que o pensador húngaro tece suas
6
considerações sobre o fenômeno da burocracia, estabelecendo uma relação
inusitada entre o espontaneísmo e a burocratização das formas sociais das
relações humanas. Em seu livro, o revolucionário russo dirige uma crítica aberta
ao caráter burocrático do "economicismo" sindical e da social-democracia
alemã, que interferiam de maneira prejudicial na organização do movimento
dos trabalhadores da Rússia czarista e na Europa em geral. A tarefa da obra de
Lênin consistia em desmascarar a "essência burguesa da teoria reformista" por
meio da contraposição entre dois tipos ideológicos específicos do movimente

124
proletário: o chamado "tribuno revolucionário e o burocrata".
Quanto às tendências burocráticas no movimento sindical, em
linhas gerais, Lênin considerava que ao reduzir a defesa dos interesses do
proletariado à dimensão mais superficial dos antagonismos postos na realidade,
a postura economicista terminava por abandonar a totalidade das grandes
questões políticas à burguesia liberal, que desse modo não se via ameaçada
nos fundamentos da forma social que lhe favorecia. Lênin observava que a
espontaneidade sob cujas bases esses movimentos norteavam suas ações
conduzia a automatismos, a reações imediatistas, abandonando, desse modo, os
problemas mais fundamentais da configuração social, de forma a privilegiar as
questões diretamente vinculadas às reivindicações econômicas mais evidentes.
Tais perspectivas burocráticas consideravam a interferência do partido
(comunista), assim como de quaisquer outras intervenções que pudessem advir
de fora do movimento dos trabalhadores, como prejudiciais às causas operárias.
Precisamente, tal orientação recebe as duras criticas de Lênin.
Com base nessas criticas, Lukács destaca a relação entre o burocratismo
e a espontaneidade ao observar que

o "economicismo", a tendência deste período no sentido da


burocratização do movimento operário, mascara - como se se
tratasse de uma atitude "estritamente proletária" - esta fixaçâo
no imediato, esta exaltação da espontaneidade; reduz a luta dos
trabalhadores à defesa contra a exploração econômica imediata e
aos contrastes imediatos de interesse entre donos de fábricas e mào
de obra. (Lukács,2010b, p. 108.)

A burocracia no âmbito do movimento do operariado, tendência a qual


Lênin se contrapõe, surge devido ao "agravamento do caráter reacionário do
capitalismo", em virtude da "corrupção da aristocracia operária", que geram no
interior do movimento dos trabalhadores a "propensão ao espírito burocrático,
ao isolamento das massas, à separação da vida" (ibidem, p. 107).
Ainda que em um primeiro momento essa relação apareça apenas
estabelecida em suas linhas mais gerais, precisamente nas ações espontâneas do
movimento do proletariado são estabelecidas as bases para a compreensão da 6
raiz do fenômeno burocrático. Para o pensador húngaro, as reflexões de Lênin
possuem elementos gerais que permitem tomar o problema em uma extensão
bem mais ampla do que a critica direta ao sindicalismo tradeunionista. A análise
dos fundamentos que regem as ações do tradeunionismo - o espontaneísmo,
o imediatismo - fornecem os elementos para a compreensão dos fundamentos
do fenômeno da burocracia. Vale seguir os argumentos de Lukács para
compreender essa relação:

125
A este caráter imediato do objeto, corresponde necessariamente a
redução do sujeito à espontaneidade do comportamento. Tudo o
que ultrapasse esta espontaneidade e se baseia no conhecimento
das relações objetivas e das leis dinâmicas da sociedade como um
todo - tudo isso é repudiado "em princípio" como sendo "não
proletário", "elemento estranho" etc. O caráter primitivo das
reações espontâneas diante das situações imediatas é contraposto ao
~ ..
conhecimento teórico da totalidade, que é uma forma mais alta de
subjetividade, uma relação mais adequada com a realidade .. (Idem.)

A descrição do espontaneísmo como a perda da totalidade, como a


consideração direta dos fatos mais imediatos da realidade social põe, para o
autor, o problema de uma relação com o mundo na qual as ações perdem a
compreensão dos vínculos mais amplos dos nexos causais que estabelecem as
diretrizes dos processos sociais. Nesse sentido, os atos tornam-se mecânicos,
espontâneos. A raiz da burocracia sindical aparece determinada como o
abandono do desvelamento das questões de fundo, das relações objetivas
presentes na sociedade responsáveis pelos embates e antagonismos entre as
classes. Em suma, ao circunscrever a ação do proletariado aos aspectos mais
imediatos da luta econômica, faz-se apelo de maneira evidente ao caráter
espontâneo dos trabalhadores, deixando de lado de modo quase deliberado o
problema da totalidade na qual se encontra inserido, abandonando a questão
acerca da raiz dos dilemas sociais dos trabalhadores.
Ao contrapor a tais tendências o tribuno do povo, Lukács demonstra
como Lênin busca demarcar a natureza peculiar do movimento operário cujas
diretrizes ancoram-se nos princípios autênticos do marxismo. Tribuno do
povo significa a possibilidade do debate que amplie a discussão da condição
dos trabalhadores para além da esfera imediata dos interesses econômicos.
Enquanto o tradeunionismo se limita à figura primeira da insatisfação com as
condições mais imediatas da vida cotidiana, com os problemas diretamente
voltados às questões trabalhistas no interior da relação com os donos das
fábricas, Lênin vislumbra nessa situação tão somente o primeiro passo para a
ascensão à consciência de classe.
6
Na espontaneidade, como "forma embrionária da consciência",
manifesta- se a prioridade do ser com relação à consciência, de
modo que o reflexo adequado da realidade decorre necessariamente
do movimento da própria realidade. Mas este movimento não
é automático. A abertura da consciência para uma verdadeira
compreensão do mundo e das tarefas que se colocam ao homem
para a sua transformação não ocorre automaticamente, sem que haja
um trabalho consciente, sem que se levem em conta tanto o mundo
externo quanto nós mesmos. Para que se realize este objetivo, é

126
indispensável romper com a espontaneidade. E isto porque somente
através desta ruptura é possível aringir a consciência das forças que
operam na sociedade, de sua direção e de suas leis, da possibilidade de
influir sobre elas; e este conhecimento pode se tornar o patrimônio
espiritual dos que lutam para melhorar a realidade. (Ibidem, p. 111.)

Ainda que o ponto de partida se encontre também na espontaneidade,


"forma embrionária da consciência" nos diz Lênin, o movimento subsequente
dirige a consciência para a compreensão do mundo e das tarefas necessárias
para a atuação sobre ele. O pressuposto está na ênfase conferida à relação entre
o ser e a consciência, cuja prioridade recai sobre o primeiro. Subsumindo ao
ser, buscando a compreensão dos fatos efetivos das questões sociais a partir da
propensão direta e reta ao próprio mundo, a consciência eleva -se acima do patamar
da relação imediata, construindo a crítica da realidade social. O rompimento
com a espontaneidade constitui o passo que possibilita compreender as forças
operantes na sociedade, possibilita determinar suas tendências mais gerais, suas
leis, permitindo desse modo atuar de maneira efetiva sobre a própria realidade
social, transformando-a. O conhecimento dos meandros que determinam os
fenômenos mais imediatos da vida social leva a ação dos trabalhadores para
além dos aspectos superficiais da luta econômica, conduzindo a ação para os
elementos decisivos da dinâmica da sociabilidade.

A consciência com a qual se reconhecem, em relação com uma


determinada fase do desenvolvimento histórico, as determinações
objetivas da dinâmica social em sua totalidade, bem como a
resolução com a qual se sustentam as mais profundas exigências
da emancipação do povo trabalhador, são os fatores (dois aspectos
da mesma coisa) indispensáveis para elevar um homem ao nível
do tribuno. É como tribuno da revolução que Lênin empreende a
luta contra a espontaneidade. Ele realiza a superação do imediato
até elevar-se à clara consciência do movimento de conjunto,
baseando-se naquele adequado conhecimento teórico que só a
dialética materialista, o marxismo, está em condições de oferecer;
e é movido por um profundo amor ao povo oprimido, que anima
cada pensamento com o patbos da revolta, do incitamento à
libertação. (Ibidem, p. 110.) 6

O elemento de destaque na diferenciação posta em causa, entre tribuno


do povo e burocratismo sindical, consiste exatamente no fato deste último se
reduzir ao espontaneísmo, abdicando assim à compreensão das bases reais da
sociabilidade de forma a restringir a atividade a uma mera reação imediata aos
fatos. O tribuno do povo, por sua vez, tem como prerrogativa precisamente
o movimento contrário, ou seja, busca o conhecimento das determinantes de

127
fundo como fundamento da ação; a consciência adquire um papel ativo adiante
da própria realidade, na medida em que não é simples reação aos acontecimentos
imediatos, mas a reflexão mais aprofundada acerca dos processos sociais que
levam às situações de crises e conflitos.
Precisamente nas diferenças estabelecidas entre ações dirigidas à realidade
imediata e aquelas cujo fundamento da prática se alicerça em uma compreensão
da totalidade social, podem ser estabelecidos os traços mais decisivos da
determinação da burocracia. Para o autor, ainda que Lênin tenha circunscrito
sua análise às considerações ao contexto histórico russo e do movimento
operário na Europa, nelas estão contidos lineamentos gerais sobre a questão
da burocracia. É possível, pois, traçar um paralelo entre a atitude comum aos
sindicatos tradeunionistas e às dinâmicas que vigoram na base da sociabilidade
capitalista. O elemento que une tais vertentes aparentemente tão díspares - já
que constituem campos contrapostos de interesses - é a mesma orientação que
negligencia o conhecimento das bases objetivas da sociabilidade.

Tendo a burguesia deixado de ser a portadora do progresso social, nasce


cada vez mais em sua ideologia a desconfiança na cognoscibilidade da
realidade objetiva, o desprezo por toda teoria, o desdém pelo intelecto
e pela razão. O apelo à espontaneidade, a exaltaçâo do mero imediato
como tribunal de última instância no processo de compreensão da
realidade, constituem assim uma tendência cultural e ideológica
fundamental do período imperialista. (Ibidem, p. 108.)

Logo-à frente o autor acrescenta:

Confiar na espontaneidade significa afastar do pensamento as


múltiplas relações do desenvolvimento social que estão objetivamente
presentes e ativas em rodo fenõmeno da vida; significa, portanto,
renunciar ao conhecimento das leis do movimento da sociedade
capitalista, leis que revelam claramente as contradições insolúveis
desta sociedade e a necessidade de superá-Ias mediante a revolução.
Quanto mais solidamente os pensamentos e sentimentos dos
homens se mantiverem prisioneiros do pobre e abstrato cárcere da
espontaneidade, tanto maior será a margem de segurança das classes
6 dominantes. Compreende-se que isto diga respeito particularmente
ao movimento operário; mas vale igualmente para todos os campos
da vida cultural. (Ibidem, p. 109.)

Das vertentes irracionalistas até as mais evidentes renúncias e recusas


da possibilidade do conhecimento efetivo da realidade objetiva, passando
pela forte influência nos movimentos da massa trabalhadora, vigora "o
apelo à espontaneidade", a prevalência do "mero imediato" como base para

128
a compreensão e ação no âmbito dos fenômenos SOClalS.O "cárcere da
espontaneidade" aparece como componente decisivo da manutenção do
status quo ao abdicar do "conhecimento das leis da sociedade capitalista". Nas ::;

mais variadas formas o que se observa é a negação de leis ou de orientações


tendenciais na própria realidade, conduzindo em última instância tanto a teoria
quanto a prática a uma postura resignada ante a realidade. Tal resignação, por
mais inconformada que possa se mostrar na aparência com a situação posta,
na medida em que nega o conhecimento da realidade objetiva conduz a uma
mera saída particularizada, circunscrita a aspectos singulares, para os impasses
e contradições da sociedade. Precisamente por isso oferece em última instância
uma "margem de segurança" para as "classes dominantes".
Vale, contudo, salientar que não se trata de simples detalhe ou de uma
simples orientação casual posta em curso no decurso histórico do capitalismo.
Muito menos é mero fruto de orientações criadas em base na difusão de
ideologias mantenedoras da ordem. A raiz desse espontaneísmo tem razões
objetivas. O predomínio das tendências imediatistas entranha as próprias bases
da sociabilidade, sendo possível vislumbrar suas raízes na forma da divisão
social do trabalho prevalente na sociedade do capital.

A fixação no imediato, variedade burguesa da espontaneidade, deriva


necessariamente da divisão capitalista do trabalho; seus produtos
ideológicos correspondem, por sua vez, em tudo e por tudo, aos
restritos interesses egoístas da classe burguesa. O funcionamento
indisturbado do dominio da burguesia é facilitado pela atomização
das massas populares, pela sua ideologia corporativa, segundo a qual
cada um se contenta com o trabalho particular que lhe é indicado
pela divisào capitalista do trabalho e aceita conscientemente as
formas de pensar e de sentir que decorrem espontaneamente desta
divisão. (Ibidem, p. 108-9.)

A ideologia nesse sentido corresponde de maneira direta às formas


objetivas das relações sociais fundadas sobre as bases da sociedade. A perda
da dimensão da totalidade social é consequência da fragmentação promovida
pela divisão capitalista do trabalho. Por se alicerçarem nas bases das condições 6
objetivas da vida material tais tendências alastram-se para todas as dimensões
da sociabilidade, atingindo inclusive o movimento operário. A divisão social do
trabalho é a raiz do fenômeno do espontaneísmo, em suas mais diversificadas e
amplas expressões da dinâmica social.
As reflexões de Lukács partem da discussão do espontaneísmo, do
irnediatismo, para desembocar na discussão sobre a burocracia. Com base
na teoria da espontaneidade vislumbrada na obra de Lênin, as raízes da
burocracia são explicadas. A relação entre essas categorias precisa, portanto, ser

129
esclarecida, pois à primeira vista falar de espontaneidade nos leva para além de
uma das características mais peculiares da burocracia, isto é, as ações mecânicas
determinadas por padrões previamente fixados. No entanto, analisando mais
a fundo o problema, Lukács demonstra a íntima relação existente entre a
burocracia e a espontaneidade.

Se considerarmos agora o burocrata capitalista em sentido estrito


começaremos a perceber como sua característica principal é este
aspecto mecânico, automático. Mesmo o burocrata de nível elevado,
para nào falar do pequeno funcionário (carteiro, caixa etc), é
mecanízado em larguíssima proporção. Max Weber' disse certa feita
que o capitalismo concebe o tribunal como um aparelho automático,
no qual se lança num orifício o "caso jurídico" para que saia
imediatamente de outro a "solução"; e é evidente que esta "solução"
deve ser algo racionalmente previsível. Encontramo-nos assim,
aparentemente, diante do contraste máximo com a espontaneidade.
(lbidem, p. 115.)

Aparentemente, insiste Lukács, pois

apenas um romantismo vulgar e míope pode negar, precisamente


aqui, a existência da espontaneidade. M~" Weber, em sua tentativa
de definir o burocrata, descreve a mais elevada ambição deste mais
ou menos nos seguintes termos: se lhe cabe executar uma ordem
que esteja em contradição com suas convicções, esforça-se por
executá-Ia o melhor possível, /ege nrtis, com todos os refinamentos
da arte protocolar. O protocolo, que lhe aparece como algo em-si
e 'para-si destacado do conjunto das relações sociais, assume uma
realidade ainda mais isolada, que parece operar de uma maneira
autônoma. A elaboração do ato se torna uma tarefa "artística"
formal. (lbidem, p, 115-6.)

A espontaneidade está na ação mecaruca que se põe em movimento


impulsionada por "protocolos" que operam de maneira autônoma. Tais
"protocolos" colocam-se acima das convicções pessoais do próprio indivíduo e
são postos em operação como se a.instância particular de determinado segmento

1. Por mais que em alguns momentos () pensador húngaro faça referências diretas a \'V'ebcrsua posição é frontalmente
critica a seu pensamento . .-\S pondcmçócs criticas ele J ..ukács baseiam-se na mesma consideração analisada da perda da
totalidade c da renúncia do pensamento burguês ao conhecimento da realidade objetiva. Não existe no pensamento de
\,\·H)Crc de outros sociólogos alemães contemporâneos a ele a determinação central da legalidade tendencial que orienta
os lineamentos mais gerais das diretrizes assumidas pela realidade dos processos sociais do capitalismo. Por esse motivo,
a concepção wcbcriana c a sociologia alcmà no geral "tem como consequência necessária o fato de a economia capitalista
ser posta de cabeça para baixo, na medida em gue os fenômenos superficiais são vulgarizados e assumem a condição de
papel primário em detrimento do problema do desenvolvimento das forças produtivas. Essas abstrações deformadoras
conferem à sociologia alcrnâ também a possibilidade de dar às formas ideológicas, particularmente ao direito e à religião,
uma igualdade com a economia, de lhes atribuir até mesmo um papel causal superior" (Lukâcs 1974, v. m, p. 59).

130
da sociedade existisse de maneira separada do conjunto das relações sociais. As
questões acerca das origens desses protocolos, dos princípios sobre os quais
eles apoiam suas decisões, das demandas sociais às quais eles respondem, são
escamoteadas, isto é, desaparecem ante a um conjunto de atos e diretrizes
fixados de maneira mecânica. Passam assim a operar de maneira autônoma,
como se possuíssem uma imanência e uma lógica própria, completamente
independente das outras instâncias da ordem social. Em suma, a ação mecânica
do burocratismo é precisamente a expressão do espontaneísmo, pois significa
agir de maneira imediata empregando um conjunto de reações e respostas fixado
pela força do hábito, orientado por princípios fixos que agem como critérios
exclusivos de decisão negligenciando outras dimensões da prática social.

Deste modo, o emprego adquire no capitalismo uma "imanência"


que é determinada objetivamente pelo conjunto da sociedade,
da economia e da luta de classes, mas cujo verdadeiro caráter
aparece inteiramente anulado em suas repercussões espontâneas
nos interesses individuais. Precisamente a dedicação cega à
espontaneidade de uma tal "imanência", isto é, a mais absoluta
irnediaticidade no comportamento do sujeito diante dos objetos de
sua atividade, bem como a consequente conservação do isolamento
hermético do ofício singular, em sua "imanência", em face do
processo total - precisamente isto assegura o bom funcionamento,
em sentido capitalista, e define o burocrata ideal da sociedade
capitalista. (Lukács 201Ob, p. 116.)

A ação burocrática/espontânea tem um duplo âmbito de determinação


intrinsecamente associado que se potencializa mutuamente. A divisão social
do trabalho, elemento decisivo da sociabilidade do capital, põe os indivíduos
apartados da totalidade, os circunscreve a um campo específico da atividade
social, levando-os ao completo desconhecimento das outras dimensões sociais
diretamente relacionados com o seu campo de atividade. Assim, reduz os
indivíduos à singularidade de sua práxis e desse modo provoca o efeito da
autonomia de sua esfera de ação, conduzindo-os a ações espontâneas, cujo
campo de escolhas e decisões encontra-se emoldurado por uma estrutura
fechada e restrita a si mesma. Os indivíduos, por sua vez, potencializam a
burocracia ao responder às demandas que lhes são colocadas de modo imediato,
mecânico, reproduzindo e fortalecendo dessa maneira os elos que mantêm em
funcionamento os princípios mantenedores do status qtlo.
A categoria da totalidade tem importância decisiva nessas elaborações
de Lukács. A sociabilidade é compreendida como uma totalidade formada
pelo conjunto de totalidades parciais devidamente articuladas entre si sob
a forma da determinação da reflexão. Essas instâncias sociais distintas

131
permanecem, em última instância, em inexorável interação mesmo quando os
indivíduos que atuam em sociedade as tomam como esferas separadas. A ação
individual circunscrita à atividade singular apresenta pontos de convergência
com tendências e direcionamentos atinentes às próprias leis e necessidades
do ordenamento social em curso. Sem que seja necessária plena consciência
sobre o fato, a ação espontânea dos indivíduos atua como reflexo da legalidade
predominante na sociabilidade do capital- ainda que por meio de diversificadas
mediações. Desse modo, a atividade burocrática reproduz mecanismos e ações
que atingem diretamente outros campos da atividade social; não é imparcial
diante desses direcionamentos, muito embora conduza seus atos e decisões pelo
plano imediato de seu campo restrito de ação. Precisamente nesse campo, porque
engendrado pelas próprias necessidades do sistema, responde afirmativamente
às condicionantes de manutenção da ordem estabelecida.
Evidentemente essa relação deve ser compreendida por meio de relações
que envolvem contradições e antagonismos entre a burocracia e os interesses
da própria burguesia. Trata-se de uma relação complexa e desigual que de modo
algum deve ser compreendida como um reflexo simples e direto, como simples
resultado dos interesses burgueses sem mediações específicas. Para explicar essa
relação contraditória, Lukács reporta-se a Engels.

Engels, descrevendo o nascimento da magistratura profissional


a partir da divisão capitalista do trabalho, sublinha expressamente
que se abre aqui um campo "que, apesar de sua dependência para
com a produção e o comércio, possui todavia uma capacidade
peculiar de reagir a eles". Esta capacidade peculiar de reação, que
é a espontaneidade "imanente" a este campo (ou a outros por
motivos análogos), pode conduzir, em casos individuais, até mesmo
a conflitos agudos; precisamente o burocrata subjetivamente
honesto, que "aprofunda ideologicamente" a espontaneidade do
próprio campo e seu comportamento espontâneo diante dele,
transformando-o (com patbos moralista) na substância da própria
vida, pode facilmente entrar em choque com os interesses de classe
da burguesia. (Ibidern, p. 117-8.)

6 Por mais que signifique em alguns casos a afronta direta de interesses da


própria classe burguesa, no plano mais amplo dos desdobramentos sociais, tais
conflitos garantem a perpetuação dos princípios de sustentação da formação
social. Ancorados nos fundamentos de sustentabilidade da ordem social
capitalista, a burocracia por vezes confronta os interesses de seus mandatários,
em nome dos interesses mais universais dessa classe, agindo em detrimento de
suas motivações imediatistas. A burocracia faz, nesse sentido, apelo à dimensão
das ações individuais de modo a promover o convencimento dos indivíduos, a

13:2
habituação de seus pensamentos e de sua forma de agir e julgar. Desse modo,
é introduzida a discussão sobre a categoria "hábito", reportando diretamente
a uma profícua e decisiva discussão da filosofia - voltaremos mais adiante a
esse problema. No que tange ao nosso problema, são traçados os seguintes
lineamentos em torno da questão do hábito na sociabilidade do capital:

No capitalismo, o funcionamento normal da sociedade requer que


todos os homens se habituem aos postos que Ihes são conferidos
pela espontaneidade da divisão do trabalho; que se habituem aos
deveres que espontaneamente derivam destes postos assumidos
dentro da divisão social do trabalho; que se habituem ao fato de
que o andamento normal do processo social geral desenvolve-se
independentemente de sua vontade e de seus desejos e de que eles só
podem contemplá-Ios como espectadores, diante de coisas já feitas, já
que não está em seu poder detcrminar-lhes a direção. (Ibidem, p. 118.) iS,

A criação das condições para que possa vigorar determinada formação


social não implica apenas a subjugação dos indivíduos às novas exigências postas
mediante o uso da força, mas também, e até mesmo com maior decidibilidade,
a habituação dos indivíduos às novas formações. Isso significa engendrar
indivídualidades que tenham a conformação necessária às novas exigências e
condições sociais. As considerações de Lukács lembram em grande medida
as colocações de Marx" - O capital, capo 24 -, nas quais o pensador alemão
demonstra como o uso da força, da violência explícita, aparece como critério
fundamental nos primórdios das transformações sociais, porém não podem
vígorar para sempre. Devem atuar até o momento em que as novas formas das
relações sociais passam a agir como costumes, tornam-se comuns, na medida
em que os indivíduos dessas sociedades adquirem hábitos condizentes às novas
condições e relações sociais então em vigor.
A burocracia, nessa dimensão das singularidades, é a habituação às
exigências, ações, aos comportamentos, julgamentos etc. que se tornaram
comuns na sociedade capitalista. O espontaneísmo é precisamente a ação
irrefletida e imediata que toma os fundamentos das ações como naturais, como
aspectos habituais e comuns a toda ação no interior da sociedade. (í

2. No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição c hábito,
reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais c evidentes por si mesmas. .:\ organização do
processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma supcrpopulação
relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, c, portanto, () salário, nos trilhos convenientes às necessidades
de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o
trabalhador. .A violência cxtraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada, mas apenas excepcionalmente. Para
o curso usual das coisas, é possível confiar o trabalhador às "leis naturais da produção", isto é, à dependência em que ele
mesmo se encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições de produção e que por elas
é garantida e perpetuada, {Marx, 2013, p, 808-9,)

lY'>
Desse modo, a burocracia constitui elemento indispensável para a
sociedade burguesa. Vigorou em seus primórdios como estratégia necessária de
transformação social, como combate à formação societária anterior (feudalismo)
~.. e vigora ainda na atualidade como perpetuação da forma social estabelecida
pela classe burguesa.

Para o próprio capitalismo, ao contrário, a burocracia é um


fenômeno indispensável, um resultado necessário da luta de classes.
Ela é uma das primeiras armas da burguesia em luta contra o sistema
feudal, e torna-se tão mais indispensável quanto mais a burguesia é
obrigada a defender sua dominação contra o proletariado e quanto
mais seus interesses entram em contradição aberta com aqueles das
massas trabalhadoras. O burocratismo, portanto, é um fenômeno
fundamental da sociedade capitalista. (Ibidem, P: 107.)

É, pois, O resultado necessário da luta de classes em dois momentos históricos


distintos. No primeiro momento contra as classes da sociedade medieval. Bastaria
lembrar Régine Pernoud, em seu livro Les Origines de Ia boargeoisie, onde demonstra
a importância da criação de cargos e funções burocráticos - principalmente
àqueles vinculados à esfera juridica e econômica -, devidamente acompanhados
de seus aparatos e justificativas teóricas, que exerceram o importante papel de
formalizar e fixar de maneira oficial nas instituições do Estado e da sociedade
os interesses e prerrogativas da classe em ascensão, ou seja, a burguesia. Desse
modo, a burocracia produz as bases que preparam a sociedade que está por vir,
na medida em que instaura as novas normatividades, cria novos costumes, enfim
engendra hábitos demarcatórios de uma nova relação entre os homens, tornando-
se elementos comuns, quase naturais da vida cotidiana dos indivíduos.
No início, como arma revolucionária buscava garantir direitos,
convicções e objetivos ante a ameaça pas classes feudais (monarquia, clero);
depois de consumada sua revolução, torna-se arma de combate contra aqueles
que a ameaçam na sociedade atual, ou seja, a classe trabalhadora. A burocracia é
inerente ao capital, ao interesse de dada classe social, na medida em que aparece
como elemento de combate e de garantias de interesses ante as classes que
antagonizaram e antagonizam os propósitos da burguesia.
Em Oprocesso de democmtiza(ào (1968), Lukács relembra as palavras de Lênin:

Ele alude a um processo sócio-teleológico no qual todas as ações,


instituições etc. do Estado e da sociedade têm como objetivo habituar
os homens aos comportamentos por ele descritos. Alguns elementos
desta teleologia existem certamente em todas as sociedades. Mas,
por exemplo, toda a estrutura do direito nas sociedades de classe
tem, por necessidade objetiva, a função de fazer que os homens

134
se habituem espontaneamente a determinados comportamentos.
Ou seja, a comportamentos que, seguindo Marx, podem ser assim
descritos: os mandamentos e as proibições das leis, de modo .':'

predominante e na medida do possível, limítam a ação do outro


e não as próprias ações, as quaís, ao contrário, são submetidas ao
"egoísmo econômico" de cada indivíduo. O hábito de agir segundo
a lei, portanto, consolida necessariamente o egoísmo do homem
cotidiano, ou seja, a consideração do próximo somente como um
limíte à própria existência e à própria práxis. (Lukács, 2008b, p. 118.)

Vale, portanto, advertir: quando se fala em fixar e difundir seus interesses


deve-se compreender tal perspectiva de um modo amplo. Não se trata tão somente
da difusão de uma ideologia, do convencimento por meio de uma concepção de
mundo, mas de introjetar na vida das individualidades mecanismos e instituições
afins, de modo a fazer com que tais meios sejam tomados como naturais, como
de fato pertencentes à ordem natural da vida, isto é, de modo com que penetrem
no âmbito da própria cotidianidade dos indivíduos, transubstanciando-se em
costumes, comportamentos etc., enfim como aspectos inevitáveis e insuperáveis
condicionantes da própria vida. Nesse sentido

A criação do hábito faz nascer nos homens da sociedade capitalista


uma relação espontânea e mecanicista, de mero registro burocrático,
díante dos problemas da vida. Nem o bem nem o mal criam nítidas
soluções de continuidade na rotina de um modo de viver semelhante.
(Lukács, 201Ob, p. 119.)

Precisamente em tais aspectos residem os problemas. Para Lukács, a


forma da relação da burocracia na sociabilidade burguesa aproxima-se de fato
dos processos de reificação social comuns a essa forma societária.

No capitalismo, a criação do hábito significa assim um processo


geral de obscurecimento. Os homens concebem a espontaneidade
como natural e normal, e aprendem a reagir às suas manifestações
tal como se reage a um temporal ou ao calor intenso, isto é, a eventos
naturaís que podem certamente ser desagradáveis, e que podemos
eventualmente detestar, mas que devem ser considerados taís como
são. É assim que surge o habituar-se à inumanidade capitalista.
No que toca ao aspecto ideológico da estabilidade do capitalismo,
a criação deste hábito é extremamente importante, já que impede
tanto o nascimento de uma revolta duradoura contra a injustiça e
a desumanidade, suscetível de se elevar até à investigação de suas
causas, quanto um entusiasmo, superior à pura reação emotiva,
em face dos grandes movimentos humanos que contêm sempre,
consciente ou inconscientemente, uma tendência à revolta contra o
sistema capitalista. (Lukács, 201 Ob, p. 118-9.)

135
Mais à frente o autor acrescenta:

o alhearnento em relação ao processo de conjunto da sociedade,


o isolamento fetichista de um único campo de atividade, bem
como aquela dedicação à espontaneidade, cristalizada em forma
de "visão do mundo", que um tal isolamento necessariamente
produz. O aparelho automático, mencionado por Max \'\feber, tem
também aqui o lugar quc lhe compete; só que desta vez, tão logo é
introduzida a moeda, nào mais surgem sentenças ou decisões, mas
sim "experiências vividas". A dança ma cabra da racionalidade da
circulaçào das mercadorias se enriquece aqui com uma nova nuança.
Cria-se um armazém de impressões puras e imediatas, um bazar de
"verdades últimas", uma revenda da personalidade humana a preços
extraordinariamente mais baixos. (Ibidem, p. 123.)

Aspecto relevante a ser ressaltado é o fato de a ideologia ou as visões de


mundo não serem tomadas apenas no âmbito da idealidade social, mas como a
demarcação clara de que tais mecanismos e formas específicas da burocracia
tornam-se parte da própria vida, isto é, apresentam-se como aparatos e mediações
das experiências de vida dos indivíduos, A burocracia entranha à própria dimensão
da individualidade, engendrando traços subjetivos, elementos da personalidade dos
homens que se veern rendidos a "impressões puras e imediatas". Precisamente por
isso, permanecem irrestritamente encarcerados, já que reduzidos a um fugaz "bazar
de verdades últimas", onde adquirem a preços "extraordinariamente" módicos suas
convicções, seus princípios e os objetivos através dos quais orientam a própria vida.
Todo esse tracejamento em torno do contraste entre tribuno do povo e
burocracia analisado na década de 1940, mantém-se irretocado até o final de sua
vida. No texto tardio anteriormente mencionado - O processo de democratização
-, temas afins aos aqui tratados são retomados e contribuem decisivamente
para a compreensão e aprofundameato do problema. Em particular o tema
do tribuno do povo, ainda que nào diretamente mencionado, ganha linhas
demarcatórias adicionais, fato que nos ajuda a compreender em que medida
ele se contrapõe à burocracia.
A burocracia é determinada, conforme vimos, como algo necessário
6 e tipico da sociabilidade do capital. Consequentemente, quando se fala em
superação do capitalismo, coloca-se de imediato a necessidade da superação
da burocracia. O comunismo "autêntico" é em sua essência antiburocrático.
Lukács retoma com tais determinações as ponderações criticas que realizara
ao longo de sua vida aos aspectos nefastos do socialismo real', em grande

3. Diferentemente do que afirmam alguns críticos, ao longo de roda a sua vida Lukács teceu profundas criticas ao sralinismo,
muito embora nos períodos mais reprcssorcs do sistema soviético tenha sido necessário agir de maneira velada e estratégica
na exposição de suas opiniões. Sobre a relação de J .ukács com o sralinismo, ver (Tertulian, 2007)-

136
medida oriundos do taticismo de Stálin que conduziram a União Soviética à
instauração de uma forte burocracia estatal. Contra "a opressão dogmática de
uma burocracia tirânica" (Lukács, 2008a, p. 43.) promovida pelo stalinismo, o
pensador magiar recobra as palavras de Lênin e afirma peremptoriamente,

Os que conhecem seus escritos e cartas dos últimos anos de vida sabem
com que tenacidade Lênin travou esta batalha contra a burocracia em
todos os campos da vida do Estado e da sociedade; basta lembrar,
por exemplo, que ele pensou até mesmo em expulsar do Partido
colaboradores de peso (como Orjonikidze) porque, retomando a
certos modos de atuação próprios da guerra civil, eles violavam os
princípios da democracia proletária. [...] Quem estudar com atenção
seus escritos preparatórios da revolução percebe facilmente que, para
ele, a atividade autônoma dos trabalhadores, desde a vida cotidiana até
a grande política, constituía um dos principais indicadores de que estes
estavam maduros para a revolução socialista. (Lukács, 2008b, p. 116.)

pois O filósofo russo considerava que

o socialismo era uma comunidade social, uma comunidade


socialmente consciente (conscientemente criada) de todos os
trabalhadores, com o objetivo de elevar, através do próprio trabalho,
das próprias experiências, sua existência material e espiritual ao nível
de uma ação em comum dotada de sentido. (Lukács, 2008b, p. 114.)

As determinantes do tribuno do povo que transparecem nessas linhas são


precisamente o inverso do espontaneísmo. Implicam a consideração da dimensão
da totalidade, na qual a autonomia dos trabalhadores atravessa desse o campo da
vida cotidiana ascendendo até às esferas mais amplas da vida social, ou seja, o
campo da grande política. Isto posto, Luká~s arremata de forma conclusiva:

o socialismo e, mais ainda, o comunismo são formações nas quais


o conjunto da sociedade e seu desenvolvimento são cada vez mais
resolutamente subordinados a uma direção teleológica unitária;
desaparece assim progressivamente aquela estrutura própria do
capitalismo, na qual, a partir de posições tcleológicas individuais
espontâneas, resulta no final o caráter causal do funcionamento do
6
todo. (Ibidem, p. 113.)

Fica mais fácil compreender tais afirmações fazendo referência ao modo


como o revolucionário russo compreendia os processos de transformação da
República Soviética nos primeiros anos da revolução. É bastante conhecida a tese
de Lênin que sugeria a necessidade do desenvolvimento de uma base capitalista
como passo necessário para alcançar as condições para a implementação do

137
socialismo. No entanto, a tese de Lênin não se reduz a uma aplicação cega e
irrefletida de leis do mercado como fundamento para a criação das possibilidades
para a transição. O chamado "desenvolvimento do capitalismo" já pressupõe
diferenças fundamentais com os princípios da economia de mercado:

No processo da autorreprodução individual, tal momento não


está contido diretamente; basta recordar que, no capitalismo, a
necessidade ele prornovê-lo surge apenas a partir das exigências
da produção de capital, tendo sido simplesmente imposto classe â

operária na medida em que determinadas atividades laborativas


não podiam ser tecnicamente desempenhadas por analfabetos.
O socialismo põe na ordem do dia o momento da educação com
uma intensidade mimaginávei nas anteriores sociedades de classe,
mas isso não pretende nem pode eliminar a mediação puramente
econômica desta esfera. Contudo, com relaçào ao capitalismo, o
socialismo produz algo completamente novo no plano qualitativo, na
medida em que põe esta mediação como um problema fortemente
determinado pela ideologia, que os trabalhadores devem resolver
por meio de sua própria atividade. (Lukács, 2008b, p. 141.)

Particularmente o desenvolvimento das forças produtivas" constitui


o elemento que se encontra em jogo nas considerações de Lênin, na medida
em que se possa colocá-Ia a serviço de uma profunda transformação social
e superar as fragilidades econômicas e sociais da herança czarista da Rússia
pré-revolucionária, O primeiro aspecto relevante está no fato de as ações
econômicas estarem circunscritas às necessidades sociais por meio de uma
economia planificada, mas não somente esse aspecto possui relevância. O
modo como o processo é posto em curso tem importância prioritária para o
revolucionário russo. Eis as diferenças descritas por Lukács:

nas formações sociais anteriores ao socialismo a mudança da estrutura


econômica, considerada no nível social, ocorre geralmente por
necessidade espontânea - o que naturalmente não exclui que os atos
econômicos dos indivíduos sejam guiados pela consciência (embora
frequentemente por uma falsa consciência) - , o primeiro grande ato
6 da passagem ao socialismo, a socialização dos meios de produção, sua
concentração nas mãos dos trabalhadores, tem como consequência
necessária que os atos sociais referidos a totalidade da economia
devam se tornar também eles conscientes. Precisamente por isso, os
trabalhadores deixam de ser servidores para se tornarem senhores do
desenvolvimento social do homem. (Lukács, 2008b, p. 111.)

4. Segundo o líder soviético, "o histórico papel progressista do capitalismo pode ser resumido em duas palavras:aumento das
forças produtivas do trabalho e socialização deste" {Lênin, 1985, p. 373.). Além desses elementos, Lênin relaciona outros
aspectos importante!' da missão do capitalismo nesse momento transitório da revolução (Lênin, 1985, p. 374).

138
Lênin considera a participação ativa dos trabalhadores como ::.;:
)~.

componente fundamental do processo. Por meio dos Sovietes, dos conselhos .'"
de fábrica etc., a dimensão econômica deixa de ser algo completamente
ignorado, agindo à parte da percepção dos trabalhadores, e entra no âmbito
da reflexão sobre sua própria atividade. Nesse ínterim, não somente as
condições objetivas são criadas, mas também as condições subjetivas para
a criação da viabilidade da transformação da sociedade. A educação do
trabalhador, ou seja, a formação de subjetividades aptas à criação de uma
nova sociabilidade implica o envolvimento direito e consciente na construção
das novas condições da vida.
Por esse motivo, aquilo que Lênin afirma em suas considerações "entra
em choque com o materialismo histórico concebido de modo mecanicista,
ou seja, com a ideia de que toda solução surge simplesmente como produto
espontâneo e necessário do desenvolvimento da produção" (Lukács, 2008b, p.
112.). Lukács retoma Marx para explicitar tais considerações:

Para Marx, o mundo da economia (que ele chama de "reino da


necessidade") será sempre, ineliminavclmente, a base daquela
automação do gênero humano que ele define como "reino da
liberdade". Ao afirmar que o conteúdo essencial deste último
reino é "o desenvolvimento das capacidades humanas como fim
em si mesmo", Marx diz claramente que esta práxis se diferencia
qualitativamente da ação econômica (ainda que entendida em seu
sentido mais amplo). Ela nào pode surgir como simples produto
espontâneo, necessário, da atividade econômica, embora - e estamos
diante de uma contradiçào da vida social, produtora de novidades -
a práxis vinculada ao "reino da liberdade" só possa florescer "com
base no reino da necessidade". (Lukács, 2008b, p. 112.)

A criação do reino da liberdade é'''o desenvolvimento das capacidades


humanas como fim em si mesmo" e tais condições não aparecem como o
reflexo direto das condições objetivas da economia. Assenta-se nelas, pois elas
são seu pressuposto, porém pressuposto não significa fator unívoco e unilateral
do processo de transformação da sociedade. Vale insistir que, para além das
I()
condições e dos fatores objetivos, entram também no curso desses processos
os fatores subjetivos(Fortes, 2015) .. Melhor dizendo, para usar uma expressão
de Marx, ambos "são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma
unidade" (Marx, 2011, p. 53). A unidade entre economia e as outras esferas da
dinâmica social transparece também na questão da relação de determinação de
reflexão entre fatores objetivos e subjetivos. Desse modo, o sucesso de uma
revolução depende também da criação dos fatores subjetivos que a favoreçam,
aspecto que implica a transformação radical das individualidades.

I ..
I
Lênin indicou de maneira clara como o processo de educação dos
trabalhadores envolve a aprendizagem com o objetivo de engendrar um novo
homem. Implica nesse sentido a criação não apenas dos elementos objetivos
para a revolução, mas também o desenvolvimento dos fatores subjetivos que
desencadeiem e potencializem esse processo de transformação social. Por
mais que nos momentos iniciais isso se faça de maneira incipiente, confusa,
onde claramente se expresse, o despreparo para lidar com as de terminantes
em curso nos processos sociais, a formação dos indivíduos se dá precisamente
no jogo dos acertos e desacertos de suas decisões e ações. A subjetividade
revolucionária é forjada exatamente ao longo do processo. A pergunta de Marx,
quem "educa os educadores?" recebe a resposta: o processo de formação das
novas condições objetivas e subjetivas,
A antítese estabelecida entre as bases da sociabilidade capitalista e as
bases para a formação de uma nova sociedade remete à contraposição entre
a burocraúzação da vida e a democratização da vida cotidiana. Mencionar o
problema da democracia não significa clamar por um reformismo, sugerir a
reforma democrática do socialismo, como se o simples acréscimo de um
detalhe colocasse o curso dos acontecimentos em seus devidos eixos. Para
Lukács o sentido é bem mais amplo e profundo. Trata-se da democratização
da vida cotidiana, único lugar autêntico e efetivo da vida, por isso mesmo é
a instância onde os princípios de uma autêntica participação e integração dos
homens pode vir a ocorrer. As palavras de nosso autor não apelam, nesse
sentido, para a compreensão restritiva da democracia no âmbito da política
e do Estado. O "exercício da democracia" remete à concreta "capacidade de
governar e administrar efetivamente suas próprias questões", questões essas
portadoras da amplidão de perguntas e respostas da vida vivida, passíveis de
serem equacionadas e orientadas pelos próprios indivíduos.
A democratização na sociedade socialista diverge profundamente
daquela que encontramos na sociabilidade do capital. Para demarcar as
diferenças, Lukács traça considerações sobre as variadas formas históricas
assumidas pela democracia em diversas sociedades, demonstrando como
na grande maioria dos casos ela se constituiu muito mais como a equação
6 possível para a resolução de profundos problemas sociais então existentes.
Na maior parte das vezes quando o tema da democracia é posto como
centro das reflexões o que se vê é a quase completa desconsideração das
multiplicidades de formas da democracia, onde se deixa de lado a análise
de sua conexão com a base econômica da sociedade. Bastaria pensar, por
exemplo, no período clássico da Grécia antiga onde, como demonstra Lukács
retomando as observações marxianas, a democracia ateniense surge a partir
de uma constelação econômica específica,

140
não se apoia simplesmente na base geral das formas de ser do homem,
da práxis humana - válidas para toda sociedade - , mas, ao contrário
e indissoluvelmente, num modo de ser concretamente ineliminável,
ligado à existência individual específica das pessoas que tomam parte
ativa nesta democracia. Ser cidadão da polis, ser coparticipante ativo
de sua democracia, não é simplesmente uma categoria de terminante
da superestrutura política, mas é também, ao mesmo tempo e de
modo inseparável, a base econômica do ser social, da forma material
de vida para cada cidadão. (Lukács, 2008b, p. 86-7.)

Não cabe aqui discorrer longamente sobre as reflexões de Lukács em


torno desse problema, trata-se apenas de fazer os apontamentos necessários
para o curso de nossas reflexões. Para os nossos propósitos, cumpre destacar
que a democracia não é um simples receituário a ser aplicado a partir de fora
aos efetivos processos sociais em curso em dado contexto histórico. Ela é, na
realidade, fruto dos processos reais historicamente postos e guarda forte relação
com as bases da reprodução material da sociedade. Essas determinações são
válidas também para a forma social do capital. No capitalismo a democracia
assume a figura dicotômica da separação radical do indivíduo entre o cidadão e
o homem da sociedade civil circunscrito a seus próprios interesses egoístas. Na
figura do cidadão, os indivíduos aparecem como abstratamente iguais perante a
lei, enquanto na sociedade civil são mônadas isoladas apartados uns dos outros,
sorvidos pelo jogo de seus próprios interesses. As reflexões de Marx em Sobre
a questãojudaica fornecem os argumentos para a análise e a crítica da forma
específica da democracia na sociedade burguesa.
Por esse motivo quando tal problema se apresenta diante de Lênin,

Ele não tem a menor intenção de impor à democracia no socialismo


um caráter semelhante àquele do cidadào. [...] ele negou que a
democracia no socialismo seja "Uma pura e simples ampliação da
democracia" (entendida como a democracia burguesa). Ao contrário,
aquela é o oposto desta última. Antes de mais nada porque esta deve
ser não a superestrutura idealista do materialismo espontâneo da
sociedade civil, mas um fator material que movimenta o próprio
mundo social; um fator nào mais baseado, porém, nas muitas barreiras
naturais, como era o caso na polis, mas baseado precisamente no ser
ontologicamente social que está sendo constituído. Por isso, a tarefa
da democracia socialista é penetrar realmente na inteira vida material
de todos os homens, desde a cotidianidade até as questões decisivas
da sociedade; é dar expressão à sua sociabilidade enquanto produto
da atividade pessoal de todos os homens. (Ibidem, p. 117.)

o desfecho do parágrafo é decisivo. Tribuna do povo significa


precisamente a penetração na vida material de todos os homens dos princípios

I141
1
efetivos da democracia. Não aparece para os indivíduos como garantia de
direitos abstratos, ou como simples jogo formal de uma igualdade abstrata ante
o Estado, como forma de perpetuação das desigualdades reais. a comunismo
é precisamente a expressão da dimensão democrática como componente
necessário da própria vida. a elemento da democracia nesse caso torna-se
elemento essencial da cotidianidade, na medida em que expressa a interação
autêntica e direta dos indivíduos na sociedade.
Apesar dos quase trinta anos que separam um texto do outro, Lukács
novamente repõe o problema do hábito, só que dessa vez, ao contrário de tratar
a questão da habituação como um instrumento específico da burocratização,
demonstra como também nas ações contrárias ao burocratismo o problema
da habituação se apresenta, só que com objetivos completamente distintos. a
"hábito é uma categoria sociológica generalíssima, que não pode deixar de ter
um papel significativo em toda sociedade". Nesse sentido, pode-se habituar
tanto às tendências e instrumentalizações burocráticas de uma dada sociedade
(seja ela capitalista ou mesmo a do socialismo real), ou os hábitos adotados
podem significar exatamente a libertação das amarras da burocracia.

o que é central agora, para nós, é o modo pelo qual a democracia


socialista pode se afirmar na vida cotidiana dos homens. Lênin fala
do hábito como o motor mais importante da extinção do Estado, na
medida em que o hábito torna os homens capazes de levar adiante
sua convivência com o próximo "sem violência, sem coerção, sem
submissào". (Ibidem, p. 118.)

As virtudes são estabelecidas nos indivíduos pelo hábito, esse é o processo


de educação de um povo. A formação da socialidade dos indivíduos não se reduz à
atuação de um sistema de educação formal, a aprendizagem se processa de modo
mais efetivo na própria vida vivida, ou' seja, no âmbito da vida cotidiana. Quando
os trabalhadores compreendem e opinam diretamente sobre as conduções da
economia não é apenas a formação política que se constitui no interior desses
processos participativos, mas é a formação subjetiva dos indivíduos que ganha
primazia como critério decisivo para a dinâmica da transformação social. Em
6 uma dupla dimensão, a da criação dos fatores objetivos e subjetivos, são postos
em movimento na dinâmica do tribuno do povo.
a que se apresenta em Lênin não é uma novidade quando consideramos
as discussões estabelecidas pela tradição filosófica sobre o tema. A mais
clássica tematização do problema talvez seja a de Aristóteles em seu famoso
livro Ética a Nicômaco. Para o filósofo grego as chamadas virtudes éticas
são constituídas pelo hábito, mediante o exercício os homens são capazes
de traduzir a potencialidade das virtudes em atualidade, desenvolvendo as

142
qualidades necessárias para a formação humana condizente às necessidades
da polis. Para Aristóteles o hábito explica como os indivíduos adquirem, e
como possuem as virtudes: 'T ..] realizando coisas justas tornamos-nos justos,
realizando coisas moderadas tornamos-nos moderados, fazendo coisas
corajosas, corajosos" (Aristóteles, 1987, p. 27).
A rápida referência de Lukács ao problema no interior das reflexões da
filosofia procura caracterizar a democracia socialista como um processo que
se vale das grandes conquistas das sociedades anteriores e não como algo que
"parte do zero", sob a forma da recusa geral de todo o anterior. Tanto no que
concerne aos valores a serem implantados, como quanto às formas pelas quais se
configuram e constituem as novas virtudes humanas, o papel das mais elevadas
conquistas que se deram no decurso histórico dos homens, no devi! homem
do homem, cumprem papel decisivo. Segundo Lukács, Lênin não negligencia
o "fato de as regras da convivência e da cooperação humanas que caracterizam
a democracia socialista" terem antecedentes históricos importantes, conterem
princípios válidos para a própria sociabilidade socialista. Portanto, não serão
apenas aqueles princípios criados no curso da evolução do processo que
deverão ser considerados e depurados, juntam-se a eles "forças elementares,
que operam há milênios, mas que só no socialismo podem se generalizar para
toda a sociedade" (Lukács, 2008b, p. 121).

o marxismo conquistou sua significação histórica universal como


ideologia do proletariado revolucionário porque não rechaçou de
modo algum as mais valiosas conquistas da época burguesa, mas,
pelo contrário, assimilou e reelaborou tudo o que existia de valioso
em mais de dois mil anos de desenvolvimento do pensamento e da
cultura humanos. (Ibidem, p. 122.)

Na prática esses elevados valores humanos, construídos no decurso


histórico da humanidade, são sintetizados e reelaborados sob os princípios do
pensamento marxista. A revolução comunista elimina os traços espontâneos,
burocráticos, na medida em que a criação do hábito não responde mais a
mecanismos automáticos que envolvem o obscurecimento dos fundamentos
da vida, pelo contrário, a habituação nesse caso constitui a formação da 6
subjetividade mediante princípios que permitem a relação direta e autêntica
entre os indivíduos, sem a necessidade das mediações do Estado ou mesmo
das formas institucionais da sociedade capitalista. A criação das condições
objetivas e subjetivas para o surgimento de um novo homem é obra dos
próprios homens. Bastaria, para concluir, citar as próprias palavras de Lênin
por meio das quais oferece as linhas gerais do projeto do devir humano a ser
produzido pelo comunismo:

143
liberados da escravidão capitalista, dos inumeráveis horrores,
bestialidades, absurdos e vilezas da exploração capitalista, [os
homens] se habituarão pouco a pouco a observar as regras elementares
da convivência, conhecidas ao longo dos séculos e repetidas há
milhares de anos em todos os preceitos; a observá-Ias sem violência,
sem coação, sem subordinação, sem esse aparelho especial de coação que
se chama Estado. (Lênin, 1987, p. 130-1.)

As palavras de Lênin soam como uma advertência sobre os próprios


rumos a serem seguidos na construção da sociedade socialista. Ao apontar para
os fins a serem alcançados pelo comunismo, ou seja, a eliminação do Estado
como intermediador da relação en tre os homens, o revolucionário russo demarca
a necessidade de construir os caminhos para atingir esses objetivos, indicando
de maneira clara a ausência de qualquer escatologia ou decorrência necessária
que conduziria de modo mecânico todo o processo a essa realização. Por esse
motivo, em sua polêmica contra Trótski, que considerava a subordinação
dos sindicatos diante dos ditames do partido comunista, "de modo a utilizar
sua capacidade organizativa para elevar a produção" (Lukács, 2008b, p. 116),
Lênin defende ardorosamente a independência dos sindicatos, como forma de
preservar e garantir a autornonia dos trababalhadores ante as possíveis formas
da burocracia partidária e do Estado, já que, como diversas vezes sublinhou,
o Estado russo "era um Estado operário com uma deformação burocrática".
Precisamente por isso "o proletariado organizado deve se defender" desse
Estado, em síntese: "devemos utilizar estas organizações operárias [os
sindicatos] para defender os operários contra seu Estado e para os operários
defendam o nosso Estado" (Lênin, 1982, p. 7).
Entre o projeto de Lênin e todo o processo acontecido na União Soviética
existem claras e óbvias diferenças. As considerações esboçadas anteriormente
tornam as proposituras de Lênin distintas de tudo aquilo que foi realizado
na União Soviética a partir da ascensão de Stálin ao poder. Por motivos que
vão desde as condições históricas, políticas e econômicas, até os desvios do
taticismo de seus líderes, após a morte prematura de Lênin

6 A solução tática dada por Stalin aos problemas que então se


apresentavam foi o desmantelamento radical de qualquer tendência
capaz de se transformar em condição preparatória de uma democracia
socialista. O sistema dos sovietes deixou na prática de existir. Os
principais órgãos do Estado, ainda que permanecessem formalmente
democráticos, ganharam uma forma que, com exceção do sistema
de partido único, tornava-os bastante próximos dos parlamentos da
democracia burguesa; os niveis inferiores do sistema dos sovietes
reduziram-se a órgãos de administração local, eleitos do mesmo
modo que tais parlamentos. Desapareceram assim todas as tentativas

144
ideológicas dos últimos anos de Lênin, que visavam a construir uma
democracia socialista real. A participação na vida política, na vida
social geral, podia agora, no melhor dos casos, atribuir aos indivíduos
algo similar ao idealismo do citoye». A tendência dominante na vida
dos cidadãos tornou-se, universalmente, a burocratização da práxis
política e administrativa. (Lukács, 2008b, p. 153.)

Vale destacar que as palavras de Lukács, que resgatam uma ampla


discussão feita por Lênin, não restringem a crítica da burocracia apenas
à sociedade capitalista, pelo contrário, identifica raizes idênticas nos dois
subsistemas do capital (cf. Mészáros, 2011; em particular capo 17). Nessa medida,
vislumbra sua presença também no socialismo real, que sob a figura do capital
de Estado igualmente reproduziu os mecanismos burocráticos da sociedade
burguesa, embora com suas próprias especificidades. Em comum, ambas
implicam a subjugação das subjetividades, a redução das ações dos indivíduos a
espontaneísmos, a atos imediatistas que negligenciam os aspectos mais gerais da
sociabilidade. Em última instância, implica um processo de reificação, no qual
as formas habituais das relações sociais são tomadas como elementos perenes,
naturais, fatos insuperáveis da vida. A ação emancipatória dos homens implica
decerto para esses autores o combate às formas variadas da burocracia, e, para
tanto, a discussão do problema da "democracia socialista" é decisiva.

Referências

ARISTÓTELEs.Ética a NicÔmaco. São Paulo, Abril Cultural, 1987.

COH ,Gabriel. Crítica e resignação,fundamentos da sociologiade Max Weber. São Paulo,


TAQ,1979.

FORTES,Ronaldo Vielmi. A dialéctica entre o ideal e o material: considerações 16


sobre o complexo categorial da política na obra tardia de Lukács. Revista Trabalho I
e Educação, v. 24, n. 1, 2015.

LENIN,Vladimir llich. Que fazer? São Paulo, Editora Hucitec, 1988.

____ oO desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de formação do


mercado interno para a grande indústria. São Paulo: Nova Cultural, 1985.

I . J
I
____ o O Estado e a revolução.São Paulo: Global, 1987.

____ "Uber clie Gewerschaften, clie gegenwartige Lage und clie Fehler
o

Trotskis". ln: Lenin Werke, v. 32. Berlim: Dietz Verlag, 1982.

LUKÁCS, Gyorgy; Die Zerstôrung der Vernunft, Band 3: lrrationalismuns und


Soziologie. Berlim: Hermann Luchterhand Verlag, 1974.

____ o"Marx e o problema da decadência ideológica". ln: Marxismo e teoria


literária. São Paulo: Expressão Popular, 2010a.

____ "Tribuno do povo ou burocracia?". ln: Marxismo e teoria literária. São


o

Paulo: Expressão Popular, 2010b.

____ ,. "Meu caminho até Marx". ln: Socialismo e Democratiiflção. Rio de


Janeiro, Editora UFR], 2008a.

____ "O processo de democratização". ln: Socialismo e Democratização. Rio


o

de Janeiro, Eclitora UFRJ, 2008b.

MAR..X, Karl. Grundrisse. São Paulo, Boitempo, 2011.

____ o Sobre a questãojudaica. São Paulo Boitempo, 2010.

___ o O capital, livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

MÉSZ.ÁROS, lstván. Para além do capital. São Paulo, Boitempo, 2011.

PERNOUD, Régine. Les origines de Ia bourgeoisie.Paris: Presses Universitaires de


France, 1969.

TERTULIAN, Nicolas. Lukács e o stalinismo. Revista On-line de Educação e Ciências


6
Humanas, n. 7, ano IV, 2007.

146

Das könnte Ihnen auch gefallen