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Nietzsche e a grande saúde: O uso do diagnóstico tipológico contra a

metafísica
Nietzsche and the great health: the typological diagnostic use against metaphysics

Adriana Belmonte Moreira1

Resumo:

Esse artigo objetiva mostrar o papel central que o corpo assume no pensamento de Nietzsche e
como ele faz uso do diagnóstico tipológico como arma de combate à metafísica, mostrando que
somente pôde realizar a tarefa de transvaloração dos valores porque dotado de grande saúde.
Colocando em xeque o pilar do modo de pensar metafísico, a separação entre corpo e alma e a
divisão de mundos dela derivada, o filósofo alemão quer evidenciar, sobretudo, a partir de seus
escritos de caráter autobiográfico, que outra saúde é necessária àqueles desejam criar novos
valores, afirmativos da efetividade. Saúde esta identificada a um tipo que pode até mesmo
transitar pela décadence, assumir sua perspectiva, sem com ela se identificar.

Palavras-chave: Metafísica. Tipologia. Grande Saúde. Décadence.

Abstract:

This article aims at showing the central role that the body takes in Nietzsche's thinking and how
the philosopher makes use of typological diagnosis as a combat weapon against metaphysics,
showing that he could only have performed the task of transvaluation of values thanks to his great
health. By putting into stake the pillar of thinking in metaphysical mode, the separation between
body and soul combined with the world’s division derived therefrom, the German philosopher
intends to highlight, based on his writings of autobiographical character, which other health is
necessary for those wishing to create new values, affirmatives of effectiveness. This health linked
to a type can even transit by décadence, assuming its perspective, without relating to it.

Keywords: Metaphysics. Typology. Grand Health. Décadence.

No pensamento de Nietzsche, por oposição a toda tradição filosófica que atribuiu ao


espírito um estatuto privilegiado, o corpo é considerado um problema filosófico de primeira

1
Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. Docente da Universidade Federal do Paraná – UFPR
- Curitiba/ Paraná/Brasil. e-mail: adribelmonte@hotmail.com

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ordem e colocado no centro de uma empreitada crítica2. É notadamente em suas obras da


considerada última fase de produção filosófica (1883-1888), quando passa a se questionar sobre o
valor dos valores, no contexto do procedimento genealógico, e redige escritos de caráter
autobiográfico, como os Prefácios de1886 às obras publicadas e Ecce Homo (1888), que o
filósofo faz ver que a radicalidade de sua crítica à matriz de pensamento ocidental reside no fato
de que ela se ancora nas “disposições fundamentais da própria vida” (EH, Por que sou tão
esperto, 10).
Em tal período, examinando a relação entre filosofia e saúde, Nietzsche se apresenta
como psicólogo e genealogista, perito em examinar filosofias, identificar sintomas e diagnosticar
a doença dos tipos de corpo que as produziram. Como psicólogo, tomando os pensamentos como
sintomas de uma condição de corpo, e como genealogista, investigando o caráter vital das
estimativas de valor, é através de uma sintomatologia e uma tipologia que ele trava seu combate à
tradição metafísica. Entendendo que toda filosofia é expressão de uma diferente configuração
fisiopsicológica, que pensamentos e valores devem ser considerados sintomas de saúde ou doença
de um tipo, o filósofo alemão não apenas opera sua crítica por este viés, como também apresenta
sua autodiagnose tipológica, como forma de mostrar que sua obra, antimetafísica par excelence,
afirmativa do corpo e dos processos da efetividade, somente se fez possível por ser ele mesmo
dotado de grande saúde.
De modo mais preciso, se a matriz do pensamento ocidental separou o corpo do âmbito
dos valores, o filósofo o coloca no centro de sua tarefa genealógica. Com efeito, ao se imbuir da
tarefa de realizar o exame dos valores, detectando se são sintomas de grande saúde ou décadence
dos tipos que os engendraram, ele passa a operar sua crítica através de uma diagnose tipológica.
O critério que utiliza para realizar sua análise é a mobilização do corpo, sua capacidade de
ensaio, experimentação e criação de pensamentos, mas, sobretudo, de criação de sentido e
valores, afirmativos da vida. Para tanto, Nietzsche parte da crítica à separação entre alma e corpo,
que considera ser a matriz do modo de pensar metafísico. Pois, como deixa claro no parágrafo
intitulado “História de um erro”, se a divisão de mundos é a marca da tradição filosófica
ocidental, é dessa primeira separação que ela decorre (CI, Como o “verdadeiro mundo” acabou
por se tornar em fábula).

2
O presente trabalho é um recorte de nossa dissertação de mestrado intitulada “Corpo, saúde e medicina a partir da
filosofia de Nietzsche”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP em 2007.

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Tomando a negação do corpo e da efetividade como sintomas de tipos décadents,


Nietzsche se volta às filosofias, a seus conceitos fundamentais, com o intuito de identificar se são
expressão de tipos saudáveis ou doentios. É sob essa perspectiva que, para ele, a concepção
cartesiana de corpo figura na história da filosofia de modo exemplar. Como máxima expressão da
negação do corpo e do mundo efetivo, Descarte atribuiu ao cogito o estatuto de primeira certeza
ontológica, consolidando a primazia da alma, em detrimento ao corpo. Através disso, ele levou a
termo a separação entre corpo e alma, germinada na tradição socrático-platônica, rematando-a
através da distinção substancial entre res extensa e res cogitans.
Por oposição a Descartes, Nietzsche apresenta uma concepção de corpo radicalmente
diferente da do filósofo francês. Se Descartes, em As Paixões da Alma, apresenta o corpo em
analogia a um relógio, ou outro autômato que se move por si mesmo (DESCARTES, 1999), em
manifesto embate, Nietzsche dispara; “o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um
único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (ZA, Dos desprezadores do
corpo). Se Descartes apresenta uma fisiologia que procura aclarar o funcionamento de um corpo-
máquina, um corpo inteligível em seus mínimos processos e conjugado a uma alma com a qual,
substancialmente, não irá se identificar, de modo antagônico, o filósofo alemão escolhe a
multiplicidade, o combate, as relações de mando e obediência e lança mão do dinamismo de
impulsos para expressar a fisiopsicologia de sua “grande razão”, da qual a “pequena razão” será
apenas brinquedo e instrumento.
Ainda, se Descartes afirma, nas Meditações, a certeza de sua essência pensante,
inextensa, substancialmente distinta do corpo, Nietzsche protesta: Descartes, pai do racionalismo,
“reconheceu autoridade apenas à razão: mas a razão não passa de instrumento, e Descartes era
superficial” (BM 191). De igual modo, em Assim falava Zaratustra, quando direciona sua palavra
aos “desprezadores do corpo”, o alvo é também a superficialidade cartesiana:

Todo eu sou corpo e nada mais; a alma não é mais que uma palavra que designa uma
parte do corpo (...) Essa pequena razão que tu chamas de “espírito”, ó meu irmão, é um
pequeno instrumento do teu corpo e um brinquedo da tua grande razão (ZA, Dos
desprezadores do corpo).

É, pois, de modo estratégico, que o filósofo procurará subtrair a fachada da “pequena


razão” cartesiana, apresentando sua proveniência no ordinário terreno da gregariedade e dando a
conhecer seu caráter meramente instrumental. E se assim o faz é porque toma partido de uma
“grande razão”, que abarca a “pequena razão” e a restitui ao corpóreo.

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Realizando seu exame genealógico, Nietzsche diagnostica que para erguer o enorme
edifício metafísico da modernidade bastou a superstição da alma, “que, como a superstição do
sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos” (BM, Prólogo). Além disso, ele aponta que, após
sucessivos refinamentos, a alma platônica encontrou na res cogitans cartesiana sua versão mais
rematada. Desta forma, ao apresentar o corpo como multiplicidade de impulsos em luta e afirmar
que até mesmo a alma é formada a partir da relação desses impulsos entre si (GM II, 16), o
filósofo alemão procura minar o primeiro dualismo metafísico, a partir do qual todos os demais
foram cunhados. Falaciosas, a imortalidade da alma e a criação de um além-mundo retiram da
vida todo sentido:

Se se põe o centro de gravidade da vida, não na vida, mas no “além” - no nada -, tirou-se
da vida toda gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão,
toda natureza que há no instinto - tudo o que é benéfico nos instintos, que propicia a
vida, que garante futuro, que desperta confiança. Viver de tal modo, que não tenha mais
nenhum sentido viver, esse se torna agora o “sentido” da vida...” (AC 43).

Na mesma direção, no Crepúsculo dos Ídolos, diz que o mal-estar em relação ao corpo e
aos processos efetivos é o que leva os metafísicos a realizarem uma vingança contra a vida,
através da “fantasmagoria de uma ‘outra’ vida, de uma vida ‘melhor’” (CI, A “razão” na
filosofia, 6). Eles operam uma divisão de mundos porque: “a morte, a mudança, a idade, do
mesmo modo que a geração e o crescimento são para eles objeções - e até refutações” (CI, A
“razão” na filosofia, 1). Assim, se defendem a cisão da efetividade é porque procuram
veementemente se afastar dos processos próprios ao corpo, do nascimento à morte. Indispostos
com o efetivo, eles procuram se identificar a um espírito vinculado a “outro” mundo, visto que o
corpo está atrelado a “este” mundo, bem como a tudo o que lhe é próprio. Destarte, enaltecem o
“outro” mundo, pois esse se remete à unidade, identidade, perenidade e indivisibilidade. Ao
mesmo tempo, condenam “este” mundo, a efetividade, através da fabulação de uma “outra” vida
em um mundo melhor3.

3
Giacóia Júnior (2001), em Nietzsche como psicólogo, ao reconstituir a crítica de Nietzsche ao privilégio concedido
à consciência pela filosofia e psicologia racionais, diz que, ao ver do filósofo alemão, a doutrina cristã da
imortalidade da alma é uma interpretação vulgarizante do platonismo, e é ela que prepara as bases para a
consolidação do que viria a ser a moderna cultura ocidental. O comentador afirma que, para Nietzsche, é de um
platonismo difuso que se teria nutrido a crença inveterada no privilégio da parte racional da alma, fonte do
conhecimento verdadeiro, pelo qual se atesta nosso parentesco originário com um mundo divino. Esclarece ainda que
não haveria nenhuma possibilidade de partição do real em dois mundos se não fosse porque a alma é em nós o
princípio que nos liga ao verdadeiro mundo, se não fosse o caráter e a natureza divina da nossa alma. Nessa matriz de
pensamento, a parte racional de nossa alma seria, pois, de origem divina, superior ao corpo e distinta dele, sendo que:
“A condição de que essa alma se volte para a sua pátria de origem e a ela retorne é a negação desse mundo das

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Em Para Além de Bem e Mal, no contexto da crítica ao que denomina “atomismo da


alma”, Nietzsche põe em questão a crença metafísica que vê a alma como algo indestrutível,
eterno, indivisível:

Seja dito entre nós que não é necessário, absolutamente, livra-se com isso da “alma”
mesma, renunciando a uma das mais antigas e veneráveis hipóteses (...) Está aberto o
caminho para novas versões e refinamentos da hipótese alma: e conceitos como “alma
mortal”, “alma como pluralidade do sujeito” e “alma como estrutura social de impulsos e
afetos” querem ter, de agora em diante, direitos de cidadania na ciência (BM 12).

A partir de agora, a alma cartesiana, una, indivisível, incorruptível, pode concorrer com
outras versões de alma. Versões nas quais assume características até então próprias ao corpo,
como mortalidade, pluralidade, ser o locus de impulsos e afetos. E sob a mesma óptica, o corpo
pode ser apresentado como “uma estrutura social de muitas almas” (BM 19). Com isso, Nietzsche
coloca em xeque a distinção substancial cartesiana, não por abrir mão da alma, mas por remeter
corpo e alma a um mesmo registro: o da pluralidade de impulsos e afetos (Triebe und Affekete)4.
Em outro parágrafo de Para Além de Bem e Mal, conjetura a impossibilidade de descer
ou subir a outra “realidade” a não ser a dos impulsos. A partir disso, afirma ser o pensar “apenas
uma proporção desses impulsos entre si” (BM 36). Na mesma trilha, na Genealogia da Moral, ao
refletir sobre os tempos em que o homem passou a viver de forma gregária e pacífica, apresenta a
alma sob a perspectiva dos impulsos que se interiorizaram. Os impulsos deixaram de ser os
reguladores da ação dos homens e ficaram reduzidos a sua “consciência”, ao “pensar, inferir,
calcular, combinar causa e efeito” (GM II, 16). Os homens, inibidos pelas injunções da vida
gregária, tiveram seus instintos, os “velhos guias” do homem livre, selvagem e errante, voltados
para dentro; “isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o
que depois se denomina sua ‘alma’” (GM II, 16).

sombras, e, mais precisamente, do corpo” (GIACÓIA Jr., 2001, p.55). Assim, podemos dizer que é a vista do
empenho nietzschiano em desvelar a trajetória que vai do pensamento platônico-cristão à modernidade o que conduz
o comentador a afirmar que “a genealogia nietzschiana esforça-se por demonstrar a persistência desses mesmos
pressupostos tanto no pensamento medieval quanto na filosofia moderna, sendo o dualismo de Descartes uma de
suas mais significativas tentativas de transfiguração filosófica” (GIACÓIA JÚNIOR, 2001, p.55).
4 No conjunto de seus escritos, Nietzsche faz uso dos termos impulso (Trieb), afeto (Affekt) e, por vezes, instinto
(Instinkt), de modo intercambiável. O termo força (Kraft), ele utiliza, principalmente, na exposição de sua tese
cosmológica. O conceito vontade de potência (Wille zur Macht) aparece na obra publicada e, em grande parte, em
fragmentos póstumos. Em nossa argumentação, será utilizado somente o termo impulso (Trieb), em uma acepção
genérica, em referência aos processos da efetividade. Assim escolhemos, devido ao caráter dinâmico e ativo que o
termo impulso (Trieb) comporta.

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Sendo assim, a alma não ultrapassa o campo da necessidade (Not) de obstrução da


descarga dos impulsos, imposta pela vida gregária e pacífica. Nada de necessário
(Notwendigkeit), em sentido metafísico, aqui se apresenta. Se, para Descartes, o pensamento é
atributo de uma res cogitans, para o filósofo alemão, mesmo o pensar pode ser apresentado a
partir das relações entre impulsos, tal como o agir, o sentir e o querer.
Desse modo, Nietzsche pode recorrer à fisiologia para falar do espírito e afirmar que
“suas necessidades e faculdades, aqui, são as mesmas que os fisiólogos estabelecem para tudo
que vive, cresce e se multiplica” (BM 230). Ele até mesmo apresenta a semelhança do espírito a
um estômago e ressalta sua “força digestiva” em processos de assimilação, digestão e
incorporação de experiências. Nessa mesma direção, na Genealogia da Moral, apresenta as
assimilações de vivências, no mesmo registro das assimilações digestivas:

Um homem forte e bem logrado digere suas vivências (feitos e malfeitos incluídos)
como suas refeições, mesmo quando tem de engolir duros bocados. Se não “dá conta” de
uma vivência, esta espécie de digestão é tão fisiológica quanto a outra - e muitas vezes,
na verdade, apenas uma consequência da outra (GM III 16).

Aproximando ambas as assimilações, psíquica e digestiva, a cisão entre o “espiritual” e


o “corporal” perde o sentido, podendo-se compor uma fisiopsicologia, na qual os chamados
processos fisiológicos e psicológicos são igualmente “resultantes” das múltiplas interações
estabelecidas entre impulsos.
Por essa perspectiva, o homem é uma configuração fisiopsicológica que resulta da
interação de impulsos: “‘L‘effet c’est moi’: ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem
construída e feliz, a classe regente se identifica com os êxitos da comunidade” (BM 19). Para
Nietzsche, em analogia a uma comunidade onde são estabelecidos processos de dominação, uma
configuração fisiopsicológica é resultante das múltiplas relações de mando e obediência
estabelecidas entre impulsos. Nesse processo, essas interações ocorrem de modo combativo e
sem termo. Isso significa dizer que a ação de impulsos pode ser traduzida por uma luta
ininterrupta por domínio.
No decorrer dessa dinâmica, impulsos dominam ao mesmo tempo em que são
dominados, vencem algumas resistências, mas subjugam-se a outras, formando uma rede
hierárquica e flutuante de interações. Isso explica a multiplicidade de configurações
fisiopsicológicas como expressão deste efetivar-se de impulsos, que compõe no decorrer da luta
as mais diversas ordenações hierárquicas. Sendo assim, se o filósofo alemão faz referência a uma

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“estrutura social” de impulsos e afetos, é a essa inaudita hierarquia (Rangordnung) de mando e


obediência que se refere.
Com isso, o filósofo nos faz ver que mesmo o que denominamos de “espírito” é uma
resultante dessas múltiplas relações de mando e obediência, do assenhorear-se e do sujeitar-se
simultâneos de um conjunto de impulsos. Sob essa óptica, em Para Além de Bem e Mal,
apresenta o espírito como resultado da atividade de um conjunto de impulsos que “quis” firmar-
se como único, que “teve” uma vontade restritiva e “desejou” passar da multiplicidade à
simplicidade (BM 230). Num processo de simplificação, um conjunto de impulsos efetivou-se
como determinada configuração hierárquica e firmou-se como um “Eu”. Desse modo, não há um
“Eu”, aos moldes cartesianos, responsável pelos atos de mandar e obedecer. Há somente uma
“pluralidade de sujeitos” sequiosos por mando e precedência, estabelecendo interações nas quais,
ao mesmo tempo, se obedece e se manda e, mandando, se cumpre obediência:

Somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte que
obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão, resistência, movimento
(...) por outro lado, temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade,
através do sintético conceito de “eu” (BM 19)

Pelo seu viés, o “espírito puro”, a una, indivisível e incorruptível res cogitans é apenas o
resultado de um processo de simplificação do “querer” tomar precedência de uma multiplicidade
de impulsos em combate.
Não obstante, apesar de Nietzsche atribuir aos impulsos um “querer”, nos alerta que não
são agentes de uma ação. Ele esclarece que não existe um “substrato” para a ação de impulsos: “o
agente é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo” (GM I, 13). Equivocadamente,
Descartes tomou de empréstimo o “eu” da linguagem para servir de agente ao pensamento. Ao
deduzir do ato de pensar um “eu” que pensa, um sujeito, uma res cogitans, ele se enredou num
mero “hábito gramatical”:

Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que
esses supersticiosos não admitem de bom grado - um pensamento vem quando “ele”
quer e não quando “eu quero”, de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer:
o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. Isso pensa: mas que esse “isso” seja
precisamente o velho e decantado ‘eu’ é, dito de uma maneira suave, apenas uma
suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. (...). Aqui se
conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda a atividade requer
um agente, logo –“ (BM 17).

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O esquema cartesiano está pautado no modelo lógico-gramatical Sujeito-Predicado-


Objeto, que faz derivar da ação pensar (Predicado), um agente para a ação (Sujeito) e, ainda, uma
ideia (Objeto). É, portanto, a partir de um preconceito lógico-gramatical que Descartes encontrou
seu “Eu” a que ele atribuiu estatuto ontológico.
Em outro parágrafo de Para Além de Bem e Mal, estrategicamente, Nietzsche faz uso do
segundo preceito metódico cartesiano de dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas
quantas possíveis e necessárias para melhor resolvê-las (DESCARTES, 1999), para evidenciar,
através da própria artilharia do filósofo francês, em que medida ele não conseguiu desvencilhar-
se da “sedução da linguagem”:

Se eu decomponho o processo que está expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma
série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível -, por
exemplo, que sou eu quem pensa, que em geral tem de haver algo que pensa, que pensar
é uma atividade e efeito da parte de uma essência que é pensada como causa, que há um
“eu” e, enfim, que já está estabelecido firmemente o que se deve designar como pensar –
que eu sei o que é pensar. Pois, se eu já não tivesse decidido sobre isso comigo mesmo,
em que me basearia para distinguir se o que acaba de acontecer não é, talvez, “querer”
ou “sentir”? Basta dizer que aquele “eu penso” pressupõe que eu compare meu estado no
instante com outros estados que conheço em mim, para assim estabelecer o que ele é:
dada essa remetência a um saber de outra precedência, ele não tem para mim, em todo
caso, nenhuma certeza imediata - (BM 16).

Descartes deduziu do “pensar”, um agente ao pensamento, um “eu” como causa do ato


de pensar, e, como último elo da cadeia, a existência do eu como substância, como coisa pensante
(res cogitans). Contudo, para estabelecer o que seria o pensar, necessitou de um saber de outra
procedência. Lançou mão da comparação com outros estados, como o sentir e o querer, para
determinar o que seria o pensamento. De tal modo que outros estados, até mesmo a sensibilidade,
concorreram para a afirmação da certeza cartesiana. Desta vista, Nietzsche conclui que o filósofo
francês não alcançou nada de “imediato” como, em princípio, julgava.
Para Nietzsche, o pensar se dá na ação de impulsos, assim como o pensamento
consciente, expresso em linguagem, é um efetivar-se de impulsos, que “tomou a palavra” (GM I,
2). Sendo assim, quando um pensamento subitamente emerge em palavras, é a mais simples
expressão do combate: “Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um
pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma - jamais tive
opção” (EH, Assim falou Zaratustra, 3). Por isso, o filósofo diz que, para alguns, é difícil afastar
a ideia de ser mera encarnação, mero porta-voz, mero medium de forças poderosíssimas. Além
disso, esclarece que grande parte do que se processa na luta de impulsos não se torna consciente e

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a linguagem sequer tangencia o que ocorre nos “subterrâneos” das configurações


fisiopsicológicas: “nossas vivências mais próprias, não são nada tagarelas. Não poderiam
comunicar-se, se quisessem. É que lhes falta a palavra” (CI, Incursões de um Extemporâneo, 26).
Há um universo que, involuntariamente, toma parte no dizer “Eu”, onde ocorre um combate
silencioso, do qual vem à tona, em linguagem, somente um ou outro resultado da contenda que se
trava.
Entretanto, o filósofo francês se aferrou ao resultado do combate e ignorou que por trás
de seu “Eu” há uma multiplicidade de fileiras de impulsos que ora entoam gritos de guerra, ora
são subjugados em silêncio. Ele sequer suspeitou que há uma “grande razão”, em nada distinta do
corpo, que apenas procede como “Eu”: “‘Eu’ - dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior -
no que não queres acreditar - é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz o eu”
(ZA, Dos desprezadores do corpo). De outro modo, dentre os desprezadores do corpo, Descartes
procurou afirmar ser uma coisa pensante e inextensa e ter a certeza de que sua alma é inteira e
verdadeiramente distinta de seu corpo e que pode existir sem ele (DESCARTES, 1999). Mas, se
a “pequena razão” cartesiana guarda, por principio, completa independência do corpóreo, através
da “grande razão”, Nietzsche revela que esta lhe é apenas instrumento:

Instrumentos e brinquedos são os sentidos e o espírito; atrás deles acha-se, ainda o ser
próprio, O ser próprio procura também com os olhos dos sentidos, escuta também com
os ouvidos do espírito. E sempre o ser próprio escuta e procura: compara, subjuga,
conquista, destrói. Domina e é, também, dominador do Eu. Atrás de teus pensamentos e
sentimentos, meu irmão, acha-se um soberano poderoso, um sábio desconhecido - e
chama-se o ser próprio. Ele habita no teu corpo, é o teu corpo (...) O corpo criador criou
o espírito como a mão da sua vontade (ZA, Dos desprezadores do corpo).

Como instrumento do corpo, o espírito é guiado por injunções que nem sequer suspeita.
É, pois, uma “grande razão” o que dita à “pequena razão” seus pensamentos e palavras. Assim,
de modo sagaz, Nietzsche não pede aos desprezadores do corpo que mudem de opinião ou
doutrina, mas os incita a se desfazerem de seus próprios corpos, o que os tornaria mudos (ZA,
Dos desprezadores do corpo). Descartes, ao despojar-se do corpo, colocaria em xeque a
possibilidade mesma de um filosofar e estaria condenado definitivamente ao mutismo5.

5
Segundo Müller-Lauter (1997), em A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche, é pelo viés da multiplicidade
que o filósofo alemão se opõe à unidade, como um primeiro simples, defendida pela metafísica, pois, em sua
filosofia não há o um, mas apenas multiplicidades se reunindo e se separando. Sendo assim, qualquer unidade
somente poderá ser pensada no sentido de organização de um múltiplo, como uma multiplicidade em combate, do
qual decorrem múltiplas formações de domínio (Herrschafts-Gebilde). Por isso, em sua filosofia, do singular somos
sempre remetidos ao plural. O corpo é uma configuração (Gestalttungen), um ajustamento hierarquicamente

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Em suma, ao remeter corpo e alma ao mesmo registro, o da multiplicidade de impulsos


em combate, Nietzsche esboroa a separação entre os domínios fisiológico e psicológico e
apresenta uma fisiopsicologia, na qual sua tarefa crítica se ancora. É a partir dela que, como
psicólogo, ao perscrutar a relação entre saúde e filosofia, considera os pensamentos sintomas de
determinados corpos, “de seu acerto ou desacerto, de sua plenitude, potencialidade, autodomínio
na história, ou então de suas obstruções, cansaços, empobrecimentos, de seu pressentimento do
fim, de sua vontade de fim” (GC, Prefácio, 2). Mais precisamente, ao direcionar seu olhar para os
modos de pensar e valorar, ele procura diagnosticar a necessidade que comanda por trás deles:
“sirvo-me agora desta distinção capital: em cada caso, pergunto: ‘aqui foi a fome ou o supérfluo
que se tornou criativo?’” (GC 370).
Com efeito, no âmbito do procedimento genealógico, ao se perguntar pelo valor dos
valores, Nietzsche investiga se a moral é uma influência fecunda ou um perigo, um veneno, um
narcótico para o tipo (GM, Prólogo, 6). E conjetura sobre a significação do sofrimento para os
tipos, se ele conduz à criação de ardis de autoconservação ou de sentidos e valores afirmativos
dos processos efetivos. Em seus escritos de caráter autobiográfico, Nietzsche conta que até
mesmo seus episódios de dor e enfermidade não o fizeram negar a vida, ao contrário,
contribuíram para que realizasse sua tarefa filosófica. Precisamente por isso, ao realizar sua
autodiagnose tipológica, ele se considera um tipo saudável.
Para encetar sua análise diagnóstica, Nietzsche elege por critérios o ensaio de
ordenações hierárquicas de impulsos, a experimentação de diferentes modos de querer, sentir e
pensar, que culminam na criação de sentido e valor. De acordo com ele, todo sentido emerge das
relações estabelecidas entre impulsos e é unicamente desse conflito que os valores advêm: “Se
falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a óptica da vida: a vida mesma nos coage a
instituir valores, a vida mesma valora através de nós, quando instituímos valores” (CI, Moral
como contranatureza, 5). Com isso, ele se recusa a deslocar o sentido da existência para um além-

estruturado de uma multiplicidade em combate. E, desse processo, nem mesmo a consciência pode furtar-se. Somos
uma multiplicidade que se imaginou uma unidade: “a consciência, o intelecto, serve como meio com a qual ‘eu’
‘me’ engano a mim mesmo” (MÜLLER-LAUTER, p.79, 1997). Embora a consciência dê a entender para si mesma
uma unidade, não há nenhum individuum. A unidade é somente o resultado de sua atividade simplificadora que,
chancelada pelos preconceitos da metafísica da linguagem, toma o complexo pelo simples, o diverso pelo igual, o
múltiplo pelo uno. Nesse sentido, o Eu da linguagem é apenas uma unidade simulada pela consciência. No limite, o
que faz com que o tomemos por um substrato é um falseamento operado pela consciência e consolidado pela
linguagem comum. Portanto, Müller-Lauter conclui que é por não advogar uma unidade fundamental, recorrendo á
multiplicidade, que o filósofo alemão consegue se afastar da tradição metafísica, cuja principal característica é
procura deduzir da multiplicidade um primeiro simples (cf. MÜLLER-LAUTER, p.71-72, 1997).

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mundo (GM III, 28) e nega a origem transcendente dos valores (ZA, Dois mil e um alvos). E
desta forma, esclarece que a sede dos sentidos e valores é a própria vida, identificada às múltiplas
interações estabelecidas entre os impulsos.
Por fim, Nietzsche mostra que a revolta contra os processos da efetividade é ditada pelo
corpo mesmo. Expondo a visceralidade de todo pensamento, ele afirma ser o filosofar uma “arte
de transfiguração” do corpo em espírito. É nessa direção que, no prefácio de A Gaia Ciência,
assevera que os filósofos não têm a liberdade de separar o corpo da alma, pois não somos “rãs
pensantes”, nem “aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com vísceras congeladas”
(GC, Prefácio, 3). Além disso, afirma que inerente a toda parturição, o processo de nascimento de
uma filosofia não prescinde da dor (GC, Prefácio, 3). Por isso, diz ser o criador (Zeuger) uma
“pessoa-mãe”, alguém que sabe de gravidezes e partos do espírito (GC 369). E uma vez que
recorre à gravidez e ao parto para expressar os processos de criação filosófica, dá às suas palavras
uma conotação visceral e sanguínea. Em sua autobiografia, diz que em seus escritos as palavras
são cobertas de sangue, vividas, profundas, interiores e que nelas estão presentes os maiores
sofrimentos, mas sem que as feridas sejam sentidas como obstáculos (EH, As extemporâneas, 3).
Portanto, se, ironicamente, é por uma questão de corpo que os metafísicos se apegam à
perspectiva da consciência, à univocidade de sentido da “pequena razão”, quando Nietzsche
revela a polissemia dos processos efetivos e se opõe à separação entre corpo e alma e a toda sorte
de dualismos que daí decorrem, longe de ser sua atitude uma opção puramente espiritual, assim
se posiciona porque apresenta distinta índole de corpo (GC, Prefácio, 2). De modo mais preciso, é
por assumir diferente perspectiva em relação à tradição filosófica que, em sua autodiagnose
tipológica, pode se considerar dotado de grande saúde.
Com efeito, como psicólogo, Nietzsche toma por critério diagnóstico de saúde ou
doença o ensaio de hierarquias de impulsos, enquanto abertura de possibilidade para
experimentação de diferentes modos de querer, sentir e pensar. No Crepúsculo dos Ídolos, afirma
que efetividade nos mostra “uma riqueza fascinante de tipos, a exuberância própria de um
pródigo jogo e mudança de formas” (CI, Moral como Contranatureza, 6) que, de acordo com as
diferentes ordenações hierárquicas formadas no decorrer da luta de impulsos, adotam
perspectivas as mais diversas (GC 374). Por esse viés, diagnostica que o estreitamento
perspectivo da filosofia metafísica é expressão de décadence e, através do mesmo olhar, que sua
filosofia, por resultar da maestria em “transtrocar perspectivas” (EH, Por que sou tão sábio, 1), é

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sintoma de grande saúde. Desse modo, se se considera um tipo saudável, malgrado seus
frequentes episódios de doença, é porque percebeu que os tipos doentios não são,
necessariamente, aqueles que vivenciam uma enfermidade, mas os que adotam uma estreita
perspectiva, os que se atém a um único ponto de vista.
Mas, se por esse prisma ele diz ser uma diferença perspectiva o que faz com que seu
pensamento difira do da tradição filosófica, como genealogista, ao aventar o “caráter
perspectivístico das estimativas de valor” (HH I, prefácio, 7), faz com que sua crítica receba
outro matiz. No âmbito genealógico, ele relaciona o diagnóstico da grande saúde e da décadence
às “tábuas de bens”, vistas como sintoma e medicamento para os tipos que as impôs6. Nesse
registro, parte do pressuposto que é somente por ser um recorte da efetividade que o homem pode
se reputar como o que valora e mede, como o “animal estimador” (GM II, 8). Através disso,
mostra que a sede dos valores não se encontra em um além-mundo, mas que é do homem que
provém todo sentido e valor:

Em verdade, foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal. Em verdade,
não o tomaram, não o acharam, não lhes caiu do céu em forma de voz. Valores foi
somente o homem que pôs nas coisas, para se conservar - foi ele somente que criou
sentido para as coisas, um sentido de homem! Por isso ele se chama de ‘homem’, isto é:
o estimador (ZA, Dois mil e um alvos).

Se os metafísicos procuram despojar a efetividade de seu caráter polissêmico e


valorativo é porque, ao estarem em processo de décadence, permanecem restritos à criação de
ardis de autoconservação. De outro modo, por se considerar expressão de um dinâmico efetivar-
se de impulsos, Nietzsche se considera dotado de grande saúde para poder realizar a tarefa de
criação de novos valores (BM 211). Destarte, através de sua diagnose tipológica, ele procura
tanto fazer uma crítica à décadence de seu tempo como apontar a necessidade de uma grande
saúde àqueles que intentam transvalorar os valores dominantes, colocando em cena outros que
não mais expressem aspirações contrárias aos processos efetivos.

6
Deleuze (1970), em Nietzsche et la Philosophie, afirma que a tipologia é a “peça mestra” da genealogia
nietzschiana. Ele acredita que através dela Nietzsche radicaliza sua crítica genealógica. Para ele, a genealogia é a
verdadeira forma de filosofar a golpes de martelo: “A filosofia dos valores, tal como ele a instaura e a concebe, é a
verdadeira realização da crítica, a única maneira de realizar a crítica total, quer dizer, de fazer a filosofia a ‘golpes
de martelo’” (DELEUZE, 1970, p.01). A seu ver, o filósofo alemão, ao apresentar como seu problema crítico o valor
dos valores, coloca em questão a avaliação donde procede o valor, ou seja, o problema de sua criação. Por esse viés,
todos os valores são considerados sintomas de maneiras de ser, dos modos de existência daqueles que avaliam: “É
porque temos sempre as crenças, os sentimentos, os pensamentos que nós merecemos em função de nossa maneira
de ser e de nosso estilo de vida” (DELEUZE, 1970, p.02).

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Em suas exposições sobre a grande saúde, Nietzsche a apresenta como uma saúde
necessária àqueles que querem experimentar diferentes modos de querer, sentir e pensar. Isso
porque, a partir de um olhar retrospectivo, o filósofo percebeu que foi sua saúde o que lhe
ofereceu condições para realizar inúmeras experimentações com o pensamento. No prefácio ao
primeiro volume de Humano demasiado humano, ao reputar que a singularidade de todo pensar
encontra esteio nas diferentes ordenações hierárquicas, formadas no decorrer da luta de impulsos,
esclarece que, em seu próprio caso, teve que transitar por inúmeros estados de corpo para
somente então poder divisar seu problema filosófico:

Suposto que seja do problema da ordenação hierárquica que podemos dizer que ele é
nosso problema (...) tínhamos que experimentar os estados mais múltiplos e
contraditórios de indigência e felicidade na alma e no corpo, como aventureiros e
circunavegadores daquele mundo interior que se chama “homem”, como medidores
daquele “superior” e “um-sobre-o-outro” que igualmente se chama “homem” (HH I,
Prefácio, 7).

Por considerar ser o homem um processo de composição de distintas ordenações


hierárquicas de impulsos, o filósofo o exibe como um escalonamento cambiante, no qual a cada
mudança de arranjo que se efetiva, uma diferente perspectiva se impõe. Por isso, ao rever sua
trajetória, ele conclui que foi o maior dinamismo desse “um-sobre-o-outro” de impulsos, que o
caracteriza, o que permitiu que adotasse larga gama perspectiva e que sua tarefa filosófica
pudesse “tomar corpo” e “vir ao mundo”.
Ainda nesse prefácio, Nietzsche nomeia de grande saúde essa prerrogativa, como direito
e vantagem de poder transitar por vários estados de corpo e realizar experimentações com o
pensamento. Para figurá-la, recorre à expressão: “a perigosa prerrogativa de viver para o ensaio
e poder oferecer-se à aventura” (HH I, Prefácio, 4). Desse modo a apresenta, pois entende ser a
maior mobilização de impulsos na luta, o ensaio de diferentes perspectivas, o que fomenta a
exploração e a descoberta de diferentes ópticas e pontos de vista. A seu ver, é esse dinamismo,
assemelhado a uma dança de impulsos, o que promove a experimentação de pensamentos e
valores, sentimentos e quereres outros. Por esse viés, mesmo a doença, como mobilização do
corpo, pode dar oportunidade para experimentações de muitos e opostos modos de pensar (HH I,
Prefácio 4).
Com efeito, no quinto livro de A Gaia Ciência, Nietzsche diz: “eu não saberia o que o
espírito de um filósofo mais gostaria de ser, senão um bom dançarino” (GC 381), e nos faz um

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convite à dança (cf. GC 383)7. Acreditando ser a maior vivacidade na dança de impulsos o que
promove a abertura de gamas perspectivas, das mais estreitas às mais abrangentes, no parágrafo
intitulado “A grande saúde” afirma ser essa “nova saúde” necessária a todos aqueles que querem
experimentar os mais diversos pontos de vista:

Aquele cuja alma tem sede de viver o âmbito inteiro dos valores e anseios que
prevaleceram até agora e de circunavegar todas as costas desse “mar mediterrâneo”
ideal, aquele que quer saber, pelas aventuras de sua experiência mais própria, o que se
passa na alma de um conquistador e explorador do ideal, assim como de um artista, de
um santo, de um legislador, de um sábio, de um erudito, de um devoto, de um adivinho,
de um apóstata no velho estilo: este precisa, para isso, primeiro que tudo, de uma coisa,
da grande saúde - de uma saúde tal, que não somente se tem, mas que também
constantemente se conquista ainda, e se tem de conquistar, porque sempre se abre mão
dela outra vez, e se tem de abrir mão!... (GC 382).

Além disso, deixa entrever que do horizonte de sua “saúde mais forte, mais engenhosa,
mais tenaz, mais temerária, mais alegre, do que todas as saúdes que houve até agora” (GC 382),
nem mesmo a “perda da saúde” pode ser excluída, pois também esta pode dar ensejo à adoção de
inusitadas ópticas. Portanto, ao apresentar a grande saúde através do imperativo do abrir mão e da
conquista, pelo viés do tornar-se sadio (Gesundwerden) e não pelo do ser sadio (Gesundsein),
alude que aquele que está disposto a adotar inúmeras perspectivas não pode excluir nem mesmo a
doença de seu campo de experimentações.
Com o mesmo entendimento, no prefácio ao primeiro volume de Humano demasiado
humano, Nietzsche apresenta a grande saúde como uma “saúde transbordante” que não pode
prescindir nem mesmo da doença, como um meio de apreensão de conhecimentos:

Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de ensaio, o caminho ainda é longo até
aquela descomunal segurança e saúde transbordante, que não pode prescindir nem
mesmo da doença, como um meio e anzol do conhecimento, até aquela madura liberdade
do espírito que é também autodomínio e disciplina do coração e permite os caminhos
para muitos e opostos modos de pensar - aquela interior envergadura e mimo do excesso
de riqueza que exclui de si o perigo de que o espírito porventura se perca em seu próprio
caminho e se enamore de si e em algum canto fique sentado, inebriado, até aquele

7
Marton (2001), em “A dança desenfreada da vida”, argumenta que em sua campanha contra a metafísica e a
religião cristã, o filósofo tem a dança como sua principal aliada, pois, igual à vida, dança é movimento. Ela, portanto,
é determinante na maneira pela qual Nietzsche concebe a própria filosofia. Suspeitando de tudo o que é essencial,
imutável, eterno e inerte, ele elabora outra visão de homem e de mundo a partir do movimento, da cadência, da
leveza e da alegria, próprias à dança: “Nova alternativa traz, sem dúvida, a dança. Pela cadência , ela põe em cena
variados pontos de vista, diversos ângulos de visão, diferentes pontos de vista. Faz surgir aspectos inusitados da
existência; traz à luz dimensões insuspeitadas do mundo. Com a dança, evoca-se o fluxo vital; com ele, alude-se à
permanente mudança de tudo o que existe” (MARTON, 2001, p. 60). Sobre os diferentes sentidos da dança na
filosofia nietzschiana, da forma como concebe o pensamento e a própria produção filosófica até a elaboração de sua
visão cosmológica, confira o trabalho de Marton (2001).

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excedente de forças plásticas, regeneradoras, conformadoras e restauradoras, que é


justamente o sinal da grande saúde (...) (HH I, Prefácio, 4).

No contexto desse prefácio, diz ter sido sua saúde o que impediu seu espírito de
paralisar-se em uma única perspectiva, de acomodar-se em um estreito ponto de vista. Ele avalia
que foi um sinal de grande saúde o ter podido experimentar diversos modos de querer, sentir e
pensar, ter colocado em questão valores cristalizados pela tradição, ter revisitado suas adesões e
rupturas afetivas e filosóficas.
Na mesma direção, no prefácio de A Gaia Ciência, relata que cada variação em seu
estado de saúde lhe ofereceu um ensejo para experimentação de diferentes modos de filosofar.
Dessa forma, mostra-se grato a seus episódios de enfermidade e enaltece sua saúde mutável, pois
a vê como sua prerrogativa filosófica (GC, Prefácio, 3). Conclui que, em sua trajetória, a
possibilidade de questionar de modo cada vez mais aprofundado, de ultrapassar o conforto da
mediania filosófica, foi oferecida pela sensação contínua da dor, ocasionada pela vivência da
enfermidade: “Duvido que uma tal dor ‘melhore’ - mas sei que ela nos aprofunda” (GC, Prefácio,
3). Assim, vê a doença como a “mestra da grande suspeita”, como o que o fez colocar em
questão o usitado e, por isso, o que lhe ofereceu oportunidade de divisar problemas com os quais
até então nunca havia se deparado.
Isso explica porque, como insígnias de sua filosofia, Nietzsche faz figurar o
circunavegador, o explorador e o aventureiro como “espíritos fortalecidos por guerras e vitórias,
aos quais a conquista, a aventura, o perigo, até mesmo a dor, se tornaram necessidade” (GM II,
24), andarilhos habituados ao “ar cortante das alturas, de andanças de inverno, de gelo e
montanhas em todos os sentidos” (GM II, 24), argonautas, acostumados ao calor das “costas do
mar mediterrâneo” (GC 382). Se ele torna essas figuras emblemáticas, é porque, tal como um
filósofo que experimenta diversos modos de pensar, até mesmo ante ao sofrimento e à dor, elas
transitam por ambientes os mais inóspitos, peregrinam por cumes gelados e planícies, enfrentam
as tempestades em alto-mar e, ao contrário de sucumbirem, destas múltiplas experiências, saem
ainda mais fortalecidas.
Por isso, em Ecce Homo, por outro olhar retrospectivo, Nietzsche afirma ter adoecido
com frequência, mas nunca ter se tornado doentio: “Minha prerrogativa é ter a suprema finura
para todos os signos de instintos sadios. Falta em mim qualquer traço doentio; mesmo nos tempos
de mais grave doença, nunca me tornei doentio” (EH, Por que sou tão esperto, 10). Ora, ao

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analisar suas vivências, percebeu que seus episódios de enfermidade serviram de “estimulante” à
luta de impulsos, possibilitaram que adotasse diferentes perspectivas. Logo, conclui que para
alguém tipicamente sadio “o estar-doente pode até mesmo ser um energético estimulante a vida, à
mais-vida” (EH, Por que sou tão sábio, 2).
Na mesma direção, em O caso Wagner, ele afirma: “a própria doença pode ser um
estimulante da vida: mas é preciso ser sadio o bastante para esse estimulante!” (CW 5). Portanto,
ao explicitar que seu critério diagnóstico concerne à capacidade de “transtrocar perspectivas”
(EH, Por que sou tão sábio, 1), ele dá testemunho de saúde por ter adotado até mesmo a estreita
perspectiva da décadence:

A partir da óptica do doente, olhar para os conceitos e valores mais sadios e,


inversamente, da plenitude e certeza da vida rica, olhar para baixo e ver o secreto
trabalho do instinto de décadence - esse foi meu mais longo exercício, minha
experiência propriamente dita e, se é que em algo, foi nisso que me tornei mestre. (EH,
Por que sou tão sábio, 1)

Ao admitir ter vivenciado essa “dupla série de experiências” (EH, Por que sou tão sábio,
3), esclarece que o trânsito pelas mais diversas ordenações hierárquicas de impulsos também
comporta processos de declínio, desagregação e anarquia. Por isso, a décadence também
possibilitou a ele um ângulo de visão singular, ainda que restrito.
Embora Nietzsche considere a enfermidade uma “espécie de décadence” (EH, Por que
sou tão sábio, 1), esclarece porque ter frequentemente vivenciado o “declínio vital” não o fez um
décadent. Em Para Além de Bem e Mal, apresenta a décadence como um processo de
anarquização dos impulsos: “a corrupção como indicação de que no interior dos instintos ameaça
a anarquia, de que se encontra abalado o fundamento dos afetos, a que se chama ‘vida’” (BM
258). A anarquia ocorre quando, no decorrer da luta, todos os impulsos querem o domínio
absoluto. Nesses casos, como estratégia de autoconservação, um único impulso ou conjunto de
impulsos faz-se tirano, para compensar a falta de organização do conjunto. A partir disso, conclui
que não são necessariamente doentios, décadents, os que vivenciam uma enfermidade, mas os
que padecem de uma desagregação das ordenações hierárquicas de impulsos e, por isso, adotam
uma única perspectiva, um só ponto de vista. Sendo assim, é por ser caracterizado pelo maior
dinamismo dos impulsos, pelo revezamento das relações de mando e obediência, que pode se
considerar como summa summarum sadio e décadent apenas como ângulo, especialidade (EH,
Por que sou tão sábio, 2).

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No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche explica que a anarquia dos impulsos conduz à
tirania de muitos, fazendo-se assim necessário descobrir um contratirano mais forte. Ao
apresentar o problema de Sócrates, revela que, nesse caso, foi a razão que se fez tirana: “Ser
racional foi de rigueur, foi o seu último remédio (...) Estava-se em risco, só se tinha uma escolha:
ou perecer, ou ser absurdamente racional...” (CI, O problema de Sócrates, 10). Para um tipo
décadent, a precedência da razão surge como um remédio, um artifício pessoal de
autoconservação, ante a anarquia instintual. Assim, quando Sócrates é apresentado como um
“mal-entendido”, a doença diagnosticada é a racionalidade a todo custo:

a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos
era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença – e de modo nenhum um
caminho de retorno à ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade... Ter de combater os instintos –
eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, a felicidade é igual a
instinto (CI, O problema de Sócrates, 11).

Sócrates, saudável aos olhos de seus contemporâneos, padecia de uma debilitação na


dinâmica de impulsos, o impulso racional era superexcitado, enquanto os demais eram
combatidos: “Em Sócrates, a desertificação e a anarquia estabelecida no interior dos instintos não
são os únicos indícios de décadence: a superfetação do lógico e aquela maldade de raquítico que
o distinguem, também apontam para ela” (CI, O problema de Sócrates, 4).
Além disso, no Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche nos alerta que a anarquia de impulsos
ocorre quando, em episódios de declínio vital, não se sabe “escolher” o melhor para si: “‘eu não
sei encontrar o que é mais proveitoso para mim’... Desagregação dos instintos!” (CI, Incursões de
um Extemporâneo, 35). Por esse viés, nunca foi doentio, pois sempre conseguiu, em momentos
de baixa vitalidade, encontrar seu remédio mais apropriado para impedir a desagregação de
impulsos, fazer oposição à décadence, “defender-se” dela. Enquanto um décadent não sabe
selecionar o que lhe convém, um homem bem logrado age segundo um “princípio seletivo”, sabe
escolher o que lhe é mais apropriado e abandonar, deixar de lado o que lhe é pernicioso:

Está sempre em sua companhia, quer esteja com livros, homens, ou paisagens: honra ao
escolher, ao abandonar, ao confiar. Reage a todos os estímulos lentamente, com aquela
lentidão que uma longa cautela e um orgulho proposital aprimoraram nele - examina o
estímulo que se aproxima dele, está longe de ir ao seu encontro. Não acredita nem em
“infelicidade” nem em “culpa”: fica quite consigo, com outros, sabe esquecer - é forte o
bastante para que tudo tenha de lhe sair da melhor maneira - Pois bem, eu sou o reverso
de um décadent: pois acabo de me descrever (EH, Por que sou tão sábio, 2)

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Desta forma, se as índoles doentias, escolhem os remédios errados, ao contrário, as


saudáveis, ante as adversidades, instintivamente, sempre escolhem os remédios que lhe são mais
apropriados. No contexto de sua autobiografia, Nietzsche vê como sintomas de sua saúde suas
escolhas de alimentação, clima, moradas, recreações e companhias. De igual modo, apresenta
como sintoma de sua “índole bem lograda” a cautela de não reagir imediatamente a um estímulo
nocivo, associada a sua capacidade de esquecer-se rapidamente do que lhe afetou.
Ele nomeia de “fatalismo russo” essa capacidade de não-reação imediata a um estímulo:
“aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito
dura finalmente deita-se na neve. Absolutamente nada mais em si aceitar, acolher, engolir - não
mais reagir absolutamente...” (EH, Por que sou tão sábio, 6). Numa situação adversa, da qual não
é possível livrar-se no momento, o melhor remédio é não reagir, quando uma reação produziria
um rápido consumo de energia nervosa e um aumento de bílis no estômago 8. Ele conta que
quando vivenciou estados de doença e fraqueza, contra os impulsos do ressentimento, o revolver
venenos, o aborrecimento, a impotência, a sede de vingança, ao invés de revoltar-se, tomou o
cuidado de não desperdiçar suas forças em fins negativos, evitando o empobrecimento supérfluo
do instinto de autodefesa (EH, Por que sou tão esperto, 8). Relata ainda que conseguiu lutar
contra os sentimentos de vingança e rancor através do esquecimento, evitando que suas
lembranças calassem fundo demais e se tornassem “uma ferida suporante”.
Na Genealogia da Moral, ao analisar os modos de valoração dos tipos, Nietzsche fala da
inevitabilidade do ressentimento no tipo fraco, enquanto “mesmo o ressentimento do homem
nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não
envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos
impotentes e fracos” (GM I, 10)9. Logo, ele apresenta a capacidade do esquecimento como
própria de uma “saúde forte” e discorre sobre suas vantagens:

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado


pelo barulho e luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um

8
Pelo mesmo viés, no Crepúsculo dos Ídolos, apresenta como sintoma de décadence a incapacidade de sustentar
uma oposição a um estímulo: “o ‘precisa-se reagir’ segue-se a cada impulso. Em muitos casos, uma tal necessidade
já é prova de um caráter doentio, de decadência, de um sintoma de esgotamento” (CI, O que falta aos alemães, 6).
9
Assoun (1980), investigando a caracteriologia do ressentimento que Nietzsche delineia ao longo das três
dissertações da Genealogia da Moral, destaca que ele coloca a reatividade primária e o superdesenvolvimento
mnésico como os principais traços de caráter do ressentido. Já Deleuze (1970) esclarece que, na tipologia
nietzschiana, o que caracteriza o tipo hegemônico é o “espírito de vingança”, que: “longe de ser um traço
psicológico, o espírito de vingança é o princípio do qual nossa psicologia depende” (DELEUZE, 1970, p.39).

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pouco de sossego de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o
novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever,
predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) - eis a utilidade do
esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem
psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade,
jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento (GM II, 1).

Esclarece que o homem no qual essa capacidade está comprometida pode ser comparado
a um dispéptico, pois esse nada consegue dar conta. No seu caso, através da atividade do
esquecimento, conseguiu melhor digerir suas vivências, livrar-se mais facilmente de uma
impressão recebida, evitando o azedume de um rancor. Portanto, associados, “fatalismo russo” e
capacidade para o esquecimento foram os principais remédios que lançou mão para combater o
ressentimento, infelizmente, a mais natural inclinação do enfermo.
Destarte, é por ter uma grande saúde, por ter adotado até mesmo a óptica da décadence e
não ter se atido a ela, que Nietzsche afirma ter para os sintomas de ascensão e declínio um faro
mais refinado do que jamais teve um homem: “sou mestre par excellence nisso - conheço a
ambos, sou ambos” (EH, Por que sou tão sábio, 1). Ao ter adotado perspectivas ascendentes e
declinantes, mais abrangentes e mais restritas, ele fez dessas experimentações o pressuposto de
sua habilidade diagnóstica. Afinal, foi em períodos de décadence que aprimorou sua aptidão para
a arte da observação de sintomas, refinando seu olhar psicológico:

Preciso dizer, depois de tudo isso, que em questões de décadence sou experiente?
Soletrei-a de trás para frente e de frente para trás. Mesmo aquela arte de filigrana do
captar e conceber em geral, com aqueles dedos para nuances, aquela psicologia do “ver-
atrás-da-esquina”, e tudo mais que me é próprio foi aprendido somente naquele tempo, é
propriamente o presente daquele tempo, em eu tudo em mim se refinava, a observação
mesma com todos os órgãos de observação (EH, Por que sou tão sábio, 1).

Foi somente por ter vivenciado episódios de décadence, experimentado pensamentos


que daí podem emergir, que Nietzsche consegue deslocar seu olhar para outras filosofias e, a
partir delas, detectar sintomas de um corpo doente. Portanto, é apenas por ter adotado a
perspectiva da décadence que consegue desvendar a psicologia dos grandes nomes da tradição
filosófica, “a história escondida dos filósofos” (EH, Prólogo, 3). Em suma, é somente por estar
autorizado por sua grande saúde que, no contexto de sua tarefa crítica, pode lançar mão de seu
refinado faro psicológico para diagnosticar quais índoles de corpo se escondem “por trás” das
filosofias.
No prefácio de A Gaia Ciência, ele diz que uma das questões mais atraentes para um
psicólogo é a da relação entre saúde e filosofia. Ao direcionar sua “curiosidade científica” para

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seus próprios episódios de doença, percebeu que eles serviram de oportunidade de


autoquestionamento e autoexperimentação com o pensar. Com efeito, foi ao debruçar-se sobre
sua própria enfermidade que pode responder ao questionamento que mais interessa a um
psicólogo: “- o que será do pensamento mesmo, que é posto sob a pressão da doença” (GC,
Prefácio, 2). A partir disso, considera que seu maior aprendizado adquirido com a doença foi o
poder olhar de modo mais refinado para tudo o que foi filosofado até então:

Adivinha-se melhor que antes os involuntários descaminhos, ruas laterais, lugares de


repouso, lugares de sol do pensamento, a que os pensadores que sofrem, precisamente
como sofredores, são conduzidos e seduzidos, sabe-se doravante para onde,
inconscientemente o corpo doente, com suas necessidades, impele, empurra, atrai o
espírito - em direção ao sol, quietude, brandura, paciência, medicamento, refrigério em
qualquer sentido (GC, Prefácio, 2).

Nietzsche relata que também se entregou de “corpo e alma” à doença, mas conseguiu
“despertar”. Através dessas experimentações, descobriu que são vários os caminhos abertos pela
doença, que são diversas as direções apontadas pelo sofrimento. Ao examinar seu próprio caso,
percebeu que foi a sua saúde o que evitou que se perdesse nos caminhos da metafísica. A partir
disso, supõe que são os pensadores doentes que preponderam na história da filosofia. Estes, ao
invés de fazerem de sua doença oportunidade de experimentação, enveredam-se pelos caminhos
que julgam serem mais “fáceis”, os já desbravados.
Assim, em sua análise diagnóstica, pautado na pressuposição de que as formas como se
ordenam hierarquicamente os impulsos se mostram, de algum modo “aparecem”, na enunciação
dos pensamentos, sentimentos e quereres, afirma serem sintomas de um corpo doente todos os
“ousados disparates da metafísica”:

Toda filosofia que coloca a paz mais alto do que a guerra, toda ética com uma
concepção negativa do conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhecem um
termo final, um estado terminal de qualquer espécie, todo preponderante desejo estético
e religioso por um à- parte, um além, um fora, um acima, permite que se pergunte se
não foi a doença que inspirou o filósofo. O inconsciente travestimento de necessidades
fisiológicas sob os mantos do objetivo, do ideal, do puramente espiritual, chega até o
aterrorizante – e com bastante frequência eu me perguntei se, calculando por alto, a
filosofia até agora não foi, em geral somente uma interpretação do corpo e um mal-
entendido sobre o corpo (GC, Prólogo, 2).

A precedência do “espiritual”, característica do racionalismo metafísico, é sintoma da


debilitação na dinâmica de formação de diferentes ordenações hierárquicas. Toda filosofia que
deprecia a guerra traduz um esmorecimento na luta de impulsos. Toda ética com uma “concepção

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negativa” do conceito de felicidade sinaliza um processo de resistência aos instintos. Todo


finalismo e teleologia é sinal da necessidade de pôr termo ao combate. E o desejo de um “para
além” dos processos efetivos é sintoma de um corpo em vias de desagregação e perecimento.
Mas se Nietzsche, em sua psicologia, considera que são os pensamentos, como sintomas
de determinados corpos, o que permite diagnosticar as formas como se processam as relações de
mando e obediência, estabelecidas no decorrer da luta de impulsos, no contexto genealógico, ele
toma as valorações morais como o melhor testemunho das ordenações hierárquicas de impulsos
que caracterizam um filósofo: “(...) particularmente a sua moral que dá um decidido e decisivo
testemunho de quem ele é - isto é, da hierarquia em que se dispõem os impulsos mais íntimos da
sua natureza” (BM 6). Em outro parágrafo da mesma obra, afirma que as morais não passam de
uma “semiótica dos afetos (Zeichensprache der Affekte)” (BM 187), que serve para indicar os
expedientes daquele que valora (BM 187).
No Crepúsculo dos Ídolos, ele assevera que a moral é unicamente um discurso de
signos, uma sintomatologia, e que é preciso saber do que se trata para tirar algum proveito dela
(CI Os “Melhoradores” da Humanidade 1). Assim, vemos que no registro genealógico, o filósofo
colore sua psicologia com o matiz do valor, apresentando as valorações como os sintomas
privilegiados para diagnosticar a necessidade de um corpo:

Quais os grupos de sensações que dentro de uma alma despertam mais rapidamente,
tomam a palavra, dão as ordens: isso decide a hierarquia inteira de seus valores,
determina por fim sua tábua de bens. As valorações de uma pessoa denunciam algo da
estrutura de sua alma, e aquilo em que ela vê suas condições de vida, sua autêntica
necessidade (BM 268).

De modo mais preciso, Nietzsche não apenas considera as estimativas de valor sintomas
de ordenações hierárquicas de impulsos, mas, mais do que isso, esclarece que elas emergem em
resposta a uma específica demanda de corpo. Por esse viés, para ele, tomar a moral como
problema é considerar as valorações um expediente a uma necessidade vital que, sub-
repticiamente, se impõe; é ter em vista que mesmo “por trás de toda lógica e de sua aparente
soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências
fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida” (BM 3).
Na Genealogia da Moral, ao se questionar sobre o valor dos valores, Nietzsche
apresenta a moral como um sintoma, mas também como um medicamento para o tipo homem (cf.
GM Prólogo 6). Com isso, ele aclara que as estimativas de valor apenas são úteis ao genealogista

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quando remetidas às necessidades do tipo que as impôs. Por isso, no âmbito do procedimento
genealógico, deixa claro que seu olhar diagnóstico será sempre direcionado para as condições e
circunstâncias nas quais tais valorações emergiram:

Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o
próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isso é necessário
um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se
desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como sintoma, máscara,
tartufice, doença, mal-entendido, mas também moral como causa, medicamento,
estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como até hoje nunca existiu nem foi
desejado (GM, Prólogo, 6).

No quinto livro de A Gaia Ciência, no parágrafo intitulado “Moral como problema”,


Nietzsche já denunciava a insuficiência da “história genética dos sentimentos e estimativas de
valor” dos psicólogos e historiadores da moral, e apresentava o alcance de sua tarefa filosófica:
“Ninguém, portanto, examinou até agora o valor dessa mais célebre de todas as medicinas,
chamada moral: para o que é preciso, primeiro de tudo, alguma vez... - pô-lo em questão. Pois
bem! Essa é justamente nossa obra. -” (GC 345). Não obstante, é, sobretudo, na Genealogia da
Moral que o filósofo, ao se questionar sobre o valor dos valores, procura levar a termo esse
intento expondo os meandros da moral cristã. Aqui, na figura de um tipo, o sacerdote ascético, a
moralidade cristã aparece como medicamento para combater a anarquia e a autodissolução que
ameaçam o rebanho doente, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é
continuamente acumulado (GM III, 15).
Ao apresentar a moral como sintoma de um tipo, também capaz de apontar seus
expedientes, Nietsche inscreve a sintomatologia e a tipologia em sua crítica genealógica. Em seu
quadro tipológico, elenca os tipos doentios, décadents, como aqueles que padecem de uma
desagregação hierárquica de impulsos e, devido a isso, lançam mão de toda sorte de expedientes
para não perecerem. A exemplo disso, no Crepúsculo dos Ídolos, mostra que a anarquia de
impulsos pode se travestir de um conjunto valorativo absurdamente racional, formulado a partir
da equação razão = virtude = felicidade. Nesses casos, ante a desagregação instintual, o remédio
“escolhido” pelo tipo foi a superexcitação de um único impulso, o racional. Pelo mesmo prisma,
apresenta os tipos dotados de uma grande saúde como aqueles que conseguem levar suas
experiências arrojadas e dolorosas mais longe, suplantando até mesmo o impulso de
autoconservação, pois eles “amam servir-se de experimento num sentido novo, talvez mais
amplo, talvez mais perigoso” (BM 210). Caracterizados pela imposição temporária de diferentes

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ordenações hierárquicas de impulsos, sem necessitarem recorrer ao impulso “tirânico” da razão e


à adoção do conjunto de valores que lhe concerne, conseguem ousar a criação de valores outros.
Ademais, Nietzsche não se contenta em remeter as estimativas de valor aos tipos,
recusando sua origem metafísica. Ele procura ainda expor a significação do medicamento que os
homens, diante das sendas abertas pelo sofrimento, acabam por recorrer. Ao perscrutar a relação
do “animal homem” com seu sofrimento, percebe que para os décadents “o sofrimento é sempre
lembrado como o primeiro argumento contra a existência” (GM II, 7). Embora o sofrimento que,
inevitavelmente, emerge da luta de impulsos possa receber vários sentidos, os que padecem de
uma desagregação de impulsos maldizem o corpo, lamentam sua finitude, olham com repulsa
suas mudanças.
De modo mais preciso, o homem, ao necessitar de um sentido a seu sofrimento, acabou
por encontrar na recusa ao mundo efetivo uma resposta. Contudo, apesar de ter encontrado um
sentido ao “para-quê do sofrimento” no além mundo, em um domínio que não o da efetividade,
ao mesmo tempo, devido a um estratagema de conservação, o homem procura de todo modo
postergar seu aniquilamento. Concomitantes, a recusa aos processos efetivos e a incapacidade de
furtar-se a eles, consegue preservar essa configuração fisiopsicológica, que é o homem, mas o
torna um animal doente (GM II, 24). Destarte, malgrado tal expediente oferecer um sentido ao
sofrer, traz conjuntamente um novo sofrimento “mais profundo, íntimo, corrosivo”: faz o homem
debelar seus impulsos.
De outro modo, para os tipos da grande saúde, mesmo o sofrer não conduz a um mal-
estar em relação aos processos efetivos, ao contrário, pode significar a abertura para a criação de
outros sentidos e valores. Nietzsche entende que o sofrimento pode auxiliar na descarga de
impulsos “animais”, que foram “dominados” no processo de formação da consciência.
Acreditando que sua liberação gera um fortalecimento do homem, ele critica os que veem as
“propensões naturais” com maus olhos. Detecta sintomas de décadence em todas as aspirações ao
além-mundo, na recusa à natureza, aos instintos, ao animal (GM II, 24). Assim, para fazer frente
à décadence que vê preponderar em seu tempo, propõe ao homem do futuro realizar um “ensaio
inverso”: irmanar todas as suas propensões que foram desnaturadas. Contudo, afirma que para tal
intento:

Seria necessária, para aquele alvo, uma outra espécie de espíritos, do que precisamente
neste século, são verossímeis: espíritos fortalecidos por guerras e vitórias, aos quais a

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conquista, a aventura, o perigo, até mesmo a dor, se tornaram necessidade; para isso
seria necessário o hábito do ar cortante das alturas, de andanças de inverno, de gelo e
montanhas em todos os sentidos; para isso seria necessária uma espécie de sublime
maldade mesmo, uma última malícia do conhecimento, muito segura de si, que faz parte
da grande saúde; seria necessária, em suma, e é pena, justamente essa grande saúde!...
(GM II, 24)

Em suma, o filósofo aspira a um “espírito criador” que seja capaz de, em um tempo
vindouro, fazer diferentes ensaios, experimentar outras formas de valorar, criar novas “tábuas de
valores”, que não mais expressem um profundo mal-estar com os processos efetivos. Espera a
vinda de homens dotados de grande saúde que possam livrar a efetividade da “maldição” deposta
sobre ela (GM II, 24). Até chegar esse momento, ele mesmo, como um tipo da grande saúde, quer
a partir da exposição de sua trajetória de experimentações, abrir caminhos para outras e inúmeras
possibilidades de criação de valores, que sejam afirmativos em relação aos processos dinâmicos
da efetividade.

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Referências Bibliográficas:

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___________Obras Incompletas. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Ed. Nova
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