Sie sind auf Seite 1von 26

SOBRE A VULNERABILIDADE

SOCIOECONÔMICA E CIVIL
Estados Unidos, França e Brasil*

Lúcio Kowarick

Introdução ser designado de olhares cruzados, captando o


que há de essencial no debate acadêmico dessas
A única unidade que é possível, portanto, reivindi- sociedades. O tema diz respeito à vasta parcela
car a respeito destes temas [exclusão, underclass e margi-
daqueles que estão à margem, desligados ou de-
nalidade] é que eles colocam em causa, só por sua pre-
sença, os princípios que fundamentam a ordem social. senraizados dos processos essenciais da socieda-
Didier Fassin, 1996. de. Trata-se daquilo que se convencionou deno-
minar os excluídos, noção ampla e escorregadia
Este ensaio tem por objetivo analisar os sig- que se tornou uso corrente e que necessita ser tra-
nificados de uma discussão que se apóia em temas balhada empírica e teoricamente. É a trajetória
e termos diversos nos Estados Unidos e na Fran- desta questão que pretendo realizar, reafirmando
ça, com comentários finais acerca da sociedade que o intento é clarear o nebuloso e complexo de-
brasileira. Não pretendo fazer um estudo compa- bate acerca dos contingentes não incluídos nas ci-
rativo, pois trata-se antes de realizar o que pode dades, mesmo porque as populações rurais fogem
do escopo deste ensaio.
* Este artigo faz parte de um ensaio mais amplo: Ko- Não são poucos os estudos que discutem
warick (2001) A parte referente à sociedade brasi- este tema de forma a cotejar os desafios interpre-
leira foi publicada em Kowarick (2002). Na parte fi-
tativos que decorrem de realidades nacionais dis-
nal deste artigo faço um resumo desta publicação
para destacar alguns pontos sobre a atualidade do tintas.1 Mas são raríssimos os que introduzem nes-
Brasil urbano. ta discussão a produção latino-americana que tem
Artigo recebido e aprovado em dezembro/2002. início no final dos anos de 1960 (Fassin, 1996).

RBCS Vol. 18 nº. 51 fevereiro/2003


62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

Vale apontar que o debate norte-americano os anos de 1980, também dos que ocupam posi-
é abertamente político-ideológico. Isto porque os ções centrais no sistema produtivo do qual foram
pesquisadores colocam seus críticos e criticados desconectados: seguindo as trilhas da tradição re-
ou no campo conservador, ou no liberal, na acep- publicana e jacobina, as análises, variando nos
ção norte-americana do termo, isto é, progressis- diagnósticos e nas propostas, enfatizam a necessi-
ta, pois inspirado nas tradições que fundamentam dade de uma forte presença estatal, que tem como
as políticas de bem-estar social. De um lado, bla- responsabilidade primeira fornecer os recursos
ming the victim, aberta e feroz culpabilização das materiais e culturais que promovam a (re)inserção
pessoas que se encontram em precárias condi- social e econômica dos grupos marginalizados. O
ções sociais e econômicas, pois, nessa vertente in- fundamento da própria democracia residiria na
terpretativa, esta situação é vista como fruto de dinamização de formas de solidariedade que não
sua própria e única (ir)responsabilidade. Mais ain- deixassem aqueles que estivessem fora lá perma-
da: segundo essa visão, as políticas públicas só necer, pois isso significaria a reprodução das ini-
serviriam para reproduzir ou aumentar a anomia, qüidades e injustiças que a ação estatal priorizou
a ociosidade e a indolência, a desestruturação fa- combater desde 1789 em nome da defesa dos di-
miliar, o consumo de drogas e as várias formas de reitos básicos de cidadania. Ação que foi aprofun-
criminalidade. De outro lado, os liberais enfati- dada pelos socialistas e comunistas durante o
zam que não é no comportamento ou nos valores Front Populaire de 1936 e, fundamentalmente,
do indivíduo que se deve buscar as causas do após a Segunda Grande Guerra.
problema, mas nos processos estruturais amplos, Analisarei, inicialmente, o teor das discus-
na desindustrialização de determinadas regiões, sões nos Estados Unidos para, em seguida, passar
nas transformações tecnológicas e gerenciais, nas para o caso francês. A partir do que estou desig-
mudanças no perfil da mão-de-obra, nas transfor- nando de olhares cruzados, na parte final deste
mações sociais e urbanas das grandes cidades ou artigo retomo alguns pontos sobre a sociedade
no secular preconceito racial que desaba, particu- brasileira. O objetivo deste ensaio não é efetuar
larmente, sobre a população afro-americana. um balanço crítico da literatura, mas, a partir de
Como será detalhado, a hegemonia do pensa- alguns textos seminais, mostrar os conteúdos e os
mento liberal dos anos de 1960-1970 é superada contornos que a questão social adquire em função
pelo conservadorismo predominante na década das especificidades próprias de cada ambiente so-
de 1980. No decênio seguinte, com a administra- ciopolítico nacional.
ção Bill Clinton, fundamentalmente, no seu se-
gundo mandato, com maioria parlamentar repu-
blicana, há uma aproximação dessas duas visões: A discussão norte-americana: culpar ou
as concepções liberais tradicionais que apregoa- não culpar a vítima
vam a prerrogativa de direitos (entitlement) são
solapadas pela noção de deveres e, em boa me- A mera existência de um sistema de bem-estar
social [...] [tem] [...] como conseqüência inevitável
dida, passam também a responsabilizar os indiví- minar o caráter moral do povo. Não trabalhar é
duos por sua condição de vida. O conceito que mais fácil que trabalhar.
alimenta o debate acadêmico e político até o iní- Charles Murray, 1994.
cio dos anos de 1990 é o de underclass, subclas-
se à margem da sociedade. Liberais versus conservadores
O debate francês, a seu turno, baseia-se em
conceitos como exclusão, relegação, desqualifica- Underclass: subclasse, ou desclassificado,
ção ou desfiliação social. Afirma que não se trata constitui uma questão amplamente pesquisada
apenas daqueles que não puderam pagar o preço nos Estados Unidos. Vale dizer que a maioria dos
do progresso, ficando à margem de uma socieda- estudos procura checar, apoiada em universos em-
de que se modernizava, mas, cada vez mais, após píricos restritos – geralmente um gueto negro de
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 63

cidades de médio ou grande porte –, os resultados lização social e econômica das populações afro-
emanados de abordagens mais abrangentes. Nes- americanas (Myrdal, 1994).
se sentido, os trabalhos de William Julius Wilson, Nos percursos da história, várias denomina-
sobretudo The Truly Disadvantaged, foram objeto ções foram utilizadas para nomear essas subclas-
de atenção de inúmeros estudiosos que procura- ses, todas com conotações de cunho incriminador:
ram testar os resultados de suas investigações: en-
tre outras questões, as mudanças na oferta de em- [...] pedinte, desvalido, classe perigosa, ralé, vaga-
prego que começaram a ocorrer a partir da bundo e vadio, e assim por diante, [designações]
que os Estados Unidos tomaram emprestado da
década de 1970, o declínio de taxas de casamen-
Europa. A América também inventou seus pró-
to entre a população afro-americana e o decor- prios termos, incluindo-se preguiçoso, mendigo e
rente aumento de famílias monoparentais com idiota, e, no final do século XX, outros como, des-
chefia feminina, a evasão dos estratos afro-des- qualificado, marginal, culturalmente deficiente, e,
cendentes abastados para fora dos guetos, a cres- mais recentemente, underclass (Gans, 1994).
cente concentração da pobreza, desemprego e
dependência de serviços sociais e os efeitos des- O termo underclass foi introduzido no início
se tipo de vizinhança sobre os jovens no que con- dos anos de1960 para designar o processo de
cerne ao comportamento sexual, abandono da es- marginalização do mercado de trabalho assalaria-
cola, consumo de drogas e aos atos delinqüentes.2 do e formal que marginalizou uma parcela da
Sem penetrar em detalhes históricos, importa mão-de-obra de baixa qualificação: utilizado no
notar que a questão da pobreza sempre teve uma âmbito de uma interpretação progressista, aponta-
tônica fortemente ética, na qual os indivíduos que va como causas desse fenômeno não os fatores
se encontravam nessa situação eram por ela res- sociopsicológicos próximos das pessoas inseridas
ponsabilizados, pois careciam de atributos como na situação de desemprego ou subemprego, mas
força de vontade e energia moral: “pauperismo – as grandes mudanças que marcaram a sociedade
diz um pregador no início do século XIX – é a con- norte-americana no segundo pós-Guerra (Myrdal,
seqüência de erro intencional, indolência vergo- 1963). A análise mostrava que as mudanças tecno-
nhosa, hábitos viciosos” (Burroughs apud Katz, lógicas e organizacionais tornavam dispensáveis
1993, p. 6). Insisto neste ponto, pois a forma de boa parte daqueles que não tinham capacitação
culpabilizar a pobreza, associando-a à indolência, profissional para enfrentar as inovações que as
à desorganização familiar e até mesmo à criminali- empresas passaram a exigir dos trabalhadores.
dade, continua uma tônica dominante no debate As interpretações presentes na obra de Gun-
norte-americano. Esse tipo de representação socio- nar Myrdal, The challenge to affluence, não culpa-
cultural parece estar ligado ao credo norte-ameri- bilizam as pessoas por seu insucesso, por terem
cano que, ao beber nas águas do puritanismo da ficado à margem da arrancada de mobilidade
ética protestante e do espírito do capitalismo, ele- ascendente que marcou a sociedade norte-ameri-
ge o individualismo e a competição como atributos cana. Em outros termos, a afluência também mar-
básicos para conquistar os benefícios de uma so- ginalizava, o que se mostrou particularmente per-
ciedade que se fundamenta em ideais igualitários, verso para parte da população afro-descendente.
na independência e na iniciativa pessoal (Katz, Isso porque o circuito excludente se completava
idem, pp. 6-7). Nesse contexto que proclama a através do racismo e da segregação racial que re-
igualdade de oportunidades, a marginalização so- caíam sobre os contingentes dos guetos das gran-
cial e econômica passa a ser encarada como fra- des cidades. Esse livro representou uma podero-
queza peculiar a indivíduos ou grupos que, como sa oposição ao clima de otimismo imperante na
tais, não possuem a perseverança ou o treinamen- época, expresso na sociedade de abundância, de
to moral para vencer na vida. Nesse sentido, o John Kenneth Galbraith, ou no fim das ideologias,
dilema norte-americano estaria concentrado nas de Daniel Bell, constituindo-se em um veículo
realidades e nas explicações da histórica margina- que serviu de alarme para implementar as políti-
64 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

cas públicas de combate à pobreza dos governos pensadores conservadores não ficaram inibidos.
democráticos dos anos de 1960.3 Desde os inícios da década de 1970 até a primei-
ra metade dos anos de 1980, seus escritos sobre
Esta década foi cenário de enormes debates
a cultura da pobreza e os efeitos deletérios da po-
e embates sobre a questão da pobreza e da desi- lítica progressista de bem-estar da Great Society
gualdade de oportunidade. Do ponto de vista do sobre o comportamento da underclass dos gue-
ideário progressista, os estudos então realizados tos dominaram o debate acerca das políticas pú-
serviram de forte estímulo para fomentar políticas blicas no que diz respeito à diminuição dos pro-
públicas que deveriam fornecer condições para re- blemas sociais das áreas centrais das cidades
(Wilson, 1987, p. 150).
tirar as camadas pobres de sua situação de anomia
e marginalização.4 Vale ressaltar que em 1964 é
promulgada a lei dos direitos civis referente à dis-
Conservadores versus liberais
criminação racial, ao mesmo tempo em que a ad-
ministração democrata Lyndon Johnson faz apro-
var pelo Congresso os programas conhecidos As explicações conservadoras acerca dos
como War on Poverty que, ao privilegiarem políti- habitantes afro-descendentes das grandes cida-
cas de proteção e integração social e econômica, des tornaram-se hegemônicas por um longo
deveriam acelerar a emergência da Great Society.5 período, coincidente com as administrações re-
Nesse contexto social e político é publicado publicanas de Ronald Reagan e George Bush.
o relatório Moynihan, confeccionado por um jo- Conservadoras porque, emprenhadas de conteú-
vem assistente da Secretaria do Trabalho vincula- dos moralizadores, responsabilizavam as pessoas
do à Casa Branca.6 O trabalho ressaltava a crescen- por sua condição de marginalização e anomia. O
te incidência entre a população afro-americana de foco de análise privilegiava os componentes cul-
desempregados, famílias monoparentais com che- turais, deixando de lado as dimensões estruturais
fia feminina, filhos ilegítimos e dependência dos dos problemas que afetavam estas populações:
serviços assistenciais, cuja conseqüência mais gra- falava-se de carências culturais e comportamen-
ve era a emergência do que foi então designado to deficiente – cultural and behavioral deficien-
de “matriarcado negro”. Nesse sentido, convém cies – em vez de focalizar os macroprocessos
ressaltar que as lideranças dos direitos civis consi- que se enraizavam nas causas da marginalização
deraram o relatório “ofensivo”, “empiricamente fa- social e econômica. Acusação de cunho moralis-
lho”, “difamante”, “desviando a responsabilidade ta, pois se originava na “[...] ausência de ética do
das causas da pobreza para suas vítimas” (Katz, trabalho, valores familiares e religiosos, respeito
1993, p. 13). Esta foi uma época de violentos con- pela lei e outros atributos invocados pela Nova
flitos e manifestações anti-raciais que culminaram Direita” (Silver, 1999, p. 345). Nesse tipo de abor-
no assassinato de Martin Luther King e no surgi- dagem, a parcela mais pobre dos grupos afro-
mento dos “panteras negras”, o que ocasionou o americanos teria atitudes semelhantes ao refugar
recuo dos liberais. A fim de escapar da pecha de o trabalho e preferir a dependência dos serviços
racistas, deixaram de se debruçar sobre situações sociais. Uma obra pioneira que serviu para ali-
e comportamentos que caracterizavam de forma mentar os estudos que enfatizaram a assim cha-
crescente os guetos da população afro-americana. mada welfare dependency foi a de Oscar Lewis
Nesse clima de acirramento político-ideológico, as (1961a, 1961b, 1965, 1966).
explicações centraram-se em causas como o racis- A partir de observação participante e de his-
mo e a exploração econômica, deixando um vazio tórias de vida, Lewis constrói o conceito de cultu-
analítico que foi apropriado pelo pensamento ra da pobreza, cujos traços essenciais seriam a re-
conservador: signação, a passividade, o fatalismo, o círculo de
relações sociais restrito e pouco diferenciado, as
[...] se esta matriz de crítica ideológica desencora- respostas voltadas ao imediato, as aspirações limi-
jou a pesquisa de estudiosos progressistas, os tadas e o sentimento de inferioridade. Esses traços
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 65

forjariam um conjunto de valores, crenças e atitu- tratáveis, mais socialmente alienadas e mais hos-
des relativamente homogêneo, reproduzido de ge- tis [...]” (Russel, 1977, p. 18).
ração em geração, que se contrapunha ao referen- Contudo, foi sem dúvida com os escritos
cial cultural dominante marcado pelo sucesso que apareceram em três números de enorme su-
advindo de trajetórias de vida marcadamente com- cesso da revista New Yorker, depois transformado
petitivas. Não cabe, no âmbito deste ensaio, reto- em livro – The Underclass –, que a palavra se po-
mar as críticas feitas ao modelo analítico proposto pularizou, tornando-se tema de debate cotidiano,
em torno do conceito de cultura da pobreza (ver com um grande reflexo sobre a opinião pública e
Kowarick, 1980, pp. 34-38). Importa, contudo, de extrema valia para fundamentar a desativação
apontar que esses escritos tiveram em décadas de políticas de bem-estar social das administra-
posteriores uma enorme influência no que diz ções republicanas. Vale transcrever uma longa ci-
respeito às concepções e às políticas relativas à tação do início dos anos de 1980, período de in-
questão da marginalização social e econômica: “a tensa recessão, conhecida como reaganomics:
cultura da pobreza tornou-se um eufemismo para
a patologia dos pobres inúteis e uma explicação [...] não há números precisos, mas estima-se que
para a sua condição [...]” (Katz, 1993, p. 13). Tal nove milhões de norte-americanos não são assi-
miláveis. Eles constituem a underclass. Em ter-
concepção causou sérias conseqüências no que diz
mos gerais, podem ser agrupados em quatro ca-
respeito ao encolhimento das políticas de bem-es- tegorias distintas: (a) os pobres passivos, que, no
tar social nos governos republicanos dos anos de mais das vezes, são recipientes de longo prazo de
1970 e 1980. Inspiradas numa espécie de “darwi- serviços sociais; (b) o hostil criminoso de rua, que
nismo social”, afirmava-se que elas fomentavam a aterroriza grande parte das cidades e que, geral-
ociosidade e o pauperismo, na medida em que o mente, foi expulso da escola e é consumidor de
droga; (c) o escroque (hustler), [...] que ganha a
subsídio público tornava desnecessário o trabalho
vida na economia subterrânea [...]; (d) os bêbados
regular. Em decorrência, esses grupos não deve- traumatizados, vagabundos, moradores de rua [...]
riam “ser ajudados devido a suas patologias destru- e os doentes mentais, que, freqüentemente, va-
tivas e anti-sociais. Esqueça-se os fatores estruturais gueiam ou morrem nas ruas da cidade (Auletta,
ou o generoso sistema de bem-estar: culpe a víti- 1981, p. XVI).
ma” (Robinson e Gregson, 1992, p. 40).7
Na esteira desse pensamento condenatório, O conservadorismo havia vencido, pois
deve ser ressaltado que o termo underclass foi convencera a maioria dos eleitores que havia
amplamente popularizado através de longas um grupo minoritário, porém numeroso, de de-
reportagens que apareceram com destaque em sajustados, inúteis, ociosos e perigosos, enfim,
revistas como Newsweek, Fortune ou Readers Di- uma subclasse desqualificada e imprestável para
gest. A tônica das apreciações não enfatizava a a qual as políticas públicas só serviram para re-
pobreza que se avolumava nos grandes centros produzir a indolência, a anomia e a propensão
urbanos ou a falta de oportunidade de ascensão à criminalidade. Nesse particular, a obra Losing
que marcava o destino de milhões de pessoas, Ground, de Charles Murray (1994), é seminal.
principalmente os afro-americanos, “mas a crimi- Ao analisar as políticas de bem-estar social, o
nalidade violenta [...], a depravação moral, a se- autor parte da constatação de que o aumento do
xualidade incontrolada das adolescentes filhas/ orçamento público entre 1950 e 1980 não havia
mães do gueto e o peso fiscal, julgado incontro- levado à diminuição dos problemas sociais. Ao
lável, dos programas sociais instaurados pela contrário, os índices de pobreza e desemprego,
pressão dos movimentos reivindicatórios dos de famílias monoparentais chefiadas por mulhe-
anos de 1960” (Wacquant, 1996a, p. 245). Menção res, de filhos ilegítimos e gravidez de adolescen-
especial deve ser feita à revista Time, que em um tes aumentaram muito nos guetos negros, assim
dossiê de quatorze páginas caracterizava o ame- como as várias modalidades de violência e cri-
rican underclass como “pessoas que são mais in- minalidade.
66 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

Em outras palavras, os programas dos anos O raciocínio do autor no que concerne a fi-
de 1960, que se condensaram na assim chama- lhos ilegítimos está baseado na trama hipotética
da War on Poverty, tiveram resultados nefastos: de dois jovens trabalhadores sem qualificação
agora, além de culpabilizar as vítimas, estava-se profissional – Harold and Phyllys – na qual, não
também atacando a “generosidade” dos gover- estando casados, ela está grávida. Em 1950, quan-
nos do Partido Democrático. Generosidade que do inexistiam subsídios a mães solteiras, seguindo
corroía a vontade de trabalhar, solapava a vida um cálculo racional, eles, supostamente, esco-
familiar estável e estimulava comportamentos lhem o casamento e a busca de remuneração por
ilegais. Isto porque, para a mão-de-obra braçal meio de inserção no mercado de trabalho. Dez
ou pouco qualificada, ficar desempregado não anos depois, há subsídio para mães solteiras, e,
significava necessariamente ganhar menos e, no portanto, nesse momento, a escolha lógica seria a
caso das mulheres, filhos ilegítimos poderiam de não se casarem. Já nos anos de 1970, a ajuda
representar ganhos superiores aos oferecidos é maior do que o salário que Harold poderia ob-
pelo mercado de trabalho: a ajuda vinda princi- ter na hipótese de não se casarem e, assim, en-
palmente do Aid To Families With Dependent quanto ele opta por permanecer desempregado e
Children – AFDC estimulava o desemprego vo- não se casar, ela prefere continuar tendo filhos:
luntário e a desorganização familiar. Produzia-
se, assim, por meio das políticas estatais, uma [na década de 1970] era mais fácil sobreviver sem
“cultura da dependência” ou de “parasitismo so- ter um trabalho. Era mais fácil para o homem ter
cial” diametralmente oposta ao ideário norte- um filho sem ser responsável por ele, para a mu-
lher ter um filho sem ter marido [...]. Porque era
americano que cultiva aqueles que ganham bem
mais fácil sobreviver sem trabalho, era mais fácil
com o esforço do trabalho, pagam impostos, ignorar a educação. Porque era mais fácil sobre-
educam os filhos nos padrões da moralidade viver desempregado, era mais fácil passar de um
dominante e participam do desenvolvimento da trabalho para outro e através disto acumular uma
comunidade em que vivem. ficha de inempregável (p. 175).
No prefácio da 2.ª edição, publicada em
1994, Charles Murray, após dizer que o livro so- Para os estudiosos progressistas da época era
freu “ataques selvagens da esquerda”, enfatiza que difícil contra-argumentar as colocações conserva-
doras que insistiam na culpabilização das vítimas
[...] atualmente é aceito que os programas sociais e nos nefastos efeitos das políticas de bem-estar
dos anos de 1960 de modo geral falharam; que o social em produzir a desnecessidade de trabalhar
governo é grosseiro e inoperante quando interfe-
re na vida local; e que os princípios de responsa-
e a desorganização familiar: “deste ponto de vista,
bilidade pessoal, penalidades para o mal compor- o ‘sucesso’ atual da noção de underclass como fi-
tamento e recompensas para o bom precisam ser gura do undeserving poor só é o sucesso político
reintroduzidos nas políticas sociais (p. XVI). dos conservadores” (Avanel, 1997, 217).
Isso não significa dizer que não houve auto-
E mais adiante: res que tenham se oposto aos modelos explicati-
vos e às políticas conservadoras dos anos de
[a underclass] não tem os mesmos valores que a
1980.8 Nesse particular, ganha relevância a obra
classe média referentes ao trabalho árduo, ho-
nestidade e responsabilidade pessoal. [...]. Há de William Julius Wilson. Mesmo este autor, cujas
dez anos [eram poucos os estudos que associa- pesquisas sobre a pobreza urbana são das mais
vam as políticas] de bem-estar com [nascimentos] reconhecidas no meio acadêmico, necessita expli-
ilegítimos. [...] Atualmente, eles se expandiram citar, no prefácio de The Truly Disadvantaged,
consideravelmente. Daqui a dez anos será am- sua posição política: “eu sou um social democra-
plamente aceito entre os pesquisadores que a
existência de um extenso sistema de bem-estar
ta” (p. VIII). Isto porque, malgrado ser um pesqui-
constitui condição decisiva para facilitar a ilegiti- sador que se situa no campo progressista, em tra-
midade (p. XVII). balho anterior, ao argumentar que a questão racial
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 67

explicava cada vez menos a marginalização da po- de 1990, no discurso oficial como presidente da
pulação afro-americana, recebera, por essa razão, Associação Americana de Sociologia, recomenda o
críticas que procuraram situar sua argumentação seu abandono (1990). Em When work disappears
no espectro conservador do debate acerca da pro- (1997), o autor utiliza o termo raramente e de ma-
blemática sobre a underclass (p. 5). O teor da po- neira crítica, preferindo a designação de jobless
lêmica foi um exemplo flagrante de como o deba- ghetto para conceituar os assim chamados novos
te norte-americano era abertamente polarizado pobres urbanos.10 A partir da década de 1990 são
entre conservadores e liberais. Nas primeiras pági- raros os pesquisadores progressistas que o utili-
nas da obra em pauta pode-se ler: zam, pois se tornou “um instrumento de acusação
pública” (Wacquant, 1996a, p. 250).11
[...] gostaria de sugerir como a perspectiva liberal
pode ser reforçada para colocar em xeque a
atualmente dominante visão conservadora acerca
Conservadorismo e novo liberalismo
do ghetto underclass e, mais importante do que
isto, fornecer uma discussão intelectual mais
equilibrada acerca do crescimento dos problemas “America is back”: coesão familiar, trabalho
das áreas centrais [...] [que concentram a popula- árduo, laços comunitários, esforço e responsabi-
ção negra] (p. 11). [E, nesse sentido, Wilson vai lidade individual, diminuição da ação estatal,
insistir que] o racismo constitui uma explicação crença no livre jogo do mercado, patriotismo. Eis
demasiadamente simples (p. 61).
algumas ênfases dos valores que caracterizam os
discursos e as ações da hegemonia conservado-
Além do racismo, a explicação proposta pelo
ra que se acentuam a partir dos governos Ronald
autor privilegia o processo de desindustrialização Reagan e George Bush. No âmbito das políticas
na maioria dos grandes centros urbanos, em que públicas, cabe destacar a lei de 1988, conhecida
mudanças tecnológicas e organizacionais levaram como Family Support Act –FSA, que altera as re-
à redução do trabalho pouco ou não-qualificado. gras do Aid to Families with Dependent Children
Paradoxalmente, a expansão econômica e a uni- – AFDC: tratava-se de combater a permissivida-
versalização dos direitos civis dos anos de 1960 fi- de dos subsídios públicos. O espírito do novo
zeram com que as camadas afro-americanas mais programa colocava em xeque o princípio de
habilitadas para enfrentar as mudanças que ocor- prerrogativas de direitos – entitlement –, pois a
riam deixassem os guetos para irem trabalhar e concepção de contrapartida passa a ser condição
morar em comunidades mais prósperas. Essa eva- necessária para a obtenção de benefícios: deve
são foi desastrosa para os estratos negros que lá “haver obrigações sociais da cidadania” (Mead,
permaneceram, pois levou não só a uma maior 1986).12 O clima social e político dominante na
concentração de pobreza, desemprego, desorgani- década de 1980 permite tornar explícito os pres-
zação familiar e anomia, como também a um iso- supostos acerca da pobreza feminina, principal-
lamento que gerou graves conseqüências. A saída mente, a afro-descendente:
de indivíduos e instituições propulsoras de rela-
ções e oportunidades sociais e econômicas – esco- [...] eles implicam que as políticas de bem-estar
las, igrejas, lojas e profissionais – acirrou a margi- causam ruptura familiar, que as mulheres pobres
nalização ante as pujantes dinâmicas que ocorriam têm filhos para aumentar seus benefícios, que
mulheres sem maridos são promíscuas e sexual-
na sociedade norte-americana: “o conceito teórico,
mente irresponsáveis e que o casamento consti-
portanto, não é cultura da pobreza, mas o isola- tuía uma estratégia eficiente de combate à pobre-
mento social”.9 za para as mulheres sem recursos (Abramovitz e
Vale ressaltar que a ambigüidade do termo Withorn, 1998, p. 156).
underclass e sua utilização acusatória fez com que
o próprio Wilson, que havia defendido a utilização A hegemonia do período republicano produ-
do conceito em Truly Disadvantaged, em agosto ziu novas concepções políticas que aproximaram
68 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

liberais e conservadores no governo democrata classes urbanas em termos marcadamente patoló-


subseqüente de Bill Clinton: end the welfare as we gicos e imorais. Nesse aspecto, novamente des-
know it, frase da primeira campanha presidencial, pontam os estudos de Charles Murray:
sintetiza novos postulados neo-liberais que de-
sembocam no estuário tradicional das premissas Eles se comportam de maneira diferente de todos
conservadoras e que, em meados dos anos de os demais [...]. O homem na família era incapaz de
manter um trabalho por mais de algumas sema-
1990, com a vitória republicana no Congresso, nas. A crianças estavam negligenciadas e compor-
como será detalhado mais adiante, dará origem ao tavam-se de forma grosseira, criando problemas
PROWORA – Personal Responsability and Work nas escolas. Freqüentemente, os pais dessas crian-
Opportunity Reconciliation Act. Seus pressupostos ças não eram casados. Alcoolismo e promiscuida-
são a exigência da necessidade de trabalhar e o de sexual eram comuns. Assim como o crime, pe-
queno ou grande. Esse tipo de comportamento é
combate à desestruturação familiar, enquanto o
o que designo pelo termo underclass – que não é
benefício torna-se mais difícil de ser obtido, limi- somente pobreza, mas uma forma de comporta-
tado no tempo e sujeito a constante verificação. mento [...]. Dez anos atrás, eu não poderia ter es-
O elã liberal de promover grandes reformas crito os parágrafos precedentes sem ter sido cha-
consubstanciadas na War on Poverty da década mado de racista (Murray, 1996, pp. 91 e 100).13
de 1960 chegou ao fim, quando o próprio presi-
dente Clinton declara que “the era of government A arrogância desse conservadorismo triunfa-
is over”. Mas não apenas mais mercado e menos lista, que radicalizou a culpabilização das vítimas,
Estado passaram a alimentar o inventário dos no- continuou no percurso dos anos de 1990 a susci-
vos democratas, também os postulados progres- tar fortes críticas. Para só citar algumas obras re-
sistas tradicionais foram sendo solapados por centes: foram denunciadas novas modalidades de
concepções moralistas acerca dos comportamen- racismo que insistiam na falta de motivação por
tos e dos valores da população pobre. A retórica parte dos grupos afro-descendentes e, portanto,
conservadora triunfava na medida em que as en- na inoperância do apoio público (Wilson, 1999,
tonações acusatórias relacionadas ao welfare de- pp. 21 e seguintes). Contestou-se a inexistência de
pendency ganhavam suporte na opinião pública aspirações diversas entre camadas pobres e reme-
e traduziam-se em políticas governamentais. Em diadas ou abastadas e que a questão da pobreza
síntese, tratava-se do “colapso do liberalismo” deveria ser equacionada em torno das diferenças
(Noble, 1997, p. 135). de oportunidades socioeconômicas (Gans, 1994,
Vale insistir nas teclas da aproximação dos caps. 1 e 2). Contudo, a argumentação dominante
novos liberais com as entonações da ação e do deixou de estar centrada nas análises macroestru-
pensamento das partituras conservadoras: turais – mudanças tecnológicas e organizacionais,
desindustrialização, deteriorização e êxodo urba-
[...] o ataque sistemático nas políticas de bem- no, dinâmica das classes, preconceito racial, ou na
estar teria sido outra rodada de reformas histo- questão feminina. Esses enfoques perderam gran-
ricamente conservadoras se não tivesse sido de parte de sua capacidade persuasiva na medida
aprovado com grande suporte liberal. Os legis- em que sucumbiram na avalanche explicativa que
ladores “liberais”, a media “liberal” e os cientis-
culpabilizava os pobres por sua situação. Em
tas sociais “liberais” apoiaram as reformas de
maneira acrítica, justificaram seus ataques ou suma, nas palavras de um texto radical que mos-
consentiram por meio do próprio silêncio tra a capitulação dos novos liberais: “a direita ven-
(Abramovitz e Withorn, 1998, p. 152). ceu” (Abramovitz e Withorn, 1998, p. 173).
A trajetória do programa designado de Aid
A pouco mencionei que o termo underclass to Families with Dependent Children – AFDC
tinha caído em desuso nos anos de 1990. Desuso pode dar uma visão da evolução das políticas pú-
relativo, pois o núcleo do pensamento conserva- blicas nos Estados Unidos. Criado em 1935 como
dor reforçou nas tintas que pintavam essas sub- uma medida de proteção às viúvas, foi ampliado
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 69

durante a década de 1960, com a implementação O debate na atualidade francesa:


da War or Poverty para famílias que tinham um ou a responsabilidade do Estado
dois desempregados, bem como para as monopa-
rentais, principalmente, de mães solteiras. Essa Não se constrói cidadania sobre a inutilidade social.
política passa a ser extremamente criticada pelos Robert Castel, 1995a.
conservadores e cada vez mais irá prevalecer a
concepção de contrapartida para quem é ajudado Os percursos da questão social
pelo poder público. Como já mencionado, esse é
o espírito da lei conhecida como Family Support Extraída de obra seminal, esta frase sintetiza
Act de 1988, promulgada durante o governo de a amplidão do debate francês. Sintetiza, ao contrá-
George Bush. Nela, o princípio de welfare é subs- rio da polêmica norte-americana, que a extensa
tituído pelo de workfare e learnfare, que se tor- vulnerabilidade é de responsabilidade do Estado.
naram condições prévias para se obter auxílios. De fato, com diagnósticos e propostas diversas, os
Bill Clinton não tem posição diversa: em 1994 é diferentes partidos do espectro político francês, da
aprovada uma lei que substitui a AFDC pela TANF esquerda à extrema direita, consideram ser função
– Temporary Assistence for Needed Families, que essencial da ação estatal combater a assim chama-
possibilita uma ajuda de apenas dois anos conse- da exclusão social e econômica. Por outro lado,
cutivos ou cinco no total, permitindo a cada Esta- vultuosos recursos são alocados em áreas degre-
do estipular o montante a ser despendido e legis- dadas, os quartiers difficiles, que concentram con-
lar sobre as regras para a concessão de auxílio. tingentes de estrangeiros, mas também grande
Finalmente, a reforma de agosto de 1996, quando número de franceses que se encontram desempre-
há maioria republicana, o 103º Congresso, com a gados ou com tarefas precárias, onde é freqüente
adesão de uma grande fatia dos democratas, a desorganização familiar, o isolamento social e a
aprova um novo Contract-with-America, o Perso- delinqüência juvenil.
nal Responsability and Work Opportunity Recon- Vale dizer que nenhum agrupamento políti-
co, sindical, técnico ou intelectual coloca em xe-
ciliation Act – PROWORA, que torna a concessão
que a necessidade da atuação governamental: os
de benefícios mais rígida, baseada na emulação
debates e embates residem no que e como o Es-
da responsabilidade individual. Sua finalidade, ao
tado precisa atuar. Apesar de antigos, eles ga-
extinguir a prerrogativa de direitos, é combater a
nham novos contornos depois da Segunda Gran-
assim designada welfare dependency.
de Guerra, no contexto de uma nação que recém
Vale insistir na importância dessas mudanças:
expulsara os invasores nazistas e fizera as contas
Esta reforma [PROWORA] efetivamente destruiu a com os colaboracionistas de Vichy: era necessário
antiga presunção de sessenta anos de que as famí- reconstruí-la. Nesse sentido, aponte-se que, após
lias com necessidade tinham “direito” às políticas 1945, inicia-se uma longa fase de crescimento, no
de bem-estar social. Pela primeira vez, governos qual os órgãos governamentais têm forte interfe-
estaduais poderiam negar auxílio às mulheres po- rência econômica. São os “Trinta anos gloriosos”,
bres, mesmo quando se encontravam qualificadas
caracterizados pelo pleno emprego e pela exten-
segundo as regras de elegibilidade do programa.
O novo nome para AFDC – Temporary Aid to Nee- são de uma gama de direitos que fundamenta a
ded Families – assinala a intento dessas drásticas proteção social dos assalariados. Mais do que
revisões (Abramovitz e Withorn, 1998, p. 159). nunca se impulsiona a construção do Estado de
bem-estar social – État Providence ou État Social.
Repita-se quantas vezes necessário for: ape- É nesse contexto social e político que se te-
sar de amortecida durante os anos de 1990, a dis- cem os fios da questão social da atualidade fran-
cussão norte-americana continua centrada na cesa.14 Sua problematização e as políticas sociais
questão da welfare dependency e, em última ins- dela derivadas podem ser periodizadas em quatro
tância, em blaming or not blaming the victim. grandes momentos. O primeiro, no esforço de re-
70 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

construção do pós-guerra, estende-se até o fim breza porque a vulnerabilidade deixa de afetar só
dos anos de 1960 e o problema a ser atacado cen- os grupos periféricos para se tornar um problema
tra-se na moradia, principalmente, em prédios an- que desaba sobre as camadas que ocupam os es-
tigos que abrigam cortiços. Daí a palavra de or- tratos inferiores da pirâmide social. Não é mais só
dem levada adiante pelo abade Pierre em 1965: a fímbria da sociedade, mas se trata agora tam-
“guerre au taudis”! Desencadeiam-se ações go- bém de suas bases:
vernamentais de renovação urbana, construção
de grandes conjuntos, principalmente os HLM, Nos anos de 1980, o movimento de precarização
econômica e social afeta as pessoas de baixa qua-
habitação de aluguel moderado. Na mesma dire-
lificação, os handicapés légers, grande número de
ção desse discurso católico, Jean Labbens, mili- pessoas que, durante o período de expansão desig-
tante da Association Quart Monde – ATD, desig- nado de “Trinta Gloriosos”, tinha um emprego. A
nação que se refere aos que não conseguiram se participação na vida econômica e social torna-se,
manter ou se tornar assalariados, denuncia as in- para esses novos pobres, conjunturalmente aleató-
justiças e clama por intervenções que incorporem ria. Os mais dotados em capitais escolares e rela-
cionais permanecem, por um tempo ainda, poupa-
os “esquecidos” do progresso (Labbens, 1969,
dos por essa nova pobreza (Frétigné 1999, p. 62).
1978).15 É este também o posicionamento do aba-
de Wrisinski, criador da citada entidade e dinami- Lenta e persistentemente a questão social ad-
zador do movimento aide à toute détresse, ou quire novas e amplas configurações, passando
seja, daqueles que não conseguiram acompanhar dos “esquecidos do crescimento” dos anos de
o dinamismo da sociedade industrial. 1970 para os menos preparados do decênio se-
No segundo momento, já em meados dos guinte, para culminar em uma situação de exten-
anos de 1970, a problemática transborda o âmbi- sa vulnerabilidade que, em sua plenitude, des-
to da moradia e dos deserdados da fortuna. É nes- ponta no início da década de 1990. Em síntese,
sa conjuntura que o termo exclusão social, através em vinte anos a questão social metamorfoseia-se
do livro de René Lenoir (1974), secretário de Es- de “anormais incapazes” para “normais inúteis”
tado da Ação Social do governo Jacques Chirac, (Donzelot, 1996, p. 59).17 Ela passa a englobar
de filiação gaullista, começa a adquirir visibilida- também estratos com níveis mais elevados de ins-
de ao instalar-se de forma ainda pouco ruidosa no trução e qualificação, trabalhadores especializa-
universo discursivo da política e da imprensa. dos e quadros profissionais que até então trilha-
Malgrado a análise realçar os problemas pessoais vam carreiras estáveis e previsíveis, num percurso
em detrimento dos macroprocessos socioeconô- protegido por direitos que lhes propiciava a as-
micos, já se aponta para o fato de que o cresci- censão econômica e social e uma forte presença
mento da riqueza em si não reduz os níveis de no cenário político. Inicia-se uma situação de vul-
pobreza que se abate sobre os handicapés so- nerabilidade advinda do desemprego e da preca-
ciaux: doentes mentais, alcoólatras, deficientes fí- rização do trabalho, rebaixamento de status e da
sicos e mentais e uma gama de inadaptados que perda de raízes ligadas à sociabilidade primária.
deveriam ser beneficiados por políticas específi- Trata-se de grandes e variados grupos de “excluí-
cas de proteção social. Trata-se de uma “outra dos”, sobre os quais as ciências humanas produ-
França [...] à margem da normal [...] mas que, não ziram dezenas de investigações e inúmeras teori-
obstante sua situação de excepcionalidade, cons- zações sobre essa sempre renovada questão social
titui uma [...] gangrena que ameaça [...] o conjun- que passa a penetrar o centro dos debates jorna-
to do corpo social” (Lenoir, 1974, pp. 10 e 36). lísticos e políticos.
A partir da segunda metade da década de Não pretendo fazer um balanço dessa vasta
1980, já não se diz mais os “expelidos pelo dina- literatura, mas tão-somente apontar a caracteriza-
mismo do progresso”, pois os diagnósticos e as ção feita por alguns autores que toca em pelo me-
proposições se calibram em torno do que se con- nos três pontos básicos interligados. O primeiro diz
vencionou chamar de nova pobreza.16 Nova po- respeito à desnecessidade desses grupos para as
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 71

dinâmicas econômicas. Cito apenas alguns autores: Seja pelo aumento do desemprego e traba-
Jaques Donzelot e Philipe Estebe (1991, p. 26) fa- lho precário, seja pela crise econômica pós-1975,
lam em “normais inúteis”, Robert Castel (1991, p. pelas mudanças tecnológicas e organizacionais
154; 1993, p. 145), em “desestabilização dos está- decorrentes do modo de acumulação flexível ou
veis”. Serge Paugam (1991, pp. 6 ss.) alude ao por inúmeras outras causas que não cabem aqui
“descrédito” que se abate sobre os que estão à aprofundar, o importante a realçar é que esses
margem, Vincent Gaujelac e Isabele Leonetti (1994, mundos operário-populares se desfazem: neles,
p. 4) sublinham a percepção de “inferioridade”, de os conflitos e as reivindicações contrapunham-se
“identidade de ferida”, Viviane Forrester (1997, p. a opositores visíveis – o Estado, a burguesia, o pa-
38) exagera acerca da “normalização da anulação tronato – e a violência inerente a essas lutas cons-
social”, enquanto Pierre Bourdieu (1993, pp. 487- truía significados e sentidos que visavam a alterar
498), em magnífica obra coletiva, descreve o sofri- a balança dos benefícios e das riquezas, e não
mento físico e mental decorrente da extrema po- poucas vezes projetavam valores de uma nova so-
breza e nos revela o que significa “viver por um ciedade. Dito de outra forma, é o momento da
fio”.18 Finalmente, há a temática referente à perda centralidade das classes trabalhadoras, sobretudo
das identidades advinda do desenraizamento fami- da operária, na hegemonização das lutas e das
liar e comunitário, à queda da participação em as- reivindicações socioeconômicas e políticas. Nas
sociações recreativas, sindicais e partidárias, pro- áreas em que as indústrias têxteis, metal-mecâni-
cessos que conduzem à apatia e ao isolamento em ca, automobilística, química ou siderúrgica fecha-
um cenário social e político marcado pela diminui- ram suas portas, os moradores que puderam sair,
ção dos conflitos abrangentes, fragmentação dos assim o fizeram, lá permanecendo aqueles que
atores sociais e diluição de interesses coletivos. É não tinham a alternativa de partir destes bairros,
nesta acepção que Jacques Donzelot e Philipe Es- que passaram a ser chamados de “difíceis” ou
tebe (1991, p. 27) se referem às “não-forças so- “sensíveis”, para permanecer nas designações ofi-
ciais, esta classe de desclassificados”, que Robert ciais mais freqüentes. Nessa conjuntura acirrada
Castel (1985a, p. 427) acentua a “ausência de pers- nos anos de 1980 e 1990, desarticulam-se as for-
pectivas para controlar o futuro”, e que Pierre mas associativas que sedimentavam identidades
Rosanvallon (1995, p. 203) dirá: “os excluídos assentadas no trabalho assalariado e na vida co-
constituem, de fato, quase que por sua própria es- munitária: trata-se de um enorme processo que
sência, uma não-classe”. Castel denomina crise da sociedade salarial (Cas-
Em suma: a questão social passa a ser mar- tel, 1995a, caps. 7 e 8).
cada por um processo em massa de desenraiza- Por outro lado, vale sublinhar que a assim
mento e vulnerabilidade social e econômica. O chamada violência urbana passa a ser freqüente
operário, antes sindicalizado e freqüentemente no cotidiano desses bairros, também designados
simpatizante ou militante de esquerda, comunista de “relegados” (Delarue, 1991).19 São manifesta-
ou socialista, vivia em bairros densos de vida so- ções esparsas e descontínuas, um pipocar de
cial e política, dos quais se destaca, por sua tradi- depredação, brigas, pequenos delitos ou outros
ções e experiências de luta, a ceinture rouge, cor- atos predatórios realizados por jovens, la galère.
respondente às áreas que rodeiam Paris (Brunet, Traduzem sentimentos difusos de “ira”, “ódio”,
1980, 1981; Pronier, 1983; Fourcaut, 1986). Nelas “raiva” ou “tédio”, “a chatice e o vazio da exis-
ramificavam-se múltiplas formas de sociabilidade tência” que, em certas ocasiões, explodem nas
operário-popular em torno das associações de banlieus, também chamadas de exílio:20 “eles se
bairro e também nas horas de lazer, festas, espor- revoltam mas não reivindicam nada. Expressam
tes e no bistrot, onde se teciam redes de solida- pela rebelião um desespero” (Donzelot e Este-
riedade que asseguravam uma proteção advinda be, 1991, p. 38). Minguettes, periferia de Lyon,
da proximidade social das classes trabalhadoras verão de 1981: logo após a vitória dos socialis-
(Magri e Topalov, 1990). tas com a eleição de Mitterrand, numa conjuntu-
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

ra política promissora às propostas da esquerda, eixos que norteiam a questão social. Nesse senti-
jovens furtam e queimam automóveis de luxo, do, são exemplos a serem destacados o Dévelop-
sob os olhares perplexos do país, que a tudo as- pement Social de Quartier, de 1981, as Zones
siste ao vivo pela televisão, e de uma polícia d’Education Prioritaires, no ano seguinte, o Comi-
que não sabe o que fazer. Não são delinqüen- té Communal de la Prévention de la Délinquence,
tes, mas cometem pequenos delitos, são arrua- Délégation e Comité Interministerielle de la Ville,
ceiros que em bandos perambulam sem rumo, em 1988, que culminaram um ano depois no Mi-
consumidores de drogas, com baixo nível edu- nistère de la Ville, que coordena a ação de vários
cacional, uns desempregados, outros trabalhan- órgãos referentes à educação, à saúde, ao empre-
do, saltitando de estágio em estágio profissional. go, à reforma e ao planejamento urbano, além de
Seus comportamentos caracterizam-se pela inci- programas específicos voltados a jovens, idosos,
vilidade e falta de civismo em relação à família, famílias numerosas ou de chefia feminina (Da-
à escola, ao prédio e ao bairro em que vivem, mon, 1997). Sabe-se que os bairros periféricos são
onde se localizam grandes conjuntos habitacio- diversos, bem como a população que lá habita
nais, freqüentemente degradados e depredados.
(Vários autores, 1998). Não obstante essa consta-
Suas cóleras voltam-se contra os agentes públi-
tação, as análises insistem na temática da “fratura
cos, professores, assistentes sociais e, sobretu-
urbana”, da “cidade desfeita, quebrada e implodi-
do, contra a polícia. Ativismo que não se cana-
da”, em síntese, da “sociedade incivil” (Donzelot,
liza em reivindicações concretas, “nomadismo
1999, p. 97).
imóvel”, pois, como um relógio, sempre volta
Repita-se quantas vezes necessário for: nes-
para o mesmo ponto, “agitações sem objeto”, já
ses locais ocorreu o esfacelamento do modo de
que suas energias não se calibram para superar
vida de tradição operário-popular, decorrente de
problemas concretos: “zonear significa peram-
um processo de urbanização que criou os gran-
bular na superfície das coisas, aprimorar-se em
nada fazer, ir de um lugar a outro sem ir a lugar des e desumanos conjuntos habitacionaise do es-
algum” (Castel, 1995b, p. 14).21 vaziamento das atividades fabris e da capacidade
Tudo indica que a galera não se caracteri- organizativa de associações, sindicatos e partidos
za por uma “cultura da pobreza” à la Oscar Le- de esquerda. Nesses locais, onde “não se deve
wis ou pelo “isolamento sociocultural” como ir”, o cotidiano é marcado por manifestações en-
William J. Wilson se refere aos inner cities ghet- dêmicas de violência urbana. Utilizo longa cita-
tos underclass dos Estados Unidos, mas revela ção de uma pesquisa que mergulhou no signifi-
atitudes e comportamentos que já foram cunha- cado de habitar nessas periferias marcadas pela
dos de “cultura do aleatório” (Rouleau Berger, marginalização:
1992, apud Castel, 1995a, p. 411).22 Contudo,
nessas áreas, não habitam apenas pessoas que [Essas aglomerações são] os lugares onde não se
vivem um processo de ruptura social e econô- vai jamais, a não ser quando lá se mora ou quan-
do há razões imperiosas [...]. A violência volta-se
mica, nem prevalecem a desesperança, a desor-
contra aqueles que dividem o mesmo habitat, a
dem ou um potencial crônico de agressão. Isso mesma comunidade de destino. E, forçosamente,
existe, sem dúvida, mas, como mostra a etno- ela transborda para o exterior de maneira erráti-
grafia que se deteve no significado da vida nes- ca, não política, ela faz as famílias implodirem
ses bairros, é também um espaço do trabalho, [...]. São também locais em que bombeiros, poli-
do estudo, das relações afetivas e – como não ciais e trabalhadores sociais ou outros visitantes
poderia deixar de ser – onde se arquitetam pro- não podem mais ir sem ser insultados ou agredi-
dos [...] não podem mais deixar seus automóveis.
jetos e aspirações que combinam desânimo, de-
[É onde] a lei do silêncio reina sobre os atos co-
silusão, esperança e otimismo.23 metidos de uns contra os outros, quando a vin-
A problemática urbana e a dos jovens torna- gança privada suplanta a sanção pública (Murard,
ram-se, no decorrer da década de 1990, um dos 1995, pp. 203, 207 e 217).
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 73

A presença do Estado autor, de um estado ou de uma condição, mas de


um percurso que é preciso constantemente perse-
Afirmei que foram inúmeros os autores que guir para delinear suas múltiplas metamorfoses,
trataram deste complexo tema, utilizando concei- pois a questão social só pode ser equacionada do
tos os mais diversos. Para mencionar apenas al- ponto de vista histórico, por conseguinte, dinâmi-
guns: desqualificação social, que indica os rejei- co, mutável e contraditório. Daí o título do livro:
tados do processo produtivo e suas conseqüências Les métamorphoses, “metamorfoses, dialética do
socioculturais, ou desinserção, caracterizada pelo mesmo e do diferente [...]. A questão social é uma
enfraquecimento dos laços relacionais e por uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade
identidade (auto)estigmatizante que acaba por in- experimenta o enigma de sua coesão e procura
duzir ao retraimento, à resignação ou à rebeldia.24 conjurar o risco de sua fratura” (1995a, pp. 16 e
Aponto também as colocações de Alain Touraine, 18, grifos meus).
segundo as quais a oposição “no alto ou em bai- De modo esquemático, o modelo formal
xo” teria sido uma hierarquização típica das socie- está apoiado em dois eixos, um de caráter econô-
dades industriais estruturadas na dinâmica das mico, e outro, social, representados pelas trajetó-
classes sociais e superada pelos solavancos das rias, respectivamente, do emprego estável e regu-
sociedades pós-modernas. Nelas, as estruturações lar para modalidades de trabalho precário até
sociais e econômicas estariam assentadas na dico- atingir a situação de desemprego, e da plena in-
tomia de setores in e out, pois a verticalidade das serção na sociabilidade primária – família, vizi-
polarizações teria sido suplantada por aquela de nhança, comunidade –, marcada por sólidas redes
caráter horizontal, isto é, estar ou não nas ban- sociais ao retraimento do universo domiciliar/pes-
lieus (Touraine, 1992; 1991). soal, definido pela fragilização das relações. Daí
Não obstante tais contribuições, considero, surgem quatro zonas: de integração, caracteriza-
contudo, que a obra de maior envergadura histó- da por garantias de um trabalho permanente e
rica e teórica é a de Robert Castel: por relações sociais sólidas; de vulnerabilidade,
que conjuga precariedade no trabalho e fragiliza-
[...] silhuetas incertas às margens do trabalho e ção da sociabilidade primária; de assistência, que
nas bordas das formas de troca socialmente con- revela um quadro no qual várias formas de subsí-
sagradas – desempregados de longa duração, ha- dio público se tornaram imprescindíveis para não
bitantes das periferias deserdadas, beneficiários ocorrer uma dinâmica de desligamento social e
da renda mínima de inserção, vítima das rencon-
econômico; e, por fim, de desfiliação, que signi-
versões industriais, jovens em busca de emprego
e que perambulam de um estágio a outro, peque- fica não só desemprego, mas também perda das
nas tarefas em ocupação provisória – quem são raízes forjadas no cotidiano do trabalho, do bair-
eles, de onde vêm, como chegaram lá, o que irão ro ou da vida associativa. “Atualmente [início da
se tornar? (1995a, p. 13).25 década de 1990] a zona de integração se fratura,
a zona de vulnerabilidade está em expansão e ali-
Situações as mais diversas: ex-operários que menta continuamente à zona de desfiliação. O
possuíam uma profissão, idosos que vivem retira- único recurso reside em reforçar no mesmo ritmo
dos no seu isolamento, bandos de jovens que va- a zona de assistência?” (Castel, 1991, p. 153).
gueiam sem nada fazer. Essas trajetórias nada têm Indivíduos desenraizados sempre existiram e
em comum e seus destinos não os unem, salvo a sobre estes errantes de séculos passados desaba-
existência vulnerável, a percepção de um destino va uma representação flagrantemente discrimina-
incerto: desfiliação significa perda de raízes so- tória e estigmatizante. Sobre as ditas “profissões
ciais e econômicas e situa-se no universo semân- infames” despencavam a pecha vadiagem, malan-
tico dos que foram desligados, desatados, desa- dragem, charlatanice ou patifaria, e, no decorrer
marrados, transformados em sobrantes, inúteis e da história, várias foram suas designações: “indi-
desabilitados socialmente.26 Não se trata, alerta o gentes franceses, malfeitores ingleses, aventurei-
74 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

ros na Alemanha, pícaros espanhóis, larápios, ve- nos conflitos e aceitam as regras de sua negocia-
lhacos, excluídos, mendigos, rufiões, truões, ma- ção. Trata-se de um embate institucionalizado que
landros, malabaristas, farsantes, devassos, luxurio- visa à expansão do direito a ter direitos. Ela é,
sos e rameiras [...]” (Castel, 1999, p. 33). ademais, forjada pela chamada cultura do pobre,
Esses segmentos marginais não devem ser na acepção que Richard Hoggart (1970) confere à
confundidos com aqueles que se encontram em percepção de pertencer a valores e expectativas,
uma condição de exclusão. Trata-se de uma dife- a sociabilidade que aproxima as pessoas numa
renciação conceitual crucial, porque a noção de metamorfose que entrecruza o mundo do traba-
exclusão, além de estar saturada de significação, lho com comunidade de bairro. A sociedade sala-
traz consigo a idéia de uma dicotomia estática e, rial é também constituída pela formação das clas-
portanto, a-histórica (Castel, 1995a, p. 15). É tam- ses trabalhadoras – da qual nos fala Edward P.
bém crucial, pois se sabe que, já no século XIV, a Thompson (1997) –, apoiada nas tradições que la-
palavra esteve associada à idéia de não ser admi- pidam mútuos reconhecimentos e experiências
tido, repelido ou de ser mandado embora. Poste- compartilhadas.27
riormente, seu significado passa a designar al- A dignificação do trabalho assalariado é um
guém que se encontra desprovido de direitos tortuoso percurso que atravessa todo o século
(Rey, 1992, apud Frétighé, 1999, p. 151); ou seja, XIX e parte do século XX. De forma sumária,
significa cercear, separar ou confinar, cujos exem- pode-se dizer que começa a se configurar após
plos são o apartheid, da África do Sul, até recen- 1830 uma nova questão social que se circunscre-
temente, ou os negros norte-americanos que até ve em torno do pauperismo imperante com o
os anos de 1960 em Estados do Sul eram impedi- avanço da Revolução Industrial. A liberdade de
dos de entrar em determinados locais. Pode ter, contratação vigente produziu uma mão-de-obra
além disso, o sentido de banimento, cujo exem- mal-remunerada, freqüentemente mutilada por
plo clássico foi a expulsão de judeus e mouriscos acidentes e dilapidada prematuramente pelas lon-
da Espanha dos reis católicos, que obrigaram sua gas jornadas de trabalho que caracterizavam as
conversão ao catolicismo ou, em contrapartida, o chamadas satanic mills. Basta ler Os miseráveis,
exílio. Restrição de acesso, confinamento ou de Vitor Hugo, para se ter um quadro do rigor e
expatriação supõe um ato que tenha força legal, dos horrores vinculados ao trabalho assalariado e
até mesmo em situações extremas de extermínio, à moradia em bairros pobres, onde predomina-
sejam os considerados heréticos pela Santa Inqui- vam a insalubridade e a promiscuidade da vida
sição, seja os judeus e ciganos na Alemanha na- nos cortiços e também se concentravam as “clas-
zista. Não se trata, portanto, de desfiliação, que ses perigosas” dos inícios do século XIX.
significa fragilização de laços socioeconômicos, A questão social da época residia em regula-
mas de destituição de direitos que, em última ins- mentar as condições de trabalho quanto à remu-
tância, pode atingir, seguindo o pensamento de neração, à jornada e à segurança e em criar um
Hannah Arendt, a perda do direito de ter direitos leque de proteção social para aqueles que ficas-
(Castel, 1995b, pp. 18-19). sem sem emprego. Basta a análise do processo
Por conseguinte, a questão social, que carac- que leva ao reconhecimento do desempregado
teriza a crise da sociedade salarial, reside num para se perceber que a construção da sociedade
amplo e variado processo de vulnerabilidade, mas salarial é plena de conflitos e negociações que
não revela, no caso francês, uma situação de ex- produzem o reconhecimento público do assalaria-
clusão nos vários graus e tipos antes apontados. do como sujeito de direitos coletivos (Topalov,
Ela é fruto de um percorrer histórico que leva à 1994): férias remuneradas, convenções coletivas e
ampliação e à consolidação de direitos coletivos, jornada de quarenta horas semanais, em 1936, leis
relativos à seguridade social e ao trabalho, enfim, da moderna seguridade social, após a Segunda
à constituição de um campo legítimo e legal de Grande Guerra, e salário mínimo, em 1950, são
reivindicações em que os opositores se chocam degraus que edificam a sociedade salarial, ao
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 75

passo que o controvertido contrato individual re- ção da história republicana revolucionária fran-
ferente à renda mínima de inserção – RMI, de cesa e do pensamento republicano. Desse ponto
de vista, a exclusão não é concebida como um
1988 – e à redução da jornada de trabalho para 35
simples fenômeno econômico ou político, mas
horas semanais, promulgada em 2000, já são ex- como uma falta de “nacionalidade”, um esgarça-
pressões da crise que se alastra a partir da déca- mento do tecido social (Siver, 1994, pp. 591-592,
da de 1980: grifos meus).

[...] da mesma forma que o pauperismo do século Essa problemática está presente no discurso
XIX estava inscrito no coração da dinâmica da pri- político oficial há algumas décadas. Contudo, o
meira industrialização [...] a precarização do traba-
lho é um processo central, comandado por novas
termo “exclusão”, no sentido forte de garantir a
exigências técnico-econômicas do capitalismo coesão social, só aparece no âmago do aparelho
moderno. Nisso residem muitos pontos para le- do Estado em 1991. É quando o Comissariat Gé-
vantar uma nova questão social, com a mesma néral du Plan assume a responsabilidade de pro-
amplitude e a mesma centralidade que aquela que mover a inclusão dos segmentos em situação de
o pauperismo colocava na primeira metade do sé-
vulnerabilidade, destacando a cidade, a escola, o
culo XIX [...] (Castel, 1995a, pp. 409-410).
emprego e a proteção social, pois os bairros peri-
féricos, os jovens que não acompanham a seria-
Repita-se ainda uma vez: quero crer que a
ção educacional, os desempregados de longa du-
questão social na França deve ser equacionada no
ração e aqueles que necessitam de assistência
âmbito da tradição republicana que se assenta –
despontavam como questões sociais que coloca-
do ângulo que aqui cabe salientar – em uma po-
vam em xeque a solidariedade social da socieda-
derosa maquinaria pública de proteção e regula-
de francesa (Fassin, 1996, pp. 43-44).
ção econômica e social. Trata-se de instâncias de
Desde então o debate penetra no coração
mediação de interesses conflitantes que têm por
dos embates e debates políticos, despontando
objetivo produzir um campo institucional de di-
como prioridade nacional que articula platafor-
reitos e obrigações. Além de republicana, é tam-
mas eleitorais e políticas de várias instâncias de
bém jacobina, no sentido de se opor a privilégios,
governo: a fracture sociale está no centro da cam-
e de esquerda, posto que, desde o século XIX, be-
panha de 1995, quando a direita, com Jacques
beu nas águas do sindicalismo e do mutualismo
Chirac, ganha as eleições, assim como dois anos
operário, e que, no século XX, valeu-se dos par-
depois, ocasião em que os socialistas, liderados
tidos e dos sindicatos comunistas e socialistas,
por Leonel Jospin, conseguem a vitória eleitoral:
que exerceram um papel decisivo na formatação
aquele aposta na dinamização da atividade eco-
do Estado de Bem-Estar já no período entre as
nômica e este – vale lembrar – prescreve a dimi-
duas Grandes Guerras Mundiais. Assim, penso ser
nuição da jornada de trabalho para 35 horas se-
possível afirmar que a problemática central do
manais. Na extrema direita, Jean Marie Le Pen, no
atual sistema político francês reside em gerar ins-
seu Appel aux Français, impregnado de racismo
tâncias de combate à vulnerabilidade econômica,
e xenofobia, também prioriza o combate à pobre-
social e urbana. Não é por outra razão que a for-
za e à desigualdade, vociferando contra a presen-
te presença da ação pública, ao procurar mediar
ça de estrangeiros em solo pátrio: o neo-fascista
formas de solidariedade, encontra-se em outro
fala em extirpar a França dos males alienígenas
universo da tradição do individualismo norte-
que a contaminam para devolvê-la aos verdadei-
americano, apoiada na valorização da work ethics
ros franceses. É também assunto central da gran-
e nos perigos, não raramente persecutórios, da
de imprensa que o aborda em termos indignados,
welfare dependency:
pois considera o alijamento social e econômico
[...] exclusão [é] uma palavra-chave da retórica re- em massa verdadeira “vergonha nacional”. Como
publicana francesa. Não só ela se origina na exemplo: “uma sociedade desenvolvida não pode
França, mas também está ancorada na interpreta- viver com semelhante fratura e tolerar que uma
76 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

parte importante de sua população arruíne sua ponto modal da controvérsia norte-americana –,
coesão social”.28 mas de criar instâncias públicas que interfiram
Para terminar este tópico, convém mencio- nessas situações e nas causas que as produzam.
nar algumas ações governamentais para os anos Nesse aspecto, a renda mínima de inserção
2000-2006 centradas na Gestion Publique de la (RMI) é paradigmática, pois o núcleo do debate
Politique de Ville, do governo de Jospin, dirigi- não reside no fato de ela provocar uma “cultura
das prioritariamente para a renovação urbana, o da inatividade”. Ao contrário, as críticas dominan-
emprego, o desenvolvimento, a educação e a se- tes são dirigidas por ela não ser um direito de ca-
gurança pública. Trata-se de uma intervenção ráter inquestionável e apresentar a formalização
coordenada a partir de contratos realizados com de um contrato individual, constantemente sub-
o Estado em 1.310 bairros prioritários, 750 zonas metido a questionamentos de entrevistas ministra-
urbanas sensíveis (ZUS), outras 416 de redinami- das por agentes dos serviços sociais. Para ter
zação urbana (ZRU), 44 denominadas franquia acesso a esse direito, a pessoa necessita compro-
urbana (ZFU), nas quais ocorrem isenções de im- var sua “desabilitação social” advinda de uma tra-
postos e de encargos sociais. Acrescente-se ainda jetória de vida estilhaçada por sofrimento e fracas-
trinta operações de renovação urbana e cinqüen- sos e que precisa ser retomada por meio de um
ta grandes projetos para cidades (GPV), 686 zo- projeto pessoal alicerçado na formação e na capa-
nas de educação prioritária (ZEP), 850 conselhos citação profissional, na busca de um emprego ou
comunais de prevenção da delinqüência (CCPD) de outra atividade social.30 Contudo, à diferença
e nada menos que 8.500 agentes locais de media- da concepção norte-americana, prevalece o prin-
ção social, especialmente treinados para múlti- cípio de prerrogativa de direitos: as políticas so-
plas atuações no âmbito comunitário.29 ciais orientam-se para reinserir os grupos margi-
Esse conjunto de atuações interligadas cons- nalizados, mas não constituem contrapartida
titui uma entre muitas formas de intervenção das necessária para a obtenção de benefícios. Em sín-
instâncias públicas no combate da assim denomi- tese, trata-se de um direito universal e, portanto,
nada “fratura social”. Não estou discutindo se a ao contrário da responsabilização individual pre-
forma mais adequada de reinserção socioeconô- sente nos Estados Unidos, a fórmula republicana
mica seja por meio da questão urbana, apoiada na francesa consiste em afirmar que “todo problema
dinâmica do bairro, pois sabe-se que os processos social do indivíduo é, antes de tudo, responsabi-
essenciais da precarização e da vulnerabilidade lidade da sociedade, que o indivíduo sofre os
não estão centrados no âmbito local (Préteceille, efeitos da sociedade, e esta, portanto, lhe deve
1998, p. 42). Deve-se até mesmo questionar essas proteção” (Donzelot, 2001, p. 223).
políticas caso estejam orientadas por uma concep- Essas são as linhas básicas do debate acerca
ção de segurança pública, que visa, por meio de da questão social na atualidade francesa, na qual a
órgãos assistências, jurídicos e policiais, a comba- presença da ação estatal continua estratégica e prio-
ter a pequena delinqüência praticada por jovens ritária para a reinserção dos grupos vulneráveis.
nas ruas dos bairros sensíveis ou difíceis, fazendo
com que “a prevenção estrutural desaparecesse
em proveito da prevenção da delinqüência” (Bo- E nós, como ficamos?31
nelli, 2001, p. 20). Contudo, à diferença do caso
Neste sentido ela [a pobreza] tem sim uma finali-
norte-americano, o republicanismo francês sem- dade, qual seja a de reproduzir a ordem social que é
pre priorizou a ação estatal como mediadora de sua desgraça. Como ficamos?
interesses e conflitos e, nesse sentido, criou apa- Roberto Schwarz, 1990.
ratos que lhe conferem a responsabilidade de agir
contra a marginalização social e econômica. Os Nas páginas anteriores mostrei que a temáti-
embates e debates não se centram, portanto, na ca da vulnerabilidade está centrada, no caso nor-
polaridade “culpar ou não culpar as vítimas” – te-americano, em culpar ou não culpar a vítima.
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 77

O discurso hegemônico que os conservadores breza passa a ser menos atribuído como de res-
vêm proferindo nos últimos vinte anos apregoa ponsabilidade do Estado, mesmo porque a ação
que os serviços sociais estariam quebrando a éti- pública de proteção sempre foi de pequena en-
ca do esforço e da responsabilidade individual ao vergadura. Além disso, atualmente, ganha corpo a
instalar o que chamam de welfare dependency. percepção de que o Estado seja inoperante, inefi-
No caso francês, ao contrário, em função da forte caz, corrupto, falido e que suas funções devam
tradição republicana e jacobina estruturada na ser reduzidas e substituídas por agentes privados,
crença sobre as virtudes da civilidade e do civis- mais capacitados para enfrentar as várias manifes-
mo que fundamentam os laços de solidariedade tações da marginalização social e econômica. Em
entre os diversos interesses e reivindicações, o conseqüência, tem ocorrido um amplo e diverso
debate, à esquerda ou à direita, torna o Estado processo de desresponsabilização do Estado em
elemento central na promoção da re-inclusão dos relação aos direitos de cidadania, e, no seu lugar,
grupos marginalizados ou desfiliados. surgem ações de cunho humanitário que tendem
E nós, como ficamos? A pergunta ganha sen- a equacionar as questões da pobreza em termos
tido quando se tem em conta que as grandes de atendimento particularizado e local.
transformações socioeconômicas e políticas das Não desconheço as potencialidades de no-
últimas décadas não foram capazes de atenuar a vas arenas que podem vir a estruturar campos de
pobreza em massa imperante na sociedade brasi- proteção e lutas por direitos socioeconômicos e
leira. Em outros termos, quais discursos e ações civis, cujos exemplos mais promissores consti-
dão conteúdo e forma às questões sociais de nos- tuem o estatuto legal de defesa das crianças e
sa atualidade urbana em torno da problemática da adolescentes, das mulheres, dos consumidores ou
desigualdade e da injustiça? a recente legislação que procura enfrentar os gra-
Diferentemente da estruturação discursiva ves problemas urbanos de nossas cidades. Todos
norte-americana, creio que a matriz da desigual- esses esforços, não obstante abrirem canais de de-
dade da sociedade brasileira não reside em culpar fesa e reivindicação, são ainda embrionários, o
os pobres por sua pobreza, apesar de o discurso que sustenta a ocorrência de amplo e variado pro-
sobre a vadiagem ter estado muito presente em cesso de destituição de direitos.
vários momentos da nossa história colonial, impe- Penso que tal processo tem pelo menos duas
rial e republicana. Contudo, a magnitude do pau- matrizes de atuação diversas, mas articuladas en-
perismo, na atualidade de nossas cidades, apare- tre si. A primeira é clássica, e pode ser designada
ce de forma tão evidente que impede, cada vez de controle e acomodação social pela naturaliza-
mais, a afirmação de que vivemos em uma socie- ção dos acontecimentos. Ao invés de culpabilizar
dade aberta e competitiva, onde quem trabalha os pobres, os mecanismos residem justamente em
duro e arduamente consegue ter êxito. Mesmo desresponsabilizá-los da situação em que foram
porque o desemprego, o subemprego e a preca- lançados por acaso, sorte ou azar que despenca
rização do trabalho atingiram também parcelas aleatoriamente sobre uns e não sobre outros. Tra-
importantes das camadas médias. O mito da as- ta-se de discursos da imponderabilidade que se-
censão social pelo esforço e perseverança não guem as leis incontroláveis da natureza ou a ine-
encontra mais raízes para fundamentar o ideário vitabilidade daquilo que é assim porque assim
da escalada social. Ao contrário, o trabalhador sempre foi. A atualização desses equacionamen-
honesto, cumpridor de seus deveres – ante os ga- tos proclama as leis inescapáveis do mercado, da
nhos provenientes de atividades ilícitas e ilegais globalização, do avanço tecnológico ou da hierar-
– é visto não poucas vezes como “o otário que quização social e, dessa forma, acaba por levar à
labora cada vez mais para ganhar cada vez me- individualização da questão do pauperismo. Estar
nos” (Valladares, 1994, p. 107). desempregado, morar em favela ou ser assassina-
Por outro lado, inversamente aos embates e do pela polícia ou por bandidos é equacionado
debates da sociedade francesa, o problema da po- como uma sina que cai sobre os deserdados da
78 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

sorte: trata-se, enfim, de um “coitado”.32 Em con- da em que induz à idéia de que sair do seu “de-
seqüência, não só quem está no comando da re- vido” lugar se trata de um ato bastante arriscado:
lação social se desobriga dos que estão em posi- “este brasileiro faz parte da comunidade política
ção de subalternidade, mas também a própria nacional apenas nominalmente. Seus direitos civis
dinâmica que produz a marginalização ganha a são desrespeitados sistematicamente. Ele é culpa-
nebulosidade do descompromisso, pois, segundo do até prova em contrário. Às vezes mesmo após
esse raciocínio, ela é também tida e havida como provar em contrário” (Carvalho, s. d., p. 92).
inelutavelmente natural: “tornando o pobre um Destacam-se nessa linha teórica as análises
‘não sujeito’, a pobreza é como que ‘naturalizada’ de Wanderley Guilherme dos Santos em polêmica
e as relações sociais tornam-se ‘naturalmente’ ex- categorização, segundo a qual em nosso tropica-
cludentes” (Nascimento, 1994, p. 301).33 lismo exuberante há apenas natureza, uma espé-
A outra matriz de controle e acomodação so- cie de hobbesianismo social, pois as pessoas se
cial pode ser designada de neutralização. Baseia- encontram isoladas e enredadas por sociabilida-
se tanto em ardilosos artifícios de persuasão, des fragilizadas, temem a convivência, descon-
como em escancarados métodos de constrangi- fiam e desacreditam das instituições jurídicas e
mento e coação que conformam mecanismos policiais e, em conseqüência, negam e sonegam
para reforçar as dinâmicas de subalternização. Ini- os conflitos e as variadas modalidades de vitimi-
cio esta colocação aludindo ao tradicional ditado, zação a que freqüentemente são submetidas: tra-
não tão popular, que afirma que as pessoas de- ta-se da cultura cívica da dissimulação (1994, pp.
vem permanecer nos seus devidos lugares – “cada 100 ss., grifos meus). Francisco de Oliveira, em
macaco no seu galho”. Trata-se de uma forma de ensaio empolgante por sua radicalidade, refere-se
discriminação escrachadamente marginalizadora à destituição, ao roubo ou à anulação de fala, isto
e, com certeza, de difícil aplicação, pelo menos é, à desclassificação dos conflitos e das reivindi-
nos grandes centros urbanos. Mas há outras ma- cações das classes dominadas (1999, pp. 55-81,
neiras de demarcar o espaço social dos pobres. grifos meus). Penso que é também nesta trilha in-
Basta observar nos edifícios das camadas reme- terpretativa que se encaixam os argumentos de
diadas e abastadas a existência de elevadores “so- José de Souza Martins, quando indica a existência
ciais”, para os proprietários, e os de “serviço”, de dois mundos cada vez mais irredutíveis, onde
que, como sabemos, não se prestam apenas para as pessoas se encontram “separadas em estamen-
a entrega de mercadorias. Esse pequeno exemplo tos”: a modernidade brasileira estaria produzindo
revela a potência de nossas adocicadas formas de “uma espécie de sociedade de tipo feudal” (Mar-
marginalização, afinal, neste país ninguém se con- tins, 1997, p. 36, grifos meus).
sidera preconceituoso, mas somos capazes muitas Estas reflexões não ignoram que os grupos,
vezes de mantermos amizade com pessoas que as categorias e as classes sociais se movimentam
manifestam restrições refletidas ou explosivas aos no sentido de se mobilizarem e lutarem pela con-
que são diferentes de sua e nossa cor ou condi- quista de seus direitos. Enfatizam, simplesmente,
ção social (Schwarcz, 2001). que no cenário atual de nossas cidades estão em
Nessa direção, encontram-se os mecanismos curso vastos processos de vulnerabilidade socioe-
de evitação e apartação presentes na sociabilida- conômica e civil que conduzem ao que pode ser
de cotidiana (Caldeira, 1997, pp. 142 ss.). Além designado de processo de descidadanização.
disso, humilhação, extorsão, agressão, espanca- Como sugerido na introdução desse ensaio, a
mento ou até mesmo homicídio, são atos cotidia- questão da vulnerabilidade apresenta especificida-
nos praticados tanto pela polícia como por bandi- des nos Estados Unidos, França e Brasil na maneira
dos, que permanecem ausentes das estatísticas, tanto de diagnosticar o problema, como de imple-
pois as pessoas, por medo de represália, se calam. mentar as políticas públicas. O debate acadêmico,
Tal prática acaba por se tornar uma eficiente for- por conseguinte, reflete os impasses e os desafios
ma de controle e de acomodação social, na medi- das diversas conjunturas políticas nacionais.
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 79

NOTAS 13 Ver também Murray (2002). Vale insistir: “[...] a ética


da underclass: pegue o que você quiser. Responda
1 A título de exemplo, vale citar Silver (1999, pp.336- de modo violento a qualquer um que o antagonize.
354; 1996, pp. 105-138); Avenel (1997); Procacci Despreze a cortesia, pois trata-se de fraqueza. Sinto
(1996); Wacquant (1996b). Ver também vários arti- orgulho em fraudar (furtar, mentir, explorar) com
gos publicados em Donzelot e Jaillet (2001), princi- sucesso” (Murray, 1999, p. 14).
palmente, a parte II, “La Politique de la Ville, Une 14 Robert Castel mostra que a questão social na Euro-
Comparaison entre les USA et la France”. pa desponta em 1349 na Inglaterra, quando o rei
2 Ver Wilson (1987). Uma das muitas avaliações críti- Eduardo III promulga uma ordenança sobre o esta-
cas ao trabalho de Wilson pode ser encontrada na tuto dos trabalhadores; na França, dois anos após,
coletânia editada por Jenks e Peterson (1991), ou João II, dito o Bom, edita uma ordem real de com-
no excelente artigo de Katz (1993). Ver também bate à vadiagem, isto é, daqueles que podem mas
Wilson (1992). não querem trabalhar, distinguindo-os dos inválidos
e incapazes que necessitam e merecem proteção
3 Ver Wacquant (1996a). (1995a, p. 75).
4 Entre outros, ver o influente livro de Harrington 15 Vale mencionar que as favelas ainda eram numero-
(1962). sas nos arredores de Paris e Marselha até 1964,
5 Para uma análise desses programas, ver Wilson quando uma lei obriga sua erradicação (Guerrand,
(1987), principalmente, os capítulos 6 e 7. 1999, p. 226).

6 Moynihan (1965), posteriormente publicado em 16 Veja, entre outros, PAUGAM, Serge – La Societé
Rainwater e Yancey (1967). Française et ses Pauvres, Paris, Presses Universitai-
res de France, 1993 e La Disqualification Sociale:
7 Vale insistir neste ponto: “o crescente antagonismo Essai sur la Nouvelle Pauvreté, Paris, Presse Univer-
foi ainda mais agravado pela atmosfera política con- sitaires de France, 1991.
servadora, particularmente durante a presidência
17 Ver também Donzelot e Roman, 1991, pp. 5-10.
Reagan, que não só reforçou o sistema de crenças
americanas segundo o qual a pobreza é reflexo de 18 Na mesma direção, ver também o penetrante estu-
inadequações individuais, mas também desencora- do etnográfico de Laé e Murard (1995).
jou iniciativas para novos e mais vigorosos progra-
19 A literatura acerca do tema em pauta é vasta. Cf.
mas sociais dirigidos aos crescentes problemas de
Rey (1996), Body Gendrot (1993).
desigualdade urbana” (Wilson, 1991-1992, p. 65).
20 Dubet (1987). Ver também Dubet e Lapeyronnie
8 Entre outros, ver Ryan (1976); Jenks (1985); Wacquant
(1992). Para uma visão dramática e desesperançosa
(1996a); Marks (1991); Heisler (1991); Wilson (1987,
a respeito desses grupos jovens, ver Lapeyronnie
principalmente, capítulo 4, escrito em conjunto com
(1995, pp. 2-17).
Aponte e Neckerman). Ver também Wilson (1993).
21 Ver também Donzelot (1999).
9 O autor refere-se ao Social Buffe, espécie de apara-
dor ou colchão social que dinamizava a vida nos 22 Para uma análise que aponta as diferenças entre o
guetos e constituía um elo com os circuitos que ser- gueto negro dos Estados Unidos e as periferias em-
viam de canais para o processo de mobilidade as- pobrecidas da França, bem como a atuação do po-
cendente. Idem, pp.56 e seguintes. der público nesses países, ver Wacquant (1996b,
pp. 234-274).
10 Em sua obra mais recente (Wilson, 1999), o termo
nem aparece. 23 Ver, entre outros, Vários Autores (1995, principal-
mente, parte 1) e Madec e Murard (1995).
11 A principal exceção talvez seja Gans (1995).
24 Cf. Paugam (1991), “Pauvreté et exclusion, la force
12 Vale insistir no pensamento do autor: “A principal
des contraintes nationaux”, em Paugam (1999), e
tarefa da política social não é mais a de reformar a
Gaujelac e Leonetti (1994).
sociedade, mas restaurar a autoridade dos pais e
outros mentores que moldam os cidadãos [...]. A 25 Silhuetas, indivíduos perdidos, extraviados, maltra-
fonte de liberdade para os muito pobres da atuali- pilhos, decompostos nos seus gestos, muitos inváli-
dade não é mais a oportunidade, mas a ordem. Para dos. Castel faz alusão à pintura de Gerome Bosch
eles o caminho para avançar não é mais liberdade, que mistura corpos de contornos mal-definidos,
mas obrigação” (Mead (1996, pp. 274-175). unificados em movimentos que aludem à alegoria
80 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

do sofrimento. Impossível deixar de associar essa BIBLIOGRAFIA


descrição ao quadro de Jean Baptiste Debret, Pri-
meiro impulso de virtude guerreira, de 1827, que
ABRAMOVITZ, Mimi & WITHORN, Ann. (1998),
abre o brilhante ensaio “Neoclassicismo e a escravi-
dão” de Rodrigo Naves (1997). Na formação da so- “Playing by the rules: welfare reform and
ciedade francesa, observam-se elementos como a the new authoritarian State”, in Adolph
desqualificação e a perda de raízes, em vários mo- Reed Jr. (ed.), Without justice for all: the
mentos da expansão capitalista; no Brasil, prevale- new liberalism and our retreat from ra-
ceram o “travo”, o “desacerto”, a “dissolvência”, a cial equality, Boulder, Colo., Westview
“atmosfera viscosa”, o “falseamento”, pois a estrutu-
ra social criada dentro do sistema escravista consi-
Press.
dera os trabalhadores, após a abolição, uma massa AFFICHAR, Joelle & FOUCAULD, Jean Batiste de
crescente de livres e pobres, socialmente desclassi-
(orgs.). (1993), Justice sociale et inegali-
ficados e inaptos para o trabalho, verdadeira ralé
destituída de humanidade. Prepotência, arbítrio e tés. Paris, Esprit.
violência permeiam toda a sociedade. Nas palavras AULETTA, Ken. (1981), “A reporter at large (the
de Rodrigo Naves: “com Debret a representação do
underclass)”. New Yorker, 16, 23 e 30
Brasil urbano do começo do século XIX ganha uma
nova dimensão, que a miséria contemporânea em nov.
parte ainda avaliza” (p. 116). _________. (1982), The underclass. Nova York,
26 Redigindo de forma saudosa e comovente, Castel Random House.
(1990) debruça-se sobre o mito de Tristão e Isolda,
paixão impossível, tragédia do amor absoluto para AVENEL, Cyprien. (1997), “La question de l’under-
mostrar os percursos da desfiliação. class des deux cotés de l’Atlantique”. So-
ciologie du Travail, 2.
27 Ver também Jones (1983).
28 Le Monde, edição de 18 de outubro de 1994, apud BODY GENDROT, Sophie. (1993), Ville et violen-
Fassin, 1996, p. 47. ces. Paris, Presses Universitaires de Fran-
29 Cf. Délégation Interministerielle de la Ville – DIV, s. d.
ce.

30 A literatura sobre RMI é vasta e polêmica. A título BONELLI, Laurent. (2001), “Des quartiers en dan-
de exemplo, ver Castel e Laé (1992), e o número es- ger aux ‘quartiers dangereux’”. Le Monde
pecial da Revue du Mauss, “Vers un revenu mini- Diplomatique, Paris, fev.
mum inconditionnel?”, Paris, n. 7, 1º semestre, 1996.
BOURDIEU, Pierre (org.) (1993), La misère du
31 Retomo e resumo os argumentos publicados em
monde. Paris, Le Seuil.
Kowarick, 2002, pp. 26-30.
32 O termo “coitado” vem da palavra “coito”, aquele BRUNET, Jean-Paul. (1980), Saint Denis la Ville
que foi submetido à cópula carnal. Devo esta ob- Rouge, 1890-1939. Paris, Hachette.
servação a Adrian Gurza Lavalle, feita durante o
_________. (1981), Un demi: siècle d’action muni-
curso que proferi em 1997. Tal acepção está próxi-
ma da expressão usada por Roberto DaMatta cipale à Saint-Denis la Rouge, 1890-
(1990): “criamos até uma expressão grosseira para 1930. Paris, Éditions Cujas, coleção Gral.
esse tipo de gente que tem que seguir imperativa-
mente todas as leis: são ‘os fodidos’ do nosso siste-
BURROUGHS, Charles. (1835), A discourse delive-
ma” (p. 199). red in the chapel of the new alms-house,
in Portsmouth, N.H. Dec. XV. MDCC-
33 Vera Silva Telles, em artigo recente, também utili-
za esses argumentos: “[...] nossas elites podem fi- CXXXIV. on the occasion of its being first
car satisfeitas com sua modernidade e dizer candi- opened for religious services. Ports-
damente que a pobreza é lamentável, porém mouth, N. H., J. W. Foster.
inevitável [...]. Nessa pobreza transformada em fato
bruto da natureza há também o esvaziamento da CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. (1997), “Enclaves
função crítica das noções de igualdade e justiça” fortificados: a nova segregação urbana”.
(1999, pp. 87-88). Novos Estudos CEBRAP, 47.
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 81

CARVALHO, José Murilo. (s. d.), “Interesse contra DONZELOT, Jacques. (1996), “L’avenir du social”.
a cidadania”, in Vários autores, Brasilei- Esprit, 219, mar.
ro Cidadão, São Paulo, Cultura.
_________. (1999), “La nouvelle question urbai-
CASTEL, Robert. (1990), “Le roman de la désaffi- ne”. Esprit, 258, nov.
liation, à propos de Tristan et Iseut”. Le
_________. (2001), “Sortie de la dépendance et
Débat, 61, set. utilité sociale”, in Jacques Donzelot e
_________. (1991), “De l’indigence à l’exclusion, Marie Christine Jaillet, La nouvelle ques-
la sésaffiliation: précarité du travail et tion urbaine: actes du séminaire, PUCA,
vulnérabilité relationnelle”, in Jacques Ministère de L’équipement, des Trans-
Donzelot (org.), Face à l’éxclusion le ports et du Logement, Actes du Séminai-
modèle français, Paris, Esprit. re (1999/2000).
_________. (1993), “De l’exclusion comme état à DONZELOT, Jacques & ESTEBE, Philipe. (1991),
la vulnérabilité comme Processus”, in L’état animateur: essai sur la politique de
Joelle Affichar e Jean Batiste de Fou- la ville, Paris, Esprit, Paris.
cauld (orgs.), Justice sociale et inegalités, DONZELOT, Jacques & JAILLET, Marie Christine.
Paris, Esprit. (2001), La nouvelle question urbaine: ac-
_________. (1995a), Les métamorphoses de la tes du séminaire. PUCA, Ministère de
question sociale: une chronique du sala- L’équipement, des Transports et du Lo-
riat. Paris, Fayard. gement, Actes du Séminaire (1999/2000).

_________. (1995b), “Les pièges de l’exclusion”. DONZELOT, Jacques & ROMAN, Joel. (1991), “Le
Lieu Social et Politiques, Revue Interna- déplacement de la question sociale”, in
tionale d’Action Communautaire, 34. Jacques Donzelot (org.), Face l’exclu-
sion: le modèle français, Paris, Esprit.
_________. (1999), “Les marginaux dans l’histoi-
re”, in Serge Paugam (org.), L’exclusion, DUBET, François. (1987), La galère, jeunes en sur-
L’état des savoirs, Paris, Éditions de la vies. Paris, Fayard.
Decouverte. DUBET, François & LAPEYRONNIE, Didier.
CASTEL, Robert & LAÉ, Jean François (orgs.) (1992), Les quartiers d’exil. Paris, Seuil.
(1992), Le revenu minimum d’insertion: FASSIN, Didier. (1996), “Exclusion, underclass,
une dette sociale, Paris, L’Harmatan. marginalidad: figures contemporaines de
DAMATTA, Roberto. (1990), Carnavais, malan- la pauvreté urbaine en France, aux États
dros e heróis: para uma sociologia do di- Unis et en Amerique Latine”. Revue
lema brasileiro. 5 ed., Rio de Janeiro, Française de Sociologie, XXXVII.
Editora Guanabara. FORRESTER, Viviane. (1997), O horror econômi-
DAMON, Julien. (1977), “Problèmes politiques et co. São Paulo, Editora da Unesp.
sociaux”, Dossiers d’Actualité Mondiale, FOURCAUT, Annie. (1986), Bobigny, banlieu rou-
La politique de la ville, Paris, Le Docu- ge. Paris, Les Éditions Ouvrières & Pres-
mentation Française, 784, maio. ses de la Fondation Nationale de Scien-
DELARUE, Jean Marie. (1991), Banlieu en difficul- ces Polítiques.
té: la rélegation. Paris, Syros. FRÉTIGNÉ, Cédric. (1999), Sociologie de l’exclusion.
Paris, L’Harmattan, “Logiques Sociales”.
DÉLÉGATION Interministerielle de la Ville – DIV.
(s. d.), Repères, 2000 – 2006, “Une nou- GANS, Herbert J. (1994), “Positive functions of the
velle ambition de la politique de la vil- undeserving poor: uses of the underclass
le”, Paris, Les Éditions de la DIV. in America”. Politics & Society, 22 (3), set.
82 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

_________. (1995), The war against poverty: the _________. (2001), “Vulnerabilidade social y eco-
underclass and antipoverty politics. nómica: trayectorias del tema en Estados
Nova York, Basic Books. Unidos, Francia y Brasil”, in Marco A.
Caldeira Molgora e Willem Assies, Ciu-
GAUJELAC, Vicent de & LEÓNETTI, Isabele Ta-
dadanía, cultura política y reforma del
boada. (1994), La lutte des places: inser-
in América Latina, XXIII Coloquio de
tion et désinsertion. Paris, Desclée Brou.
Antropología y Historia Regionales, El
GENDROT, Sophie. (1993), Ville et violences. Pa- Colegio de Michoacan, México, 24-26
ris, Presses Universitaires de France. out., pp. 103-141.
GUERRAND, Roger Henri. (1999), “Histoire des _________. (2002), “Viver em risco: sobre a vulne-
Taudis”, in Serge Paugam (org.), L’éxclu- rabilidade no Brasil urbano”. Novos Estu-
sion, l’état du savoir, Paris, Éditions de la dos, 63: pp. 9-29, jul.
Decouverte.
LABBENS, Jean. (1969), Le quart-monde, la pauvre-
HARRINGTON, Michael. (1962), The other Ameri- té dans la societé industrielle: étude sur le
ca: poverty in the United States. Nova sous-proletariat dans la région parisienne.
York, MacMillan. 95 Pierrelaye, Éditions Science et Service.
_________. (2002), “The other America revisited: _________. (1978), Sociologie de la pauvreté. Pa-
a more difficult poverty”. Vew Perspecti- ris, Gallimard.
ves Quarterly, 4 (1), mar.
LAÉ, Jean François & MURARD, Numa. (1995), Les
HEISLER, Barbara Schmitter. (1991), “A comparati- récits du malheur. Paris, Descartes et Cie.
ve perspective on the underclass: ques- LAPEYRONNIE, Didier. (1995), “L’exclusions et le
tions of urban poverty, race, and citizens- mepris”. Les Temps Modernes, Paris.
hip”. Theory and Society, 20 (4), ago.
LE MONDE. (1994), “Edição especial de 18 de out.
HOGGART, Richard. (1970), La culture du pau-
vre. Paris, Minuit. LEWIS, Oscar. (1961a), Antropologia de la pobre-
za: cinco familias. México, Fondo de
JENKS, Christopher. (1985), “How poor are the Cultura Económica.
poor”. New York Review of Books, maio.
_________. (1961b), The children of Sanchez.
JENKS, Christopher & PETERSON, Paul E. (1991), Nova York, Random House.
The urban underclass. Washington, DC,
Brookings Institution. _________. (1965), La vida: Puerto Rico family in
the culture of poverty. Nova York, Vinta-
JONES, Gareth Stedman. (1983), Languages of ge Books.
class, studies in English working class
history, 1832-1982. Cambridge, Cam- _________. (1966), “The culture in poverty”.
bridge University Press. Scientific American, 15 (4), out.

KATZ, Michael B. (1993), “The urban ‘underclass’ LENOIR, René. (1974), Les exclus: un français sur
as a metaphor of social transformation”, dix. Paris, Le Seuil.
in Michael B. Katz, The “underclass” de- MADEC, Annich & MURARD, Numa. (1995), Cito-
bate: views from history, Princeton, New yennetés et politiques sociales. Paris,
Jersey, Princeton University Press. Flammarion.
KOWARICK, Lúcio. (1975), Capitalismo e margi- MAGRI, Suzana & TOPALOV, Christien (orgs.).
nalidade na América Latina. 1 ed., Rio (1990), Villes ouvrières, 1900-1950. Pa-
de Janeiro, Paz e Terra. ris, L’Harmattan.
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 83

MARKS, Carol. (1991), “The urban underclass”. cracy. Nova York/Londres, Harper/Bro-
Annual Review of Sociology, 17. ther Publishers (com assistência de Ri-
chard Sterner e Arnold Rose).
MARTINS, José de Souza. (1997), Exclusão social e
a nova desigualdade. São Paulo, Paulus. _________. (1963), The challenge to affluence.
MEAD, Lawrence M. (1986), Beyond entitlement: Nova York, Pantheon Books.
the social obligations of citizenship. NASCIMENTO, Elimar Pinheiro. (1994a), “A exclu-
Nova York, The Free Press. são social na França e no Brasil: situa-
_________. (1996), “Raising work levels among ções (aparentemente) invertidas, resulta-
the poor”, in Michael R. Darby (ed. ), dos (quase) similares”, in Elias Dinis,
Reducing poverty in America: views and José Sérgio Leite Lopes e Reginaldo
approaches, Thousand Oaks, Calif., Sage Prandi, O Brasil no rastro da crise, São
Publications. Paulo, Anpocs/Hucitec, Ipea.

MINGIONE, Enzo (ed.). (1996), Urban poverty NAVES, Rodrigo. (1997), A forma difícil: ensaios so-
and the underclass. Oxford, Blackwell. bre arte brasileira. 2 ed., São Paulo, Ática.

MINISTÈRE de L’equipement, des Trasports et du NOBLE, Charles. (1997), Welfare as we knew it:
Logement. (2001), “Le politique de la ville: a political history of American welfare
une comparaison entre les USA et la Fran- State. Nova York/Oxford, Oxford Uni-
ce”. Plus Ville Internationale, 56, maio. versity Press.
MOYNIHAN, Patrick. (1965), The negro family: OLIVEIRA, Francisco de. (1999), “Privatização do
the case for national action. Washington, público, destituição da fala e anulação
D.C., Office of Policy, Planning and Re- da política pública: totalitarismo neolibe-
search, U.S., Department of Labor. ral”, in Francisco de Oliveira e Maria Cé-
lia Paoli, Os sentidos da democracia: po-
MURARD, Numa. (1995), “L’esprit de la citoyenne-
té”, in Vários autores, Pauvres ou cito- líticas do discurso e hegemonia global,
yens? Faites vos preuves, Repport de re- Petrópolis, Vozes.
cherche pour le Fonds d’Action Sociale, PAUGAM, Serge. (1991), La desqualification so-
Paris, maio. ciale: essai sur la nouvelle pauvreté. Pa-
MURRAY, Charles. (1994), Losing ground, Ameri- ris, Presses Universitaires de France.
can social policy, 1950-1980. 2 ed., _________. (1993), La societé française et ses pau-
Nova York, Basic Books (1 ed. 1984). vres. Paris, Presses Universitaires de
_________. (1996), “Reducing the poverty and re- France.
ducing the underclass”, in Michael R. _________ (org.). (1999), L’éxclusion, l’état du sa-
Darby (ed.), Reducing poverty in Ameri- voir. Paris, Éditions de la Découverte.
ca: views and approches, Thousand
Oaks, Calif., Sage Publications. PRÉTECEILLE, Edmond. (1998), “De la ville divi-
sée à la ville éclatée: questions et cate-
_________. (1999), “And now for the bad knews”. gories de recherche”, in N. May; J. Lan-
Society, 37 (1), nov.-dez. drieu e T. Spector (orgs.), La ville éclatée,
_________. (2002), “The underclass revisited”, Tra- Paris, Éditions de L’Aube.
balho apresentado para American Enter- PROCACCI, Giovanna. (1996), “Exclus ou cito-
prise Institute for Public Rescarch, 11 mar.
yens? Les pauvres et les sciences socia-
MYRDAL, Gunnar. (1994), An American dilemma: les”. Archives Européennes de Sociologie,
the negro problem and modern demo- XXXVI (2).
84 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

PRONIER, Raymond. (1983), Les municipalités SILVER, Hilary. (1994), “Exclusion sociale et soli-
communistes: bilan de 30 annés de ges- darité sociale: trois paradigmes”. Revue
tion. Paris, Baleand. Internationale du Travail, 133 (5-6).
RAINWATER, Lee & YANCEY, William L. (ed.). _________. (1996), “Culture, politics and national
(1967), The Moyniham report and the discourse of the new urban pour”, in
politics of controversy. Cambridge, MIT Enzo Mingione, Urban poverty and the
Press. underclass, Oxford, Blackwell.

REY, A. (ed.). (1992), Dictionnaire historique de _________. (1999), “National conceptions of the
la langue française. Paris, Dictionnaire new urban poverty, social structural
Le Robert. change”. International Journal of Urban
and Regional Research, 17 (3), set.
REY, Henri. (1996), La peur des banlieus. Paris,
Presses de Sciences Po. THOMPSON, Edward P. (1997), La formación his-
torica de la classe obrera, Inglaterra:
ROBINSON, Fred & GREGSON, Nicky. (1992),
1780-1832. Barcelona, Editorial Laia.
“The ‘underclass’: a class apart?”. Critical
Social Theory, 12 (1). TOPALOV, Christien. (1994), Naissance du chô-
meur, 1882-1910. Paris, Ablin Michal.
ROSANVALLON, Pierre. (1995), La nouvelle ques-
tion sociale: repenser l’état providence. TOURAINE, Alain. (1991), “Face a l’exclusion”, in
Paris, Seuil. Vários autores, Citoyenneté et urbanité,
Paris, Esprit.
ROULEAU BERGER, L. (1992), La ville intervalle.
Paris, Meridiens/Klincksiech. _________. (1992), “Inégalités de la société indus-
trielle”, in Joëlle Affichard e Jean-Baptis-
RUSSEL, George. (1977), “The American under- te de Foucauld (orgs.), Justice sociale et
class”. Time Magazine, 29 ago. inegalités, Paris, Esprit.
RYAN, William. (1976), Blaming the victim. Nova VALLADARES, Lícia. (1994), “Cem anos pensando
York, Ventage Books. a pobreza (urbana) no Brasil”, in Rena-
SANTOS, Wanderley Guilherme. (1994), “Frontei- to R. Boschi (org.), A construção do es-
ras do estado mínimo: indicações sobre paço público no Brasil, Rio de Janeiro,
o híbrido institucional no Brasil”, in Rio Fundo Editora.
_________, Razões da desordem, Rio de VÁRIOS AUTORES. (1995), Pauvres ou citoyens?
Janeiro, Rocco. Faites vos preuves, Repport de recher-
SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. (2001), “Dando nome che pour le Fonds d’Action Sociale,
às diferenças”, in Eni de Mesquita Sama- Paris, maio.
ra (org.), Racismo & racistas, São Paulo, VÁRIOS AUTORES. (1996), “Vers um revenu mini-
Humanitas, FFLCH/USP. mum inconditionnel?”. Revue du Mauss,
SCHWARZ, Roberto. (1990), Um mestre na perife- 7, 1º semestre.
ria do capitalismo, Machado de Assis. VÁRIOS AUTORES. (1998), Les quartiers dont on
São Paulo, Livraria Duas Cidades. parle. Paris, Éditions de l’Aube.
SILVA TELLES, Vera. (1999), “A ‘nova questão so- WACQUANT, Löic. (1996a), “L’underclass urbain
cial’ brasileira: ou como as figuras do dans l’imaginaire social et scientifique
nosso atraso viraram símbolo de nossa américain”, in Serge Paugam (org.), L’ex-
modernidade”. Cadernos CRH, 30/31, clusion, état des savoir. Paris, Éditions de
Salvador, jan.-dez. la Decouverte.
SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL 85

_________. (1996b), “Red belt, black belt: racial


division and the State in French urban
periphery and the American ghetto”, in
Enzo Migione (ed.), Urban poverty and
the underclass, Oxford, Blackwell.
WILSON, William Julius. (1987), The truly disad-
vantaged the inner city: the underclass
and public policy. Chicago, The Univer-
sity of Chicago Press.
_________. (1990), “Social theory and public agen-
da research: the challenge of studying In-
ner – city social dislocation”. Annual
Meeting of the American Sociological As-
sociation, Presidential Address, 12 ago.
_________. (1991-1992), “Another look at the truly
disadvantaged”. Political Science Quar-
terly, 106 (4).
_________ (ed.). (1993), The ghetto underclass.
Londres, Sage.
_________. (1997), When work disappears: the
world of the new urban poor. Nova York,
Alfred A. Knopf.
_________. (1999), The bridge over the racial divi-
de: rising inequality and coalition poli-
tics. Berkeley/Los Angeles/Londres, Uni-
versity of California Press.
190 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

SOBRE A VULNERABILIDADE À PROPOS DE LA VULNÉRA- ABOUT SOCIOECONOMIC AND


SOCIOECONÔMICA E CIVIL: BILITÉ SOCIO-ÉCONOMIQUE CIVIL VULNERABILITY: THE
ESTADOS UNIDOS, FRANÇA E ET CIVILE: ÉTATS-UNIS, UNITED STATES OF AMERICA,
BRASIL FRANCE ET BRÉSIL FRANCE AND BRAZIL

Lúcio Kowarick Lúcio Kowarick Lúcio Kowarick

Palavras-chave Key words


Mots-clés
Exclusão e vulnerabilidade social; Mots-clés : Exclusion et vulnérabilité
Keywords: Exclusion and social vul-
Sesafiliação; underclass; (Sub)cida- sociale ; Désaffiliation ; underclass;
dania. nerability; Defiliation; Underclass,
(Sous)citoyenneté.
(Under)citizenship

O artigo analisa a evolução do L’article porte sur le débat à propos


The article analyses the evolution of
debate acerca da vulnerabilidade de la vulnérabilité socio-économique
socioeconômica nos Estados Unidos the debate on socioeconomic vul-
aux Étas-Unis et en France, avec des
e na França, com comentários finais nerability both in the United States
conclusions commentées à propos de
sobre a atualidade brasileira. No of America and in France, as well as
caso norte-americano, a discussão é l’actualité brésilienne. Dans le cas
presenting final comments on the
abertamente política-ideológica – nord-américain, la discussion est
Brazilian present time. In the North-
culpar ou não as vítimas por sua ouvertement politique et idéologique
American study, the discussion is
situação de marginalização e anomia – condamner ou pas les victimes à
– e centra-se em torno do conceito openly political-ideological – mak-
cause de leur situation de marginalité
de underclass, o que leva alguns ing guilty or not the victims for their
autores a responsabilizar os progra- et d’anomie – et est centrée sur le
marginalization and anomy – mak-
mas de bem-estar no fomento da concept de underclass, ce qui conduit
ing use of the concept of underclass,
ociosidade e desorganização famil- certains acteurs à responsabiliser les
what has made some authors regard
iar. No caso francês, ao contrário, programmes de bien-être dans l’en-
seguindo a tradição republicana, os the so-called well-being programs as
couragement du fainéantise et de la
diagnósticos e as propostas enfati- responsible for promoting idleness
désorganisation familiale. À l’inverse,
zam a necessidade de uma forte pre- and family disorganization. In the
sença estatal, que deve fornecer os dans le cas français, suivant la tradi-
French study, on the contrary and
meios de (re) inserção dos grupos tion républicaine, les diagnostiques et
following the republican tradition,
marginalizados. A polêmica se dá les propositions mettent l’accent sur
both the diagnosis and proposals
em torno dos conceitos de exclusão le besoin d’une forte présence de l’É-
social e desafiliação. O ensaio não emphasize the need of strong state
tat, qui doit fournir les moyens de
visa realizar um balanço crítico da presence to provide means of
literatura, mas, a partir de obras sem- (re) insertion des groupes marginal-
(re)inserting the marginalized
inais, mostrar os parâmetros que isés. Le polémique a lieu par rapport
groups. Polemic arises around con-
essa problemática teórica e empírica aux concepts d’exclusion sociale et
cepts such as social exclusion and
adquire em função das especifici- de desaffiliation. Cette étude n’a pas
dades de cada ambiente político defiliation. The essay doesn’t aim at
pour but d’établir un bilan critique de
nacional; daí as observações finais making a critical balance of litera-
la littérature, mais de montrer, à par-
sobre a sociedade brasileira. ture, but making use of seminal
tir des œuvres séminales, les
works it intends to show the param-
paramètres que cette problématique
eters acquired by the theoretical and
théorique et empirique acquiert en
empirical problem depending on
fonction des spécificités de chaque
the particularities of each national
environnement politique national ;
political ambience; that is when
d’où les observations finales à propos
final comments on the Brazilian
de la société brésilienne.
society are made.

Das könnte Ihnen auch gefallen