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Guarulhos
2017
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SCAVITTI, Julia.
Dissertação:
Mestrado em Ciências Sociais - Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2017.
Orientação: Prof. Dr. Lindomar Albuquerque.
1
Julia Scavitti
Aprovação: ____/____/________
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Lindomar Albuquerque
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Davisson Cangassu de Souza
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Alario Ennes
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
2
Toda pesquisa é um lento processo de construção que pode ser
considerado quase manual, para coletar informação e sistematiza-la, que
requer, ao mesmo tempo, imaginação. É um ato criativo. (DURAND,
2015).
“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para
a gente é no meio da travessia”. (GUIMARÃES ROSA, 1994).
1
Trecho retirado do link: https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm. Acessado
em: 20/10/2016.
3
Agradecimentos
À minha mãe e meu pai, que mesmo não entendendo às vezes o que toda essa
jornada quis dizer, sempre me incentivaram a seguir me formando, estudando e
principalmente me incentivam todos os dias, acreditando em mim e não me deixando
cair. Sem vocês eu não poderia ter feito isso.
Ao meu orientador, Lindomar, pela paciência em lidar com os momentos de
ansiedade e, principalmente, por acreditar que eu era capaz de fazer essa pesquisa,
muito obrigada.
A todos os interlocutores dessa pesquisa, mulheres e homens imigrantes, com
quem conversei e que aceitaram a realização das entrevistas sem os quais muitas
reflexões desse texto não seriam possíveis; aos colegas do projeto Si yo puedo, que tanto
me ensinaram sobre solidariedade e protagonismo: Verônica, Rocio, Bianca, Nanci,
Marlucia, Grecia, Luana, Junia, Jorge e tantas outras pessoas que fazem esse projeto
incrível funcionar.
Ao Andrei, que se fez presente num momento muito importante me ajudando
com a arte da escrita e da formatação. Obrigada pela paciência, sempre.
Ao Thiago pela solidariedade perante a burocracia, e pelos empurrões na fase
final, sempre me incentivando a caminhar pra frente. Que tenhamos sempre mais
tempo!
Agradeço ao José Carlos, o Carlinhos, que me recebeu de braços abertos na
Missão Paz e sempre me incentivou nos momentos em que nos encontrávamos.
Obrigada pela poesia sempre!
Ao Tiago, Allan, Carlos, Patricia, Beatriz, Katisciua e tantas outras pessoas que
consultei durante a pesquisa, que tiveram a paciência de conversar comigo e dividir o
que aprenderam!
Obrigada João, companheiro de viagens unifespianas e do filosofar, obrigada por
essa amizade incrível e por ter traçado esse caminho comigo. Que consigamos publicar
nossos diários de bordo, tenho certeza que eles serão muito úteis às pessoas.
À Ana Paula, mulher maravilhosa de muita fibra e amor no coração, exemplo de
vida e companheira de tantas angústias acadêmicas, obrigada pelos momentos de
consolo e de solidariedade e obrigada pela amizade, fruto dessa jornada que encerramos
aqui.
4
Às mulheres com quem dividi e divido minha vida: Larissa, pela sinceridade,
acidez intelectual e transparência; Priscila, por todas as conversas, por todas as
reflexões, por todas as risadas e pelo companheirismo absurdo dos sentimentos
compartilhados; Sarah, exemplo de professora guerreira e dona de um cérebro incrível!
Ana Elisa, por ensinar a paciência e leveza da nossa existência e o comprometimento
com a pesquisa.
Agradecimento especial àquela que continua comigo até hoje, companheira de
longa data, Lívia. Nossa, apenas que: obrigada. Pela parceria, sabe? E tudo que isso
representa. Muito amor.
À Lígia, pela amizade eterna já jurada depois de muitos copos, muitas vezes,
mas sempre com sinceridade e amor. À Ana Carolina, a pessoa mais peculiar do mundo,
obrigada por fazer parte da minha vida.
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Resumo
Abstract
This research reflects the relationship between international labor migration and
dependency theory and superexploration of work based on the specific reality of
immigrants in the apparel industry of São Paulo in the last three decades. It also seeks to
reflect on the ideological transformations arising from the critical scenario that emerged
in the 1970s, when the economic crisis demanded a profound transformation of the
capitalist mode of production. The central objective was to understand the paradoxes of
the notion of freedom in a society under the neoliberal capitalist logic, manifested
through the work relations of the sewing and the discourses mobilized by the immigrant
workers of this sector. For that, a qualitative methodology was used, in the form of in-
depth interviews and participant observation, as well as a bibliographic review on the
subject
6
Sumário
Introdução: ......................................................................................................................... 8
1. uma pequena reflexão pessoal: .................................................................................... 8
1.2. sobre a pesquisa teórica e a metodologia qualitativa. ........................................... 15
1.1 “No final daquela avenida”: a praça é o campo. .................................................... 19
1.1.2 O Projeto Si Yo Puedo e a luta pelo acesso à educação....................................... 23
CAPÍTULO 1: Mobilidade transnacional do trabalho..............................................25
1. Os e as imigrantes latino-americanos e as oficinas de costura: o que nós já
sabemos. ....................................................................................................................... 28
2. Imigração como mobilidade do trabalho................................................................... 40
3. Espaço transnacional: migração circulatória. .......................................................... 49
CAPÍTULO 2: Oficina de costura: Trabalho escravo contemporâneo e a
superexploração do trabalho. .................................................................................... 55
1. Reestruturação produtiva e acumulação flexível: ................................................... 61
1.1 Transformação na indústria de vestuário: lógica fast fashion. ............................. 64
2. Escravidão contemporânea: conceito jurídico e político......................................... 73
3. Teoria da dependência: A superexploração do trabalho como regra e não
exceção. ........................................................................................................................ 77
3.1 Discussão sobre o capitalismo brasileiro. ................................................................ 82
CAPÍTULO 3: O paradoxo da liberdade: Exploração do trabalho e resistência na
ideologia neoliberal ..................................................................................................... 90
1. Indivíduos, trabalhadores: a vida coletiva na sociedade capitalista ...................... 90
1.1 Peculiaridades em ser trabalhador imigrante......................................................... 95
2. Ideologia e a construção da subjetividade .............................................................. 101
2.1 Subjetividade na lógica neoliberal: A produção de consenso no empreendedor
de si mesmo. ............................................................................................................... 107
2.2 Disputa do termo escravo para além da estigmatização ...................................... 110
2.3 Neoliberalismo: “captura” de subjetividade dos trabalhadores .................... 112
3. Dupla liberdade do trabalho na lógica do capital: voar com o vento que assopra115
4. O apagamento da consciência de classe .................................................................. 120
5. Superarse: contradições entre liberdade e superexploração ................................. 128
Considerações finais ...................................................................................................... 133
Bibliografia: ................................................................................................................... 136
7
Introdução:
1. uma pequena reflexão pessoal:
2
Esse documentário pode ser acessado através do link: https://www.youtube.com/watch?v=SeI0xbstRA0
3
Notícia aqui: http://reporterbrasil.org.br/2011/12/especial-zara-flagrantes-de-escravidao-na-producao-
de-roupas-de-luxo/
4
Notícia aqui: http://reporterbrasil.org.br/2014/11/fiscalizacao-flagra-exploracao-de-trabalho-escravo-na-
confeccao-de-roupas-da-renner/
8
Durante a elaboração do projeto sempre tive a preocupação de que uma vez
tratando de uma reflexão que envolvia diretamente trabalhadores imigrantes, era
necessário aliar à reflexão teórica o trabalho de campo. Assim, a metodologia que optei
foi a observação participante e as entrevistas em profundidade.
Minha inserção no campo foi através do projeto Si Yo Puedo5, onde comecei a
dar aulas de português na Praça Kantuta, local de encontro da comunidade boliviana.
Daqui saíram todos os meus interlocutores ao longo da pesquisa. Desde 2015, quando a
iniciei, intensas transformações ocorreram no que diz respeito às questões migratórias e
ao contexto histórico em que vivo. É incrível a dificuldade que temos, como cientistas
sociais, em elaborar teoricamente uma reflexão e permanecermos ancorados na
realidade cotidiana. A história é mesmo um contínuo fazer-se e nós somos, embora
pequenos pontos no universo, sujeitos do nosso tempo e parte desse processo.
Foi em 2015, um tempo depois que ingressei no mestrado, que o tema das
imigrações ganhou grande visibilidade. As guerras no “Oriente Médio” se
intensificaram e a Europa viu crescer o número de imigrantes que lhe solicitavam
refúgio6, e deu-se a isso o nome de Crise Migratória, que envolve a morte de centenas
de imigrantes anualmente. A configuração da economia e política do mundo todo vem
se transformando rapidamente e o cenário atual está imerso em contradições, e o que
mais se aprofunda são as violências e a desigualdade social7.
5
Projeto Social voltado para a democratização do acesso à educação para a população imigrante do qual
fiz e faço parte e sobre o qual falaremos mais profundamente em breve.
6
A imigração discutida nessa dissertação não é a imigração de refúgio, cujos imigrantes constantemente
são classificados como refugiados, baseada no Estatuto dos Refugiados, produzido pela Convenção de
Genebra de 1951 que caracterizava de forma específica um tipo de imigrante que sai de seu país receando
ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, filiação em certo tipo de grupo social ou das
suas opiniões políticas (...) (Art. 1, Estatuto dos Refugiados, 1951). Embora esses imigrantes, uma vez
localizados na sociedade de destino se incorporem inevitavelmente ao mercado de trabalho local, a
discussão sobre refúgio levanta outros elementos que não poderão ser abarcados aqui. Portanto, em geral
estamos trabalhando com imigrantes que optam por deixar seus país a partir de um entendimento de
vontade própria, não se sentindo necessária e diretamente coagidos a agir assim. O Estatuto está
disponível online e pode ser acessado através do link:
http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_R
efugiados.pdf
7
Esse ano diversas fontes de mídia divulgaram estudos e pesquisas sobre a realidade da desigualdade
social no mundo, nos informando (ainda que superficialmente, uma vez que o foco da pesquisa também
não é a desigualdade social propriamente) que apesar de avanços e conquistas para alguns setores da
sociedade, a desigualdade social ao invés de diminuir aumentou drasticamente, como pode ser visto nesta
matéria: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2002/020118_desigualdadebg1.shtml ou nessa:
9
Inicialmente meu foco era na discussão sobre escravidão contemporânea. Não
diminuo sua importância política e para a luta pelos direitos humanos, porém durante as
reflexões do campo aliadas às leituras da sociologia do trabalho, acabei “abandonando”
a intenção de trabalhar com trajetórias “pós-libertação” e colocar em suspensão o termo
escravidão, dando lugar para uma a abordagem da superexploração do trabalho.
No final de 2016, Donald Trump foi eleito novo presidente dos Estados Unidos 8
e um dos seus principais pilares era o discurso restritivo em relação à imigração e de
fortalecimento da ideia de Estado-Nação9. As movimentações políticas europeias
sinalizaram que há um aumento do mesmo pensamento, e o segundo turno francês foi
entre dois candidatos com discursos endurecidos sobre a imigração 10. As
transformações sociais que dizem respeito à realidade do Brasil também foram sentidas
durante a pesquisa, principalmente porque desde o início de 2015 o país começou a
enfrentar uma recessão econômica e uma forte instabilidade política, e essa crise vem
sendo sentida materialmente.
Em meio a tudo isso, para a comunidade imigrante no Brasil houve um pequeno
motivo a se comemorar: a aprovação da nova Lei de Migração no senado 11, que foi
sancionada em meio a uma forte instabilidade que atinge o atual presidente, Michel
Temer. A sanção, no entanto, ocorreu de forma a contrariar as expectativas dos
movimentos sociais ligados às imigrações, pois o presidente realizou 20 vetos em
artigos inteiros e parciais por conta da pressão de setores organizados contrários à nova
Lei12.
10
Como dito anteriormente, uma das maiores especificidades das ciências
humanas é que seus “objetos” de estudo são também sujeitos que constroem a realidade,
da qual por sua vez também faz parte o pesquisador. Isso significa que a agência desses
sujeitos influenciará direta ou indiretamente a pesquisa, o que torna mais dificultoso o
trabalho dessas ciências e a reflexão “recortada” da realidade.
Em muitos momentos durante a pesquisa percebia que meu objetivo central me
escapava, e surgiam novas indagações. Os temas das migrações internacionais e do
trabalho estão em constante transformação. Acredito que a inconstância do objeto e da
pesquisadora se reflete no texto – e, consequentemente, nas lacunas que ele possui.
Estando agora na reta final desse caminho, penso que a melhor forma de definir o que
eu sinto em relação à pesquisa é que ela é a síntese de possibilidades que ainda podem
se abrir a partir dessas primeiras reflexões. O fazer científico é inesgotável.
O ato de pesquisar também precisa ser, por isso, bastante solitário. Temos que
nos isolar. Escrever é um exercício de reflexão e isso demanda de nós aquele encontro
mais íntimo com o que aprendemos, o que entendemos, o que levamos de influência de
outros autores e como contribuímos para caminhar. É o momento em que temos que
escolher como podemos no expressar melhor, dizer o que concluímos de toda nossa
pesquisa. É, por isso, um encontro com nós mesmos e isso tem seus pontos negativos, é
esgotante. Penso na metáfora de Saramago que diz que:
11
pode ser construído através do agir coletivo, e por isso foi tão importante também poder
contar com diversas pessoas entre colegas, amigos, professores e novos conhecidos, que
contribuíram direta ou indiretamente com as reflexões aqui apresentadas.
Minha pesquisa foi do início até agora marcada por duas coisas que eu sentia em
mim e também nos e nas imigrantes com quem conversei: contradição e ambiguidade.
As entrevistas, as observações feitas em campo e as sínteses que realizei. A
preocupação de que não estava fazendo algo que poderia efetivamente ajudar as
comunidades imigrantes me seguia constantemente, mas percebi que era importante dar
continuidade à pesquisa, pois essa preocupação nunca ia passar e se eu deixasse ela iria
me paralisar. Os resultados da reflexão teórica e prática que iniciamos com uma
pesquisa científica não serão quase nunca sentidos imediatamente, e a possibilidade de
me envolver diretamente com o campo estudado tornou possível retribuir com algo que
eu sabia e poderia trocar ali: ensinar português.
Quando me dei conta que as entrevistas estavam dizendo coisas sobre as quais
não havia “me preparado” inicialmente, por teimosia ou inocência teórica, e que
demandavam de mim maior reflexão, comecei a perceber nos encontros que tinha com
imigrantes, suas formas de enxergar a realidade que viviam, os sentidos que atribuíam à
sua experiência e como assumiam sua existência na sociedade de destino. Pensar a
subjetividade, encontrar os paradoxos e nuances dos discursos, entender as pausas e
respirações prolongadas antes da resposta de alguma pergunta, entender alguns olhares.
Esses desafios do campo foram essenciais para me fazer entender que era preciso
assumir uma postura mais “aberta” em relação aos entrevistados, sujeitos de reflexão da
pesquisa.
Em Fronteira: A degradação dos Outro nos confins do humano, de José de
Souza Martins (2014), encontrei a tradução do que sentia quando pensava em aliar
campo e teoria. Martins na introdução nos conta que mesmo na posição de pesquisador,
optou
12
crítico e nisso estava, aliás, o meu papel pedagógico. (MARTINS, 2014,
p. 16).
Que alívio poder pensar que essa dimensão política contextual e do pesquisador
não torna a pesquisa menos pesquisa. Pelo contrário. O encontro que tive com culturas e
realidades diferentes da minha e proporcionado pelo campo foi uma experiência muito
mais intensa e qualitativa do que eu imaginava poder ser. A construção coletiva a partir
de indivíduos de diferentes realidades sociais e/ou culturais é muito trabalhosa. A
comunicação, fundamental para essa construção é feita lentamente, e o peso do idioma e
do entendimento recíproco é importante. Com a imigração, simbolicamente, nós
vivemos um encontro de fronteiras também. A fronteira, além de definir territorialmente
países na nossa sociedade estende-se para o plano humano: ela nos define.
Contraditoriamente a fronteira também é múltipla. Ela é “ponto limite de
territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos por
diferentes grupos humanos” (MARTINS, 2014, p. 10). Espaço de multiplicidade: é na
fronteira que se pode observar melhor como as sociedades se formam, se desorganizam
ou se reproduzem. “Na fronteira o homem não se encontra – se desencontra” (idem). Ao
ter contato direto com “O Outro”, com uma cultura diferente da minha, em diversos
momentos me vi desencontrada, precisei buscar entender como eu pensava sobre
aquelas experiências. Isso pra mim foi desafiador e enriquecedor ao mesmo tempo,
porque sinto que somos criados de forma muito fechada em pequenos “containers” de
mundo, o que faz com que a gente tenda a não perceber como aceitável outras formas de
existência além das nossas.
Por vezes me deparei com situações de machismo, a partir da relação
pesquisadora (mulher) e pesquisados (muitos homens). Poucas teorias aliam-se à teoria
feminista para a produção de conhecimento e prática científica e receio não ter
conseguido muito sucesso como gostaria nessa pesquisa. Tentei incorporar alguns
debates que entendi serem importantes, mas reconheço que estão aquém do que
gostaria. Não se discute gênero democraticamente dentro da Academia 13. Só essa frase
já geraria diversos debates, e não me alongarei nisso.
13
Seria injusto deixar de apontar que há núcleos de estudo de gênero em diversas universidades, e a pauta
tem avançado não só na Academia como na sociedade em conjunto. Em 2015 tive o prazer de cursar uma
disciplina do mestrado sobre gênero e política, ministrada pela professora Ingrid Cyfer. A matéria foi
13
Há que se reconhecer a relação hierárquica entre homem e mulher na sociedade,
e essa relação aparecerá também nos trabalhos de campo que envolvem esse contato
direto acima. Eu me senti diminuída e vulnerável, pela relação de gênero, em diversos
momentos da trajetória acadêmica: O trabalho de campo e alguns “chavecos”
excessivos; o desdém de colegas homens pesquisadores em eventos científicos, em
debates coletivos, em escutar nossa opinião enquanto mulheres e, por fim, mas não
menos perverso, as incontáveis vezes em que procurei falar disso com homens próximos
a mim que não faziam questão de entender sobre o problema.
Os encontros entre fronteiras são marcados por tensões e conflitos. Isso não deve
ser necessariamente ruim, e embora tenhamos aprendido que fronteira implica
necessariamente hierarquia e que somos melhores e piores que outros “alguéns”,
podemos também desaprender. A fronteira humana “tem um caráter litúrgico e
sacrifical, porque nela o outro é degradado para, desse modo viabilizar a existência de
quem o domina, subjuga e explora” (MARTINS, 2014, p. 11). Quando nos permitimos
esse contato, no entanto, aprendemos que ele pode ser extremamente positivo.
Ele procurou ensinar à filha uma lição sobre os frutos e significados gerados nessa convivência
coletiva que temos na sociedade:
muito boa, e acredito que como essa há tantas outras por aí. Estamos construindo um começo, não tenho
dúvidas. Os debates iniciais com os quais tive contato podem ser vistos em: MOHANTY, 1988; 2008;
FRASER, 2009; BAHRI, 2013.
14
Sobre a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se
diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é
sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso
partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a
beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no
sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião
com o outro(...)Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa. A
esperança na humanidade, talvez por ingênua convicção, está na crença
de que o indivíduo a quem se pede que ouça o faça por confiança. É o
que todos almejamos. Que acreditem em nós. Dizermos algo que se
toma como verdadeiro porque o dizemos simplesmente. (MÃE, 2014, p.
27).
O que pude concluir que me acrescentou muito nesses dois anos e meio de
pesquisa foi que precisamos nos apoderar mais da literatura produzida pelas minorias
políticas, oprimidas socialmente por aqueles que questionam o status quo e as
hierarquias sociais. Que serão em parte essas literaturas que possuirão mais chaves de
interpretação que escapam ao normativo, ao dominante, à uma estrutura de poder.
As contribuições sobre metodologia de pesquisa feitas pela Escola de Chicago
nos anunciaram que ao cientista social é possível consultar fontes diversas em nossa
pesquisa, fotos, livros de romance, diários, depoimentos. Que o pesquisar, portanto,
reinventa-se, acompanha o mundo, tentando compreendê-lo e contribuir ao fazer-se que
é constante. E que, por fim, enriquece principalmente a nós, pesquisadores, nos
desafiando a encontrar formas de compartilhar todo esse conhecimento que se abriu a
nós.
15
condições de trabalho desses imigrantes, chegar ao debate sobre a organização do
trabalho e as mudanças ocasionadas pela reestruturação produtiva do ponto de vista da
subjetividade da classe “que vive do trabalho” hoje em dia (ANTUNES, 1995; 2002).
Como hipótese de pesquisa, procuro demonstrar que a superexploração do
trabalho é um dado de realidade da sociedade brasileira e que a migração laboral está
ligada ao mundo global numa perspectiva ampla de precarização do sistema econômico,
social e político. A exploração do trabalho aqui desenhada, para além da disputa em
torno do conceito “escravidão contemporânea”, é uma forma de superexploração que
desloca o eixo de “responsabilidade” sobre o processo total do trabalho para o
trabalhador, individualizando-os como sujeitos empreendedores, únicos responsáveis
pelos ônus e bônus do “projeto migratório” (XAVIER, 2010). Uma expressão do
individualismo que só aumenta em nossa sociedade atualmente.
O elemento mais percebido na pesquisa foram as contradições entre o projeto
migratório individual e/ou familiar destes imigrantes laborais, alicerçado nas ideias de
“ascensão social”, “melhora de vida” e “empreendedorismo”, e as condições objetivas
de superexploração do trabalho às quais estão submetidos para produção, reprodução e
acumulação do capital. Procuramos tentar pensar de que forma as transformações
estruturais e os elementos globais de economia e política, em especial a reestruturação
produtiva e a ascensão de uma ideologia neoliberal (macro), se articulam no “micro”: a
subjetividade dos trabalhadores. Diversos autores aqui lidos já demonstraram essa
preocupação e buscaram construir uma análise da realidade que seja dialética e
relacional (GAUDEMAR, 1977; HARVEY, 2010; SASSEN, 1998; THOMPSON,
1987).
A questão da imigração contemporânea no Brasil, envolvendo latino-americanos
em geral, e mais especificamente nesta pesquisa imigrantes bolivianos, passa
necessariamente por compreender também o contexto global em que estamos inseridos
e suas transformações. Este não é apenas cenário ou pano de fundo das migrações, mas
influencia diretamente projetos e processos migratórios. Os sujeitos da pesquisa foram
caracterizados aqui de migrantes da costura em consonância com a construção do termo
feita por Tiago Rangel Côrtes (2013) em sua dissertação de mestrado, reforçando a
existência de uma relação entre essa imigração e o trabalho na costura.
Restava, assim, explorar as lacunas e potencialidades abertas pelos
pesquisadores que já haviam se debruçado sobre o tema. O desejo em intervir de forma
16
teórica e prática na realidade em que a pesquisa se desenrola é um dos combustíveis de
uma pesquisa. O que se denomina “Questão Migratória” é um vasto “campo de
enfrentamento de posições políticas e metodológicas” (PÓVOA-NETO, 1997, p. 12)
que articula diferentes campos do saber e diferentes metodologias de pesquisa.
E. P. Thompson (1987) foi um historiador que optou pelo exercício da análise
dialética entre macro e micro em seu livro A Formação da Classe Operária Inglesa.
Segundo o próprio autor no prefácio do primeiro volume de três, tem-se por objetivo
estudar os pormenores da formação da classe operária inglesa, compondo “um estudo
sobre um processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos.
A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente
ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 1987, p. 9). Assim como os migrantes da
costura.
Ainda que o autor esteja discutindo o conceito de classe trabalhadora, penso ser
possível estender sua metodologia de pesquisa e de apresentação dos dados a outros
objetos de estudo tal como as migrações protagonizadas por migrantes trabalhadores.
Minha preocupação é não pensar a questão migratória como algo que se encerra em si
mesmo. Entender esse fluxo como processo que é determinado tanto pelas questões
históricas e materiais quanto pela agência de indivíduos me pareceu a melhor forma
para conseguir captar seus elementos constitutivos internos e potencialidades externas
de transformação.
Explorou-se aqui a metodologia qualitativa tornando possível, a partir das
informações coletadas, articular teorias que deram suporte, respostas ou geraram
hipóteses às reflexões em sua maioria gestadas no campo. Assim, é possível dizer que
esses processos migratórios e as relações sociais que eles representam estão sempre
“(...) encarnada[s] em pessoas e contextos reais” (THOMPSON, 1987, p. 10). Ou seja,
não podia ignorar o contexto em que está inserida essa migração, e como ele se
materializa no “fazer-se da história” (Idem, p. 13) que pressupõe os sujeitos sociais,
trabalhadores do mundo.
As conversas feitas com mulheres e homens imigrantes foram tanto em caráter
de entrevistas gravadas quanto informais. Em ambos os casos havia sempre o obstáculo
da desconfiança que pode surgir da relação entre pesquisador e aquele que está sendo
pesquisado. De todo modo, é importante reforçar a realização de entrevistas para a
análise sociológica, pois essa metodologia gera uma possibilidade de contato direto com
17
nossos sujeitos de reflexão, e este é indispensável ao fazer sociologia já que possibilita
ao pesquisador aprender com seus interlocutores.
A entrevista nada mais é do que uma história contada que representa uma versão
dos fatos e das percepções que o narrador possui representadas na memória
(LALANDA, 1998). Por servir como um instrumento de recolha de dados, algumas
perguntas sobre as temáticas aqui abordadas eram feitas durante as conversas. Sua
realização demanda do pesquisador uma “atitude antropológica” no sentido da empatia
do processo de entrevista. É necessário que os sujeitos entrevistados saibam sobre a
pesquisa e que criem uma relação de confiança que os permita conversar com o
pesquisador. Isso, embora dito, só me foi possível aprender na prática.
O cientista social também deve ser considerado um dos atores sociais que
refletem sobre o objeto. É ele quem, através de uma lente formada pelos estudos e
reflexões teóricas, interpretará as informações recolhidas no campo. As entrevistas em
profundidade, é evidente, possuem uma dimensão narrativa bastante subjetiva, mas há
nelas também um “eu” social. O papel do cientista social, portanto, é o de explicar e
decodificar os discursos que partem dos indivíduos, entendendo que ainda que sejam
narrativas individuais as histórias estão inseridas em um contexto histórico e em
processos de socialização (LALANDA, 1998).
Nas entrevistas em profundidade o próprio investigador é um instrumento da
investigação, e vai aprendendo quais perguntas fazer ao longo de suas entrevistas. Com
a observação participante sucede o mesmo. O trabalho de campo representa uma das
formas de se apreender a partir da observação e da participação das experiências de vida
do contexto sobre o qual se reflete, vivendo as realidades produzidas ali de forma direta.
Dessa vivência, também é possível extrair a compreensão das experiências humanas
subjetivas, dentro de um contexto social. Um dos aspectos positivos desse método é que
dele se pode “retirar” teorias sobre a vida social (BECKER, 1996).
As seis entrevistas realizadas formalmente foram feitas no espaço da Praça
Kantuta, acordadas entre mim e as pessoas que entrevistei.Todos eram imigrantes
bolivianos, homens e mulheres, em geral mais velhos do que eu – embora houvesse
muitos mais jovens, as entrevistas sempre aconteceram com gerações passadas de
imigrantes. Além das conversas, com o envolvimento junto ao projeto social onde dei
aulas de português foi possível praticar a observação participante. Fui à Praça em
18
muitos domingos durante esses dois anos: para dar aulas, realizar atendimento,
acompanhar eventos, fazer etnografia.
A etnografia, ou observação participante, fundadas pelos antropólogos Franz
Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-942) são balizadas pela ideia básica
(porém revolucionária na época) de que “o pesquisador deve ele mesmo efetuar no
campo sua própria pesquisa” (LAPLANTINE, 2007, p. 75). Assim, a antropologia foi
fundamental no desenvolvimento de minhas reflexões. Ela nos permite o contato com os
sujeitos sobre os quais se reflete, tentando resolver o problema de um distanciamento
por demasiado profundo entre o pesquisador e o pesquisado, a fim de romper as
elaborações do conhecimento abstratas e especulativas. Laplantine (2007) sintetiza que
a etnografia não é apenas uma coleta de informações, como também uma forma de
“impregnar-se dos temas obsessionais de uma sociedade, de seus ideais, de suas
angústias” (p. 149).
A etnografia representa um esforço do pesquisador em se colocar o mais perto
possível do que é vivido por sujeitos/atores sociais, relacionados ao contexto e às
perguntas impulsoras da pesquisa, sem o uso de um protocolo rígido e “pelo contrário,
tem algo de errante” (LAPLANTINE, 2007, p. 151). A pesquisa qualitativa nos permite
questionar as teorias, criticá-las ao mesmo tempo em que podemos também modificá-
las, pensando as questões sociais que estão colocadas no nosso tempo e como resolvê-
las ou respondê-las, ainda que provisoriamente.
A observação participante é uma expressão para designar “a investigação que
envolve a interação social entre o investigador e os informantes no meio dos últimos, e
durante a qual se recolhem dados de modo sistemático e não intrusivo” (Bogdan e
Taylor, 1984, p. 31) – é uma forma de ir além da etnografia distanciada que pode
acontecer em algumas pesquisas. É o envolver-se no cotidiano direto que é pesquisado.
Minha formulação teórica e a reflexão dos conceitos surgiram a partir desse contato,
através de uma investigação flexível – a busca foi por uma compreensão do objeto
investigado em sua relação com o mundo.
14
Apresentarei um breve histórico da criação e funcionamento do projeto adiante.
20
Figura 1: Mapa da Região da Praça. Fonte: Google Maps. (04/11/2016).
15
A flor kantuta cresce nas regiões montanhosas, e faz parte da cultura boliviana desde o período pé-
colombiano. A flor possui as cores da bandeira do país, e em janeiro de 1924 foi nomeada “flor nacional”
21
publicada no Diário Oficial de 28 de fevereiro daquele ano, a feira e o nome da praça
foram oficialmente reconhecidos através do Decreto nº 45.326 de 24 de setembro de
2004.
A feira boliviana só acontece aos domingos. Durante a semana, a praça fica
ocupada majoritariamente por moradores em situação de rua, ainda que me tenha sido
relatado por um dos moradores da praça e ajudante da feira, que os moradores da região
passaram a frequentar mais o espaço desde a instalação dos equipamentos de ginástica,
em 2016. A feira abriga uma variedade grande de barracas: gastronomia, produtos
típicos de alimentação, artesanato, equipamentos eletrônicos, cd’ e dvd’s, cabeleireiros e
as famosas barracas de remessa de dinheiro ao exterior. Por fim, serve como palco de
diversas atividades e apresentações culturais relacionadas às datas festivas e tradições
bolivianas, o que tende a aumentar a circulação de imigrantes e de brasileiros por ali.
É importante notar que a ocupação oficial do espaço para realização da feira
criou a possibilidade de transformar a praça em um território de imigração dentro da
cidade, demonstrando que a constituição de fronteiras não se da de forma rígida, pelo
contrário. Esta se tornou um espaço tradicional de encontro de migrantes de
temporalidades diversas, ponto de produção e reprodução de cultura e tradições, de
criação de relações sociais e sentimento de comunidade, de oferta e procura de trabalho,
de reprodução da fé através de práticas religiosas, de manutenção de hábitos de
consumo e gastronomia e, por fim, e encontro de diferentes “territórios”.
Os grupos de brasileiros e bolivianos, em geral, que recorrem à praça para
anunciar trabalho e realizar a contratação de costureiros costumam localizarem-se
próximos aos seus carros, carregando mostruários de roupas na mão e placas de anúncio
e sempre iniciam sua concentração entre o meio e o fim da tarde, na saída da praça no
caminho de volta ao metrô. Nas últimas idas ao campo em 2017 foi possível notar uma
diminuição do número de anunciantes, o que corrobora a fala de muitos imigrantes que
constataram uma desaceleração no mercado da costura – porém não estagnação ou
mesmo recesso. Com esses anunciantes, no entanto, não foi tentada nenhuma
abordagem, uma vez que em geral existe um tensionamento, simbólico, colocado ali
entre pesquisadores “de fora da comunidade” e donos de oficina.
22
1.1.2 O Projeto Si Yo Puedo e a luta pelo acesso à educação.
Comecei a participar do projeto social através de contatos de amigos. Assim, no
primeiro domingo em que estive na Kantuta e após ter travado diálogo com uma das
professoras de português, procurei pela Verônica Yujra, idealizadora e membro do
projeto, e expliquei sobre minha pesquisa e sobre minha vontade de fazer parte do
coletivo. Prontamente fui acolhida com a possibilidade de ser a professora da nova
turma de idioma de português que teria aulas aos domingos na parte da manhã. Assim,
passei a frequentar o espaço da praça também nessa condição, o que me permitiu uma
proximidade com os e as imigrantes que ali se reuniam.
O projeto Si yo puedo nasceu em 2012, a partir das aspirações de Verônica
Yujra, que contou com a ajuda de sua irmã Rocio Yujra. Nascidas em La Paz, Bolívia,
as irmãs migraram com sua família para o Brasil quando crianças, hoje vivendo na
cidade de São Paulo (SILVA, 2015, p. 117). A intervenção do projeto sempre foi no
espaço da Praça Kantuta, aos domingos, a partir da iniciativa de Verônica após passar
por uma experiência de dificuldade em completar seus estudos e acessar o ensino
superior. Assim, ela começou a aparecer na praça para tirar dúvidas e logo ganhou
confiança e respaldo da comunidade local, bem como ajuda de voluntários
sensibilizados pelas pautas da migração e da educação.
O foco do projeto é o fornecimento de informações e orientações jurídicas, de
oferta de empregos e de cursos técnicos e superiores e, principalmente, a tentativa de
promover o acesso à educação pública pelos imigrantes que aqui estão. Assim, o
coletivo organiza além das aulas de português de nível básico a imigrantes cujo idioma
nativo é o espanhol, um cursinho pré-vestibular para o ensino superior e de nível
técnico.
Assim, embora o espaço do trabalho de campo não seja o lócus de observação
das condições práticas de trabalho dos imigrantes, como seria a pesquisa dentro de uma
oficina de costura, ele foi o ponto de partida e de encontro para observar e escutar as
falar, conhecer essas pessoas e também marcar e realizar as entrevistas. Por conta da
dificuldade de acesso às oficinas de costura, a entrada em campo dessa forma facilitou o
contato com esses sujeitos por outra via.
No primeiro capítulo propus uma discussão sobre teorias migratórias dando
ênfase aos autores que discutem as migrações laborais (SAYAD, 1998; SASSEN, 1993;
GAUDEMAR, 1977). Além disso, recupero a construção do sujeito imigrante com o
23
qual trabalho, a partir de uma revisão de parte dos autores brasileiros que já estudaram
esse mesmo tema. No segundo capítulo situa-se a discussão sobre o trabalho escravo
contemporâneo como, na verdade, expressão de uma superexploração do trabalho já
endêmica à nossa sociedade, a partir da teoria da dependência, e repensando as
modificações e aprofundamentos da exploração do trabalho. Por fim o terceiro capítulo
foi reservado para a discussão central sobre os sujeitos imigrantes trabalhadores e as
formas contraditórias em que a reestruturação produtiva e a ideologia neoliberal se
manifestam em suas narrativas e percepções, bem como procurarei refletir impactos
dessa reestruturação material e ideologicamente na organização do trabalho e da classe
trabalhadora (SAYAD, 1998; MARX e ENGELS, 1974; ANTUNES, 1995;
GAUDEMAR, 1977; SASSEN, 1998).
24
Capítulo 1: Mobilidade transnacional do trabalho em São Paulo.
Os fluxos migratórios não são “fenômenos” particulares ao século XXI, são parte
constitutiva dos processos de transformação do mundo e das sociedades e, por isso,
fazem parte de toda nossa história. Todavia, eles não permanecem sempre com as
mesmas características, assumindo traços distintos em diferentes contextos históricos
dos países pelo mundo todo. E muita coisa nova surgiu nas imigrações internacionais
nas últimas três décadas.
A definição “crua” da palavra migração está presente no Glosario sobre
Migración desenvolvido pela OIM, a caracteriza como
16
Tradução livre. Trecho originalmente em espanhol retirado do Glosario sobre migración, da
Organização Internacional para as migrações. Disponível em:
http://publications.iom.int/bookstore/free/IML_7_SP.pdf e acessado em: 04/09/2015. Original:
“Movimiento de población hacia el territorio de outro Estado o dentro del mismo que abarca todo
movimiento de personas sea cual fuere su tamaño, su composición o sus causas; incluye migración de
refugiados, personas desplazadas, personas desarraigadas, migrantes econômicos”.
25
pelo qual pessoas não nacionais ingressam em um país com o fim de se estabelecer
nele”.17 É o
17
Tradução livre do espanhol. Trecho original: “Proceso por el cual personas no nacionales ingresan un
país con el fin de establecerse en él”. Em: Glosário sobre migración, 2006, p. 32.
18
Tradução livre do espanhol. Trecho original: “Acto de salir de un Estado con el propósito de asentarse
en otro. Las normas internacionales de derechos humanos establecen el derecho de toda persona de salir
de cualquier país, incluido el suyo. Sólo em determinadas circunstancias, el Estado puede imponer
restricciones a este derecho. Las prohibiciones de salida del país reposan, por lo general, en mandatos
judiciales”. Em: Glosário sobre migración, 2006, p. 23.
19
Definição dada pelo dicionário Priberam da língua portuguesa acessado pelo site:
http://www.priberam.pt/dlpo/mobilidade. Acesso em: 15/10/2016.
26
de cada 35 pessoas é migrante (SOUZA, 2015). O Departamento de Assuntos
Econômicos e Sociais da ONU (DESA), em relatório emitido no dia 13 de janeiro de
2016, constatou um aumento de 41% no número de migrantes internacionais, somando
um total de 244 milhões de pessoas que vivem em países diferentes dos seus de
origem20, ressalvando que esse número provavelmente é maior, se contabilizados os
migrantes considerados “irregulares” 21 e que por isso escapam às estatísticas oficiais.
Intensos fluxos migratórios são percebidos com estranheza e receio pelas
sociedades de destino – pelos nacionais de um país, de um Estado. Os autóctones, como
também podemos chamá-los, compõem a maior parte da população hoje, mas ainda que
sejam minoria em relação a eles, os e as imigrantes tem muita história para contar sobre
as dificuldades que enfrentaram em seus trajetos em decorrência das desigualdades
sociais e exclusões produzidas a partir dessas segmentações da sociedade. As migrações
provocam tensões sociais, choques culturais e políticos. Levantam também a discussão
sobre o trabalho: há trabalho para todo mundo? Em quais condições?
As transformações pelas quais passou a sociedade capitalista após a grande crise de
1970 e a reestruturação produtiva foram o que em grande medida permitiram a criação
do fluxo migratório aqui refletido. Mais do que isso, transformaram a qualidade do
trabalho de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que se dispuseram a atravessar
fronteiras e encarar-se como estrangeiro em nome da mudança de vida. Aqui, nossa
imigração está vitalmente ligada ao trabalho: a intensificação do fluxo veio no bojo das
transformações neoliberais do mundo do trabalho.
Há diferentes teorias que surgem para explicar os fenômenos das migrações, e
temos acordo com a leitura de uma série de autores que reconhecem o elemento da
transnacionalidade nos sujeitos imigrantes – o fato de não possuírem necessariamente o
desejo de permanecer em um só lugar (CÔRTES, 2013; TARRIUS, 2000) e terem a
perspectiva muitas vezes de retornar ao local de origem, embora em diversas entrevistas
aqui realizadas os e as imigrantes chegados logo no início dos anos 1990 tenham
enfatizado o desejo de permanecer no Brasil, mesmo que com eterna saudade do país de
origem.
20
Informações extraídas do site da ONU: https://nacoesunidas.org/numero-de-migrantes-internacionais-
chega-a-cerca-de-244-milhoes-revela-onu/. Último acesso em: 14/05/2016.
21
Utilizamos o termo “irregular” por entendermos que não existem migrações e migrantes que sejam
irregulares – existem leis e regulamentos que classificam sujeitos migrantes “legais” e sujeitos “ilegais” a
partir de uma série de critérios. De toda forma, a discussão sobre migração irregular não é a central neste
trabalho, embora apareça em alguns momentos de forma tangente.
27
Com a perspectiva de ficar ou ir embora, a imigração latino-americana se
intensificou desde a década de 1990, o que chamou a atenção de organizações não
governamentais e também da Academia. Envolve tensionamentos simbólicos e
políticos, e passou a ser mais difundida como objeto de diversas pesquisas. Grande parte
delas identificou uma ligação profunda com a temática do trabalho: é que os
trabalhadores imigrantes escancararam a realidade da precarização do trabalho dentro de
grandes centros urbanos, o chamado trabalho análogo a de escravo, além de expor à
sociedade de destino suas contradições e fissuras de formas mais explícitas.
22
Trecho traduzido livremente do original em inglês: “Capitalism from its beginnings has been
a system of production dependent on global interconnections between the people of the world”
(SCHILLER; BASCH; BLANC, 1995, p. 50).
29
pequena da população. A maior parte das pessoas pelo mundo todo começam a
experimentar diversos outros elementos contidos nesse processo: o desemprego
crescente, a precarização da vida e do trabalho, deterioração da qualidade de vida, bem
como aprofundamento dos “males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos,
a corrupção” (SANTOS, 2008, p. 20).
Nos últimos 30 anos, a partir da década de 1990, o país passou a ter uma política
central de combate à inflação e voltada para o suposto crescimento econômico e
inclusão social, a partir de premissas ideológicas do neoliberalismo. Foi aí que em
grande medida se consolidou o processo de internacionalização da economia brasileira,
seguindo o fluxo das transformações econômicas mundiais. Em 1994, o então
presidente da República Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Real como forma
de estabilização econômica. Seus dois governos foram fortemente marcados pelos
aspectos neoliberais, sobretudo as privatizações de empresas estatais e a entrada
massiva de capital estrangeiro no país, que, como mencionado, passou a integrar o
mercado mundial globalizado, embora sem taxa de crescimento expressiva
(FERNANDES, 2015, p. 24).
30
trabalho, que foi atendida por trabalhadores imigrantes que além da disposição em
migrar, uma vez que a vida em seus países não caminhava de acordo com uma boa
perspectiva, também preenchiam os principais requisitos de uma força de trabalho que
pudesse custar menor, possibilitando a inserção do país no mercado mundial
(FERNANDES, 2015, p.24).
31
perspectiva de mudar de vida e ascender economicamente. O projeto migratório, isto é,
a elaboração de um plano que envolve a saída, o trajeto e a chegada, gira em torno das
melhores possibilidades diante de um investimento pessoal para conseguir a tão deseja
ascensão social (BATTISTI, 2015; SILVA, 2008, et. al).
Em seu estudo sobre a emigração da Bolívia, que é com a qual tivemos mais
contato, Silva (1997) apontou dois fatores importantes para esta ocorrer: a crise no setor
mineiro que atingiu o país e uma reforma agrária que gerou ampla evasão do campo
para as cidades, gerando uma instabilidade econômica e elevando o índice de
desemprego. Na época de realização de seu estudo, as estatísticas apontavam que 20%
da população nativa vivia fora da Bolívia (SILVA, 1997 apud. FREIRE, 2008, p. 86).
Essa migração ao Brasil não é recente, tendo se iniciado na década de 1950. O que
ocorreu foi uma transformação do perfil dos imigrantes: na época inicial eram jovens
que vieram ao país para estudar ou por motivação política.
32
constituem as novas bases do crescimento economico”
(WANDERLEY, 2009, p. 165).
33
contrabando23, além dos problemas da superexploração do trabalho, na figura do
trabalho escravo contemporâneo (FERNANDES, 2015, p. 32).
A mais recente crise global do capitalismo, desde 2008, também se reflete nesse
fluxo migratório. Nesse período o Brasil despontou no cenário da economia mundial
com uma boa taxa de crescimento do PIB, além de diversos investimentos econômicos
nacionais, o que o consolidou como um país “em crescimento”, atraindo assim mais
trabalhadores estrangeiros (FERNANDES, 2015, p. 24). Além disso, os países do
Hemisfério Norte, principais destinos escolhidos, iniciaram uma série de políticas de
endurecimento em relação à imigração em seus territórios e até de expulsão da força de
trabalho migrante (FERNANDES, 2015, p. 22). No Brasil, gradativamente diminuíram
os imigrantes vindos da Europa e do Japão, principalmente, aumentando o número de
imigrantes dos países da América Latina, segundo os dados abaixo, que representam o
número de estrangeiros (estrangeiros e naturalizados) que residiam no Brasil entre 2000
e 2010. 24
2000 2010
País de Nascimento
Volume % Volume %
Portugal 213.203 31,18 137.973 23,28
Japão 70.932 10,37 49.038 8,27
Itália 55.032 8,05 37.146 6,27
Espanha 43.604 6,38 30.723 5,18
Paraguai 28.822 4,21 39.222 6,62
Bolívia 20.388 2,97 38.826 6,55
Tabela 1. Fonte: IBGE Censo Demográfico 2000 e 2010 apud. FERNANDES, 2015.
Essas migrações configuram-se como coletivas, contando com uma grande rede
que as viabilizam e que são muitas vezes composta por núcleos familiares de indivíduos
23
Há dois tipos de crimes que envolvem esses imigrantes irregulares: o tráfico de pessoas, onde há o
recrutamento e deslocamento entre as fronteiras até o local de trabalho final realizados pelo “gato”; E o
contrabando de pessoas, que resume-se a ficar na fronteira atravessando as pessoas, deixando o resto por
conta delas mesmas”. (ROSSI, 2005, p. 20). É importante ressaltar que o tráfico de pessoas é conhecido
como um tipo de imigração (SIQUEIRA, 2013, p. 26). Já no contrabando é mais comum que a pessoa vá
por vontade própria, sendo ajudada com as passagens e travessias, mas criando uma relação de
interdependência menor. O contrabando configura um crime contra o Estado, enquanto que o tráfico é um
crime contra a pessoa (NOVAES, 2013, p. 409).
24
O censo anterior, de 1990, não possui as informações organizadas por nacionalidade.
34
que já haviam migrado anteriormente. Além disso, em países como Bolívia e Paraguai,
observou-se a existência de formas locais de incentivo da migração, viabilizadas por
agenciamento, nos quais se propagandeava a garantia de trabalho e moradia aos que
optassem por emigrar (MALDONADO, 2015; ROSSI, 2005). Foi importante para
consolidação dessa rede, por fim, que os coreanos abrissem mão da fase da produção
material da indústria, isto é, das oficinas, e se dedicassem ao momento da criação e da
venda da produção, e que bolivianos e paraguaios há mais tempo no país tomassem o
lugar de proprietários das oficinas, novamente ativando uma rede migratória familiar.
(SOUCHAUD, 2012), algo narrado frequentemente nas entrevistas feitas em campo.
Atualmente, cerca de 200 mil imigrantes bolivianos vivem no Brasil, segundo
dados cruzados da Polícia Federal, Pastoral do Migrante e IBGE (SOUZA, 2015). Além
disso, apenas na cidade de São Paulo, há também entre 15 e 20 mil paraguaios
(MALDONADO, 2015). Dispositivos jurídicos que tentavam mirar na questão da
irregularidade e do tráfico de pessoas - fortemente ligados à ocorrência de trabalho
escravo contemporâneo - como a Lei da Anistia25 e o Acordo de Livre Residência do
Mercosul26, ambos de 2009, também aparecem como mecanismos de incentivo à
25
A Lei da Anistia (Lei nº 11.961 de 02 de julho de 2009) foi promulgada pelo então presidente da
república Luis Inácio Lula da Silva (PT) que permitia aos imigrantes que haviam ingressado de forma
irregular no Brasil até o dia 1º de fevereiro daquele ano, solicitar regularização da situa situação
migratória. Na época da promulgação o governo contabilizava cerca de 50 mil estrangeiros vivendo no
país de forma irregular. Na mesma época de promulgação dessa Lei foi encaminhado ao Congresso uma
nova proposta de Lei que substituísse o Estatuto do Estrangeiro, documento que é citado e regulamente
diversas questões na Lei da Anistia. Mauge foi uma das que conseguiu regularizar sua situação a partir
dessa lei, recordando-se das longas filas que se formavam, me narrou que nessa ocasião em que “aí hubo
indianos, coreanos, todo em la ciudad...”(MAUGE, 2015). A Anistia significava, na época, a obtenção de
uma série de documentos sem os quais tornava mais difícil ainda o acesso da população imigrante que
vivia no país à informação e à direitos que modificassem sua qualidade de vida, como Carteira de
Trabalho (CTPS), documento de identidade, CPF, entre outros.
26
O Acordo de Livre Residência do MERCOSUL e países associados, foi assinado por ocasião da XXIII
Reunião do Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília em dezembro de 2002. Porém, o
documento foi promulgado através do Decreto nº 6.975 apenas em outubro de 2009. No documento
consta-se como principal finalidade buscar “reestabelecer regras comuns para a tramitação da autorização
de residência aos nacionais dos Estados Partes e Associados do MERCOSUL" 26. O acordo é valido para
os países signatários: Brasil, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Estados associados. Pelo
conteúdo do documento, se expressa a vontade dos países em fortalecer os vínculos entre eles, no
35
migração, já que buscaram consolidar a relação entre os países signatários do Acordo,
no sentido de “oficializar” as rotas migratórias que já estavam formadas.
As pesquisas apontam que a maioria dos imigrantes latino-americanos se
instalava nas regiões centrais da cidade, como Brás, Bom Retiro e Pari, e que desde o
início dos fluxos migratórios tornaram-se referência histórica da imigração (CÔRTES,
2013; FREIRE, 2008; ROSSI, 2005; SILVA, 1995, 1998; SOUCHAUD, 2011, 2012).
Algumas mais recentes, a partir de 2010, no entanto, também apontaram para uma
descentralização desses imigrantes para outras regiões da cidade e, inclusive, para as
cidades vizinhas como Guarulhos, por exemplo. (CÔRTES, 2013).
sentindo de aprofundar mecanismos que favoreçam esses vínculos, pensando na resolução do que ficou
colocado como “situação migratória” – que se traduz no problema, reconhecido no documento, do
“tráfico de pessoas para fins de exploração de mão-de-obra e aquelas situações que impliquem a
degradação da dignidade humana”. Assim, é possível situar como marco histórico da criação e
consolidação do Acordo o momento de intensificação do fluxo migratório entre países da América Latina.
O Acordo cria, em tese, mecanismos que facilitem a circulação entre fronteiras dos Estados signatários e
fixação de uma pessoa de uma nacionalidade em território de outra nacionalidade, mediante
preenchimento dos requisitos presentes no documento. O documento parece ter gerado mais facilidade
para a livre circulação de migrantes diminuído o problema do tráfico de pessoas, por exemplo, mas não
me debrucei sobre uma pesquisa empírica no sentido de buscar dados que avaliem a medida. E importante
ressaltar que permanece em vigor o Estatuto do Estrangeiro, que não retira de cena a arbitrariedade
presente na permissão ou não de entrada de migrantes no território nacional, a partir dos agentes que ali se
encontram.
27
Notícia acessada pela primeira vez na elaboração do projeto de pesquisa inicial e acessada novamente
em 12/11/2016 através do link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/24069-brasil-recebe-57-mais-
mao-de-obra-estrangeira.shtml
36
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2013 o Brasil
contava com 120.056 trabalhadores estrangeiros formais, 28 número subestimado, visto
que nas oficinas de costura, por exemplo, é praticamente inexistente qualquer vínculo
empregatício formal. E, segundo dados da Polícia Federal, no período de 2006 a 2012
houve aumento de 34% de estrangeiros no país, passando de 1.175.353 para 1.575.643
pessoas imigrantes. Desses, 805.668 declararam residir em São Paulo (51,1%), 325.622
no Rio de Janeiro (20,6%) e os quase 30% restante em outros estados (FERNANDES,
2015, p. 28).
28
Dados retirados do site: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/03/trabalho-estrangeiro-
no-brasil-cresce-50-em-tres-anos. Acessado em: 21/10/2016.
37
A cidade de São Paulo possui por volta de um terço da produção nacional da
indústria de confecções e vestuário, e um dos maiores aglomerados de confecção do
mundo, além dessa indústria ser o segundo setor industrial de transformação que mais
agrega valor ao produto final (KONTIC, 2007 apud. FREIRE, 2008, p. 52). É curioso
pensar que a produção dessas oficinas passa por atender a demanda de grandes marcas
conhecidas, até o mercado informal e popular, onde os próprios donos das oficinas
escoam parte do que é produzido, em feiras ambulantes da cidade, como o caso da
Feirinha da Madrugada.
Desde meados da década de 1960 até a de 1980, outra migração surgiu com
força na cidade, tomando lugar nessa indústria: os coreanos. Ela influenciou bastante
nas transformações ocorridas na organização da produção, pois, para conseguirem se
inserir e competir com a indústria local, os imigrantes coreanos introduziram a
organização conhecida como sweating labour – um trabalho de custos reduzidos, que
empregava majoritariamente o núcleo familiar, com produção doméstica (SOUCHAUD,
2012). A partir da década de 1980 essa indústria se modernizou e reorganizou,
adequando-se às reestruturações do mercado e demandando maior quantidade de força
de trabalho. Foi nesse cenário que o fluxo migratório de países vizinhos ao Brasil,
principalmente da Bolívia, aumentou. Souchaud citou que muitos entrevistados
declararam que havia uma dificuldade grande em se encontrar força de trabalho
brasileira para ser empregada na costura, por conta da desvalorização do trabalho.
Ainda na década de 1970 o Brasil impôs uma restrição à migração coreana,
forçando-a a procurar uma rota alternativa de entrada. Assim, os imigrantes coreanos
começaram a passar pela Bolívia para chegar ao Brasil, e daí se se configurou um
29
esquema de agenciamento de migração (FREIRE, 2008, p. 89) . Os coreanos
começaram a se distanciar da fase da produção específica, isto é, das oficinas, que
passam a ser geridas por bolivianos e paraguaios que chegaram junto aos primeiros
29
Nesse período e até o início dos anos 2000 grande parte das migrações que envolviam essa rota eram
classificadas como ilegais, o que pode abrir espaço para a questão do tráfico ou contrabando de pessoas.
O Brasil ratificou o Protocolo de Palermo, documento que define os termos do contrabando como a “(...)
exploração da facilitação da entrada de imigrantes de forma irregular em um país” (FREIRE, 2008, p. 92).
Além disso, o tráfico de pessoas é definido como “(...) o recrutamento, o transporte, a transferência, o
alojamento ou o acolhimento de pessoas recorrendo à ameaça ou o uso de força ou outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega e aceitação de pagamentos ou benefícios para a obtenção de consentimento de uma pessoa que
tenha autoridade sobre a outra para fins de exploração” (Ministério da Justiça, 2007 apud. FREIRE, 2008,
p. 67). Embora alguns imigrantes que passaram pela pesquisa tenham relatado trajetórias migratórias que
envolva essas duas questões, o foco da pesquisa não é discutir a travessia de fronteira e os mecanismos de
legalização da entrada e saída dos territórios.
38
fluxos latino americanos ao país, antes dos anos 199030. Os coreanos passaram a ter
suas próprias marcas e lojas principalmente na região do Bom Retiro, trabalhando com
atacado e varejo, agora na posição de contratantes das oficinas. Junto, chegaram grandes
empresas de capital estrangeiro, as transnacionais, que começaram a investir no país
com a abertura do mercado nas décadas de 1970 e 1980 (SILVA, 1995; ROSSI, 2005;
FREIRE 2008; SOUCHAUD, 2012; FREITAS, 2009; CÔRTES, 2013, et. al).
Um dos mecanismos práticos de coerção dentro das oficinas sentidos
principalmente por trabalhadores imigrantes era a retenção de documentos, uma vez que
o esquema da migração é controlado desde a origem, muitos donos de oficina tem em
sua posse os documentos dos seus trabalhadores. Por fim, o medo da deportação ou de
algum tipo de criminalização da parte do dono da oficina sempre apareceram com
grande peso na ligação entre imigrante e oficina, e foram narrados diversas vezes em
minhas entrevistas também, bem como o problema do pagamento, uma vez que a
maioria recebe em espécie sem nenhum controle formal.
30
Discutiremos mais profundamente o perfil das migrações latino-americanas contemporâneas ao Brasil
no capítulo seguinte.
39
a partir de uma leitura teórica que permita entender o deslocamento e a disponibilidade
de se trabalhar.
42
O imigrante deve continuar sendo sempre um imigrante – o que significa que
a dimensão econômica da condição do imigrante é sempre o elemento que
determina todos os outros aspectos do estatuto do imigrante: um estrangeiro
cuja estadia, totalmente subordinada ao trabalho, permanece provisória de
direito (...). (SAYAD, 1998, p. 63).
Fato é que precisamos chamar atenção ao que nos foi amplamente narrado e o
que foi lido em diversas pesquisas da migração: é que a inserção na sociedade de
destino é avaliada em geral como de maior sucesso na medida em que os e as imigrantes
acessam postos de trabalho que lhes garantam condições de vida sustentáveis, isto é,
pelo menos melhores do que as que possuíam antes de emigrar. Ao mesmo tempo, em
se tratando da permanência em territórios de imigração, a possibilidade de inserção na
economia também é condicionante das políticas de abertura ou fechamento das
fronteiras.
44
A leitura de Gaudemar parte do processo de acumulação primitiva inicial,
descrita por Marx em O Capital. Esse foi o momento em que qualitativamente os
trabalhadores camponeses que mantinham em grande parte uma relação servil com seus
senhores tornam-se livres através do processo de expropriação total dos meios de
produção a partir do fim do estatuto de servidão. Esses indivíduos passarão a dispor
apenas de si próprios isto é, de sua força de trabalho para viver.
A liberdade concedida a esses trabalhadores é uma liberdade real do ponto de
vista de sua condição anterior. Há a partir desse processo a possibilidade de mover-se
pelas estruturas da sociedade, sem o peso da determinação social que é a relação de
servidão. Estas são desmanteladas como estatuto normalizador das relações sociais de
produção, dando lugar à livre associação e ao salário. Há, ainda, um estatuto jurídico e
ideológico que afirma serem todos os indivíduos da sociedade iguais, produzindo uma
ideia de simetria dentro das relações sociais de produção, simbólica e juridicamente.
É essa construção ideológica, das liberdades de ir e vir (mover-se), de escolher e
de associar-se; aliada à forma como se modificará a distribuição e apropriação da
riqueza que continuam sendo produzidas pelos trabalhadores, que substancialmente
marcará o surgimento do capitalismo.
Porém, essa liberdade conquistada com o fim da servidão não deixará de estar
condicionada pelos processos políticos e econômicos vigentes no momento de
consolidação de um novo formato de sociedade. Isso quer dizer que aqueles que eram
trabalhadores camponeses ocuparão uma posição desvantajosa em relação à
possibilidade de exercer sua liberdade do que ocupam aqueles que detém mais poder
econômico e político. A liberdade de agir como queira, então, será praticada nos
marcos de como se demandará a força de trabalho vivo e onde ela poderá ser realizada.
Ora, sabemos também que independente das condições materiais os indivíduos,
para sobreviver, precisam dispor de sua força de trabalho no mercado onde possam
vendê-la, uma vez que o processo de expropriação dos meios de produção gerou como
uma de suas consequências o não controle do trabalhador sobre o processo total
produtivo e a distribuição de riqueza na sociedade.
Na sociedade capitalista a perda do controle entretanto, que acaba condicionando
essa liberdade de mover-se, está no próprio fato de que a força de trabalho de um
indivíduo se transformou ela mesma em uma mercadoria. Assim, a liberdade do
indivíduo é, em parte, uma liberdade de mercado, pois será ele quem influenciará de
45
forma predominante como essa força de trabalho será aplicada. Porém, não é totalmente
incorreto dizer que a liberdade do indivíduo o permite escolher onde, quando e como irá
vender sua força de trabalho – perpassando, inclusive, pelo constrangimento que “lhe
impõe o deslocamento como estratégia de sobrevivência” (PÓVOA-NETO, 1997, p.
20).
O desenvolvimento do sistema capitalista, por ocorrer de forma desigual pelo
mundo, gera trabalhadores excedentes que precisam deslocar-se espacialmente em
busca de trabalho. O Capital, por sua vez, precisa de trabalhadores que estejam livres e
dispostos a trabalhar e a deslocar-se.
Miranda veio ao Brasil por volta de 2009, 2010 e estava grávida do seu segundo
filho. Conta que sentiu muito medo, pois a polícia na fronteira dizia que grávidas não
eram permitidas de entrar. Além disso, seu companheiro não quis acompanhá-la e
Miranda resolveu vir sozinha. Ela chegou a São Paulo através do terminal rodoviário
da Barra Funda, onde encontrou o anúncio da primeira oficina de costura onde
trabalhou e viveu. Não trabalhava fora quando morava na Bolívia, seu trabalho se
restringia ao espaço doméstico, e nunca havia pensado sobre a importância do
trabalho até decidir emigrar, mas mesmo assim desde a saída de seu país assumiu para
si mesma que veio ao Brasil para trabalhar, morar e se superar31.
A experiência de sofrimento pessoal, em seu caso, foi motivação principal de
sua vinda ao Brasil. No entanto, o planejamento contou com a já conhecida rota de
migração boliviana ao país, e chegando aqui, o primeiro acesso ao trabalho só foi
possível através da rede de contratação para as oficinas de costura, já estabelecida. Sua
vida se estruturou conforme foi conseguindo se sustentar e se estabilizar trabalhando.
O desenvolvimento da obra de Gaudemar gira em torno da discussão sobre a
mercantilização da sociedade, a partir do processo de acumulação primitiva – processo
cujo desenvolvimento transforma o indivíduo, que é portador de força de trabalho, no
vendedor de sua própria mercadoria, que se constitui como uma mercadoria particular,
uma vez que seu valor de uso possui “(...) a virtude particular de ser fonte de valor de
troca, de modo que consumi-la seria realizar trabalho e consequentemente criar valor”
(GAUDEMAR, 1977, p. 188).
31
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
46
O mercado de trabalho é multidimensional: se modifica no tempo e no espaço, e
não é homogêneo. Assim, surgem “formas contingentes da liberdade de compra-venda
da força de trabalho” gerando por sua vez formas de mobilidade capitalista do trabalho:
“a mobilidade da força de trabalho é assim introduzida, em primeiro lugar, como a
condição de exercício de sua ‘liberdade’ de se deixar sujeitar ao capital, de se tornar a
mercadoria cujo consumo criará o valor e assim produzirá o capital” (GAUDEMAR,
1978, p. 190 – grifo meu).
A migração está relacionada à mobilidade do trabalho. A liberdade do migrante -
que é potencialmente também trabalhador - é marcada por dois sentidos, contraditórios
entre si, mas que não se explicam sozinhos: de um lado, a possibilidade de o trabalhador
escolher seu trabalho e o local onde exercê-lo, o que possui uma carga positiva, de
agência do sujeito; por outro lado, o individuo também está sujeito às exigências do
capital que pode precisar dele ou despedi-lo a qualquer momento ou, ainda, transformar
suas condições de trabalho sem que ele tenha total controle sobre isso (GAUDEMAR,
1977, p. 190). No caso do segmento de trabalhadores imigrantes a questão do controle
das condições de trabalho aparece nas formas mais precárias e limitadas.
Sassen (1998) falou especificamente em migrações laborais internacionais,
olhando também para as transformações globais no cenário capitalista no contexto da
reestruturação produtiva. Em A mobilidade do trabalho e do capital a autora defende a
tese de que “a prática econômica e a tecnologia contribuíram para o nascimento de um
32
espaço transnacional para a circulação de capital” (SASSEN, 1993, p. 17) e,
consequentemente, para a circulação de pessoas. Seu pressuposto é o de que as
migrações laborais internacionais e o comércio e investimentos a nível internacional são
elementos que se influenciam reciprocamente.
Sassen apontou que os países do chamado “Terceiro Mundo” ou capitalistas
periféricos passaram a receber investimentos estrangeiros que interviram
substancialmente em seus mercados e em suas indústrias para exportação, após as
transformações a nível mundial do sistema capitalista que começaram a se desenhar nos
anos 1960 e 1970 e se concretizaram com a crise econômica. Há uma vinculação entre
as migrações contemporâneas e a internacionalização da produção que aprofundou
diferenças regionais bem como a divisão mundial do trabalho.
32
Trecho traduzido livremente do original lido em espanhol “la práctica económica y la tecnologia han
contribuído al nacimiento de un espacio transnacional para la circulación del capital” (SASSEN, 1998, p.
17).
47
É interessante nesse contexto pensar a alta rotatividade dos trabalhadores
migrantes das oficinas de costura apontada tanto pelos pesquisadores que se debruçaram
sob o tema e também pelos próprios trabalhadores interlocutores dessa pesquisa.
Santiago disse-me que, durante os dois meses em que esteve trabalhando na sua
primeira oficina, viu passar pela oficina uma grande quantidade de trabalhadores que
não se estabeleciam ali.33 A circulação é elevada porque o trabalho gira em torno de
uma demanda sazonal, o que gera uma condição de instabilidade, bem como contribui
para que a remuneração seja baixa – algo que todos os entrevistados tiveram acordo em
afirmar.
Talvez, uma chave possível de interpretação esteja na própria condição de ser
imigrante. Sassen (1998) argumenta que a situação do imigrante na sociedade de destino
é o que torna sua força de trabalho executável: “assim, não são principalmente os
salários baixos dos imigrantes, mas é também a sua boa vontade para trabalhar em
certos tipos de trabalho, o que explica sua obtenção de emprego em uma época de
crescente desemprego” (SASSEN, 1980 apud. SASSEN, 1998, p. 3 ) 34.
Começou a ficar notável que todas as pessoas que participaram dessa pesquisa
reforçavam em seus discursos a ideia de que trabalhavam o máximo que podiam porque
precisavam, porque lhes era necessário para alcançar seus objetivos individuais pelos
quais migraram e porque eles próprios aceitavam as condições. Seja para esquecer algo
traumático que aconteceu no passado, seja para “superarme”, seja simplesmente para
manter-se vivendo enquanto traça um plano B, como Santiago; seja para construir do
zero uma nova vida, como Miranda.
As transformações econômicas mundiais geraram possibilidades para que esses
sujeitos se deslocassem e pudessem migrar. Na conjuntura analisada, a integração de
imigrantes tende a ser nos empregos mais mal remunerados – relacionados à prestação
de serviços ou no setor industrial, rebaixado e degradado (SASSEN, 1998, p. 45).
Tanto para aqueles que vieram, segundo Yarita, cientes de que trabalhariam em
condições tidas como precárias; quanto para aqueles que vieram desenvolver um projeto
de vida onde almejam exercer outra profissão que não de costureiro, como Santiago,
33
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015.). 3
arquivos MPEG-4 (63 min).
34
Trecho traduzido livremente do lido do original em espanhol: “así, no son principalmente los bajos
salarios de los inmigrantes, sino que es más bien su buena voluntad para trabajar en ciertos tipos de
trabajo, lo que explica su obtención de empleo en una época de creciente desempleo” (SASSEN, 1998, p.
36).
48
encontraram uma sociedade de destino incapaz de assimilar a possibilidade de alguém
de outra nacionalidade acessar determinados postos de trabalho – o que expressa mais
uma vez a existência de trabalhos específicos a imigrantes, e a segregação presente na
sociedade entre nacionais e estrangeiros.
Assim, as argumentações de Sassen (1998) e Gaudemar (1977) convergem para a
interpretação aqui sugerida, de que a migração está vitalmente inserida em processos
econômicos que lhe influenciam diretamente, acompanhando os movimentos
transnacionais da economia e das grandes empresas que, a partir de investimentos e
inserção em novos mercados, reconfiguram espacialmente a sociedade a todo o
momento. Essa reconfiguração não seria completa, no entanto, se do outro lado milhares
de trabalhadores e trabalhadoras não estivessem circulando “livremente” pelo mundo,
dispondo de sua força de trabalho e construindo sua vida e a própria sociedade. A
“dupla liberdade” do trabalhador imigrante e sua condição paradoxal de existência
(SAYAD, 1998) se fazem aqui indispensáveis à nossa reflexão. Essa migração,
circulatória, cria o que podemos pensar como um espaço transnacional de mobilidade de
trabalhadores, espaço que se constitui pelo mundo e abre questões importantes sobre a
transnacionalização do mundo.
35
como vimos acompanhando principalmente desde 2015 com a travessia envolvendo norte do
continente africano e sul da Europa, mais especificamente Itália; ou com a migração Síria, que
envolve a discussão sobre migração e refúgio, ou os intensos fluxos entre México e Estados
Unidos, entre outros casos.
50
cotidiano: é o território circulatório, que gera uma nova noção de pertencimento a
territórios.
Essa concepção parece estar carregada pelo contexto histórico em que vivemos.
As dinâmicas transnacionais fazem parte do processo que constitui o mundo como o
conhecemos hoje, inclusive se pensarmos o fato de que nosso país foi formado por
diferentes correntes migratórias ao longo da sua história. Isso é percebido quando
ouvimos do imigrante boliviano Felix que “(...) as pessoas de todo o mundo veem pra cá
e constroem uma cidade junto. O Brasil é feito de imigrantes” (FELIX, 201 , p. 19). A
questão, portanto, não é apenas que hoje os fluxos migratórios ocorram com mais
intensidade, mas sim que eles se modificaram substancialmente em sua forma e no que
representam na conjuntura atual. O Brasil e, mais especificamente São Paulo, nunca
foram lugares “puros” de nacionalidade brasileira. Isso não existe. Felix veio ao Brasil,
“pois queria conhecer pessoas diferentes, saber como eram os brasileiros. Tem gente
aqui de todo lugar do mundo. São Paulo é resumo de todas as raças. É um retrato do
mundo”. (FELIX, 2016, p. 16). As migrações nos abrem possibilidades de reconhecer o
tecido de retalhos culturais que compõem a nossa sociedade.
Tarrius (2000) afirma que esses movimentos novos causam muitas tensões
sociais, gerando rupturas com aquilo que até então era tido como “normal”, e
desafiando a percepção de todos os indivíduos da sociedade acerca, inclusive, do que é e
como funciona a sociedade em que vivem e a cultura que compartilham. Esse ponto é
um dos mais fundamentais dos estudos migratórios hoje: aquele que é excêntrico,
estrangeiro, diferente, marginal, periférico, não-oficial, irregular, enfim, são estes que
proporcionam uma nova e melhor chave de compreensão das imbricações entre vida e
morte das formas sociais, transformando potencialmente aquilo que até então era tido
como imutável: nossa sociedade (TARRIUS, 2000, p. 40).
O autor está preocupado em desenvolver uma metodologia capaz de articular
simultaneamente noções de identidade, espaço e tempo, a fim de conseguir englobar a
questão da mobilidade. Há uma relação dialética entre alteridade e identidade para
pensar os movimentos de circulação por diferentes territórios e consequentemente, o
encontro entre “os de aqui” e “os que vem e que passam”. Os novos fluxos geram novas
coletividades, mais ou menos estáveis, cujo grau de circulação entre territórios é grande
– o que confronta a perspectiva da necessidade e até mesmo imposição de um vínculo
51
entre o individuo e o lugar onde ele se estabelece, que inclusive não necessariamente
será seu destino final.
O fim do Estado-nação em hipótese alguma foi decretado. Sujeitos imigrantes
inserem-se na sociedade de destino obrigatoriamente categorizados como estrangeiros e
vão improvisando sua existência desde suas experiências circulatórias. Caminham pela
cidade, frequentam os espaços coletivos de migração, fazem um amigo aqui e outro ali
que lhes apresentam uma oportunidade de trabalho, como Santiago que saiu da Bolívia
a partir de uma rede de contatos que lhe garantia que alguém lhe buscaria na rodoviária
e lhe daria trabalho, e quando finalmente chegou ao destino, depois de três dias e de
uma travessia irregular, não havia ninguém lhe esperando.
Inseridos que estamos num processo de globalização real, caracterizado
anteriormente, e já reconhecendo a face perversa dela, a perspectiva dos territórios
circulatórios retoma os aspectos positivos desse processo mundial, não negando o
aspecto “aglutinador” que possui, no sentido de diminuir as distâncias e o tempo –
Santos (2008) chama atenção ao elemento contraditório da que já carrega consigo
elementos que são necessários para se pensar outra forma de sê-lo, chamada pelo autor
de mais “humana”. Nessa sociedade em que vivemos a mistura de povos, raças, etnias e
culturas é muito maior, gerando consequentemente a mistura de uma série de filosofias
distintas que se opõem ao racionalismo europeu.
36
Traduzido por mim da versão lida originalmente em espanhol: “el ser de aqui, el ser de allá, el ser de
aqui y de allá a la vês” (TARRIUS, 2000, p. 41).
53
última década. Dessa forma, para além da reflexão do deslocamento espacial desses
sujeitos, foi necessário refletir sobre seus trabalhos em suas condições materiais e as
possíveis explicações sobre a exploração extrema do trabalho do ponto de vista
estrutural da sociedade capitalista contemporânea.
54
Capítulo 2: Oficina de costura: Trabalho escravo contemporâneo e a
superexploração do trabalho.
.
Disse Yarita: há máquinas de costura que ajudam os trabalhadores, mas elas são
incapazes de fazer o trabalho inteiro. Tem os detalhes das roupas e, segundo ela, mesmo
máquinas mais avançadas não seriam capazes de realizá-los:
Yarita: (...) Over, Recta, tudo mexido por pessoa, não é sozinho que pode
fazer...
Eu: Tem os detalhes da roupa...
Entrevistada: Tem os detalhes, bastante.
Eu: Que tem máquina que não da conta, tem que ser gente...
Entrevistada: Máquina não, não... não dá37.
37
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Quatro
arquivos MPEG-4 (52’12’’).
55
O processo produtivo capitalista, no entanto, se constrói a partir de uma
peculiaridade: não basta que sejam produzidos os valores de uso necessários para a
sociedade de conjunto – é preciso mais. Na sociedade em que vivemos “uma economia
saudável, ou de funcionamento adequado, é aquela em que todos os capitalistas têm
uma taxa de lucro constante e rentável” (HARVEY, 2013, p. 100).
38
D corresponde à dinheiro e M corresponde à mercadoria. Essa é uma abreviação esquemática usada
n’O Capital de Marx e também no livro de Harvey, Para entender O capital de 2013.
56
descreveram valores extremamente baixos de remuneração dos costureiros: recebe-se
por peça produzida quantidades completamente incompatíveis com o preço final da
mercadoria numa loja. Em minhas entrevistas, Yarita foi quem melhor falou sobre isso.
Ela me explicou que o costureiro fica com apenas a terceira parte do pagamento.
Por exemplo, se a marca que contratou a oficina paga R$9,00 numa peça, o dono da
oficina pegará uma parte para ele, usará uma parte para manutenção do trabalhador e
pagará o restante pelo trabalho. O costureiro ganha pouco, ela reconhece “As primeiras
épocas, quando eu cheguei aqui a primeira vez, eu já sabia costurar, já fazia jaquetas...
jaqueta estava quando o preço era acima de 4. Fazia de 4 [reais], de 5, tinha...Por
jaqueta. Tudo acabado, né? Tudo. Fazia assim... Então, depois eu troquei de trabalho,
onde que a peça era um real. Acabado nas duas. Aí não dava, eu desci de 6, a de 5 a de
real, onde um paraguaio... Depois pra lá, foi lá, um e trinta ($1,30), um e cinquenta
($1,50), dois... assim era o preço. Não dava muito pra ganhar...”39.
Para atingir a finalidade central, o sistema econômico pode ser composto pela
imbricação de diversos elementos contraditórios, permitindo diferentes formas de
exploração do trabalho que sejam compatíveis com a finalidade da extração de mais
valia. Nesse sentido, é possível refletir sobre a realidade do trabalho nas oficinas de
costura como parte constitutiva do sistema, espaço de reprodução de relações de
trabalho capitalista. Isso é importante porque pode fazer avançar novos paradigmas para
a reflexão teórica e social sobre o mundo do trabalho, que por sua vez interfere
diretamente na construção de políticas públicas e debates políticos na sociedade.
39
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Quatro
arquivos MPEG-4 (52’12’’).
57
A exploração do trabalho é nervo central do funcionamento da nossa sociedade.
Ela ocorrerá na contemporaneidade através da existência do trabalho livre40, expresso
na categoria de assalariado. É o próprio salário que oculta como a exploração ocorre.
Marx (2003) demonstrou em O Capital, o mecanismo de exploração através do salário,
que torna possível ao capitalista extrair mais valia dos trabalhadores que lhe vendem sua
força de trabalho. O que está colocado então é que a própria existência de um regime de
trabalho mediado pelo salário é uma forma de extrair do trabalhador mais do que é
necessário para que este (sobre)viva – e do ponto de vista de interesse privado do
capitalista: continue a trabalhar.
40
No capítulo três me debruçarei sobre a ambiguidade, discutida também já em Marx, do significado de
liberdade na sociedade capitalista burguesa, e o impacto disso na organização e concepção do trabalho e
dos trabalhadores.
58
não prejuízo dos proprietários dos meios de produção. Assim, existem muitos
mecanismos também já descritos para isso como, por exemplo, ampliação da jornada de
trabalho, redução de salário ou remuneração por produto produzido, redução de direitos
(que custam dos bolsos dos que contratam os e as trabalhadores), inovação dos meios de
produção.
A crise econômica pela qual passou o sistema capitalismo nos anos 1970 e 1980
foi responsável pelo surgimento de diversas transformações no sistema produtivo, e
59
junto com o neoliberalismo surgiram inovações técnicas e científicas que permitiram
“aprimorar” os processos produtivos na indústria. Mas algumas coisas permanecem as
mesmas nas nossas sociedades. As transformações no mundo do trabalho não foram e
não puderam ir à raiz da questão. O trabalho vivo, isto é, o dispêndio de energia
necessária para transformação da matéria em um produto socialmente útil não pode ser
completamente eliminado da produção (MARX, 2003).
60
Países Exportadores de Petróleo) aumentou o preço do barril e criou embargos para a
exportação ao Ocidente (HARVEY, 2010).
61
com regimes de trabalho mais flexíveis, organizados por períodos de alta ou de baixa
demanda (HARVEY, 2010, p. 143).
62
As pesquisas anteriores a 2017 e mesmo essa pesquisa que se iniciou em 2015
trabalharam com uma legislação brasileira sobre terceirização que ajudava no combate
ao trabalho escravo contemporâneo e à superexploração do trabalho. Legalmente, a
terceirização de atividades fim era proibida no enunciado 331 do TST: “é vetada às
empresas a terceirização de suas atividades fim, apenas as atividades meio podem ser
terceirizadas” (CÔRTES, 2013, p. 175). No caso Zara, por exemplo, que foi denunciada
por trabalho escravo contemporâneo, o argumento utilizado pela empresa para se
defender foi que esta não tem como fim a produção de vestimenta, mas sim de estilo (e
a sua distribuição) (CÔRTES, 2013).
Nesse ano houve uma mudança na legislação que agora passa a permitir a
terceirização também para atividades fins41. Não é possível ainda prever quais
consequências isso trará para a indústria do vestuário – mas é possível imaginar. A
relação entre terceirização e superexploração do trabalho é muito próxima, então é
possível imaginar que as práticas de superexploração podem se intensificar mais ainda –
mas mais do que isso é impossível avançar e demandaria uma nova agenda de pesquisa.
41
Em 31 de março de 2017 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.429/17 que versa sobre o
trabalho temporário e a terceirização e modifica a Lei anterior sobre o assunto (6019/74). No parágrafo 3º
do artigo 09 o texto diz: “O contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de
atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços.”. Mais para frente
no artigo 10 o texto ainda dirá “Qualquer que seja o ramo da empresa tomadora de serviços, não existe
vínculo de emprego entre ela e os trabalhadores contratados pelas empresas de trabalho temporário.”. Tais
modificações foram amplamente criticadas, pois podem significar uma dificuldade em se responsabilizar
as empresas contratantes de trabalho análogo a de escravo. Para mais detalhes ver a lei:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm. Acessado em: 14/09/2017.
63
A aceitação do efêmero como qualidade desejada da produção
cultural, por exemplo, corresponde às rápidas transformações na
moda e nos desenhos e técnicas de produção que surgiram como
parte da resposta à crise de acumulação que se desenvolveu
depois de 1973 (HARVEY, 2007, 140). 42
42
Tradução livre. Trecho lido originalmente em espanhol: “La aceptación de lo efímero como cualidad
deseada de la producción cultural, por ejemplo, se corresponde con los cambios rapidos en la moda y en
los diseños y técnicas de producción que evolucionáron como parte de la respuesta a la crisis de
acumulación que se dessaroló después de 1973” (HARVEY, 2007, 140)42.
64
A lógica do fast fashion está situada em duas premissas: a ampliação do mercado
consumidor que vem atrelada à expansão do capitalismo e dos nichos já citados
anteriormente, e a alta rotatividade da produção a fim de que o valor de uso produzido
por essa indústria seja consumido de forma incessante e insaciável. Nesse sentido, a
qualidade das peças de roupas é reduzida, gerando uma baixa durabilidade que pode se
justificar em preços mais acessíveis e na expansão do mercado – embora isso não seja
regra, uma vez que muitas roupas ditas de marca ainda cobram preços altos em suas
mercadorias. A regra, no entanto, é o rebaixamento do valor da força de trabalho
necessária à produção dessas roupas.
De toda forma, mesmo que possua essa etapa de valor agregado simbolicamente
pelas estratégias de propaganda na esfera da circulação das mercadorias, a produção da
indústria de vestuário envolve de forma indispensável um elevado nível de trabalho
humano, desde o estilista e modelista na fase da criação, até os costureiros e costureiras
na base da produção material, bem como a interligação com outras indústrias, como a
química, a agropecuária e a de máquinas, além de depender das redes de transporte para
escoamento e circulação dos produtos (CÔRTES, 2013).
65
posteriormente pelos costureiros e costureiras, demandando assim uma alta qualidade e,
portanto, capacidade de quem o exerce, pois deve estar perfeito para ser reproduzido em
maior escala. Miranda ascendeu profissionalmente tendo iniciado seu trabalho como
costureira e hoje exerce a função de pilotera, almejando um dia ser modelista
Así já trabalhei dois dias aqui, dois dias ali ... E asi consegui
ganar mais (...)solo que tengo um pouco de cargo más. Eu sou
pilotera. Depois de que sali da brasileira ela viu o meu trabalho
de saber costurar um pouco mais então eu comecei a trabalhar
de pilotera43.
Por exemplo, em 2015 nos Estados Unidos o salário médio de um costureiro variava
entre U$$12 e U$$15 dólares a hora. No Brasil o piso estipulado pelo Sindicato das
indústrias de vestuário (SINDVEST) - que não engloba os trabalhadores e trabalhadoras
imigrantes – variava de R$847,00 a R$1247,40 mensais. Na República Dominicana o
salário era em media U$$150,00 dólares mensais; na China variava entre U$$117,00 a
U$$147,00 mensais e em Bangladesh, depois do último aumento em 2010, o salário
pago em média era de U$$43,00 dólares mensais (DUARTE, 2015, p. 6). Não podemos
esquecer que a organização da produção girando em torno da demanda abriu brecha
para a remuneração por produção na fase da costura da indústria, isto é, paga-se o
trabalhador por peça de roupa produzida, como é o caso frequente das oficinas de
43
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015.
4 arquivos .mp3 (1’8’’).
66
costura no Brasil. Mais uma vez, esse tipo de organização pode ser interpretado como
uma forma que o país encontra para que essa indústria seja competitiva no mercado
altamente rebaixado.
44
Trecho originalmente em inglês: “a factory or workshop, esp. in the clothing industry, where
manual workers are employed at very low wages for long hours and under poor conditions”
(SOUCHAUD, 2012, p. 79).
67
das pesquisas de mercado, ou seja, agregando valor ao produto final. As oficinas de
costura se tornam apenas um componente constitutivo da cadeia produtiva inteira. Não
se elimina o trabalho vivo, mas se aumenta o distanciamento entre o produtor direto e o
produto final por ele produzido.
68
privado – localizam-se frequentemente dentro das casas de seus proprietários: nos
fundos, no andar de baixo, no quintal.
As suas lógicas específicas de funcionamento são frequentemente descritas nas
pesquisas sobre o tema. Por conta da sazonalidade das encomendas, tanto as jornadas de
trabalho quanto a remuneração dos trabalhadores da costura giram em torno da
produção. O salário é pago por peça produzida, e como as encomendas possuem prazo
para serem entregues as jornadas podem ficar bastante extensas. Miranda narrou que no
primeiro emprego que trabalhou, logo ao chegar ao Brasil, possuía uma jornada que ia
das 06:00 da manhã às 22:00 da noite, com intervalos rápidos para as refeições.45 Assim
também era com Santiago, que relatou que mesmo nos intervalos o controle dos chefes
fazia com que os trabalhadores se sentissem pressionados a voltar ao trabalho o mais
rápido possível46.
Em todos os relatos o elemento de controle da produção aparece como um dos
fatores de precarização do trabalho aos olhos desses imigrantes. Também é bastante
difícil que a contratação das oficinas envolva qualquer tipo de contrato por escrito, o
que gera mais ainda um clima de instabilidade tanto para os donos da oficina quanto
para os trabalhadores.
A relação de trabalho ali dentro é desigual, composta pelo contratante da oficina,
o dono e os costureiros. O contratante detém o poder da demanda: é ele quem determina
quantidade de peças e prazo para produção e, dessa forma, o dono da oficina encontra-
se subordinado ao contratante (CÔRTES, 2013, p. 80). É nesse tipo de relação que está
configurada a terceirização isto é, a oficina está produzindo para um terceiro que não
ela própria. A relação imediata entre o dono da oficina e seus trabalhadores será a
expressão mais precarizada, no entanto, quando o primeiro transmite toda a pressão da
velocidade com que se deve produzir aos costureiros, o que pode ser sintetizado em
determinado momento da entrevista de Santiago, quando ele contou como eram os
45
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. 4
arquivos .mp3.
46
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015). 3
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69
donos da oficina onde trabalhava: “si te digo te doy cien piezas para esse dia tu tienes
que entregar las cien piezas vivo o muerto, es asi”. 47
O salário por peça, tipo de remuneração padrão das oficinas, “não passa de uma
forma a que se converte o salário por tempo” (MARX, 2003, p. 37). Foi descrito em O
Capital (2003) como um mecanismo de intensificação da exploração do trabalho – uma
variação do salário por jornada de trabalho (tempo), muito mais comum no sistema
capitalista, mas que na lógica também acaba por ser uma forma de ampliação da jornada
do trabalhador. A forma de pagamento do salário, no entanto, não altera a natureza da
relação de produção, e o proprietário opta por aquela que mais lhe favoreça no
desenvolvimento da produção capitalista. (MARX, 2003, p. 638).
Nesse tipo de salário a “lógica” capitalista permanece: uma parte do trabalho é
paga e a outra não. Nele, “não se trata de medir o valor da peça pelo tempo de trabalho
nela corporificado, mas, ao contrário, o tempo despendido pelo trabalhador pelo número
das peças que produziu” (Marx, 2003, p. 39). Mede-se pela quantidade de produtos
produzidos num dado espaço de tempo. Dessa forma,
47
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015). Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
70
Há um elemento importante na remuneração por produção, que Marx apontou
como um interesse natural do trabalhador em empregar de forma mais intensa sua força
de trabalho, a fim de produzir mais prolongando consequentemente sua jornada de
trabalho. É, por fim, uma forma que individualiza mais ainda cada unidade produtiva
ali, isto é, cada indivíduo trabalhador que está trabalhando na oficina “(...) de modo que,
num determinado espaço de tempo, um produz o mínimo, outro, a média, e terceiro,
mais do que a média” (MARX, 2003, p. 41).
As diferenças surgidas aqui não alteram a relação geral entre capital e trabalho
assalariado,
(...) a maior margem de ação proporcionada pelo salário por peça
influi no sentido de desenvolver, de um lado, a individualidade dos
trabalhadores – e, com ela, o sentimento de liberdade, a independência
e o autocontrole – e, do outro, a concorrência e a emulação entre eles.
Por isso, o salário por peça tende a baixar o nível médio dos salários,
elevando salários individuais (MARX, 2003, p. 642).
71
quanto podem, trabalhando o máximo que conseguirem. Como disse Yarita, “É, porque
48
a gente faz um milagro... a gente faz rápido” . O ritmo intenso das jornadas aparece
como algo dado, a que o trabalhador se adapta.
48
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016.
Quatro arquivos MPEG-4 (52’12’’).
72
desenvolvimento pessoal por outro. Uma de minhas entrevistas não concorda com o
termo trabalho escravo, acreditando que ele é usado porque os trabalhadores das
oficinas “trabalham humildemente” e querem ganhar. Yarita afirmou não achar que
seja trabalho escravo, uma vez que os trabalhadores da costura sabem como que é o
trabalho nas oficinas, sabem inclusive que tem que morar, dividir quarto e que existe
uma estigmatização de como é a organização da oficina – que em geral não é
exatamente como dizem, embora não negue que existam oficinas insalubres e precárias.
A maioria das pessoas, no entanto, sabe como são as regras do trabalho e continuam
vindo trabalhar nas oficinas mesmo assim, porque aqui da pra trabalhar assim,
morando no mesmo lugar, e ainda guardar dinheiro quando você não paga nenhuma
conta e só põe mão de obra”.
Dessa forma, é importante pensar que (e como) esses trabalhadores estão
mobilizando diversos elementos organizativos de seus trabalhados a partir da concepção
pessoal e de seus projetos, inclusive apontando elementos que precarizam o trabalho
como um agente facilitador da acumulação individual. Essas contradições, no entanto,
serão discutidas no próximo capítulo. Aqui, nos limitaremos a demonstrar como o
trabalho escravo contemporâneo é, na realidade, não um anacronismo, mas um
constituidor das relações capitalistas de produção atuais.
2. Escravidão contemporânea: conceito jurídico e político.
A escravidão como base do trabalho social foi abolida legalmente no mundo e
no Brasil no século XIX e, de fato, o conceito de trabalho escravo contemporâneo
passou por um processo de transformação onde parece ter havido um “alargamento” da
noção de escravidão. Diferente da escravidão do período colonial que perdurou por
século no país, a escravidão contemporânea não é mais caracterizada pela noção de
propriedade da força de trabalho, isto é, da pessoa, entre proprietário e escravizado,
outorgada pelo Estado.
73
A definição geral, no entanto, começou a ser pautada a partir da Convenção
sobre Escravidão da Liga das Nações de 1926 (CÔRTES, 2013, p. 120), tendo se
ampliado durante todo o século que segue e hoje gira em torno das definições dadas
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Anti Slavery International
(ASI). Para ambas a questão central é a falta de liberdade, que pode estar colocada
através: da existência da dívida (a escravidão por dívida); da retenção de documentos
essenciais; do cerceamento da liberdade de ir e vir e da existência de um ambiente
coercitivo. Acrescenta também a questão da condição de vida dos trabalhadores: são
condições de vida e trabalho extremamente precárias e que ferem a dignidade humana.
49
Documento acessado em 29/09/2016 através do link:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.
74
e práticas de intimidação) [...]. (THÉRY, Hervé, 2010, p. 9, apud.
CPT, 2003, p.138)
75
governo FHC. Dele surgem a Comissão Especial de Erradicação do Trabalho Escravo e
a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). É nesse ano que é
instituída também a chamada “Lista Suja”, onde constam os nomes de empregadores
que mantiveram trabalhadores em condição de escravidão contemporânea, comprovado
pelo MPT (CÔRTES, 2013).
50
ALMEIDA, André Henrique de. Artigo acessado em 01/10/2014 online através do link:
http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11299
76
contemporâneo. Assim, no relatório desse caso específico constam: insalubridade,
jornada de trabalho extensiva e servidão por dívida.
A maior parte das oficinas segue sendo clandestina, e não abarcadas nas
denúncias, investigações e responsabilização de empresas contratantes pela precarização
do trabalho e da vida dos trabalhadores, o que reforça a ideia de que salvo a importância
do conceito nos processos de denúncia na sociedade civil, o “grosso” da produção da
indústria de vestuário da cidade segue sendo feito num regime de trabalho explorado
intensamente e que não é caracterizado “oficialmente” como trabalho escravo
contemporâneo. Assim, defende-se a perspectiva de que o regime de trabalho nas
oficinas de costura segue uma tendência padrão de superexploração.
51
O Ministério Público do Trabalho é o responsável por ir além das fiscalizações das oficinas e
tentar coibir que esses casos voltem a acontecer. Assim, é o órgão que ajuíza a ação civil
pública contra a empresa que é responsabilizada no relatório de fiscalização ou, ainda, propondo
uma conciliação extrajudicial através do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) – forma de
diminuir a judicialização das ocorrências (CÔRTES, 2013, p. 165). O fundo de emergência
criado para as empresas destinarem um valor acordado no TAC como multa é gerido pelo
CAMI – Centro de Apoio e Pastoral do Migrante.
77
mundial, tentando compreender suas peculiaridades na perspectiva de que o
“subdesenvolvimento se estabelecia não como negação do desenvolvimento, mas como
o desenvolvimento de uma trajetória subordinada dentro da economia mundial”
(Martins, 2011, p. 230). Ela tenta romper com o que o autor chama de nacionalismo
metodológico “ao buscar a identidade do capitalismo dependente em sua articulação
específica à economia mundial” (idem, p. 237). Os autores brasileiros que se destacaram
nessa teoria e abordados aqui foram Rui Mauro Marini e Theotonio dos Santos, ambos
influenciados por autores estrangeiros como André Gunder Frank e Paul Baran.
A mais valia produzida dentro de uma oficina de costura é apropriada não só pelo
dono da oficina como também pelo contratante da mesma nos casos em que existe a
relação de terceirização e isso significa uma exploração material maior dos
trabalhadores que ali se encontram, justificada pela necessidade do aumento de
quantidade de mais valia produzida. É como se houvesse dois proprietários contratando
e controlando o costureiro ou costureira, que sentados em frente a uma máquina de
costura, curvados por 12 horas, produzem quase sem pausas, num ritmo frenético.
Miranda durante sua entrevista, disse não saber como conseguia trabalhar tantas
horas, e que sentia dor nas costas de ficar sentada na mesma posição. O horário de se
alimentar era sempre muito rápido e a comida servida não era saudável a uma pessoa
que ficou tanto tempo trabalhando. Uma vez expressou para uma amiga dona de
oficina, tempos depois de sair da profissão de costureira e assumir a função de
pilotera, a vontade de costurar por um dia. Após tentar um pouco, disse que não pôde
79
aguentar por muito tempo, tendo se cansado muito rápido. Os trabalhadores e
trabalhadoras comumente relatam dores no corpo, nas mãos e nas costas, frequentes
durante o trabalho, e que se tornaram presentes até mesmo depois que já haviam saído
das oficinas.
Apesar de ser abundante a força de trabalho nacional não foi utilizada nas fases
iniciais da industrialização brasileira, sob a argumentação de possuir um baixo nível
técnico e cultural, uma vez que se tratava de um país recém-saído da escravidão. Das
primeiras décadas da República até o período de 1931-35 a proporção de imigrantes era
bastante elevada, comumente superando o número de trabalhadores nacionais nas
atividades manufatureiras, especialmente no estado de São Paulo. As razões na época
foram: a) na visão dos empregadores os imigrantes eram mais aptos, pois apresentavam
índices mais elevados de instrução e formação profissional; b) eles possuíam alguma
experiência urbana; e c) estavam mais habituados ao modo de vida de uma sociedade
baseada na economia monetária. (RODRIGUES, 1966, p. 105-108).
80
Esse quadro só se modificou num contexto em que a força de trabalho era
totalmente elástica: as indústrias só recorreram ao trabalhador nacional (“desprovido de
cultura sindical e sem experiência urbana”) quando a crise da lavoura cafeeira lançou no
mercado uma grande massa de trabalhadores. Isso nos leva a concluir, portanto, que foi
principalmente das regiões rurais – por muito tempo as principais “células” econômicas
do país – que saiu intensa quantidade de força de trabalho desocupada e disponível para
trabalhar, desprovida dos meios de produção, formando assim um grande “exército” de
trabalhadores ‘livres”.
82
Desde o XVI a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a
dinâmica do capital internacional. Os produtos produzidos aqui possibilitaram o
desenvolvimento do capital bancário e comercial europeu e permitiram que as indústrias
de diversos países deste continente se desenvolvessem também, mesmo após os
processos de independência do século XIX que não acabaram com as relações
estabelecidas entre os países do “norte” e do “sul”. Em geral, os países latino-
americanos exportavam bens primários e, posteriormente, também mantiveram relações
comerciais a partir da dívida externa que aumentava conforme aumentavam as
exportações e com os investimentos estrangeiros (MARINI, 2008, p. 110). Por exemplo:
entre 1902 e 1913 o Brasil aumentou em 79,6% as suas exportações e, paralelamente em
144,6% a dívida pública externa. Em 1913 essa dívida externa representava 60% do
gasto público total (MARINI, 2008, p. 111).
83
fácil (Ex: manufatura X matéria-prima), permite-se que a mais “forte” venda seus
produtos mais caro, o que implica que os países mais “fracos” “devem ceder
gratuitamente parte do valor que produzem” (MARINI, 2008, p. 122). O que ocorre,
portanto, é uma transferência do valor produzido aqui a esses países capitalistas
centrais.
Antunes (1995) concluirá, assim, que os eixos centrais de luta sindical no Brasil
são contra a exploração excessiva do trabalho e contra a crescente degradação salarial a
que estão sujeitos os trabalhadores no país. Para ilustrar cita um estudo realizado nos
Estados Unidos, na época de seu texto, que avaliou que em 1987 o custo de uma hora de
um operário médio da indústria brasileira era de um dólar e 49 centavos, enquanto que o
trabalhador norte americano custava 13 dólares e 46 centavos (ANTUNES, 1995, p. 23).
Isso, de certa forma, condiciona o movimento sindical brasileiro não poder abandonar
de forma alguma a luta econômica e salarial que é uma luta imediata dentro dos limites
da ordem do Capital apenas contra os efeitos do sistema, e não contra as causas
propriamente ditas.
85
vez que se um capital se apropria de um valor superior ao valor que produz, significa
que outro capital está gerando um valor do qual não se apropria (AMARAL,
CARCANHOLO, 2009, p. 218). A produção de valor, por sua vez, só é possível a partir
do trabalho vivo e os países periféricos são quem mais se utilizam desse trabalho,
gerando mais valor em comparação com os países que utilizam relativamente mais
trabalho morto – no nível de apropriação isso se inverte (AMARAL, CARCANHOLO,
2009, p. 219) – configurando assim as bases da relação de exploração e dependência no
sistema global. Em termos capitalistas, essas formas de exploração resultam numa
remuneração do trabalho abaixo do seu valor, o que se traduz em superexploração do
trabalho (MARINI, 2008, p. 127).
A mais valia relativa, citada anteriormente por Marini, consiste numa forma de
exploração do trabalho assalariado que mediante a transformação das condições técnicas
de produção obtém uma desvalorização real da força de trabalho. É diferente, pois, do
conceito de produtividade, embora este seja uma condição por excelência da mais valia
relativa, isto é, ela é alcançada mediante o aumento da produtividade que faz com que o
trabalhador produza mais produtos no mesmo tempo, mas não mais valor. Isso permite,
ao capitalista rebaixar o valor individual de sua mercadoria em relação aquele valor
geral que as condições sociais (gerais) de produção atribuem a ela, obtendo assim uma
mais valia superior à de seus concorrentes (MARINI, 2008, p. 115), que Marini
chamará de mais valia extraordinária.
86
Portanto, para o capitalista sair ganhando deve haver um aumento do trabalho
excedente sobre o necessário e, para isso, “(...) a redução do valor social das
mercadorias deve incidir em bens necessários à reprodução da força de trabalho, vale
dizer bem-salário” (MARINI, 2008, p. 116). Essa mais valia relativa está ligada à
desvalorização dos salários e explica o caráter contraditório do desenvolvimento da
dependência latino-americana e, mais especificamente, do Brasil. O mecanismo de
compensação frente às relações internacionais de mercado no qual o país está inserido é
exatamente o aumento da exploração do trabalho, via aumento de sua intensidade,
prolongando jornada de trabalho e/ou aumentando a produtividade; arrocho salarial ou
mesmo combinando todos esses elementos (MARINI, 2008, p. 123).
Assim, num país com a quinta maior extensão territorial do mundo e com uma
superpopulação relativa compondo o EOR, esse mecanismo de superexploração do
trabalho se tornou facilitado e, inclusive, padrão da exploração capitalista do trabalho,
elemento que ajuda a explicar as limitações do sindicalismo brasileiro e o fato de que
este se movimenta, como constatou Antunes (1995), principalmente em torno de pautas
imediatas relacionadas à perda salarial – e perda de qualidade de vida, pois a todo
momento está colocado o tensionamento do rebaixamento do trabalho e da maior
exploração do trabalhador.
87
percepção tida durante a leitura da bibliografia já produzida sobre o tema, bem como da
realização do trabalho de campo de que sendo oficialmente caracterizado como
escravidão contemporânea ou não, o trabalho em questão ocorrido nas oficinas de
costura da cidade de São Paulo é uma expressão clara do processo de reestruturação
produtiva que flexibilizou e precarizou as relações de trabalho e a vida dos
trabalhadores desse setor (FREIRE, 2008).
88
de acumulação primitiva, inicialmente um conceito utilizado por Marx em O Capital e
datado historicamente, ampliando-o como uma noção também de expropriação dos
meios de vida, na superexploração da força de trabalho, afirmando que “essa
modalidade de exploração do trabalho se traduz em acumulação primitiva porque é, em
parte, produção de capital no interior do processo de reprodução ampliada do capital”.
(MARTINS, 1994, p. 9).
89
CAPÍTULO 3: O paradoxo da liberdade: Exploração do trabalho e
resistência na ideologia neoliberal
O consenso da literatura até aqui apresentada aponta para sua exploração como
trabalhador e também como indivíduo. Também aponta para a existência de uma cadeia
produtiva cuja lógica de funcionamento é o lucro – e o enxugamento dos prejuízos,
lógica sob a qual estão submetidos seus trabalhadores. Por fim, a literatura aponta que a
exploração do trabalho gera consequências negativas para esses trabalhadores, ao
90
mesmo tempo em que estes se veem muitas vezes assujeitados a essa condição de
vida52.
52
Esse conceito e essa discussão são desenvolvidos no trabalho de mestrado de Tiago Rangel Côrtes,
realizado em 2013 e bastante utilizado a essa reflexão. Sugiro a leitura do trabalho para um maior
aprofundamento teórico sobre a discussão.
91
outros conceitos, preenchida pelo conteúdo político e social dos momentos históricos no
qual se cunha, e se testa e, portanto, é uma ideia não estática e percebida de formas
diferentes numa sociedade heterogênea.
Também foi necessário refletir as particularidades de processos de mobilidade
do trabalho cujos sujeitos são imigrantes, migrantes transnacionais que atravessam
fronteiras. Como apontou também Villen (2015), há singularidades em se ser um
trabalhador ou trabalhadora estrangeira num determinado território e estas influenciarão
significativamente na qualidade de vida e de trabalho dessas pessoas. É importante
entender que ainda que os discursos de vida e emprego feitos pelos entrevistados
representem aspectos gerais da sociedade do trabalho atual, também trazem as
especificidades da vulnerabilidade de ser estrangeiro, o que altera e alterou em seus
casos aspectos significativos da sua qualidade de vida, como foi apontado em diversas
conversas.
92
trabalho na costura é abertamente reconhecido como difícil e extenuante e mesmo assim
diversos homens e mulheres permanecem imigrando nessa rede, aceitando, portanto
assumir esse tipo de trabalho. A questão que se desenhou, então, foi por que essas
pessoas estavam tão dispostas a realizarem seu projeto migratório numa travessia e para
um trabalho já conhecidos como difíceis? Yarita, por exemplo, não pôde me responder
objetivamente, e nem eu poderia. Em seu discurso, as coisas são assim porque são, e o
caminho extenuante do trabalho é naturalmente compreendido como parte necessária de
um processo de “evolução” do indivíduo. A recompensa virá em algum momento.
53
Em mais de uma entrevista foi possível perceber que a religião era um elemento importante na
significação do mundo e da vida para as pessoas entrevistas. Muitos homens e mulheres em diversos
momentos de suas narrativas recorrerão à fé e à religião como forma de superação dos problemas e como
93
Predominava a ideia, em geral, de que cada realização de trabalho, cada criação
de riqueza e valor, era feita única e exclusivamente através do esforço pessoal do
indivíduo. Dessa forma, é possível criar uma projeção de vida futura onde os esforços e
sacrifícios serão recompensados, quase como um investimento calculado onde o
trabalhador aceita se esforçar mais por um determinado período, pois vê nisso a
possibilidade de acumular mais rápido e, reconhecendo as condições de trabalho como
ruins, poder sair dele e se tornar seu próprio chefe, por assim dizer, às vezes abrindo a
própria oficina, às vezes mudando de profissão, às vezes ascendendo dentro da
hierarquia da costura.
uma ajuda importante para enfrentar os problemas de sua mobilidade e de suas vidas. No entanto, essa
pesquisa caminha em outro sentido e por isso ficaria impossível analisar, por hora, as consequências e
significações da religião e da fé nos projetos migratórios.
94
Assim, fica o desejo de que essas reflexões iniciais possam ser o pontapé futuro de
novas investigações e de aprofundamento das pesquisas já realizadas, no sentido de se
construir uma sociologia das migrações e do trabalho que seja articulada entre si, crítica
ao sistema produtivo dominante e propositiva no sentido de especular sobre as brechas e
rupturas do discurso “oficial” e de seu modo de funcionamento, no vislumbre de
transformações possíveis que reconheçam a potencialidade dos sujeitos, imigrantes,
trabalhadores estrangeiros em significar e criar a própria vida; em carregar consigo
experiências históricas transnacionais e em produzir sentidos de solidariedade e
coletividade a partir de novos espaços, indispensáveis para se pensar alternativas
coletivas de emancipação da sociedade, onde seja possível que a maioria, a classe que
trabalha, possa conjuntamente superarse.
96
parte dele ‘está destinada às migrações, internas e internacionais” (Villen, p. 25 apud.
Basso, 2003, p. 89).
Quando Mauge chegou ao Brasil, 30 anos antes da nossa entrevista, feita em 2015,
foi para ficar temporariamente. Na época o discurso acerca da imigração era
predominantemente de criminalização, e Mauge entrou no país de forma “irregular”. Ela
permaneceu trabalhando nessa situação, em uma oficina de costura, por um ano inteiro,
e afirmou que a condição de irregularidade colocava os e as imigrantes em uma situação
muito mais marginalizada, tanto na sociedade quanto nas próprias oficinas. Depois de
um tempo no país e de uma medida do governo que anistiava os imigrantes irregulares,
Mauge conseguiu regularizar sua situação junto com seu marido e seu filho, nascido
aqui.
97
conversa que a situação de irregularidade da imigração propicia uma possibilidade
maior de exploração do trabalho, quando perguntado por mim qual a justificativa para
tantas horas de trabalho por dia, em longas jornadas:
56
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
57
Traduzido do original: “subvenciones para la formación de trabajadores para estas instalaciones”.
58
Na época da conclusão dessa pesquisa, mais precisamente em 18 de abril de 2017 o senado brasileiro
aprovou a nova Lei de Migração (SCD 7/ 2016 e PL 288/2013) que modificará elementos criticados no
Estatuto, avançando no debate sobre o direito de migrar, embora ainda com algumas questões críticas no
texto novo. Uma vez que o foco não é a aprovação da lei, que segue esperando sanção presidencial
sugere-se o acompanhamento dos novos debates sobre a lei, uma vez que mesmo com sua aprovação final
98
polarizado, afirmando a “valorização do nacional”, inclusive falando de interesses
culturais do Brasil e também na “defesa do trabalhador nacional”. No artigo 16,
encontra-se o seguinte conteúdo:
ainda demorará um tempo para que a prática do controle migratório brasileiro se modifique atendendo à
nova lei.
99
Os discursos, jurídico e cultural, construídos em torno da imigração são
fundamentais para entender a segmentação que se produzirá entre a classe trabalhadora
num determinado território a partir do binômio nacional/estrangeiro, polarização que do
ponto de vista econômico e político servirá bem ao mercado de trabalho, pois aqueles
setores com as piores condições de trabalho passam a absorver a força de trabalho
imigrante, uma vez que os nacionais não trabalharão nesses setores (VILLEN, 2015, p.
86).
100
Por fim não podemos esquecer que outro elemento relacionado importante de
caracterização dessa cadeia produtiva é exatamente a informalidade do trabalho, embora
tenha sido apontada a contradição que isso pode representar, uma vez que há discursos
de imigrantes que encaram a informalidade como algo positivo como se verá mais
adiante. É evidente, no entanto, que a informalidade e a marginalização que em geral se
produz em relação aos estrangeiros, tornam-se difícil a regulamentação oficial
trabalhista bem como a atuação dos sindicatos em relação à proteção dos trabalhadores
informais e imigrantes (CÔRTES, 2013, p. 184).
101
perceber que havia diversos elementos contraditórios em seus discursos, em que hora se
criticava hora se elogiava o trabalho, a vida, os patrões, o país de destino e o de origem.
A questão da ideologia, então, fez-se presente.
Na primeira oficina onde Yarita trabalhou, por seis ou sete meses, ela conta que
sofreu por inveja das pessoas que trabalhavam lá. Ela disse que contava com a filha
apenas, e os outros trabalhadores e trabalhadoras ali eram parentes do dono, por isso
mesmo ela se sentia isolada, relatando que inclusive chegou a sofrer sabotagens no seu
trabalho, feitas por esses outros trabalhadores. A lógica dentro da oficina é o
aprofundamento da concorrência. Ora, isso ocorre porque o motor da sociedade
contemporânea permanece sendo o capital e, portanto, o lucro. Essa lógica do ganho
individual se aprofunda num cenário com forte competição, a ponto de um trabalhador
optar por sabotar o trabalho do outro a fim de prejudicá-lo.
103
tenia que cumplir el mês. Se no cumplió el mês no les pagaba
nada, entonces...59
A ideologia serve aos interesses de dominação de uma classe social sobre outra,
pois num nível simbólico, de formação de consciência, ela será indispensável à
59
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
104
manutenção da lógica da sociedade. No entanto, é importante se ater também aos
elementos contraditórios presentes nessa ideologia, que embora se manifeste
estruturalmente no conjunto da sociedade, também se modifica em processos históricos
a partir dos sujeitos políticos, atores sociais, trabalhadores e trabalhadoras que vivem
coletivamente, embora jurídica e simbolicamente indivíduo. A incorporação da
ideologia não ocorre nem de forma homogênea para todos os indivíduos da sociedade,
nem de forma totalizante, o que significa que há possibilidades de ruptura no nível da
consciência.
De acordo com Edmundo Fernandes (2011), Marx entende, após uma analise
histórico-política, que para o proletariado a revolução é uma necessidade (p. 138).
“Marx caracterizou, mais tarde, o capitalismo como contradição em processo” (p. 139).
O autor está afirmando que a burguesia construiu sua ordem defendendo o direito da
revolução, porém uma vez que passa ao exercício dessa ordem, esse “direito” de
contestar na prática é criminalizado, em razão de se manter a ordem. A partir disso, a
existência da burguesia enquanto classe passa a ser incompatível com a existência da
sociedade, pois sua sociabilidade universal tem limites exatamente onde essa classe
começa a ser contestada.
105
social - o indivíduo. A visão construída é que a sociedade não é um coletivo de sujeitos
que se organizam juntos em comunhão de interesses, mas um conjunto de indivíduos
cujos interesses isolados se alinham em maior ou menor grau, formando o corpo social.
106
Essa teorização trará uma dimensão antropológica de um novo sujeito social, um
“indivíduo-empresa” apto para tomar decisões e atuar no mercado, além de ser
possuidor de direitos inalienáveis no âmbito privado como, por exemplo, sua liberdade
individual. Esta se apresenta, na sociedade capitalista, como liberdade de escolha do
consumidor, de estilo de vida, de expressão, etc. (HARVEY, 2008, p. 52). A parte
coletiva da sociedade, e a forma de enxergar-se como sujeito coletivo cede lugar ao
peso maior na dimensão isolada do indivíduo que compõe a sociedade. Ele em seu
próprio universo, por assim dizer.
107
pois via que assim era possível ganhar melhor além de que o trabalho quando é feito
para alguém não é devidamente valorizado por essa pessoa.
É acordo entre as diferentes literaturas e áreas que se debruçam sobre esse tema
que o trabalho realizado na oficina de costura representa uma exploração abusiva e
excessiva dos trabalhadores que ali se encontram, na utilização rotineira e sistemática
de um ou mais elementos já descritos: moradia e alimentação no mesmo local de
trabalho, jornadas prolongadas e remuneração por produção. Em todos os relatos aqui
compartilhados os trabalhadores com quem conversei expressaram sentirem-se
explorados em certas conjunturas em seus trabalhos, reforçando a ideia de que se trata
de um trabalho precário.
O fazer a própria jornada e, portanto, possuir controle sobre seu próprio ritmo de
trabalho (ainda que atrelado ao prazo da encomenda) é um aspecto positivo para ela,
bem como a remuneração por produção, que se interconectam: “Porque assim, você,
quanto você mais trabalha, mais ganha. Se você trabalhar menos, menos ganha. Agora
o mensalista, quando um mensalista é... ele tem que trabalhar de horário a horário, às
vezes é muito exigente... já tentei trabalhar uma vez assim e não gostei”. Ao ser
perguntada se preferia ganhar salário fixo ou por peça respondeu a segunda opção: “...
aí eu trabalho... se não trabalho, depende de mim” 61.Para ela, ainda, o fato de morar e
comer no mesmo local de trabalho apareceu como maneira auxiliar de economizar
dinheiro e, portanto, acumular mais.
60
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Quatro
arquivos .MPEG-4 (52’12’’).
61
Idem.
111
Reconhecer-se como trabalhador escravizado, mesmo com as ressalvas feitas
acerca da diferença entre os termos passado e presente parece ser uma forma de
diminuir-se perante não só à sociedade, aceitando uma estigmatização de vítima que
silencia esses sujeitos, como também ao cumprimento dos próprios objetivos e sonhos,
no sentido de que esse termo parece anular os sacrifícios e esforços conscientes feitos
pelos trabalhadores e trabalhadoras, como se estes não fossem nem minimamente
responsáveis pelos seus corpos, ações e trabalho. A maioria dos discursos, como recusa
o termo quando este aparece de forma pejorativa e imobilizadora dos trabalhadores da
costura, no sentido de produzir um coitadismo marcado pela impossibilidade de ação
desses sujeitos na sociedade em que se encontram.Ser escravo é ser simbolicamente um
sujeito sem voz, sem ação. Essa é a recusa, ao apagamento do fazer-se, superar-se. A
Para além do termo em si, as condições de trabalho das oficinas de costura e num
país de economia dependente estão subordinadas ao próprio funcionamento da
economia global e de seus mecanismos, e como já demonstrado um país dependente se
desenvolverá na lógica capitalista de “compensar” as desigualdades econômicas em
relação aos países centrais. A superexploração do trabalho, do ponto de vista material, é
o modus operandi da gestão do trabalho e esta vem significada por uma ideologia capaz
de tornar quase que legítima essa exploração, do ponto de vista do trabalhador. É nesse
sentido que se fala em uma subjetividade capturada, manipulada pela ideologia
neoliberal.
São três traços cruciais da nova morfologia do trabalho social, segundo o autor,
que constituirão um processo de conformação do sujeito humano que trabalha. O
primeiro traço é a “quebra dos coletivos de trabalho”; o segundo, a “captura da
subjetividade do homem que trabalha” e o terceiro “redução do trabalho vivo à força de
trabalho como mercadoria” (ALVES, 2008, p. 10). Alves caracteriza que através da
alteração do modo de ser do trabalho assalariado altera-se também seu “nexo psicofísico
com a produção do capital, ampliando-se, como inovação sociometabólica do capital, a
‘captura’ de subjetividade do trabalho pelos valores empresariais” (Idem, p. 6).
Essa flexibilização, que é do tempo também, altera a relação entre tempo de vida
X tempo de trabalho consequentemente alterando a sociabilidade e auto-referência
pessoal (ALVES, 2008, p. 07). Do ponto de vista do consenso construído
ideologicamente e do novo sujeito social, Alves levanta que prevalece hoje o modelo
Toyotista: uma forma de “captura” da subjetividade a partir da estipulação de metas,
remuneração flexível e constituição de equipes de trabalho (Idem, p. 12).
A captura de subjetividade é definida por Alves como “‘captura’ da
intersubjetividade e das relações sociais constitutivas do ser genérico do homem”
(ALVES, 2008, p. 13). Importante destacar o que o autor explica sobre o uso das aspas
no conceito de “captura”, uma vez que esse processo não significa exatamente o que
quer dizer a palavra em sua definição sintática (crua). Ela é uma produção de
consentimento, que obviamente não se desenvolve por fora das lutas e resistências
cotidianas, mas produz uma “unidade orgânica entre pensamento e ação” (Idem). Esse
processo, portanto, é intrinsecamente contraditório e complexo.
113
inconscientes do psiquismo humano. O capitalismo manipulatório
levou à exaustão os recursos de manipulação das instâncias
intrapsíquicas do homem, pelas quais se constituem os
consentimentos espúrios à dominação do capital nas “sociedades
democráticas”. O sociometabolismo do capital ocorre por meio do
tráfico de valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que
incidem sobre as instâncias intrapsíquicas. Na medida em que o
toyotismo se baseia em atitudes e comportamentos pró-ativos, a
construção do novo homem produtivo utiliza, com intensidade e
amplitude, estratégias de subjetivação que implicam a
manipulação incisiva da mente e do corpo por conteúdos ocultos e
semi-ocultos das instâncias intrapsíquicas”. (ALVES, 2008, p.
14).
Nesse sentido a discussão faz lembrar Antonio Gramsci: “diríamos que o novo
‘terreno ideológico’ que nasce com o toyotismo, é também uma nova ‘atitude
psicológica’ que ‘alimenta a afirmação da ‘aparência’ das superestruturas’”
(GRAMSCI, 1984 apud. Alves, p.15). Há um novo modelo de trabalhador do
toyotismo, que diverge em alguns aspectos do modelo fordista como apontou Gramsci.
No atual “o nexo psicofísico se constitui pela disseminação dos valores-fetiches,
expectativas e utopias de mercado e pela liberação dos instintos, ao mesmo tempo em
que preserva disciplina da vida industrial (o que é um poderoso agente estressor)
(ALVES, 2008, p. 16).
114
funcionamento está profundamente atrelado ao funcionamento do mercado, o que
significa que ela não corresponde realmente a como se apresenta.
A liberdade, por fim, que acabou também por isolar cada trabalhador e cada
trabalhadora em si próprios, sem se perceberem coletivos ao olharem seus colegas em
seu local de trabalho, e que em contrapartida é a liberdade reconhecida de, aos finais de
semana, poder sair das oficinas e encontrar seus pares em espaços coletivos de
socialização e compartilhamento de identidade. Embora todos os sujeitos ali no espaço
da praça Kantuta, aos domingos, fossem também trabalhadores em seu cotidiano, era
naquele momento que assumiam-se como sujeitos coletivos, latino-americanos,
dividindo momentos de descanso, atividades culturais e educacionais compartilhadas,
fora do universo do trabalho. A possibilidade de coletivização dessas pessoas se
desenha, portanto, mais fora do que dentro de seus locais de trabalho – a identidade
coletiva.
115
Essa é a manifestação de seu conteúdo paradoxal, a tal liberdade que permite aos
trabalhadores e trabalhadoras terem seus espaços de socialização cultural e recreativa
onde, aí sim, se encontram como semelhantes, cujas identidades são compartilhadas –
embora possam carregar atritos para esses espaços também. Esta última reflexão não
será aqui aprofundada, se desenhando como possível tema de uma próxima
investigação, diz respeito às que tipos de novas sociabilidades surgem da precarização
do trabalho e da fragmentação da identidade de classe e da reestruturação e como se
materializam essas sociabilidades, seja nos elementos discursivos, seja nos espaços de
encontro e confraternização dessas pessoas que vivem e trabalham na cidade de São
Paulo.
Entrevistada: Sim, era muito diferente... A gente tiene mais saudade del
lugar..ai valora el lugar que você vivia... Aún que sea.. lo que sea...
Hasta el aire era diferente... Eu queria ir embora... Todas mis colegas
choravam... Só eu não chorava... Eu chorava de noite, né? Quando
dormia... Mas não queria que ninguém olhe, né? eu dava pra elas "ah, a
gente tem que continuar"...
116
Na situação em que vivia, portanto, a privação material de liberdade, isto é, o
fato de alguém conscientemente e de forma explícita privar a ela e outras trabalhadoras
de sair da oficina, foi entendida como uma situação limite. Naqueles momentos, então, a
liberdade teria deixado de existir, em oposição aos outros momentos em que aquelas
pessoas eram, em suas concepções, livres – mesmo quando estavam trabalhando horas a
fio, como narrou, pois a privação não vinha de forma clara e coercitiva. Quando eu
perguntei para ela sobre a legislação do trabalho escravo, ela disse que sabia que existia.
Dito isso, perguntei se ela achava que o trabalho que viveu em seu primeiro ano era
escravo:
No... hoje, ahora veo... Porque eu tive oficina, né? No es fácil tambien...
No es facil, porque a gente tem que dar comida, tem que pagar
aluguel... eles pensam que a gente ganha mal... no es asi tambien... no
es... yo no estoy contra eso, nin contra el otro, mas tem gente também
que paga menos e ganha mais... Tem assim também, né? Mas tem
outros que não faz isso também...63.
Mauge foi a única pessoa com quem conversei que além de ter trabalhado como
costureira em oficinas de terceiros, teve a sua própria. Essa dupla condição que viveu,
de empregada e empregadora, foi o que contribuiu para sua relativização da exploração
do trabalho: é que o oficinista também tem os gastos e, no fim, não ganha tanto assim.
Pagar aluguel e alimentação dos trabalhadores foi a principal despesa elencada por
Mauge. Não houve fala sobre salários. Ela sabe que o trabalho como costureira numa
oficina pode ser exaustivo, mas pondera que os donos das oficinas também passam por
dificuldades.
63
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).
117
construiu-se sobre o ideal político da liberdade individual (em resposta a essa
conjuntura anterior).
A força de trabalho deve ser móvel, “quer dizer apta para as deslocações e
modificações do seu emprego, no limite, tão indiferentes ao conteúdo do seu emprego
como o capital o é de onde investe, desde que o lucro extraído seja satisfatório”
(GAUDEMAR, 1977, p. 190). O dinheiro estimula essa mobilidade, numa lógica onde
pouco importa o emprego contanto que o salário seja satisfatório. O capital exige uma
fluidez, uma capacidade de aplicação da força de trabalho do operário. Ele procura
eliminar todos os obstáculos legais e econômicos à variabilidade (à mobilidade). (Idem,
p 191).
119
A construção simbólica de uma liberdade jurídica coroada pelas transformações
neoliberais que trazem o foco aos indivíduos isolados na sociedade é fundamental para
que se tenha uma sociedade do trabalho marcada pela competição, onde os sujeitos
constroem-se isoladamente, vendo a si mesmos e aos outros como concorrentes de uma
eterna disputa, onde estão todos livres para traçarem seus planos e estratégias e
venceram na vida – na própria, e apenas nela. Essa liberdade do indivíduo que está
acima do coletivo, gera uma transformação na ideia de coletividade que até então o
trabalho trazia, como aquele momento de encontro, compartilhado entre aqueles que
vivem dele e que entregam parte de sua força, livremente, a quem os explora e que se
alinham como explorados.
120
O autor não descarta que determinações objetivas definam classe. Chama
atenção, no entanto, para dizer que “nenhum exame das determinações objetivas e, mais
do que nunca, nenhum modelo eventualmente teorizado pode levar à equação simples
de uma classe com consciência de classe” (THOMPSON, 1998, p. 102). “A classe se
delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e
segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior de ‘o conjunto de
suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no
modo através do qual se valeram dessas experiências em nível cultural” (Idem, p. 102-
3).
Thompson também não nega que uma classe para “existir”, digamos assim, não
pode fazê-lo sem ter qualquer tipo de consciência de si mesma. Ou seja, mesmo de
forma desorganizada, como a plebe da Inglaterra do século XVIII estudada por ele, os
indivíduos possuíam alguma noção de seus direitos – ainda que de forma desorganizada.
Ou seja, “dizer que classe no seu conjunto tem uma consciência verdadeira ou falsa é
historicamente sem sentido” (THOMPSON, 1998, p. 105). Nessa perspectiva isso
significa que não é porque não se veem consciente e coletivamente como classe nos
locais de trabalho, que os trabalhadores da costura não possam perceber suas
confluências em determinados momentos, como demonstrou Mauge quando contou da
tentativa do “motim” em um dos seus locais de trabalho.
121
política como ‘senso comum’ das massas” (DIAS, 2011, p. 133). Classes se constituem
como coletivo, necessariamente.
122
Com a adoção da remuneração flexível ligada ao plano de metas, o
trabalhador assalariado torna-se “carrasco de si mesmo”. A quebra da
auto-estima como pessoa humana e a “administração pelo medo”,
estilhaçam a “personalidade autônoma” do trabalho vivo,
“reconstruindo-se” uma individualidade pessoal mais susceptível às
demandas sistêmicas do capital (ALVES, 2008, p. 12).
Yo me aguente porque no tenia para adonde ir. Pois (?) la gente que
conocia creo los trabajadores tanto como costureros e esas cosas creo
123
que sabian donde conseguir mas trabajo pois entonces se no
aguantaban dos semanas, uma semana aguantaban e se iban porque
realmente te cansaba el trabajo. Y ademas de eso com la comida
péssima y todo eso no dava para trabajar. Entonces la gente ia
tampoco te decian: vamos conmigo yo te voy ayudar a buscar um
trabajo. No te decian. Solo se iban de callar um dia: me voy. Porque
realmente el trabajo no estaba funcionando64.
64
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
65
Idem.
124
Neste segundo emprego Santiago alcançou uma hierarquia maior na produção, e
isso modificou completamente sua leitura do patrão, que apesar de pela sua narrativa
demonstrar ser uma pessoa “melhor” que o patrão anterior, não era mais identificado
como “inimigo”, aquele que controla o tempo de trabalho, aquele que paga menos do
que deve e que cerceia a liberdade, mas como um amigo, enquanto que Santiago
representava parte dele:
Mi jefe y yo somos uno so. Mira, yo tenia que estarr um mês no mas
allí, me he quedado dos meses para ayudarlo mas. Para... Me gostaria
quedarme, no? Quedaria, me gustaria, pero tengo otros objetivos, han?
Yo la he ajudado já, já le ajude. Hasta donde pude já ajudei, el 17 yo
salgo. Tenho que salir, porque yo necessito hacer lo mio. No puedo
hacer lo mio se me quedo allá, porque me quita todo el tiempo...(Grifo
meu)66
Pero que sucede? En este trabajo yo puedo hacer lo que yo guste, estoy
como... Buono, al principio empezé como ayudante de costura igual,
no? Como ayudante de costura igual. Pero [ooo] como vieron que
tengo mucha habilidade, mucho... tengo muchas ganas de trabajar,
no? He superado el trabajo que normalmente... Y entonces a la semana
me subieron de cargo, ãhn? Yo me quedé encarregado de la mitad del
proyecto, de la empresita, de la como llama? De la oficina. De la mitad
de la oficina y entonces (incompreensível) me aumentaran el sueldo al
mês que terminé, tenía que cobrar um monte de dinero y ya hablamos
com el e me dijo: que te parece mi trabajo? Te cuadra o no te cuadra?
Pues ai le dijo: si me gusto mucho de trabajar asi. Y yo como gratitud
te voy aumentar tanto. A parte de lo que tiene que me pagar me
aumentou plata67.
no costuro ni ayudo nada, mas trabajo digamos... “ay que hacer esto”.
Ah, vale. Estoy haciendo junto com eles “fan, fan, fan”. Terminamos
66
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
67
Idem.
125
esto, vamos hacer aquele. Ah, ya. Esto, esto, esto, esto... El dia
terminamos esto descansamos com todos os trabalhadores. Y se falta
para cozinhar, yo ayudo a cozinhar68.
Mesmo assim, por mais que tenha demonstrado gostar do novo trabalho, se
sentido valorizado por subir de posto, em nossa conversa me manifestou que precisava
sair dali porque possuía “(...) otros objetivos que tengo que cumplir por lo cual
necessito que salir”. Santiago é formado em medicina, e seu maior objetivo era
conseguir exercer o cargo de médico no Brasil, algo extremamente complicado por toda
a burocracia necessária. Sua trajetória até ali foi bastante solitária.
Não dava, não dava... Eles... um dia a gente entrou de acuerdo asi, "Ah
eles tão pagando pouco, a gente... agente se junta todos e vamos a falar
pra ele que não vamos a fazer, que aumente a la peça", né? Entramos de
acuerdo todos... Aí falamos com ele, né? E falamos assim, "está muito
pouco, a gente não vai fazer, você tem que aumentar". E ele falou,
"quando atrasei tu salário? Quando atrasei? Eu sempre pago pontual, eu
tiro del banco se não tem... se não me pagam eu pago a vocês". "Eu
68
Ibidem.
126
atrasei?", perguntou assim a cada uno, e ele pagava pontual. "E agora
vocês não querem fazer? Então vai embora todo mundo!" (risos) 69.
69
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).
70
A saída era permitida se os trabalhadores seguissem, as orientações corretas, caso não seguissem eram
punidos de alguma forma como, por exemplo, não poder entrar de volta na casa no mesmo dia, tendo que
retornar só no dia seguinte
71
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).
127
5. Superarse: contradições entre liberdade e superexploração
“Yo salí de Bolivia é... No por cuestión de trabalho, salí da Bolivia por querer
esquecer os problemas que eu tenía ali. E sali grávida, com meu filho... Yo vine sin
conhecer ao Brasil... Eu vine pra trabalhar, así, morar, trabalhar” 72. “- Mi nombre és
Santiago, yo soy boliviano é... yo vine aquí a Brasil a superarme, no? A cumplir mis
sueños... de ser alguien en essa vida (...) necesito superarme. Entende?” 73.
Esses dois relatos, transcritos das conversas que tive com Miranda e Santiago
demonstram que a ideia do que seja superação é indispensável para as trajetórias de
migração e trabalho desses indivíduos. Eles adentraram as redes migratórias, se
transformaram em trabalhadores da costura, materializando em si diversas relações
sociais de nossa sociedade. Atores de suas próprias vidas, por assim dizer, trilharam
caminhos que, de fato, demandaram deles muita coragem e disposição.
No primeiro trabalho que realizou numa oficina, Miranda contou que o salário
mensal era de 250,00 reais, e ela trabalhava das 06h30min às 22h00min. O tempo de
vida e o tempo de trabalho se confundiam em absoluto. Ela se recusou a permanecer
mais de um mês no lugar primeiro porque estava grávida e sabia que a renda seria
insuficiente para manter-se com um filho e, segundo, porque reconhece como
inaceitável o salário pago pelo tanto de trabalho.
72
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
73
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
128
com ele e, quando voltou do hospital foi expulsa da casa onde era a oficina. Por um dia,
depois de receber uma recusa de ajuda de uma conhecida, Miranda dormiu no terminal
de ônibus.
“Dai ao dia seguinte eu consegui trabajar com uma brasileira. Essa brasileira
me deu um quarto e eu trabajei ao horário... Com ella trabajei, com ella ya me superei.
Com ela ya trabalhei... Cinco meses trabalhei em sociedade”74. Quem a ajudou a
encontrar esse trabalho foi a pastora de uma igreja. Ela trabalhou junto com a brasileira
por seis meses, vivendo no mesmo local de trabalho.
Miranda encontrou uma realização pessoal na costura. Esse relato, embora tenha
sido doloroso por tantos motivos, para eu escutar e, sem dúvidas, para ela compartilhar,
demonstrou que, de fato, individualmente sua trajetória demonstrou uma força incrível
enquanto trabalhadora, imigrante, mulher e mãe. Ela conquistou sua liberdade. Embora
a dor passada, que a motivou a caminar, ainda estivesse ali, como transpareceu nos
minutos em silencio e lágrimas derramadas, era possível ver que Miranda estava feliz,
se sentia assim. Como grande parte das pessoas que eu havia entrevistado e tantas
histórias que escutei, que representavam grandes pequenas vitórias pessoais.
Na época da entrevista, Miranda estava trabalhando ainda com costura, algo que
muito lhe agradava, ressaltando que seu horário de trabalho era “regulamentado”: das
oito às cinco. Agora, o tempo de vida e de trabalho se dividiam, tendo em sua leitura
encontrado um equilíbrio que lhe permitia viver a vida fazendo algo que mais lhe
agradava no mundo, mais que a costura: cuidar de seu filho. Com a saída da oficina e o
trabalho como free-lancer pilotera, Miranda também ganhou os finais de semana livres.
74
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
75
Idem.
129
Esse, pra ela, era o emprego ideal e ela manifestava estar feliz, pois lhe sobrava muito
mais tempo para passar com seu filho.
O Brasil, portanto, é o lar de Miranda. Ela disse que sentia saudade de algumas
coisas, principalmente da família (do pai e da mãe), mas que sua vida era aqui. A
saudade era apenas isso: saudade. “É... Acredita que eu não penso em voltar? [disse-me
Miranda rindo] Ya no... Ya... Ya... Minha vida ya mudou aqui bastante...Entonces...
Brasil que fez uma mudança bastante em mi vida. Então penso em morar aqui”77.
Miranda se mostrou uma pessoa religiosa, argumentando que não denunciou os
empregadores abusivos que teve por acreditar que Deus faria justiça nesses casos – e
que inclusive já se sentia justiçada, sentiu justiçada uma vez que estabilizou sua vida,
sentindo que não lhe faltava nada. Na época da entrevista, seu sonho era fazer um curso
para ser modelista: a pessoa que desenha as peças de roupa a serem costuradas. “Estou
querendo especializarme em este ramo para trabalhar de modelista. Depois para
superarme um pouco mais” 78.
76
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
77
Idem.
78
Ibidem.
130
O projeto do qual fiz parte, o Si Yo Puedo, foi fundamental na vida de Santiago,
em sua percepção sobre a superexploração sofrida no primeiro trabalho e em sua
inserção na sociedade de destino. Foi através dele que Santiago percebeu que estavam
trapaceando com ele. Em nossa conversa, sobre a situação do primeiro trabalho, disse
Santiago contou que resistiu àquelas condições, pois não queria voltar para a
Bolívia já que tinha um objetivo a cumprir: “Quiero quedar y lo voy hacer”80. Não é a
mesma coisa dizer que há uma espécie de legitimação na trajetória que é árdua, algo
constitutivo da vitória. Há um reconhecimento de que o caminho pode não ser mesmo
fácil e que os indivíduos precisam criar mecanismos para lidar com isso, demonstrar a
capacidade de superação. Ser capaz disso é algo valioso aos indivíduos: batalhas árduas
vencidas são mais saborosas, talvez.
79
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
80
Idem.
131
Santiago, Miranda, Mauge, Yarita e Esther foram pessoas que compartilharam
comigo histórias intensas e incríveis de superação. Em diversos momentos eu pensava
se seria capaz de superarme assim. As condições objetivas e materiais de vida, no
entanto, foram ventos indispensáveis que lhes sopraram caminhos de liberdade possível,
em comparação com a vida que estavam vivendo. Esses ventos mudam de direções
constantemente, e escutar esses relatos me permitiu também pensar como seria construir
um projeto de vida alternativo; como seria precisar me submeter, pois isso ficou muito
claro nas entrevistas: foi preciso, em diversos momentos, precisar submeter-se ao
precário e até mesmo desumano.
132
Considerações finais
Ao longo dessa pesquisa, a dinamicidade e brutalidade da realidade chamaram
atenção para o quanto é necessário conhecermos a nossa própria historia. Ser capaz de
compreender os mecanismos de funcionamento da nossa sociedade torna possível
pensar formas de aprimorá-los, destruí-los e transformá-los. A reflexão inicial dessa
dissertação, o aprofundamento da noção de superexploração do trabalho, logo abriu
possibilidade para diversas outras questões importantes surgirem.
Foto: acervo
pessoal. Praça
Kantuta, 2016.
133
A reflexão desse texto tornou-se mais tocante a mim quando, logo que iniciado o
trabalho de campo, os muros que possuíam intervenções e pixações foram pintados de
cinza pela prefeitura. Depois de um tempo, no entanto, foram realizadas diversas
intervenções nos muros e, um dia quando cheguei para dar aula vi isso:
134
Essa foi a discussão desenvolvida no final da dissertação – a tentativa de refletir
as contradições presentes entre a realidade da exploração concreta, objetiva; e a
percepção da exploração subjetivamente: o que se justifica, como e por quê. Essa
discussão demandou uma reflexão sobre ideologia e consciência subjetiva – e de classe,
pois se tornou evidente que a reestruturação produtiva não só realocou espacialmente a
produção capitalista como trouxe consigo um sistema de pensamento que parece ter
modificado os sujeitos em sua consciência coletiva. Essa transformação modificará a
percepção que um grupo poderia ter de si mesmo enquanto classe, como tentei apontar.
135
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