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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Julia Ferreira Scavitti

SUPERARSE/SUPERARME: Os paradoxos da liberdade no trabalho dos


imigrantes na indústria de costura do capitalismo contemporâneo.

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais na Escola de Filosofia Letras e
Ciências Humanas da Universidade
Federal de São Paulo. Sob orientação do
Professor Dr. Lindomar Albuquerque.

Guarulhos
2017
0
SCAVITTI, Julia.

SUPERARSE/SUPERARME: Os paradoxos da liberdade no trabalho dos imigrantes na indústria


de costura do capitalismo contemporâneo – 2017.
Nº folhas ¿¿¿¿¿

Dissertação:
Mestrado em Ciências Sociais - Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2017.
Orientação: Prof. Dr. Lindomar Albuquerque.

1.Superexploração do trabalho; 2. Oficina de Costura; 3. Imigração; 4. Mobilidade do


trabalho; 5. Neoliberalismo 6. Reestruturação Produtiva. I. Prof. Dr. Lindomar Albuquerque; II.
SUPERARSE/SUPERARME: Os paradoxos da liberdade no trabalho dos imigrantes da costura
do capitalismo contemporâneo.

1
Julia Scavitti

SUPERARSE/SUPERARME: Os paradoxos da liberdade no trabalho dos


imigrantes na indústria de costura do capitalismo contemporâneo.

Dissertação Apresentada à Universidade


Federal de São Paulo como requisito parcial
para obtenção de título de Mestre no Curso
de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

Aprovação: ____/____/________

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Lindomar Albuquerque
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Davisson Cangassu de Souza
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Alario Ennes
Universidade Federal de Sergipe (UFS)

2
Toda pesquisa é um lento processo de construção que pode ser
considerado quase manual, para coletar informação e sistematiza-la, que
requer, ao mesmo tempo, imaginação. É um ato criativo. (DURAND,
2015).

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a


sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim
sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
pelo passado (Primeiras linhas do 18º Brumário de Luís Bonaparte, Karl
Marx, 1852)1.

“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para
a gente é no meio da travessia”. (GUIMARÃES ROSA, 1994).

1
Trecho retirado do link: https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm. Acessado
em: 20/10/2016.
3
Agradecimentos

À minha mãe e meu pai, que mesmo não entendendo às vezes o que toda essa
jornada quis dizer, sempre me incentivaram a seguir me formando, estudando e
principalmente me incentivam todos os dias, acreditando em mim e não me deixando
cair. Sem vocês eu não poderia ter feito isso.
Ao meu orientador, Lindomar, pela paciência em lidar com os momentos de
ansiedade e, principalmente, por acreditar que eu era capaz de fazer essa pesquisa,
muito obrigada.
A todos os interlocutores dessa pesquisa, mulheres e homens imigrantes, com
quem conversei e que aceitaram a realização das entrevistas sem os quais muitas
reflexões desse texto não seriam possíveis; aos colegas do projeto Si yo puedo, que tanto
me ensinaram sobre solidariedade e protagonismo: Verônica, Rocio, Bianca, Nanci,
Marlucia, Grecia, Luana, Junia, Jorge e tantas outras pessoas que fazem esse projeto
incrível funcionar.
Ao Andrei, que se fez presente num momento muito importante me ajudando
com a arte da escrita e da formatação. Obrigada pela paciência, sempre.
Ao Thiago pela solidariedade perante a burocracia, e pelos empurrões na fase
final, sempre me incentivando a caminhar pra frente. Que tenhamos sempre mais
tempo!
Agradeço ao José Carlos, o Carlinhos, que me recebeu de braços abertos na
Missão Paz e sempre me incentivou nos momentos em que nos encontrávamos.
Obrigada pela poesia sempre!
Ao Tiago, Allan, Carlos, Patricia, Beatriz, Katisciua e tantas outras pessoas que
consultei durante a pesquisa, que tiveram a paciência de conversar comigo e dividir o
que aprenderam!
Obrigada João, companheiro de viagens unifespianas e do filosofar, obrigada por
essa amizade incrível e por ter traçado esse caminho comigo. Que consigamos publicar
nossos diários de bordo, tenho certeza que eles serão muito úteis às pessoas.
À Ana Paula, mulher maravilhosa de muita fibra e amor no coração, exemplo de
vida e companheira de tantas angústias acadêmicas, obrigada pelos momentos de
consolo e de solidariedade e obrigada pela amizade, fruto dessa jornada que encerramos
aqui.
4
Às mulheres com quem dividi e divido minha vida: Larissa, pela sinceridade,
acidez intelectual e transparência; Priscila, por todas as conversas, por todas as
reflexões, por todas as risadas e pelo companheirismo absurdo dos sentimentos
compartilhados; Sarah, exemplo de professora guerreira e dona de um cérebro incrível!
Ana Elisa, por ensinar a paciência e leveza da nossa existência e o comprometimento
com a pesquisa.
Agradecimento especial àquela que continua comigo até hoje, companheira de
longa data, Lívia. Nossa, apenas que: obrigada. Pela parceria, sabe? E tudo que isso
representa. Muito amor.
À Lígia, pela amizade eterna já jurada depois de muitos copos, muitas vezes,
mas sempre com sinceridade e amor. À Ana Carolina, a pessoa mais peculiar do mundo,
obrigada por fazer parte da minha vida.

5
Resumo

Essa pesquisa reflete a relação entre migração internacional laboral e teoria da


dependência e superexploração do trabalho a partir da realidade específica dos
imigrantes na indústria de vestuário de São Paulo nas três últimas décadas. Procura
ainda refletir acerca das transformações ideológicas advindas com o crítico cenário que
se desenhou na década de 1970, onde a crise econômica demandou uma transformação
profunda do modo de produção capitalista. O objetivo central foi entender os paradoxos
da noção de liberdade numa sociedade sob a lógica capitalista neoliberal, manifestada a
partir das relações de trabalho da costura e dos discursos mobilizados pelos
trabalhadores imigrantes desse setor. Para tanto, utilizou-se de metodologia qualitativa,
na forma de entrevistas em profundidade e observação participante, bem como da
revisão bibliográfica sobre o tema.

Abstract

This research reflects the relationship between international labor migration and
dependency theory and superexploration of work based on the specific reality of
immigrants in the apparel industry of São Paulo in the last three decades. It also seeks to
reflect on the ideological transformations arising from the critical scenario that emerged
in the 1970s, when the economic crisis demanded a profound transformation of the
capitalist mode of production. The central objective was to understand the paradoxes of
the notion of freedom in a society under the neoliberal capitalist logic, manifested
through the work relations of the sewing and the discourses mobilized by the immigrant
workers of this sector. For that, a qualitative methodology was used, in the form of in-
depth interviews and participant observation, as well as a bibliographic review on the
subject

6
Sumário
Introdução: ......................................................................................................................... 8
1. uma pequena reflexão pessoal: .................................................................................... 8
1.2. sobre a pesquisa teórica e a metodologia qualitativa. ........................................... 15
1.1 “No final daquela avenida”: a praça é o campo. .................................................... 19
1.1.2 O Projeto Si Yo Puedo e a luta pelo acesso à educação....................................... 23
CAPÍTULO 1: Mobilidade transnacional do trabalho..............................................25
1. Os e as imigrantes latino-americanos e as oficinas de costura: o que nós já
sabemos. ....................................................................................................................... 28
2. Imigração como mobilidade do trabalho................................................................... 40
3. Espaço transnacional: migração circulatória. .......................................................... 49
CAPÍTULO 2: Oficina de costura: Trabalho escravo contemporâneo e a
superexploração do trabalho. .................................................................................... 55
1. Reestruturação produtiva e acumulação flexível: ................................................... 61
1.1 Transformação na indústria de vestuário: lógica fast fashion. ............................. 64
2. Escravidão contemporânea: conceito jurídico e político......................................... 73
3. Teoria da dependência: A superexploração do trabalho como regra e não
exceção. ........................................................................................................................ 77
3.1 Discussão sobre o capitalismo brasileiro. ................................................................ 82
CAPÍTULO 3: O paradoxo da liberdade: Exploração do trabalho e resistência na
ideologia neoliberal ..................................................................................................... 90
1. Indivíduos, trabalhadores: a vida coletiva na sociedade capitalista ...................... 90
1.1 Peculiaridades em ser trabalhador imigrante......................................................... 95
2. Ideologia e a construção da subjetividade .............................................................. 101
2.1 Subjetividade na lógica neoliberal: A produção de consenso no empreendedor
de si mesmo. ............................................................................................................... 107
2.2 Disputa do termo escravo para além da estigmatização ...................................... 110
2.3 Neoliberalismo: “captura” de subjetividade dos trabalhadores .................... 112
3. Dupla liberdade do trabalho na lógica do capital: voar com o vento que assopra115
4. O apagamento da consciência de classe .................................................................. 120
5. Superarse: contradições entre liberdade e superexploração ................................. 128
Considerações finais ...................................................................................................... 133
Bibliografia: ................................................................................................................... 136
7
Introdução:
1. uma pequena reflexão pessoal:

No segundo semestre de 2012, quando cursava Ciências Sociais na Universidade


Estadual de Campinas (UNICAMP), fiz uma disciplina sobre o trabalho escravo
contemporâneo nas áreas rurais do Brasil, que foi fundamental para o desenvolvimento
de reflexões que culminariam nessa pesquisa. A partir daí surgiram dúvidas e
inquietações, principalmente em relação aos motivos de persistência na sociedade atual
de formas de exploração do trabalho vistas como arcaicas e atrasadas quando
comparadas às legislações e outras experiências trabalhistas.
Em 2013 assisti o curta documentário “Escravos da Moda, produzido pela TV
Folha2. O curta retratava o São Paulo Fashion Week (SPFW) e a relação entre oficinas
de costura clandestinas e escravidão contemporânea. As oficinas eram em sua maioria
composta por trabalhadores e trabalhadoras imigrantes. Em 2015 foi lançado outro
documentário, The True Cost, que reflete sobre a precarização da vida e do trabalho na
indústria de vestuário mundial. A partir daí ideias começaram a fermentar mais ainda a
reflexão: se todos tinham acordo de que se trata de uma forma de trabalho
“abominável”, por que essas relações de trabalho permaneciam? Por que a maioria dos
trabalhadores das oficinas era estrangeira? O que esses trabalhadores imigrantes
representavam e estavam dizendo sobre o mundo do trabalho contemporâneo? Como
eles percebiam sua realidade?
Em 2011 uma notícia estourou na mídia brasileira, relacionando a marca Zara ao
uso de trabalho análogo a de escravo e contratação irregular de oficinas de costura com
trabalhadores imigrantes3. Em 2014 a marca Renner também foi denunciada4 pelas
mesmas questões, e a lista só crescia. Havia um padrão de elementos imbricados em
todos os casos: grandes e médias marcas de roupa, oficinas de costura em sua maioria
“clandestinas” e trabalhadores de países vizinhos ao Brasil (Bolívia, Peru e Paraguai),
todos conectados pela indústria de vestuário na sociedade capitalista contemporânea.

2
Esse documentário pode ser acessado através do link: https://www.youtube.com/watch?v=SeI0xbstRA0
3
Notícia aqui: http://reporterbrasil.org.br/2011/12/especial-zara-flagrantes-de-escravidao-na-producao-
de-roupas-de-luxo/
4
Notícia aqui: http://reporterbrasil.org.br/2014/11/fiscalizacao-flagra-exploracao-de-trabalho-escravo-na-
confeccao-de-roupas-da-renner/
8
Durante a elaboração do projeto sempre tive a preocupação de que uma vez
tratando de uma reflexão que envolvia diretamente trabalhadores imigrantes, era
necessário aliar à reflexão teórica o trabalho de campo. Assim, a metodologia que optei
foi a observação participante e as entrevistas em profundidade.
Minha inserção no campo foi através do projeto Si Yo Puedo5, onde comecei a
dar aulas de português na Praça Kantuta, local de encontro da comunidade boliviana.
Daqui saíram todos os meus interlocutores ao longo da pesquisa. Desde 2015, quando a
iniciei, intensas transformações ocorreram no que diz respeito às questões migratórias e
ao contexto histórico em que vivo. É incrível a dificuldade que temos, como cientistas
sociais, em elaborar teoricamente uma reflexão e permanecermos ancorados na
realidade cotidiana. A história é mesmo um contínuo fazer-se e nós somos, embora
pequenos pontos no universo, sujeitos do nosso tempo e parte desse processo.
Foi em 2015, um tempo depois que ingressei no mestrado, que o tema das
imigrações ganhou grande visibilidade. As guerras no “Oriente Médio” se
intensificaram e a Europa viu crescer o número de imigrantes que lhe solicitavam
refúgio6, e deu-se a isso o nome de Crise Migratória, que envolve a morte de centenas
de imigrantes anualmente. A configuração da economia e política do mundo todo vem
se transformando rapidamente e o cenário atual está imerso em contradições, e o que
mais se aprofunda são as violências e a desigualdade social7.

5
Projeto Social voltado para a democratização do acesso à educação para a população imigrante do qual
fiz e faço parte e sobre o qual falaremos mais profundamente em breve.
6
A imigração discutida nessa dissertação não é a imigração de refúgio, cujos imigrantes constantemente
são classificados como refugiados, baseada no Estatuto dos Refugiados, produzido pela Convenção de
Genebra de 1951 que caracterizava de forma específica um tipo de imigrante que sai de seu país receando
ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, filiação em certo tipo de grupo social ou das
suas opiniões políticas (...) (Art. 1, Estatuto dos Refugiados, 1951). Embora esses imigrantes, uma vez
localizados na sociedade de destino se incorporem inevitavelmente ao mercado de trabalho local, a
discussão sobre refúgio levanta outros elementos que não poderão ser abarcados aqui. Portanto, em geral
estamos trabalhando com imigrantes que optam por deixar seus país a partir de um entendimento de
vontade própria, não se sentindo necessária e diretamente coagidos a agir assim. O Estatuto está
disponível online e pode ser acessado através do link:
http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_R
efugiados.pdf
7
Esse ano diversas fontes de mídia divulgaram estudos e pesquisas sobre a realidade da desigualdade
social no mundo, nos informando (ainda que superficialmente, uma vez que o foco da pesquisa também
não é a desigualdade social propriamente) que apesar de avanços e conquistas para alguns setores da
sociedade, a desigualdade social ao invés de diminuir aumentou drasticamente, como pode ser visto nesta
matéria: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2002/020118_desigualdadebg1.shtml ou nessa:
9
Inicialmente meu foco era na discussão sobre escravidão contemporânea. Não
diminuo sua importância política e para a luta pelos direitos humanos, porém durante as
reflexões do campo aliadas às leituras da sociologia do trabalho, acabei “abandonando”
a intenção de trabalhar com trajetórias “pós-libertação” e colocar em suspensão o termo
escravidão, dando lugar para uma a abordagem da superexploração do trabalho.
No final de 2016, Donald Trump foi eleito novo presidente dos Estados Unidos 8
e um dos seus principais pilares era o discurso restritivo em relação à imigração e de
fortalecimento da ideia de Estado-Nação9. As movimentações políticas europeias
sinalizaram que há um aumento do mesmo pensamento, e o segundo turno francês foi
entre dois candidatos com discursos endurecidos sobre a imigração 10. As
transformações sociais que dizem respeito à realidade do Brasil também foram sentidas
durante a pesquisa, principalmente porque desde o início de 2015 o país começou a
enfrentar uma recessão econômica e uma forte instabilidade política, e essa crise vem
sendo sentida materialmente.
Em meio a tudo isso, para a comunidade imigrante no Brasil houve um pequeno
motivo a se comemorar: a aprovação da nova Lei de Migração no senado 11, que foi
sancionada em meio a uma forte instabilidade que atinge o atual presidente, Michel
Temer. A sanção, no entanto, ocorreu de forma a contrariar as expectativas dos
movimentos sociais ligados às imigrações, pois o presidente realizou 20 vetos em
artigos inteiros e parciais por conta da pressão de setores organizados contrários à nova
Lei12.

http://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/13/economia/1444760736_267255.html. Acessado em:


21/05/2017.
8
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/09/internacional/1478660050_114058.html. Acesso em:
12/05/2017.
9
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/02/1860680-governo-trump-divulga-nova-politica-anti-
imigracao.shtml. Acesso em: 12/05/2017.
10
http://g1.globo.com/mundo/eleicoes-na-franca/2017/noticia/a-dois-dias-do-segundo-turno-na-franca-
pesquisas-mostram-macron-vencendo-le-pen.ghtml. Acesso em: 12/05/2017.
11
No capítulo 1 faço uma discussão sobre o Estatuto do Estrangeiro, antiga lei que regulamentava a vida
de imigrantes no país. No entanto, desde o início da pesquisa já havia um novo projeto de lei em
tramitação em Brasília e que substituiria o Estatuto.
12
http://migramundo.com/nova-lei-de-migracao-e-sancionada-mas-vetos-derrubam-anistia-e-mais-19-
pontos/. Acessado em: 25/05/2017.

10
Como dito anteriormente, uma das maiores especificidades das ciências
humanas é que seus “objetos” de estudo são também sujeitos que constroem a realidade,
da qual por sua vez também faz parte o pesquisador. Isso significa que a agência desses
sujeitos influenciará direta ou indiretamente a pesquisa, o que torna mais dificultoso o
trabalho dessas ciências e a reflexão “recortada” da realidade.
Em muitos momentos durante a pesquisa percebia que meu objetivo central me
escapava, e surgiam novas indagações. Os temas das migrações internacionais e do
trabalho estão em constante transformação. Acredito que a inconstância do objeto e da
pesquisadora se reflete no texto – e, consequentemente, nas lacunas que ele possui.
Estando agora na reta final desse caminho, penso que a melhor forma de definir o que
eu sinto em relação à pesquisa é que ela é a síntese de possibilidades que ainda podem
se abrir a partir dessas primeiras reflexões. O fazer científico é inesgotável.
O ato de pesquisar também precisa ser, por isso, bastante solitário. Temos que
nos isolar. Escrever é um exercício de reflexão e isso demanda de nós aquele encontro
mais íntimo com o que aprendemos, o que entendemos, o que levamos de influência de
outros autores e como contribuímos para caminhar. É o momento em que temos que
escolher como podemos no expressar melhor, dizer o que concluímos de toda nossa
pesquisa. É, por isso, um encontro com nós mesmos e isso tem seus pontos negativos, é
esgotante. Penso na metáfora de Saramago que diz que:

Ao deserto, só é possível ir nu. Nu, dizemos nós, apesar dos espinhos


que rasgam a pele e arrepelam os pelos do púbis, nu apesar das arestas
que cortam e das areias que esfolam, nu apesar do sol que queima,
reverbera e deslumbra, nu, enfim, para procurar a ovelha perdida,
aquela que nos pertence porque com a nossa marca a marcamos”.
(SARAMAGO, ANO, p. 218).

Escrever é um deserto. Na sorte da minha inserção em campo, conheci pessoas


que tornaram esse processo menos pesado, segurando as pontas quando eu não podia
ajudar, na difícil conciliação entre ser pesquisadora da Academia, trabalhar e fazer parte
colaborativa do projeto social com o qual me envolvi no campo e que propõe
intervenções e transformações na realidade. Afinal, esse era uma dos sentidos da troca
do conhecimento. Apesar da solidão da escrita, o conhecimento em minha concepção só

11
pode ser construído através do agir coletivo, e por isso foi tão importante também poder
contar com diversas pessoas entre colegas, amigos, professores e novos conhecidos, que
contribuíram direta ou indiretamente com as reflexões aqui apresentadas.
Minha pesquisa foi do início até agora marcada por duas coisas que eu sentia em
mim e também nos e nas imigrantes com quem conversei: contradição e ambiguidade.
As entrevistas, as observações feitas em campo e as sínteses que realizei. A
preocupação de que não estava fazendo algo que poderia efetivamente ajudar as
comunidades imigrantes me seguia constantemente, mas percebi que era importante dar
continuidade à pesquisa, pois essa preocupação nunca ia passar e se eu deixasse ela iria
me paralisar. Os resultados da reflexão teórica e prática que iniciamos com uma
pesquisa científica não serão quase nunca sentidos imediatamente, e a possibilidade de
me envolver diretamente com o campo estudado tornou possível retribuir com algo que
eu sabia e poderia trocar ali: ensinar português.
Quando me dei conta que as entrevistas estavam dizendo coisas sobre as quais
não havia “me preparado” inicialmente, por teimosia ou inocência teórica, e que
demandavam de mim maior reflexão, comecei a perceber nos encontros que tinha com
imigrantes, suas formas de enxergar a realidade que viviam, os sentidos que atribuíam à
sua experiência e como assumiam sua existência na sociedade de destino. Pensar a
subjetividade, encontrar os paradoxos e nuances dos discursos, entender as pausas e
respirações prolongadas antes da resposta de alguma pergunta, entender alguns olhares.
Esses desafios do campo foram essenciais para me fazer entender que era preciso
assumir uma postura mais “aberta” em relação aos entrevistados, sujeitos de reflexão da
pesquisa.
Em Fronteira: A degradação dos Outro nos confins do humano, de José de
Souza Martins (2014), encontrei a tradução do que sentia quando pensava em aliar
campo e teoria. Martins na introdução nos conta que mesmo na posição de pesquisador,
optou

(...) por assumir abertamente, ainda que criticamente, o lado da vítima,


pois esse era o ângulo mais rico (e moralmente mais justo) para
compreender de modo mais abrangente os complicados processos
sociais da fronteira e a complexa inteligência que tem da situação os
seus protagonistas. É possível ser correto sem deixar de ser objetivo e

12
crítico e nisso estava, aliás, o meu papel pedagógico. (MARTINS, 2014,
p. 16).

Que alívio poder pensar que essa dimensão política contextual e do pesquisador
não torna a pesquisa menos pesquisa. Pelo contrário. O encontro que tive com culturas e
realidades diferentes da minha e proporcionado pelo campo foi uma experiência muito
mais intensa e qualitativa do que eu imaginava poder ser. A construção coletiva a partir
de indivíduos de diferentes realidades sociais e/ou culturais é muito trabalhosa. A
comunicação, fundamental para essa construção é feita lentamente, e o peso do idioma e
do entendimento recíproco é importante. Com a imigração, simbolicamente, nós
vivemos um encontro de fronteiras também. A fronteira, além de definir territorialmente
países na nossa sociedade estende-se para o plano humano: ela nos define.
Contraditoriamente a fronteira também é múltipla. Ela é “ponto limite de
territórios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos por
diferentes grupos humanos” (MARTINS, 2014, p. 10). Espaço de multiplicidade: é na
fronteira que se pode observar melhor como as sociedades se formam, se desorganizam
ou se reproduzem. “Na fronteira o homem não se encontra – se desencontra” (idem). Ao
ter contato direto com “O Outro”, com uma cultura diferente da minha, em diversos
momentos me vi desencontrada, precisei buscar entender como eu pensava sobre
aquelas experiências. Isso pra mim foi desafiador e enriquecedor ao mesmo tempo,
porque sinto que somos criados de forma muito fechada em pequenos “containers” de
mundo, o que faz com que a gente tenda a não perceber como aceitável outras formas de
existência além das nossas.
Por vezes me deparei com situações de machismo, a partir da relação
pesquisadora (mulher) e pesquisados (muitos homens). Poucas teorias aliam-se à teoria
feminista para a produção de conhecimento e prática científica e receio não ter
conseguido muito sucesso como gostaria nessa pesquisa. Tentei incorporar alguns
debates que entendi serem importantes, mas reconheço que estão aquém do que
gostaria. Não se discute gênero democraticamente dentro da Academia 13. Só essa frase
já geraria diversos debates, e não me alongarei nisso.

13
Seria injusto deixar de apontar que há núcleos de estudo de gênero em diversas universidades, e a pauta
tem avançado não só na Academia como na sociedade em conjunto. Em 2015 tive o prazer de cursar uma
disciplina do mestrado sobre gênero e política, ministrada pela professora Ingrid Cyfer. A matéria foi
13
Há que se reconhecer a relação hierárquica entre homem e mulher na sociedade,
e essa relação aparecerá também nos trabalhos de campo que envolvem esse contato
direto acima. Eu me senti diminuída e vulnerável, pela relação de gênero, em diversos
momentos da trajetória acadêmica: O trabalho de campo e alguns “chavecos”
excessivos; o desdém de colegas homens pesquisadores em eventos científicos, em
debates coletivos, em escutar nossa opinião enquanto mulheres e, por fim, mas não
menos perverso, as incontáveis vezes em que procurei falar disso com homens próximos
a mim que não faziam questão de entender sobre o problema.
Os encontros entre fronteiras são marcados por tensões e conflitos. Isso não deve
ser necessariamente ruim, e embora tenhamos aprendido que fronteira implica
necessariamente hierarquia e que somos melhores e piores que outros “alguéns”,
podemos também desaprender. A fronteira humana “tem um caráter litúrgico e
sacrifical, porque nela o outro é degradado para, desse modo viabilizar a existência de
quem o domina, subjuga e explora” (MARTINS, 2014, p. 11). Quando nos permitimos
esse contato, no entanto, aprendemos que ele pode ser extremamente positivo.

O pai da pequena Halla, cuja irmã gêmea morre no romance A desumanização


lhe diz, num momento em que essa está sentindo um profundo sentimento de aversão a
qualquer noção de coletividade, que o nosso problema não são os outros

Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A


humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se
pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua
expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa
tão sem razão quanto pensam os peixes (Valter Hugo Mãe, 2014, p. 15).

Ele procurou ensinar à filha uma lição sobre os frutos e significados gerados nessa convivência
coletiva que temos na sociedade:

muito boa, e acredito que como essa há tantas outras por aí. Estamos construindo um começo, não tenho
dúvidas. Os debates iniciais com os quais tive contato podem ser vistos em: MOHANTY, 1988; 2008;
FRASER, 2009; BAHRI, 2013.

14
Sobre a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se
diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é
sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso
partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a
beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no
sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião
com o outro(...)Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa. A
esperança na humanidade, talvez por ingênua convicção, está na crença
de que o indivíduo a quem se pede que ouça o faça por confiança. É o
que todos almejamos. Que acreditem em nós. Dizermos algo que se
toma como verdadeiro porque o dizemos simplesmente. (MÃE, 2014, p.
27).

O que pude concluir que me acrescentou muito nesses dois anos e meio de
pesquisa foi que precisamos nos apoderar mais da literatura produzida pelas minorias
políticas, oprimidas socialmente por aqueles que questionam o status quo e as
hierarquias sociais. Que serão em parte essas literaturas que possuirão mais chaves de
interpretação que escapam ao normativo, ao dominante, à uma estrutura de poder.
As contribuições sobre metodologia de pesquisa feitas pela Escola de Chicago
nos anunciaram que ao cientista social é possível consultar fontes diversas em nossa
pesquisa, fotos, livros de romance, diários, depoimentos. Que o pesquisar, portanto,
reinventa-se, acompanha o mundo, tentando compreendê-lo e contribuir ao fazer-se que
é constante. E que, por fim, enriquece principalmente a nós, pesquisadores, nos
desafiando a encontrar formas de compartilhar todo esse conhecimento que se abriu a
nós.

1.2. sobre a pesquisa teórica e a metodologia qualitativa.


A reflexão que se desenhou como central ao longo da pesquisa foi a condição de
trabalho na sociedade contemporânea brasileira e a forma como os trabalhadores e
trabalhadoras imigrantes a percebem. Durante o campo foi possível notar diversos
elementos discursivos e simbólicos da reestruturação produtiva nas percepções
individuais e subjetivas dos trabalhadores e trabalhadoras que compõem os fluxos
migratórios da indústria de vestuário. Partimos, portanto da análise sociológica da
imigração latino americana ao Brasil desde a década de 1990 para, a partir das

15
condições de trabalho desses imigrantes, chegar ao debate sobre a organização do
trabalho e as mudanças ocasionadas pela reestruturação produtiva do ponto de vista da
subjetividade da classe “que vive do trabalho” hoje em dia (ANTUNES, 1995; 2002).
Como hipótese de pesquisa, procuro demonstrar que a superexploração do
trabalho é um dado de realidade da sociedade brasileira e que a migração laboral está
ligada ao mundo global numa perspectiva ampla de precarização do sistema econômico,
social e político. A exploração do trabalho aqui desenhada, para além da disputa em
torno do conceito “escravidão contemporânea”, é uma forma de superexploração que
desloca o eixo de “responsabilidade” sobre o processo total do trabalho para o
trabalhador, individualizando-os como sujeitos empreendedores, únicos responsáveis
pelos ônus e bônus do “projeto migratório” (XAVIER, 2010). Uma expressão do
individualismo que só aumenta em nossa sociedade atualmente.
O elemento mais percebido na pesquisa foram as contradições entre o projeto
migratório individual e/ou familiar destes imigrantes laborais, alicerçado nas ideias de
“ascensão social”, “melhora de vida” e “empreendedorismo”, e as condições objetivas
de superexploração do trabalho às quais estão submetidos para produção, reprodução e
acumulação do capital. Procuramos tentar pensar de que forma as transformações
estruturais e os elementos globais de economia e política, em especial a reestruturação
produtiva e a ascensão de uma ideologia neoliberal (macro), se articulam no “micro”: a
subjetividade dos trabalhadores. Diversos autores aqui lidos já demonstraram essa
preocupação e buscaram construir uma análise da realidade que seja dialética e
relacional (GAUDEMAR, 1977; HARVEY, 2010; SASSEN, 1998; THOMPSON,
1987).
A questão da imigração contemporânea no Brasil, envolvendo latino-americanos
em geral, e mais especificamente nesta pesquisa imigrantes bolivianos, passa
necessariamente por compreender também o contexto global em que estamos inseridos
e suas transformações. Este não é apenas cenário ou pano de fundo das migrações, mas
influencia diretamente projetos e processos migratórios. Os sujeitos da pesquisa foram
caracterizados aqui de migrantes da costura em consonância com a construção do termo
feita por Tiago Rangel Côrtes (2013) em sua dissertação de mestrado, reforçando a
existência de uma relação entre essa imigração e o trabalho na costura.
Restava, assim, explorar as lacunas e potencialidades abertas pelos
pesquisadores que já haviam se debruçado sobre o tema. O desejo em intervir de forma
16
teórica e prática na realidade em que a pesquisa se desenrola é um dos combustíveis de
uma pesquisa. O que se denomina “Questão Migratória” é um vasto “campo de
enfrentamento de posições políticas e metodológicas” (PÓVOA-NETO, 1997, p. 12)
que articula diferentes campos do saber e diferentes metodologias de pesquisa.
E. P. Thompson (1987) foi um historiador que optou pelo exercício da análise
dialética entre macro e micro em seu livro A Formação da Classe Operária Inglesa.
Segundo o próprio autor no prefácio do primeiro volume de três, tem-se por objetivo
estudar os pormenores da formação da classe operária inglesa, compondo “um estudo
sobre um processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos.
A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente
ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 1987, p. 9). Assim como os migrantes da
costura.
Ainda que o autor esteja discutindo o conceito de classe trabalhadora, penso ser
possível estender sua metodologia de pesquisa e de apresentação dos dados a outros
objetos de estudo tal como as migrações protagonizadas por migrantes trabalhadores.
Minha preocupação é não pensar a questão migratória como algo que se encerra em si
mesmo. Entender esse fluxo como processo que é determinado tanto pelas questões
históricas e materiais quanto pela agência de indivíduos me pareceu a melhor forma
para conseguir captar seus elementos constitutivos internos e potencialidades externas
de transformação.
Explorou-se aqui a metodologia qualitativa tornando possível, a partir das
informações coletadas, articular teorias que deram suporte, respostas ou geraram
hipóteses às reflexões em sua maioria gestadas no campo. Assim, é possível dizer que
esses processos migratórios e as relações sociais que eles representam estão sempre
“(...) encarnada[s] em pessoas e contextos reais” (THOMPSON, 1987, p. 10). Ou seja,
não podia ignorar o contexto em que está inserida essa migração, e como ele se
materializa no “fazer-se da história” (Idem, p. 13) que pressupõe os sujeitos sociais,
trabalhadores do mundo.
As conversas feitas com mulheres e homens imigrantes foram tanto em caráter
de entrevistas gravadas quanto informais. Em ambos os casos havia sempre o obstáculo
da desconfiança que pode surgir da relação entre pesquisador e aquele que está sendo
pesquisado. De todo modo, é importante reforçar a realização de entrevistas para a
análise sociológica, pois essa metodologia gera uma possibilidade de contato direto com
17
nossos sujeitos de reflexão, e este é indispensável ao fazer sociologia já que possibilita
ao pesquisador aprender com seus interlocutores.
A entrevista nada mais é do que uma história contada que representa uma versão
dos fatos e das percepções que o narrador possui representadas na memória
(LALANDA, 1998). Por servir como um instrumento de recolha de dados, algumas
perguntas sobre as temáticas aqui abordadas eram feitas durante as conversas. Sua
realização demanda do pesquisador uma “atitude antropológica” no sentido da empatia
do processo de entrevista. É necessário que os sujeitos entrevistados saibam sobre a
pesquisa e que criem uma relação de confiança que os permita conversar com o
pesquisador. Isso, embora dito, só me foi possível aprender na prática.
O cientista social também deve ser considerado um dos atores sociais que
refletem sobre o objeto. É ele quem, através de uma lente formada pelos estudos e
reflexões teóricas, interpretará as informações recolhidas no campo. As entrevistas em
profundidade, é evidente, possuem uma dimensão narrativa bastante subjetiva, mas há
nelas também um “eu” social. O papel do cientista social, portanto, é o de explicar e
decodificar os discursos que partem dos indivíduos, entendendo que ainda que sejam
narrativas individuais as histórias estão inseridas em um contexto histórico e em
processos de socialização (LALANDA, 1998).
Nas entrevistas em profundidade o próprio investigador é um instrumento da
investigação, e vai aprendendo quais perguntas fazer ao longo de suas entrevistas. Com
a observação participante sucede o mesmo. O trabalho de campo representa uma das
formas de se apreender a partir da observação e da participação das experiências de vida
do contexto sobre o qual se reflete, vivendo as realidades produzidas ali de forma direta.
Dessa vivência, também é possível extrair a compreensão das experiências humanas
subjetivas, dentro de um contexto social. Um dos aspectos positivos desse método é que
dele se pode “retirar” teorias sobre a vida social (BECKER, 1996).
As seis entrevistas realizadas formalmente foram feitas no espaço da Praça
Kantuta, acordadas entre mim e as pessoas que entrevistei.Todos eram imigrantes
bolivianos, homens e mulheres, em geral mais velhos do que eu – embora houvesse
muitos mais jovens, as entrevistas sempre aconteceram com gerações passadas de
imigrantes. Além das conversas, com o envolvimento junto ao projeto social onde dei
aulas de português foi possível praticar a observação participante. Fui à Praça em

18
muitos domingos durante esses dois anos: para dar aulas, realizar atendimento,
acompanhar eventos, fazer etnografia.
A etnografia, ou observação participante, fundadas pelos antropólogos Franz
Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-942) são balizadas pela ideia básica
(porém revolucionária na época) de que “o pesquisador deve ele mesmo efetuar no
campo sua própria pesquisa” (LAPLANTINE, 2007, p. 75). Assim, a antropologia foi
fundamental no desenvolvimento de minhas reflexões. Ela nos permite o contato com os
sujeitos sobre os quais se reflete, tentando resolver o problema de um distanciamento
por demasiado profundo entre o pesquisador e o pesquisado, a fim de romper as
elaborações do conhecimento abstratas e especulativas. Laplantine (2007) sintetiza que
a etnografia não é apenas uma coleta de informações, como também uma forma de
“impregnar-se dos temas obsessionais de uma sociedade, de seus ideais, de suas
angústias” (p. 149).
A etnografia representa um esforço do pesquisador em se colocar o mais perto
possível do que é vivido por sujeitos/atores sociais, relacionados ao contexto e às
perguntas impulsoras da pesquisa, sem o uso de um protocolo rígido e “pelo contrário,
tem algo de errante” (LAPLANTINE, 2007, p. 151). A pesquisa qualitativa nos permite
questionar as teorias, criticá-las ao mesmo tempo em que podemos também modificá-
las, pensando as questões sociais que estão colocadas no nosso tempo e como resolvê-
las ou respondê-las, ainda que provisoriamente.
A observação participante é uma expressão para designar “a investigação que
envolve a interação social entre o investigador e os informantes no meio dos últimos, e
durante a qual se recolhem dados de modo sistemático e não intrusivo” (Bogdan e
Taylor, 1984, p. 31) – é uma forma de ir além da etnografia distanciada que pode
acontecer em algumas pesquisas. É o envolver-se no cotidiano direto que é pesquisado.
Minha formulação teórica e a reflexão dos conceitos surgiram a partir desse contato,
através de uma investigação flexível – a busca foi por uma compreensão do objeto
investigado em sua relação com o mundo.

1.1 “No final daquela avenida”: a praça é o campo.


A Praça Kantuta se configurou como o principal espaço de realização do
trabalho de campo. A entrada e o conhecimento do espaço foram possíveis graças às
relações travadas no início da pesquisa e ao acolhimento do projeto social Si Yo
19
Puedo14. Após alguns meses de contato foi possível perceber que mais do que cenário
onde se desenrolavam ações e por onde passavam sujeitos migrantes, ela materializa
esse fluxo imigratório e uma série de elementos ligados a ele – em sua produção e
reprodução – como trabalho, religião, educação e práticas culturais diversas.
O trajeto que leva à praça parte da estação Armênia do metrô e percorre a longa
Rua Pedro Vicente, cruzada pela Avenida Cruzeiro do Sul. Por aquela região passa o rio
Tamanduateí, importante rio para a cidade de São Paulo. A Praça está no “final” da
Pedro Vicente. Digo final, já que na altura da Praça essa rua faz uma “dobra” e
transforma-se na Rua das Olarias. A sensação de que a praça está escondida se da
também porque ao seu redor localizam-se construções altas ou grandes, que de certa
forma a isolam do fluxo intenso das grandes avenidas que passam por ali: há uma
creche, um prédio, uma universidade e uma escola que funcionam como longos
“paredões” que a cercam, o que impossibilita sua visão a quem está nos arredores.
A região é marcada por outros elementos estéticos e estruturais. O caminho do
metrô à Praça é opaco, como um grande corredor estreito rodeado por prédios e
construções de cores acinzentadas. As calçadas e sarjetas são sujas. Ali estão
concentradas igrejas, bares, uma garagem de ônibus muito antigos, desses sem o nome
de nenhuma empresa e pintados de uma cor só e que fazem viagens ao Nordeste.
Mercadinhos. Posto de gasolina, alguns estabelecimentos comerciais e um hotel. Na
quadra da Praça estão localizadas instituições públicas de assistência social: um centro
de acolhida de pessoas em situação de rua; um centro para crianças e adolescentes cujo
serviço é de convivência e fortalecimento de vínculos. Há ainda ao redor um conjunto
habitacional, uma creche pública e o Instituto Federal de São Paulo (IFSP).
A região é um espaço de convívio frequentado por setores da população
constantemente marginalizados. Ainda que seja possível ver, aos domingos, um
pequeno número de brasileiros passeando pela Praça a maior quantidade de pessoas ali é
imigrantes.

14
Apresentarei um breve histórico da criação e funcionamento do projeto adiante.
20
Figura 1: Mapa da Região da Praça. Fonte: Google Maps. (04/11/2016).

Inicialmente os e as migrantes bolivianos que estavam em São Paulo começaram


a se reunir aos domingos na Praça Padre Bento, no Pari, onde está localizada a Igreja de
Santo Antonio do Pari. Os encontros envolviam a gastronomia boliviana,
comercialização de produtos trazidos daquele país, além de servir como um local de
oferta de trabalho. Com o tempo a feira se tornou famosa e outros migrantes de
diferentes países da América Latina começaram a frequentar o espaço. Porém, esses
eventos na praça começaram a incomodar os moradores mais antigos da região,
alegando que havia excesso de barulho, muita sujeira e insegurança no local, fruto das
feiras realizadas ali (ALVES, 2011, p. 91/92).
Em 2002, após pressão dos moradores locais com um abaixo-assinado
solicitando junto à prefeitura a proibição da feira, o evento foi proibido e os imigrantes
se deslocaram do local, se organizando com a fundação da Associação Gastronômica
Cultural e Folclórica Boliviana “Padre Bento”, sustentada e administrada pelos feirantes
(ALVES, 2011, p. 93). A partir dessa auto-organização foi possível negociar com a
prefeitura, que lhes concedeu um novo espaço para a realização das feiras, no mesmo
bairro, porém numa praça mais isolada. Em junho de 2002 o local foi batizado como
Praça Kantuta, nome de uma flor típica boliviana15. Em 2003, através da Portaria nº 26

15
A flor kantuta cresce nas regiões montanhosas, e faz parte da cultura boliviana desde o período pé-
colombiano. A flor possui as cores da bandeira do país, e em janeiro de 1924 foi nomeada “flor nacional”
21
publicada no Diário Oficial de 28 de fevereiro daquele ano, a feira e o nome da praça
foram oficialmente reconhecidos através do Decreto nº 45.326 de 24 de setembro de
2004.
A feira boliviana só acontece aos domingos. Durante a semana, a praça fica
ocupada majoritariamente por moradores em situação de rua, ainda que me tenha sido
relatado por um dos moradores da praça e ajudante da feira, que os moradores da região
passaram a frequentar mais o espaço desde a instalação dos equipamentos de ginástica,
em 2016. A feira abriga uma variedade grande de barracas: gastronomia, produtos
típicos de alimentação, artesanato, equipamentos eletrônicos, cd’ e dvd’s, cabeleireiros e
as famosas barracas de remessa de dinheiro ao exterior. Por fim, serve como palco de
diversas atividades e apresentações culturais relacionadas às datas festivas e tradições
bolivianas, o que tende a aumentar a circulação de imigrantes e de brasileiros por ali.
É importante notar que a ocupação oficial do espaço para realização da feira
criou a possibilidade de transformar a praça em um território de imigração dentro da
cidade, demonstrando que a constituição de fronteiras não se da de forma rígida, pelo
contrário. Esta se tornou um espaço tradicional de encontro de migrantes de
temporalidades diversas, ponto de produção e reprodução de cultura e tradições, de
criação de relações sociais e sentimento de comunidade, de oferta e procura de trabalho,
de reprodução da fé através de práticas religiosas, de manutenção de hábitos de
consumo e gastronomia e, por fim, e encontro de diferentes “territórios”.
Os grupos de brasileiros e bolivianos, em geral, que recorrem à praça para
anunciar trabalho e realizar a contratação de costureiros costumam localizarem-se
próximos aos seus carros, carregando mostruários de roupas na mão e placas de anúncio
e sempre iniciam sua concentração entre o meio e o fim da tarde, na saída da praça no
caminho de volta ao metrô. Nas últimas idas ao campo em 2017 foi possível notar uma
diminuição do número de anunciantes, o que corrobora a fala de muitos imigrantes que
constataram uma desaceleração no mercado da costura – porém não estagnação ou
mesmo recesso. Com esses anunciantes, no entanto, não foi tentada nenhuma
abordagem, uma vez que em geral existe um tensionamento, simbólico, colocado ali
entre pesquisadores “de fora da comunidade” e donos de oficina.

pelo então presidente Bautista Saavedra (fonte: http://www.educa.com.bo/contenido/la-flor-kantuta.


Acessado em: 06/10/2016).

22
1.1.2 O Projeto Si Yo Puedo e a luta pelo acesso à educação.
Comecei a participar do projeto social através de contatos de amigos. Assim, no
primeiro domingo em que estive na Kantuta e após ter travado diálogo com uma das
professoras de português, procurei pela Verônica Yujra, idealizadora e membro do
projeto, e expliquei sobre minha pesquisa e sobre minha vontade de fazer parte do
coletivo. Prontamente fui acolhida com a possibilidade de ser a professora da nova
turma de idioma de português que teria aulas aos domingos na parte da manhã. Assim,
passei a frequentar o espaço da praça também nessa condição, o que me permitiu uma
proximidade com os e as imigrantes que ali se reuniam.
O projeto Si yo puedo nasceu em 2012, a partir das aspirações de Verônica
Yujra, que contou com a ajuda de sua irmã Rocio Yujra. Nascidas em La Paz, Bolívia,
as irmãs migraram com sua família para o Brasil quando crianças, hoje vivendo na
cidade de São Paulo (SILVA, 2015, p. 117). A intervenção do projeto sempre foi no
espaço da Praça Kantuta, aos domingos, a partir da iniciativa de Verônica após passar
por uma experiência de dificuldade em completar seus estudos e acessar o ensino
superior. Assim, ela começou a aparecer na praça para tirar dúvidas e logo ganhou
confiança e respaldo da comunidade local, bem como ajuda de voluntários
sensibilizados pelas pautas da migração e da educação.
O foco do projeto é o fornecimento de informações e orientações jurídicas, de
oferta de empregos e de cursos técnicos e superiores e, principalmente, a tentativa de
promover o acesso à educação pública pelos imigrantes que aqui estão. Assim, o
coletivo organiza além das aulas de português de nível básico a imigrantes cujo idioma
nativo é o espanhol, um cursinho pré-vestibular para o ensino superior e de nível
técnico.
Assim, embora o espaço do trabalho de campo não seja o lócus de observação
das condições práticas de trabalho dos imigrantes, como seria a pesquisa dentro de uma
oficina de costura, ele foi o ponto de partida e de encontro para observar e escutar as
falar, conhecer essas pessoas e também marcar e realizar as entrevistas. Por conta da
dificuldade de acesso às oficinas de costura, a entrada em campo dessa forma facilitou o
contato com esses sujeitos por outra via.
No primeiro capítulo propus uma discussão sobre teorias migratórias dando
ênfase aos autores que discutem as migrações laborais (SAYAD, 1998; SASSEN, 1993;
GAUDEMAR, 1977). Além disso, recupero a construção do sujeito imigrante com o
23
qual trabalho, a partir de uma revisão de parte dos autores brasileiros que já estudaram
esse mesmo tema. No segundo capítulo situa-se a discussão sobre o trabalho escravo
contemporâneo como, na verdade, expressão de uma superexploração do trabalho já
endêmica à nossa sociedade, a partir da teoria da dependência, e repensando as
modificações e aprofundamentos da exploração do trabalho. Por fim o terceiro capítulo
foi reservado para a discussão central sobre os sujeitos imigrantes trabalhadores e as
formas contraditórias em que a reestruturação produtiva e a ideologia neoliberal se
manifestam em suas narrativas e percepções, bem como procurarei refletir impactos
dessa reestruturação material e ideologicamente na organização do trabalho e da classe
trabalhadora (SAYAD, 1998; MARX e ENGELS, 1974; ANTUNES, 1995;
GAUDEMAR, 1977; SASSEN, 1998).

24
Capítulo 1: Mobilidade transnacional do trabalho em São Paulo.

Para pesquisar sobre o tema migratório, não se pode deixar de lado o


contexto do mercado de trabalho, da oferta e da demanda. (...) A chave
era não sentir-se sempre em dívida com uma teoria. As teorias mudam e
a pessoa tem que mudar com elas. (DURAND, 2015, p. 15- 16).

Os fluxos migratórios não são “fenômenos” particulares ao século XXI, são parte
constitutiva dos processos de transformação do mundo e das sociedades e, por isso,
fazem parte de toda nossa história. Todavia, eles não permanecem sempre com as
mesmas características, assumindo traços distintos em diferentes contextos históricos
dos países pelo mundo todo. E muita coisa nova surgiu nas imigrações internacionais
nas últimas três décadas.
A definição “crua” da palavra migração está presente no Glosario sobre
Migración desenvolvido pela OIM, a caracteriza como

movimento populacional até o território de outro Estado ou dentro do


mesmo território que abarca todo movimento de pessoas seja qual for
o seu tamanho, composição ou causas; inclui a migração de
refugiados, pessoas deslocadas, pessoas desenraizadas, migrantes
econômicos.16

É, assim, uma definição bastante ampla, ancorada na palavra movimento. Esse


movimento, ao mesmo tempo em que é protagonizado por indivíduos, sofre influência
de fatores conjunturais, políticos e econômicos que escapam da dimensão individual. É
mover-se no tempo e no espaço. O glossário ainda a define como “Processo [grifo meu]

16
Tradução livre. Trecho originalmente em espanhol retirado do Glosario sobre migración, da
Organização Internacional para as migrações. Disponível em:
http://publications.iom.int/bookstore/free/IML_7_SP.pdf e acessado em: 04/09/2015. Original:
“Movimiento de población hacia el territorio de outro Estado o dentro del mismo que abarca todo
movimiento de personas sea cual fuere su tamaño, su composición o sus causas; incluye migración de
refugiados, personas desplazadas, personas desarraigadas, migrantes econômicos”.
25
pelo qual pessoas não nacionais ingressam em um país com o fim de se estabelecer
nele”.17 É o

ato de sair de um Estado com o propósito de assentar-se em outro. As normas


internacionais de direitos humanos estabelecem o direito de toda pessoa de
sair de qualquer país, incluso o seu. Só em determinadas circunstâncias o
Estado pode impor restrições a este direito. As proibições de saída do país
repousam, em geral, em mandatos judiciais. 18

Estão implicados diversos elementos da sociedade: os atores (os sujeitos que


migram), os meios de comunicação (internet, telefone) e fatores objetivos e estruturais:
cultura, comércio, mercadorias e serviços – tudo imbricado em complexas relações que
hoje formam mobilidades marcadas pela era da globalização (LUSSI, 2015). A palavra
mobilidade nos permite entender de forma mais profunda alguns sentidos contidos na
migração, e abre possibilidade para esmiuçá-la nos vários significados que carrega em
sua “faculdade de mover (-se)” 19.
Os estudos sobre os quais nos debruçamos aqui para pensarmos as relações
locais e globais dos processos migratórios são focados internamente à América Latina,
especificamente as imigrações bolivianas, peruanas e paraguaias ao Brasil que se
intensificaram a partir dos anos 1990. A intensificação do fluxo não é um fenômeno
isolado do contexto geral dos outros países, e deve ser pensada a partir daí.
Para refletirmos sobre as novas realidades dos fluxos migratórios é necessário
compreender as transformações pelas quais passou o sistema econômico e social no qual
vivemos: o capitalismo. A organização econômica se dará a nível mundial, criando
diferentes posições que ocupam os países num sistema hierarquizado de divisão social e
territorial do trabalho, os países capitalistas centrais e países capitalistas periféricos.
Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) não houve outro
momento da história em que tantas pessoas estavam em trânsito: hoje mais de 232
milhões de pessoas vivem fora de seus países de origem, numa estatística em que uma

17
Tradução livre do espanhol. Trecho original: “Proceso por el cual personas no nacionales ingresan un
país con el fin de establecerse en él”. Em: Glosário sobre migración, 2006, p. 32.
18
Tradução livre do espanhol. Trecho original: “Acto de salir de un Estado con el propósito de asentarse
en otro. Las normas internacionales de derechos humanos establecen el derecho de toda persona de salir
de cualquier país, incluido el suyo. Sólo em determinadas circunstancias, el Estado puede imponer
restricciones a este derecho. Las prohibiciones de salida del país reposan, por lo general, en mandatos
judiciales”. Em: Glosário sobre migración, 2006, p. 23.
19
Definição dada pelo dicionário Priberam da língua portuguesa acessado pelo site:
http://www.priberam.pt/dlpo/mobilidade. Acesso em: 15/10/2016.
26
de cada 35 pessoas é migrante (SOUZA, 2015). O Departamento de Assuntos
Econômicos e Sociais da ONU (DESA), em relatório emitido no dia 13 de janeiro de
2016, constatou um aumento de 41% no número de migrantes internacionais, somando
um total de 244 milhões de pessoas que vivem em países diferentes dos seus de
origem20, ressalvando que esse número provavelmente é maior, se contabilizados os
migrantes considerados “irregulares” 21 e que por isso escapam às estatísticas oficiais.
Intensos fluxos migratórios são percebidos com estranheza e receio pelas
sociedades de destino – pelos nacionais de um país, de um Estado. Os autóctones, como
também podemos chamá-los, compõem a maior parte da população hoje, mas ainda que
sejam minoria em relação a eles, os e as imigrantes tem muita história para contar sobre
as dificuldades que enfrentaram em seus trajetos em decorrência das desigualdades
sociais e exclusões produzidas a partir dessas segmentações da sociedade. As migrações
provocam tensões sociais, choques culturais e políticos. Levantam também a discussão
sobre o trabalho: há trabalho para todo mundo? Em quais condições?
As transformações pelas quais passou a sociedade capitalista após a grande crise de
1970 e a reestruturação produtiva foram o que em grande medida permitiram a criação
do fluxo migratório aqui refletido. Mais do que isso, transformaram a qualidade do
trabalho de milhares de trabalhadores e trabalhadoras que se dispuseram a atravessar
fronteiras e encarar-se como estrangeiro em nome da mudança de vida. Aqui, nossa
imigração está vitalmente ligada ao trabalho: a intensificação do fluxo veio no bojo das
transformações neoliberais do mundo do trabalho.
Há diferentes teorias que surgem para explicar os fenômenos das migrações, e
temos acordo com a leitura de uma série de autores que reconhecem o elemento da
transnacionalidade nos sujeitos imigrantes – o fato de não possuírem necessariamente o
desejo de permanecer em um só lugar (CÔRTES, 2013; TARRIUS, 2000) e terem a
perspectiva muitas vezes de retornar ao local de origem, embora em diversas entrevistas
aqui realizadas os e as imigrantes chegados logo no início dos anos 1990 tenham
enfatizado o desejo de permanecer no Brasil, mesmo que com eterna saudade do país de
origem.

20
Informações extraídas do site da ONU: https://nacoesunidas.org/numero-de-migrantes-internacionais-
chega-a-cerca-de-244-milhoes-revela-onu/. Último acesso em: 14/05/2016.
21
Utilizamos o termo “irregular” por entendermos que não existem migrações e migrantes que sejam
irregulares – existem leis e regulamentos que classificam sujeitos migrantes “legais” e sujeitos “ilegais” a
partir de uma série de critérios. De toda forma, a discussão sobre migração irregular não é a central neste
trabalho, embora apareça em alguns momentos de forma tangente.
27
Com a perspectiva de ficar ou ir embora, a imigração latino-americana se
intensificou desde a década de 1990, o que chamou a atenção de organizações não
governamentais e também da Academia. Envolve tensionamentos simbólicos e
políticos, e passou a ser mais difundida como objeto de diversas pesquisas. Grande parte
delas identificou uma ligação profunda com a temática do trabalho: é que os
trabalhadores imigrantes escancararam a realidade da precarização do trabalho dentro de
grandes centros urbanos, o chamado trabalho análogo a de escravo, além de expor à
sociedade de destino suas contradições e fissuras de formas mais explícitas.

No que diz respeito à migração aqui abordada, a discussão sobre exploração do


trabalho passou a ser central e a reflexão se deu em torno disso: a migração se
transformou num vetor dessa discussão – um vetor indispensável para pensar as
transformações contemporâneas nas velhas formas de controle do trabalho. Por isso, é
difícil desvincular migração e trabalho, pois é a partir desta relação que podemos
compreender algumas formas contemporâneas de mobilidade do trabalho nos processos
de produção, circulação e consumo da economia capitalista no setor de confecção na
sociedade brasileira contemporânea.

Neste capítulo, a reflexão recairá sobre os imigrantes latino-americanos que


vivem em São Paulo e são trabalhadores das oficinas de costura. Aqueles que,
explicando-me suas realidades e visões de mundo, ajudaram-me a entender teorias e
construir reflexões. Corroboro a tese de que estas oficinas servem de dispositivo de
inserção dessa imigração (CÔRTES, 2013) no país e que a partir da necessidade de
força de trabalho na indústria de vestuário é que foi possível criar rotas de migração no
interior da America Latina (SILVA, 1997, 2005, 2006; FREIRE, 2008; SOUCHAUD,
2011, 2012; ROLNIK, ANO; CÔRTES, 2013; BATTISTI, 2014, FREITAS, 2010;
SOUZA, 2015; VILLEN, 2015; SILVA, 2015).

1. Os e as imigrantes latino-americanos e as oficinas de costura: o


que nós já sabemos.

Diversas pesquisas brasileiras desenvolveram análises da imigração contemporânea


ao Brasil, relacionando-a de forma profunda com a reestruturação da produção
capitalista e os efeitos sociais e econômicos que essa gerou nos países de origem e nos
28
países de destino. Essas investigações apontaram que as novas modalidades de
imigração representam uma grande transformação e intensificação dos fluxos de
capital, bem como outras mudanças estruturais da sociedade, decorrentes em parte da
chamada “globalização” (BAENINGER, 2012; REQUIÃO, 2015; BATTISTI, 2014,
et.al).

O entendimento do qual partimos é de que globalização é um processo


(SCHILLER; WIMMER, 2002) – algo contínuo no desenvolvimento das sociedades
capitalistas. Ocorre num movimento de “mão dupla”, e está vitalmente ligada ao
desenvolvimento e expansão do capitalismo. Ela envolve a necessidade econômica e
acompanha as transformações e exigências do mercado por onde circulam as
mercadorias, mas também é permeada pelo preconceito, xenofobia e discursos
“conservadores” (MAZZA, 2015, p. 241). Ancorada no seio das transformações do
capital, podemos dizer que sempre ocorreu de forma desigual pelo globo, no
entendimento de que o “capitalismo desde o início tem sido um sistema de produção
dependente de interconexões globais entre pessoas do mundo todo” (SCHILLER;
BASCH; BLANC, 1995, p. 50) 22.

Dessa forma, a globalização pode ser compreendida como o “ápice do processo


de internacionalização do mundo capitalista” (SANTOS, 2008, p. 23). Esse mundo
globalizado apresenta-se como contentor de elevado progresso da ciência e da
tecnologia, maior facilidade no acesso à informação (embora não necessariamente essa
informação seja a melhor ou a que corresponde à realidade) e ao consumo e,
consequentemente, a redução do espaço-tempo. As realidades distintas pelo globo pelo
menos parecem estar mais facilmente conectadas. Todos esses elementos, diria Santos,
tem sua dimensão de verdade, mas dizer que globalização é só isso é não conseguir
entendê-la em sua contradição.

A globalização real é perversa e apesar de conter aspectos positivos, tem como


resultado amplo aprofundar diferenças locais (SANTOS, 2008, p. 20). Ela está ligada a
um Império do dinheiro e seus ganhos estão, em suma, restritos a uma parcela muito

22
Trecho traduzido livremente do original em inglês: “Capitalism from its beginnings has been
a system of production dependent on global interconnections between the people of the world”
(SCHILLER; BASCH; BLANC, 1995, p. 50).

29
pequena da população. A maior parte das pessoas pelo mundo todo começam a
experimentar diversos outros elementos contidos nesse processo: o desemprego
crescente, a precarização da vida e do trabalho, deterioração da qualidade de vida, bem
como aprofundamento dos “males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos,
a corrupção” (SANTOS, 2008, p. 20).

No período de intensificação de processos de globalização sobre o qual nos


debruçamos, o Brasil tornou-se o destino mais procurado de um grande contingente de
imigrantes dos países vizinhos e o fluxo imigratório se tornou mais palpável (SILVA,
1995, 2006, 2008; BATTISTI, 2014). Nos anos 1970 a Venezuela e a Argentina eram
os dois grandes países que mais recebiam imigrantes, mas nos últimos 35 anos o Brasil
se configurou como uma “área de expansão das migrações latino-americanas”
(BAENINGER, 2012, p. 15), em geral da imigração boliviana, paraguaia e peruana
principalmente (SILVA, 1995; BAENINGER, 2012; FERNANDES, 2015). Também é
possível falar do aumento, em 2010, da imigração haitiana e a partir de 2014 da
intensificação do fluxo de África.

Nos últimos 30 anos, a partir da década de 1990, o país passou a ter uma política
central de combate à inflação e voltada para o suposto crescimento econômico e
inclusão social, a partir de premissas ideológicas do neoliberalismo. Foi aí que em
grande medida se consolidou o processo de internacionalização da economia brasileira,
seguindo o fluxo das transformações econômicas mundiais. Em 1994, o então
presidente da República Fernando Henrique Cardoso lançou o Plano Real como forma
de estabilização econômica. Seus dois governos foram fortemente marcados pelos
aspectos neoliberais, sobretudo as privatizações de empresas estatais e a entrada
massiva de capital estrangeiro no país, que, como mencionado, passou a integrar o
mercado mundial globalizado, embora sem taxa de crescimento expressiva
(FERNANDES, 2015, p. 24).

Nesse meio tempo o mercado de trabalho brasileiro sofreu diversas


transformações na organização da produção. Houve um deslocamento da força de
trabalho nacional para setores de maior remuneração, o que liberou espaço para
trabalhos menos qualificados em setores da indústria de transformação, por exemplo,
cuja remuneração também era mais baixa. Isso gerou uma demanda por força de

30
trabalho, que foi atendida por trabalhadores imigrantes que além da disposição em
migrar, uma vez que a vida em seus países não caminhava de acordo com uma boa
perspectiva, também preenchiam os principais requisitos de uma força de trabalho que
pudesse custar menor, possibilitando a inserção do país no mercado mundial
(FERNANDES, 2015, p.24).

A maioria dos migrantes da costura sai do Peru, Paraguai e Bolívia (CÔRTES,


2013; FERNANDES, 2015). A presença de imigrantes paraguaios no país é
historicamente marcada pela questão do alto trânsito fronteiriço entre as nações, e a de
bolivianos se iniciou na década de 1950, principalmente, quando Brasil e Bolívia
firmaram acordo de incentivo à migração, em especial de estudantes (FERNANDES,
2015, p. 36 apud. SOUZA, 2008). Ambas as migrações aumentaram a partir da década
de 1990, em que começou a se intensificar também a migração peruana ao país. Um dos
fatores apontados para a criação desse fluxo migratório é o fato de que o Brasil faz uma
longa fronteira com esses países – incluindo trechos de travessia pelo Acre e Amazonas
(FERNANDES, 2015, p. 29). Além disso, o custo financeiro da viagem é bastante
acessível.

Acompanhei a chegada e partida de muitos imigrantes novos durante todo o


trabalho de campo da pesquisa, principalmente pelo contato com as turmas de
português. A primeira turma de 2017 teve uma quantidade de 60 alunos matriculados
desde seu início, sendo que desse número, quase metade era recém-chegada ao Brasil.
Muitos com quem conversei que estão aqui há um tempo maior, entre um e três anos,
reclamaram das mudanças e dificuldades econômicas que vem sentindo no ramo da
costura, mas em geral também expressam a vontade de continuar aqui e tentando, apesar
de conhecer pessoas que retornaram aos seus países de origem.

Da mesma forma que olhamos para cá em busca de entender quais elementos


tornaram a migração ao Brasil atrativa, também precisamos pensar as sociedades de
destino: o que explica a saída de grandes grupos de indivíduos do seu país de origem?
Assim, quando escutamos as histórias e vemos as pesquisas já feitas, percebemos que os
principais motivos que levaram esses à decisão de emigrar não escapa a centralidade
que assume o trabalho na vida em sociedade. Por mais que muitos aspectos subjetivos
motivassem esses imigrantes individualmente a optarem por migrar, figura entre eles a

31
perspectiva de mudar de vida e ascender economicamente. O projeto migratório, isto é,
a elaboração de um plano que envolve a saída, o trajeto e a chegada, gira em torno das
melhores possibilidades diante de um investimento pessoal para conseguir a tão deseja
ascensão social (BATTISTI, 2015; SILVA, 2008, et. al).

No período em que estamos debruçados não só o Brasil passou por intensas


transformações econômicas e sociais. A receita neoliberal para salvar os países da crise
econômica envolveu medidas também nos países daqui vizinhos. Essas medidas
geraram efeitos distintos nestes em relação ao Brasil, o que explica a grande quantidade
de emigrantes que produzirão nesse período.

Em seu estudo sobre a emigração da Bolívia, que é com a qual tivemos mais
contato, Silva (1997) apontou dois fatores importantes para esta ocorrer: a crise no setor
mineiro que atingiu o país e uma reforma agrária que gerou ampla evasão do campo
para as cidades, gerando uma instabilidade econômica e elevando o índice de
desemprego. Na época de realização de seu estudo, as estatísticas apontavam que 20%
da população nativa vivia fora da Bolívia (SILVA, 1997 apud. FREIRE, 2008, p. 86).
Essa migração ao Brasil não é recente, tendo se iniciado na década de 1950. O que
ocorreu foi uma transformação do perfil dos imigrantes: na época inicial eram jovens
que vieram ao país para estudar ou por motivação política.

A Bolívia, por exemplo, foi fortemente influenciada pela crise de 1970. De


acordo com Ribeiro (2015) e Wanderley (2009) até a década de 1980 o país viveu
grande instabilidade política e entre 1980 e 1985 a taxa de desemprego cresceu de 5,8%
para 18,2% e a de subemprego de 48,5% para 57,3% (WANDERLEY, 2009, p. 164).
Em 1985 as reformas neoliberais começariam a ser implementadas marcando a entrada
do modelo neoliberal no país. Já em 1985

o modelo de Capitalismo de Estado foi abandonado, transferindo-se ao


setor privado a responsabilidade principal de investimento produtivo.
O Estado assumiu o papel de regulador e garantidor da estabilidade
macroeconômica e de promotor dos investimentos públicos em saúde,
educação, saneamento básico e infraestrutura. Com o Decreto 21.0 0,
também conhecido como a nova política econômica, o investimento
privado e a abertura e integração da economia na globalização

32
constituem as novas bases do crescimento economico”
(WANDERLEY, 2009, p. 165).

Assim, os fatores econômicos que organizavam a sociedade boliviana, o


desemprego, a precarização do trabalho, o grande êxodo rural rumo às cidades e a
desigualdade social, frutos das medidas neoliberais apontadas acima, gerarão a
mobilização da força de trabalho boliviana rumo a outros países. Nóbrega (2009)
chamará de diáspora boliviana, afirmando que o país se conformou como um grande
exportador de força de trabalho para países como Brasil, Argentina, Espanha e EUA
(RIBEIRO, p. 26 apud. Nóbrega, p. 183, 2009). Do ponto de vista macroeconômico a
Bolívia é, como o Brasil, um país capitalista periférico, mas durante o período analisado
e relacionalmente entre os dois países, o Brasil despontou como potência econômica
“emergente”, o que consequentemente aumentou os deslocamentos migratórios intra-
regionais da América Latina (REQUIÃO, p. 10 apud. PATARRA, BAENINGER, 1995,
p. 81).
Os e as imigrantes que começaram a chegar a partir da década de 1990 eram em
sua maioria jovens e/ou em idade econômica ativa. Esse perfil ainda permanece o
mesmo atualmente. Segundo traçaram as pesquisas, a maioria está entre 18 e 25 anos e
possui baixa formação escolar e profissional; é ainda composta por homens, embora a
migração feminina tenha aumentado (CÔRTES, 2013; FREITAS, 2009, 2014;
RIBEIRO, 2015; ROSSI, 2005; SILVA, 2005, 2006; SOUCHAUD, 2011, 2012;
SOUZA, 2015).
Os grupos de imigrantes chegados aos primeiros anos da década de 1990, no
entanto, por conta de possuírem o perfil supracitado poderiam não autorizados a entrar
no país, a depender da leitura dos agentes migratórios que fiscalizavam as fronteiras
respaldados pelo Estatuto do Estrangeiro, pois o documento exigia “qualificação
profissional” do trabalhador – algo que poucos imigrantes possuíam, ou não
conseguiam comprovar por causa dos papéis necessários para isso. Num primeiro
momento essa restrição acabou por contribuir para que muitos imigrantes entrassem de
forma irregular, gerando outros problemas relacionais, como o tráfico de pessoas e o

33
contrabando23, além dos problemas da superexploração do trabalho, na figura do
trabalho escravo contemporâneo (FERNANDES, 2015, p. 32).
A mais recente crise global do capitalismo, desde 2008, também se reflete nesse
fluxo migratório. Nesse período o Brasil despontou no cenário da economia mundial
com uma boa taxa de crescimento do PIB, além de diversos investimentos econômicos
nacionais, o que o consolidou como um país “em crescimento”, atraindo assim mais
trabalhadores estrangeiros (FERNANDES, 2015, p. 24). Além disso, os países do
Hemisfério Norte, principais destinos escolhidos, iniciaram uma série de políticas de
endurecimento em relação à imigração em seus territórios e até de expulsão da força de
trabalho migrante (FERNANDES, 2015, p. 22). No Brasil, gradativamente diminuíram
os imigrantes vindos da Europa e do Japão, principalmente, aumentando o número de
imigrantes dos países da América Latina, segundo os dados abaixo, que representam o
número de estrangeiros (estrangeiros e naturalizados) que residiam no Brasil entre 2000
e 2010. 24

2000 2010
País de Nascimento
Volume % Volume %
Portugal 213.203 31,18 137.973 23,28
Japão 70.932 10,37 49.038 8,27
Itália 55.032 8,05 37.146 6,27
Espanha 43.604 6,38 30.723 5,18
Paraguai 28.822 4,21 39.222 6,62
Bolívia 20.388 2,97 38.826 6,55
Tabela 1. Fonte: IBGE Censo Demográfico 2000 e 2010 apud. FERNANDES, 2015.
Essas migrações configuram-se como coletivas, contando com uma grande rede
que as viabilizam e que são muitas vezes composta por núcleos familiares de indivíduos

23
Há dois tipos de crimes que envolvem esses imigrantes irregulares: o tráfico de pessoas, onde há o
recrutamento e deslocamento entre as fronteiras até o local de trabalho final realizados pelo “gato”; E o
contrabando de pessoas, que resume-se a ficar na fronteira atravessando as pessoas, deixando o resto por
conta delas mesmas”. (ROSSI, 2005, p. 20). É importante ressaltar que o tráfico de pessoas é conhecido
como um tipo de imigração (SIQUEIRA, 2013, p. 26). Já no contrabando é mais comum que a pessoa vá
por vontade própria, sendo ajudada com as passagens e travessias, mas criando uma relação de
interdependência menor. O contrabando configura um crime contra o Estado, enquanto que o tráfico é um
crime contra a pessoa (NOVAES, 2013, p. 409).
24
O censo anterior, de 1990, não possui as informações organizadas por nacionalidade.
34
que já haviam migrado anteriormente. Além disso, em países como Bolívia e Paraguai,
observou-se a existência de formas locais de incentivo da migração, viabilizadas por
agenciamento, nos quais se propagandeava a garantia de trabalho e moradia aos que
optassem por emigrar (MALDONADO, 2015; ROSSI, 2005). Foi importante para
consolidação dessa rede, por fim, que os coreanos abrissem mão da fase da produção
material da indústria, isto é, das oficinas, e se dedicassem ao momento da criação e da
venda da produção, e que bolivianos e paraguaios há mais tempo no país tomassem o
lugar de proprietários das oficinas, novamente ativando uma rede migratória familiar.
(SOUCHAUD, 2012), algo narrado frequentemente nas entrevistas feitas em campo.
Atualmente, cerca de 200 mil imigrantes bolivianos vivem no Brasil, segundo
dados cruzados da Polícia Federal, Pastoral do Migrante e IBGE (SOUZA, 2015). Além
disso, apenas na cidade de São Paulo, há também entre 15 e 20 mil paraguaios
(MALDONADO, 2015). Dispositivos jurídicos que tentavam mirar na questão da
irregularidade e do tráfico de pessoas - fortemente ligados à ocorrência de trabalho
escravo contemporâneo - como a Lei da Anistia25 e o Acordo de Livre Residência do
Mercosul26, ambos de 2009, também aparecem como mecanismos de incentivo à

25
A Lei da Anistia (Lei nº 11.961 de 02 de julho de 2009) foi promulgada pelo então presidente da
república Luis Inácio Lula da Silva (PT) que permitia aos imigrantes que haviam ingressado de forma
irregular no Brasil até o dia 1º de fevereiro daquele ano, solicitar regularização da situa situação
migratória. Na época da promulgação o governo contabilizava cerca de 50 mil estrangeiros vivendo no
país de forma irregular. Na mesma época de promulgação dessa Lei foi encaminhado ao Congresso uma
nova proposta de Lei que substituísse o Estatuto do Estrangeiro, documento que é citado e regulamente
diversas questões na Lei da Anistia. Mauge foi uma das que conseguiu regularizar sua situação a partir
dessa lei, recordando-se das longas filas que se formavam, me narrou que nessa ocasião em que “aí hubo
indianos, coreanos, todo em la ciudad...”(MAUGE, 2015). A Anistia significava, na época, a obtenção de
uma série de documentos sem os quais tornava mais difícil ainda o acesso da população imigrante que
vivia no país à informação e à direitos que modificassem sua qualidade de vida, como Carteira de
Trabalho (CTPS), documento de identidade, CPF, entre outros.

26
O Acordo de Livre Residência do MERCOSUL e países associados, foi assinado por ocasião da XXIII
Reunião do Conselho do Mercado Comum, realizada em Brasília em dezembro de 2002. Porém, o
documento foi promulgado através do Decreto nº 6.975 apenas em outubro de 2009. No documento
consta-se como principal finalidade buscar “reestabelecer regras comuns para a tramitação da autorização
de residência aos nacionais dos Estados Partes e Associados do MERCOSUL" 26. O acordo é valido para
os países signatários: Brasil, Bolívia, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile e Estados associados. Pelo
conteúdo do documento, se expressa a vontade dos países em fortalecer os vínculos entre eles, no
35
migração, já que buscaram consolidar a relação entre os países signatários do Acordo,
no sentido de “oficializar” as rotas migratórias que já estavam formadas.
As pesquisas apontam que a maioria dos imigrantes latino-americanos se
instalava nas regiões centrais da cidade, como Brás, Bom Retiro e Pari, e que desde o
início dos fluxos migratórios tornaram-se referência histórica da imigração (CÔRTES,
2013; FREIRE, 2008; ROSSI, 2005; SILVA, 1995, 1998; SOUCHAUD, 2011, 2012).
Algumas mais recentes, a partir de 2010, no entanto, também apontaram para uma
descentralização desses imigrantes para outras regiões da cidade e, inclusive, para as
cidades vizinhas como Guarulhos, por exemplo. (CÔRTES, 2013).

Segundo informações do Ministério da Justiça divulgadas em matéria veiculada


em cinco de fevereiro de 201227, desde 2009, o número de peruanos ingressantes no
Brasil aumentou três vezes, além de um aumento de 70% de paraguaios e bolivianos
que aqui ingressavam – dados a partir de números oficiais. Na época o então secretário
nacional de Justiça, Paulo Abrão, citou que os três principais motivos para o aumento
do fluxo em questão eram um suposto boom econômico vivido pelo Brasil, o Acordo de
Livre Residência do MERCOSUL e a Lei da Anistia, que regularizou a situação de mais
de 41 mil imigrantes que viviam de forma irregular no país (SOUCHAUD, 2012).

sentindo de aprofundar mecanismos que favoreçam esses vínculos, pensando na resolução do que ficou
colocado como “situação migratória” – que se traduz no problema, reconhecido no documento, do
“tráfico de pessoas para fins de exploração de mão-de-obra e aquelas situações que impliquem a
degradação da dignidade humana”. Assim, é possível situar como marco histórico da criação e
consolidação do Acordo o momento de intensificação do fluxo migratório entre países da América Latina.

O Acordo cria, em tese, mecanismos que facilitem a circulação entre fronteiras dos Estados signatários e
fixação de uma pessoa de uma nacionalidade em território de outra nacionalidade, mediante
preenchimento dos requisitos presentes no documento. O documento parece ter gerado mais facilidade
para a livre circulação de migrantes diminuído o problema do tráfico de pessoas, por exemplo, mas não
me debrucei sobre uma pesquisa empírica no sentido de buscar dados que avaliem a medida. E importante
ressaltar que permanece em vigor o Estatuto do Estrangeiro, que não retira de cena a arbitrariedade
presente na permissão ou não de entrada de migrantes no território nacional, a partir dos agentes que ali se
encontram.

27
Notícia acessada pela primeira vez na elaboração do projeto de pesquisa inicial e acessada novamente
em 12/11/2016 através do link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/24069-brasil-recebe-57-mais-
mao-de-obra-estrangeira.shtml

36
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2013 o Brasil
contava com 120.056 trabalhadores estrangeiros formais, 28 número subestimado, visto
que nas oficinas de costura, por exemplo, é praticamente inexistente qualquer vínculo
empregatício formal. E, segundo dados da Polícia Federal, no período de 2006 a 2012
houve aumento de 34% de estrangeiros no país, passando de 1.175.353 para 1.575.643
pessoas imigrantes. Desses, 805.668 declararam residir em São Paulo (51,1%), 325.622
no Rio de Janeiro (20,6%) e os quase 30% restante em outros estados (FERNANDES,
2015, p. 28).

A migração para a região central da cidade de São Paulo demonstra a ligação


vital que esta tem com a indústria de vestuário, que também se localiza nessa região
historicamente. De todo modo, são as oficinas de costura os principais locais a absorver
a força de trabalho imigrante latino-americana, como se demonstrou nas pesquisas já
feitas (SILVA, 1995; ROSSI, 2005; CÔRTES, 2013, et. al).

As oficinas incorporaram perfeitamente as transformações advindas da


reestruturação produtiva após a crise de 1970, e se consolidaram como células
fundamentais da cadeia produtiva, agora fragmentada, da indústria de vestuário. Elas
podem ser classificadas como de médio e pequeno porte e são flexíveis, atendendo a
prazos curtos, uma vez que os efetivos e horários organizam-se em torno da demanda
(SOUCHAUD, 2012; FREIRE, 2008; CÔRTES, 2013).

O setor da costura, inclusive liga-se a diferentes imigrações em São Paulo ao


longo do século XX e XXI. A indústria de confecções estabeleceu-se na cidade desde o
final dos anos 1930, inicialmente com a migração libanesa, e com a produção voltada
majoritariamente para roupas íntimas, localizando-se no Brás e no centro (FREIRE,
2008, p. 55). Os libaneses foram substituídos pelos judeus que se concentravam no Bom
Retiro, com investimentos principalmente na moda feminina. Na época, a migração
interna de estados do Nordeste para a cidade de São Paulo era a principal provedora da
força de trabalho dessa indústria, e a população nordestina passou a compô-la,
principalmente através da venda de artigos populares, até mais ou menos a década de
1980 (FREIRE, 2008, p. 55).

28
Dados retirados do site: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/03/trabalho-estrangeiro-
no-brasil-cresce-50-em-tres-anos. Acessado em: 21/10/2016.
37
A cidade de São Paulo possui por volta de um terço da produção nacional da
indústria de confecções e vestuário, e um dos maiores aglomerados de confecção do
mundo, além dessa indústria ser o segundo setor industrial de transformação que mais
agrega valor ao produto final (KONTIC, 2007 apud. FREIRE, 2008, p. 52). É curioso
pensar que a produção dessas oficinas passa por atender a demanda de grandes marcas
conhecidas, até o mercado informal e popular, onde os próprios donos das oficinas
escoam parte do que é produzido, em feiras ambulantes da cidade, como o caso da
Feirinha da Madrugada.
Desde meados da década de 1960 até a de 1980, outra migração surgiu com
força na cidade, tomando lugar nessa indústria: os coreanos. Ela influenciou bastante
nas transformações ocorridas na organização da produção, pois, para conseguirem se
inserir e competir com a indústria local, os imigrantes coreanos introduziram a
organização conhecida como sweating labour – um trabalho de custos reduzidos, que
empregava majoritariamente o núcleo familiar, com produção doméstica (SOUCHAUD,
2012). A partir da década de 1980 essa indústria se modernizou e reorganizou,
adequando-se às reestruturações do mercado e demandando maior quantidade de força
de trabalho. Foi nesse cenário que o fluxo migratório de países vizinhos ao Brasil,
principalmente da Bolívia, aumentou. Souchaud citou que muitos entrevistados
declararam que havia uma dificuldade grande em se encontrar força de trabalho
brasileira para ser empregada na costura, por conta da desvalorização do trabalho.
Ainda na década de 1970 o Brasil impôs uma restrição à migração coreana,
forçando-a a procurar uma rota alternativa de entrada. Assim, os imigrantes coreanos
começaram a passar pela Bolívia para chegar ao Brasil, e daí se se configurou um
29
esquema de agenciamento de migração (FREIRE, 2008, p. 89) . Os coreanos
começaram a se distanciar da fase da produção específica, isto é, das oficinas, que
passam a ser geridas por bolivianos e paraguaios que chegaram junto aos primeiros
29
Nesse período e até o início dos anos 2000 grande parte das migrações que envolviam essa rota eram
classificadas como ilegais, o que pode abrir espaço para a questão do tráfico ou contrabando de pessoas.
O Brasil ratificou o Protocolo de Palermo, documento que define os termos do contrabando como a “(...)
exploração da facilitação da entrada de imigrantes de forma irregular em um país” (FREIRE, 2008, p. 92).
Além disso, o tráfico de pessoas é definido como “(...) o recrutamento, o transporte, a transferência, o
alojamento ou o acolhimento de pessoas recorrendo à ameaça ou o uso de força ou outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega e aceitação de pagamentos ou benefícios para a obtenção de consentimento de uma pessoa que
tenha autoridade sobre a outra para fins de exploração” (Ministério da Justiça, 2007 apud. FREIRE, 2008,
p. 67). Embora alguns imigrantes que passaram pela pesquisa tenham relatado trajetórias migratórias que
envolva essas duas questões, o foco da pesquisa não é discutir a travessia de fronteira e os mecanismos de
legalização da entrada e saída dos territórios.
38
fluxos latino americanos ao país, antes dos anos 199030. Os coreanos passaram a ter
suas próprias marcas e lojas principalmente na região do Bom Retiro, trabalhando com
atacado e varejo, agora na posição de contratantes das oficinas. Junto, chegaram grandes
empresas de capital estrangeiro, as transnacionais, que começaram a investir no país
com a abertura do mercado nas décadas de 1970 e 1980 (SILVA, 1995; ROSSI, 2005;
FREIRE 2008; SOUCHAUD, 2012; FREITAS, 2009; CÔRTES, 2013, et. al).
Um dos mecanismos práticos de coerção dentro das oficinas sentidos
principalmente por trabalhadores imigrantes era a retenção de documentos, uma vez que
o esquema da migração é controlado desde a origem, muitos donos de oficina tem em
sua posse os documentos dos seus trabalhadores. Por fim, o medo da deportação ou de
algum tipo de criminalização da parte do dono da oficina sempre apareceram com
grande peso na ligação entre imigrante e oficina, e foram narrados diversas vezes em
minhas entrevistas também, bem como o problema do pagamento, uma vez que a
maioria recebe em espécie sem nenhum controle formal.

As transformações na indústria de vestuário de São Paulo, portanto,


acompanham movimentos de reorganização da economia a nível mundial, a fim de
adaptar ao mercado suas formas de produção de mercadoria e de geração de valor. Os e
as imigrantes que aqui chegam, passam a compor o desenvolvimento e o funcionamento
dessas empresas, e, também, a atuarem como organizadores de fluxos migratórios,
através das redes de migração desde seus países de origem até o Brasil, com facilitações
de migração e ligações de familiares, conhecidos e novos migrantes (SOUCHAUD,
2012; ROSSI, 2005; CÔRTES, 2013; et. al). Em todas as entrevistas realizadas com os
e as imigrantes, conhecidos e amigos, primos e tios eram citados como facilitadores ou
propiciadores da migração: “eu tinha um amigo que...”.
Os ventos que impulsionam homens e mulheres a migrar pelo mundo estão
sendo produzidos a todo o momento, impossíveis de serem controlados. A
disponibilidade que esses imigrantes apresentam em vender sua força de trabalho,
entrando em fluxos migratórios econômicos e submetendo-se a trabalhos muitas vezes
de extrema exploração, é uma chave importante para entender o deslocamento sobre o
qual nos debruçamos. A afinidade entre essa migração e o trabalho não é um produto do
acaso. Dessa forma, é mais qualitativo compreender grande parte dos fluxos migratórios

30
Discutiremos mais profundamente o perfil das migrações latino-americanas contemporâneas ao Brasil
no capítulo seguinte.
39
a partir de uma leitura teórica que permita entender o deslocamento e a disponibilidade
de se trabalhar.

Imigração como mobilidade do trabalho.


A abordagem teórica dessa pesquisa é composta por dois principais autores. O
primeiro é Abdelmalek Sayad, que em 1998 escreveu o livro A imigração ou os
paradoxos da alteridade. Nesse livro o autor lida com um contexto específico de
imigração, que se da numa relação entre países colonizador/colonizado, Argélia e
França. O modelo teórico pensado por Sayad é predominante dentro dos estudos
migratórios brasileiros atuais, respondendo bem aos desafios em pensar o deslocamento
de sujeitos imigrantes que são também trabalhadores.
Sua teoria nos possibilita entender melhor quem é o sujeito imigrante – aquele que
se dispõe, por uma série de motivos, a realizar um deslocamento entre territórios
diferentes: a mover-se entre fronteiras, a ser transnacional. Também caracteriza a
migração como um fenômeno social total, o que envolve as sociedades de origem e de
destino. A abordagem de Sayad, portanto, consegue relacionar subjetividades, na voz
dos e das imigrantes, com questões estruturais da sociedade. Isso é importante, pois
localiza um sujeito político e social dentro de um contexto histórico, construindo a
possibilidade de uma relação dialética que de conta das diversas contradições sociais
que nos constroem.
O segundo autor é o responsável pela teoria da mobilidade do trabalho exposta no
livro mobilidade do trabalho e acumulação de capital (1977), Jean Paul de Gaudemar.
Esse autor em geral é muito mais lido no campo da geografia, embora pela leitura aqui
proposta tenha sido possível não só aproximá-lo de Sayad e utilizá-lo para refletir sobre
as migrações dentro de um sistema econômico mundial que inter-relaciona os diversos
países que o compõe como, mais do que isso, gerou a possibilidade de pensar as
dimensões micro da migração, a subjetividade e a ligação entre os diferentes sujeitos
humanos, os trabalhadores do mundo.
O que é central dos estudos de Sayad (1998) é a percepção de que a imigração é
um fato social total. A migração não pode ser pensada sem se levar em conta a
sociedade de origem (de emigração) e a sociedade de destino (imigração), relacionadas
entre si dentro do sistema econômico mundial (SAYAD, 1998). O peso da relação de
desigualdade econômica e social que existirá entre os países gera muitas vezes a relação
40
de dominação que se materializa na vida do imigrante e que influencia sua condição de
existência, influindo no “contrato” que é efetuado acerca da sua entrada e manutenção
num determinado país.
Uma das ideias que tangencia todo o livro de Sayad é a de que a imigração
carrega um paradoxo que se explicita no choque, provocado por ela mesma, entre
nacionais e não-nacionais, isto é, os supostamente diferentes irreconciliáveis. Assim, a
imigração representa um desafio ao conservadorismo político e social e aos discursos de
“pureza nacional”. Nessa época, o autor já havia captado o que chamaria da
inconstância que a migração representa como objeto de estudo, no sentido de que se
transforma velozmente dentro das transformações do mundo, demandando atenção
constante das ciências humanas.
Apesar de ser parte do processo constitutivo da sociedade, o que em tese lhe
daria um status de “normalidade”, a imigração coloca em contradição o fato e o direito,
isto é, de um lado a suposta liberdade de (i)migrar, o direito humano de “ir e vir” e, do
outro, a realidade concreta em que vive aquele que faz essa escolha de viver como
imigrante. Sua existência e representação social possuem a característica da
ambiguidade, a partir de um “duplo pertencimento”: o ser “daqui”, a sociedade de
destino; e ser “de lá”, a sociedade de origem. Por outro lado, o/a imigrante representa
também uma “dupla ausência”: não é “daqui” e nem “de lá”. Uma vez que em geral se
caracteriza como um segmento da população gerido por mecanismos específicos a
“estrangeiros”, sua existência na sociedade de destino é marcada fortemente por um
“estado provisório” que se prolonga indefinidamente de forma permanente:
provisoriedade esta que é também um estado duradouro em que se vive (SAYAD, 1998,
p. 45).
Isso acontece porque é a sociedade de destino, a partir de sua regulamentação e
legislação e a partir também dos interesses políticos e econômicos conjunturais, que
define a entrada e inserção do imigrante em seu território. O mecanismo da
provisoriedade, inclusive, é um dos elementos que em geral estrutura a regulamentação,
a partir da realização do que Sayad caracterizará como uma espécie de balanço,
realizado pelo Estado e capital privado, onde se mede custos e vantagens em se ter
trabalhadores imigrantes num determinado momento histórico e num determinado país.
A reflexão do autor sobre qual seria “a definição mais próxima do modelo ideal
típico do imigrante e da imigração (...)” (SAYAD, 1998, p. 54) o levou a concluir que
41
“um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho
temporária, em trânsito” (SAYAD, 1998, p. 54). E que, além disso, é o Estado quem
cumpre um papel indispensável não só de regulamentação da imigração em si, como de
reconhecimento desse status de essencialmente ser o imigrante também um trabalhador
– e isso aparecerá em todas as discussões em que pese a questão migratória.
Aqui, é importante chamar atenção para que não se faça uma leitura
economicista de Sayad, uma vez que sua definição tem bastante ligação com a esfera da
economia, o que não significa dizer que o autor a entende como única determinação da
imigração. Ora, não seria possível abrir mão do trabalho e da economia para refletir
teoricamente a migração ou em outras palavras, o trabalho é ainda hoje um dos
estruturantes da nossa sociedade, faz parte da vida cotidiana de todos nós, imigrantes ou
não.
Sayad aponta para a existência de um “mercado de trabalho” específico para
imigrantes, a partir da demanda de trabalhos também específicos, já que muitas vezes a
força de trabalho nacional, por uma série de razões, não supre essa demanda.
Proporíamos, na tentativa de lidar com um possível determinismo econômico da sua
análise, que o imigrante, detentor de sua própria força de trabalho, se torna na sociedade
de destino um trabalhador em potencial.
Muitas migrações são marcadas pelo discurso e desejo da necessidade de
mudança, da ascensão social. E essa ascensão é projetada através do trabalho. Chegar à
sociedade de destino e encontrar um trabalho que possa garantir condições mínimas de,
primeiro, sobrevivência e, depois, desenvolvimento de vida, se desenha como um dos
objetivos da imigração. Isso está colocado mesmo quando essa perspectiva de ascensão
não necessariamente seja a grande motivação propulsora do projeto migratório, como
poderia ser o caso das migrações de refúgio, por exemplo.
Sayad chamava atenção ainda para o fato de que a imigração tende a estar
inscrita em uma relação de poder que envolve a existência de uma hierarquia social e de
dominação – imigrantes são constantemente lembrados, de formas diferentes, é claro, de
sua condição de imigrantes. Essa mediação é feita através do elemento “nacional” em
oposição ao “estrangeiro”, que decorre exatamente da estrutura de poder da sociedade,
pois existe um interesse econômico em se manter a condição de provisoriedade do
imigrante:

42
O imigrante deve continuar sendo sempre um imigrante – o que significa que
a dimensão econômica da condição do imigrante é sempre o elemento que
determina todos os outros aspectos do estatuto do imigrante: um estrangeiro
cuja estadia, totalmente subordinada ao trabalho, permanece provisória de
direito (...). (SAYAD, 1998, p. 63).

Fato é que precisamos chamar atenção ao que nos foi amplamente narrado e o
que foi lido em diversas pesquisas da migração: é que a inserção na sociedade de
destino é avaliada em geral como de maior sucesso na medida em que os e as imigrantes
acessam postos de trabalho que lhes garantam condições de vida sustentáveis, isto é,
pelo menos melhores do que as que possuíam antes de emigrar. Ao mesmo tempo, em
se tratando da permanência em territórios de imigração, a possibilidade de inserção na
economia também é condicionante das políticas de abertura ou fechamento das
fronteiras.

A metáfora desenhada por Sayad fornece a imagem de um amplo cenário: os


imigrantes, representados por grãos de areia são separados da “rocha-mãe” por um
vento que sopra numa longa tempestade. O vento nada mais seria que a economia
capitalista, cujos efeitos se desenrolam e reverberam na vida de todos os indivíduos,
gerando movimentos entre essas sociedades: de mobilidade, “de transferência de um
campo econômico para outro, de um país para outro, de um continente para outro (...)”.
(SAYAD, 1998, p. 72). Dessa forma, a identidade que carregam e a forma como são
percebidos e recebidos na sociedade de destino passam necessariamente pelo elemento
estruturante do trabalho e da condição de provisoriedade. Essa percepção ficará mais
visível quando nos atentarmos à legislação específica aos estrangeiros no Brasil.
Por carregar a condição de desigualdade envolvendo dois ou mais polos, o
imigrante passa a ser uma espécie de “mercadoria” – produto de uma transação que
continuará a ser realizada por meio de sua própria pessoa. Mas essa mercadoria é
peculiar, pois é exatamente a força de trabalho do indivíduo. No caso da imigração, este
indivíduo por “livre” escolha disporá dela no mercado, a partir da sua mobilidade e
circulação e também das exigências e determinações econômicas mais gerais. Essa é,
portanto, uma força de trabalho que está circulando livremente disposta a ser absorvida
pelos diferentes mercados.
Isso nos leva à Gaudemar (1977) e à discussão sobre a realidade de que muitos
indivíduos na nossa sociedade hoje precisam, conforme também lhes convém e lhes é
43
possível, deslocar-se entre fronteiras para dispor de sua força de trabalho, tornando-se
(i)migrante. A mobilidade depende ainda das condições materiais criadas pelo
funcionamento e dinâmica das sociedades capitalistas, traduzidas nos diferentes
territórios. Posto isso, não nos esqueçamos de que a liberdade necessária à mobilidade
do trabalho (GAUDEMAR, 1977) ainda hoje está condicionada ao Estado que possui
poder centralizado de regulamentar (permitir/proibir) a imigração, bem como aos ventos
capitalistas (SAYAD, 1998) soprados pelas grandes empresas e indústrias no mundo
todo, atualizado pelo contexto da reestruturação produtiva.
A consolidação desta nova fase de acumulação do capitalismo pressupunha uma
intensa mobilidade do capital e da força de trabalho junto com a tecnologia da
informação e organizações transnacionais, além da questão territorial (BAENINGER,
2015).
Jean Paul de Gaudemar (1977) foi um economista que elaborou a teoria da
mobilidade do trabalho baseado na leitura do livro O Capital de Karl Marx e em sua
teoria sobre o valor-trabalho. Na concepção de Gaudemar (1977), as migrações
aparecem como uma das formas de mobilidade do trabalho e “não podem ser encaradas
fora da realidade do trabalho social, e sim como pressupostos econômicos do mesmo”
(PÓVOA-NETO, 1997, p. 19). Sua teoria também se opõe às teorias histórico-
estruturais e neoclássicas, que dificultam pensar o nível individual (micro) obtido pelo
estudo empírico relacionado às questões macroestruturais. Gaudemar, ao contrário, não
homogeneíza a percepção do espaço e os movimentos do capital, abrindo possibilidade
para se pensar as questões específicas de cada lugar envolvido nos processos
migratórios – as sociedades de origem e de destino e a economia mundial.
Como uma terceira chave interpretativa, que evita “entortar a vara” da análise, a
teoria da mobilidade do trabalho tenta pensar os processos migratórios a partir da
relação dialética entre as questões estruturais do sistema capitalista e a suposta liberdade
individual e de mercado dos sujeitos e, portanto, as questões de subjetividade. A
agência não é negada aos indivíduos e faz parte da reflexão teórica; o indivíduo, por sua
vez, está inserido num determinado sistema que regulamenta sua vida de diversas
formas. Essa é a relação entre micro e macro que gera tensionamentos, contradições e
que deve ser pensada em sua totalidade – como o mundo se apresenta e é percebido por
nós, como ele realmente é e as possibilidades do que ele poderia vir a ser.

44
A leitura de Gaudemar parte do processo de acumulação primitiva inicial,
descrita por Marx em O Capital. Esse foi o momento em que qualitativamente os
trabalhadores camponeses que mantinham em grande parte uma relação servil com seus
senhores tornam-se livres através do processo de expropriação total dos meios de
produção a partir do fim do estatuto de servidão. Esses indivíduos passarão a dispor
apenas de si próprios isto é, de sua força de trabalho para viver.
A liberdade concedida a esses trabalhadores é uma liberdade real do ponto de
vista de sua condição anterior. Há a partir desse processo a possibilidade de mover-se
pelas estruturas da sociedade, sem o peso da determinação social que é a relação de
servidão. Estas são desmanteladas como estatuto normalizador das relações sociais de
produção, dando lugar à livre associação e ao salário. Há, ainda, um estatuto jurídico e
ideológico que afirma serem todos os indivíduos da sociedade iguais, produzindo uma
ideia de simetria dentro das relações sociais de produção, simbólica e juridicamente.
É essa construção ideológica, das liberdades de ir e vir (mover-se), de escolher e
de associar-se; aliada à forma como se modificará a distribuição e apropriação da
riqueza que continuam sendo produzidas pelos trabalhadores, que substancialmente
marcará o surgimento do capitalismo.
Porém, essa liberdade conquistada com o fim da servidão não deixará de estar
condicionada pelos processos políticos e econômicos vigentes no momento de
consolidação de um novo formato de sociedade. Isso quer dizer que aqueles que eram
trabalhadores camponeses ocuparão uma posição desvantajosa em relação à
possibilidade de exercer sua liberdade do que ocupam aqueles que detém mais poder
econômico e político. A liberdade de agir como queira, então, será praticada nos
marcos de como se demandará a força de trabalho vivo e onde ela poderá ser realizada.
Ora, sabemos também que independente das condições materiais os indivíduos,
para sobreviver, precisam dispor de sua força de trabalho no mercado onde possam
vendê-la, uma vez que o processo de expropriação dos meios de produção gerou como
uma de suas consequências o não controle do trabalhador sobre o processo total
produtivo e a distribuição de riqueza na sociedade.
Na sociedade capitalista a perda do controle entretanto, que acaba condicionando
essa liberdade de mover-se, está no próprio fato de que a força de trabalho de um
indivíduo se transformou ela mesma em uma mercadoria. Assim, a liberdade do
indivíduo é, em parte, uma liberdade de mercado, pois será ele quem influenciará de
45
forma predominante como essa força de trabalho será aplicada. Porém, não é totalmente
incorreto dizer que a liberdade do indivíduo o permite escolher onde, quando e como irá
vender sua força de trabalho – perpassando, inclusive, pelo constrangimento que “lhe
impõe o deslocamento como estratégia de sobrevivência” (PÓVOA-NETO, 1997, p.
20).
O desenvolvimento do sistema capitalista, por ocorrer de forma desigual pelo
mundo, gera trabalhadores excedentes que precisam deslocar-se espacialmente em
busca de trabalho. O Capital, por sua vez, precisa de trabalhadores que estejam livres e
dispostos a trabalhar e a deslocar-se.
Miranda veio ao Brasil por volta de 2009, 2010 e estava grávida do seu segundo
filho. Conta que sentiu muito medo, pois a polícia na fronteira dizia que grávidas não
eram permitidas de entrar. Além disso, seu companheiro não quis acompanhá-la e
Miranda resolveu vir sozinha. Ela chegou a São Paulo através do terminal rodoviário
da Barra Funda, onde encontrou o anúncio da primeira oficina de costura onde
trabalhou e viveu. Não trabalhava fora quando morava na Bolívia, seu trabalho se
restringia ao espaço doméstico, e nunca havia pensado sobre a importância do
trabalho até decidir emigrar, mas mesmo assim desde a saída de seu país assumiu para
si mesma que veio ao Brasil para trabalhar, morar e se superar31.
A experiência de sofrimento pessoal, em seu caso, foi motivação principal de
sua vinda ao Brasil. No entanto, o planejamento contou com a já conhecida rota de
migração boliviana ao país, e chegando aqui, o primeiro acesso ao trabalho só foi
possível através da rede de contratação para as oficinas de costura, já estabelecida. Sua
vida se estruturou conforme foi conseguindo se sustentar e se estabilizar trabalhando.
O desenvolvimento da obra de Gaudemar gira em torno da discussão sobre a
mercantilização da sociedade, a partir do processo de acumulação primitiva – processo
cujo desenvolvimento transforma o indivíduo, que é portador de força de trabalho, no
vendedor de sua própria mercadoria, que se constitui como uma mercadoria particular,
uma vez que seu valor de uso possui “(...) a virtude particular de ser fonte de valor de
troca, de modo que consumi-la seria realizar trabalho e consequentemente criar valor”
(GAUDEMAR, 1977, p. 188).

31
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).

46
O mercado de trabalho é multidimensional: se modifica no tempo e no espaço, e
não é homogêneo. Assim, surgem “formas contingentes da liberdade de compra-venda
da força de trabalho” gerando por sua vez formas de mobilidade capitalista do trabalho:
“a mobilidade da força de trabalho é assim introduzida, em primeiro lugar, como a
condição de exercício de sua ‘liberdade’ de se deixar sujeitar ao capital, de se tornar a
mercadoria cujo consumo criará o valor e assim produzirá o capital” (GAUDEMAR,
1978, p. 190 – grifo meu).
A migração está relacionada à mobilidade do trabalho. A liberdade do migrante -
que é potencialmente também trabalhador - é marcada por dois sentidos, contraditórios
entre si, mas que não se explicam sozinhos: de um lado, a possibilidade de o trabalhador
escolher seu trabalho e o local onde exercê-lo, o que possui uma carga positiva, de
agência do sujeito; por outro lado, o individuo também está sujeito às exigências do
capital que pode precisar dele ou despedi-lo a qualquer momento ou, ainda, transformar
suas condições de trabalho sem que ele tenha total controle sobre isso (GAUDEMAR,
1977, p. 190). No caso do segmento de trabalhadores imigrantes a questão do controle
das condições de trabalho aparece nas formas mais precárias e limitadas.
Sassen (1998) falou especificamente em migrações laborais internacionais,
olhando também para as transformações globais no cenário capitalista no contexto da
reestruturação produtiva. Em A mobilidade do trabalho e do capital a autora defende a
tese de que “a prática econômica e a tecnologia contribuíram para o nascimento de um
32
espaço transnacional para a circulação de capital” (SASSEN, 1993, p. 17) e,
consequentemente, para a circulação de pessoas. Seu pressuposto é o de que as
migrações laborais internacionais e o comércio e investimentos a nível internacional são
elementos que se influenciam reciprocamente.
Sassen apontou que os países do chamado “Terceiro Mundo” ou capitalistas
periféricos passaram a receber investimentos estrangeiros que interviram
substancialmente em seus mercados e em suas indústrias para exportação, após as
transformações a nível mundial do sistema capitalista que começaram a se desenhar nos
anos 1960 e 1970 e se concretizaram com a crise econômica. Há uma vinculação entre
as migrações contemporâneas e a internacionalização da produção que aprofundou
diferenças regionais bem como a divisão mundial do trabalho.
32
Trecho traduzido livremente do original lido em espanhol “la práctica económica y la tecnologia han
contribuído al nacimiento de un espacio transnacional para la circulación del capital” (SASSEN, 1998, p.
17).
47
É interessante nesse contexto pensar a alta rotatividade dos trabalhadores
migrantes das oficinas de costura apontada tanto pelos pesquisadores que se debruçaram
sob o tema e também pelos próprios trabalhadores interlocutores dessa pesquisa.
Santiago disse-me que, durante os dois meses em que esteve trabalhando na sua
primeira oficina, viu passar pela oficina uma grande quantidade de trabalhadores que
não se estabeleciam ali.33 A circulação é elevada porque o trabalho gira em torno de
uma demanda sazonal, o que gera uma condição de instabilidade, bem como contribui
para que a remuneração seja baixa – algo que todos os entrevistados tiveram acordo em
afirmar.
Talvez, uma chave possível de interpretação esteja na própria condição de ser
imigrante. Sassen (1998) argumenta que a situação do imigrante na sociedade de destino
é o que torna sua força de trabalho executável: “assim, não são principalmente os
salários baixos dos imigrantes, mas é também a sua boa vontade para trabalhar em
certos tipos de trabalho, o que explica sua obtenção de emprego em uma época de
crescente desemprego” (SASSEN, 1980 apud. SASSEN, 1998, p. 3 ) 34.
Começou a ficar notável que todas as pessoas que participaram dessa pesquisa
reforçavam em seus discursos a ideia de que trabalhavam o máximo que podiam porque
precisavam, porque lhes era necessário para alcançar seus objetivos individuais pelos
quais migraram e porque eles próprios aceitavam as condições. Seja para esquecer algo
traumático que aconteceu no passado, seja para “superarme”, seja simplesmente para
manter-se vivendo enquanto traça um plano B, como Santiago; seja para construir do
zero uma nova vida, como Miranda.
As transformações econômicas mundiais geraram possibilidades para que esses
sujeitos se deslocassem e pudessem migrar. Na conjuntura analisada, a integração de
imigrantes tende a ser nos empregos mais mal remunerados – relacionados à prestação
de serviços ou no setor industrial, rebaixado e degradado (SASSEN, 1998, p. 45).
Tanto para aqueles que vieram, segundo Yarita, cientes de que trabalhariam em
condições tidas como precárias; quanto para aqueles que vieram desenvolver um projeto
de vida onde almejam exercer outra profissão que não de costureiro, como Santiago,

33
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015.). 3
arquivos MPEG-4 (63 min).
34
Trecho traduzido livremente do lido do original em espanhol: “así, no son principalmente los bajos
salarios de los inmigrantes, sino que es más bien su buena voluntad para trabajar en ciertos tipos de
trabajo, lo que explica su obtención de empleo en una época de creciente desempleo” (SASSEN, 1998, p.
36).
48
encontraram uma sociedade de destino incapaz de assimilar a possibilidade de alguém
de outra nacionalidade acessar determinados postos de trabalho – o que expressa mais
uma vez a existência de trabalhos específicos a imigrantes, e a segregação presente na
sociedade entre nacionais e estrangeiros.
Assim, as argumentações de Sassen (1998) e Gaudemar (1977) convergem para a
interpretação aqui sugerida, de que a migração está vitalmente inserida em processos
econômicos que lhe influenciam diretamente, acompanhando os movimentos
transnacionais da economia e das grandes empresas que, a partir de investimentos e
inserção em novos mercados, reconfiguram espacialmente a sociedade a todo o
momento. Essa reconfiguração não seria completa, no entanto, se do outro lado milhares
de trabalhadores e trabalhadoras não estivessem circulando “livremente” pelo mundo,
dispondo de sua força de trabalho e construindo sua vida e a própria sociedade. A
“dupla liberdade” do trabalhador imigrante e sua condição paradoxal de existência
(SAYAD, 1998) se fazem aqui indispensáveis à nossa reflexão. Essa migração,
circulatória, cria o que podemos pensar como um espaço transnacional de mobilidade de
trabalhadores, espaço que se constitui pelo mundo e abre questões importantes sobre a
transnacionalização do mundo.

Espaço transnacional: migração circulatória.


A ideia central dessa argumentação é compartilhada com a tese de que fluxos
migratórios contemporâneos questionam a lógica do Estado-nação e do mundo
composto por fronteiras e territórios nacionais (TARRIUS, 2000; GLICK-SCHILLER,
1995), ainda que ressaltemos também que o Estado cumpre nos dias de hoje um papel
importante na gestão da migração, produzindo essas fronteiras legais e simbólicas entre
nacionais e estrangeiros, por meio de legislações e estatutos e nos diferentes processos
burocráticos de produção e legalização de documentos na entrada, permanência e saída
dos “estrangeiros” dos territórios nacionais. Tais afirmações não se excluem, portanto.
Essa percepção veio principalmente do trabalho de campo, que demonstrou não
só uma alta rotatividade dos e das imigrantes, como também o movimento pendular
dentro das imigrações internacionais, com diversas viagens de retorno ao país de origem
e retorno ao país de destino. Os e as imigrantes estão circulando dentro de mais de um
território, sem desenvolver uma necessidade de alocar-se em um lugar, subordinando
muitas vezes essa possibilidade às questões econômicas.
49
A perspectiva teórica nascida nos estudos migratórios de crítica ao nacionalismo
metodológico, leituras que depositariam no Estado um peso muito grande no que diz
respeitos às migrações, se tornou mais difundida nos últimos anos por uma série de
pesquisadores (GLICK-SCHILLER, 1995; CÔRTES, 2013; BAENINGER, 2015) e é
um chamado de atenção à necessidade de entender o processo atual e intenso de
transnacionalização do capital como importante ativo que influencia, controla ou pelo
menos permeia a mobilidade humana atualmente.
O fluxo contemporâneo demonstra que a regulamentação das migrações não tem
sido suficientemente satisfatória para responder aos desafios colocados pela questão
migratória, uma vez que os fluxos permanecem ocorrendo mesmo com tantas políticas
restritivas e, inclusive, violentas.35 Além disso, as políticas de restrição, seleção e
permissão de imigração e asilo tendem a seguir as agendas e dinâmicas econômicas e
políticas macroestruturais (MAZZA, 2015, p. 254). O que está presente em todos os
exemplos é que o paradigma restritivo e de “segurança nacional” demonstrou ser um
fracasso, e faz-se urgente a reflexão crítica diante desse cenário.
Esses novos fluxos migratórios estão trazendo questões que ultrapassam as
problemáticas de assimilação e coesão social. Suas dimensões transnacionais
evidenciam-se com a elevada circulação de indivíduos entre diferentes territórios e,
portanto, com a grande mobilidade, além das experiências culturais, sociais e políticas
individuais ou coletivas que os sujeitos e grupos que migram carregam consigo. Chama-
se atenção para o fato de que os e as imigrantes não necessariamente estão dispostos ou
tem como projeto principal o ajustamento à sociedade de destino e o abandono de sua
cultura de origem; não raro, ocorre o oposto: a manutenção da mesma – como na
socialização ocorrida no espaço da Praça Kantuta, por exemplo.
Para Alain Tarrius (2000) os novos movimentos migratórios modificam
substancialmente as coletividades e espaços como os conhecemos. Esse é o caso
também da cidade. Antigas certezas e identidades são destruídas. Surgem redes de
circulação a nível planetário que, por sua vez, estabelecem novas relações sociais no

35
como vimos acompanhando principalmente desde 2015 com a travessia envolvendo norte do
continente africano e sul da Europa, mais especificamente Itália; ou com a migração Síria, que
envolve a discussão sobre migração e refúgio, ou os intensos fluxos entre México e Estados
Unidos, entre outros casos.

50
cotidiano: é o território circulatório, que gera uma nova noção de pertencimento a
territórios.
Essa concepção parece estar carregada pelo contexto histórico em que vivemos.
As dinâmicas transnacionais fazem parte do processo que constitui o mundo como o
conhecemos hoje, inclusive se pensarmos o fato de que nosso país foi formado por
diferentes correntes migratórias ao longo da sua história. Isso é percebido quando
ouvimos do imigrante boliviano Felix que “(...) as pessoas de todo o mundo veem pra cá
e constroem uma cidade junto. O Brasil é feito de imigrantes” (FELIX, 201 , p. 19). A
questão, portanto, não é apenas que hoje os fluxos migratórios ocorram com mais
intensidade, mas sim que eles se modificaram substancialmente em sua forma e no que
representam na conjuntura atual. O Brasil e, mais especificamente São Paulo, nunca
foram lugares “puros” de nacionalidade brasileira. Isso não existe. Felix veio ao Brasil,
“pois queria conhecer pessoas diferentes, saber como eram os brasileiros. Tem gente
aqui de todo lugar do mundo. São Paulo é resumo de todas as raças. É um retrato do
mundo”. (FELIX, 2016, p. 16). As migrações nos abrem possibilidades de reconhecer o
tecido de retalhos culturais que compõem a nossa sociedade.
Tarrius (2000) afirma que esses movimentos novos causam muitas tensões
sociais, gerando rupturas com aquilo que até então era tido como “normal”, e
desafiando a percepção de todos os indivíduos da sociedade acerca, inclusive, do que é e
como funciona a sociedade em que vivem e a cultura que compartilham. Esse ponto é
um dos mais fundamentais dos estudos migratórios hoje: aquele que é excêntrico,
estrangeiro, diferente, marginal, periférico, não-oficial, irregular, enfim, são estes que
proporcionam uma nova e melhor chave de compreensão das imbricações entre vida e
morte das formas sociais, transformando potencialmente aquilo que até então era tido
como imutável: nossa sociedade (TARRIUS, 2000, p. 40).
O autor está preocupado em desenvolver uma metodologia capaz de articular
simultaneamente noções de identidade, espaço e tempo, a fim de conseguir englobar a
questão da mobilidade. Há uma relação dialética entre alteridade e identidade para
pensar os movimentos de circulação por diferentes territórios e consequentemente, o
encontro entre “os de aqui” e “os que vem e que passam”. Os novos fluxos geram novas
coletividades, mais ou menos estáveis, cujo grau de circulação entre territórios é grande
– o que confronta a perspectiva da necessidade e até mesmo imposição de um vínculo

51
entre o individuo e o lugar onde ele se estabelece, que inclusive não necessariamente
será seu destino final.
O fim do Estado-nação em hipótese alguma foi decretado. Sujeitos imigrantes
inserem-se na sociedade de destino obrigatoriamente categorizados como estrangeiros e
vão improvisando sua existência desde suas experiências circulatórias. Caminham pela
cidade, frequentam os espaços coletivos de migração, fazem um amigo aqui e outro ali
que lhes apresentam uma oportunidade de trabalho, como Santiago que saiu da Bolívia
a partir de uma rede de contatos que lhe garantia que alguém lhe buscaria na rodoviária
e lhe daria trabalho, e quando finalmente chegou ao destino, depois de três dias e de
uma travessia irregular, não havia ninguém lhe esperando.
Inseridos que estamos num processo de globalização real, caracterizado
anteriormente, e já reconhecendo a face perversa dela, a perspectiva dos territórios
circulatórios retoma os aspectos positivos desse processo mundial, não negando o
aspecto “aglutinador” que possui, no sentido de diminuir as distâncias e o tempo –
Santos (2008) chama atenção ao elemento contraditório da que já carrega consigo
elementos que são necessários para se pensar outra forma de sê-lo, chamada pelo autor
de mais “humana”. Nessa sociedade em que vivemos a mistura de povos, raças, etnias e
culturas é muito maior, gerando consequentemente a mistura de uma série de filosofias
distintas que se opõem ao racionalismo europeu.

Além disso, as populações encontram-se aglomeradas em áreas menores,


formando uma sociodiversidade convivendo mútua e conjuntamente não antes vista
(SANTOS, 2008, p. 21). Toda essa confluência de fatores gera uma brecha otimista para
se pensar a ruptura com a perversidade contida no movimento de expansão do
capitalismo. Novos discursos começam a surgir no plano teórico e “pela primeira vez na
história do homem, se pode constatar a existência de uma ‘universalidade empírica’”
(SANTOS, 2008, p. 21), que poderia significar a confluência de diversas nacionalidades
juntas num mesmo território - Estado.

Os indivíduos estrangeiros vão construindo novas identidades nos locais de


destino, mesclando elementos dos universos de origem, e criando identidades
transnacionais. Isso se choca com a oposição clássica entre “os nossos e os deles”, “os
de aqui ou os de lá” e apresentando uma nova forma de inserção e existência no mundo
a partir desses projetos migratórios protagonizados por indivíduos como Santiago – um
52
processo, constante: “o ser daqui, o ser de lá, o ser daqui e de lá ao mesmo tempo”
36
(TARRIUS, 2000, p. 41). “Os processos de migração contemporâneos são
caracterizados, em larga medida, pela manutenção de vínculos e constantes trocas com
os países de origem e países receptores” (CÔRTES, 2013, p. 8 ).
A perspectiva de Tarrius (2000) é importante porque articula elementos
fundamentais para se pensar processos migratórios. Os “Estados sedentários”,
traduzidos nos territórios e Estado-nação, e as mobilidades são concebidos como
tempos sociais, possuindo variações entre si e formando hierarquias sociais, além de
criar antagonismos entre o local (autóctono) e o estrangeiro. Entre esses dois tempos há
articulações entre “micro-lugares”, “macro-redes” e as lógicas sociais que organizam,
em níveis territoriais, os estatutos de identidade das variadas coletividades presentes em
um lugar (TARRIUS, 2000, p. 42).
Segundo ele é necessária uma tríade de conceitos para se pensar os novos fluxos
migratórios: espaço, identidade e tempo. Esses fluxos carregam uma memória
compartilhada que permite afirmar, por sua vez, uma identidade circulatória, tão extensa
como são os territórios por onde se dão as circulações (TARRIUS, 2000, p. 55). A
mobilidade humana se inscreve no território, forma redes e grandes corredores
migratórios por onde circularão indivíduos ou grupos inteiros.
Há, então, um movimento dialético que envolve sociedade de origem e
sociedade de destino, questões estruturais, de funcionamento geral da economia e
política na sociedade, às quais chamamos “macro” e os níveis individuais dos grupos de
imigrantes onde se manifestam esses elementos gerais de grupos, que chamamos
“micro”. Formam-se assim novas identidades que se constroem a partir dos processos
migratórios, e que chegam às sociedades de destino sem renunciar suas origens ou
direitos, reivindicando a possibilidade de exercitar completamente uma identidade
imigrante, internacional.
Por fim, e retomando a discussão da potencialidade em ser trabalhador que o
imigrante carrega, é importante refletir sobre as mudanças dessa identidade do ponto de
vista subjetivo e na relação do indivíduo com seu trabalho. Esses trabalhos em geral
contarão com aspectos que os caracterizam como precários, trazendo à tona a discussão
sobre as afinidades entre migração e escravidão contemporânea, tão pesquisada na

36
Traduzido por mim da versão lida originalmente em espanhol: “el ser de aqui, el ser de allá, el ser de
aqui y de allá a la vês” (TARRIUS, 2000, p. 41).
53
última década. Dessa forma, para além da reflexão do deslocamento espacial desses
sujeitos, foi necessário refletir sobre seus trabalhos em suas condições materiais e as
possíveis explicações sobre a exploração extrema do trabalho do ponto de vista
estrutural da sociedade capitalista contemporânea.

54
Capítulo 2: Oficina de costura: Trabalho escravo contemporâneo e a
superexploração do trabalho.
.
Disse Yarita: há máquinas de costura que ajudam os trabalhadores, mas elas são
incapazes de fazer o trabalho inteiro. Tem os detalhes das roupas e, segundo ela, mesmo
máquinas mais avançadas não seriam capazes de realizá-los:

Yarita: (...) Over, Recta, tudo mexido por pessoa, não é sozinho que pode
fazer...
Eu: Tem os detalhes da roupa...
Entrevistada: Tem os detalhes, bastante.
Eu: Que tem máquina que não da conta, tem que ser gente...
Entrevistada: Máquina não, não... não dá37.

O processo de produção é composto pelo trabalho, pela matéria (matéria-prima)


ou objeto (extraído da natureza) e pelo meio instrumental necessário para que através do
trabalho vivo se transforme essa matéria num valor de uso, o produto final. O trabalho
produtivo, segundo Marx, “condição natural eterna da vida humana” (MARX, 2003, p.
218), concretiza-se, incorpora-se ao valor de uso, que se materializa como mercadoria,
possuidora também do valor de troca cristalizado. Este só é possível de se obter através
do consumo da força de trabalho (vivo), que é única mercadoria e o único valor de uso
capaz de gerar valor (MARX, 2003).

Podemos refletir sobre essa situação de exploração a partir da cadeia produtiva


da indústria de vestuário, cadeia longa composta por diversas outras indústrias –
envolvendo a transformação de uma série de matérias-primas necessárias para que se
chegue ao produto final: a roupa. As costureiras e os costureiros que passaram por essa
e por tantas outras pesquisas se localizam em uma célula produtiva específica dessa
cadeia, a oficina de costura. São responsáveis por cortar e costurar tecidos, dando-lhes
formas novas a partir de um modelo piloto. Esse é o valor que produzem.

37
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Quatro
arquivos MPEG-4 (52’12’’).

55
O processo produtivo capitalista, no entanto, se constrói a partir de uma
peculiaridade: não basta que sejam produzidos os valores de uso necessários para a
sociedade de conjunto – é preciso mais. Na sociedade em que vivemos “uma economia
saudável, ou de funcionamento adequado, é aquela em que todos os capitalistas têm
uma taxa de lucro constante e rentável” (HARVEY, 2013, p. 100).

Assim, podemos dizer que como o processo produtivo é também em geral


propriedade de alguém que o “coordena”, e isso gera o pressuposto de que a finalidade
é ganhar com ele. A lógica, segundo demonstrado por Harvey (2013) está inicialmente
na equação D-M-D38. Porém, a finalidade do proprietário não é a obtenção de volta
apenas do dinheiro inicialmente investido no processo produtivo, mas sim um ganho
extra. A forma completa desse processo está expressa na seguinte equação: D-M-D’
onde D’ passa a representar o dinheiro inicial + um incremento. “Esse incremento, ou
excedente sobre o valor original, chamo de mais-valor (surplus value)” (Harvey, 2013,
p. 92 apud. Marx, 227). Em nossa sociedade esse valor será expresso em uma
representação universal: o dinheiro (Harvey, 2013, p. 95).

Aqui se configura o que Marx chamara propriamente de Capital. “O capital é


dinheiro usado de uma certa maneira” (Harvey, 2013, p. 93). “A finalidade do
capitalista é, o que não surpreende, o ‘incessante movimento da obtenção de ganho’”
(Harvey, 2013, p. 94 apud. Marx, p. 229). Harvey (2013), em seu estudo da obra de
Karl Marx, em especial O Capital, definirá este como “valor em movimento” (p. 94).
Não basta que seja devolvido ao proprietário aquilo que ele investiu para conseguir
produzir uma mercadoria, a lógica do sistema econômico é a produção de mais. Se a
mais valia é a quantidade de valor que trabalhando se produz a mais daquilo que é o
necessário, sua produção só é possível a partir de uma exploração do trabalho.

Aproximemos a lupa. Estamos olhando para a exploração do trabalho que


acontece dentro das oficinas de costura, em grande quantidade com trabalhadores e
trabalhadoras imigrantes. Podemos partir da noção básica, portanto, que no espaço de
cada oficina, cada costureiro e cada costureira produzem frequentemente mais valia, a
partir de um regime padrão de trabalho. As diversas pesquisas sobre o tema

38
D corresponde à dinheiro e M corresponde à mercadoria. Essa é uma abreviação esquemática usada
n’O Capital de Marx e também no livro de Harvey, Para entender O capital de 2013.

56
descreveram valores extremamente baixos de remuneração dos costureiros: recebe-se
por peça produzida quantidades completamente incompatíveis com o preço final da
mercadoria numa loja. Em minhas entrevistas, Yarita foi quem melhor falou sobre isso.

Ela me explicou que o costureiro fica com apenas a terceira parte do pagamento.
Por exemplo, se a marca que contratou a oficina paga R$9,00 numa peça, o dono da
oficina pegará uma parte para ele, usará uma parte para manutenção do trabalhador e
pagará o restante pelo trabalho. O costureiro ganha pouco, ela reconhece “As primeiras
épocas, quando eu cheguei aqui a primeira vez, eu já sabia costurar, já fazia jaquetas...
jaqueta estava quando o preço era acima de 4. Fazia de 4 [reais], de 5, tinha...Por
jaqueta. Tudo acabado, né? Tudo. Fazia assim... Então, depois eu troquei de trabalho,
onde que a peça era um real. Acabado nas duas. Aí não dava, eu desci de 6, a de 5 a de
real, onde um paraguaio... Depois pra lá, foi lá, um e trinta ($1,30), um e cinquenta
($1,50), dois... assim era o preço. Não dava muito pra ganhar...”39.

As máquinas e material necessários para a produção das roupas, bem como as


próprias roupas produzidas são propriedade do dono da oficina. Estas últimas são as
mercadorias que pertencem ou ao dono da oficina ou, no caso dessa cadeia produtiva, a
um terceiro, contratante da oficina e contratante “indireto” dos trabalhadores que ali
produzem.

Para atingir a finalidade central, o sistema econômico pode ser composto pela
imbricação de diversos elementos contraditórios, permitindo diferentes formas de
exploração do trabalho que sejam compatíveis com a finalidade da extração de mais
valia. Nesse sentido, é possível refletir sobre a realidade do trabalho nas oficinas de
costura como parte constitutiva do sistema, espaço de reprodução de relações de
trabalho capitalista. Isso é importante porque pode fazer avançar novos paradigmas para
a reflexão teórica e social sobre o mundo do trabalho, que por sua vez interfere
diretamente na construção de políticas públicas e debates políticos na sociedade.

39
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Quatro
arquivos MPEG-4 (52’12’’).

57
A exploração do trabalho é nervo central do funcionamento da nossa sociedade.
Ela ocorrerá na contemporaneidade através da existência do trabalho livre40, expresso
na categoria de assalariado. É o próprio salário que oculta como a exploração ocorre.
Marx (2003) demonstrou em O Capital, o mecanismo de exploração através do salário,
que torna possível ao capitalista extrair mais valia dos trabalhadores que lhe vendem sua
força de trabalho. O que está colocado então é que a própria existência de um regime de
trabalho mediado pelo salário é uma forma de extrair do trabalhador mais do que é
necessário para que este (sobre)viva – e do ponto de vista de interesse privado do
capitalista: continue a trabalhar.

Como todos os valores de uso, a força de trabalho também possuirá um valor,


determinado “pelo valor de todas aquelas mercadorias que são necessárias para
reproduzir o trabalhador em certa condição de vida” (Harvey, 2013, p. 10 ).
Logicamente que esse necessário variará espacial e temporalmente e, mais importante
ainda, destaca Harvey (2013), “o valor da força de trabalho não é independente da
história das lutas de classes” (p. 10 ). A conclusão a que chegamos é que a força de
trabalho não é uma mercadoria como outra qualquer. É a única mercadoria que cria
valor e, ao mesmo tempo, elementos históricos e morais entram na determinação de seu
valor.

A exploração do trabalhador, isto é, do consumo de sua força de trabalho está


contida, portanto em sua jornada “regular”, paga por um salário acordado entre ambas
as partes – trabalhador e capitalista. O trabalhador se apropriará de uma parte do valor
necessário a sua manutenção e produzirá outra parte para quem lhe contratou, para o
dono ou a dona daquilo por direito e propriedade. A jornada de trabalho é o tempo em
que se produzirá, dentro de um espaço que não lhe pertence (a oficina), mas permite a
execução do seu trabalho, é o que permitirá a produção da mais valia.

Em momentos de queda das taxas de lucros ou ainda num cenário mundial de


produção e competição de mercados, tenta-se ajustar os processos produtivos para que
seja possível produzir mais Mais-valia ou manter a produção num nível que garanta o

40
No capítulo três me debruçarei sobre a ambiguidade, discutida também já em Marx, do significado de
liberdade na sociedade capitalista burguesa, e o impacto disso na organização e concepção do trabalho e
dos trabalhadores.

58
não prejuízo dos proprietários dos meios de produção. Assim, existem muitos
mecanismos também já descritos para isso como, por exemplo, ampliação da jornada de
trabalho, redução de salário ou remuneração por produto produzido, redução de direitos
(que custam dos bolsos dos que contratam os e as trabalhadores), inovação dos meios de
produção.

É importante lembrar que o capitalismo é um sistema que funciona a nível


mundial, a partir da integração entre diferentes partes do mundo desempenhando
diferentes papéis na organização desse sistema: a divisão internacional do trabalho, nos
movimentos econômicos de investimentos, os acordos comerciais, etc. Os processos de
acumulação do Capital historicamente modificaram e/ou criaram cidades – num
movimento de expansão a fim de garantir as possibilidades de acumulação necessárias
ao seu funcionamento. Os espaços, internacional, local e regionalmente,
desenvolveram-se na lógica capitalista, porém de formas desiguais, com características
particulares.

O processo contínuo de acumulação e expansão do capital só foi possível a partir


da produção de diferenças e heterogeneidades sociais (HARVEY, 2007), o que se
refletiu também na estratificação social e política dentro das cidades e entre os
diferentes países/regiões. O que permanece é a lógica central de produção de
mercadorias, a dependência da existência de um mercado para sua circulação e a
finalidade da obtenção de lucro.

Sabemos que os costureiros passam horas e horas dentro das oficinas


trabalhando, produzindo. Esse é um dos elementos que sempre aparece na bibliografia e
entre os e as entrevistados aqui, a jornada de trabalho é excedida. Muitas vezes eles
também moram nas oficinas e se alimentam das refeições padrões que lhes servem seus
patrões. Os gastos com o necessário à reprodução da força de trabalho são reduzidos, do
ponto de vista dos proprietários. É possível, portanto, a um sistema de economia de
mercado, propriedade privada e relações de trabalho assalariado seguir funcionando
composto também por diversas relações de trabalho que escapam à categorização
tradicional de trabalho “livre”.

A crise econômica pela qual passou o sistema capitalismo nos anos 1970 e 1980
foi responsável pelo surgimento de diversas transformações no sistema produtivo, e
59
junto com o neoliberalismo surgiram inovações técnicas e científicas que permitiram
“aprimorar” os processos produtivos na indústria. Mas algumas coisas permanecem as
mesmas nas nossas sociedades. As transformações no mundo do trabalho não foram e
não puderam ir à raiz da questão. O trabalho vivo, isto é, o dispêndio de energia
necessária para transformação da matéria em um produto socialmente útil não pode ser
completamente eliminado da produção (MARX, 2003).

A década de 1970 representou um grande desafio ao modelo capitalista então,


principalmente nos Países Capitalistas Centrais (PCCs), mas com grandes influências
nos Países Capitalistas Periféricos (PCPs), como é o caso do Brasil. O período de 1945
até o início da década de 1970 foi marcado por certo equilíbrio de poder entre o trabalho
organizado, o grande capital corporativo e o Estado-Nação (HARVEY, 1992). Os PCCs
passaram pelo chamado New Deal ou Estado de Bem Estar Social – que manteve o
movimento sindical sob controle do Estado e do Capital. Nos PCPs esse controle foi
mantido de outras formas. O modelo de organização do trabalho predominante até
então era o fordismo, que mantinha uma padronização do consumo, da produção de
mercadorias e do perfil do trabalhador.

Nessa época as grandes corporações, principalmente as norte-americanas (tendo em


vista a consolidação dos Estados Unidos como hegemônico dentro do bloco capitalista)
começaram a expandir seus mercados para a Europa e também para a América Latina,
facilitando o escoamento de seu excedente e expandindo as possibilidades de lucro.
Esse movimento, evidentemente, gerou processos desiguais de desenvolvimento dentro
do sistema capitalista (HARVEY, 2010), a necessidade de integrar todos os países num
mercado global e também mudanças no pensamento e nas formas políticas das
sociedades.

A década de 1970 começou a demonstrar problemas quando a Europa Ocidental


e o Japão deram indícios de recuperação e possibilidade de desafiar a hegemonia norte-
americana, no sentindo de abrirem concorrência no mercado mundial. Além disso, o
momento também foi marcado por intensos conflitos no Oriente Médio envolvendo
disputas entre árabes e israelenses em torno do projeto territorial da Palestina
culminando na conhecida crise do petróleo, quando em 1973 a OPEP (Organização dos

60
Países Exportadores de Petróleo) aumentou o preço do barril e criou embargos para a
exportação ao Ocidente (HARVEY, 2010).

O Estado de Bem Estar Social começou a desmantelar, o nível de desemprego


aumentou e as formas de organização predominantes do trabalho apresentaram sinais de
incapacidade em conter “as contradições inerentes ao capitalismo” (HARVEY, 2010,
135). A rigidez dos modelos de produção dominantes restringia a “expansão da base
fiscal para gastos públicos” (HARVEY, 2010, p. 13 ) e a resposta encontrada pelos
Estados foi emitir papel moeda, o que causou uma forte onda inflacionária em grande
parte do mundo. Em 1973, as finanças dos Estados estavam além dos recursos captados,
o que gerou uma forte crise fiscal e de legitimação. O movimento de trabalhadores e a
histórica disputa Capital x Trabalho começou a se agudizar. Era um cenário de intensa
instabilidade econômica e política que gerou efeitos nos países integrados ao sistema
capitalista.

Os processos descritos acima ocorreram principalmente nos países capitalistas


centrais, porém com consequências intensas aos países periféricos do capitalismo
mundial, como é o caso do Brasil. Uma das maiores consequências da crise estrutural da
década de 1970 adveio da necessidade dos países centrais em expandir seu mercado
para recuperação do capital, na “busca de novas linhas de produtos e nichos de
mercado” (HARVEY, 2010, p. 137). Isso gerou uma dispersão geográfica para zonas de
trabalho com menos controle, buscando acelerar o tempo de giro do capital, expandir o
mercado de consumo e rebaixar os custos e perdas, possibilitando maior acumulação
(HARVEY, 2010, p. 140).

1. Reestruturação produtiva e acumulação flexível:


A acumulação flexível foi uma das respostas de oposição à rigidez da produção,
característica central do fordismo, partindo da flexibilização da cadeia produtiva, dos
processos de trabalho e das relações de produção (HARVEY, 2010; HARVEY, 2007;
CÔRTES, 2013). Esse movimento, junto com o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia, gerou o que Harvey (2010) denominou “compressão do espaçotempo” (p.
140), que aumentou a flexibilidade e a mobilidade da produção e da força de trabalho, e
enfraqueceu a organização dos trabalhadores, tradicionalmente feita em sindicatos. Na
prática, isso aumentou o desemprego estrutural e criou jornadas de trabalho mais longas

61
com regimes de trabalho mais flexíveis, organizados por períodos de alta ou de baixa
demanda (HARVEY, 2010, p. 143).

Como parte desse processo de transformação na organização da produção -


inclusive nos países capitalistas periféricos - formas produtivas mais precárias ou
mesmo arcaicas deixaram de ser meros apêndices do modo de produção capitalista e
passaram a ser centrais ao seu funcionamento (HARVEY, 2010, p. 145). Tendeu-se para
um mercado de trabalho cujo “número de trabalhadores “centrais” é reduzido e onde se
começa a empregar cada vez mais uma força de trabalho que entra facilmente [no
mercado] e é demitida sem custos (...)” (HARVEY, 2010, p. 144). Em outras palavras,
criou-se um ambiente de intensa rotatividade da força de trabalho, que rebaixou o poder
reivindicativo dos trabalhadores e reduziu os custos para sua manutenção.

A “compressão do espaçotempo” gerada no processo de reestruturação produtiva


diz respeito, em parte, ao tempo de giro da produção, da circulação e do consumo a
partir das novas tecnologias e formas de gestão da produção e do trabalho. A
acumulação flexível reduziu o tempo de vida de um produto (HARVEY, 2010, p. 148)
e, por outro lado, vinculou-se à dispersão geográfica do sistema capitalista e das grandes
empresas e corporações que surgiram nesse período, que por sua vez geraram uma
maior mobilidade dos processos e da força de trabalho, bem como dos mercados de
consumo (HARVEY, 2010, 150). Essas empresas podem ser classificadas como as
grandes corporações transnacionais, que começaram a implantar-se em diversos países e
regiões, buscando respostas flexíveis de mercado para maior circulação e consumo de
suas mercadorias.

Uma das grandes novidades dessa reestruturação apareceu na forma da


terceirização, principalmente na década de 1980. De forma simplificada, a terceirização
ocorre quando uma grande empresa, localizada no “topo” da cadeia produtiva, contrata
outra(s) empresa(s) para realização de um serviço necessário ao seu funcionamento,
porém pelo qual não mais se responsabiliza diretamente. É a expressão do declínio da
fábrica verticalizada típica do modelo fordista e o reforço da lógica do Just in time, que
como consequência comprime o tempo e gera formas de precarização das condições do
trabalho (CÔRTES, 2013, p. 77).

62
As pesquisas anteriores a 2017 e mesmo essa pesquisa que se iniciou em 2015
trabalharam com uma legislação brasileira sobre terceirização que ajudava no combate
ao trabalho escravo contemporâneo e à superexploração do trabalho. Legalmente, a
terceirização de atividades fim era proibida no enunciado 331 do TST: “é vetada às
empresas a terceirização de suas atividades fim, apenas as atividades meio podem ser
terceirizadas” (CÔRTES, 2013, p. 175). No caso Zara, por exemplo, que foi denunciada
por trabalho escravo contemporâneo, o argumento utilizado pela empresa para se
defender foi que esta não tem como fim a produção de vestimenta, mas sim de estilo (e
a sua distribuição) (CÔRTES, 2013).

Nesse ano houve uma mudança na legislação que agora passa a permitir a
terceirização também para atividades fins41. Não é possível ainda prever quais
consequências isso trará para a indústria do vestuário – mas é possível imaginar. A
relação entre terceirização e superexploração do trabalho é muito próxima, então é
possível imaginar que as práticas de superexploração podem se intensificar mais ainda –
mas mais do que isso é impossível avançar e demandaria uma nova agenda de pesquisa.

As mudanças no âmbito da organização da produção nas indústrias foram


acompanhadas por um processo de transformação da ideologia e da cultura de massas
que influenciam no funcionamento da sociedade, num nível superestrutural. As
transformações na indústria de vestuário envolveram também o nível de circulação da
mesma, isto é, a dimensão simbólica e cultural que carregam e representam as
mercadorias nela produzidas, as roupas. Nesse aspecto, a compressão do espaçotempo, a
fluidez e a alta rotatividade são fundamentais para entendermos as transformações no
chamado “mundo da moda” e as consequentes transformações na vida dos trabalhadores
e trabalhadoras a ela ligados:

41
Em 31 de março de 2017 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei 13.429/17 que versa sobre o
trabalho temporário e a terceirização e modifica a Lei anterior sobre o assunto (6019/74). No parágrafo 3º
do artigo 09 o texto diz: “O contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de
atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços.”. Mais para frente
no artigo 10 o texto ainda dirá “Qualquer que seja o ramo da empresa tomadora de serviços, não existe
vínculo de emprego entre ela e os trabalhadores contratados pelas empresas de trabalho temporário.”. Tais
modificações foram amplamente criticadas, pois podem significar uma dificuldade em se responsabilizar
as empresas contratantes de trabalho análogo a de escravo. Para mais detalhes ver a lei:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm. Acessado em: 14/09/2017.

63
A aceitação do efêmero como qualidade desejada da produção
cultural, por exemplo, corresponde às rápidas transformações na
moda e nos desenhos e técnicas de produção que surgiram como
parte da resposta à crise de acumulação que se desenvolveu
depois de 1973 (HARVEY, 2007, 140). 42

1.1 Transformação na indústria de vestuário: lógica fast fashion.


O Just in time é a tentativa de redução do estoque e das mercadorias que poderiam
ficar ociosas e, eventualmente, causar prejuízos aos seus proprietários. Na indústria da
moda a reestruturação apareceu no surgimento de um novo modelo de produção e
também de circulação das roupas no mercado, modelo que ficou conhecido como fast
fashion, que é baseado no alto giro das mercadorias, a partir da ideia de aceleração do
tempo de elaboração e circulação das mesmas e do aumento do número de coleções e
lançamentos por ano (CIPINIUK; CONTINO, 2014, p. 34). É uma forma de
organização altamente dependente da tecnologia tanto na produção quanto nas
estratégias de marketing. O objetivo central é eliminar os riscos do negócio a partir de
uma grande rede de comunicação global responsável por estudar e investigar as
tendências possíveis e a melhor data para lançá-las no mercado.

As estratégias de marketing e merchandising funcionam no sentido de transformar o


valor da mercadoria, nesse caso a roupa, a partir da incorporação de um “valor
simbólico” produzido culturalmente (CIPINIUK; CONTINO; 2014 p. 37). As roupas
representam um valor de uso relacionado à função material que possuem. Os valores de
uso são trocados no mercado mediante os valores de troca, representados nesse espaço
pelo dinheiro. Essa mercadoria, portanto, expressa não só o valor do trabalho
socialmente necessário para sua produção, em seu valor de troca, como também o valor
simbólico agregado a partir das estratégias de marketing – é o que explica, pelo menos
parcial e inicialmente, a discrepância apresentada entre o valor que um costureiro alega
receber por uma determinada peça produzida e o custo da mesma peça em uma loja de
roupas.

42
Tradução livre. Trecho lido originalmente em espanhol: “La aceptación de lo efímero como cualidad
deseada de la producción cultural, por ejemplo, se corresponde con los cambios rapidos en la moda y en
los diseños y técnicas de producción que evolucionáron como parte de la respuesta a la crisis de
acumulación que se dessaroló después de 1973” (HARVEY, 2007, 140)42.

64
A lógica do fast fashion está situada em duas premissas: a ampliação do mercado
consumidor que vem atrelada à expansão do capitalismo e dos nichos já citados
anteriormente, e a alta rotatividade da produção a fim de que o valor de uso produzido
por essa indústria seja consumido de forma incessante e insaciável. Nesse sentido, a
qualidade das peças de roupas é reduzida, gerando uma baixa durabilidade que pode se
justificar em preços mais acessíveis e na expansão do mercado – embora isso não seja
regra, uma vez que muitas roupas ditas de marca ainda cobram preços altos em suas
mercadorias. A regra, no entanto, é o rebaixamento do valor da força de trabalho
necessária à produção dessas roupas.

“O trabalho de fabricação propriamente dito só tem sentido se amparado pelo


trabalho coletivo de produção do valor e do ‘valor simbólico’ do produto e de interesse
pelo mesmo (...)” (CIPINIUK; CONTINO, 2014, p. 43). O momento da sua circulação é
marcado necessariamente pela produção e crença no valor simbólico e cultural desse
produto - o que gerará inclusive a sua demanda. Nessa indústria o circuito de produção
material, produção simbólica e circulação material se complementam na criação do
valor. A produção material se organiza também a partir da demanda, algo sentido pelos
trabalhadores e trabalhadoras da costura nas diversas conversas em que tivemos durante
o trabalho de campo. “(...) os artigos da moda são objetos simbólicos de ciclo curto,
‘estar na moda é seguir a última moda’ e o seu valor distintivo sofre rápida depreciação”
(CIPINIUK; CONTINO, 2014, p. 46).

De toda forma, mesmo que possua essa etapa de valor agregado simbolicamente
pelas estratégias de propaganda na esfera da circulação das mercadorias, a produção da
indústria de vestuário envolve de forma indispensável um elevado nível de trabalho
humano, desde o estilista e modelista na fase da criação, até os costureiros e costureiras
na base da produção material, bem como a interligação com outras indústrias, como a
química, a agropecuária e a de máquinas, além de depender das redes de transporte para
escoamento e circulação dos produtos (CÔRTES, 2013).

De 25% a 50% do custo de um artigo de vestuário está na matéria prima enquanto


que de 20% a 40% está na reprodução da força de trabalho (CLINE, 2012 apud.
DUARTE, 2015, p. 6). Por exemplo, a cadeia produtiva envolve o trabalho de pilotera,
segundo me contou Miranda, que é a produção da “peça piloto”, que será copiada

65
posteriormente pelos costureiros e costureiras, demandando assim uma alta qualidade e,
portanto, capacidade de quem o exerce, pois deve estar perfeito para ser reproduzido em
maior escala. Miranda ascendeu profissionalmente tendo iniciado seu trabalho como
costureira e hoje exerce a função de pilotera, almejando um dia ser modelista

Así já trabalhei dois dias aqui, dois dias ali ... E asi consegui
ganar mais (...)solo que tengo um pouco de cargo más. Eu sou
pilotera. Depois de que sali da brasileira ela viu o meu trabalho
de saber costurar um pouco mais então eu comecei a trabalhar
de pilotera43.

O rebaixamento de salários é vital para o funcionamento dessa indústria, pois o


processo de expansão e globalização atual do capital - que ocorreu não só sem a
expansão das proteções ao trabalho, mas as derrubando - gerou um sistema global de
competição entre trabalhadores do mundo todo, que facilitou o rebaixamento das
condições de trabalho nesse setor a fim de que as regiões entrem no mercado que é
altamente competitivo. Daí, uma das formas mais aparentes de rebaixamento está na
remuneração (DUARTE, 2015, p.7).

Por exemplo, em 2015 nos Estados Unidos o salário médio de um costureiro variava
entre U$$12 e U$$15 dólares a hora. No Brasil o piso estipulado pelo Sindicato das
indústrias de vestuário (SINDVEST) - que não engloba os trabalhadores e trabalhadoras
imigrantes – variava de R$847,00 a R$1247,40 mensais. Na República Dominicana o
salário era em media U$$150,00 dólares mensais; na China variava entre U$$117,00 a
U$$147,00 mensais e em Bangladesh, depois do último aumento em 2010, o salário
pago em média era de U$$43,00 dólares mensais (DUARTE, 2015, p. 6). Não podemos
esquecer que a organização da produção girando em torno da demanda abriu brecha
para a remuneração por produção na fase da costura da indústria, isto é, paga-se o
trabalhador por peça de roupa produzida, como é o caso frequente das oficinas de

43
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015.
4 arquivos .mp3 (1’8’’).

66
costura no Brasil. Mais uma vez, esse tipo de organização pode ser interpretado como
uma forma que o país encontra para que essa indústria seja competitiva no mercado
altamente rebaixado.

Além dos impactos e alterações no mundo do trabalho e das relações de produção


vinculados à indústria de vestuário, há também os impactos ambientais para toda a
sociedade e mais diretamente na vida dos trabalhadores ligados a ela. “Todo ano os
norte-americanos jogam 12.7 milhões de toneladas de resíduos têxteis fora” (DUARTE,
2015, p. 5) e, segundo a ABIT os resíduos têxteis anuais no Brasil somam por volta de
175 mil toneladas. O Brasil, inclusive, é o quarto maior produtor mundial de vestuário,
mas mesmo assim não chega a ser um grande exportador precisando inclusive importar
mercadoria, pois possui um grande mercado interno (CÔRTES, 2013, tabelas 11 e 12).
A reestruturação produtiva entre as décadas de 1970 e 1980 não causou impactos no
sentido de reduzir a produção da indústria de vestuário, porém a transformou
qualitativamente uma vez que reduziu o número de empregos formais, o que gera
impactos do ponto de vista da organização dos trabalhadores ligados a esse setor.

O modelo das oficinas de costura discutido aqui não é uma inovação da


reestruturação produtiva, mas sim uma “recuperação” de um modelo antigo conhecido
como sweatshop, comprovando mais uma vez a necessidade de formas avançadas e
anacrônicas de produção intrinsecamente ligadas e incorporadas ao sistema capitalista
contemporâneo. Segundo definição do Oxford American Dictionary esse termo refere-se
ao trabalho em oficinas antigas na Europa e EUA no final do século XIX: “uma fábrica
ou oficina, especializada na indústria de vestuário, onde operários manuais são
contratados com salários muito baixos por longas horas de trabalho e sob más
condições” (SOUCHAUD, 2012, p. 79, tradução livre).44 Hoje elas funcionam a partir
do recebimento de encomendas de grandes e médias empresas/marcas de roupas.

Essas marcas, de tamanhos variados, passam agora a se responsabilizar apenas pela


criação do “conceito” por trás dos modelos de roupas produzidas e, posteriormente, pela
venda das peças prontas, além da organização do marketing, atribuído à marca, a partir

44
Trecho originalmente em inglês: “a factory or workshop, esp. in the clothing industry, where
manual workers are employed at very low wages for long hours and under poor conditions”
(SOUCHAUD, 2012, p. 79).

67
das pesquisas de mercado, ou seja, agregando valor ao produto final. As oficinas de
costura se tornam apenas um componente constitutivo da cadeia produtiva inteira. Não
se elimina o trabalho vivo, mas se aumenta o distanciamento entre o produtor direto e o
produto final por ele produzido.

A grande modificação desse setor não é tanto em decorrência da inovação


tecnológica, mas sim da modificação das formas de gestão do trabalho. “A produção
passou a depender da interação entre várias empresas de status muito diferenciados no
mercado” (FREIRE, 2008, p. 58). É uma forma contraditória em que a reestruturação se
manifesta. Por um lado se valoriza os serviços “especializados” e, por outro, se
desvaloriza a manufatura e os serviços que agregam pouco valor (FREIRE, 2008, p. 59),
como já apontado por Sassen (1998), ou seja, a costura.
Na indústria da moda atual então o que ocorre é que o design e as estratégias de
marketing e de pesquisa se valorizam, enquanto que o trabalho de costura que está na
base da produção material da mercadoria roupa, é desvalorizado, visando a diminuição
do custo da produção (FREIRE, 2008, p. 58). Obviamente o trabalho humano, como já
dito, não pode sumir, mas passa a ser “invisibilizado” socialmente, se deteriorando no
quadro geral da produção.
Mesmo com a crise econômica mundial que explode também nesses anos, a
indústria de confecções e vestuário conseguiu encontrar formas de crescimento, e para
isso a reestruturação produtiva atingiu-a em sua forma de organização, quando houve
diminuição do emprego formal substituído pelo trabalho informal, principalmente na
forma das oficinas de costura ramificadas pela cidade (FREIRE, 2008, p. 49). O
surgimento e aumento de oficinas está relacionado com o crescimento da terceirização
no setor. Há uma tendência de subcontratação nas cadeias produtivas da indústria de
confecções e vestuário, que, por sua vez, está relacionada à constante deteriorização e
precarização do trabalho (FREIRE, 2008).
Pela sua própria lógica de funcionamento, muitas vezes essas oficinas
encontram-se em locais escondidos, longe dos olhos da maioria das pessoas que vivem
na cidade e transitam de forma apressada por ela. Caminhando pelo Bom Retiro ou
mesmo pela região próxima à Praça Kantuta, no bairro do Pari, é impossível localizar
uma oficina de costura aos olhos nus, mesmo com um olhar atento pelos prédios e casas
da cidade. As oficinas possuem uma forma de funcionamento “invisível”, extremamente

68
privado – localizam-se frequentemente dentro das casas de seus proprietários: nos
fundos, no andar de baixo, no quintal.
As suas lógicas específicas de funcionamento são frequentemente descritas nas
pesquisas sobre o tema. Por conta da sazonalidade das encomendas, tanto as jornadas de
trabalho quanto a remuneração dos trabalhadores da costura giram em torno da
produção. O salário é pago por peça produzida, e como as encomendas possuem prazo
para serem entregues as jornadas podem ficar bastante extensas. Miranda narrou que no
primeiro emprego que trabalhou, logo ao chegar ao Brasil, possuía uma jornada que ia
das 06:00 da manhã às 22:00 da noite, com intervalos rápidos para as refeições.45 Assim
também era com Santiago, que relatou que mesmo nos intervalos o controle dos chefes
fazia com que os trabalhadores se sentissem pressionados a voltar ao trabalho o mais
rápido possível46.
Em todos os relatos o elemento de controle da produção aparece como um dos
fatores de precarização do trabalho aos olhos desses imigrantes. Também é bastante
difícil que a contratação das oficinas envolva qualquer tipo de contrato por escrito, o
que gera mais ainda um clima de instabilidade tanto para os donos da oficina quanto
para os trabalhadores.
A relação de trabalho ali dentro é desigual, composta pelo contratante da oficina,
o dono e os costureiros. O contratante detém o poder da demanda: é ele quem determina
quantidade de peças e prazo para produção e, dessa forma, o dono da oficina encontra-
se subordinado ao contratante (CÔRTES, 2013, p. 80). É nesse tipo de relação que está
configurada a terceirização isto é, a oficina está produzindo para um terceiro que não
ela própria. A relação imediata entre o dono da oficina e seus trabalhadores será a
expressão mais precarizada, no entanto, quando o primeiro transmite toda a pressão da
velocidade com que se deve produzir aos costureiros, o que pode ser sintetizado em
determinado momento da entrevista de Santiago, quando ele contou como eram os

45
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. 4
arquivos .mp3.
46
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015). 3
arquivos MPEG-4 (63 min).

69
donos da oficina onde trabalhava: “si te digo te doy cien piezas para esse dia tu tienes
que entregar las cien piezas vivo o muerto, es asi”. 47
O salário por peça, tipo de remuneração padrão das oficinas, “não passa de uma
forma a que se converte o salário por tempo” (MARX, 2003, p. 37). Foi descrito em O
Capital (2003) como um mecanismo de intensificação da exploração do trabalho – uma
variação do salário por jornada de trabalho (tempo), muito mais comum no sistema
capitalista, mas que na lógica também acaba por ser uma forma de ampliação da jornada
do trabalhador. A forma de pagamento do salário, no entanto, não altera a natureza da
relação de produção, e o proprietário opta por aquela que mais lhe favoreça no
desenvolvimento da produção capitalista. (MARX, 2003, p. 638).
Nesse tipo de salário a “lógica” capitalista permanece: uma parte do trabalho é
paga e a outra não. Nele, “não se trata de medir o valor da peça pelo tempo de trabalho
nela corporificado, mas, ao contrário, o tempo despendido pelo trabalhador pelo número
das peças que produziu” (Marx, 2003, p. 39). Mede-se pela quantidade de produtos
produzidos num dado espaço de tempo. Dessa forma,

A qualidade do trabalho é controlada aqui pelo próprio resultado, que


tem de possuir a qualidade média, a fim de que seja pago
integralmente o salário por peça. Desse modo, o salário por peça se
torna terrível instrumento de descontos salariais e de trapaça
capitalista (MARX, 2003, p. 639).

O salário por peça constitui a base não só do trabalho doméstico


moderno, do qual já falamos anteriormente, mas também de um
sistema hierarquicamente organizado de exploração e opressão (...) o
salário por peça facilita que, entre o capitalista e o trabalhador
assalariado, se insiram parasitas que subalugam o trabalho. O ganho
dos intermediários decorre da diferença entre o preço do trabalho que
o capitalista paga e a parte desse preço que ele realmente entrega ao
trabalhador (...). A exploração dos trabalhadores pelo capital se realiza
então por meio da exploração do trabalhador pelo trabalhador
(MARX, 2003, p. 640).

47
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015). Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
70
Há um elemento importante na remuneração por produção, que Marx apontou
como um interesse natural do trabalhador em empregar de forma mais intensa sua força
de trabalho, a fim de produzir mais prolongando consequentemente sua jornada de
trabalho. É, por fim, uma forma que individualiza mais ainda cada unidade produtiva
ali, isto é, cada indivíduo trabalhador que está trabalhando na oficina “(...) de modo que,
num determinado espaço de tempo, um produz o mínimo, outro, a média, e terceiro,
mais do que a média” (MARX, 2003, p. 41).
As diferenças surgidas aqui não alteram a relação geral entre capital e trabalho
assalariado,
(...) a maior margem de ação proporcionada pelo salário por peça
influi no sentido de desenvolver, de um lado, a individualidade dos
trabalhadores – e, com ela, o sentimento de liberdade, a independência
e o autocontrole – e, do outro, a concorrência e a emulação entre eles.
Por isso, o salário por peça tende a baixar o nível médio dos salários,
elevando salários individuais (MARX, 2003, p. 642).

Importante pensar que do ponto de vista dessa reestruturação, estamos lidando


como uma ideologia neoliberal, de radicalização de diversos ideais capitalistas, mas que
traz a tona, reinventado, formas de organização da produção que permitem a
sobrevivência do capital. A crise tratada aqui se desenvolveu com a necessidade de se
responder a que o trabalho não estava gerando tanto lucro quanto deveria. O
capitalismo, no entanto, precisava resolver uma contradição: é impossível eliminar
completamente o trabalho vivo do processo produtivo. Há coisas que só as pessoas
sabem fazer – que só a atenção humana é capaz de captar. Os detalhes.

O que é possível, no entanto, é ampliar a exploração tentando reduzir ao máximo


possível os custos da produção. A ampliação de jornadas, de 12, 14 horas; a ausência de
registros e de pagamento de direitos trabalhistas; a remuneração por peça de roupa
produzida – todos esses elementos amplamente relatados nas pesquisas realizadas sobre
o trabalho dentro das oficinas de costura comprovam que essas unidades de produção
seguem sendo um espaço de extração de mais valia, de exploração dos trabalhadores.

Ao trabalhador e trabalhadora que costura nas oficinas de costura, resta-lhes


aplicar sua força de trabalho com mais afinco que puderem, produzindo mais roupas

71
quanto podem, trabalhando o máximo que conseguirem. Como disse Yarita, “É, porque
48
a gente faz um milagro... a gente faz rápido” . O ritmo intenso das jornadas aparece
como algo dado, a que o trabalhador se adapta.

Em relação ao tema, desenvolveram-se diversas hipóteses, principalmente na


literatura dos direitos humanos e sociologia do direito, que parecem afirmar que oficinas
funcionariam como espaços “anacrônicos” aos tempos de modernidade em que
vivemos. Há também a problematização do conceito de escravidão contemporânea,
embora em geral a perspectiva seja de afirmação do conceito como necessário para se
traçar estratégias de combate ao trabalho escravo na atualidade. A intenção aqui,
inclusive, não é propor que se abra mão do conceito de escravidão contemporânea,
principalmente no que diz respeito ao combate às violações de direitos dos
trabalhadores em todas as formas que ele se manifesta: no campo, na cidade; nas frentes
pioneiras (MARTINS, 2014), na construção civil, nas oficinas de costura.

No entanto, a proposta do debate seguinte é, partindo da teoria da dependência e


da superexploração do trabalho (MARINI, 1973), pensar a existência sistêmica de tipos
de exploração do trabalho que escapam ao trabalho assalariado como grande parte da
sociedade o normatizou. O campo me demonstrou na prática algo apontado por alguns
autores lidos: o fato de que há uma concreta recusa em geral de parte dos trabalhadores
em aceitarem o termo “escravo”, principalmente no sentido de que ele atribui uma
imagem pejorativa ao imigrante e acaba por estigmatizá-lo ainda mais. Ao mesmo
tempo, no entanto, o que demonstra como às vezes somos mais feitos de contradições
do que de certezas, havia nos discursos o reconhecimento de que o trabalho comum
dentro de uma oficina possui diversos aspectos negativos que são injustos aos
trabalhadores como, por exemplo, a má remuneração para o tanto que se trabalha, além
de ser cansativo.
Ora, essa manifestação, evidentemente, é bastante contraditória. Trata-se de
oportunidades de trabalho e de possibilidade de melhora da condição de vida material,
por um lado; bem como aparecem como experiências de trabalho ruins e obstáculos ao

48
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016.
Quatro arquivos MPEG-4 (52’12’’).

72
desenvolvimento pessoal por outro. Uma de minhas entrevistas não concorda com o
termo trabalho escravo, acreditando que ele é usado porque os trabalhadores das
oficinas “trabalham humildemente” e querem ganhar. Yarita afirmou não achar que
seja trabalho escravo, uma vez que os trabalhadores da costura sabem como que é o
trabalho nas oficinas, sabem inclusive que tem que morar, dividir quarto e que existe
uma estigmatização de como é a organização da oficina – que em geral não é
exatamente como dizem, embora não negue que existam oficinas insalubres e precárias.
A maioria das pessoas, no entanto, sabe como são as regras do trabalho e continuam
vindo trabalhar nas oficinas mesmo assim, porque aqui da pra trabalhar assim,
morando no mesmo lugar, e ainda guardar dinheiro quando você não paga nenhuma
conta e só põe mão de obra”.
Dessa forma, é importante pensar que (e como) esses trabalhadores estão
mobilizando diversos elementos organizativos de seus trabalhados a partir da concepção
pessoal e de seus projetos, inclusive apontando elementos que precarizam o trabalho
como um agente facilitador da acumulação individual. Essas contradições, no entanto,
serão discutidas no próximo capítulo. Aqui, nos limitaremos a demonstrar como o
trabalho escravo contemporâneo é, na realidade, não um anacronismo, mas um
constituidor das relações capitalistas de produção atuais.
2. Escravidão contemporânea: conceito jurídico e político.
A escravidão como base do trabalho social foi abolida legalmente no mundo e
no Brasil no século XIX e, de fato, o conceito de trabalho escravo contemporâneo
passou por um processo de transformação onde parece ter havido um “alargamento” da
noção de escravidão. Diferente da escravidão do período colonial que perdurou por
século no país, a escravidão contemporânea não é mais caracterizada pela noção de
propriedade da força de trabalho, isto é, da pessoa, entre proprietário e escravizado,
outorgada pelo Estado.

Atualmente, as discussões de órgãos internacionais e nacionais e os debates


acadêmico, jurídico e político em torno do conceito são vários, envolvendo polêmicas e
disputas. Trata-se de um conceito que embora possua definição “oficial”, que consta não
só em resoluções internacionais como também no Código penal Brasileiro, envolve os
tensionamentos políticos promovidos pelos atores que o mobilizam.

73
A definição geral, no entanto, começou a ser pautada a partir da Convenção
sobre Escravidão da Liga das Nações de 1926 (CÔRTES, 2013, p. 120), tendo se
ampliado durante todo o século que segue e hoje gira em torno das definições dadas
pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Anti Slavery International
(ASI). Para ambas a questão central é a falta de liberdade, que pode estar colocada
através: da existência da dívida (a escravidão por dívida); da retenção de documentos
essenciais; do cerceamento da liberdade de ir e vir e da existência de um ambiente
coercitivo. Acrescenta também a questão da condição de vida dos trabalhadores: são
condições de vida e trabalho extremamente precárias e que ferem a dignidade humana.

Já a definição brasileira, a partir da influência das disposições internacionais,


está contida no Código Penal do país, disposta da seguinte forma:

Redução à condição análoga à de escravo Art. 149. Reduzir alguém


a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003) 49.

Em torno do debate da região rural, diversos autores brasileiros destacam-se em


suas pesquisas (ESTERCI, 2001; 2008; FIGUEIRA, 1999; 2004; MARTINS, 1994),
chamando atenção também para o movimento combinado entre deslocamento de
população – no caso uma migração interna ao país – e a existência do aliciamento de
trabalhadores vinculado ao trabalho escravo contemporâneo. Aponta-se para a questão
da sujeição do trabalhador a esse tipo de trabalho:

Esta sujeição pode ser física como psicológica. Meios de atingir a


sujeição: a dívida crescente e impagável. (1995, p.46). [...] elementos
que caracterizem o cerceamento da liberdade, seja através de
mecanismos de endividamento, seja pelo uso da força (proprietários
ou funcionários armados, ocorrência de assassinatos, espancamentos,

49
Documento acessado em 29/09/2016 através do link:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm.

74
e práticas de intimidação) [...]. (THÉRY, Hervé, 2010, p. 9, apud.
CPT, 2003, p.138)

No país as primeiras denúncias começavam a surgir no final dos anos 1960


(CÔRTES, 2013) gerando o início do debate sobre o trabalho escravo contemporâneo
primeiramente em torno do trabalho forçado no campo, mediante principalmente à
atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que cumpria a tarefa de informar e
denunciar esse tipo de trabalho em regiões rurais do país. Após mobilização na
sociedade civil os governos começaram a fomentar o debate, e em 1988 o Ministério da
Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD) assina um termo de compromisso
pela erradicação do trabalho escravo (CÔRTES, 2013, p. 115).

Em 1991 o Estado, após promulgar diversas regulamentações internacionais


sobre o assunto, se comprometeu internacionalmente a combater o trabalho forçado. Foi
nessa época também que a definição passou a constar no Código Penal Brasileiro. Em
1994 é firmado um Termo de Compromisso entre o MTE, MPT, MPF e Polícia Federal
com o objetivo central de combater o trabalho escravo rural (CÔRTES, 2013). Em 1995
o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reconhece publicamente em uma rádio a
existência do que chama de escravidão no país e através do Decreto nº 1.538 cria o
Grupo Executivo de Combate ao Trabalho Forçado (GERTRAF) e o Grupo Especial de
Fiscalização Móvel (GEFM) – subordinados à Secretaria de fiscalização do MTE
(CÔRTES, 2013, p. 116).

É na década de 1990 que começam a surgir as primeiras denúncias de ocorrência


de trabalho escravo na região urbana, e este aparece muito relacionado às oficinas de
costura (CÔRTES, 2013). As migrações relacionadas ao trabalho nas oficinas são
anteriores às primeiras denúncias, tratando-se de um fluxo que se inicia na década de
1980, como veremos adiante. A divulgação midiática mais antiga levantada por Côrtes
envolvendo o trabalho escravo contemporâneo urbano foi feita pelo jornal O Globo em
1982 noticiando a ocorrência desse tipo de trabalho envolvendo imigrantes bolivianos
(CÔRTES, 2013, p.106).

Nos anos 2000 o combate ao trabalho escravo urbano entra oficialmente na


agenda política, e em 2003, durante o governo do ex-presidente Luis Inácio Lula da
Silva é lançado o 1º Plano pela Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado ainda no

75
governo FHC. Dele surgem a Comissão Especial de Erradicação do Trabalho Escravo e
a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). É nesse ano que é
instituída também a chamada “Lista Suja”, onde constam os nomes de empregadores
que mantiveram trabalhadores em condição de escravidão contemporânea, comprovado
pelo MPT (CÔRTES, 2013).

O responsável principal pela fiscalização e conscientização acerca das normas de


proteção ao trabalho é o MTE, como define o artigo 626 da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT). Os grupos de fiscalização e combate são compostos por auditores-
fiscais do trabalho, delegados e policiais da PF e procuradores do Ministério Público do
Trabalho. A atuação sempre parte das denúncias, que são avaliadas e estudadas antes de
serem tomadas as medidas práticas de autuação e flagrante.

Atualmente, as políticas que alcançam o momento “pós-libertação” também


estão previstas pelo MTE. Uma delas foi a criação, através da portaria nº 540 de 2004,
de um cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições
análogas a de escravos, a chamada “Lista Suja”. O cadastro é atualizado semestralmente
pelo MTE e enviado para diversos Ministérios e também publicizado para a sociedade
civil. A inclusão na lista se dá a partir da conclusão de inquérito que comprove a
existência do trabalho escravo. No entanto, como esse processo na maioria das vezes
envolve a libertação de pessoas em situações vulneráveis, as políticas também são de
acolhimento imediato dos trabalhadores onde são providenciadas alimentação e
hospedagem, bem como estes são contemplados pela Lei nº 10.608/2002 que garante o
seguro-desemprego emergencial e também envolve capacitação profissional e cadastro
do trabalhador no Sistema Nacional de Emprego – SINE50.

CÔRTES (2013) ao desenvolver a análise de um caso judicial a partir da


denúncia de trabalho escravo contemporâneo apurada pelo MTE envolvendo a empresa
Inditex (conhecida como Zara) procura demonstrar que são diversos elementos que são
mobilizados para caracterizar que o tipo de trabalho encontrado numa determinada
oficina era análogo a de escravo, ou seja, é muito difícil que apenas um elemento dos
que constam no código penal seja suficiente para a caracterização do trabalho escravo

50
ALMEIDA, André Henrique de. Artigo acessado em 01/10/2014 online através do link:
http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11299

76
contemporâneo. Assim, no relatório desse caso específico constam: insalubridade,
jornada de trabalho extensiva e servidão por dívida.

O autor demonstra que a questão da responsabilização do trabalho escravo


contemporâneo ainda é bastante nebulosa. No início do aprofundamento das denúncias e
da divulgação midiática a responsabilidade recaia apenas no proprietário da oficina de
costura, inclusive envolvendo a criminalização dos imigrantes que se encontravam no
país em situação irregular o que enfraquecia o poder de agência dos e das imigrantes
que estavam trabalhando no lugar. O MTE é responsável pelas investigações e
averiguações de oficinas, depois o MPT 51 é responsável pelos processos, tendo
começado a ter a preocupação em demonstrar a responsabilidade de quem contratava as
oficinas de costura, isto é, as empresas maiores e componentes da cadeia produtiva, a
partir do caso analisado da empresa ZARA.

A maior parte das oficinas segue sendo clandestina, e não abarcadas nas
denúncias, investigações e responsabilização de empresas contratantes pela precarização
do trabalho e da vida dos trabalhadores, o que reforça a ideia de que salvo a importância
do conceito nos processos de denúncia na sociedade civil, o “grosso” da produção da
indústria de vestuário da cidade segue sendo feito num regime de trabalho explorado
intensamente e que não é caracterizado “oficialmente” como trabalho escravo
contemporâneo. Assim, defende-se a perspectiva de que o regime de trabalho nas
oficinas de costura segue uma tendência padrão de superexploração.

3. Teoria da dependência: A superexploração do trabalho como


regra e não exceção.
A teoria da dependência surge dentro de um contexto de problematização das
noções de desenvolvimento e subdesenvolvimento, numa perspectiva marxista crítica
(Martins, 2011). Ela busca situar os países periféricos dentro do sistema capitalista

51
O Ministério Público do Trabalho é o responsável por ir além das fiscalizações das oficinas e
tentar coibir que esses casos voltem a acontecer. Assim, é o órgão que ajuíza a ação civil
pública contra a empresa que é responsabilizada no relatório de fiscalização ou, ainda, propondo
uma conciliação extrajudicial através do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) – forma de
diminuir a judicialização das ocorrências (CÔRTES, 2013, p. 165). O fundo de emergência
criado para as empresas destinarem um valor acordado no TAC como multa é gerido pelo
CAMI – Centro de Apoio e Pastoral do Migrante.

77
mundial, tentando compreender suas peculiaridades na perspectiva de que o
“subdesenvolvimento se estabelecia não como negação do desenvolvimento, mas como
o desenvolvimento de uma trajetória subordinada dentro da economia mundial”
(Martins, 2011, p. 230). Ela tenta romper com o que o autor chama de nacionalismo
metodológico “ao buscar a identidade do capitalismo dependente em sua articulação
específica à economia mundial” (idem, p. 237). Os autores brasileiros que se destacaram
nessa teoria e abordados aqui foram Rui Mauro Marini e Theotonio dos Santos, ambos
influenciados por autores estrangeiros como André Gunder Frank e Paul Baran.

Baran (1957) escreve em A economia política do desenvolvimento que o


conceito de excedente é dividido em três formas: excedente econômico real, o potencial
e o planejado:

O excedente real corresponde a toda massa de recursos da economia


disponível, uma vez deduzido o consumo; o excedente potencial se
refere à massa de recursos que poderia ser dedicada ao investimento,
uma vez eliminados o desemprego, o subemprego ou o consumo
suntuário dos capitalistas e da burocracia governamental; e o
excedente planejado se desenvolveria numa sociedade socialista que
eliminaria o lucro como principio de organização social (Martins,
2011, p. 237).

Os recursos produzidos numa sociedade capitalista “central” seriam distribuídos


entre consumo e excedente, e este último iria direto para poupança/investimento. Nos
países dependentes o elemento diferente é que os excedentes produzidos são
apropriados por outros países, numa relação hierárquica, através do mecanismo do
investimento estrangeiro, de divisão internacional do trabalho e de funcionamento do
sistema financeiro e comercial. André Gunder Frank (1973 a 1980) dirá que os países
latino-americanos desde o período colonial se tornaram capitalistas, “e o resultado desse
processo de inserção no sistema mundial foi o desenvolvimento do
subdesenvolvimento” (Martins, 2011, p. 238 – grifo meu).
No que diz respeito aos países periféricos do sistema, como é o caso da América
Latina inteira,
78
(...) para alcançar os níveis globais de concorrência, driblar o cenário
de crise econômica que estava colocando e levando em conta que é
impossível eliminar o trabalho vivo (humano) do processo produtivo
(principalmente da parte da costura, nesse caso) essa indústria precisa
desenvolver formas de reduzir os custos de produção a fim de
permanecer inserida no mercado global de forma competitiva e de
garantir a lucratividade aos proprietários das grandes marcas e
também das oficinas (RIBEIRO, 2015, p. 26).

Nesse sentido, a intenção aqui é realizar uma discussão sobre mecanismos


específicos de gestão e organização do trabalho que se redesenvolveram recentemente e
que são pilares fundamentais da exploração do trabalho dentro das oficinas de costura,
num contexto de economia dependente. Embora já se tenha demonstrado a existência de
trabalho caracterizado politicamente como escravo contemporâneo também em oficinas
em países centrais – como os Estados Unidos com suas oficinas de costura empregando
imigrantes no coração capitalista, Nova York, como demonstrou Saskia Sassen (1998),
a teoria da dependência, colocada de lado nas ciências humanas, parece bastante
adequada para pensarmos as formas de exploração do trabalho em territórios como o
Brasil.

A mais valia produzida dentro de uma oficina de costura é apropriada não só pelo
dono da oficina como também pelo contratante da mesma nos casos em que existe a
relação de terceirização e isso significa uma exploração material maior dos
trabalhadores que ali se encontram, justificada pela necessidade do aumento de
quantidade de mais valia produzida. É como se houvesse dois proprietários contratando
e controlando o costureiro ou costureira, que sentados em frente a uma máquina de
costura, curvados por 12 horas, produzem quase sem pausas, num ritmo frenético.

Miranda durante sua entrevista, disse não saber como conseguia trabalhar tantas
horas, e que sentia dor nas costas de ficar sentada na mesma posição. O horário de se
alimentar era sempre muito rápido e a comida servida não era saudável a uma pessoa
que ficou tanto tempo trabalhando. Uma vez expressou para uma amiga dona de
oficina, tempos depois de sair da profissão de costureira e assumir a função de
pilotera, a vontade de costurar por um dia. Após tentar um pouco, disse que não pôde

79
aguentar por muito tempo, tendo se cansado muito rápido. Os trabalhadores e
trabalhadoras comumente relatam dores no corpo, nas mãos e nas costas, frequentes
durante o trabalho, e que se tornaram presentes até mesmo depois que já haviam saído
das oficinas.

No Brasil, após a proibição e fim da escravidão e consequente fim do tráfico


negreiro o capital foi aumentado e liberado numa tentativa de diversificação da
economia. As transformações na organização do trabalho e o incipiente processo de
industrialização dentro do contexto da transição política e econômica do país trouxeram
impactos significativos na formação da classe trabalhadora brasileira: formada tanto por
pessoas que iam se dirigindo do campo às cidades crescentes de forma desordenada e
também por trabalhadores imigrantes que chegavam ao Brasil, vindos dos mais variados
contextos (RODRIGUES, 1981).

Esse proletariado nacional que começava a se formar nas cidades e a ocupar as


indústrias era de origem rural e com baixa qualificação. Rodrigues (1966) divide a
formação e existência da classe trabalhadora em duas “fases”: uma referente ao período
de constituição do sistema industrial, em que o trabalhador estrangeiro entrou em
proporção esmagadora e constituiu a base do movimento operário, fortemente
influenciado pelas ideologias anticapitalistas trazidas da Europa; e outra configurada
durante os anos 1930 e que se apoiou no trabalhador nativo, de cultura rural e patriarcal
e saído das áreas rurais do país, consequentemente sem experiência urbano-industrial.

Apesar de ser abundante a força de trabalho nacional não foi utilizada nas fases
iniciais da industrialização brasileira, sob a argumentação de possuir um baixo nível
técnico e cultural, uma vez que se tratava de um país recém-saído da escravidão. Das
primeiras décadas da República até o período de 1931-35 a proporção de imigrantes era
bastante elevada, comumente superando o número de trabalhadores nacionais nas
atividades manufatureiras, especialmente no estado de São Paulo. As razões na época
foram: a) na visão dos empregadores os imigrantes eram mais aptos, pois apresentavam
índices mais elevados de instrução e formação profissional; b) eles possuíam alguma
experiência urbana; e c) estavam mais habituados ao modo de vida de uma sociedade
baseada na economia monetária. (RODRIGUES, 1966, p. 105-108).

80
Esse quadro só se modificou num contexto em que a força de trabalho era
totalmente elástica: as indústrias só recorreram ao trabalhador nacional (“desprovido de
cultura sindical e sem experiência urbana”) quando a crise da lavoura cafeeira lançou no
mercado uma grande massa de trabalhadores. Isso nos leva a concluir, portanto, que foi
principalmente das regiões rurais – por muito tempo as principais “células” econômicas
do país – que saiu intensa quantidade de força de trabalho desocupada e disponível para
trabalhar, desprovida dos meios de produção, formando assim um grande “exército” de
trabalhadores ‘livres”.

Edmundo Fernandes Dias (2005) recuperará importantes elementos constitutivos


das classes trabalhadoras no Brasil. A primeira força de trabalho majoritária do país era
constituída por escravos despossuídos, pelo estatuto de propriedade, de sua
subjetividade enquanto trabalhadores e tratados sempre com extrema violência (DIAS,
2005, p. 48). Os trabalhadores livres, em menor quantidade, possuíam a autorização de
se organizarem em associações cuja finalidade era a preservação dos seus ofícios. Nesse
contexto havia também uma forte legislação contra o ócio e a vadiagem. Segundo Dias,
imperava nesse momento um esforço do Estado em minar, com repressão e violência, os
setores mais propensos à organização como, por exemplo, os ferroviários que entraram
em greve em São Paulo em 1906 (DIAS, 2005, p. 48).

A partir principalmente de 1930, e diante de um contexto de relativo avanço da


organização dos trabalhadores, a economia passou por um fortalecimento do setor
industrial e se entendeu que o Estado, e os capitalistas a ele ligados, poderia cumprir um
papel de “captura (...) da subjetividade dos antagonismos” (DIAS, 2005, p. 47) com
uma ideologia de colaboração entre capital e trabalho (p. 51) cujo resultado foi a
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) com objetivo de apaziguar e disciplinar a
força de trabalho, concedendo algumas reivindicações da classe. O Estado passou a
garantir, inclusive, alguns serviços públicos (uma forma de remuneração indireta) como
forma de baratear a força de trabalho (DIAS, 2005, p. 51):

O Estado “fabricava o fabricante” no duplo sentido: criava as formas


legais (relações sociais capitalistas) da integração e passivação dos
trabalhadores e, por outro lado, criava a estrutura estatal necessária ao
desenvolvimento capitalista (DIAS, 2005, p. 52).
81
Dessa forma, achamos importante adicionar elementos econômicos e estruturais
à reflexão e, para tanto recuperaremos como base teórica o economista brasileiro Rui
Mauro Marini (1973; 2008), em seu texto Dialética da Dependência – escrito durante o
período de exílio no Chile e no México, em decorrência da ditadura militar brasileira.

3.1 Discussão sobre o capitalismo brasileiro.


Marini (2008) inicia sua exposição afirmando que os teóricos marxistas por
vezes incorrem em dois erros bastante comuns. O primeiro diz respeito à substituição
do feito concreto por um conceito abstrato – uma espécie de transposição mecânica da
teoria a uma realidade sem refletir especificamente sobre esta última. O segundo, o
inverso, consiste na adulteração do conceito em nome de uma realidade muito rebelde
para aceitá-lo (MARINI, 2008, p. 108): o uso de um conceito para uma realidade de
forma a não entender as limitações que aquele conceito pode ter para explicá-la e,
portanto, abre-se mão da teoria a fim de fazer aquela realidade ser contemplada.

Ressalva feita, o autor afirma que a América Latina no funcionamento da sua


economia e das suas relações de trabalho possui diversas peculiaridades que se
apresentam às vezes como ineficiências e outras como deformações (MARINI, 2008,
p.108) frente a um parâmetro de capitalismo “puro” – o que requer, portanto, olhos e
reflexões atentas a esses detalhes. Dito de outra forma, a reflexão marxista deve voltar-
se para as particularidades do objeto que se propõe analisar em relação ao modo de
produção capitalista em sua “pureza”, que se trata mais de um modelo teórico inicial
para uma análise, e em articulação com os elementos globais onde esse objeto está
inserido, uma vez que em geral a forma mais complexa (de economia) integra e
subordina a mais simples (MARINI, 2008, p. 109).

Situando-se nesse campo de análise, Marini afirmará que o que ocorre na


América Latina é um capitalismo sui generis que nunca poderá se desenvolver da
mesma forma que as economias tidas como avançadas – os países capitalistas centrais.
Dessa forma, o autor refuta teses que defendem a existência de um “pré-capitalismo” na
América Latina numa lógica de pensamento linear onde, num determinado momento, o
país pudesse/iria alcançar o nível de desenvolvimento dos países centrais.

82
Desde o XVI a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a
dinâmica do capital internacional. Os produtos produzidos aqui possibilitaram o
desenvolvimento do capital bancário e comercial europeu e permitiram que as indústrias
de diversos países deste continente se desenvolvessem também, mesmo após os
processos de independência do século XIX que não acabaram com as relações
estabelecidas entre os países do “norte” e do “sul”. Em geral, os países latino-
americanos exportavam bens primários e, posteriormente, também mantiveram relações
comerciais a partir da dívida externa que aumentava conforme aumentavam as
exportações e com os investimentos estrangeiros (MARINI, 2008, p. 110). Por exemplo:
entre 1902 e 1913 o Brasil aumentou em 79,6% as suas exportações e, paralelamente em
144,6% a dívida pública externa. Em 1913 essa dívida externa representava 60% do
gasto público total (MARINI, 2008, p. 111).

A partir da ideia de que é a divisão internacional do trabalho que determinará o


curso do desenvolvimento de uma região, Marini argumenta que se configura uma
relação, entre os diferentes países integrados ao capitalismo geral, baseada na lógica da
dependência, “entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente
independentes” (MARINI, 2008, p. 111). Para ele, essa relação é diferente do que é a
situação colonial, defendendo que a América Latina só realiza plenamente sua
articulação com a economia mundial durante o século XIX, com a criação e
consolidação da grande indústria na região.

Em outras palavras, e em nível mundial o que se tem é a premissa de que o


desenvolvimento de certas partes do sistema só ocorre à custa do subdesenvolvimento
de outras (AMARAL, CARCANHOLO, 2009, p. 217). Os países dependentes perdem
controle sob seus recursos uma vez que os países hegemônicos controlam as relações
dentro do mercado. No entanto, os países hegemônicos só puderam desenvolver-se
industrial e tecnologicamente, bem como no setor de serviços e também no incremento
da população urbana, uma vez que a América Latina desempenhou o papel de fornecer
os meios de subsistência para isso (MARINI, 2008, p. 113), compondo o mercado
mundial de alimentos e de matérias primas.

Quando se trata, portanto, de transações comerciais entre nações distintas e


desiguais, onde uma produz coisas que a outra não produz ou produz de maneira mais

83
fácil (Ex: manufatura X matéria-prima), permite-se que a mais “forte” venda seus
produtos mais caro, o que implica que os países mais “fracos” “devem ceder
gratuitamente parte do valor que produzem” (MARINI, 2008, p. 122). O que ocorre,
portanto, é uma transferência do valor produzido aqui a esses países capitalistas
centrais.

Assim, na corrida para integrar-se à economia capitalista mundial e conseguir


desenvolver-se, a América Latina o faz “fundamentalmente com base em uma maior
exploração do trabalhador” (MARINI, 2008, 115), o que representa um caráter
contraditório da dependência latino-americana, num mecanismo de compensação da
perda de valor transferido para fora dos países daqui. Sendo incapaz de fazê-lo no nível
das relações de mercado, os países o fazem no nível de produção interna, aumentando o
tempo de trabalho excedente (MARINI, 2008, p. 124). Entendemos que essa condição
de desenvolvimento baseada numa elevada exploração dos trabalhadores no Brasil é
possível de ser explicada a partir da teoria marxista das classes sociais.

De forma bastante simplificada, esta dirá que um dos efeitos do processo de


acumulação capitalista é a geração de uma população que “sobra” “sob a condição de
supérflua para as necessidades imediatas da produção capitalista” (DE SOUZA, 2015,
p. 9). Segundo Marini, “é útil ter em mente que a produção capitalista supõe a
apropriação direta da força de trabalho, e não só dos produtos do trabalho” (MARINI,
2008, p. 127).

Dito de outra forma, a exploração capitalista do trabalho (e do trabalhador) é


feita enquanto “operário social”, isto é, a “combinação” da exploração do trabalhador
que está trabalhando e compõe o Exército Operário Ativo (EOA) e aquele que compõe o
Exército Operário de Reserva (EOR), os desempregados, subempregados e parcialmente
empregados ou, ainda, em categorias desenvolvidas por Marx, população flutuante
(rural muita vezes), latente ou estagnada (DE SOUZA, 2015, p. 72). O EOA representa
a “população adequada” ao capitalismo e o segundo a “superpopulação relativa” (DE
SOUZA, 2014, p. 264).

De Souza defenderá a existência no Brasil do que chamará de superpopulação


relativa que representa “(...) uma fração da classe trabalhadora na posição de população
“sobrante” para as necessidades imediatas do capital, cumprindo a função de exército
84
industrial de reserva” (DE SOUZA, 2015, p. 74). Essa população, ao longo da história
do desenvolvimento econômico brasileiro até os dias de hoje esteve sempre presente e
disponível nos movimentos de oferta e procura do capital. Ela representa um estoque
que participa de forma “irregular” do processo de acumulação ou ainda como um fator
de rebaixamento de salário a partir do exercício de uma “constante pressão” (DE
SOUZA, 2014, p. 266), exatamente por se configurar, na função que cumprem na
acumulação, como antagônica do EOA, sua rival na competição; embora do ponto de
vista da luta de classes, EOA e EOR possuam uma característica em comum
fundamental: a de serem expropriados dos meios de produção e disporem, portanto,
apenas de sua força de trabalho para vendê-la.

Antunes (1995) concluirá, assim, que os eixos centrais de luta sindical no Brasil
são contra a exploração excessiva do trabalho e contra a crescente degradação salarial a
que estão sujeitos os trabalhadores no país. Para ilustrar cita um estudo realizado nos
Estados Unidos, na época de seu texto, que avaliou que em 1987 o custo de uma hora de
um operário médio da indústria brasileira era de um dólar e 49 centavos, enquanto que o
trabalhador norte americano custava 13 dólares e 46 centavos (ANTUNES, 1995, p. 23).
Isso, de certa forma, condiciona o movimento sindical brasileiro não poder abandonar
de forma alguma a luta econômica e salarial que é uma luta imediata dentro dos limites
da ordem do Capital apenas contra os efeitos do sistema, e não contra as causas
propriamente ditas.

Marini (2008) afirmará que os excedentes (lucros e juros) nos países


dependentes tendem a ser gerados, portanto, a partir do que chamará de superexploração
do trabalho nos países da America Latina, fruto do “intercambio desigual e dos
mecanismos de transferência de valor que ele reforça” (AMARAL, CARCANHOLO,
2009, P. 217). Essa superexploração ocorrerá via uma “elevação da taxa de mais valia”,
através de arrocho salarial e/ou pela extensão da jornada de trabalho, em associação
com o aumento da intensidade desse trabalho (IDEM, p. 217). Assim, a
superexploração se configurará como uma característica estrutural dos países
capitalistas periféricos, com uma forte relação com a lei geral de acumulação capitalista.

O sistema de compensação feita no nível de produção procura produzir uma taxa


maior de mais valia, já que mais excedente precisa ser gerado para ser apropriado, uma

85
vez que se um capital se apropria de um valor superior ao valor que produz, significa
que outro capital está gerando um valor do qual não se apropria (AMARAL,
CARCANHOLO, 2009, p. 218). A produção de valor, por sua vez, só é possível a partir
do trabalho vivo e os países periféricos são quem mais se utilizam desse trabalho,
gerando mais valor em comparação com os países que utilizam relativamente mais
trabalho morto – no nível de apropriação isso se inverte (AMARAL, CARCANHOLO,
2009, p. 219) – configurando assim as bases da relação de exploração e dependência no
sistema global. Em termos capitalistas, essas formas de exploração resultam numa
remuneração do trabalho abaixo do seu valor, o que se traduz em superexploração do
trabalho (MARINI, 2008, p. 127).

A mais valia relativa, citada anteriormente por Marini, consiste numa forma de
exploração do trabalho assalariado que mediante a transformação das condições técnicas
de produção obtém uma desvalorização real da força de trabalho. É diferente, pois, do
conceito de produtividade, embora este seja uma condição por excelência da mais valia
relativa, isto é, ela é alcançada mediante o aumento da produtividade que faz com que o
trabalhador produza mais produtos no mesmo tempo, mas não mais valor. Isso permite,
ao capitalista rebaixar o valor individual de sua mercadoria em relação aquele valor
geral que as condições sociais (gerais) de produção atribuem a ela, obtendo assim uma
mais valia superior à de seus concorrentes (MARINI, 2008, p. 115), que Marini
chamará de mais valia extraordinária.

No entanto, uma vez que a tendência é que outros capitalistas reproduzam a


lógica e uniformizando-se a taxa de produtividade, não ocorrerá um aumento na taxa de
mais valia, pois “o valor social da unidade do produto se reduziria em termos
proporcionais ao aumento da produtividade do trabalho” (MARINI, 2008, p. 11 .
Tradução livre) o que resultaria, no limite, e objetivamente, numa diminuição geral da
mais valia, porque o que determina a sua taxa não é a produtividade, mas sim o grau de
exploração do trabalho, ou seja, “a relação entre o tempo de trabalho excedente (no qual
o trabalhador produz mais valia) e o tempo de trabalho necessário (no qual o trabalhador
reproduz o valor de sua força de trabalho, isto é, o equivalente ao seu salário”
(MARINI, 2008, p. 116).

86
Portanto, para o capitalista sair ganhando deve haver um aumento do trabalho
excedente sobre o necessário e, para isso, “(...) a redução do valor social das
mercadorias deve incidir em bens necessários à reprodução da força de trabalho, vale
dizer bem-salário” (MARINI, 2008, p. 116). Essa mais valia relativa está ligada à
desvalorização dos salários e explica o caráter contraditório do desenvolvimento da
dependência latino-americana e, mais especificamente, do Brasil. O mecanismo de
compensação frente às relações internacionais de mercado no qual o país está inserido é
exatamente o aumento da exploração do trabalho, via aumento de sua intensidade,
prolongando jornada de trabalho e/ou aumentando a produtividade; arrocho salarial ou
mesmo combinando todos esses elementos (MARINI, 2008, p. 123).

Assim, num país com a quinta maior extensão territorial do mundo e com uma
superpopulação relativa compondo o EOR, esse mecanismo de superexploração do
trabalho se tornou facilitado e, inclusive, padrão da exploração capitalista do trabalho,
elemento que ajuda a explicar as limitações do sindicalismo brasileiro e o fato de que
este se movimenta, como constatou Antunes (1995), principalmente em torno de pautas
imediatas relacionadas à perda salarial – e perda de qualidade de vida, pois a todo
momento está colocado o tensionamento do rebaixamento do trabalho e da maior
exploração do trabalhador.

Embora envolva polêmicas e disputas, existe um consenso de que o trabalho


escravo contemporâneo primeiro se oporia ao chamado “trabalho assalariado livre” por
envolver uma série de situações onde o trabalhador se encontraria coagido a trabalhar
para seu empregador, explicitando uma relação de exploração de trabalho cuja
dominação do trabalhador é bastante escancarada. Por outro lado o consenso gira
também em torno da percepção de que se trata de uma forma de trabalho que além,
supostamente de forma ilógica, permanecer existindo no sistema capitalista de “livres
escolhas” trata-se de uma forma de superexploração do trabalho, conceito que será
abraçado por alguns autores (SILVA, 2006; FREIRE, 2008; Campos, 2009; Xavier,
2010; SOUCHAUD, 2012) não em oposição ao termo escravo, mas chamando atenção
para outra face desse debate, na qual nos ateremos.

Não se nega a importância política e o caráter de denúncia que o termo


escravidão contemporânea possui na nossa sociedade. Trata-se, no entanto, da

87
percepção tida durante a leitura da bibliografia já produzida sobre o tema, bem como da
realização do trabalho de campo de que sendo oficialmente caracterizado como
escravidão contemporânea ou não, o trabalho em questão ocorrido nas oficinas de
costura da cidade de São Paulo é uma expressão clara do processo de reestruturação
produtiva que flexibilizou e precarizou as relações de trabalho e a vida dos
trabalhadores desse setor (FREIRE, 2008).

Se para fins de definição, conforme colocado no Código Penal e debatido


anteriormente é preciso mobilizar uma série de elementos de caracterização, é notável
perceber que em todos os relatos e trabalhos acadêmicos a jornada extensa de trabalho
nas oficinas e a remuneração por produção já fogem do padrão tido como “tradicional”
do trabalho assalariado livre sob o sistema capitalista de produção. Trata-se, portanto,
de uma forma de flexibilização do tempo que coloca nas costas do trabalhador a
possibilidade de alargamento das horas trabalhadas na lógica de “quanto mais se
produz, mais se ganha”.

Martins (1994) já chamava atenção para a problemática que, de certa forma,


encontra-se anterior ao conceito aqui exposto e que diz respeito à inserção histórica que
este possui. A compreensão sociológica a ser desenvolvida no que tange ao debate das
formas de exploração do trabalho desenvolvida é que é “importante entender que não se
trata mais de mera sobrevivência de modos de produção anteriores, mas de produtos do
próprio capital” (MARTINS, 1994, p. 7). Dessa forma, a persistência de relações de
trabalho em que o nível de exploração é extremado por fatores como jornadas extensas
de trabalho, servidão por dívida, remuneração por produção e condições insalubres
(onde o gasto com a manutenção do trabalhador é mínimo) deve ser entendida no
próprio bojo de transformações ocorridas nos sistema capitalista, inclusive nos últimos
40 anos – momento de reestruturação produtiva como veremos adiante e de início das
denúncias envolvendo o trabalho escravo contemporâneo no Brasil como já exposto.

Isso acontece porque o desenvolvimento do capitalismo é desigual, num mesmo


momento histórico em diferentes espaços, e mesmo na indústria há um descompasso
técnico, além das saídas desenhadas para lidar com eventuais crises de produção e por
isso se faz necessário formas distintas de extração do excedente econômico e de
exploração do trabalhador. Martins (1994) faz uma espécie de alargamento do conceito

88
de acumulação primitiva, inicialmente um conceito utilizado por Marx em O Capital e
datado historicamente, ampliando-o como uma noção também de expropriação dos
meios de vida, na superexploração da força de trabalho, afirmando que “essa
modalidade de exploração do trabalho se traduz em acumulação primitiva porque é, em
parte, produção de capital no interior do processo de reprodução ampliada do capital”.
(MARTINS, 1994, p. 9).

A superexploração do trabalho traz como consequência, no território abordado, a


precarização das condições materiais de vida dos trabalhadores da costura. Sua
manifestação mais radicalizada se dará nos casos de flagrantes de trabalho escravo
contemporâneo, mas a realidade das pesquisas aqui demonstradas mostra que há muito
mais oficinas onde funciona a superexploração sistêmica do que os casos de
comprovação do trabalho análogo a de escravo. É uma forma contínua de expropriação
da força de trabalho e da vida dos trabalhadores e explica-se na realidade como
necessária ao desenvolvimento econômico.

A evidência de inúmeras contradições descobertas em campo surge o


questionamento sobre como essa superexploração será percebida, tolerada, manipulada
e denunciada pelos trabalhadores da costura. Como se manifestará a superexploração
nos discursos e que histórias de vida justificaram, e auto-justificaram, a mobilidade
dessa força de trabalho na direção de um trabalho precarizado. Esses questionamentos
são os que darão o toque ao próximo capítulo.

89
CAPÍTULO 3: O paradoxo da liberdade: Exploração do trabalho e
resistência na ideologia neoliberal

(...) o que seria aquilo se todas as pessoas se rebelassem e


exigissem um melhor tratamento. até às almas tem de ser
conferido o direito ao protesto, que estar-se morto não pode ser
sinal de imbecilidade, pensava ela, é claro que estar morto é ainda
pensar, pensar mais, porque tudo se decide para sempre, não se
pode brincar com uma coisa assim. Faça-se uma greve, uma
manifestação, uma porcaria qualquer que obrigue essa gente a
respeitar quem para cá vem só para ser desprezada. (MÃE, Valter
Hugo. O Apocalipse dos trabalhadores).

1. Indivíduos, trabalhadores: a vida coletiva na sociedade


capitalista

Os indivíduos que vivem na sociedade capitalista e que se relacionam


produtivamente através da venda de sua força de trabalho, são muitos e muito diferentes
entre si. Há muitas formas de se trabalhar, o que gera uma classe trabalhadora bastante
heterogênea. Soma-se a isso um “ambiente” de trabalho que embora sempre marcado
pela competição e concorrência que se forma entre esses indivíduos, viu esta
característica aprofundar-se nas últimas décadas. Os sujeitos que trabalham, então, ao
mesmo tempo em que se tornam próximos por meio desse trabalho, são também
concorrentes entre si.

O consenso da literatura até aqui apresentada aponta para sua exploração como
trabalhador e também como indivíduo. Também aponta para a existência de uma cadeia
produtiva cuja lógica de funcionamento é o lucro – e o enxugamento dos prejuízos,
lógica sob a qual estão submetidos seus trabalhadores. Por fim, a literatura aponta que a
exploração do trabalho gera consequências negativas para esses trabalhadores, ao

90
mesmo tempo em que estes se veem muitas vezes assujeitados a essa condição de
vida52.

Assim, a inquietação surgida a partir das entrevistas e histórias compartilhadas


veio não só no sentido de conhecer mais profundamente aquelas pessoas e suas relações
com o mundo, mas também pensar o que dali compartilhávamos em geral na sociedade;
o que das histórias escutadas estava presente também no campo observado, nos
discursos sobre a imigração e o trabalho. Quais os elementos simbólicos que
justificavam sua imigração, seu trabalho e sua vida enquanto trabalhador? Como se
manifestavam os elementos da reestruturação produtiva, da competição e
heterogeneidade da classe a partir da subjetividade dos trabalhadores? Bem como as
contradições, denúncias, elementos de rebeldia e de aceitação de condições específicas
de trabalho, etc.

E no que diz respeito às contradições, a noção de liberdade representa uma das


principais. A percepção da liberdade dos sujeitos em se deslocarem sempre ficou
evidente nas entrevistas. O ato de mobilizar-se entre fronteiras em busca de uma vida
melhor sempre foi apresentado nos depoimentos aqui colhidos como uma escolha feita
livremente e de forma consciente. Por outro lado, a liberdade de deslocamento e a
possibilidade de mudança de vida estiveram em grande parte das vezes atreladas à
negação da liberdade sentida nos locais de trabalho, que muitas vezes não correspondia
às expectativas, altas ou baixas, desses indivíduos. Ser livre para construir seu próprio
percurso estava sempre subjulgado a não ter praticamente nenhuma liberdade em opinar
sobre que tipo de trabalho aceitar por um período: se aceita aquilo que é necessário para
atingir o objetivo, e isso não corresponde à liberdade de poder escolher o que seria
“aquilo que é necessário”.

Dessa forma, entende-se que liberdade é, de fato, uma “dupla liberdade”,


pensamento desenvolvimento por Gaudemar (1977) que discute exatamente as
ambiguidades dos processos de trabalho dos indivíduos em mobilidade. A ideia de
liberdade, um dos três conceitos pilares da Revolução Francesa de 1789 é, como tantos

52
Esse conceito e essa discussão são desenvolvidos no trabalho de mestrado de Tiago Rangel Côrtes,
realizado em 2013 e bastante utilizado a essa reflexão. Sugiro a leitura do trabalho para um maior
aprofundamento teórico sobre a discussão.

91
outros conceitos, preenchida pelo conteúdo político e social dos momentos históricos no
qual se cunha, e se testa e, portanto, é uma ideia não estática e percebida de formas
diferentes numa sociedade heterogênea.
Também foi necessário refletir as particularidades de processos de mobilidade
do trabalho cujos sujeitos são imigrantes, migrantes transnacionais que atravessam
fronteiras. Como apontou também Villen (2015), há singularidades em se ser um
trabalhador ou trabalhadora estrangeira num determinado território e estas influenciarão
significativamente na qualidade de vida e de trabalho dessas pessoas. É importante
entender que ainda que os discursos de vida e emprego feitos pelos entrevistados
representem aspectos gerais da sociedade do trabalho atual, também trazem as
especificidades da vulnerabilidade de ser estrangeiro, o que altera e alterou em seus
casos aspectos significativos da sua qualidade de vida, como foi apontado em diversas
conversas.

O início dessa reflexão, portanto, não poderia deixar de lado essas


especificidades dos trabalhadores estrangeiros, aqui entendidas também como um fator
de fragmentação, pelo recorte da identidade/nacionalidade, entre a já heterogênea classe
trabalhadora – ou classe que vive do trabalho (ANTUNES, 2009). Posto isso, diversos
elementos ideológicos presentes nos discursos ouvidos, no entanto, representam
aspectos gerais do trabalho na sociedade capitalista. Dessa forma, independente da
nacionalidade do indivíduo – aquilo que legitima a sujeição à exploração do trabalho
nos dias atuais aponta um caminho importante para a compreensão dos mecanismos de
legitimação da lógica do Capital.

Penso que essa discussão é indispensável em nosso mundo e nesse momento em


que vivemos. Os processos produtivos que operariam em manutenção da lógica de
acumulação e lucro, a lógica do capital, demandaram transformações profundas e
qualitativas nos sujeitos políticos da nossa sociedade. A exploração do trabalho parece
se legitimar através de discursos de merecimento, esforço individual e ascensão social –
formas de o sujeito desenvolver-se, em sua vida, que escapam às possibilidades
coletivas colocadas, por exemplo, em movimentos anticapitalistas pelo mundo todo.

Uma das entrevistadas, quando perguntada sobre as condições de trabalho, me


deu uma resposta que colocou um problema importante a ser refletido: o fato de que o

92
trabalho na costura é abertamente reconhecido como difícil e extenuante e mesmo assim
diversos homens e mulheres permanecem imigrando nessa rede, aceitando, portanto
assumir esse tipo de trabalho. A questão que se desenhou, então, foi por que essas
pessoas estavam tão dispostas a realizarem seu projeto migratório numa travessia e para
um trabalho já conhecidos como difíceis? Yarita, por exemplo, não pôde me responder
objetivamente, e nem eu poderia. Em seu discurso, as coisas são assim porque são, e o
caminho extenuante do trabalho é naturalmente compreendido como parte necessária de
um processo de “evolução” do indivíduo. A recompensa virá em algum momento.

Em diversos discursos os problemas materiais de precarização do trabalho e


elementos necessários para, pela legislação, confirmar-se a existência de trabalho
escravo contemporâneo, eram tidos como obstáculos a serem superados, mais do que
problemas estruturais a serem resolvidos coletivamente. Era o desafio de conseguir
superarse, palavra que ouvi em mais de uma entrevista, ideia movida por mais de um
entrevistado e que representa a construção de um projeto migratório e de vida cunhado
na possibilidade da ascensão social. Além disso, e como demanda mesmo grande
investimento pessoal e financeiro, essa construção da narrativa é baseada em uma
grande noção autocentrada do indivíduo, isto é, a ideia de que todo o caminho traçado e
todas as vitórias conquistadas se deram pela determinação e capacidade dos próprios
sujeitos de se superarem.

Assim, e quando discutíamos a percepção de coletividade deste setor de


trabalho, percebi que havia a predominância da fragmentação, isto é, a reestruturação
produtiva não só reorganizou a produção dum ponto de vista material, descentralizando
a antiga fábrica, como também reorganizou toda a ideia relativa ao trabalho, seu léxico,
por assim dizer. Na costura a visão predominante é a de um trabalho individual. O fato
das oficinas tenderem a ser pequenas e a remuneração por produção (FREIRE, 2008;
CÔRTES, 2013, et. Al.), por exemplo, são fatores objetivos determinantes de uma
consciência de trabalho onde os sujeitos se encontram não só fragmentados, cada qual é
um qual, como em uma profunda concorrência constante. Cada um por si e, não poucas
vezes, a ideia transcendental de um Deus por todos53.

53
Em mais de uma entrevista foi possível perceber que a religião era um elemento importante na
significação do mundo e da vida para as pessoas entrevistas. Muitos homens e mulheres em diversos
momentos de suas narrativas recorrerão à fé e à religião como forma de superação dos problemas e como
93
Predominava a ideia, em geral, de que cada realização de trabalho, cada criação
de riqueza e valor, era feita única e exclusivamente através do esforço pessoal do
indivíduo. Dessa forma, é possível criar uma projeção de vida futura onde os esforços e
sacrifícios serão recompensados, quase como um investimento calculado onde o
trabalhador aceita se esforçar mais por um determinado período, pois vê nisso a
possibilidade de acumular mais rápido e, reconhecendo as condições de trabalho como
ruins, poder sair dele e se tornar seu próprio chefe, por assim dizer, às vezes abrindo a
própria oficina, às vezes mudando de profissão, às vezes ascendendo dentro da
hierarquia da costura.

Claro que o esforço pessoal de cada um com quem conversei e de todos os


outros e outras imigrantes e trabalhadores não pode ser jogado fora. Ele é determinante,
inclusive. Não fossem esses indivíduos trabalhando, tais processos de mobilidade do
trabalho não existiriam. São eles que criam, são eles que estão relacionando-se
produtivamente, entre si e com outros atores, significando processos produtivos
objetivos, rompendo com eles ou seguindo sua lógica, atribuem-lhes significados e
reproduzem ideologias. Em geral, no entanto, o que mais ficou evidente em dois anos de
campo foi a capacidade que a reestruturação produtiva, a acumulação flexível e a
ideologia neoliberal tiveram em aprofundar a fragmentação e a concorrência entre os
trabalhadores e trabalhadoras, desarticulando sua identidade compartilhada e sua
possibilidade de coletivização.

As reflexões que se seguirão estão ainda interminadas, recriam-se a cada dia –


como há de ser com toda produção de conhecimento. São reflexões iniciais a partir da
inquietação gerada em dois anos de trabalho de campo e histórias divididas. Esse
capítulo configura-se, portanto, como um fechamento duma investigação onde procurei
articular a todo o momento as determinações e significações objetivas e subjetivas de
trabalhadores e trabalhadoras, imigrantes, num contexto de superexploração do trabalho,
reestruturação produtiva e ideologia neoliberal. A articulação entre micro e macro – o
universo percebido e aquele vivido socialmente.

uma ajuda importante para enfrentar os problemas de sua mobilidade e de suas vidas. No entanto, essa
pesquisa caminha em outro sentido e por isso ficaria impossível analisar, por hora, as consequências e
significações da religião e da fé nos projetos migratórios.

94
Assim, fica o desejo de que essas reflexões iniciais possam ser o pontapé futuro de
novas investigações e de aprofundamento das pesquisas já realizadas, no sentido de se
construir uma sociologia das migrações e do trabalho que seja articulada entre si, crítica
ao sistema produtivo dominante e propositiva no sentido de especular sobre as brechas e
rupturas do discurso “oficial” e de seu modo de funcionamento, no vislumbre de
transformações possíveis que reconheçam a potencialidade dos sujeitos, imigrantes,
trabalhadores estrangeiros em significar e criar a própria vida; em carregar consigo
experiências históricas transnacionais e em produzir sentidos de solidariedade e
coletividade a partir de novos espaços, indispensáveis para se pensar alternativas
coletivas de emancipação da sociedade, onde seja possível que a maioria, a classe que
trabalha, possa conjuntamente superarse.

1.1 Peculiaridades em ser trabalhador imigrante


Os elementos políticos e ideológicos presentes na reestruturação produtiva
neoliberal certamente afetam todo o conjunto de trabalhadores e trabalhadoras no
mundo capitalista globalizado. A reorganização do trabalho e as transformações
geográficas da expansão do capital geraram e geram, conforme demonstrado no capítulo
1 deste texto, fluxos migratórios compostos por indivíduos interessados e necessitados
em vender sua força de trabalho, motivados por aspirações pessoais e transformações
objetivas. Assim, as e os trabalhadores aqui pensados são também imigrantes que se
deslocaram através de fronteiras, configurando-se como trabalhadores cuja principal
especificidade reside no fato de serem estrangeiros.

Deve-se ter em mente que entre os Estados Nacionais, há desigualdades


econômicas, uma vez que estes ocupam posições diferentes na divisão internacional do
trabalho, elemento fundamental para entender a migração numa perspectiva que envolva
sua articulação entre níveis de interpretação micro e macro. O mercado é algo “comum”
e unitário entre esses diferentes territórios, mas produtor de inúmeras desigualdades
tanto nas relações de “livre troca” quanto nas relações econômicas e políticas entre
países (VILLEN, 2015). É impossível querer compreender os fluxos migratórios atuais
sem procurar também em seus “primórdios”, isto é, a existência de características
objetivamente determinadas, que passa também pelo entendimento do processo
histórico analisado por Marx e chamado de acumulação primitiva – e expansão do
Capital (Idem, p. 21).
95
Segundo Villen (2015), revisitar essa discussão é importante porque nos da base
para entender a “essência da condição social vivida por aqueles que migram, ou seja, o
traço de ‘dependência absoluta’ da venda da própria força de trabalho” na
contemporaneidade (Villen, p. 21 apud. Marx, [1890] 1968: 888). Marx identificou
diferentes métodos de acumulação primitiva, todos ligados diretamente à expropriação
de pequenos camponeses e conversão dos meios de produção em capital. Esse
movimento culmina no deslocamento dos trabalhadores, que agora possuem apenas a
sua força de trabalho e, para que seja possível continuar produzindo são obrigados a
vendê-la em troca de um salário. Esse movimento de expropriação não está restrito a um
determinado momento histórico, mas sim se reproduz constantemente (HARVEY,
2004).

Disso, deduz-se a existência de uma premissa do funcionamento do capitalismo, “de


criar e manter a oferta de força de trabalho sempre em patamares mais altos do que a
procura” (VILLEN, 2015, p. 22-23). Para além do fato de que essa classe de
trabalhadores dispostos a trabalhar precise existir, é preciso também que ela esteja
disposta a trabalhar, produzir ativamente. Essa disposição é criada a partir de meios
coercitivos subjetivos e materiais, inclusive através da incorporação de um sentimento
de dependência que o trabalhador tem em relação ao capitalista (VILLEN, 2015).

A divisão internacional do trabalho, e o fato de que o capitalismo configura-se como


um sistema econômico-social dominante, interfere diretamente no que será a concepção
de trabalho (e trabalhador) livre. Essa divisão estabeleceu-se historicamente, primeiro
nos processos de colonização que dividiram colonizados e colonizadores, garantindo
que os primeiros respondessem à demanda de produtos agrícolas e, atualmente, dentro
do processo de produção de bens industriais. No entanto, ainda permanece uma divisão
daqueles países que estão por cima e dão ordens e dos países por baixo que obedecem
(VILLEN, 2015, p. 24 apud. Basso, 2003).

Mesmo como as transformações a partir da reestruturação produtiva, o cerne de


funcionamento da sociedade capitalista permanece o mesmo, material e
ideologicamente, e mais do que isso, no que diz respeito aos fluxos migratórios, “o atual
estágio de expansão do sistema capitalista coincide com uma ‘superpopulação relativa,
o exército proletário de reserva mais amplo da história do capitalismo’, sendo que uma

96
parte dele ‘está destinada às migrações, internas e internacionais” (Villen, p. 25 apud.
Basso, 2003, p. 89).

A partir do momento em que adentram o território nacional, imigrantes passam a ser


encarados segundo uma legislação específica, que regulamentará suas possibilidades de
trabalho e de vida no país de destino. Ao menos juridicamente, o ato de cruzar a
fronteira e dispor da sua força de trabalho a fim de conseguir um emprego passa,
portanto, pela constituição de um sujeito trabalhador específico, com algumas
peculiaridades aos olhos da sociedade de destino. Os Estados-Nações são estruturas
indispensáveis ao funcionamento global do capitalismo, regulamentarão e legislarão as
migrações influenciando decisivamente nos fluxos populacionais e em suas
consequências. “O reforço das fronteiras é um mecanismo que facilita a extração de
mão de obra barata mediante à associação de um status criminal a um segmento da
classe trabalhadora – imigrantes ilegais” (SASSEN, 1993, p. 5) 54.

Quando Mauge chegou ao Brasil, 30 anos antes da nossa entrevista, feita em 2015,
foi para ficar temporariamente. Na época o discurso acerca da imigração era
predominantemente de criminalização, e Mauge entrou no país de forma “irregular”. Ela
permaneceu trabalhando nessa situação, em uma oficina de costura, por um ano inteiro,
e afirmou que a condição de irregularidade colocava os e as imigrantes em uma situação
muito mais marginalizada, tanto na sociedade quanto nas próprias oficinas. Depois de
um tempo no país e de uma medida do governo que anistiava os imigrantes irregulares,
Mauge conseguiu regularizar sua situação junto com seu marido e seu filho, nascido
aqui.

Mauge identificou a irregularidade como um agravante de condições de trabalho


precárias, embora esta não seja a única determinante da precarização nas oficinas.
Miranda também afirmou que a posse de um documento, o RNE, foi fundamental para
que ela pudesse “trabalhar tranquilo sin que molesten”55. Santiago, por fim, que
também entrou de forma irregular no país demonstrou em um momento de nossa
54
Traduzido da versão original em espanhol: “El refuerzo de las fronteras es un mecanismo que facilita la
extracción de la mano de obra barata mediante la asignación de estatus criminal a un segmento de la clase
trabajadora – inmigrantes ilegales” (SASSEN, 1993).
55
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos. Mp3 (1’8’’).

97
conversa que a situação de irregularidade da imigração propicia uma possibilidade
maior de exploração do trabalho, quando perguntado por mim qual a justificativa para
tantas horas de trabalho por dia, em longas jornadas:

É... bueno.. Así é el trabajo de todo inmigrante que viene acá


porque estaba trabajando ilegal.. Hasta ahora sigo trabajando
ilegal pero mas el trabajo que estoy ahora está mucho mejor.
Pero hasta ahora digo que no és um trabajo digamos así como
una persona deve trabajar como legal e deves trabajar hasta
ocho horas no y yá. Pois está”.56 (grifos meus).

Isso demonstra que a delimitação de fronteiras e territórios e centralização de um


Estado que regulamente as migrações é vital para o funcionamento da produção e
organização dos processos de trabalho, bem como para o controle da divisão
internacional do trabalho entre países centrais e periféricos do sistema. Assim, os
sujeitos imigrantes são tratados e governados como “mercadorias” — sujeitos de
controle que, como diz Sayad, hora são encarados como provisórios, hora como
definitivos — a depender do momento e situação da economia política num
determinado país. Para isso servem então as políticas migratórias e a persistência de
normatização proveniente do Estado-Nação.

Os governos de diversos países tentam atrair as empresas, concedendo “subsídios


para a formação de trabalhadores para essas instalações” (SASSEN, 1993, p. 198)57.
“Os patrões não buscam somente conseguir mão de obra, como também conseguir uma
mão de obra que se possa empregar sob condições específicas de organização do
processo laboral” (SASSEN, 1993, p. 68). Como exemplo desse apontamento da autora,
é possível refletirmos sobre o Estatuto do Estrangeiro vigente no país, a Lei 6.815 de 19
de agosto de 198158, cujo início já apresenta um teor altamente fragmentado e

56
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
57
Traduzido do original: “subvenciones para la formación de trabajadores para estas instalaciones”.
58
Na época da conclusão dessa pesquisa, mais precisamente em 18 de abril de 2017 o senado brasileiro
aprovou a nova Lei de Migração (SCD 7/ 2016 e PL 288/2013) que modificará elementos criticados no
Estatuto, avançando no debate sobre o direito de migrar, embora ainda com algumas questões críticas no
texto novo. Uma vez que o foco não é a aprovação da lei, que segue esperando sanção presidencial
sugere-se o acompanhamento dos novos debates sobre a lei, uma vez que mesmo com sua aprovação final
98
polarizado, afirmando a “valorização do nacional”, inclusive falando de interesses
culturais do Brasil e também na “defesa do trabalhador nacional”. No artigo 16,
encontra-se o seguinte conteúdo:

Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão de


obra especializada aos vários setores da economia nacional visando à Política
Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento
de produtividade, e à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para
setores específicos. (redação dada pela lei 6.815 de 09/12/1981)

Por fim, como demarcação essencial da diferença entre o trabalhador nacional e o


estrangeiro, os artigos 106 e 107 negam os direitos políticos e de organização desses
indivíduos, seja através de sindicato, associação profissional ou mesmo dando opinião,
participando de manifestações e realizando eventos que tenham a ver com a discussão
política e pública do país. Quando os trabalhadores estrangeiros são privados de
direitos sociais e políticos, isso mina a classe trabalhadora, segmenta-a (SASSEN, 1993,
p. 95).

No que diz respeito à legislação brasileira, os artigos destacados aqui são os


mais gritantes em relação à diferenciação entre trabalhador “natural” e estrangeiro. Essa
diferenciação materializada em lei parece não estar descolada do que é a realidade do
trabalhador estrangeiro. Em todas as entrevistas realizadas em campo foi dito que a
diferença cultural, principalmente no que diz respeito ao idioma e à comunicação, é
fortemente sentida por todos aqueles e aquelas que aqui vieram viver e trabalhar.

Para esses trabalhadores e trabalhadoras da costura, ser estrangeiro é estar, social


e culturalmente, marginalizado na sociedade de destino onde não se conhece as leis e
costumes, onde não se domina completamente o idioma e onde, por fim, se é percebido
a partir de uma visão hierarquizada – o preconceito que sofreram ao mudaram-se para o
país também foi relatado durante todo o trabalho de campo. As condições materiais de
vinda, entrada e permanência na sociedade de destino são fundamentais para
entendermos a participação destes no mercado de trabalho local.

ainda demorará um tempo para que a prática do controle migratório brasileiro se modifique atendendo à
nova lei.

99
Os discursos, jurídico e cultural, construídos em torno da imigração são
fundamentais para entender a segmentação que se produzirá entre a classe trabalhadora
num determinado território a partir do binômio nacional/estrangeiro, polarização que do
ponto de vista econômico e político servirá bem ao mercado de trabalho, pois aqueles
setores com as piores condições de trabalho passam a absorver a força de trabalho
imigrante, uma vez que os nacionais não trabalharão nesses setores (VILLEN, 2015, p.
86).

No entanto, é importante lembrar que os aspectos sociais e econômicos de


formação da sociedade brasileira demonstram que a precarização do trabalho não é algo
que toca exclusivamente trabalhadores estrangeiros, embora também seja importante
lembrar que em determinadas relações de poder na sociedade estes estão mais
vulneráveis, pela sua própria condição de ser: imigrante como condição social e de
classe (Sayad 1998). Assim, “dessa vulnerabilidade deriva uma maior exposição e
disponibilidade (por necessidade) à exploração, no trabalho e em todos os âmbitos da
vida social em que sua presença possa se tornar lucrativa (...)” (VIILEN, 2015, p. 211).

Os fluxos imigratórios que se desenvolvem no bojo da reestruturação produtiva


serão absorvidos dentro de uma perspectiva de rebaixamento das condições de vida, seja
nas sociedades de origem seja nas de destino, bem como precarização das relações de
trabalho e, portanto, serão absorvidos nos segmentos mais precarizados de trabalho,
mesmo nas regiões de capitalismo central - como Sassen (1988) chama atenção para as
oficinas de costura de Nova York. (VILLEN, 2015, p. 86/87).

A imigração contemporânea ao Brasil envolve em maior número um grupo de


imigrantes “carentes de recursos econômicos” e, portanto, a relação entre a imigração e
o trabalho é construída a partir da urgência de se obter meios que lhes garantam
sobrevivência. Assim, dentro do pólo dos países periféricos a natureza da relação entre
imigração e trabalho “está essencialmente contida na condição de dependência absoluta
(Marx, 1968) da venda da própria força de trabalho para suprir necessidades materiais
básicas (...)” (VILLEN, 2015, p. 208). Em primeiro lugar, portanto, o trabalho
corresponde à sobrevivência e, logo em seguida, e com muito sacrifício dos
trabalhadores, ele se torna uma forma de acumular, seja para enviar para fora do país,
seja para investir em “si mesmo”.

100
Por fim não podemos esquecer que outro elemento relacionado importante de
caracterização dessa cadeia produtiva é exatamente a informalidade do trabalho, embora
tenha sido apontada a contradição que isso pode representar, uma vez que há discursos
de imigrantes que encaram a informalidade como algo positivo como se verá mais
adiante. É evidente, no entanto, que a informalidade e a marginalização que em geral se
produz em relação aos estrangeiros, tornam-se difícil a regulamentação oficial
trabalhista bem como a atuação dos sindicatos em relação à proteção dos trabalhadores
informais e imigrantes (CÔRTES, 2013, p. 184).

Ao inserirem-se na economia através do trabalho nas oficinas de costura, e


permanecendo no âmbito da informalidade os e as imigrantes também reforçam,
inclusive em seus discursos, a ideia da responsabilização pessoal do próprio trabalhador
acerca do seu trabalho e das condições do mesmo. As mudanças introduzidas pelo
pensamento neoliberal aqui se expressam de forma profunda no que tange às relações de
trabalho, pois deslocam o eixo de “responsabilidade” pelo trabalho em seu sentido mais
amplo aos trabalhadores e trabalhadoras, neste caso, imigrantes. Estes se constroem e
são construídos como empresários de si mesmo, como se fossem indivíduos isolados a
construir trajetórias e cruzar fronteiras, únicos subjetivamente determinadores de suas
condições de migração, trabalho e permanência.

Como procuraremos demonstrar a seguir, aqui se encontram profundas


contradições pautadas pelo paradoxo central do trabalho livre no contexto de
reestruturação produtiva e ideologia neoliberal que se aprofundaram e desenvolveram
dentro do capitalismo contemporâneo. Tais contradições, ainda que expressem as
diversas formas mais ou menos sutis de dominação e legitimação da exploração do
trabalho também apresentam possibilidades de brechas e rupturas. Elas estavam
presentes nas histórias de vida e discursos de migração ouvidos durante todo o trabalho
de campo e foram o principal motor de reflexão deste texto.

2. Ideologia e a construção da subjetividade


As entrevistas e conversas ouvidas nessa pesquisa despertaram uma curiosidade
subjacente às reflexões iniciais, quando finalmente pude entender o que era deixar “as
entrevistas determinarem o curso da investigação” como muito me foi orientado. Um
olhar e ouvido atentos ao que diziam os trabalhadores com quem convivi me fizeram

101
perceber que havia diversos elementos contraditórios em seus discursos, em que hora se
criticava hora se elogiava o trabalho, a vida, os patrões, o país de destino e o de origem.
A questão da ideologia, então, fez-se presente.

Foi possível encontrar leituras que procuravam justamente pensar a


transformação da ideologia a partir da crise dos anos 1970 e da reestruturação produtiva,
que resignificou o próprio trabalho em si (HARVEY, 2002; HARVEY, 2005; ALVES,
2008; DARDOT e LAVAL, 2016). É possível perceber que com essas transformações
estruturais do sistema alteram-se também questões ideológicas, de subjetividades – da
formação de discursos e do funcionamento da consciência dos diferentes grupos que
compõem a sociedade. Transformou-se os locais de trabalho e sua organização e isso
com certeza gera também uma transformação na forma como os trabalhadores passam a
enxergar seus trabalhos e os locais onde o executam.

Materialmente falando, as oficinas contêm números pequenos de trabalhadores


em seu espaço, e são várias espalhadas pela cidade, tendo a maioria das entrevistas
convergido entre si no sentido de apontar essa pequena quantia de trabalhadores
reunidos num mesmo local, além de com frequência muitos serem parentes do dono da
oficina. Essa reorganização material do local de trabalho, que diminui o número de
pessoas reunidas é possível de ser interpretada como uma forma de eliminar a
possibilidade de organizações coletivas no local de trabalho, aprofundando a segregação
entre os funcionários.

Na primeira oficina onde Yarita trabalhou, por seis ou sete meses, ela conta que
sofreu por inveja das pessoas que trabalhavam lá. Ela disse que contava com a filha
apenas, e os outros trabalhadores e trabalhadoras ali eram parentes do dono, por isso
mesmo ela se sentia isolada, relatando que inclusive chegou a sofrer sabotagens no seu
trabalho, feitas por esses outros trabalhadores. A lógica dentro da oficina é o
aprofundamento da concorrência. Ora, isso ocorre porque o motor da sociedade
contemporânea permanece sendo o capital e, portanto, o lucro. Essa lógica do ganho
individual se aprofunda num cenário com forte competição, a ponto de um trabalhador
optar por sabotar o trabalho do outro a fim de prejudicá-lo.

Essa sempre foi a lógica de funcionamento da sociedade capitalista, mas como a


reestruturação produtiva, ela teve que se adaptar às crises e novas realidades do capital.
102
A reorganização da produção demandou também uma nova configuração ideológica
aliada às transformações materiais da produção, transformando também as formas como
a exploração do trabalho é legitimada pelos próprios trabalhadores. Esses indivíduos, do
ponto de vista do local que ocupam dentro do processo produtivo, continuam podendo
ser reunidos enquanto classe, uma vez que sua força de trabalho, explorada, representa
interesses antagônicos em relação a quem lhes explora, porém na maior parte do tempo
eles não se enxergam assim, como coletivizados pelo trabalho.

Assim, se fez importante refletir sobre as limitações que a reestruturação


produtiva trouxe, do ponto de vista ideológico, na organização de uma consciência
coletiva, de classe, que possui objetivos em comum e se organiza em torno disso; bem
como, por outro lado, procurar entender como se conformava essa ideologia nos
discursos dos e das trabalhadoras, e em que momentos era possível enxergar as
contradições desse discurso, isto é, as entrelinhas onde era possível capturar cenários de
coletividade e consciência da exploração, onde os entrevistados se reconheciam nos
seus colegas de trabalho, e não apenas enquanto sujeitos isolados.

Santiago apontou outro elemento interessante acerca do coletivo de


trabalhadores por local de trabalho: a alta rotatividade de pessoas que passam pelas
oficinas, em especial na primeira em que trabalhou, segundo Santiago rotatividade
justificada pela própria postura autoritária do proprietário, que segundo ele era um
senhor que gostava de explorar as pessoas, algo que parece ilógico, já que a oficina é
um espaço de exploração por excelência; ocorre que essa exploração só parece ser
percebida como incômoda quando aliada a uma prática autoritária e até cruel do patrão.
O acordo de pagamento nessa oficina era mensal, mas para Santiago isso era o que dava
margem para o proprietário ganhar mais

Porque llegava gente estava uma semana, duas semanas


trabajando e se iban... Entonces el dueño, o sea el oficinista no
les pagaban. No les pagaban el trabajo que habian hecho.
Porque se suponia que se hizo se hablo para um mês de trabajo

103
tenia que cumplir el mês. Se no cumplió el mês no les pagaba
nada, entonces...59

Conforme Meszáros (1996) a sociedade está inteira impregnada de ideologia.


Para ele, “(...) a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-
orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e
sustentada” (MÉSZÁROS, 199 , p. 22). Ela se constitui “objetivamente (e reconstitui-
se constantemente) como consciência prática inevitável das sociedades de classe,
relacionada com a articulação de conjuntos de valores e estratégias rivais que visam ao
controle do metabolismo social sob todos os seus principais aspectos” (idem).

A ideologia dominante na sociedade se afirma combinando uma forma violenta e


outras maneiras mais refinadas (MÉSZÁROS, 1996, p. 15). Foi construída dentro de um
processo de lutas, disputas e transformações ao longo da história, adaptando-se sempre
às novas realidades e necessidades colocadas, indispensável à manutenção da lógica
central de funcionamento da sociedade. Nesta que vivemos atualmente, a ideologia
dominante, a burguesa, é a que controla os elementos de legitimação de funcionamento
da sociedade capitalista. Em outros termos, a ideologia é um modo, que serve
principalmente ao grupo social dominante, de controle do metabolismo social (Idem, p.
23) e de manutenção para o funcionamento das forças produtivas sociais.

A cidadania, conceito amplamente difundido em nossa sociedade, é um exemplo


de construção dentro de uma ideologia burguesa, tendo nesse sentido sido esvaziada de
seu conteúdo real, que envolve conflitos de classe. Os conflitos que ocorrem hoje na
sociedade aparecem na forma de disputas entre indivíduos isolados, baseado no
argumento de que estes são juridicamente “livres e iguais” (DIAS, 1999). Esse tipo de
construção é um apagamento da ideia de que existe um grupo dominante na sociedade,
percepção que nos permite chegar à conclusão de que se trata de uma dominação de
classe.

A ideologia serve aos interesses de dominação de uma classe social sobre outra,
pois num nível simbólico, de formação de consciência, ela será indispensável à

59
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).

104
manutenção da lógica da sociedade. No entanto, é importante se ater também aos
elementos contraditórios presentes nessa ideologia, que embora se manifeste
estruturalmente no conjunto da sociedade, também se modifica em processos históricos
a partir dos sujeitos políticos, atores sociais, trabalhadores e trabalhadoras que vivem
coletivamente, embora jurídica e simbolicamente indivíduo. A incorporação da
ideologia não ocorre nem de forma homogênea para todos os indivíduos da sociedade,
nem de forma totalizante, o que significa que há possibilidades de ruptura no nível da
consciência.

Dito isso, e porque entendemos aqui que a contradição é exatamente o processo


pelo qual se constitui a sociedade, “prever o ‘fim da ideologia’ ou atribuir uma
conotação unilateralmente negativa a toda ideologia sempre foi algo totalmente
irrealista e continuará sendo por um longo período histórico diante de nós”
(MÉSZÁROS, 1996, P. 76). Essa afirmação teórica foi visualizada nas muitas
entrevistas e conversas realizadas nessa pesquisa, que trouxeram o desafio de pensar
como os trabalhadores da costura mobilizavam, a partir da mobilidade do trabalho
fortemente determinada por elementos objetivos, suas concepções ideológicas (e
subjetivas) de seu trabalho, sua vida, sua migração, enfim, sua história.

De acordo com Edmundo Fernandes (2011), Marx entende, após uma analise
histórico-política, que para o proletariado a revolução é uma necessidade (p. 138).
“Marx caracterizou, mais tarde, o capitalismo como contradição em processo” (p. 139).
O autor está afirmando que a burguesia construiu sua ordem defendendo o direito da
revolução, porém uma vez que passa ao exercício dessa ordem, esse “direito” de
contestar na prática é criminalizado, em razão de se manter a ordem. A partir disso, a
existência da burguesia enquanto classe passa a ser incompatível com a existência da
sociedade, pois sua sociabilidade universal tem limites exatamente onde essa classe
começa a ser contestada.

No bojo das necessidades de transformação ideológica, é o neoliberalismo quem


acompanha a reestruturação produtiva, a acumulação flexível e a necessidade de se dar
uma resposta para a crise econômica dos anos 1970. Quando surge, um dos elementos
da organização do trabalho que ele aprofunda é a valorização da concorrência como
forma de organização da sociedade, o aprofundamento da célula individual do corpo

105
social - o indivíduo. A visão construída é que a sociedade não é um coletivo de sujeitos
que se organizam juntos em comunhão de interesses, mas um conjunto de indivíduos
cujos interesses isolados se alinham em maior ou menor grau, formando o corpo social.

Os teóricos e políticos favoráveis ao neoliberalismo defenderam a entrada de


suas teses e concepções dentro das universidades como uma das formas de se fortalecer
e “dispersar” o pensamento (HARVEY, 2008). Através da própria construção e difusão
do conhecimento, o neoliberalismo avançava a partir do discurso das liberdades
individuais, a partir da construção de “inimigos” baseada em sentimentos de racismo,
xenofobia e insatisfação de setores da população em relação ao Estado – uma
combinação de elementos religiosos e culturais, aliados à fragmentação da sociedade
num contexto de crise econômica global.

Em meio a essa crise e às mobilizações de insatisfação, o Estado aparecia como


um inimigo. O neoliberalismo foi uma resposta da burguesia, no plano ideológico, a
esse inimigo, o que alimentou as esperanças em relação a um Estado menos “pesado”
para a população, ao mesmo tempo em que mantinha a classe burguesa no poder.
Conjuntamente, a reestruturação produtiva acaba por interferir objetivamente nas
formas de organização do trabalho e dos trabalhadores.

A construção da teoria neoliberal se da a partir do princípio do Laissez-faire,


teorizado por Von Mises, onde o indivíduo é livre para escolher entre diversos modos
de agir, sem ser tolhido pela ameaça de ser punido – a partir duma ideia de menos
Estado e, portanto, controle (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 133). A ação humana
individual é colocada no centro dos processos sociais como algo racional: os indivíduos
são capazes de fazer cálculos e tomar decisões a partir das informações que possuem
(idem, p. 144).

O pilar central de sustentação da ideologia neoliberal é a ideia de que o mercado


é o “processo subjetivo”, espaço onde se constituem os indivíduos sociais (DARDOT,
LAVAL, 201 , p. 139). “O mercado é concebido, portanto, como um processo de
autoformação do sujeito econômico, um processo subjetivo autoeducador e
autodisciplinar, pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir. O processo de mercado
constrói seu próprio sujeito” (Idem, p. 140).

106
Essa teorização trará uma dimensão antropológica de um novo sujeito social, um
“indivíduo-empresa” apto para tomar decisões e atuar no mercado, além de ser
possuidor de direitos inalienáveis no âmbito privado como, por exemplo, sua liberdade
individual. Esta se apresenta, na sociedade capitalista, como liberdade de escolha do
consumidor, de estilo de vida, de expressão, etc. (HARVEY, 2008, p. 52). A parte
coletiva da sociedade, e a forma de enxergar-se como sujeito coletivo cede lugar ao
peso maior na dimensão isolada do indivíduo que compõe a sociedade. Ele em seu
próprio universo, por assim dizer.

À medida que a escola (política e econômica) neoliberal avançava, os


movimentos sociais e políticos de esquerda, já enfraquecidos por diversos outros
elementos, não puderam responder os problemas colocados pela crise mundial do
capitalismo a tempo e com um impacto global como a burguesia faria com a sua
estratégia, nem conseguiram atender às necessidades em se “conciliar” a busca por
“liberdades individuais e lutar pela justiça social” (HARVEY, 2008, p. 52).

Segundo Harvey o neoliberalismo tem um grande poder de “fragmentar o


libertarianismo” bem como as políticas de identidade, movimentos ideologicamente
coletivistas. Certamente que esse pensamento não inventou as distinções entre os
diferentes atores políticos, todos com suas especificidades, mas sim aprofundou e
fomentou essas diferenças, de modo a tornar muito mais difícil a construção de uma
“disciplina coletiva” necessária para alcançar uma suposta “justiça social” (palavra de
ordem nascida, junto com “liberdade de expressão” e “liberdades individuais”. Sob o
neoliberalismo, liberdades individuais e justiça social tornam-se quase que antagônicas,
por assim dizer (HARVEY, 2008, p. 51).

2.1 Subjetividade na lógica neoliberal: A produção de consenso no


empreendedor de si mesmo.
Quando eu perguntei por que Yarita achava que a maioria das pessoas que
trabalha na oficina são bolivianas, se havia algo na Bolívia que explicava essa ligação,
ela disse que a maioria vem pra cá sem saber costurar e aprende aqui, e que é uma
questão de oportunidade mesmo: sabia-se em algum momento que era possível vir ao
Brasil trabalhar com isso, e pronto. Ela também me disse que achava que as condições
de trabalho nas oficinas estavam melhorando, mas que ainda queria abrir a sua própria,

107
pois via que assim era possível ganhar melhor além de que o trabalho quando é feito
para alguém não é devidamente valorizado por essa pessoa.

A ideologia neoliberal trouxe de qualitativamente novo a possibilidade de


construção de um consentimento aprimorado. “Aquilo que Gramsci denomina ‘senso
comum’ (definido como o ‘sentido sustentado em comum’) tipicamente fundamenta o
consentimento” (HARVEY, 2008, p. 49). Esse senso comum, consentimento político, é
construído nas práticas de socialização culturais, o que o torna “insolúvel” (HARVEY,
2008, p. 49), bem como é baseado numa ideia, consolidada por Jürgen Habermas, de
que “a ciência seria o principal motor de produção da riqueza” (FERREIRA, 2015, p.
41). Essa concepção nega em absoluto a tese do valor-trabalho de Marx, pois o
trabalhador (principalmente o manual) perde seu valor: a ciência é vista como a
principal força produtiva e não mais o trabalho.

A separação do trabalho manual do intelectual é bastante difundida na nossa


sociedade, havendo uma diferente valorização para cada tipo. Essa separação permite
que se construa a imagem de que as classes subalternas são possuidoras apenas de um
saber “prático”, que é além de tudo limitado e desqualificado. O trabalho intelectual, e
as tarefas a ele ligadas, é relacionado a outro setor da sociedade, distanciado das classes
subalternas que são compostas pelos trabalhadores em geral. Dentro dessa distinção
produz-se um consenso que tem como base o fato de que é a liberdade de uma classe
apenas, a dominante, que se apresenta como a liberdade do todo, de todos (DIAS,
1999).

A recusa do público e do coletivo, materializada na crítica ao Estado, traz em


contrapartida a ideia de um autogoverno do indivíduo, agora um sujeito que numa
sociedade globalizada, cujo acesso à informação foi transformado qualitativamente e
graças ao mercado, é capaz de escolher seus próprios objetivos de vida e criar formas de
realizá-lo. Constitui-se, portanto, um sujeito-empresa, isto é, possuidor dos próprios
recursos e capacidades de aprender e estabelecer um plano individual a ser executado, a
fim de melhorar a própria situação social.

Os austros-americanos neoliberais, criadores e difusores do pensamento,


entendem a sociedade como um conjunto do sistema social composto por sujeitos
individuais que se integram a partir de suas ações, porém na busca pelos próprios
108
interesses, aqui não identificados como interesses coletivos. “O que assegura a
integração das ações individuais no conjunto do sistema social de produção é a busca de
cada indivíduo por seus próprios objetivos” (VON MISES, p. 7 3 apud. DARDOT,
LAVAL, 2016, p. 142).

A ideia do autogoverno sustenta-se pela argumentação de que os indivíduos


trariam dentro de si algo de empreendedorístico e exatamente o processo de formação
característico de uma economia de mercado exige que isso seja estimulado e
desenvolvido, numa perspectiva de empreendedorismo humano (DARDOT, LAVAL,
201 ). Assim, o empreender pode ser definido como “ser dotado de espírito comercial, à
procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente, e ele possa aproveitar,
graças às informações que ele [indivíduo] tem e os outros não” (idem, p. 145).

Os sujeitos que se constituem nesse capitalismo reestruturado são sujeitos de


mercado, cuja racionalidade é de que a sociedade é uma grande competição dentro desse
mercado e os indivíduos são eles, cada um, sua própria empresa, seu domínio, a forma
de competir para ganhar. Essa lógica foi evidenciada nos discursos migratórios aqui
ouvidos. Todos os trabalhos e percursos percorridos eram tratados como oportunidades
a serem aproveitadas e, quando isso demandava sacrifícios pessoais, estes eram vistos
como parte do processo necessário de evolução dos sujeitos em seus caminhos para a
ascensão social.

O sujeito neoliberal é fluido e flexível, características fundamentais para uma


sociedade onde o trabalho começa a aparecer também em formas flexíveis,
reorganizado. O sujeito está sozinho. Para conseguir ocupar um lugar ele precisa
demonstrar seus valores e fará isso não coletivamente, mas individualmente (p. 35).
Assim, conclui-se que surgem indivíduos mais individualistas, racionais e auto-
disciplinados, segundo Richard Barbrook (2011) (FERREIRA, 2015, p. 35).

Há dessa forma um apagamento da percepção da relação de desigualdade entre


patrão/empregado ao mesmo tempo em que uma ênfase na valorização de aspectos
pessoais do sujeito social. O trabalho passa a ser encarado como uma forma de
realização pessoal – ou um meio de se ascender socialmente. (FERREIRA, 2015, p. 35).
As relações estruturais, no entanto, permanecem as mesmas. É nesse sentido que
podemos pensar nos funcionários que vestem a camisa de suas empresas. Há um “senso
109
comum” “da elevação das capacidades cognitivas individuais a um patamar igual ao do
empregador desconsiderando diferenças estruturais” (Idem, p. 41).

2.2 Disputa do termo escravo para além da estigmatização


A aceitação ou não do termo escravo, por exemplo, demonstra de forma
importante a visão que os indivíduos assumem de si mesmo, e sua recusa contra o
termo, o que ocorre na maioria das vezes, é no sentido de entendê-lo como uma forma
de estigmatização que retira toda agência dos trabalhadores. Há muito sendo dito,
principalmente pelos trabalhadores da costura, sobre as condições de trabalho em que se
encontram. Os trabalhadores da costura reconhecem a exploração abusiva de seu
trabalho em muitos casos, porém por vezes se recusam a aceitar que trabalham como
escravos.

O grande número de denúncias e a visibilidade para os casos de escravidão


contemporânea nas oficinas de costura ganhou espaço na sociedade brasileira,
principalmente nas cidades com grande incidência, como São Paulo. Discursivamente, e
isso se deu principalmente através da propaganda e da mídia, foi construída (de forma
mais ou menos consciente) a ideia de que esses trabalhadores escravizados não
possuiriam dignidade, condição que se da a partir da constatação de superexploração.
Eram apenas coitados, vítimas. E é nesse sentido também que é preciso chamar atenção
para a categoria discursiva – e seu impacto na formação da identidade desses
trabalhadores.

É acordo entre as diferentes literaturas e áreas que se debruçam sobre esse tema
que o trabalho realizado na oficina de costura representa uma exploração abusiva e
excessiva dos trabalhadores que ali se encontram, na utilização rotineira e sistemática
de um ou mais elementos já descritos: moradia e alimentação no mesmo local de
trabalho, jornadas prolongadas e remuneração por produção. Em todos os relatos aqui
compartilhados os trabalhadores com quem conversei expressaram sentirem-se
explorados em certas conjunturas em seus trabalhos, reforçando a ideia de que se trata
de um trabalho precário.

Porém, existe também na literatura produzida, e existiu em minhas entrevistas, a


recusa de muitos imigrantes ao termo trabalho análogo a de escravo, embora essa recusa
não seja no sentido de ocultar a existência de superexploração e degradação das
110
condições de vida. Em momento nenhum houve hesitação em se denunciar e criticar
elementos que eram entendidos como ofensivos à sua moral como trabalhadores. A
recusa do termo parece se construir no fato que ele cria uma estigmatização negativa
dos trabalhadores imigrantes, que de certa forma os invisibiliza nos processos de
formação da economia, da cidade – do espaço social, principalmente perante aqueles
que têm mais poder político de atuação.

Yarita trabalhava das 7 da manhã às 10 da noite. “Então era... o melhor daqui


quando a gente vem trabalhar, a gente vem tudo pagado. Eles dão teto, comida... a
gente não paga nada... Só gente onde... mão de obra.. tem que trabalhar sim. Então, a
gente não paga conta nenhuma... dá pra guardar dinheiro aí... Tem que trabalhar sim
os primeiros anos. Mas eu fiquei trabalhando... Já estou aqui 7, 8 anos, já estou”... 60.
Quando perguntei sobre como ela via a pressão de trabalhar rápido e com poucas horas
de descanso, ela disse não reconhecer esse regime de trabalho como uma forma de
violência. Foi uma das pessoas com quem conversei que não concorda com o termo
trabalho escravo para as situações de trabalho no Brasil, embora conte que antes de vir
pra cá foi morar e trabalhar na Argentina e que lá o trabalho era “escravo mesmo”, pois
trabalhava das 7 da manhã às 3 da manhã, mal conseguindo dormir.

O fazer a própria jornada e, portanto, possuir controle sobre seu próprio ritmo de
trabalho (ainda que atrelado ao prazo da encomenda) é um aspecto positivo para ela,
bem como a remuneração por produção, que se interconectam: “Porque assim, você,
quanto você mais trabalha, mais ganha. Se você trabalhar menos, menos ganha. Agora
o mensalista, quando um mensalista é... ele tem que trabalhar de horário a horário, às
vezes é muito exigente... já tentei trabalhar uma vez assim e não gostei”. Ao ser
perguntada se preferia ganhar salário fixo ou por peça respondeu a segunda opção: “...
aí eu trabalho... se não trabalho, depende de mim” 61.Para ela, ainda, o fato de morar e
comer no mesmo local de trabalho apareceu como maneira auxiliar de economizar
dinheiro e, portanto, acumular mais.

60
YARITA. Entrevista IV. [Mai. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Quatro
arquivos .MPEG-4 (52’12’’).
61
Idem.

111
Reconhecer-se como trabalhador escravizado, mesmo com as ressalvas feitas
acerca da diferença entre os termos passado e presente parece ser uma forma de
diminuir-se perante não só à sociedade, aceitando uma estigmatização de vítima que
silencia esses sujeitos, como também ao cumprimento dos próprios objetivos e sonhos,
no sentido de que esse termo parece anular os sacrifícios e esforços conscientes feitos
pelos trabalhadores e trabalhadoras, como se estes não fossem nem minimamente
responsáveis pelos seus corpos, ações e trabalho. A maioria dos discursos, como recusa
o termo quando este aparece de forma pejorativa e imobilizadora dos trabalhadores da
costura, no sentido de produzir um coitadismo marcado pela impossibilidade de ação
desses sujeitos na sociedade em que se encontram.Ser escravo é ser simbolicamente um
sujeito sem voz, sem ação. Essa é a recusa, ao apagamento do fazer-se, superar-se. A

Para além do termo em si, as condições de trabalho das oficinas de costura e num
país de economia dependente estão subordinadas ao próprio funcionamento da
economia global e de seus mecanismos, e como já demonstrado um país dependente se
desenvolverá na lógica capitalista de “compensar” as desigualdades econômicas em
relação aos países centrais. A superexploração do trabalho, do ponto de vista material, é
o modus operandi da gestão do trabalho e esta vem significada por uma ideologia capaz
de tornar quase que legítima essa exploração, do ponto de vista do trabalhador. É nesse
sentido que se fala em uma subjetividade capturada, manipulada pela ideologia
neoliberal.

2.3 Neoliberalismo: “captura” de subjetividade dos trabalhadores


Os “novos métodos de gestão e organização da produção visando adaptar
homens e mulheres às novas rotinas do trabalho” trarão também esse novo léxico, onde
os trabalhadores tornam-se colaboradores, esvaziando-se assim o conflito da luta de
classes. (ALVES, 2008, p. 06). Segundo esse autor, a literatura tradicional discute a
precarização do trabalho nos marcos de compreendê-la como uma desconstrução da
relação salarial que foi alcançada no período pós Segunda Guerra Mundial. Ela seria
entendida, portanto, como uma forma de desmonte de “formas reguladas de exploração
da força de trabalho como mercadoria” (ALVES, 2008, p. 02), e que implica na perda
(corrosão) dos direitos do trabalho. Todos os novos elementos reestruturados, portanto,
seriam formas de precarização da força de trabalho: desregulação da jornada,
remuneração flexível, etc.
112
Nesse sentido, as novas modalidades de contratação salarial e regimes de
trabalho frutos de reestruturação alteram, portanto, a troca metabólica realizada entre o
indivíduo e outros indivíduos (a dimensão da sociabilidade), bem como entre indivíduo
e meio e suas dimensões de si próprios. Assim, a precarização do trabalho resulta
inevitavelmente numa crise tríplice da subjetividade humana: da vida pessoal, da
sociabilidade e da auto-referência pessoal (ALVES, 2008, p. 03).

São três traços cruciais da nova morfologia do trabalho social, segundo o autor,
que constituirão um processo de conformação do sujeito humano que trabalha. O
primeiro traço é a “quebra dos coletivos de trabalho”; o segundo, a “captura da
subjetividade do homem que trabalha” e o terceiro “redução do trabalho vivo à força de
trabalho como mercadoria” (ALVES, 2008, p. 10). Alves caracteriza que através da
alteração do modo de ser do trabalho assalariado altera-se também seu “nexo psicofísico
com a produção do capital, ampliando-se, como inovação sociometabólica do capital, a
‘captura’ de subjetividade do trabalho pelos valores empresariais” (Idem, p. 6).
Essa flexibilização, que é do tempo também, altera a relação entre tempo de vida
X tempo de trabalho consequentemente alterando a sociabilidade e auto-referência
pessoal (ALVES, 2008, p. 07). Do ponto de vista do consenso construído
ideologicamente e do novo sujeito social, Alves levanta que prevalece hoje o modelo
Toyotista: uma forma de “captura” da subjetividade a partir da estipulação de metas,
remuneração flexível e constituição de equipes de trabalho (Idem, p. 12).
A captura de subjetividade é definida por Alves como “‘captura’ da
intersubjetividade e das relações sociais constitutivas do ser genérico do homem”
(ALVES, 2008, p. 13). Importante destacar o que o autor explica sobre o uso das aspas
no conceito de “captura”, uma vez que esse processo não significa exatamente o que
quer dizer a palavra em sua definição sintática (crua). Ela é uma produção de
consentimento, que obviamente não se desenvolve por fora das lutas e resistências
cotidianas, mas produz uma “unidade orgânica entre pensamento e ação” (Idem). Esse
processo, portanto, é intrinsecamente contraditório e complexo.

“Na sociedade burguesa, como observou Marx e Engels, a


ideologia dominante é a ideologia da classe dominante que
constitui seus aparatos de dominação hegemônica pela
manipulação midiática das instâncias pré-conscientes e

113
inconscientes do psiquismo humano. O capitalismo manipulatório
levou à exaustão os recursos de manipulação das instâncias
intrapsíquicas do homem, pelas quais se constituem os
consentimentos espúrios à dominação do capital nas “sociedades
democráticas”. O sociometabolismo do capital ocorre por meio do
tráfico de valores-fetiches, expectativas e utopias de mercado que
incidem sobre as instâncias intrapsíquicas. Na medida em que o
toyotismo se baseia em atitudes e comportamentos pró-ativos, a
construção do novo homem produtivo utiliza, com intensidade e
amplitude, estratégias de subjetivação que implicam a
manipulação incisiva da mente e do corpo por conteúdos ocultos e
semi-ocultos das instâncias intrapsíquicas”. (ALVES, 2008, p.
14).

Nesse sentido a discussão faz lembrar Antonio Gramsci: “diríamos que o novo
‘terreno ideológico’ que nasce com o toyotismo, é também uma nova ‘atitude
psicológica’ que ‘alimenta a afirmação da ‘aparência’ das superestruturas’”
(GRAMSCI, 1984 apud. Alves, p.15). Há um novo modelo de trabalhador do
toyotismo, que diverge em alguns aspectos do modelo fordista como apontou Gramsci.
No atual “o nexo psicofísico se constitui pela disseminação dos valores-fetiches,
expectativas e utopias de mercado e pela liberação dos instintos, ao mesmo tempo em
que preserva disciplina da vida industrial (o que é um poderoso agente estressor)
(ALVES, 2008, p. 16).

Toda essa discussão é primordial como chave de interpretação das auto-


motivações anunciadas nas histórias aqui compartilhadas, e em tantas outras, pois o
conjunto de ideias e valores simbólicos que mobilizam os sujeitos na sociedade em que
vivemos é o que dará sustentação lógica, principalmente do ponto de vista da
legitimação dos trajetos, à mobilidade do trabalho e disponibilização da força de
trabalho dentro do mercado. Dessa forma, não poderia estar mais presente e de forma
organicamente construída, a ideia de liberdade – conceito que trará a possibilidade de
que o indivíduo veja a si mesmo como sujeito de suas próprias vontades, autor de sua
própria história e criador de seu próprio destino.
Ocorre que, no entanto, essa liberdade está preenchida de conteúdo político e
econômico da ideologia neoliberal burguesa, e vem reformulada no bojo das
transformações neoliberais que permitiram ao capital continuar desenvolvendo-se. A
liberdade não é absoluta ou, ainda, não é algo que se define em si mesma, e seu real

114
funcionamento está profundamente atrelado ao funcionamento do mercado, o que
significa que ela não corresponde realmente a como se apresenta.

3. Dupla liberdade do trabalho na lógica do capital: voar com o


vento que assopra
Todos os elementos até então apresentados e imbricados suscitaram
questionamentos importantes para se pensar a questão da liberdade, e escutar as
narrativas dos trabalhadores tornou possível refletir sobre possibilidades e limitações de
uma leitura crítica do mundo do trabalho, tentando entender os mecanismos de
funcionamento duma sociedade em constante crise, como a que vivemos atualmente.
Dessa forma, foi possível notar que o fio que percorre diversos discursos que defendem
o direito de migrar e o direito ao trabalho poderia facilmente chamar-se paradoxo da
liberdade.

Por um lado a liberdade individual de escolha é muito valorizada pelos sujeitos e


essa valorização materializa-se em seus discursos, embora de formas contraditórias. Por
outro, há liberdade objetiva, por assim dizer, criada pela força de expansão contínua do
próprio capital; essa destitui populações inteiras de seus meios de produção, gerando a
mobilidade do trabalho (isso e outras coisas). Assim, constitui-se a liberdade
contemporânea, que é a liberdade de mercado, isto é, a liberdade de empreender –
lançar-se a si mesmo no mundo, ancorada principalmente a ideia de uma felicidade
possível quando a “fase” extenuante da vida e o trabalho terminar.

A liberdade, por fim, que acabou também por isolar cada trabalhador e cada
trabalhadora em si próprios, sem se perceberem coletivos ao olharem seus colegas em
seu local de trabalho, e que em contrapartida é a liberdade reconhecida de, aos finais de
semana, poder sair das oficinas e encontrar seus pares em espaços coletivos de
socialização e compartilhamento de identidade. Embora todos os sujeitos ali no espaço
da praça Kantuta, aos domingos, fossem também trabalhadores em seu cotidiano, era
naquele momento que assumiam-se como sujeitos coletivos, latino-americanos,
dividindo momentos de descanso, atividades culturais e educacionais compartilhadas,
fora do universo do trabalho. A possibilidade de coletivização dessas pessoas se
desenha, portanto, mais fora do que dentro de seus locais de trabalho – a identidade
coletiva.
115
Essa é a manifestação de seu conteúdo paradoxal, a tal liberdade que permite aos
trabalhadores e trabalhadoras terem seus espaços de socialização cultural e recreativa
onde, aí sim, se encontram como semelhantes, cujas identidades são compartilhadas –
embora possam carregar atritos para esses espaços também. Esta última reflexão não
será aqui aprofundada, se desenhando como possível tema de uma próxima
investigação, diz respeito às que tipos de novas sociabilidades surgem da precarização
do trabalho e da fragmentação da identidade de classe e da reestruturação e como se
materializam essas sociabilidades, seja nos elementos discursivos, seja nos espaços de
encontro e confraternização dessas pessoas que vivem e trabalham na cidade de São
Paulo.

A chegada ao Brasil também é contraditória. Logo no início, Mauge manifesta que


simplesmente ficou aqui, já passando dos 30 anos, porém quando perguntei para ela
como foi chegar ao país da primeira vez a resposta foi diferente:

Entrevistada: Sim, era muito diferente... A gente tiene mais saudade del
lugar..ai valora el lugar que você vivia... Aún que sea.. lo que sea...
Hasta el aire era diferente... Eu queria ir embora... Todas mis colegas
choravam... Só eu não chorava... Eu chorava de noite, né? Quando
dormia... Mas não queria que ninguém olhe, né? eu dava pra elas "ah, a
gente tem que continuar"...

Julia: Porque chorava?

Entrevistada: É porque a gente estava fechada, não é? Coreano sabe


que.. que fechava todo, não deixava sair... Não estavámos livres... Elas
sentiam mesmo... mas eu.. eu sentia também, mas não queria assim, né?
Que elas vean que estoy assim. Eu queria tener sempre uma esperança,
né? Que vá mudar tudo...62

A situação que viveu na primeira oficina foi de extremo abuso e violação de


direitos. Mauge trabalhava com seu bebê com ela ao seu lado, ou o deixava trancado na
casa. O marido, na época, adoeceu e precisou ficar um tempo no hospital, e ela se sentia
sozinha. Diz que fez amizade com aqueles que trabalhavam com ela, mas não com
brasileiros, já que ela quase não saia e não tinha tempo. Ela entendeu que aquela
situação, ainda que a construção do projeto migratório tenha sido feita de forma
consciente, lhe privava de algo que em sua concepção ela já possuía: a liberdade.
62
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).

116
Na situação em que vivia, portanto, a privação material de liberdade, isto é, o
fato de alguém conscientemente e de forma explícita privar a ela e outras trabalhadoras
de sair da oficina, foi entendida como uma situação limite. Naqueles momentos, então, a
liberdade teria deixado de existir, em oposição aos outros momentos em que aquelas
pessoas eram, em suas concepções, livres – mesmo quando estavam trabalhando horas a
fio, como narrou, pois a privação não vinha de forma clara e coercitiva. Quando eu
perguntei para ela sobre a legislação do trabalho escravo, ela disse que sabia que existia.
Dito isso, perguntei se ela achava que o trabalho que viveu em seu primeiro ano era
escravo:

No... hoje, ahora veo... Porque eu tive oficina, né? No es fácil tambien...
No es facil, porque a gente tem que dar comida, tem que pagar
aluguel... eles pensam que a gente ganha mal... no es asi tambien... no
es... yo no estoy contra eso, nin contra el otro, mas tem gente também
que paga menos e ganha mais... Tem assim também, né? Mas tem
outros que não faz isso também...63.

Mauge foi a única pessoa com quem conversei que além de ter trabalhado como
costureira em oficinas de terceiros, teve a sua própria. Essa dupla condição que viveu,
de empregada e empregadora, foi o que contribuiu para sua relativização da exploração
do trabalho: é que o oficinista também tem os gastos e, no fim, não ganha tanto assim.
Pagar aluguel e alimentação dos trabalhadores foi a principal despesa elencada por
Mauge. Não houve fala sobre salários. Ela sabe que o trabalho como costureira numa
oficina pode ser exaustivo, mas pondera que os donos das oficinas também passam por
dificuldades.

O discurso neoliberal se apresenta como sendo a única possibilidade de


construção da liberdade. “Nenhum modo de pensamento se torna dominante sem propor
um aparato conceitual que mobilize sensações e nossos instintos, nossos valores e
nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos”
(HARVEY, 2008, p. 15). O neoliberalismo, surgido num contexto pós-fascismo, pós-
guerras e pós “comunismo” do século XX, isto é, formas de governos totalitárias,

63
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).

117
construiu-se sobre o ideal político da liberdade individual (em resposta a essa
conjuntura anterior).

A ideia de liberdade, portanto, é construída historicamente. Na sociedade


capitalista ela é, necessariamente, uma categoria de mercado (DARDOT; LAVAL,
201 ). “O pressuposto de que as liberdades individuais são garantidas pela liberdade de
mercado e de comércio é um elemento vital do pensamento neoliberal e há muito
determina a atitude norte-americana para com o resto do mundo” (HARVEY, 2008, p.
17).

A sociedade capitalista mercantiliza as relações pessoais e sociais de produção.


Nela, a liberdade está sujeita às leis de valorização do capital (DARDOT, LAVAL,
2016, p. 324), pois se constrói dentro do funcionamento da economia de mercado. Os
indivíduos, portanto, dispor-se-ão livremente no mercado, dóceis ao trabalho, dispostos
ao consumo e adaptados ao funcionamento dessa sociedade, dispostos a alcançarem seu
próprio sucesso. Evidentemente, isso será possível também através da realização da sua
força de trabalho, isto é, de colocar-se para trabalhar.

A força de trabalho é uma mercadoria “especial”, possui a característica de


transformar dinheiro em capital, além de um valor, determinado pelo tempo de trabalho
necessário à sua produção e é um “conjunto de faculdades psíquicas, físicas e
intelectuais” (GAUDEMAR, 1977, p. 189). Há, portanto, um processo de produção
dessa força. Para se transformar dinheiro em capital aquele que possui o dinheiro
precisa encontrar no mercado um trabalhador livre – em um duplo sentido: “Primeiro, o
trabalhador deve ser uma pessoa livre, dispondo a sua vontade da sua força de trabalho
como de uma mercadoria que lhe pertence, em segundo lugar, não deve ter qualquer
outra mercadoria para vender”. (Idem, p. 189).

A liberdade, então, é um conceito “duplo”, por assim dizer, segundo Gaudemar:


Por um lado o trabalhador não tem outra opção que não vender/não ver a sua força de
trabalho (liberdade negativa), que por outro lado pertence ao trabalhador que pode
dispor dela e vendê-la livremente para quem quiser (liberdade positiva).

A teoria da mobilidade do trabalho de Gaudemar constrói-se nessa bipolaridade


contraditória. Ela é exatamente o movimento que se constrói a partir da noção de
liberdade preenchida pelo capital – e pela ideologia burguesa. A mobilidade se relaciona
118
à liberdade, nos dois sentidos: de um lado a possibilidade do trabalhador escolher seu
trabalho e o local para exercê-lo (positiva); por outro está sujeita às exigências do
capital que pode despedir o trabalhador a qualquer momento ou pode transformar seu
trabalho e as condições em que ele o exerce (GAUDEMAR, 1977, p. 190).

A força de trabalho deve ser móvel, “quer dizer apta para as deslocações e
modificações do seu emprego, no limite, tão indiferentes ao conteúdo do seu emprego
como o capital o é de onde investe, desde que o lucro extraído seja satisfatório”
(GAUDEMAR, 1977, p. 190). O dinheiro estimula essa mobilidade, numa lógica onde
pouco importa o emprego contanto que o salário seja satisfatório. O capital exige uma
fluidez, uma capacidade de aplicação da força de trabalho do operário. Ele procura
eliminar todos os obstáculos legais e econômicos à variabilidade (à mobilidade). (Idem,
p 191).

“A mobilidade da força de trabalho é assim introduzida, em primeiro lugar,


como a condição de exercício de sua <<liberdade>> de se deixar sujeitar ao capital,
de se tornar a mercadoria cujo consumo criará o valor e assim produzirá o capital”
(GAUDEMAR, 1977, p. 190. Grifo meu). Essa mobilidade, que é a condição da
mercantilização da força de trabalho contribui na constituição de uma forma fantástica
que assumem as relações sociais sob o capitalismo (Idem, p. 199). Aqui também está
colocada a questão jurídica que irá regular a relação entre os dois polos relacionados à
força de trabalho: vendedor comprador que

devem reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados,


existindo um para o outro apenas <<a título de representante da
mercadoria que [eles] possuem>> ou ainda se o dinheiro opera a
mediação, um como possuidor da mercadoria, o outro como possuidor
do dinheiro” (GAUDEMAR, 1977, p. 203).

Ser livre em sociedade constrói-se sobre relações materiais de produção


específicas a nossa tempo, com caráter econômico definido: o lucro. A liberdade, assim,
submete-se ao princípio maior de funcionamento de nossa sociedade, e desenha-se
como uma contradição: é preciso ser livre, no sentido de estar disponível livremente no
mercado – para que se torne possível sujeitar-se à lógica de exploração do trabalho
livremente, o que por sua vez, restringe a liberdade em diversos momentos e formas em
que essa lógica possa estar ameaçada. É o paradoxo da liberdade.

119
A construção simbólica de uma liberdade jurídica coroada pelas transformações
neoliberais que trazem o foco aos indivíduos isolados na sociedade é fundamental para
que se tenha uma sociedade do trabalho marcada pela competição, onde os sujeitos
constroem-se isoladamente, vendo a si mesmos e aos outros como concorrentes de uma
eterna disputa, onde estão todos livres para traçarem seus planos e estratégias e
venceram na vida – na própria, e apenas nela. Essa liberdade do indivíduo que está
acima do coletivo, gera uma transformação na ideia de coletividade que até então o
trabalho trazia, como aquele momento de encontro, compartilhado entre aqueles que
vivem dele e que entregam parte de sua força, livremente, a quem os explora e que se
alinham como explorados.

Essa consciência coletiva, portanto, capaz de construir uma liberdade em


oposição ao mercado foi apagada pela ideologia neoliberal, porém nunca de forma
inexorável.

4. O apagamento da consciência de classe


Thompson entende classe como uma categoria histórica, “ou seja, deriva de
processos sociais através do tempo” (THOMPSON, 1998, p.9 ). Classe não é categoria
estática, embora até mesmo marxistas a usem assim, segundo o autor.

(...) a classe, no seu sentido heurístico, [é] inseparável da noção


de “luta de classes” (THOMPSON, 1998, p. 99) “(...) as pessoas e
vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de
relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou
buscam manter poder sobre os que as exploram), identificam os nós dos
interesses antagônicos, se batem em torno desses mesmos nós e no
curso de tal processo de luta descobrem a si mesmas como uma classe,
vindo pois a fazer a descoberta da sua consciência de classe” (Idem, p.
100).

Para ele, então, classe e consciência de classe seriam os últimos estágios de um


processo real, isto é, não pré-existiriam enquanto classe presente dentro das relações e
daí derivando a luta dessas classes. “Se creio que, de fato, um certo dado histórico não
está de acordo com as costumeiras categorias de classe, então, ao invés de golpear a
história para salvar as categorias, devemos instigá-las com novas análises”
(THOMPSON, 1998, p. 102).

120
O autor não descarta que determinações objetivas definam classe. Chama
atenção, no entanto, para dizer que “nenhum exame das determinações objetivas e, mais
do que nunca, nenhum modelo eventualmente teorizado pode levar à equação simples
de uma classe com consciência de classe” (THOMPSON, 1998, p. 102). “A classe se
delineia segundo o modo como homens e mulheres vivem suas relações de produção e
segundo a experiência de suas situações determinadas, no interior de ‘o conjunto de
suas relações sociais’, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base no
modo através do qual se valeram dessas experiências em nível cultural” (Idem, p. 102-
3).

Thompson também não nega que uma classe para “existir”, digamos assim, não
pode fazê-lo sem ter qualquer tipo de consciência de si mesma. Ou seja, mesmo de
forma desorganizada, como a plebe da Inglaterra do século XVIII estudada por ele, os
indivíduos possuíam alguma noção de seus direitos – ainda que de forma desorganizada.
Ou seja, “dizer que classe no seu conjunto tem uma consciência verdadeira ou falsa é
historicamente sem sentido” (THOMPSON, 1998, p. 105). Nessa perspectiva isso
significa que não é porque não se veem consciente e coletivamente como classe nos
locais de trabalho, que os trabalhadores da costura não possam perceber suas
confluências em determinados momentos, como demonstrou Mauge quando contou da
tentativa do “motim” em um dos seus locais de trabalho.

Consciência é o que é, num sentido de coletividade ampla. Há, também, um


sentido mais limitado, onde consciência pode indicar “a política ou a estratégia
dominante numa relação com outras classes, conduzida por seus líderes, partidos, por
outras instituições” (THOMPSON, 1998, p. 105). Aqui seria, portanto, uma falsa
consciência no sentido de ideologia como pensado por Engels a Mehring em idos de
1893.

Burguesia e proletariado constituem-se a partir do mesmo processo, porém são


criaturas contraditórias e antagônicas. Esse polo de oposição ao subalterno é o poder
nos termos gramscianos “o nó domínio/hegemonia” (Mordenti, 2007, apud. DIAS,
2011, p. 133). Esse poder é também de linguagem, de discurso – “o poder hegemônico
de articular um discurso auto-legitimante, de instituir (em vantagem própria, exclusiva)
um sentido, de dar sentido às coisas (ou melhor: de impô-lo) e de impor tal narrativa

121
política como ‘senso comum’ das massas” (DIAS, 2011, p. 133). Classes se constituem
como coletivo, necessariamente.

Marx afirma que só é (e foi) possível a conquista do poder e consolidação dessa


conquista, pela eliminação completa da institucionalidade anterior. No caso dos
proletários, estes não poderão simplesmente se apossar das forças produtivas sem abolir
o modo de produção correspondente e sua missão é destruir completamente todas as
garantias e possibilidades da propriedade privada (DIAS, 2011, p. 137-8). Diferente
dos movimentos históricos até então, que foram em geral de minorias para minorias, o
movimento proletário é um movimento de maioria, autônomo e em proveito da maioria.
Aqui, é importante ressaltar que Marx está falando da classe (proletariado) e não de
indivíduos singulares e essa distinção é importante, e sobre ela Gramsci desenvolverá a
ideia de hegemonia, pois “Em síntese estão colocadas aqui as premissas da conquista da
subjetividade antagônica” (Idem, p. 138).

Um forte poder do neoliberalismo é negar a existência das classes sociais, pois


fragmenta as problemáticas sociais separando-as da questão de classe (DIAS, 1999, p.
27). Alves indicou essa tendência como processo de “dessubjetivação da classe”,
basicamente baseado na reestruturação produtiva dos locais de trabalho que dissolveu
grandes coletivos de trabalhadores e, consequentemente, espaço “impregnados de
memória pública da luta de classes” (ALVES, 2008, p. 10). Esta, emergida da crise de
1970, não envolveu só a transformação dos processos de trabalho. Uma das facetas foi o
amplo ataque dos Estados ao movimento sindical (Idem).

Segundo Alves, todas as décadas seguintes a essa crise de 1970 trouxeram


derrotadas consideráveis ao movimento operário de conjunto e à classe, o que
possibilitou e colaborou com esse processo de dessubjetivação da classe. Se por um
lado atava a classe organizada, por outro o capital avança com uma ideologia neoliberal
cujo eixo central é o indivíduo e a ideia do consumo/consumidor, atacando práticas
coletivistas (ALVES, 2008, p. 11). Baseado em Hobsbawn afirma que “O processo de
dessubjetivação de classe é produto da destruição do passado” (Idem, p. 11).
Prosseguindo nesse debate do autor, Alves conclui a ideia: “Por isso, a luta contra o
capital é a luta contra o esquecimento” (Ibidem, p. 12).

122
Com a adoção da remuneração flexível ligada ao plano de metas, o
trabalhador assalariado torna-se “carrasco de si mesmo”. A quebra da
auto-estima como pessoa humana e a “administração pelo medo”,
estilhaçam a “personalidade autônoma” do trabalho vivo,
“reconstruindo-se” uma individualidade pessoal mais susceptível às
demandas sistêmicas do capital (ALVES, 2008, p. 12).

O neoliberalismo permitiu a contratação de força de trabalho barata e menos


“dor de cabeça” aos contratantes com os sindicatos e organizações coletivas de
trabalhadores, desmanteladas pelo projeto político burguês (FERREIRA, 2015, p. 42).
O trabalhador livre passa a ser “aquele que acumula ganhos e reconhecimento pelo seu
próprio suor (...)” (Idem, p. 47) A flexibilidade da força de trabalho, relativa à legislação
e regulamentação social e sindical continua sendo estratégia para a acumulação do
capital. Essa flexibilidade do trabalho é a capacidade do capital tornar “domável,
complacente e submissa a força de trabalho” (ALVES, 2008, p. 04). Paralelo com o
modo toyotista de produção.

Harvey (2011) dirá que com as transformações neoliberais a quantidade de


trabalhadores disponíveis aumentou em todo o mundo possuindo reservas, o que
barateia o custo da força de trabalho. A resposta imediata seria, utopicamente, a
organização dos trabalhadores para resistir a isso. Em contrapartida o que se vê é a
fragmentação, a coerção e o medo incidiram diretamente sobre os indivíduos que, cada
vez mais isolados, no máximo desenvolvem estratégias individuais para resistirem à
exploração de sua força de trabalho.

Nesse sentido, é possível entender as estratégias e interpretações de Santiago,


que justifica ter aguentando o quanto pôde no primeiro trabalho, inclusive cobrando o
patrão durante todo o tempo que esteve lá, muito porque não sabia para onde ir, o que
lhe causava certo medo e desconforto. Ainda afirma que acreditava que os outros que
não ficavam, abandonando aquele trabalho antes, o faziam porque tinham outro lugar
para ir, tinham uma “rede” de contatos e amigos. Santiago não tinha ninguém, tendo
caído ali por uma sorte do acaso. E, mesmo que isso em nossa conversa tenha parecido
ser algo que lhe incomodasse, sua fala toda justifica suas próprias ações no sentido de
que, sozinho, era possível superar aquela situação:

Yo me aguente porque no tenia para adonde ir. Pois (?) la gente que
conocia creo los trabajadores tanto como costureros e esas cosas creo
123
que sabian donde conseguir mas trabajo pois entonces se no
aguantaban dos semanas, uma semana aguantaban e se iban porque
realmente te cansaba el trabajo. Y ademas de eso com la comida
péssima y todo eso no dava para trabajar. Entonces la gente ia
tampoco te decian: vamos conmigo yo te voy ayudar a buscar um
trabajo. No te decian. Solo se iban de callar um dia: me voy. Porque
realmente el trabajo no estaba funcionando64.

O trabalho na oficina é descrito como altamente controlado, o que significa uma


vigilância constante, seja do dono da oficina seja de um ajudante mais próximo a ele.
Não havia descanso durante o turno de trabalho e mesmo os horários de refeição eram
feitos sobre pressão de que não se demorasse muito. A coerção nos horários de refeição,
mais do que a constante vigia, foi apontada como um problema por Santiago.
Incomodava-lhe o fato de que seu tempo livre era também objeto de controle.

A alta rotatividade de trabalhadores na oficina foi apontada por Santiago como


responsabilidade do patrão, dono do espaço, que tratava mal e não pagava
adequadamente os trabalhadores. Esse discurso, no entanto se modificou quando
Santiago contou sobre seu novo trabalho, que ele exercia na época da entrevista. Este
ainda era no ramo da costura, mas a diferença estava no cargo: Santiago possuía nesse
momento prestígio em relação ao trabalho e assim ocupava um cargo maior, um
ajudante direto de seu patrão, um dos donos da oficina que funcionava como uma
espécie de cooperativa entre irmãos.

Mesmo depois de tirar a carteira de trabalho, Santiago reconheceu que não a


usava porque estava, segundo ele, num trabalho ilegal. Este também era seu local de
moradia, como o primeiro, mas segundo contou o trabalho era totalmente diferente do
anterior. Ele me disse que esse patrão “legalmente és buena persona. Muy... optimo yo
diria, ótimo! Porque realmente, trabajo muchas horas, no? Pero asi mismo yo puedo
consumir lo que yo guste de la casa. Mexirica, banana, todo tipo de fruta y hay jamón,
huevo, carne... A la hora que quiero! Posso prepararme65”.

64
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
65
Idem.

124
Neste segundo emprego Santiago alcançou uma hierarquia maior na produção, e
isso modificou completamente sua leitura do patrão, que apesar de pela sua narrativa
demonstrar ser uma pessoa “melhor” que o patrão anterior, não era mais identificado
como “inimigo”, aquele que controla o tempo de trabalho, aquele que paga menos do
que deve e que cerceia a liberdade, mas como um amigo, enquanto que Santiago
representava parte dele:

Mi jefe y yo somos uno so. Mira, yo tenia que estarr um mês no mas
allí, me he quedado dos meses para ayudarlo mas. Para... Me gostaria
quedarme, no? Quedaria, me gustaria, pero tengo otros objetivos, han?
Yo la he ajudado já, já le ajude. Hasta donde pude já ajudei, el 17 yo
salgo. Tenho que salir, porque yo necessito hacer lo mio. No puedo
hacer lo mio se me quedo allá, porque me quita todo el tiempo...(Grifo
meu)66

A jornada de trabalho, no entanto, ainda era extremamente intensa e longa, mas


Santiago agora a justificava da seguinte forma:

Pero que sucede? En este trabajo yo puedo hacer lo que yo guste, estoy
como... Buono, al principio empezé como ayudante de costura igual,
no? Como ayudante de costura igual. Pero [ooo] como vieron que
tengo mucha habilidade, mucho... tengo muchas ganas de trabajar,
no? He superado el trabajo que normalmente... Y entonces a la semana
me subieron de cargo, ãhn? Yo me quedé encarregado de la mitad del
proyecto, de la empresita, de la como llama? De la oficina. De la mitad
de la oficina y entonces (incompreensível) me aumentaran el sueldo al
mês que terminé, tenía que cobrar um monte de dinero y ya hablamos
com el e me dijo: que te parece mi trabajo? Te cuadra o no te cuadra?
Pues ai le dijo: si me gusto mucho de trabajar asi. Y yo como gratitud
te voy aumentar tanto. A parte de lo que tiene que me pagar me
aumentou plata67.

O fato de subir de cargo, então, nos é crucial para entender a releitura da


condição do trabalho. Ele deixou de ser costureiro para ser uma espécie de gerente de
produção:

no costuro ni ayudo nada, mas trabajo digamos... “ay que hacer esto”.
Ah, vale. Estoy haciendo junto com eles “fan, fan, fan”. Terminamos

66
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
67
Idem.

125
esto, vamos hacer aquele. Ah, ya. Esto, esto, esto, esto... El dia
terminamos esto descansamos com todos os trabalhadores. Y se falta
para cozinhar, yo ayudo a cozinhar68.

Além de apontar a possibilidade de descansar como qualidade de diferença com


o trabalho anterior, Santiago diz que nesse não há o extremo controle, e há, por
exemplo, liberdade para se consumir os alimentos que estão a disposição dos
trabalhadores, diferente do tempo (e tipo) de refeição controlada na oficina anterior.
Disse ainda que os trabalhadores que escolhiam se queriam receber por peça ou mensal,
e que a oficina pagava bem, sendo possível ganhar dinheiro no ramo da costura. Todos
esses elementos elencados por ele apontavam para uma leitura diferente do trabalho e da
relação de trabalho estabelecida ali, inclusive disposto a defender seu chefe como uma
pessoa tão boa que às vezes era sacaneado pelos próprios trabalhadores, que por vezes o
enganavam e enrolavam.

Mesmo assim, por mais que tenha demonstrado gostar do novo trabalho, se
sentido valorizado por subir de posto, em nossa conversa me manifestou que precisava
sair dali porque possuía “(...) otros objetivos que tengo que cumplir por lo cual
necessito que salir”. Santiago é formado em medicina, e seu maior objetivo era
conseguir exercer o cargo de médico no Brasil, algo extremamente complicado por toda
a burocracia necessária. Sua trajetória até ali foi bastante solitária.

A única pessoa que me narrou uma experiência de organização coletiva no local


de trabalho foi Mauge, que afirmou que quando decidiu sair da oficina dos coreanos que
lhe trouxeram foi simples, pois lá era possível sair assim, sem ser impedida. Ela também
falou que nunca deixou de receber o pagamento nas datas certas, porém reconheceu que
o valor era muito baixo pelo tanto de trabalho realizado, sendo impossível enviar
dinheiro para fora do país:

Não dava, não dava... Eles... um dia a gente entrou de acuerdo asi, "Ah
eles tão pagando pouco, a gente... agente se junta todos e vamos a falar
pra ele que não vamos a fazer, que aumente a la peça", né? Entramos de
acuerdo todos... Aí falamos com ele, né? E falamos assim, "está muito
pouco, a gente não vai fazer, você tem que aumentar". E ele falou,
"quando atrasei tu salário? Quando atrasei? Eu sempre pago pontual, eu
tiro del banco se não tem... se não me pagam eu pago a vocês". "Eu

68
Ibidem.

126
atrasei?", perguntou assim a cada uno, e ele pagava pontual. "E agora
vocês não querem fazer? Então vai embora todo mundo!" (risos) 69.

O chefe, no entanto não aumentou o pagamento, não demonstrando receio com


relação aos trabalhadores, pelo menos não abertamente. Eram dez trabalhadores. Como
o acordo de aumento não foi atendido, segundo Mauge, a contrarresposta foi ficarem
calados. Assumiu-se a derrota, até porque denúncia não era uma opção já que muitos
tinham medo de serem deportados. Nessa época a migração era bastante criminalizada,
e criava-se toda uma atmosfera de medo. Mauge contou que os trabalhadores eram
orientados a não andarem muito juntos e assim chamar atenção da polícia.

Ainda que o dono da oficina não tenha demonstrado medo da organização e


enfrentamento dos trabalhadores em relação à baixa remuneração, Mauge narrou ainda
que exceto aos domingos, quando era permitido aos trabalhadores frequentarem espaços
de socialização70, no resto do tempo “tudo era portão fechado... eles tinham medo
parece, né? Tenian medo eles...” 71. Essa observação expressa algo importante: a relação
de exploração de trabalho nesses locais constrói-se, sobretudo, através do medo que se
inspira nos indivíduos e do controle excessivo sobre o coletivo.

Esse medo inspirado pelos donos da oficina nos trabalhadores e o controle


excessivo, no entanto, não impediu que todos os entrevistados e entrevistadas narrassem
experiências de abandono do trabalho e aposta em encontrar algo melhor. Mesmo que
diversas dessas histórias tenham envolvido perdas significativas, como Santiago que
narrou ter trabalhado três meses no primeiro emprego e ter saído sem receber nada, a
possibilidade de saída e busca por algo “melhor” foi encontrada por todos eles. Ali
viviam pessoas que por si só decidiam quando era o momento de dizer basta à
superexploração, isto é, qual o limite estavam dispostas a aguentar.

69
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).
70
A saída era permitida se os trabalhadores seguissem, as orientações corretas, caso não seguissem eram
punidos de alguma forma como, por exemplo, não poder entrar de volta na casa no mesmo dia, tendo que
retornar só no dia seguinte
71
MAUGE. Entrevista III. [Fev. 2016]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2016. Três
arquivos MPEG-4 (60 min).

127
5. Superarse: contradições entre liberdade e superexploração
“Yo salí de Bolivia é... No por cuestión de trabalho, salí da Bolivia por querer
esquecer os problemas que eu tenía ali. E sali grávida, com meu filho... Yo vine sin
conhecer ao Brasil... Eu vine pra trabalhar, así, morar, trabalhar” 72. “- Mi nombre és
Santiago, yo soy boliviano é... yo vine aquí a Brasil a superarme, no? A cumplir mis
sueños... de ser alguien en essa vida (...) necesito superarme. Entende?” 73.

Esses dois relatos, transcritos das conversas que tive com Miranda e Santiago
demonstram que a ideia do que seja superação é indispensável para as trajetórias de
migração e trabalho desses indivíduos. Eles adentraram as redes migratórias, se
transformaram em trabalhadores da costura, materializando em si diversas relações
sociais de nossa sociedade. Atores de suas próprias vidas, por assim dizer, trilharam
caminhos que, de fato, demandaram deles muita coragem e disposição.

Essa ideia de superação responde em parte o questionamento inicial desse capítulo,


sobre como o trilhar dum caminho de exposição e superexploração do trabalho era
justificado ou justificava-se na vida e percepção desses sujeitos – que se encontram em
grande parte profundamente ilhados, isto é, descoletivizados. Porém, isso não muda o
fato de que se são os sujeitos que fazem sua própria história, a vida cotidiana, as
trajetórias individuais e as pequenas lutas diárias de resistência também importam.

No primeiro trabalho que realizou numa oficina, Miranda contou que o salário
mensal era de 250,00 reais, e ela trabalhava das 06h30min às 22h00min. O tempo de
vida e o tempo de trabalho se confundiam em absoluto. Ela se recusou a permanecer
mais de um mês no lugar primeiro porque estava grávida e sabia que a renda seria
insuficiente para manter-se com um filho e, segundo, porque reconhece como
inaceitável o salário pago pelo tanto de trabalho.

Miranda trabalhou em uma segunda oficina depois de o filho nascer. O bebê


permanecia no carrinho ao seu lado enquanto ela costurava. Um dia, seu filho caiu do
carrinho no chão e Miranda recebeu uma negativa do patrão quando pediu para que ele
a deixasse levar o bebê ao hospital. Ela foi mesmo assim, comprando uma desavença

72
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
73
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).

128
com ele e, quando voltou do hospital foi expulsa da casa onde era a oficina. Por um dia,
depois de receber uma recusa de ajuda de uma conhecida, Miranda dormiu no terminal
de ônibus.

“Dai ao dia seguinte eu consegui trabajar com uma brasileira. Essa brasileira
me deu um quarto e eu trabajei ao horário... Com ella trabajei, com ella ya me superei.
Com ela ya trabalhei... Cinco meses trabalhei em sociedade”74. Quem a ajudou a
encontrar esse trabalho foi a pastora de uma igreja. Ela trabalhou junto com a brasileira
por seis meses, vivendo no mesmo local de trabalho.

...então seis meses yo trabalhei así dai ela falou para mi se yo


queria superarme porque... (hesitação) Ela sabia de la costura
que yo fazia bem... Ela sabia. Então ela falou para mi: você
puede ir a Brás ai tiene... Hay firmas grandes que... O serviço
que eu sei fazer es muy bueno entonces me pueden aceptar así
com um poco mas de salário... Dai empezé a caminar...75.

Miranda encontrou uma realização pessoal na costura. Esse relato, embora tenha
sido doloroso por tantos motivos, para eu escutar e, sem dúvidas, para ela compartilhar,
demonstrou que, de fato, individualmente sua trajetória demonstrou uma força incrível
enquanto trabalhadora, imigrante, mulher e mãe. Ela conquistou sua liberdade. Embora
a dor passada, que a motivou a caminar, ainda estivesse ali, como transpareceu nos
minutos em silencio e lágrimas derramadas, era possível ver que Miranda estava feliz,
se sentia assim. Como grande parte das pessoas que eu havia entrevistado e tantas
histórias que escutei, que representavam grandes pequenas vitórias pessoais.

Na época da entrevista, Miranda estava trabalhando ainda com costura, algo que
muito lhe agradava, ressaltando que seu horário de trabalho era “regulamentado”: das
oito às cinco. Agora, o tempo de vida e de trabalho se dividiam, tendo em sua leitura
encontrado um equilíbrio que lhe permitia viver a vida fazendo algo que mais lhe
agradava no mundo, mais que a costura: cuidar de seu filho. Com a saída da oficina e o
trabalho como free-lancer pilotera, Miranda também ganhou os finais de semana livres.

74
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
75
Idem.

129
Esse, pra ela, era o emprego ideal e ela manifestava estar feliz, pois lhe sobrava muito
mais tempo para passar com seu filho.

O fato de que não trabalhava na Bolívia e aqui passou a trabalhar pareceu


importante para ela, que afirmou essa informação mais de uma vez. Sua superação aqui,
e da vida que tentou deixar para trás, se realizou pelo trabalho, e ela valorizava muito
isso em seu discurso. Ela veio pra cá sozinha, grávida, depois que passou por uma
grande perda afetiva lá. Segundo ela, sua vida foi embora naquele momento, e por isso
ela sentia que já não podia mais viver ali, precisava ir embora, porque estava
profundamente infeliz. A migração, portanto, foi o recurso.

“Por eso que a minha vida mudou bastante aqui, esqueci... Ya


luché, ya salí... Ya consegui salir bien. Aqui. Entonces por eso yo
falo: yo vine a fazer dinheiro. Yo vine a morar com dignidade. E
essas lembranças que eu tinha eu deixei no passado yá...
Entonces agora solo eu e meu filho... Eu.. Agora solo los dois.
Consegui trabalhar. Estamos bem”76.

O Brasil, portanto, é o lar de Miranda. Ela disse que sentia saudade de algumas
coisas, principalmente da família (do pai e da mãe), mas que sua vida era aqui. A
saudade era apenas isso: saudade. “É... Acredita que eu não penso em voltar? [disse-me
Miranda rindo] Ya no... Ya... Ya... Minha vida ya mudou aqui bastante...Entonces...
Brasil que fez uma mudança bastante em mi vida. Então penso em morar aqui”77.
Miranda se mostrou uma pessoa religiosa, argumentando que não denunciou os
empregadores abusivos que teve por acreditar que Deus faria justiça nesses casos – e
que inclusive já se sentia justiçada, sentiu justiçada uma vez que estabilizou sua vida,
sentindo que não lhe faltava nada. Na época da entrevista, seu sonho era fazer um curso
para ser modelista: a pessoa que desenha as peças de roupa a serem costuradas. “Estou
querendo especializarme em este ramo para trabalhar de modelista. Depois para
superarme um pouco mais” 78.

76
MIRANDA. Entrevista II. [Out. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Quatro
arquivos .mp3 (1’8’’).
77
Idem.
78
Ibidem.

130
O projeto do qual fiz parte, o Si Yo Puedo, foi fundamental na vida de Santiago,
em sua percepção sobre a superexploração sofrida no primeiro trabalho e em sua
inserção na sociedade de destino. Foi através dele que Santiago percebeu que estavam
trapaceando com ele. Em nossa conversa, sobre a situação do primeiro trabalho, disse

“Bueno, la situación estaba malíssima, malíssima hum... em cualidade.


La situación estaba muy mal digamos apenas que llegué yo dije: no,
no importa. Me quedo aqui. Como sea, tratar de resolver mi problema
no? Me quedarme y buscar una moradia. Pero resolvi que me resulta
que me puseron em um lugar que no era habitable, um lugar que no...
que nadie puede vivir em este lugar digamos porque realmente estaba
em condiciones péssimas. Pero apesar de eso yo me quede ai.(...)”79.

Santiago contou que resistiu àquelas condições, pois não queria voltar para a
Bolívia já que tinha um objetivo a cumprir: “Quiero quedar y lo voy hacer”80. Não é a
mesma coisa dizer que há uma espécie de legitimação na trajetória que é árdua, algo
constitutivo da vitória. Há um reconhecimento de que o caminho pode não ser mesmo
fácil e que os indivíduos precisam criar mecanismos para lidar com isso, demonstrar a
capacidade de superação. Ser capaz disso é algo valioso aos indivíduos: batalhas árduas
vencidas são mais saborosas, talvez.

Durante toda a pesquisa Santiago e eu conversamos, e ele sempre trabalhou


muito, tendo pouco tempo livre. Com minha saída do projeto, ao final da pesquisa, e
com a formatura dele na turma de português, nos vimos pouquíssimas vezes. No
entanto, a tônica da sua vida, demonstrada na primeira entrevista que realizei,
permanecia a mesma: Santiago estava à procura de cumprir seus objetivos, traçado há
tanto tempo. Essa foi a motivação de sua imigração e foi isso que o colocou na rota da
costura. Diferente de Miranda, não conseguiu realizar-se através desse trabalho, mas
não desistiu. A liberdade de poder escolher onde e como realizar esses objetivos, bem
como de escolher o próprio objetivo, é confrontada pelas dificuldades objetivas que essa
mesma liberdade lhe impõe. É o paradoxo da liberdade.

79
SANTIAGO. Entrevista I [JUN. 2015]. Entrevistador: Julia Ferreira Scavitti. São Paulo, 2015. Três
arquivos MPEG-4 (63 min).
80
Idem.

131
Santiago, Miranda, Mauge, Yarita e Esther foram pessoas que compartilharam
comigo histórias intensas e incríveis de superação. Em diversos momentos eu pensava
se seria capaz de superarme assim. As condições objetivas e materiais de vida, no
entanto, foram ventos indispensáveis que lhes sopraram caminhos de liberdade possível,
em comparação com a vida que estavam vivendo. Esses ventos mudam de direções
constantemente, e escutar esses relatos me permitiu também pensar como seria construir
um projeto de vida alternativo; como seria precisar me submeter, pois isso ficou muito
claro nas entrevistas: foi preciso, em diversos momentos, precisar submeter-se ao
precário e até mesmo desumano.

Isso, sem dúvidas, é superação: a capacidade de resistência e resiliência desses


sujeitos. Nos circuitos dos estudos migratórios, escutar as dezenas de histórias de vida
que escutei me permitiram refletir sobre a importância de se pensar esses sujeitos,
capazes de superar condições tão adversas de vida, em busca de serem felizes,
exercendo a liberdade, ainda que a dupla e paradoxal, e sua possibilidade de ação nas
estruturas da sociedade. Esses relatos serviram a mim como tônica. É neles que residem
também as sementes, os questionamentos. O aprendizado de experiências coletivas que
ainda resistem. Se a reestruturação produtiva e o neoliberalismo foram capazes de
transformações tão profundas, também os sujeitos são capazes de resistir e sobreviver às
condições mais adversas em busca de cumprir seus sonhos e objetivos.

O que essas conversas me demonstraram é que grande parte desses sonhos e


objetivos confluem, encontram-se, representam uma coisa só. Ser feliz, superarse que,
no meu entendimento, tem relação com buscar sempre melhorar. Crescer, desenvolver-
se. Os momentos de felicidade compartilhada, aqueles de encontro na praça, por
exemplo, as aulas de português, os eventos, eram momentos bons, felizes. É em busca
desses momentos que se constroem os objetivos de vida e projetos migratórios. É
muitas vezes, por outro lado, fugindo da negação dessa felicidade, mas, sobretudo é o
exercício da liberdade, a capacidade de resistência, o sorriso mesmo em condições
adversas. Superarse poderia ser, então, algo coletivo.

132
Considerações finais
Ao longo dessa pesquisa, a dinamicidade e brutalidade da realidade chamaram
atenção para o quanto é necessário conhecermos a nossa própria historia. Ser capaz de
compreender os mecanismos de funcionamento da nossa sociedade torna possível
pensar formas de aprimorá-los, destruí-los e transformá-los. A reflexão inicial dessa
dissertação, o aprofundamento da noção de superexploração do trabalho, logo abriu
possibilidade para diversas outras questões importantes surgirem.

O estudo da imigração latino-americana, a atualidade do tema das migrações, em


especial as que envolvem diversas situações de desigualdade econômica e social entre
os países e, portanto, vulnerabilidade dos e das imigrantes, trouxeram de volta a
importância do debate acerca da colonização, da teoria do desenvolvimento desigual e
combinado, de León Trotsky (1879 – 1940), da teoria da dependência de autores como
Rui Mauro Marini (1932 – 1997) e Thetonio dos Santos (1936), perspectivas que
levantam a discussão sobre a necessidade do subdesenvolvimento de uma parte do
mundo para que se desenvolva a outra parte.

Não é possível entender as imigrações contemporâneas sem pensar o


funcionamento da sociedade capitalista, da economia de mercado mundial. Da
sociedade do lucro, que necessariamente produzirá desigualdades. Mais do que isso, se
faz necessário que se conheça a história profunda dos países subdesenvolvidos.
Entender a sociedade do trabalho, vivíssimo na forma desses imigrantes com quem tive
contato, passa necessariamente por entender as questões de funcionamento mundial da
sociedade, bem como as especificidades de cada local, de cada território, de cada
sociedade.

Foto: acervo
pessoal. Praça
Kantuta, 2016.

133
A reflexão desse texto tornou-se mais tocante a mim quando, logo que iniciado o
trabalho de campo, os muros que possuíam intervenções e pixações foram pintados de
cinza pela prefeitura. Depois de um tempo, no entanto, foram realizadas diversas
intervenções nos muros e, um dia quando cheguei para dar aula vi isso:

“Ser radical é colher as coisas pela raiz”. (FERNANDES, 2008, p. 145). A


leitura da nossa sociedade, a construção do conhecimento deve ser feita de forma a
procurar pensar as raízes dessa sociedade. Responder os porquês, isto é, entender
porque mesmo fazendo sua própria história os indivíduos não a fazem como a querem.
Todos esses questionamentos aliaram-se às perguntas iniciais, e o Galeano (2014)
tornou-se leitura parte da pesquisa. Assim, passei a endossar as suas perguntas.

(...) A América Latina é uma região do mundo condenada à


humilhação e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus,
culpa da natureza? Um clima opressivo, as raças inferiores? A
religião, os costumes? Não será a desgraça um produto da
história, feita pelos homens e que pelos homens, portanto, pode
ser desfeita? (Galeano, 2014, p. 370).

Na reflexão, foi possível construir a hipótese do por que a classe trabalhadora


brasileira possui condições de vida tão rebaixada, a partir da perspectiva teórica da
superexploração do trabalho. Esta nos permite entender que a existência de uma forma
de exploração do trabalho análoga à de escravo não é, e não pode ser tratada como, uma
forma-resquício de modos de produção passado, opondo a categoria de trabalho
assalariado livre como perspectiva final ideal. A superexploração do trabalho é
constitutiva do sistema produtivo atual, inclusive ocorrida através do pagamento de
salário, como são nas oficinas onde se remunera por peça produzida.

Além disso, importante perceber que os indivíduos produzem discursos sobre si


próprios que influenciarão a forma como se veem e serão vistos na sociedade – a recusa
ao termo escravo vem no sentido de que este inferioriza e des-humaniza o sujeito,
tornando mais difícil sua garantia de direitos e de uma vida digna na sociedade. Os e as
imigrantes, trabalhadores, são capazes de produzir sobre si mesmos. A discussão sobre a
consciência de classe surgiu nessa reflexão, sobre como os sujeitos se enxergam a si
mesmos, suas condições de trabalho e o coletivo de trabalhadores ao qual se vincula.

134
Essa foi a discussão desenvolvida no final da dissertação – a tentativa de refletir
as contradições presentes entre a realidade da exploração concreta, objetiva; e a
percepção da exploração subjetivamente: o que se justifica, como e por quê. Essa
discussão demandou uma reflexão sobre ideologia e consciência subjetiva – e de classe,
pois se tornou evidente que a reestruturação produtiva não só realocou espacialmente a
produção capitalista como trouxe consigo um sistema de pensamento que parece ter
modificado os sujeitos em sua consciência coletiva. Essa transformação modificará a
percepção que um grupo poderia ter de si mesmo enquanto classe, como tentei apontar.

A reflexão aqui passa pelo neoliberalismo, as mudanças produzidas nos


indivíduos e as consequências que isso traz para a(s) classe(s) de trabalhadores. A tônica
foi a tentativa de entender como se manifestava essa consciência de classe e consciência
de si numa perspectiva neoliberal, procurando as contradições dos discursos e
contrastando com a realidade pensada. O paradoxo da dupla liberdade – o “eu
condicionado” – e sua materialização na subjetividade dos trabalhadores e
trabalhadoras. Essa era a discussão para a qual apontavam as entrevistas, e tentei
desenvolvê-la um pouco aqui.

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