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— “Acabais de ouvir o enviado dos Cristãos do Oriente. Ele vos disse da sorte
lamentável de Jerusalém e do povo de Deus; ele vos disse de como a cidade do rei dos
reis, que transmite aos outros os preceitos de uma fé pura, foi obrigada a servir às
superstições dos pagãos; de como o túmulo milagroso, onde a morte não pôde conservar
sua presa, esse túmulo, fonte da vida futura, sobre o qual surgiu o sol da ressurreição, foi
manchado por aqueles que não devem ressuscitar, senão para servir de palha ao fogo
eterno. A impiedade vitoriosa espalhou suas trevas nas mais ricas regiões da Ásia:
Antioquia, Éfeso, Nicéia, tornaram-se cidades muçulmanas; as hordas bárbaras dos turcos
plantaram seus estandartes nas margens do Helesponto, de onde ameaçam todos os países
cristãos. Se Deus mesmo, armando contra elas seus filhos, não se detiver em sua marcha
triunfante, que nação, que reino, poderá fechar-lhes as portas do Ocidente?”
O soberano Pontífice dirigia-se a todas as nações cristãs; ele dirigia-se
principalmente aos franceses; na sua coragem a Igreja punha a sua esperança; porque
conhecia sua bravura e sua piedade, o Papa havia atravessado os Alpes e lhes trazia
palavra de Deus. À medida que o Pontífice pronunciava seu discurso, os ouvintes
penetravam-se dos sentimentos de que ele estava animado; ele procurava ora excitar no
coração dos cavaleiros e dos barões que o escutavam, o amor da glória, a ambição das
conquistas, o entusiasmo religioso e principalmente a compaixão por seus irmãos, os
cristãos.
— "O povo digno de elogios, dizia-lhes ele, esse povo que o Senhor, nosso Deus,
abençoou, geme e sucumbe sob o peso dos ultrajes e e das exações mais vergonhosas. A
raça dos eleitos sofre indignas perseguições; a raiva ímpia dos sarracenos não respeitou
nem as virgens do Senhor, nem o colégio real dos sacerdotes. Eles carregaram de ferros
as mãos dos enfermos e dos velhos; crianças arrancadas aos braços maternos esquecem
agora entre os bárbaros o nome do verdadeiro Deus; os asilos que esperavam os viajantes
pobres na estrada dos santos lugares receberam sob seu teto profanado uma nação
perversa; o templo do Senhor foi tratado como um homem infame e os ornamentos do
santuário foram arrebatados como escravos. Que vos direi mais?
“No meio de tantos males, quem poderia reter em suas casas desoladas, os
habitantes de Jerusalém, os guardas do Calvário, os servidores e os concidadão do
Homem-Deus, se não se tivesse imposto a eles a lei de receber e de socorrer os peregrinos,
se eles não tivessem receio de deixar sem sacerdotes, sem altares, sem cerimônias
religiosas uma terra toda coberta ainda pelo sangue de Jesus Cristo?
“Ai! de nós, meus filhos e meus irmãos, que vivemos nestes dias de calamidades!
Viemos então a este século reprovado pelo céu para ver a desolação da cidade santa e para
vivermos em paz, quando ela está entregue nas mãos de seus inimigos? Não é preferível
morrer na guerra do que suportar por mais tempo esse horrível espetáculo? Choremos
todos juntos nossas faltas que armaram a cólera divina; choremos, mas que nossas
lágrimas não sejam como a semente lançada sobre a areia e a guerra santa se acenda ao
fogo de nosso arrependimento; e o amor de nossos irmãos nos anime ao combate e seja
mais forte que a mesma morte, contra os inimigos do povo cristão.
“Guerreiros que me escutais, prosseguia o eloqüente Pontífice, vós que procurais
sem cessar vãos pretextos de guerra, alegrai-vos pois eis aqui uma guerra legítima:
chegou o momento de mostrar se estais animados por uma verdadeira coragem; chegou o
momento de expiar tantas violências cometidas no seio da paz, tantas vitórias manchadas
pela injustiça. Vós que fostes tantas vezes o terror de vossos concidadãos e que vendíeis
por um vil salário vossos braços ao furor de outrem, armados pela espada dos Macabeus,
ide defender a casa de Israel, que é a vinha do Senhor dos exércitos. Não se trata mais de
vingar as injúrias dos homens, mas as da Divindade; não se trata mais do ataque de uma
cidade ou de um castelo, mas da conquista dos santos lugares. Se triunfardes, as bênçãos
do céu e os reinos da Ásia serão vosso prêmio; se sucumbirdes, tereis a glória de morrer
nos mesmos lugares onde Jesus Cristo morreu e Deus não se esquecerá de que vos viu em
sua santa milícia. Que afeições fracas e covardes, sentimentos profanos não vos prendam
em vossos lares; soldados do Deus vivo, escutai somente os gemidos de Sião; quebrai
todos os liames da terra e lembrai-vos do que o Senhor disse: Aquele que ama seu pai ou
sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; todo aquele que deixar sua casa, ou seu
pai, ou sua mãe, ou sua esposa, ou seus filhos, ou sua propriedade, por meu nome, será
recompensado com o cêntuplo e terá vida eterna.”
Estas palavras de Urbano penetravam e abrasavam todos os corações e
assemelhavam-se à chama ardente descida do céu. A assembléia dos fiéis, levados por um
entusiasmo que jamais a eloqüência humana tinha inspirado, ergueu-se totalmente e fez
ouvir estas palavras: Deus o quer! Esse brado unânime foi repetido várias vezes; ecoou ao
longe na cidade de Clermont e até nas montanhas da vizinhança.
Quando se restabeleceu a calma continuou o Pontífice:
— “Vedes aqui a realização da promessa divina: “Jesus Cristo declarou, que
quando seus discípulos se reunissem em seu nome, Ele estaria no meio deles; sim, o
Salvador do mundo está agora em nosso meio e é Ele mesmo que vos inspira os brados
que acabo de ouvir. Que essas palavras: Deus o quer! sejam para o futuro vosso grito de
guerra e anunciem por toda a parte a presença do Deus dos exércitos.”
Terminando de falar, Urbano mostrou à assembléia dos cristãos o sinal da
redenção.
— 20"É o mesmo Jesus Cristo, disse-lhe, que sai de seu túmulo e que vos apresenta
sua cruz; ela será o sinal, erguido entre as nações, que deve reunir os filhos dispersos de
Israel; levai-a em vossos ombros ou sobre o vosso peito; que ela brilhe sobre as vossas
armas e sobre os vossos estandartes; ela será para vós o penhor da vitória ou a palma do
martírio; ela vos há de lembrar continuamente que Jesus Cristo morreu por vós e que
deveis morrer por Ele.”
Depois que Urbano acabou de falar, a agitação foi grande; só se ouviam estes
brados: Deus o quer! Deus o quer!, que era como a voz de todo o povo cristão. O cardeal
Gregório, que depois subiu ao trono de São Pedro, com o nome de Inocêncio, pronunciou
em voz alta uma fórmula de confissão geral; todos prostraram-se de joelhos, batendo no
peito e recebendo o perdão de seus pecados.
Ademar de Monteuil, Bispo de Puy, pediu por primeiro para ingressar no caminho
de Deus e tomou a cruz das mãos do Papa. Vários Bispos seguiram-lhe o exemplo.
Raimundo, conde de Tolosa, desculpou-se no meio de seus embaixadores por não ter
podido assistir ao concílio de Clermont; ele já tinha combatido contra os sarracenos, na
Espanha. Prometia ir combatê-los também na Ásia, seguido por seus guerreiros mais fiéis.
Os barões e os cavaleiros que tinham ouvido as exortações de Urbano fizeram o
juramento de vingar a causa de Jesus Cristo; esqueceram-se de suas próprias questões e
juraram combater juntos os inimigos da fé cristã. Todos os fiéis prometeram respeitar as
decisões do concílio e ornaram suas vestes com uma cruz vermelha de pano ou de seda.
Tomaram desde então o nome de cruzados e foi dada à guerra o nome de Cruzada, isto é,
à expedição que se ia empreender contra os sarracenos.
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A Idade de Ouro das Cruzadas
A. Lecoy de la Marche, Saint Louis, son gouvernement e sa politique, Maison Alferd
Mame et fils, Tour, pp. 161-165.
Joinville, que viu então [a São Luiz] à testa de seu batalhão, no tumulto dos brados e
do som das trombetas e gongos, (...) deixou-nos um retrato inesquecível.
O Rei se deterá no caminho: “Jamais, diz o historiador, vi um tão belo cavaleiro,
pois ele aparecia por cima de todos os guerreiros, ultrapassando-os a partir dos ombros,
com seu elmo dourado na cabeça e sua espada da Alemanha na mão. (...).
O simples fato de vê-lo passar era suficiente a cada um para sentir o coração em
chamas! Ele comandou então a carga, para abrir caminho ao exército.
Que bela carga! Com espadas, com lanças, com maças de guerra! Toda a fúria
francesa, toda a fé cristã comunicando-se de um cavaleiro ao outro numa espécie de
ebriedade heróica, de absoluto desprezo da morte, e talvez de júbilo. As tropas de Bibars
[o chefe muçulmano] são fendidas, quebradas,
dispersadas. (...).
A cavalaria muçulmana reaparece. É
necessária toda a resolução do Rei para continuar a
avançar sem desordem. Inconfundível com seu
elmo dourado, o Rei é reconhecido pelo inimigo.
Rodeado por seis mamelucos que chegam até a
agarrar as rédeas de seu cavalo, eis que, sozinho,
quebra o cerco a grandes golpes de espada e se
liberta, com essa coragem tranqüila que jamais o
abandona, e com a serenidade vinda de sua
confiança em Deus; de tal modo a vida e a morte se
unem para ele na mesma idéia de submissão, na
mesma vontade de servir a Deus até o fim, aconteça
o que acontecer. E essa serenidade, essa calma são
contagiosas: o Rei quer; que importa o resto?
Morrer ou matar por Cristo não é criminoso, mas glorioso
São Bernardo de Claraval, De laude novae militiae, Migne P.L., t. 182, col. 924 (apud
Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao
Patriciado e à Nobreza romana, pg.320).
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A Cruzada vista pelos cronistas medievais
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Historie Albigeoise, Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 1951, pp. 13, 23, 34.
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D. Sebastião de Portugal
Antero de Figueiredo, D. Sebastião, Livraria Bertrand, 1943 (trechos selecionados).
* * *
* * *
No meio do largo Tejo azul, espelho do alto céu azul, a galé “São Martinho”,
branca e ouro, com o gurupês em riste, o castelo toldado de carmesim e toda ela
empavezada com multicolores galhardetes, pavilhões e flâmulas de seda nos topes dos
mastaréus, recebe com júbilo e orgulho este maravilhoso cruzado da antiga era, que vai
atirar-se, repleto de altíssimos sonhos, no ardor da Fé e na obstinação da honra, de
encontro a chusmas de mouros nos areais da África berberesca, para, num sacrifício
ingente, sagrar a sua alma de herói numa epopéia de sangue!
E a frota bela, empenachada de ideal, lá vai, barra fora, rumo ao sul, florida em
suas cores, fidalga em suas determinações, santa em seus propósitos! Abalada das velas e
das almas em cometimentos augustos, é uma empresa mística e patriótica em demanda de
sonhos que agradem a Deus e honrem a nação.
Ó Jesus crucificado, de D. Afonso Henriques; ó Santa Maria de Seiça e São Jorge
de Aljubarrota, com quem Nuno Álvares se apegou; ó Senhora do Carmo, do voto de
Valverde; ó santos e santas, anjos, arcanjos e serafins da corte do Céu, ante cujas imagens
os peitos crentes dos reis, infantes, governadores, fronteiros, capitães, soldados, marítimos
portugueses se têm aberto em horas temerosas de pelejas ingentes por amor à pátria! Vós
bem o sabeis, almas celestiais, que são puras e formosas as intenções deste Rei de sonho!
Piedoso como os mais piedosos dos seus antepassados; guerreiro como os melhores; herói
como os maiores, lá vai ele, em derrota grandiosa, criar história bela!
A morte
* * *
Montado num cavalo ferido, surge D. Sebastião. Como o Cid de Vivar, todo ele
esta coberto de sangue até os cascos do corcel! Amolgado o elmo, em farrapos a
sobrecota. Pé no estribo, mão esquerda nas rédeas e no arção, espada na direita, larga a
galope, direito a magotes de mouros que ao longe pelejam com cristãos. No caminho
encontra, estendido no chão, D. Antônio, prior do Crato, junto do seu cavalo lanceado. O
filho do infante D. Luis, reconhecendo D. Sebastião, ergue-se a custo, e certíssimo de que
a batalha esta fatalmente perdida, aponta ao rei um escape, rogando-lhe solícito:
— “Fuja!”
D. Sebastião que, para o ouvir, sofreara um momento a correria, sente-se varado
pelo insulto da idéia da fuga e responde com ufania:
— “E a minha honra?”
E, esporeando o cavalo, abala vertiginoso.
Todo o enorme campo está coalhado de cadáveres: mouros, turcos, portugueses,
castelhanos, italianos e tudescos. A batalha vai no fim; durou duas horas infernais!
D. Sebastião está agora no meio de um punhado de fidalgos portugueses, vassalos
fiéis que, jamais o desamparando, lhe seguram o cavalo e tentam, num desesperado
esforço de amor veemente, arrancá-lo para fora do campo e salvá-lo. Para isso, expõem as
suas vidas pela vida preciosa do seu Rei. De súbito, uma chusma de arábios acorre,
cercam-no e aos seus companheiros, numa epiléptica ronda de canibais em delírio, ébrios
de alegria por poderem deitar a mão naqueles refens cristãos. Já dois mouros disputam
entre si a quem o Rei deve pertencer. Então, no meio de atroadora vozearia, Cristovão de
Távora, seguro da perda fatal de D. Sebastião, ata um lenço branco na ponta da espada e
ergue-a ao ar, pedindo trégua.
Ante o sinal de paz, os mouros suspendem por um momento a algarada, acedendo;
mas apontando para a temível espada do Rei, bradam pela voz de um intérprete renegado:
— “Que largue primeiro as armas!”
— “Só a morte me pode arrancar da mão esta espada!” — ripostou soberbamente
D. Sebastião.
O busto erecto, as pernas retesas nas estribeiras de cobre; grande e belo na sua
desgraça de vencido: a cabeça ruiva sem elmo e golpeada; as faces a escorrerem sangue; a
camisa negra de poeira; o camal lanhado... D. Sebastião olha altaneiro e impávido para
essa repulsiva turba-multa de gentalha esfarrapada, inimigos da sua raça, da sua crença e
da sua pátria.
Cristovão de Távora, vendo D. Sebastião irremediavelmente perdido, levanta para
ele as mãos suplicantes e os olhos desventurados, e clama com voz traspassada:
— “Meu Rei e meu senhor, que remédio teremos?”
— “O do Céu, se as nossas obras o merecem” — responde-lhe calmo o Rei de
Portugal.
E atira-se, num último arranco desesperado, para cima da chusma de imundos
maometanos, ao encontro da morte que o imortalizará! Com todas as purezas de seu corpo
virgem, toda a alvura de sua alma cândida, todas as intenções nobilíssimas do seu arrojo
supremo! Seus erros belos expia-os no vexame infinito de, num momento, ver
destroçados os sonhos de uma vida inteira e no de saber que vai acabar às mãos de
miseráveis inimigos maltrapilhos, que em breve porão suas mãos sujas no seu corpo
branco, o rachaçarão a ele e àquele punhado de portugueses fidelíssimos, que
acompanham na morte o seu Rei, porque nenhuma dessas almas fidalgas padece viver
depois de testemunhar tão crudelíssima tragédia.
Espada alta servida por um braço potente, que durante horas seguidas desfechou em
todas as direções golpes mortais; o cavalo empinado, cujos olhos são lume, cuja boca
remorde o freio entre espumas brancas e bravas, D. Sebastião é um semi-deus descido das
alturas para batalhas de extermínio. Essa espada de fúria e luz ainda faz espirrar muito
sangue; ainda mata inimigos; ainda cria espanto; ainda abre em torno de si clareiras de
morte!
Mas ao alarido guerreiro têm-se juntado muitos mouros, que encurtam, apertam,
estrangulam o terreno a este Rei de lenda, que até o derradeiro momento despede
formidáveis cutiladas com a sua espada de furores sublimes.
Matam-lhe o cavalo. Em pé, batalha ainda. Por fim, uma espadeirada certa, vibrada
ao pescoço sem gorgeira, abate-o. Por terra, crivam-no de lanças.
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2. A luz carolíngia atravessa os séculos
Marquis de la Franquerie, La Vierge Marie dans l'histoire de France, pp. 30-35/59/63;
J.B. Weiss, “História Universal”.
Carlos Magno colocou sua glória e sua salvação sob a proteção de Nossa Senhora,
cuja imagem sempre portava, pendente ao pescoço numa corrente de ouro. À sua
poderosa intercessão ele atribuía o sucesso de todos os seus empreendimentos, e por isso
quis deixar às gerações futuras um testemunho de sua piedade e seu reconhecimento a
Maria: a basílica de Aix-la-Chapelle.
E nesta igreja, por ele consagrada a Maria, desejou ele ser coroado Rei dos
Romanos a fim de fazer entender que das mãos de Maria recebia o cetro e a coroa.
Eginhard, o grande historiador contemporâneo do Imperador, afirma: “Ele
comparecia pontualmente à basílica por ocasião das orações públicas da manhã e da
tarde, e assistia aos ofícios da noite e ao Santo Sacrifício. Velava para que as cerimônias
se fizessem com grande dignidade; recomendava continuamente aos guardiães que não
tolerassem no templo a falta de limpeza, indigna da Santa Virgem”.
O culto que tributava à Santíssima Virgem inspirou-lhe igualmente a devoção ao
Espírito Santo e foi ele quem compôs, em honra da Terceira Pessoa da Trindade, esse
admirável apelo à divina luz: o Veni Creátor Spíritus.
Sentindo próximo o seu fim, o Imperador, que fora tão grande durante a vida,
soube sê-lo também diante da morte: Confiante na Rainha dos Céus, a quem ele tão bem
servira, quis ser enterrado com uma estátua de Maria sobre o peito, na basílica de
Aix-la-Chapelle, por ele edificada em honra de sua divina Protetora.
Eginhard nos mostra de perto a personalidade de Carlos Magno:
Era de corpo grande e robusto, de sete pés de altura [mais de 2,10 metros].
Seus olhos eram muito grandes e vivos. Tinha formosos cabelos brancos e uma
fisionomia afável e alegre. Quer estivesse sentado ou de pé, sua fisionomia oferecia uma
aparência em extremo digna e imponente. Seu passo era firme, suas atitudes varonis; clara
era sua voz. Dessa figura heróica emanava um espírito alegre. Um monge de Saint-Gall
conta que quem tivesse chegado triste junto a Carlos Magno, dele separava-se sereno,
somente pelo efeito de sua presença e de algumas palavras.
A frescura e a claridade de sua índole confortavam todos os que se punham em
contato com ele. Sua majestade não consistia jamais numa soberba rigidez nem numa
sombria reserva, mas na serena grandeza de sua personalidade, que superava tudo e, não
obstante, carecia de pretensões e repousava sobre si mesma.
A terrível impressão que produzia como guerreiro, frente a seus exércitos, no
coração de seus inimigos, no-la descreve um monge de Saint-Gall:
“Então se viu o férreo Carlos, que tinha sua cabeça coberta com um elmo de ferro,
os braços revestidos de braçadeiras de ferro. Na mão esquerda levava a férrea lança, e
na direita sua espada de aço sempre vitoriosa. Os músculos cobertos por escamas de
ferro, e o escudo também de ferro. Então ressoou um grito de dor, de todos os habitantes
de Pavia: «Ó Férreo! Ó Férreo! »”.
Este homem de ferro tinha um coração profundamente sensível. Carlos chorava
como um menino à morte de um amigo. O vencedor de cem batalhas cuidava
fraternalmente dos pobres. O homem sob cujos passos de gigante tremia a Europa, por
cujos grandes planos foram subjugados um milhão de homens, era o mais terno pai de
família, que em sua casa não podia comer sem seus filhos.
A religião deu o mais nobre impulso ao seu espírito forte e fecundo. Consagrou o
seu poder e amparou os povos, que sua espada havia subjugado.
Carlos Magno saiu do círculo de seus heróis e entrou na tranqüila morada da morte.
Mas sua imagem sobreviveu no coração dos povos. Seu corpo foi descansar na Catedral
de Aix-la-Chapelle, onde se coroavam os reis da Alemanha. Porque havia cingido coroa,
levava espada, manto e sandálias. Essas passaram a ser as relíquias do Império. Quando o
Ocidente se pôs em movimento para libertar o Santo Sepulcro, todos creram que Carlos
Magno havia ido a Jerusalém, para ser o modelo da Cavalaria, e assim ele sobreviveu
pelos séculos, pois o tempo e a morte perderam seu poder ante sua espiritual grandeza.
Prece dos fracos chamados a grandes feitos dirigida a
Carlos o Grande, Carlos o Forte, Carlos o Vencedor o qual
recebeu de Maria a luz que o tornou sábio, a coragem que o
tornou herói, a força que o tornou invencível até mesmo
contra os fortes
Lembrai-vos de que
quando, no início deste século, a Revolução triunfante
proclamava definitiva a vitória de seus dogmas ímpios, de seus
progressos mentirosos e dos seus costumes corruptos,
quase ninguém ousava sobre a face da terra
trabalhar e lutar para que toda esta Babel, obra de Satanás,
ruísse por terra
libertando do seu jugo os justos que,
afinal vitoriosos, proclamassem sobre a terra a abertura de
mais uma época carolíngia.
Em favor deles, como nosso, obtende principalmente que a Virgem multiplique nos
corações deles o amor,
pois atendidas estas preces virá à terra o novo Reino de Maria.
Parece-nos ouvir que em todos os coros celestes e nos corações de todos os justos
na terra um brado se levanta, cada vez mais repassado de amor,
de um amor que para a glória de Maria quer tudo, já e para sempre.
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VII — As Ordens de Cavalaria (1)
Nos empreendimentos e conquistas dos nossos primeiros Reis tomam grande parte
as Ordens Militares. É o momento de abrir um parêntesis e dedicar algum espaço a essas
admiráveis legiões, bem representativas da alta espiritualidade que domina toda a vida
medieval.
Qual a finalidade desses religiosos combatentes? Uma finalidade que, por assim
dizer, prolonga a das Cruzadas: depois de reconquistado o túmulo de Cristo, querem
formar as milícias de Cristo, para defendê-lo contra quaisquer tentativas do infiel.
Trata-se de uma Cruzada permanente — votada às supremas causas da fé e do bom
combate. Almas mobilizadas e corpos mobilizados. O hábito do monge coberto pela
armadura do guerreiro. A vida inteira absorvida no holocausto fervoroso da guerra santa.
Às Ordens Militares se confiam os grandes postos de vanguarda — baluartes
extremos onde vêm bater as ondas bravas da moraima. Ali se levantam fortalezas dentro
das quais oram e aguardam os monges cavaleiros, em perpétua vigília de armas. Todo o
seu destino consiste em apurar a alma para a oferecer, íntegra, limpa de pecados, à hora
festiva da batalha.
De facto, esses homens, que vivem num transporte de exaltação, partem para a
batalha como para uma festa. Festa de sacrifício e de resgate, que lhes permite dar provas
do seu entusiasmo apostólico, do seu despreendimento dos bens terrenos, da sua
obediência ao apelo divino.
Festa de sangue? O sangue do infiel purifica o mundo! É com tal segurança que os
freires acometem, — missionários da espada, certos de servirem uma verdade mais alta e
de abrirem, nos redemoinhos dos montantes, os claros trilhos da futura redenção humana.
É a morte, para eles, o melhor prêmio. Consagram-se inteiramente a Cristo, à
meditação e prédica da sua doutrina, à imitação do seu exemplo, ao triunfo completo da
sua causa. Desde que lhes seja dada a recompensa de sucumbir no serviço de Deus, às
mãos dos que O blasfemam e injuriam, é porque o seu voto foi aceito, o sentido da sua
trajectória terrena foi cumprido. Varados de cutiladas, a esvair-se por mil feridas —
abre-lhes a morte um sorriso sobrehumano na face deslumbrada. Sabem que, no mesmo
instante em que os olhos perdem a visão do mundo, das suas lutas e das suas misérias —
no mesmo instante se lhes descerram, em beatífico alvor, os horizontes da Vida Eterna e
da Luz Eterna!
Insensíveis, portanto, às agruras e aos perigos do combate. Privações, sofrimentos,
temores do adversário traiçoeiro deixam-nos indiferentes, porque apenas representam
meios propícios de alcançar o desejado objectivo. Quanto mais dor — mais amor. Entre
os lances tumultuários e ferozes das pugnas à arma branca, entre os gritos ululantes dos
mouros enfurecidos — avançam inundados de imensa alegria por se verem convertidos
em irmãos do Crucificado e terem a certeza profunda de merecer, à custa de males
transitórios, bemaventurança sem fim.
Assim transfigurados, assim predestinados, colaboram, na primeira fila, em toda a
epopéia da nossa Reconquista. Quando do famoso assalto nocturno a Santarém, ei-los
junto de D. Afonso I, a saltar às muralhas, a despedir golpes sobre a turba agarena. Nas
campanhas árduas do Alentejo e do Algarve, em que vilas e castelos passam de um a
outro campo e sucessivos fluxos e refluxos marcam o desesperado duelo de duas crenças
e duas raças — suportam quase só por si o peso dos choques bélicos, e os progressos do
nosso domínio assinalam-se pelas doações que lhes são feitas em reconhecimento das
suas proezas. Entre os primeiros Reis e as Ordens Militares a união é estreita, íntima,
completa — porque os liga o espírito de Cruzada e os exorta em conjunto a voz distante
dos Pontífices de Roma.
* * *
* * *
Armados de ferro e de Fé
Eles vivem sem nada ter de próprio, nem sequer a sua vontade. Vestidos com
simplicidade e cobertos de poeira, têm a face marcada pelos ardores do sol, e o olhar duro
e severo.
Ao aproximar-se o combate, armam-se de fé no interior e de ferro no exterior. As
armas são seu único adorno, e delas se servem com coragem nos maiores perigos, sem
temer o número ou a força dos infiéis.
Toda sua confiança está posta no Deus dos Exércitos; e, combatendo por sua causa,
procuram uma vitória certa ou uma morte santa.
Ó bem-aventurado gênero de vida!
* * *
Georges Bordonove, La vie quotidienne des templiers au XIII siècle, Hachette, Paris,
1975.
Georges Bordonove, La vie quotidienne des templiers au XIII siècle, Hachette, Paris,
1975.
Para o homem medieval, a Cavalaria não é senão a força armada a serviço da Igreja
de Jesus Cristo, contra os pagãos e hereges. Tal é sua particular e gloriosa missão. Na
Chanson d'Antioche, os cavaleiros são chamados Chevaliers de Jésus [Cavaleiros de
Jesus]: “aqueles que servem ao Senhor Deus, com leal e inteiro coração”.
Sob a guarda de uma regra monástica, veremos florescer essa Cavalaria de Deus na
Ordem do Templo.
Com os Templários a idéia do soldado cristão encontra-se eminentemente
realizada; a Igreja não podia dar ao terrível ofício da guerra um caráter mais elevado e
mais santo.
Quem, além do Abade de Claraval, era capaz de propor a Regra do Templo à
nobreza francesa? Cavaleiro por estirpe, era ele monge por escolha de seu livre arbítrio,
mas quando empunhava a pena, julgar-se-ia que brandia uma espada.
Bernardo consentiu em fazer o “Elogio da nova milícia”, e aproveitou a ocasião
para dar uma viva e terrível lição à cavalaria do século XII.
Era necessário, de entrada, justificar o uso da espada aos olhos dos tímidos e dos
indecisos. Então, a exemplo de Santo Agostinho ele exclama:
“Não há lei alguma que proíba o cristão de golpear com o gládio! O Evangelho
recomenda aos soldados a moderação e a justiça, mas não lhes diz: «Abandonai vossas
armas e renunciai à milícia »”. Só é proibida a guerra iníqua, a guerra entre os cristãos.
“É necessário dispersar esses sarracenos que nos procuram guerra, rechaçar esses
obreiros de iniqüidade que tentam conspurcar os Santos Lugares e tomar pose do
Santuário de Deus. Que nobre missão para aqueles que abraçaram o ofício das armas!
Vamos! Que os filhos da Fé desembainhem a espada contra os inimigos!
Seria preciso recorrer a uma aprovação mais alta? Ei-la: “O Príncipe, o Capitão
dos cavaleiros se armou um dia, se não com o ferro, com o látego para expulsar os
vendilhões do Templo”. A seu exemplo, os cavaleiros do Templo devem impedir os
infiéis de manchar os Lugares Santos.
Afastemo-nos por um instante do tumulto dos combates. Sigamos o olhar
maravilhado e curioso do peregrino recém desembarcado na Terra Santa, vindo das ricas
terras de Flandres, de uma baía bretã ou dos úmidos bosques do Poitou.
Subitamente, chegado ao termo de seu longo périplo, imergido nessa luz
incomparável da Palestina, ele avista afinal, do alto de uma colina sob o azul sem mácula
do céu, o objeto de seus fervorosos desejos: Jerusalém! Jerusalém, “a cidade das cidades,
senhora das nações e rainha das províncias, chamada, por insigne favor, Cidade do
Grande Rei, situada no centro do mundo”. Após tantos perigos enfrentados, tantos dias de
ansiosa esperança, ei-lo diante dela...
Vermelha e branca, ela se oferece inteira à sua vista, semelhante “a um cervo
reclinado sobre as colinas”.
Poderosa fortaleza, acúmulo de jóias polidas pelo fulgor do sol, parece-se ela um
pouco a Toledo: os mesmos montes estampados pela alvura das muralhas, as lanças
escuras dos ciprestes e os tufos de prata brunida das oliveiras.
Inúmeras torres flanqueiam as altas muralhas, e, por cima de tudo, entre os telhados
e campanários, surge a cúpula do Templo, em cujo ápice brilha uma enorme cruz dourada.
Quatro quilômetros o separam... não longos para um peregrino, a despeito de seu
cansaço.
O entusiasmo e a emoção dirigem seus passos. Vai primeiro ao Gólgota, onde
outrora os Cruzados acamparam, e ali dá graças ao Senhor. Desce em seguida em direção
à Torre de Davi, entra no vale da Gehena pelo sul, aos pés do Monte Sião, percorre o vale
do Cedron e ganha o Monte das Oliveiras. Detêm-se, meditativo, no Horto de
Getsêmani... Mas a cidade o espera!
Retoma ele sua marcha e atinge por fim a porta de Santo Estevão, destinada aos
peregrinos. Lá o aguardam alguns amigos. Senão, informado pelos relatos dos viajantes e
a leitura das crônicas, penetra sozinho no borbulhar intenso e no barulho inerente a toda
cidade oriental.
Eis a rua do Templo. Em torno dele, misturam-se idiomas e mentalidades: judeus e
sírios, armênios e bizantinos, francos, alemães, espanhóis, venezianos ou genoveses,
ingleses e sicilianos. De repente, essa multidão barulhenta e confusa se afasta para dar
passo a dez cavaleiros brancos, impecáveis e silenciosos, não tendo outro adorno senão a
cruz rubra em seus peitos. São templários!
O peregrino ouviu tanto falar deles e de suas proezas! Ele ama e respeita os que
conheceu em sua província, mas estes... são heróis! E, além do mais, destinados ao
martírio.
Um desejo o toma: visitar sua Casa!
Não é coisa difícil: a finalidade inicial dos “Pobres Cavaleiros de Cristo”
permanece viva e válida, ou seja, acolher e sustentar os peregrinos. Ela é aumentada pela
esperança de que o visitante, seduzido pela Casa e tentado pelos Anjos, não queira mais
partir, e peça para ser um deles...
Saladino assim lamenta, em carta ao califa de Bagdá, a coragem dos Cavaleiros de
Jesus:
“Esperemos da bondade de Alá que o perigo no qual estamos despertará o zelo dos
muçulmanos, e que assim eles se esforçarão por extinguir o ardor de nossos inimigos e
abater o edifício construído pelos Francos.
“Enquanto nossos inimigos acorrem por mar e por terra, nosso país está ameaçado
das maiores desgraças. O que mais nos deixa estupefatos é ver a emulação dos infiéis e a
indiferença dos verdadeiros crentes. Há, porventura, pelo menos um muçulmano que
responda ao convite e venha quando é chamado?
“Vede entretanto os cristãos; vede como vêm em multidão, como se apressam à
porfia, como eles se apóiam mutuamente, como fazem o sacrifício de suas riquezas, como
se unem, como se resignam às maiores privações! Na sua terra, nenhum rei, nenhum
senhor, nenhuma ilha ou cidade, por menor e mais insignificante que seja, deixa de enviar
seus súditos a esta guerra, e os faz comparecer neste teatro de Bravura...”
Por que não há nenhum cavaleiro da Ordem do Templo que tenha sido canonizado
ou beatificado pela Igreja? Pela simples razão de que seriam demasiados!
Não haveria razão para canonizar ou beatificar um cavaleiro mais do que outro;
todos ofereciam suas vidas! E, na sua maior parte, eles morreram combatendo,
prisioneiros ou feridos. Os muçulmanos ofereciam-lhes a vida salva se renegassem sua
Fé; eles recusavam, portanto eram mártires — pelo menos mártires!
Já foram enumerados 20.000 que morreram nessas condições. Sim, 20.000!
Haveria embarras de choix [dificuldade na escolha] para canonizar os Templários...
Assim era o Templo!
São Cízio, Guerreiro de Carlos Magno, Advogado sutil e Mártir
* Um santo modesto
As datas mais antigas de seu martírio atestam que sob o traje de soldado ele
observava costumes austeros, sendo cheio de gravidade e modéstia.
* Um advogado sutil
Dizia-se que, cumprindo todos os deveres impostos por uma fé sólida, ele havia
convertido inúmeros pagãos à religião cristã. Conta-se também que, nos julgamentos
promovidos por Carlos Magno e aos quais ele assistia, Cízio desenrolava processos com
uma sagacidade maravilhosa, impondo silêncio aos advogados pela aplicação segura das
leis. Ele fazia a cada um a justiça que lhe era devida, com grande espanto dos assistentes.
* Guerreiro valeroso e mártir
———————
Guerreiros no sepulcro: Fernán González, Mio Cid e Fernando I
Ramón Menéndez Pidal, La epopeya castellana a través de la literatura española,
Espasa-Calpe, Madrid, 1959, pp. 45,46.
———————
A Batalha de Ourique
Frei Antônio Brandão, Crônica de D. Afonso Henriques, Livraria Civilização, Porto,
1945, pg. 3/28.
———————
1. A Espada, símbolo da combatividade e da varonilidade inteira
Pe. Luís de Retana, São Fernando e sua época.
A espada era algo de grande e sagrado nessa época da Idade Média em que os
heróis não tinham outra profissão senão a guerra.
Desde o dia em que era armado cavaleiro, não podia ele deixar a espada. Com ela
vivia, com ela junto a si dormia, com ela entre as mãos morria e era sepultado.
A espada era a arma nobre do cavaleiro cristão, e a poesia medieval é infatigável na
descrição das espadas. A palavra “espada”, no idioma nórdico, procede da mesma raiz
que a palavra “chama” ou “incêndio”.
A espada brilha na noite e brilha nos combates à luz do sol. A de Carlos Magno
tinha trinta refrações. A espada do cavaleiro não podia tocar jamais em outra pessoa a não
ser nele. Osculando ou tocando sua cruz ele fazia seus juramentos, e quando a legava a
um herói ou a seus filhos, era o mais precioso presente do mundo.
A espada tinha seu nome com o qual, se fosse gloriosa, deveria passar para a
História.
Segundo nossas “Partidas” [antigas Leis da Espanha medieval] a razão de ser da
espada é ser a arma principal do cavaleiro e ter certa virtude sacramental. A espada
significava e condensava em si as quatro principais virtudes do cavaleiro: cordura,
fortaleza, medida e justiça.
A cordura estava representada no punho da espada que o homem tem cerrado na
mão enquanto ele tiver o poder de alçá-la, de abaixá-la, de ferir ou de deixá-la.
No pomo do cabo da espada está toda a sua fortaleza.
O símbolo da medida está posto no cabo e no ferro.
Enfim, a justiça aparece no ferro da espada, que é reto, agudo e talha igualmente de
ambos os lados.
Por todas essas razões estabeleceram os antigos que os cavaleiros a trouxessem
sempre consigo.
Todo homem nasce soldado, embora nem todo soldado venha a portar armas; mas
os que combatem são privilegiados aos olhos do Deus dos Exércitos, que se compraze em
passar os seus lutadores em revista.
Cada um deles, revestido de suas armas, recebe como depósito a segurança dos
corpos e o repouso dos cidadãos, a vida e a libertação de seus irmãos. Ele se torna a
espada e o escudo daquele que não os possuía e cujo braço é muito fraco para carregá-los,
ou dele não sabe fazer uso.
Deus diz [ao soldado] como a Gedeão, como a Josué e como a todos os servos de
seu povo: “Eis minhas ordens, sê valente! Nada temas que teu coração não alcance. Eu te
vejo, Eu estou contigo, virei em teu socorro e julgarei a tua coragem”.
Eis a ordem de Deus, primeiro princípio dos deveres do soldado e mais firme apóio
do seu valor.
* * *
———————
1. A batalha de Lepanto: o fato histórico
— Ludovico Pastor, Historia de los Papas, Ed. G. Gili, Buenos Aires, 1948, Vol.
XVIII, pp.358,359.
— J.B.Weiss, Historia Universal, Tipografía La Educación, Barcelona, 1929, Vol. IX,
p.537.
— Luís Coloma, S.J., Jeromín, Sopena, Buenos Aires, 1946, pp.139/145.
— William Thomas Walsh, Felipe II, Espasa-Calpe, Madrid, 1976, pp.568/576.
O Papa S. Pio V era favorável a lutar por cima de tudo, e este espírito invencível do
santo ancião do Vaticano foi talvez o fator decisivo. Quando seu Núncio, o bispo
Odescalchi, chegou a Messina para abençoar a esquadra e distribuir uma parte da
Verdadeira Cruz entre as tripulações — de sorte que cada navio teve uma partícula do
Santo Lenho —, trouxe também a D. João d'Áustria a solene certeza de que, se travasse
combate, Deus lhe daria a vitória. Se fossem derrotados, o Papa prometia “ir ele mesmo à
guerra, com seus cabelos brancos, para envergonhar os jovens indolentes”, mas com
coragem tudo daria bom resultado. Não tinham aparecido já várias revelações, inclusive
duas profecias de Santo Isidoro de Sevilha, descrevendo uma batalha ganha por um jovem
muito semelhante a D. João?
Encorajado pelo Santo Padre, D. João adotou um modus operandi raramente
empregado nas escolas navais: castigavam-se as blasfêmias com a morte e, enquanto se
esperava um vento propício, o generalíssimo jejuou durante três dias, fazendo o mesmo
todos os seus oficiais e soldados. Os relatos contemporâneos são concordes ao afirmar
que todos os 80.000 marinheiros e soldados, sem exceção, confessaram-se e receberam a
Sagrada Comunhão.
A partida foi um espetáculo inesquecível: O Núncio do Papa, figura ardorosa,
trajado de vermelho da cabeça aos pés e erguido no cais com a mão levantada para
abençoar cada navio à medida que passavam os cruzados, de joelhos nos tombadilhos. Os
cavaleiros e homens de armas com reluzentes armaduras; os marinheiros com uniformes e
gorros vermelhos; as escuras velas latejando até apanhar a primeira brisa; e na alta proa da
galera almirante, D. João, com sua armadura de ouro, como anjo vingador sob a bandeira
azul dAquela que esmagou a cabeça da serpente.
Assim foram os navios entrando no Mediterrâneo de dois em dois. As seis grandes
galeaças venezianas, verdadeiras fortalezas, cada uma eriçada de 40 canhões, abriam o
caminho no esplendor de safira do amanhecer.
A armada otomana encontrava-se em Lepanto. Pujante, muito superior em número
à cristã e sem nenhuma intenção de fugir do combate, dispunha-se pelo contrário a
provocá-lo.
Dividia-se em três corpos: o centro, comandado pelo grande Almirante Ali-Pachá,
moço arrogante, de mais valor que prudência, com todo o arrojo de sua juventude; a ala
direita às ordens do rei de Negroponto: Mahomet Scirocco, homem maduro e sisudo,
valente e veterano ao mesmo tempo; e a ala esquerda dirigida pelo vice-rei de Argel
Aluch-Ali, antigo renegado calabrês, velho de sessenta e oito anos, prudente, corajoso e
astuto, experiente de quarenta anos de pirataria por aqueles mares.
Estavam já ambas frotas a um lado e outro do cabo Scrofa, como dois inimigos
que, atraídos pelo ódio, se espreitam, se aproximam sem sabê-lo, tomam posição e se
encontram de repente frente a frente, sem suspeitar, ao virarem juntos a mesma esquina.
Ao amanhecer do dia 7 de outubro, quando surgiu o sol radiante sobre o golfo de
Lepanto, o vigia de Andrea Dória, na vanguarda, avistou um esquadrão inimigo a doze
milhas de distância. A bandeira de sinal apareceu no alto do mastro da galera de Dória.
— “Aqui venceremos ou morreremos!” — bradou D. João exultante.
Em seguida mandou seu piloto desembarcar numa das altas ilhotas para observar as
forças inimigas. Abarcava-se dali todo o amplo golfo e nele viu o piloto a frota turca,
quase uma metade maior do que se supunha, empurrada por uma brisa favorável que
embaraçava ao mesmo tempo as manobras dos cristãos. Angustiou-se ele vendo isto e, já
de volta na galera Real, não ousou comunicar a ninguém tão temível notícia, mas
limitou-se a dizer ao ouvido do Generalíssimo:
— “Mostrai vossas garras, senhor, pois a jornada será rude!”
Nem pestanejou D. João ao ouví-lo, e como lhe perguntassem naquele momento
alguns capitães se não convocaria o último conselho de guerra, ele respondeu
serenamente:
— “Já não é tempo de deliberar, mas sim de combater”.
E ordenou que se desfraldasse a bandeira verde, sinal combinado para todos
colocarem-se em ordem de batalha.
O jovem Almirante, com sua armadura dourada, foi num barco rápido, de galera
em galera, levando um crucifixo de ferro que mostrava aos que iam combater:
— “Eia, soldados valorosos — bradava —, tendes a hora que desejastes. Humilhai
a soberba do inimigo, alcançai a glória em peleja tão religiosa, vivendo e morrendo
sempre vencedores, pois ireis ao Céu!”
Dizia-lhes também que não há Céu para os covardes...
A presença de sua guerreira figura juvenil e o som de sua voz fresca produziram
um efeito surpreendente. Um grande brado o acolheu em cada navio e uma longa
aclamação atravessou o mar rutilante quando o estandarte da Liga do Papa com a imagem
de Cristo Crucificado, iluminado pelo sol, se ergueu na Real junto à bandeira azul de
Nossa Senhora de Guadalupe. No mastro dianteiro de sua capitânia colocou D. João um
crucifixo.
Quando os turcos avançaram, formando um imenso crescente, ele se ajoelhou à
proa e em alta voz pediu a Deus sua bênção para as armas cristãs, enquanto sacerdotes e
frades, em toda a esquadra, mostravam os crucifixos aos marinheiros e soldados de
joelhos. O sol estava em seu ponto mais alto. A água cristalina, quase sem ondas, era um
espelho trêmulo onde se refletiam as cores vivas de milhares de estandartes, pendões,
bandeiras e gonfalões, e os fulgores de ouro e prata das armaduras como um maravilhoso
caleidoscópio, entre o mar azul e o céu deslumbrante. Um silêncio solene, como o que se
sente antes da Consagração, durante a Missa, estendeu-se por toda a armada.
Vinha entretanto a frota turca a toda vela, impulsionada por vento favorável,
espantosa, imponente, e via-se já a uma milha da linha de batalha dos cristãos. D. João
não quis esperar mais: persignou-se humildemente e mandou dar o tiro de canhão de
desafio.
Um instante depois respondeu a galera de Ali-Pachá com outra detonação,
aceitando o combate, e desfraldaram na popa a bandeira do profeta guardado em Meca,
imensa e branca, tendo bordados no centro, com letras de ouro, versículos do Alcorão.
Nesse mesmo instante houve um fenômeno, simplíssimo em qualquer outra
ocasião, mas que por fartas razões foi considerado milagre: caiu de repente o vento até
permanecer tudo em calma, e começou logo a soprar favoravelmente para os cristãos e
contrário aos turcos. Parecia como se houvesse ressoado ali aquela voz que disse ao mar:
“Cala-te”, e ao vento: “Sossega-te”.
As galeras cristãs foram empurradas contra o inimigo. Quando os remos turcos
começaram a bater as águas, as seis galeaças venezianas abriram fogo com seus 200
canhões e romperam a linha maometana.
Houve então um movimento espontâneo de retrocesso na armada turca, que a
energia de Ali-Pachá refreou imediatamente: Lançando-se ao timão, fez passar a galera
Sultana entre as galeaças com a rapidez de uma flecha, e seguiu-o toda a sua frota,
desfeita já a linha de formação, mas disposta a unir-se novamente. Começou então o
choque entre ambas armadas.
Atacou Mahomet Scirocco a ala esquerda cristã com imensa raiva e empuxe. Cinco
de seus navios rodearam a galera de Agostinho Barbarigo, capitão dos venezianos, e os
arqueiros mouros lançaram sobre ela uma nuvem de flechas envenenadas. As galeras se
abordaram e começou a luta corpo a corpo, entrando os turcos até o primeiro mastro da
veneziana. Defendiam-se os cristãos como feras, encurralados na popa; o grande
Barbarigo lutou como um leão; tinha a viseira erguida e defendia-se com o escudo das
flechas que cruzavam os ares, mas descobriu-se um momento para dar uma ordem e
entrou-lhe uma pelo olho direito, cravando-se no crânio. Morreu no dia seguinte...
Houve então o gravíssimo risco de que os turcos, apoderados da capitânia de
Veneza, destroçassem toda a ala esquerda e atacassem depois o centro pelo flanco
esquerdo, ganhando assim facilmente a vitória. Mas Marino Contarini, sobrinho de
Barbarigo, afastou o perigo: Abordou a galera de seu tio com toda a sua gente e travou-se
sobre a capitânia a peleja mais furiosa que talvez esta jornada registre. Tudo ali era furor,
ira, carnificina e espanto até que, expulso Mahomet Scirocco da galera veneziana e
cercado por sua vez na própria, sucumbiu por fim às suas feridas agarrado a uma borda;
ali o degolaram e jogaram-no ao mar.
Espalhou-se então o terror entre os turcos da ala direita e, voltando as proas em
direção à terra as poucas galeras livres, ali encalharam salvando-se a nado.
A ala direita dos cristãos teve de sustentar o ataque mais forte dos turcos. Andrea
Dória era temido pelos muçulmanos e ocupava o lugar de mais perigo, mas se havia um
rival digno dele, entre os piratas do Mediterrâneo, era Aluch-Ali, o apóstata calabrês.
Quando a ala esquerda turca tentou ganhar o alto mar, num movimento envolvente, Dória
estendeu sua linha e deixou um espaço aberto entre sua frota e o centro cristão. Aluch-Ali
lançou então suas galeras pela perigosa brecha...
A matança foi espantosa: na capitânia de Malta só ficaram três homens com vida: o
Prior Fra Petro Giustiniani, com cinco flechas cravadas; um cavaleiro espanhol com
ambas as pernas quebradas e outro italiano com um braço decepado por uma machadada.
Na capitânia da Sicília sobraram cinqüenta homens, de quinhentos.
La Fierenza e La San Giovanni, do Papa, e La Piamontesa, de Sabóia, sucumbiram
sem render-se; dez galeras já tinham ido ao fundo, uma ardia e doze outras flutuavam sem
direção nem rumo. Andrea Dória, vermelho de sangue da cabeça aos pés e esmagado pelo
número dos inimigos, lutou de modo magnífico.
Quanto às galeras do centro cristão, estavam elas empenhadas em contenda mortal
contra o centro turco. Com efeito, assim que Ali-Pachá viu as santas bandeiras tremulando
na galera de D. João, lançou-se direto contra ela. Os dois enormes cascos chocaram-se,
proa com proa, ouviu-se um enorme estralo e horríveis gritos, e viu-se, entre o denso
fumo da pólvora, saltarem estilhaços, remos quebrados, ferros, armas, membros humanos,
corpos destroçados que se elevavam no ar e caiam nas águas, tingindo-as de sangue.
A galera de Ali-Pachá era mais alta e pesada, e a tripulavam 500 janízaros
escolhidos; D. João levava a bordo 300 veteranos espanhóis. Enquanto o fogo da artilharia
turca passava entre as cordas da Real, o Generalíssimo, atirando mais baixo, semeava a
morte entre as fileiras dos janízaros. Lutou-se em ambos navios corpo a corpo, de
tombadilho a tombadilho, durante duas horas; ordenou então D. João lançar os ganchos
pela proa e, amarradas já as duas galeras, converteram-se em um só campo de batalha.
Atiraram-se à abordagem os cristãos como leões, destroçando tudo quanto se lhes opunha,
e por duas vezes chegaram até o mastro maior da Sultana. Outras tantas tiveram de
retroceder disputando-se palmo a palmo aquelas frágeis tábuas.
Reforçaram a Sultana sete galeras turcas de reserva e lançou-se Ali, por sua vez, à
abordagem. Sendo a Sultana de mais alto bordo que a Real, caíram os turcos como
catarata que jorra do alto: o impacto foi tão tremendo que os Mestres de Campo Figueroa
e Moncada retrocederam com sua gente até o primeiro mastro. D. João d'Áustria atirou-se
então, de espada na mão, para obrigar o inimigo a recuar, mas à medida que morriam os
janízaros eram substituídos por outros dos navios de reserva. A horda turca, com horríveis
gritos, penetrou duas vezes na Real e outras tantas foi rechaçada. Este foi o momento
crítico da Batalha...
Já não havia formação, nem direita, nem esquerda, nem central; só se via fogo,
fumo e massas compactas de galeras travadas entre si, lançando chamas e morte. Matar,
ferir e queimar era o que se fazia, e caíam na água corpos mortos e vivos, mastros,
cabeças arrancadas, turbantes, espadas, cimitarras e canhões. O estrondo dos mosquetes,
os gritos de cólera e de dor, o entrechoque dos ferros, o troar da artilharia, a queda dos
mastros quebrados e o golpe das águas sangrentas sobre os cascos ressoaram durante a
tarde inteira.
Houve proezas magníficas: O velho Sebastião Veniero, com seus setenta anos,
combateu de espada na mão à testa de seus homens. O jovem príncipe de Parma,
Alexandre Farnésio, entrou sozinho numa galera turca e pôde contá-lo depois.
Em certo momento desprendeu-se com esforço sobre-humano uma galera daquele
caos de morte, e lançou sua proa com a violência de formidável catapulta contra a popa da
Sultana, cravando nela o esporão: era Marco Antônio Colonna que vinha em auxílio de D.
João d'Áustria. Encorajados pelo reforço, atiraram-se os espanhóis com tanta fúria contra
Ali e seus janízaros que os obrigaram a recuar até sua própria galera. Três vezes saltaram
os cristãos à abordagem, sobre o tombadilho vermelho e escorregadio de sangue, cheio de
montes de cadáveres, de troncos horrivelmente talhados, de pernas e braços que ainda
estremeciam.
O momento era crítico e o desenlace ainda duvidoso, quando Ali-Pachá,
defendendo sua galera do último empuxe cristão, caiu derrubado por uma bala espanhola.
Seu corpo foi arrastado até os pés de D. João, e um soldado espanhol, triunfante,
cortou-lhe a cabeça. O príncipe cravou-a na ponta de uma comprida lança e a ergueu para
que todos a vissem. Brados de vitória ecoaram na Real, enquanto os cristãos jogavam ao
mar os aterrados turcos e hasteavam o estandarte de Cristo Crucificado no mastro maior
da Sultana. Não havia um só furo na santa bandeira, sendo que tudo em seu redor estava
crivado de golpes e o mastro que a sustentava via-se eriçado de flechas como um ouriço.
De galera em galera correu um clamor de triunfo, com a notícia de que Ali-Pachá morrera
e os cristãos venciam. O pânico se apoderou dos inimigos, que só pensaram em fugir.
D. João, ferido e sem descansar das fadigas da própria luta, atirou-se então com
suas galeras em auxílio de Andrea Dória, seguido pelo Marquês de Santa Cruz.
Compreendeu Aluch Ali, o astuto renegado, que lhe arrancavam a presa das garras e fugiu
desesperadamente com quarenta galeras para o alto mar que o sol poente iluminava de
vermelho. A esquadra de Dória o perseguiu até que a noite e a tempestade próxima a
obrigaram a voltar.
* * *
Naquele mesmo dia 7 de outubro, durante o fragor dessa imensa batalha, São Pio
V, que não imaginava dar-se tão logo o enfrentamento, trabalhava com seus cardeais.
Subitamente se levanta, abre uma janela e olha para o céu. O que viu então?
Imediatamente exclama:
— “Cessem os assuntos! Não pensemos mais que em dar graças a Deus pela vitória
que Ele acaba de conceder à armada cristã”.
Os espantados cardeais seguem o Papa que se dirige à basílica de S. Pedro. O povo
é logo informado; o prodígio é atribuído à Santíssima Virgem, protetora da esquadra, e
canta-se com júbilo a ladainha, que São Pio V enriquece nesse dia com uma nova
invocação, conservada desde então pela Cristandade agradecida: Auxilium Christianorum!
O augusto Pontífice institui para o dia 7 de outubro a solenidade do Santo Rosário,
celebrada fielmente pela Igreja.
Assim festejava-se em Roma, com públicos regozijos, uma batalha travada a
trezentas léguas de distância; e esta alegria não era vã: os cristãos eram com efeito
vencedores. Após doze horas de combate, os muçulmanos perderam trinta mil homens.
Duzentos navios foram capturados ou afundados pelos católicos, e oitenta outros,
encalhados, entregues às chamas. Os vencedores conquistaram ainda trezentos e setenta
canhões, e vinte e cinco mil escravos cristãos foram libertados.
Maria Santíssima aparecera contra os Turcos como nuvem ameaçadora, carregada
de trovões, e no mesmo instante passara como suave brisa diante dos balcões de São Pio
V, para anunciar-lhe a vitória.
O Islã recebera em Lepanto um golpe do qual não mais se reergueria.
———————
1. A conquista de Jerusalém
Joseph-François Michaud, História das Cruzadas, Editora das Américas, São Paulo,
1956, Vol, II, pp 11/29.
———————
A chegada diante dos muros de Jerusalém, em junho de 1099, quase três anos após
a partida, marca o fim da excepcional peregrinação. A Cidade Santa é conquistada mais
rápido do que se supunha; o ataque, apoiado por máquinas de guerra, é conduzido
vigorosamente. E Godofredo de Bouillon combate na primeira linha. É ele quem,
utilizando magistralmente o arco e a espada, dirige o assalto decisivo no dia 14 de julho.
Massacre, sangue, espanto e vingança; o quadro pintado pelos cronistas é terrível.
Mas após a vitória, “o duque Godofredo saiu descalço da cidade, e dando a volta
às muralhas com toda humildade, entrou pela porta que está defronte ao Monte das
Oliveiras; e foi apresentar-se diante do Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus vivo, derramando lágrimas, recitando orações, cantando louvores a Deus e
dando-Lhe graças por ter sido julgado digno de ver aquilo que tão ardentemente
desejara”.
Esta descrição da piedade de Godofredo não é exagero do cronista. O
comportamento desse cruzado, ao longo de toda a viagem, denota uma piedade sem
desfalecimento e uma vontade inabalável de sacrificar-se.
Em inúmeras ocasiões o duque manifestara sua certeza e seu firme desejo de chegar
a Jerusalém. No cerco de Antioquia, quando o desânimo se abatia sobre os soldados,
Godofredo os exortava a pôr sua esperança no Nome do Senhor, capaz de destruir
milhares de inimigos com um só golpe. Na noite em que alguns cavaleiros hesitavam em
subir pela escada que lhes faria entrar na cidade, ele lhes recorda que haviam renunciado
ao mundo por amor de Jesus Cristo, e os incitava a oferecerem suas vidas a Deus, dizendo
“que é próprio daquele que ama sacrificar sua vida por seus amigos”. Para ele, a Fé do
cruzado tinha de ser cega.
A sua piedade não conhecia desfalecimento; os clérigos de seu exército
queixavam-se pelas orações e santas leituras — excessivamente longas ao ver deles — às
quais ele se entregava após as Missas.
A sua Fé total em Jesus Cristo era acompanhada por uma intolerância igualmente
total em relação aos descridos. Vê-se, nos relatos de cada assalto e de cada emboscada,
quanto a guerra era dura e sem misericórdia; os cruzados incitavam-se uns a outros,
continuamente, à matança de sarracenos.
Godofredo de Bouillon, por seu ardor no combate, sua resistência e sua habilidade,
pode ser considerado um perfeito cavaleiro e um guerreiro sem falhas.
Muitos exemplos de sua força física são repetidos nas crônicas:
Um dia Godofredo defende um peregrino atacado por um urso; combate corpo a
corpo contra a fera e é gravemente ferido.
Em outra ocasião, perto de Antioquia, no fragor de um entrechoque em que ele faz
cair muitas cabeças, “coisa inacreditável! golpeou com a espada um turco revestido de
couraça e cortou-o em duas metades”.
Essas proezas denotam uma força pouco comum, se bem não fossem de todo
extraordinárias nas narrações da época.
Desde o dia de sua morte, Godofredo entrou na legenda, e sua memória foi honrada
com especial respeito.
Sua mãe, a condessa Santa Ida, participou de sua glória, tendo por principal mérito o
ter trazido ao mundo Godofredo, do qual uma visão premonitória lhe anunciara o
excepcional destino.
Para o Ocidente, ele se transformou no modelo dos cruzados após ter sido o primeiro
rei de Jerusalém, mesmo não havendo jamais ostentado o título. O Defensor do Santo
Sepulcro permaneceu como uma figura tutelar aureolada de maravilhoso e de lenda,
transformado no próprio símbolo da impossibilidade sonhada e realizada. O sepulcro de
Godofredo de Bouillon passou a ser um verdadeiro farol para todos os cristãos.
A cada domingo, no meio da noite, a antífona Christus resurgens, ecoando nas
abóbadas novas da basílica do Santo Sepulcro, parecia concentrar ali aquele fervor que
subia da Cristandade inteira e que reunia, numa mesma celebração, o lugar onde o
Senhor sofreu e o homem que o libertou.
———————
Balduíno, o Leproso
Robusto na sua infância, era ele dotado da inteligência aguçada de sua raça
angevina”.
Aqui começa a tragédia:
Um dia em que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém,
descobriu-se que tinha os membros insensíveis. Os outros meninos gritavam quando se
lhes feria: Balduíno, porém, não dizia uma palavra.
Esse fato se repetiu em muitas ocasiões, a tal ponto que o Arcediago Guilherme
alarmou-se. Primeiro pensou que o menino o fazia por proeza, desprezando o queixar-se.
Então perguntou-lhe por que sofria aquelas machucaduras sem nada dizer. O pequeno
respondeu que não o feriam; ele não se ressentia em nada dos arranhões.
Então o mestre examinou seu braço e sua mão, e certificou-se que estavam
adormecidos. Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo...
Toda sua vida não foi senão uma luta contra o mal irredutível, e muito mais ainda
foi testemunha dos poderes de um homem sobre si mesmo, e a encarnação assombrosa
dos seus mais altos deveres.
Balduíno IV foi um rei comparável a São Luís, um santo, um homem, enfim — e é
isto que sobretudo importa à nossa admiração sem reticências — a quem nenhuma
desgraça chegou a destruir o vigor da alma, as convicções, a altivez, as qualidades do
coração e o senso da responsabilidade, dos quais ele hauria o revigoramento e a coragem.
Nenhum dos seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de
que estava investido, e de sua própria finalidade.
Percebendo as rivalidades existentes entre os que o cercavam, compreendeu quão
necessária era sua presença à cabeça dos exércitos cristãos.
Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos ajuntava-se a angústia
moral, e ele não era senão um morto vivo, um morto coroado, cujas pústulas e purulências
se disfarçavam sob o ferro e sob a seda, mas que se mantinha de pé e se lançava à ação,
movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e devoradora chama de
sacrifício!
A batalha de Montgisard
Assim, por toda parte, graças à sua energia sobrehumana, e ainda que daí em diante
ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heróico leproso levava vantagem
sobre o genial muçulmano.
Ele começava, entretanto, a perder a vista, e a não poder mais e servir de seus
membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar seus afazeres do
reinado.
Pode-se bem imaginar o drama interior desse Rei de vinte e dois anos anos, isolado,
corroído por úlceras, semi-paralizado e quase cego, cercado pelas sombras da
desconfiança e dos maus pressentimentos; atormentado ante as insinuações e sugestões
pérfidas dos seus, de um lado, e a alta idéia que tinha de sua missão de Rei, de outro lado.
A lepra o enfraquecia e ele não podia ter esperanças de se curar, mas sempre encontrava
novas forças e resistia da melhor forma.
Como a doença entrava numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela e, sobretudo,
contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.
Saladino, excitado até o cúmulo do furor pelos ataques dos francos, foi sitiar a
fortaleza do Krac de Moab.
Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino
então retirou-se.
A 16 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus. Até os infiéis lhe
tributaram homenagens.
4. Covadonga
O mouro Tárik entregou ao conde Julião 12.000 soldados, os quais levou à Espanha
em navios de mercadores, a fim de fazer passar despercebida sua chegada. E reuniram-se
num monte que, por causa daquele mouro, ainda hoje se chama Gebel Taric (Gibraltar):
“Monte de Tárik”.
Quando isto chegou ao conhecimento do rei Rodrigo, enviou contra eles seu
sobrinho, chamado Iñigo, o qual, tantas vezes quantas lhes apresentou batalha, outras
tantas foi vencido e, por fim, morto. Daí, acrescida sua coragem, aumentaram os árabes
seu arrojo, sendo guiados pelo conde Julião a través da Bética e da Lusitânia [Andaluzia e
Portugal].
O exército dos godos, surpreendido nos primeiros entrechoques e desacostumado
do uso das armas, pelo longo período de paz e de boa vida, desconhecia as antigas proezas
e, transformados em indolentes e fracos, resultaram incapazes de combater. Virando
rédeas ante os obstáculos, chegaram antes à morte que ao recurso da fuga.
Por aquelas ações, a lealdade de Julião foi celebrada com admiração entre os
árabes.
Então o rei Rodrigo, conhecendo a derrota dos seus e o saque da província, após
reunir todos os godos saiu ao encontro dos árabes com coroa de ouro e traje ornado do
mesmo metal, e conduzido num leito de marfim puxado por duas mulas, tal como exigia o
protocolo dos reis godos. E havendo chegado ao rio chamado Guadalete, onde acampara o
exército africano, lutou-se sem interrupção durante oito dias, de domingo a domingo, mas
diante do insistente empuxe do conde Julião e dos godos que estavam com ele, foram
dispersadas as linhas cristãs.
De seu lado, os dois filhos de Witiza [o rei anterior, assassinado por D. Rodrigo],
mancomunados com o conde Julião, estiveram ao lado do rei nesta batalha, um pela
direita e outro pela esquerda, comandando as alas cristãs. E diz-se que, na noite anterior,
conversaram com Tárik a fim de que, retirando-se eles da luta, o exército dos godos fosse
vencido com facilidade, e, uma vez morto Rodrigo, o trono vacante correspondesse a eles.
Pois não lhes passava pela mente que os árabes pudessem ou quisessem ficar em sua
pátria, e por isso, abandonadas as armas, escaparam logo que se travou a contenda.
Diz-se que o exército cristão contava com mais de 100.000 soldados, mas como a
graça de Deus havia afastado dos hispanos sua mão protetora, aquele povo triunfador,
aquele povo nobre foi humilhado pela vitória dos árabes.
Ao iniciar o combate, o rei Rodrigo comportava-se com valentia, mas abatida a
inábil força dos godos, aqueles que tinham por costume envaidecer-se com o sangue de
muitos viram-se reduzidos a que os inimigos se saciassem com o seu.
Julião animava os árabes para que aumentassem seu ardor na luta. O rei Rodrigo
batia em retirada e depois contra-atacava, mas, pela longa duração do combate, o povo
dos godos pereceu.
Desconhece-se o que aconteceu ao rei; no entanto, a coroa, as insígnias reais, o
traje ornado de pedras preciosas e o cavalo, foram encontrados num lugar lamacento junto
ao rio, sem vestígio de seu corpo.
Ó dor! Aqui termina a glória da grandeza goda, e aquela que submeteu tantos
reinos em tantas guerras, abateu numa só as bandeiras de sua glória. Aqueles que
assolaram com diversas matanças a Ásia, a Grécia, a Macedônia e o Ilírico; diante de
quem dobrou os joelhos Roma, senhora das terras; ante os quais o famoso Átila aceitou a
derrota na batalha dos Campos Catalaunicos; ante os quais os fugidios vândalos
abandonaram as Gálias; cujas batalhas ensurdeceram sempre o mundo com seus
imponentes trovões; esse povo, empunhando contra si mesmo sua própria espada, foi
aniquilado na recente revolta de Maomé, numa só batalha, em derrota sem precedentes,
para que todos saibam que o rico não deve vangloriar-se na sua riqueza, nem o poderoso
no seu poder, nem o forte na sua força, nem o sábio na sua sabedoria. Pois quem se gloria,
glorie-se no Senhor, porque é Ele quem fere e quem sara, Ele quem golpeia, Ele quem
cura.
Portanto, encerrada a batalha de forma lamentável, e como apenas houve alguém
que a ela não tivesse comparecido, mortos todos, ficou a terra vazia de gente, coberta de
sangue, banhada em pranto, aturdida de lamentos, aberta aos de fora, estranha aos seus,
despojada de habitantes, privada de seus filhos, confundida pelos bárbaros, apodrecida
pelo sangue, arruinada pelas feridas, desassistida de defesa e desprovista de consolo.
Os invasores foram mais rápidos que os leopardos e mais crueis que o lobo da
noite. Ante o povo dos africanos desabou o poderio dos godos num instante, e apenas há
quem chore o que destruiu o golpe da morte, ou quem grite aos caminhantes: “Vede se há
uma dor semelhante à minha dor!” Sua voz parece vinda de além-túmulo e sua palavra
ressoa como do fundo da terra; apenas se escutam sombrios gemidos e soluços.
Seus lares estão desabitados, sua honra transtornada, seus filhos morreram à espada
e os melhores estão prisioneiros. Seus chefes caíram na desonra e seus guerreiros no
aniquilamento. Que calamidades não se abateram sobre a Espanha? Os meninos são
massacrados, à morte os adolescentes são lançados, com espadas os jovens são
aniquilados, no combate os homens são destroçados, na derrota os anciãos são
exterminados.
A espada respeita os inimigos e se assanha com os próprios; não havia quem
freasse a luta de uns godos contra outros.
Quem dará uma fonte de lágrimas aos meus olhos? Emudeceu a santidade dos
sacerdotes, terminou a abundância dos religiosos, desapareceu a dedicação dos prelados e
perdeu-se o magistério da Fé. Os templos são destruídos, as igrejas derrubadas, e onde se
louvava com alegria, desafia-se com blasfêmias. A cruz é lançada fora dos lugares santos;
não há quem se preocupe em salvar-se. As festividades desapareceram por completo, e a
música da Igreja soou a blasfêmia.
Não houve na Espanha uma sé catedralícia que não fosse incendiada, arrasada ou
conquistada.
Então Oppa, bispo de Sevilha, aconselhava a todos que continuassem sua vida
submetidos aos árabes, pagando-lhes tributo, e se, por acaso, o Senhor quisesse socorrer a
pátria, eles ajudariam aqueles que viessem em seu auxílio. Desta forma, enganados por
essas palavras, entregaram os baluartes e as fortificações das cidades.
E o conde Julião aconselhou a Tárik que dividisse as forças de seu exército para
assolar a Espanha por diversos lugares, e cedeu-lhe alguns dos seus para servirem de
guias aos árabes.
Tárik povoou então as cidades de Córdoba e de Toledo com os árabes que levava e
com os judeus que ali encontrou. Depois chegou a Carmona e, advertido de que era
impossível toma-lê de assalto, enviou adiante o conde Julião com alguns cristãos,
fingindo-se vencidos que fugiam do combate. Acolhidos assim pela cidade,
entregaram-na aos árabes em troco do favor da hospitalidade.
E após tomar Sevilha, povoou-a Tárik com judeus e árabes.
Maldita seja a obcecação da ímpia loucura de Julião e a crueldade de sua raiva.
Maníaco por sua cegueira, impulsionado por sua raiva, lançado por sua loucura, esquecido
da lealdade, descuidado da religião, desprezador da Divindade, cruel contra si mesmo,
assassino de seu senhor, inimigo dos seus, aniquilador de sua pátria e culpado contra
todos. Que sua lembrança seja amargura em todas as bocas e que seu nome apodreça para
sempre.
Mas enquanto destroçavam a Espanha com tantos ataques, Deus onipotente, não
esquecendo, na sua ira, a sua misericórdia, quis preservar sob seus olhos Pelayo, como
uma pequena brasa.
D. Pelayo
O Duque de Cantábria, Pelayo, fora o único em cuja alma não morrera inteiramente
a esperança. Errante pelos cerros quase inacessíveis que se elevam no extremo oriental da
Galícia e que, passando ao norte da Cartaginense, vão encontrar-se no vulto gigante dos
Pirineus, o mancebo não dobrara a cerviz ao fado cruel que pesava sobre seus irmãos.
Poucos o haviam seguido naquela vida quase selvagem: mas esses poucos eram homens a
cujos olhos as afrontas da Cruz derribada do cimo das catedrais seria espetáculo incrível e
insuportável.
Uma caverna servia de paço ao jovem rei das montanhas e de templo ao
Crucificado. Os domínios de Pelayo eram as serranias e os vales profundos onde,
porventura, até então morava o javali indomável; a leve corça abasteciam a grosseira
mesa desses godos a quem a desgraça e a vida dura das solidões fizera mais feros, mais
indomáveis e mais ligeiros do que eles.
Ás vezes, Pelayo e os seus soldados desciam das montanhas para largas correrias,
semelhantes à tempestade noturna, e, como a tempestade, passavam pelas tendas dos
árabes ou pelas aldeias, despovoadas de cristãos, onde os infiéis começavam a fazer
assento. Alta noite ouvia-se aí um gemer de moribundos, via-se o brilhar do incêndio. Era
o vulcão do deserto que rugia por lá. Ao amanhecer tudo estava tranqüilo; porque, bem
como a procela, Pelayo era repentino e destruidor, e só escrevia na terra com os caracteres
sanguinolentos de ruínas e mortes, a notícia da sua quase invisível passagem.
Covadonga
Durante muito tempo, quando as enchentes do rio descarnavam o sopé das colinas,
descobriam-se ossos e armaduras de soldados sarracenos. No meio da veiga de Cangas,
uma capela com a invocação da Santa Cruz mostra ainda hoje o lugar em que Pelayo
atacou, já em campo raso, seus dizimados inimigos.
Em poucas ocasiões foi mais manifesta para os homens a proteção do céu. Por isso,
não é de estranhar que, numa época de tanta fé, tudo fosse atribuído ao milagre e à
mediação da Virgem Maria, cuja imagem Pelayo levara à gruta consigo. As narrações
árabes referem também o sucesso com assombro, não ocultam que foi terrível a matança,
e fazem justiça ao valor e à audácia de D. Pelayo.
O imenso poder daqueles godos vira-se reduzido a um punhado de montanheses,
refugiados dentro de uma gruta, num canto desta Península. Mas daquela gruta saiu um
poder novo, que devia lutar contra outro povo gigante, e seria o fundador de um reino que
haveria de dominar dois mundos.
Então o governador dos árabes, irritado pela derrota, suspeitou que se devesse a
uma maquinação dos filhos de Witiza e do conde Julião, e os livrou, ao mesmo tempo, de
seus tratados, de suas cabeças e de suas vidas.
———————
5. O Cid Campeador
Anônimo, Poema del Cid; Espasa-Calpe: Madrid, 1970, pg. 63-71. (Trechos
selecionados)
[Dom Rodrigo Díaz de Vivar, o Cid Campeador, após ter sido injustamente expulso
de Castela, encontra-se cercado numa fortaleza com seus guerreiros. Os mouros, muito
superiores em número, tentam vencê-los pela fome e o Cid reúne seus cavaleiros em
conselho.
* * *
———————
Vitória na terra, traição e holocausto — Vitória no céu e morte dos traidores
A campanha do Loire
Quando a Donzela anunciou que “já era tempo de o rei se pôr a caminho, para ser
coroado em Reims”, Carlos e todo o seu conselho protestaram contra a impossibilidade
do empreendimento: “Os inimigos do rei são por demais fortes! O rei não tem dinheiro
para pagar o exército!”
Mas ela respondia: “Eu vos afirmo que levarei o gentil rei a Reims, e lá o vereis
coroado!”
Noutro dia, bateu à porta do monarca e, abraçada a seus pés, implorou-lhe:
— “Nobre Delfim, não vos preocupeis com tantos e tão longos conselhos; ide logo
a Reims para cingir vossa coroa! Pois eu não durarei mais que um ano, e deveis
utilizar-me bem”.
O rei prometeu, afinal, marchar sobre Reims, porém, só quando tivesse reunido um
novo exército. Joana suplicou-lhe que, enquanto esperavam, concedesse alguns homens
de guerra para limpar as margens do Loire de tropas inglesas.
O duque de Alençon recebeu, então, o comando desse corpo do exército, com
ordens de “agir sempre sob o conselho da Donzela”, e entrou em campanha com mil e
duzentas lanças.
O conde de Suffolk defendia Jargeau com setecentos homens de elite, e, à chegada
dos franceses, fez uma súbita e violenta carga. Houve um momento de hesitação e
desordem; a infantaria começava a recuar, mas a Donzela ergueu seu estandarte e
atirou-se no mais forte da melée. Os franceses recuperaram então sua audácia e o inimigo
foi empurrado para dentro de Jargeau.
No dia seguinte a artilharia francesa fulminou a cidade. Foi Joana quem indicou a
posição das baterias com um extraordinário golpe de vista. Às nove horas da manhã,
embora fosse domingo, ela fez tocar as trombetas, bradando ao Duque de Alençon:
“Vamos, gentil duque, ao ataque!” O Duque considerava ser ainda cedo, mas a Donzela
exclamou: “É a hora em que compraz a Deus romper o fogo. Não duvideis; é necessário
obrar quando Deus quer. Trabalhai e Deus trabalhará. Será que tendes medo, gentil
duque?”
Ao terceiro dia, Suffolk pediu a rendição com quinze dias de trégua e com direito a
ser socorrido, mas as condições foram recusadas e os franceses decidiram lançar-se ao
assalto.
Após quatro horas de terrível combate, como a resistência dos ingleses não cedia, a
própria Joana subiu por uma escada de mão, empunhando seu estandarte, no lugar onde a
defesa dos ingleses era mais enérgica. Porém, um tiro acertou o estandarte e uma grande
pedra atingiu seu elmo. Joana rolou até o fosso da muralha, mas reergueu-se com presteza
bradando à sua gente:
— “Avante! Nosso Senhor condenou os ingleses, e serão todos nossos! Ânimo!”
Os franceses, arrebatados por sua voz, atiraram-se então com furor, derrubando
todos os obstáculos: a vila e a ponte fortificada foram tomadas de viva força, e quinhentos
inimigos foram passados a fio de espada.
Poucos dias depois, foi anunciada a proximidade de um corpo do exército inglês de
seis mil combatentes. A alegria brilhou no rosto de Joana, mas vários capitães hesitaram:
aqueles mesmos homens que haviam conquistado as formidáveis posições do inimigo não
se atreviam a enfrentá-lo em campo raso. A superioridade dos ingleses em batalha campal
havia sido tantas vezes confirmada!...
— Combateremos, Joana? — perguntou o duque de Alençon.
— Tendes boas esporas? — respondeu ela.
— O quê? Para fugir?
— Não, para perseguir! Pois os ingleses fugirão, e precisareis das esporas para
correr trás eles. Em nome de Deus, cavalgai com coragem! Ainda que eles se
pendurassem nas nuvens, nós os alcançaremos. Não teremos quase nenhuma perda. O
meu conselho me disse que eles serão todos nossos.
Os capitães ingleses, entretanto, discutiam sobre se convinha ou não aceitar o
combate. Falstoff, objetando que as tropas estavam aterradas, aconselhava a retirada para
as praças fortes das cercanias, “até que os soldados estivessem mais tranqüilizados”. A
discussão ainda durava quando avistaram uma coluna de cavalaria francesa
aproximando-se a trote rápido.
Antes que os ingleses tivessem tempo de preparar-se para a defesa, mil e
quinhentos cavaleiros caíram sobre eles como relâmpagos.
A sorte da jornada decidiu-se num instante. Os ingleses, quebrados no primeiro
choque, viraram rédeas e fugiram através dos campos, seguidos de perto pelos franceses.
Dois mil ingleses foram mortos e duzentos caíram prisioneiros. Os franceses, conforme a
previsão de Joana, quase não tiveram baixas. Tal foi a vitória de Patay.
A traição e a prisão
Joana sucumbiu pela traição como havia temido, e o principal traidor foi o próprio
rei da França...
“A Paris! A Paris!”, exclamou a Donzela após a sagração do monarca. E os 20.000
homens de armas que se encontravam em Reims ecoaram este brado. Mas Carlos VII
queria negociar: assinou uma trégua com o adversário, desprezando o braço que Deus lhe
estendia na pessoa da Donzela.
Joana, profundamente contristada, declarou aos habitantes de Reims que não se
admirassem se ela não tomava Paris “tão brevemente” como havia esperado, e
acrescentava: “Não sei se eu manterei estas tréguas, mas se as mantenho será
unicamente para salvar a honra do Rei.”
E assim, foi Joana obrigada a permanecer inativa durante longo tempo na corte do
monarca.
Nove meses depois, abandonou ela definitivamente ao Rei, sem sequer
despedir-se, e nunca mais voltaram a encontrar-se. Seguida apenas por um punhado de
valentes ligados a ela até a morte, partiu com a alma dilacerada mas decidida a continuar
a luta ainda que sozinha.
O Duque da Borgonha, aliado dos ingleses, prosseguia a guerra, e seu exército
acampou diante de Compiègne. Joana, para salvar esta cidade francesa, penetrou nela
com a pequena tropa que a seguia.
Numa manhã, disse às pessoas que a rodeavam: “Meus amigos, estou vendida e
traída, e logo haverei de morrer. Orai por mim, porque em breve nada mais poderei
fazer pelo Rei e pelo reino de França.”
No dia 24 de maio de 1430, às cinco da tarde, Joana saiu da cidade à testa de
quinhentos homens de elite, para atacar o inimigo. Mas depois de um terrível combate, as
tropas francesas, imaginando-se perdidas, debandaram-se em direção da cidade. No
entanto, os mais bravos, os mais devotados companheiros da Donzela, resistiam em torno
dela. “Retirai-vos à cidade, — bradaram eles — ou vós e nós estamos perdidos”. Mas
Joana respondeu: “Calai-vos! Será vossa culpa se eles não são hoje derrotados! Não
penseis senão em golpear!”
Apesar destas palavras, seguraram as rédeas de seu cavalo e arrastaram-na em
direção à ponte levadiça. Porém, a ponte havia sido levantada e a retirada estava
cortada... Todos os inimigos lançaram-se contra ela, e o estandarte sagrado, que havia
sido a salvação da França, o estandarte de Orleans, de Patay e de Reims agitou-se em
vão, pedindo reforços.
O santo estandarte rolou e os últimos defensores da Donzela foram massacrados ou
separados dela pela imensa multidão dos atacantes.
“Rendei-vos!” — gritavam-lhe todos, mas Joana continuava a defender-se
heroicamente. Seis cavaleiros seguraram seu cavalo e um arqueiro puxou-a violentamente
pela capa. Joana caiu do cavalo...
O anúncio das vozes estava cumprido; o período da luta terminava e iniciava-se o
longo e terrível martírio da Virgem da Lorena.
O processo
—————
A morte de Roland
O conde Roland, com pena e com esforço, com grande dor toca seu olifante. De
seus lábios jorra o sangue claro, na sua fronte as têmporas se rompem; o som do olifante é
potente, e seu eco se estende a trinta léguas.
Ouviu-o o rei Carlos no alto das montanhas, e disse:
— “Eis que ouço o olifante de Roland; não soaria se não estivesse em pleno
combate”.
Responde Ganelon:
—"Batalha não há! Vós estais velho, florido e encanecido, e com tais palavras
pareceis um menino. Bem conheceis o orgulho de Roland! Por causa de uma lebre, ele é
capaz de tocar o olifante durante um dia inteiro; certamente brinca ele com seus pares. E
quem, sob o céu, ousaria apresentar-lhe batalha? Cavalgai pois! Por que vos detendes?
Muitas terras deveis ainda percorrer.
O conde Roland tem os lábios ensangüentados, e na sua fronte romperam-se as
têmporas. Novamente toca o olifante, com angústia e com dor.
Carlos o escuta, e seus francos também. Então diz o rei:
— “Esse corno tem grande fôlego”.
Responde o duque Naimes:
— “Um barão está em terrível angustia. Digo-vos com certeza: trava-se batalha!
Aquele que vos aconselha é um traidor. Armai-vos, lançai vosso brado de guerra e
socorrei vossa mesnada! Pois aquilo que escutais é o lamento de Roland”.
Altos são os montes, tenebrosos e grandes; profundos são os vales e rápidas as
torrentes!
Soam as trombetas na vanguarda e na retaguarda, e todos respondem ao apelo do
olifante. O Imperador cavalga com imenso furor, e os francos estão cheios de cólera e de
dor; não há um que não chore e se lamente. Eles pedem a Deus que proteja Roland até que
eles cheguem ao campo de batalha. Junto a ele, desferirão fortes golpes.
Mas de que serve tudo isso? De nada! Tardaram de mais, e não podem chegar a
tempo.
O rei faz prender o conde Ganelon, e entrega-o aos homens de sua cozinha, cujo
chefe se chama Begon, dizendo:
— “Guardai-o como felão! Ele traiu minha mesnada”.
Begon o recebe, e põe junto dele cem moços da cozinha. Arrancam-lhe os bigodes
e a barba; cada um lhe dá quatro socos, e golpeiam-no duramente com troncos e paus.
Põem-lhe uma corrente ao pescoço, como fariam a um urso, e colocam-no
ignominiosamente sobre um cavalo de carga. Assim o guardam até o momento de
devolvê-lo a Carlos.
Morte de Olivier
Com seu olhar, Roland percorre montes e colinas. Tantos francos ele vê jazendo
mortos, que chora como nobre cavaleiro:
— “Senhores barões, que Deus vos faça mercê! Que Ele vos acolha no Paraíso!
Que ele vos coloque entre suas santas flores! Jamais vi vassalos melhores do que vós! Ó
terra de França, país tão doce! Terrível calamidade vos sepulta na tristeza! Barões francos,
vejo-vos morrer por mim; não posso proteger-vos! Olivier, meu irmão, morrerei de dor se
alguém não me matar. Senhor companheiro, voltemos e ataquemos!”
O conde Roland retorna ao campo de batalha; leva Durendal, e golpeia como
valente. Corta em dois o sarraceno Faldron e vinte e quatro dos mais famosos pagãos.
Jamais homem algum teve tanto ardor na vingança!
Como os cervos diante do cão, assim fogem os pagãos diante de Roland. Os
francos atacam novamente, intrépidos como leões, mas há grande mortandade de cristãos.
Eis que o rei Marsil golpeia Bevon, senhor de Dijon, e abate-o morto; depois mata
Ivoire e Ivon, e com eles Girard de Rousillon. O conde Roland aproxima-se dele, e diz:
— “Que o Senhor Deus te amaldiçoe, pois mataste meus companheiros! Tu o
pagarás antes que nos separemos, e conhecerás hoje o nome de minha espada”.
Como nobre barão vai golpeá-lo, e arranca-lhe a mão direita. Depois corta a cabeça
de seu filho Jurfaleu.
Entretanto, o sarraceno Marganiz golpeia Olivier pelas costas, quebrando as malhas
de sua loriga branca, e a ponta da lança sai pelo meio de seu peito.
— “Jamais Carlos poderá alegrar-se! — diz o sarraceno — pois com a tua morte
vinguei a de todos os nossos!”
Olivier sente-se mortalmente ferido, mas ergue sua espada Hauteclaire, cujo aço é
brunido, e golpeia Marganiz em seu elmo pontudo e dourado. Florões e pedrarias caem
por terra; Olivier fende-lhe a cabeça até os dentes, sacode a lâmina dentro da ferida, e
mata-o. Depois diz:
— “Maldito sejas, pagão! Não irás gabar-te em teu reino!”
Olivier jamais se cansará de vingar-se: no mais compacto da multidão ele se atira,
talhando lanças e escudos, pés e mãos, selas e troncos humanos. Quem o visse
despedaçando os pagãos, jogando cadáver sobre cadáver, saberia o que é um bom vassalo.
“Montjoie!”, brada ele com voz alta e clara, e clama por Roland, seu amigo e seu
par:
— “Senhor companheiro, vinde a mim! Com grande dor havemos de nos separar”.
Olivier está ferido de morte, e seus olhos se turvam. Nem de perto nem de longe
consegue ele distinguir um homem. Quando se encontra em face de seu fiel companheiro,
desfere-lhe um golpe tão violento que fende seu elmo até o nasal. Ao receber a
espadagada, Roland pergunta-lhe doce e suavemente:
— “Senhor companheiro, sou eu, Roland, que tanto vos ama!”
Olivier diz:
— “Agora vos escuto, mas não vos vejo. Que o Senhor Deus vos veja! Eu vos
golpeei? Perdoai-me!”
Roland responde:
— “Não me fizestes mal. Perdôo-vos aqui diante de Deus”.
Com estas palavras, inclinam-se um diante do outro, e separam-se para sempre.
Olivier sente a morte próxima. Os olhos giram em sua cabeça, perde inteiramente a
vista e o ouvido; deixa seu cavalo, e estende-se por terra. Em voz alta e firme clama suas
culpas; eleva ao Céu suas mãos postas, e pede a Deus que lhe abra o Paraíso, que abençoe
Carlos e a doce França, e sobretudo Roland seu companheiro.
Falha-lhe o coração, seu elmo rola, todo o seu corpo cai por terra. O conde está
morto.
Vingança de Roland
O valente Roland chora e se aflige. Jamais vereis na Terra um homem tão triste.
Roland está irado, e atira-se no mais forte da melée. Abate vinte mouros da
Espanha, mas o inimigo volta ao assalto por todos os lados. O conde combate
nobremente, mas sente terríveis dores na cabeça, pois suas têmporas se romperam quando
soprou o corno. Entretanto, ele quer saber se Carlos voltará: toma o olifante, e sopra-o
debilmente.
O Imperador deteve-se e escutou.
— “Senhores — diz ele —, neste dia, meu sobrinho Roland nos deixa. Pelo som do
corno compreendo que ele já não viverá. Quem quiser estar lá, apresse seu cavalo! Tocai
todas as trombetas do exército!”
Sessenta mil clarins soam tão alto, que os montes ecoam e os vales respondem. Os
pagãos escutam e compreendem. Dizem uns aos outros:
— “Carlos já vem sobre nós!”
Lamentam-se os sarracenos:
— “Destinados fomos para a desgraça! Que dia nefasto para nós! Perdemos nossos
melhores guerreiros, e eis que volta Carlos o valente! Já se ouve o claro som das
trombetas dos francos! Imenso é o clamor de seu brado Montjoie! O conde Roland é tão
intrépido que nenhum mortal poderá vencê-lo jamais. Atiremos flechas contra ele, e
fujamos daqui!”
Quatrocentos deles se reúnem, e assaltam duramente Roland. O conde, ao vê-los
chegar, ergue-se magnífico e forte, corajoso e ardente. Não cederá enquanto estiver vivo!
Lançam-lhe dardos e flechas, lanças e azagaias. Atravessam e quebram seu escudo,
rasgam e destroçam sua loriga, mas não conseguem atingir seu corpo. Trinta golpes ferem
o cavalo Veillantif, abatendo-o por terra. Os pagãos fogem e abandonam o campo de
batalha.
O conde não pode persegui-los, pois está desmontado.
Roland percorre o campo, e encontra seu companheiro Olivier. Sobre um escudo
ele o coloca, e redobra seus prantos:
— “Nobre companheiro Olivier! Para quebrar lanças e atravessar escudos, para
vencer e esmagar os orgulhosos, para ajudar e aconselhar os valentes, e para perseguir os
maus, não existiu na Terra melhor cavaleiro que vós”.
Morte de Roland
Roland morreu. Deus recebe sua alma nos Céus. E a Roncesvales chega Carlos o
Imperador.
Não há caminho, nem sendeiro, nem canto de terra vazio. Impossível é andar dois
passos sem encontrar um sarraceno ou um franco jazendo.
Carlos exclama:
— “Onde estais, nobre sobrinho? Onde está o conde Olivier? Onde estão Gérin e
Gérier? Onde está Oton, e o conde Bérenguer? Ivon e Ivoire, que eu tanto amava? O que
sucedeu ao gascão Engelier? E o valente Anséis? Onde está Girard de Rousillon? Os doze
pares que aqui deixei?”
Mas ninguém responde.
—"Ó Deus — diz o rei —, tenho grande desolação por não haver estado aqui desde
o início da batalha!”
E puxa sua barba como um homem irritado.
Os cavaleiros francos choram, lamentando a morte de Roland.
O duque Naimes agiu como valente; foi o primeiro a dizer ao Imperador:
— “Olhai a poeira dos caminhos, à distância de duas léguas. Cobertos estão pela
canalha sarracena. Cavalgai, pois! Vingai a vossa dor!”
— “Ó Deus! — diz Carlos — Devolvei-me o meu direito e a minha honra! Da doce
França roubaram-me a flor!”
O Imperador faz tocar as trombetas, e cavalga com seu grande exército. Todos
juntos vão perseguir os sarracenos da Espanha.
Quando o rei vê a tarde declinar, desce de seu cavalo, numa pradaria, e prosterna-se
sobre a erva verde. Pede a Nosso Senhor que detenha o percurso do sol, que prolongue o
dia e faça tardar a noite.
Então um Anjo, que tinha o costume de falar-lhe, deu-lhe esta ordem:
— “Cavalga, ó Carlos, pois a luz não te faltará. Perdeste a flor da França, Deus o
sabe, mas podes vingar-te da canalha criminosa!”
Ao ouvir estas palavras, o Imperador monta a cavalo.
Deus fez uma imensa maravilha em favor de Carlos Magno: eis que o sol
interrompe seu percurso.
Os pagãos fogem, mas os francos perseguem-nos com firmeza e alcançam-nos no
Vale Tenebroso. Ali os atacam e vão empurrando-os em direção a Saragossa. Golpeiam e
massacram, cortam-lhes os caminhos e as estradas largas. Ei-los diante das águas do rio
Sebro; são profundas, e a correnteza é magnificamente violenta. Não há barcas nem
navios.
Os pagãos invocam seus deuses e pulam nas águas, mas não recebem socorro
algum!
Aqueles que estão mais armados vão logo ao fundo, e são numerosos! Os outros
flutuam na correnteza; os menos infelizes beberam tanta água que se afogam, com imensa
angústia.
O rei Carlos, ao ver que todos os sarracenos foram mortos e afogados, desce do
cavalo, prosterna-se em terra e dá graças a Deus. Quando se reergue, o sol já se escondeu.
Depois de cumprir sua vingança e fazer justiça, o Imperador repousa na pradaria, e
põe a lança junto à sua cabeceira. Não quer desarmar-se essa noite, e dorme revestido de
sua grande loriga, de seu elmo ornado com ouro e pedrarias, e cingido de sua espada
Joyeuse, que não tem semelhante, e que muda de reflexos trinta vezes por dia.
Pela graça de Deus, Carlos possui o ferro da lança com a qual Nosso Senhor foi
transpassado na Cruz, e fê-lo encastoar no pomo dourado de sua espada. Ela foi chamada
Joyeuse, por causa desta honra e desta graça. Seus barões não o esquecem, e deste nome
tiraram seu brado de guerra: Montjoie!
E por isso nenhum povo pode resistir-lhes.
* * * * *
A batalha das Navas de Tolosa
Em Maio de 1211, o emir dos mouros almóades, Alnasir Mohamed ben Yacub,
cruzou o estreito de Gibraltar à testa de 600.000 homens de infantaria e 90.000 de
cavalaria. Estabelecendo-se em Sevilha, ameaçava ele conquistar toda a Espanha.
Diante daquela irrupção, aliaram-se os reis de Castela, Aragão e Navarra, pedindo
também auxílio aos de Leão e Portugal, a outros reis cristãos e ao Papa. O arcebispo D.
Rodrigo dirigiu-se à França e à Alemanha, e o bispo de Segóvia foi enviado como
embaixador junto ao Pontífice.
Este, que era Inocêncio III, fez pregar uma Cruzada em favor da Espanha, ordenou
um jejum de três dias e celebrou soleníssimas e imponentes orações. Tudo indicava que
iria se travar uma batalha decisiva.
O nobre rei Alfonso VIII de Castela, uma vez convocadas as gentes, preparadas as
armas e, sobretudo, prontos os corações para o combate, organizou a concentração das
tropas em Toledo. Enquanto isso, Rodrigo, arcebispo desta cidade, e os outros
embaixadores, retornaram dos diversos lugares onde haviam sido enviados.
Começou então a cidade régia a encher-se de gente, abastecer-se do necessário,
assinalar-se pelas armas, diferenciar-se pelas línguas e distinguir-se pelos trajes, pois o
ardor da batalha fazia confluir nela uma diversidade de povos de quase todos os cantos da
Europa. E pela graça de Deus todo-poderoso, foi tudo levado a cabo de tal maneira, que
não surgiu nenhuma querela ou desordem que pudesse malograr o empreendimento da
batalha, ainda que o inimigo do gênero humano o tentasse mais de uma vez.
E aumentava dia após dia o número daqueles que ostentavam em seus peitos o
sinal do Senhor.
Assim, oito dias após a festa de Pentecostes, o rei Pedro de Aragão, fiel amigo do
nobre rei Alfonso, chegou a Toledo, onde foi recebido em procissão pelo arcebispo e por
todo o clero; e estabelecendo seu real nos jardins do rei, aguardava ali a chegada dos seus.
Começaram a chegar também nobres da zona das Gálias, o arcebispo de Bordeaux,
o bispo de Nantes e muitos barões dessa região e da Itália. Vieram também simples
cavaleiros e, sobretudo, um número incalculável de gente de infantaria.
Veio também o venerável arcebispo Arnaud-Amaury, o qual, havendo
desempenhado por algum tempo o priorato de Císter, governava então a igreja de
Narbonne. Este, impulsionado pouco tempo antes por seu zelo pela Fé católica, contra
aqueles que ousaram blasfemar com boca sacrílega contra o Nome do Senhor e da Igreja,
em Narbonne e nas províncias limítrofes, animou os corações dos fiéis para que se
armassem com a insígnia da Cruz contra as artimanhas dos hereges.
E pela graça de Deus sucedeu que, onde a pregação foi desprezada e não deu fruto,
uma vez ceifada a heresia com a foice da Cruz, a Fé católica cresceu com felicidade dia
após dia; e tendo sido arrasadas as cidades de Beziers e Carcassone, o sangue dos
blasfemadores foi espremido pelo fogo aniquilador e a espada vingadora, no ano de 1208.
Assim, este arcebispo fez sua entrada em Toledo, acompanhado de uma multidão
da Gália, provida de instrumentos de guerra, estandartes e armas, e ali foi recebido como
merecia, pelo nobre rei e pelo arcebispo dessa cidade.
Também chegaram muitos cavaleiros da zona de Portugal, e uma imensa multidão
de peões, que com surpreendente leveza agüentavam sem dificuldade o peso da marcha, e
atacavam com arrojo.
Ademais, incorporaram-se às forças em Toledo os nobres do rei dos aragoneses,
famosos por seu valor, vistosos por sua marcialidade, providos de armas e cavalos.
Também estiveram ali presentes os bispos, que ajudaram o empreendimento da Fé
colaborando espontaneamente com os gastos e responsabilidades, atentos às dificuldades,
entregues ao trabalho, clarividentes no conselho, generosos na necessidade, sinceros nas
pregações, valentes nos perigos, sofridos nas penalidades.
Da cavalaria secular do reino de Castela, vieram muitos nobres tão ilustres quanto
valorosos, que seria longo enumerar.
Compareceram também os monges de Calatrava, ao comando do mestre Rodrigo
Díaz, fraternal companhia grata a Deus e aos homens; os monges da Ordem do Templo ao
comando de seu mestre Gómez Ramírez, que faleceu em paz após a batalha. Estes foram
os primeiros que, no Novo Testamento, e tomando a insígnia da Cruz, uniram o brilho da
ufania militar ao vínculo da caridade e da religião, sem diminuição de sua bravura.
Também os monges da Ordem do Hospital, ao comando de seu prior Gutierre Ermigildo;
e os monges de Santiago, ao comando de seu mestre Pedro Arias. Estes realizaram muitas
proezas em terras de Espanha.
E havendo cumprido todos seus deveres, o exército do Senhor partiu da cidade
régia no dia 20 de junho. Os ultramontanos [franceses] de um lado, tendo por guia Diego
López de Haro; Pedro, rei dos aragoneses, com os seus; o nobre Alfonso com os seus. E
ainda que marchassem a certa distância, não era grande o espaço que separava os
exércitos.
Os ultramontanos instalaram seu acampamento junto a Guadalferza e, partindo daí,
sitiaram a fortaleza de Malagón. E trazendo a graça divina um bom prenúncio, ainda que
os defensores da fortaleza resistiram bravamente, o empuxe dos ultramontanos quebrou o
valor dos inimigos em nome do Senhor, e eles se apoderaram de Malagón, matando
quantos havia dentro.
Depois, avançando todos juntos, chegamos a Calatrava.
Os agarenos haviam assegurado de tal modo essa fortaleza, com armas e máquinas
no alto das torres, que parecia bastante difícil assaltá-la. Ademais, se bem que ela esteja
em terreno plano, grande parte de sua muralha é inaccessível por ser defendida pelo rio.
Parecia ela imbatível sem um longo castigo das catapultas.
E como estivéssemos há dias no cerco, os reis e príncipes, após deliberar,
concordaram em não abandoná-la sem tentar o assalto, por mais que parecesse difícil. E
assim, aprestadas as armas e distribuídos entre países e príncipes os diferentes pontos de
ataque, invocando o nome da Fé arremeteram contra a fortaleza. E pela graça de Deus
sucedeu de tal modo que, no domingo após a festividade de S. Paulo, afugentados os
árabes, tornou Calatrava às mãos do nobre rei, e imediatamente foi guarnecida pelos
monges-guerreiros que, tempos antes, tinham ali sua sede.
De seu lado, o nobre rei não se reservou nenhuma das coisas que ali se
encontravam, mas deixou tudo aos ultramontanos e ao rei dos aragoneses. Mas como o
inimigo do gênero humano não deixa de prejudicar as obras cristãs, introduziu-se satanás
no exército da caridade e infestou os corações dos invejosos; e aqueles que se haviam
preparado para a contenda da Fé retrocederam em suas boas intenções.
Quase todos os ultramontanos, abandonadas as insígnias da Cruz e os trabalhos da
batalha, tomaram a decisão de retornar a suas terras. O nobre rei fê-los partícipes dos
víveres dos seus e proporcionou-lhes quanto precisavam, mas nem com isso pôde revogar
a obcecada resolução. E partiram eles em massa sem pena nem glória, salvo o venerável
arcebispo Arnaud-Amaury, o qual, com todos os que conseguiu reunir, perseverou na sua
boa disposição sem jamais afastar-se do bem. Eram eles cento e trinta cavaleiros, sem
contar os peões, dos quais também ficaram alguns.
Entretanto, como “para aqueles que amam a Deus, tudo se torna em bem” (Rom.
8,28), ainda que se temessem perigosas conseqüências daquela defecção, pois diminuía o
exército de um terço, sem embargo tudo começou a correr melhor, a cada dia. E assim,
após a partida daqueles que abandonaram a Cruz ante as dificuldades, somente os
hispanos, com os poucos ultramontanos acima mencionados, iniciaram esperançados o
caminho, rumo à batalha do Senhor.
Em primeiro lugar chegaram a Alarcos e, tendo acampado ali, apoderaram-se da
praça e de outros castelos próximos.
Durante aquele alto chegou o rei Sancho da Navarra, el Fuerte, o qual não afastou
do serviço de Deus a honra de sua coragem, quando se aproximava o momento crítico.
E assim, a tríade de reis avançou em nome da Santíssima Trindade.
Ao primeiro dia acamparam em torno de Salvatierra, e no dia seguinte, domingo,
os reis e os príncipes ordenaram que todo o exército tivesse as armas prontas, e tudo fosse
disposto para o combate. E pela graça de Deus era uma tal multidão, engalanada com
armas, estandartes e cavalos, que aos inimigos parecia tremenda e a nós admirável. Pronta
para o combate, ela compensava a retirada dos ausentes, de maneira que inclusive
cresceram os ânimos dos esforçados, receberam força os débeis, asseguraram-se os
duvidosos e borrou-se da mente dos receosos a defecção dos que se foram, o que havia
amedrontado a muitos.
Enquanto isto acontecia, Mohamed, rei dos agarenos, tinha concentrado suas forças
nas montanhas próximas de Jaén e ali aguardava o exército cristão. Não tinha ele intenção
de combater, já que receava dos reforços estrangeiros, mas desejava surpreendê-lo na
volta, quando os cristãos, talvez esgotados pelo esforço e dizimados pelas baixas,
carecessem de recursos para fazer-lhe frente.
Foi então que, por decisão do Altíssimo, os franceses se retiraram; e por meio da
Providência Divina, que não erra em seus decretos, ocorreu que o agareno, informado
dessa retirada, modificou seu plano. Intuindo a glória e recuperando a ousadia, avançou a
partir de Jaén e, dirigindo-se a nós, chegou a Baeza e dali destacou alguns soldados para
as Navas de Tolosa, a fim de cortar o caminho dos cristãos num ponto estreito da
passagem, onde há um rochedo inaccessível e uma torrente de água.
Com esta missão vigiavam os mouros o desfiladeiro, esperando o momento em que
a escassez de víveres nos obrigasse a retornar, vítimas da fome.
Sem embargo, o Senhor dispôs de outra maneira.
Diego López de Haro, a quem tinha sido confiada a direção do exército, enviou em
avançada seu filho Lope Díaz e seus dois sobrinhos, Sancho Fernández e Martín Muñoz,
para que se antecipassem em apoderar-se da cima do monte. Mas quando estes, seguros
de sua coragem, marchavam um tanto descuidados, deram de bruços com uns árabes no
alto do monte, junto ao castelo que se chama Ferral, os quais, caindo de repente sobre
eles, quase puseram-nos fora de combate. Mas os citados cristãos e os seus, por
intervenção da graça divina, tomando as armas, rechaçaram-nos com bravura; e pela graça
de Deus ocuparam o cume da montanha, erguendo em seguida suas tendas e
permanecendo ali.
Na manhã de sexta-feira, os três reis, Alfonso de Castela, Pedro de Aragão e
Sancho de Navarra, após invocar o Nome do Senhor, iniciaram a subida e acamparam
numa esplanada do monte. E nesse dia os nossos tomaram o castelo de Ferral, a cujo pé há
algumas torrentes e uns barrancos, e a passagem é ali tão estreita que se torna difícil até
para os que vão levemente equipados.
Naquele lugar, um destacamento de mouros vigiou o avanço dos cristãos durante
esse dia e parte do seguinte, e ali deram-se algumas escaramuças entre os nossos e eles, de
maneira que houve baixas de
ambos lados.
Enquanto isto sucedia, os
reis e príncipes tentavam encontrar
o caminho mais seguro, pois a
passagem do desfiladeiro de Losa
seria impossível sem derrota.
Tratava-se de um barranco tão
temível, que apenas mil homens
poderiam defendê-lo contra todos
os homens da Terra.
E como o exército do
agareno estava cada vez mais perto
de nós, podendo-se inclusive
divisar sua tenda vermelha, cada
um dava sua própria opinião sobre
o avanço do exército, pois alguns,
tendo a passagem como
impossível, desejavam retroceder
para entrar nos acampamentos dos
agarenos por um lugar mais
accessível.
Ao ouvir essa opinião, disse
o nobre rei Alfonso de Castela:
— “Este plano brilha por
sua prudência, mas já que vemos o
inimigo tão perto de nós, obrigados
somos a avançar contra ele. Seja
feito como dispôs a vontade do
Céu”.
E, impondo-se esta decisão
do nobre rei, Deus todo-poderoso, que governava o empreendimento com graça especial,
enviou um pastor, de traje muito pobre, que indicou um caminho mais fácil, inteiramente
accessível, por uma subida na ladeira do monte, por onde poderíamos chegar a um local
adequado para o combate.
Mas, como numa situação tão crítica era por demais arriscado confiar em
semelhante pessoa, adiantaram-se dois príncipes, Diego López de Haro e García Romero,
para que, se comprovassem ser verdade o que tinha dito o pastor, fosse ocupado o monte e
a esplanada que havia no alto. E assim sucedeu por vontade do Senhor, de maneira que
aquele pastor resultou ser um enviado de Deus, que Se serve dos mais humildes do
mundo. A piedade popular afirmou ser este homem o próprio S. Isidro.
Muito cedo de manhã, os três reis, após receber a bênção episcopal e a graça do
sacramento, chegaram ao mencionado monte com suas forças. Percebendo então os
agarenos que não se tratava de uma retirada mas de um avanço, lamentaram-no
sobremaneira e, ao divisar ao longe as tendas que se erguiam no cimo do monte, enviaram
um grupo de cavalaria para cortar o caminho à vanguarda, já que éramos obrigados a
avançar numa longa coluna devido à estreiteza do sendeiro; e depois de um prolongado
choque com os nossos, quis o Senhor que eles fossem duramente rechaçados.
E quando as tendas estiveram já plantadas, entendendo o rei dos agarenos que de
nada lhe serviam já as emboscadas dispostas no caminho, formou seus exércitos e saiu
nesse mesmo dia a campo aberto, postando o núcleo de suas tropas sobre uma altura de
difícil acesso, desdobrando com grande habilidade o resto de suas forças à direita e à
esquerda.
E ali se mantiveram em expectativa, desde a hora sexta até o entardecer, pensando
que nós apresentaríamos batalha nesse mesmo dia.
Entretanto, reunido o conselho dos cristãos, foi decidido aprazar o combate até a
segunda-feira, pois os cavalos estavam extenuados, e, ademais, para que esse intervalo
nos desse tempo de observar a situação e os movimentos do inimigo.
E como entendesse o agareno que tínhamos medo e não lhe dávamos batalha,
envaidecido, não percebeu que agíamos com astúcia e por isso enviou cartas a Baeza e
Jaén, anunciando que havia cercado três reis, os quais não agüentariam mais de três dias.
Sem embargo, conta-se que alguns dos seus, julgando com mais clarividência, disseram o
seguinte:
— “Estão eles ordenados com critério e razão, e mais parecem dispor-se à luta que
ao recurso da fuga”.
Ao dia seguinte, domingo, novamente saiu o agareno a campo aberto, muito cedo
de manhã, permanecendo em posição de combate até o meio-dia, e para protegê-lo dos
rigores do sol trouxeram como resguardo sua tenda vermelha. Sentado à sua sombra com
vaidade, aguardava ele o entrechoque com luxo real.
De nosso lado, nós continuamos observando seu exército como no dia anterior, e
organizávamos o plano de ataque. O arcebispo de Toledo e demais bispos pregavam
palavras de ânimo e indulgência, com grande unção, através de cada um dos
acampamentos das cidades e dos príncipes.
Naquele dia, o ilustre rei de Aragão armou cavaleiro a seu sobrinho Nuño Sánchez.
Finalmente, após longa espera, os agarenos retornaram a seu acampamento, entre
as horas sexta e noa.
Por volta da meia-noite do dia seguinte, explodiu o brado de júbilo nas tendas
cristãs, e a voz dos arautos ordenou que todos se preparassem para o combate do Senhor.
E assim, celebrados os mistérios da Paixão do Senhor, recebidos os sacramentos, tomadas
as armas, saíram à batalha campal.
As linhas avançaram do modo combinado: Diego López de Haro, com os príncipes
castelhanos, comandava a vanguarda; o conde Gonzalo Nuñez com os monges do
Templo, do Hospital e de Calatrava, o corpo central; na retaguarda, o nobre rei Alfonso, o
arcebispo Rodrigo de Toledo e os outros bispos já mencionados, e, dentre os barões,
Gonzalo Ruiz e seus irmãos, Rodrigo Pérez de Villalobos, Suero Téllez, Fernando García
e outros. Em cada uma destas colunas encontravam-se as milícias das cidades.
O valoroso rei de Aragão desdobrou seu exército em outras tantas linhas: García
Romero na vanguarda, Jimeno Cornel na segunda linha, ele mesmo na terceira.
O rei Sancho de Navarra, notável pela grande fama de sua valentia, marchava com
os seus à direita do nobre rei Alfonso, e em sua coluna avançavam as milícias das cidades
de Segóvia, Ávila e Medina.
Assim, estendidas as fileiras, erguidas as mãos ao Céu, postos os olhares em Deus,
dispostos os corações, desfraldados os estandartes da Fé e invocado o Nome do Senhor,
chegaram todos como um só homem ao ponto decisivo do combate.
Os primeiros a entrar em liça foram o filho e os sobrinhos de Diego López de
Haro, valentes e destemidos.
Os agarenos levantaram no cimo do monte um reduto, no qual estava postado um
corpo de infantaria escolhida, e ali sentou-se o rei, tendo ao alcance sua cimitarra,
vestindo a capa negra que tinha pertencido a Abdelmon, aquele que deu origem aos
almóades, e ademais com o livro da maldita seita de Mafoma, que se chama Alcorão.
Fora do reduto havia também outras linhas de peões, com as pernas amarradas
entre si por correntes. O grosso das tropas almóades estava mais no exterior, diante da
tenda real, imponente por seus cavalos, armas e número incalculável.
À direita e à esquerda deles encontravam-se os árabes, perigosos por sua rapidez e
a presteza de suas lanças, que não só atacam enquanto fogem, mas na fuga voltam-se com
violência; e na planície, onde não há estreiteza que impeça os movimentos, são ainda mais
daninhos. Dedicados a desconcertantes cavalgadas, não mantêm eles formação alguma
nas batalhas, a fim de desbaratar os contrários com seus movimentos e de abrir caminho
aos outros que marcham em formação, uma vez confundidas as fileiras do inimigo.
Creio que nenhum dos nossos teria podido calcular o número destes e aqueles, a
não ser porque depois soubemos que eram oitenta mil ginetes, sem contar a turbamulta da
infantaria.
Havia também uns agarenos da zona de Azcora, que, deixando seus cavalos,
lutaram a pé junto a seu rei, e crê-se que nenhum deles escapou com vida.
Além do mais, ao lado do rei encontrava-se uma impressionante formação, ornada
com bandeiras de cavalaria.
A vanguarda cristã desbaratou prontamente as avançadas inimigas, atirando-se
depois com grande ímpeto contra a segunda linha, que também desfizeram após vencer
enérgica resistência. Desbaratadas as duas primeiras linhas, continuaram os cristãos a
subir, até encontrar os esquadrões almóades.
Estes receberam-nos com grande firmeza, aguentando o impacto quase sem
mover-se do lugar, e conseguiram rechaçar o impetuoso assalto. Tanto vigor mostraram,
que puderam lançar-se por sua vez ao ataque contra os nossos, que subiam por lugares
assaz desvantajosos para o combate. Nestes entrechoques, alguns dos cristãos, esgotados
pela dificuldade da subida, atrasaram-se demasiadamente.
A vanguarda cristã e a segunda linha iam ser empurradas ladeira abaixo, mas
alguns das colunas centrais de Aragão e Castela chegaram à linha de combate, produzindo
entre os agarenos um grande desconcerto.
O desenlace não se via claro.
Então, os da vanguarda redobraram juntos seu esforço, e as colunas dos flancos
combatiam violentamente contra as colunas dos agarenos, alguns dos quais, virando
rédeas, começavam a fugir.
O nobre Alfonso, percebendo entretanto que certos cristãos não se esforçavam
tanto quanto era necessário, desejou avançar e disse diante de todos ao arcebispo de
Toledo:
— “Arcebispo, morramos aqui, eu e vós”.
Mas ele respondeu:
— “Não queira Deus que aqui morrais. Hoje vencereis vossos inimigos”.
Então o rei, sem diminuir o ânimo, disse:
— “Corramos para socorrer as primeiras linhas, que estão em perigo”.
E, ouvindo isto, Gonzalo Ruiz e seus irmãos avançaram rumo à vanguarda, mas
Fernando García, homem de valor e experiente na guerra, reteve o rei aconselhando-o a
permanecer onde estava, controlando a situação. O rei, entretanto, não quis ouvi-lo e disse
novamente:
— “Arcebispo, morramos aqui, pois a morte não é desonra, em tais
circunstâncias”.
E aquele respondeu:
— “Se for vontade de Deus, aguarda-nos a coroa da vitória, mas se não for,
estamos todos dispostos a morrer convosco”.
E em tudo isto, dou fé ante Deus de que o nobre rei não alterou seu rosto, nem sua
expressão habitual nem sua compostura, mas tão bravo quanto um leão impertérrito estava
decidido a morrer ou a vencer.
E não sendo capaz de permanecer por mais tempo sem socorrer as primeiras linhas,
lançou-se avante, e, trás ele, como furacão destruidor, todos os bispos, cavaleiros e
soldados que com ele estavam. O mesmo fizeram os reis de Aragão e Navarra, e os
cavaleiros catalães.
A Cruz do Senhor, que marchava diante do arcebispo de Toledo, passou
milagrosamente entre as fileiras dos agarenos, levada pelo cônego de Toledo Dom
Domingo Pascásio, e ali, tal como o Senhor desejou, permaneceu até o fim da batalha sem
que seu portador, inteiramente só, sofresse dano algum.
Nos estandartes dos reis figurava a imagem de Santa Maria Virgem, que sempre foi
protetora e patrona de toda a Espanha. A sua chegada, aquela imensa formação e
incontável turbamulta dos guerreiros almóades, que até então tinha agüentado os golpes
sem mover-se e era em extremo dura para os nossos, largou a correr, abatida pelas
espadas, afugentada pelas lanças, vencida pelos golpes.
Caíram os cristãos em forma de tenaz contra o reduto fortificado do emir. Os
soldados de sua guarda, amarrados uns aos outros com correntes, opuseram violenta
resistência, mas o rei Sancho da Navarra, el Fuerte, saltou o cerco com seu cavalo,
rompendo afinal a defesa. E os estandartes cristãos chegaram jubilosamente até o último
reduto dos agarenos, por disposição do Senhor.
Mohamed Alnasir recorreu à fuga, acompanhado no perigo por quatro ginetes, e
perseguido com grande sanha pelos cavaleiros cristãos. E como chegasse a Baeza,
perguntaram-lhe os dessa cidade o que deviam fazer, e conta-se que ele respondeu:
— “Não posso velar nem por mim nem por vós; que Deus vos assista!”
E após mudar de cavalo, chegou a Jaén naquela noite.
Enquanto isso, foram mortos muitos milhares de agarenos ante a pressão
simultânea dos aragoneses, castelhanos e navarros por suas frentes respectivas. Vendo
isto, o arcebispo de Toledo disse ao nobre rei o seguinte:
— “Tende presente a graça de Deus, que hoje supriu todas as vossas carências, e
borrou a desonra das derrotas que havíeis suportado durante longo tempo. Agradecei
também a vossos cavaleiros, com cujo concurso tendes alcançado tal glória”.
Uma vez ditas estas palavras, o próprio toledano e outros bispos que com ele se
encontravam, iniciando um cântico de louvor com lágrimas de devoção, romperam a
entoar: Te Deum laudamus, te Dominum confitemur.
O campo de batalha encontrava-se tão repleto pelo desastre dos agarenos que,
inclusive com os mais potentes cavalos, era difícil andar por cima dos cadáveres.
Tremendamente mutilados estavam os agarenos que foram mortos junto à tenda real, os
quais eram de elevada estatura e grande obesidade.
Entretanto, não querendo os nossos pôr limites à graça de Deus, dedicaram-se a
perseguir o inimigo sem descanso, por todas partes, durante a noite inteira, e, segundo os
cálculos, crê-se que foram mortos uns duzentos mil.
Os nossos, pelo contrário, apenas sofreram vinte e cinco baixas.
Creio que ninguém está em condições de relatar as grandes ações da cada um dos
nobres, posto que a ninguém foi dado contemplar cada uma delas. Isto é: de que forma
colaborou a intrépida valentia dos aragoneses na matança, e com que facilidade deram
alcance aos fugitivos; com quanta bravura se uniram os catalães àqueles que combatiam
na primeira linha; com que brilho dissiparam as dúvidas da batalha García Romero, Aznar
Pardo e outros nobres de Aragão e Catalunha; de que forma a aguerrida rapidez dos
navarros lançou-se na emergência do combate e perseguiu os que fugiam; com quanta
esforçada disposição agüentaram também os ultramontanos os assaltos dos agarenos; de
que forma a brilhante nobreza e a nobre entrega dos castelhanos supriu a tudo com
abundância, conjurou os perigos com mão valorosa, antecipou-se na ação com espada
vencedora, aplainou as asperezas da feliz vitória, trocou em glória os insultos à Cruz e
diluiu com cânticos de louvor as blasfêmias do inimigo.
Mas se pretendesse seguir narrando as proezas de cada um, a minha mão se
cansaria de escrever antes que me faltasse matéria para relatar.
Havia tal quantidade de árabes mortos no campo de batalha, que apenas pudemos
ocupar a metade de sua extensão. Por sua vez, aqueles que quiseram saquear encontraram
muitíssimas coisas no campo: ouro, prata, ricas vestiduras e ornamentos valiosíssimos,
muito dinheiro e vasos preciosos, do que se apoderaram os peões. Mas os nobres, e
aqueles que o amor à Fé e os anseios de valentia tinham enobrecido, continuaram
bravamente a perseguição durante a noite, deixando tudo isso de lado.
Este foi o fim da batalha, que teve lugar no dia 16 de Julho do ano de 1212.
Os historiadores árabes, vendo quão de perto se seguiu a ruína do império almoade
à batalha das Navas de Tolosa, chamam-na em suas crônicas de Al-Icab, isto é: “O
Desastre”.
A tenda de seda e ouro do emir foi enviada ao Papa, para a Basílica de São Pedro.
Toledo conservou todos os pendões arrancados aos infiéis, e o rei da Navarra obteve as
correntes que rodeavam a tenda de Alnasir, as quais desde então figuraram no escudo de
Navarra, e hoje no da Espanha. Muitos nobres conservaram em seus brasões lembranças
desta batalha.
Em comemoração desta vitória, celebra-se todos os anos, no dia 16 de julho, a festa
do Triunfo da Cruz.
———————
Simon de Montfort, gládio da Igreja
Pierre Belperron, La Croisade contre les Albigeois, Librairie académique Perrin, Paris,
1967.
Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie, Paris, 1878.
Achille Luchaire, Innocent III, la Croisade des Albigeois, Hachette, Paris, 1906.
Dominique Paladilhe, Les grandes heures cathares, Librairie académique Perrin, Paris,
1969.
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Histoire Albigeoise, Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 1951.
O Papado, a Igreja, o dogma cristão e o edifício inteiro da religião são atacados por
turbilhões de idéias saídas de todos os abismos do passado e do futuro. As ruínas de eras
extintas revivem e se atropelam com os germes de tempos vindouros, que começam a
eclodir sob formas múltiplas e estranhas.
O maniqueísmo tenta disputar o Ocidente à Igreja Católica, revivendo a heresia
greco-asiática dos dois princípios: “o deus bom, criador das coisas invisíveis e
incorruptíveis, e o deus mau, criador da Terra e de todas as coisas visíveis”.
— “A Igreja Romana — afirmam os maniqueus — pela sua participação nas
riquezas materiais e nas ambições deste mundo, pela sua intervenção no governo da Terra
e pelas perseguições que prescreve, deixou a Cristo para seguir a satanás. Só existe
salvação na igreja dos puros, dos perfeitos, dos cátaros”.
Quando o discípulo, o crente, está bem instruído, ele recebe, pela imposição das
mãos, o consolamentum ou batismo espiritual, em oposição ao batismo de água, instituído
por um demônio chamado João Batista. O crente é transformado então em perfeito, e o
espírito santo desce sobre ele.
Se o perfeito não sente coragem para suportar as austeridades dessa vida, pode
deixar-se morrer de fome, ou mesmo dar-se morte violenta se teme fraquejar sob a mão
dos verdugos católicos.
A Itália do norte e as províncias do sul da França são os dois grandes focos de
heresia, cujas labaredas se entrecruzam por cima dos Alpes.
O Languedoc estava singularmente preparado para acolher a heresia: sua civilização
requintada, sua extrema liberdade de gostos e de costumes, sua cultura intelectual, tão
brilhante e original, tudo isso lhe fazia insuportável o “despotismo” religioso do Papa, e,
em geral, toda tentativa de impor a crença pela força. A estreita relação do Languedoc com
muçulmanos e judeus havia feito desaparecer nele os preconceitos ocidentais, para
entregá-lo sem defesa e sem critério à invasão desordenada de todas as idéias estrangeiras.
Desde o século XI, as cantigas dos trovadores desafiavam as bulas dos Papas,
atacando-as de igual a igual. O clero era desprezado, e os eclesiásticos não ousavam
mostrar-se em público sem esconder suas tonsuras.
A sociedade provençal admirava os cátaros, e aplaudia-os sem pertencer-lhes
inteiramente. Ela oscilava entre a sua própria libertinagem e o extremo ascetismo dos
maniqueus. Na superfície, quantas festas, quantas canções, quanta galanteria, quanta
volúpia elegante nos castelos! Toda uma poética e original civilização desabrochava ao
sol, nas praias do Mediterrâneo!
Entretanto, este florescimento era semelhante à vegetação exuberante que cobre os
vulcões: ela acusava o fervilhar de fogos interiores, que às vezes produziam ameaçadoras
explosões. Os gritos das vítimas do banditismo ressoavam, como lúgubre dissonância, em
meio às cantigas dos trovadores; paixões desenfreadas se incubavam sob os costumes
graciosos e levianos da nobreza. Havia uma ebriedade e uma vertigem de prazeres.
O Languedoc delirava, nas vésperas de sua ruína.
Nessas festas, impregnadas de orgulho e sensualidade, a sede de contrastes levava a
aceitar as pregações dos hereges.
Toulouse era a capital do maniqueísmo, e constava que o conde Raymond VI
participava das crenças dos cátaros. Numa viagem que ele fizera ao Aragão, tendo
adoecido gravemente, fez-se reconduzir em liteira a Toulouse, e como lhe perguntassem
porque se fazia transportar com tanta pressa, apesar da gravidade de seu mal, respondeu
que no Aragão não havia cátaros, em cujas mãos ele pudesse morrer.
A sua vida era de uma libertinagem desenfreada: casava-se e divorciava-se segundo
sua fantasia, e chegou a ter três esposas vivas.
A crise agravava-se cada dia mais, e parecia que de um momento a outro
presenciar-se-ia a expulsão dos bispos da região e a entronização pública dos perfeitos nas
dioceses de Toulouse.
A Cruzada espiritual
A Cruzada relâmpago
Pierre Belperron, La Croisade contre les Albigeois, Librairie Académique Perrin, Paris,
1967.
Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie, Paris, 1878.
Achille Luchaire, Innocent III, la Croisade des Albigeois, Hachette, Paris, 1906.
Dominique Paladilhe, Les grandes heures cathares, Librairie Académique Perrin,
Paris, 1969.
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Histoire Albigeoise, Librairie
Philosophique J. Vrin, Paris, 1951.
O perfeito cavaleiro
A conquista
A batalha de Castelnaudary
————
3 — Simon de Montfort, gládio da Igreja
A batalha de Muret
———————
A Reconquista e as Cruzadas: entrechoque de duas místicas opostas (parte I)
Fr. Maur Cocheril, O.C.R., Essai sur l'origine des Ordres Militaires dans la Péninsule
Ibérique, in Collectanea Ord. Cisterciensium Ref., t. XX, 1958 e t. XXI, 1959.
Francis Gutton, La Chevalerie militaire en Espagne, in Cîteaux, Studia Cisterciensia,
Achel (Bélgica), 1980.
Ramón Menéndez Pidal, El Cid Campeador,, Espasa-Calpe, Buenos Aires, 1951.
A Reconquista
Vitórias almorávides
O Cid Campeador
O Cid, desterrado injustamente pelo rei de Castela, fazia-se cada vez mais
necessário no secular campo de batalha, mas Alfonso era um desses homens que não
possuem a grandeza suficiente para ceder o passo aos que melhor sabem dirigir, e preferiu
agir sozinho, obstinando-se em prescindir do Campeador, o qual combatia sozinho no
Levante. Por certo, o rei continuou pelejando com energia contra o invasor, mas os seus
exércitos não obtiveram já outros méritos que os da heróica tenacidade ante a desgraça.
Alfonso renunciou então à ofensiva, e nas suas próprias terras de Coimbra e Toledo sofreu
grandes reveses.
Se Alfonso não tivesse sido avesso à admiração pelo mérito alheio, e se tivesse
nomeado o Cid defensor de Gibraltar, os almorávides nunca teriam vindo à Espanha, e a
Reconquista teria concluído em breve prazo.
A figura do Campeador, em seu senhorio de Valência, permanece então
majestosamente isolada, face ao imenso império almorávide, desafiando o vencedor de
Alfonso e os irresistíveis generais africanos, conquistadores de tantos reinos.
Os mouros espanhóis tinham aberto o Estreito de Gibraltar aos almorávides.
Porém, diante desse contubérnio a que se entregavam as raças moura e africana, o
Cid adota uma atitude oposta e terminante: a guerra com os invasores não poderá acabar
em conivência, mas em eliminação dos africanos.
Suas vitórias bélicas, vitórias de poucos sobre muitíssimos, vitórias sempre
infalíveis, são confirmadas de forma surpreendente pela crônica muçulmana:
“Rodrigo — maldito seja! — viu suas bandeiras favorecidas pela vitória, e com
um pequeno número de guerreiros aniquilou exércitos numerosos”.
Esta dupla vitória sobre a inveja e sobre os almorávides resume toda a vida do
Campeador.
Só ele mostrou perspicácia e inventiva; só ele encontrou imediatamente as novas
modalidades de guerra necessárias para vencer e intimidar os almorávides; só ele
declarou-lhes guerra sem quartel, guerra de repulsa irreconciliável. Foi ele quem fez
compreender que toda aliança com os africanos era imperdoável, e resistiu sozinho, sem
vacilar, contra toda a força do Islã, assumindo a Reconquista na sua totalidade.
A permanência de Rodrigo em terras de Valência era intolerável a Yúsuf, quem se
considerava e era considerado senhor de toda a Andaluzia.
O emir enviou de Marrocos, onde retornara, uma mensagem ao Campeador,
intimando-o a não permanecer em terras valencianas, mas Rodrigo respondeu-lhe com
uma carta cheia de indignação e desprezo, e, ademais, enviou missivas a todos os emires
da Andaluzia, publicando que Yúsuf não se atrevia a voltar à Espanha por medo dele. E as
palavras do Cid não soavam a oca fanfarronada...
A batalha de Valencia
A herança do Cid
No mesmo ano em que morria Urbano II, e Godofredo de Bouillon fundava o reino
de Jerusalém, morria também o Campeador. O luto da Cristandade pela sua morte
produziu-se em meio ao triunfo da primeira Cruzada.
Apesar da morte prematura do herói, as conseqüências de sua conquista foram da
maior importância. Recordemos que o Islã retomava então um vigor extraordinário: os
dois extremos do Mediterrâneo viam-se novamente assaltados, como nos dias da primeira
expansão maometana, e essa crítica situação foi salva pelo Cid no Ocidente e pela
Cruzada no Oriente. Era aquele o momento mais irresistível da invasão, e, sem o Cid
Campeador, dias muito piores que o de Sagrajas teriam amanhecido para a Espanha e para
a Europa.
Em suma, Rodrigo Díaz de Vivar salvou a Cristandade.
Ele encontrou com agilidade e rapidez a nova tática contra os africanos, desfez e
cativou os exércitos dos capitães do Saara nas batalhas de El Cuarte e Bairén, imobilizou
Yúsuf na África, de terror, fez retroceder Abu Béker antes do entrechoque e não sofreu
jamais derrota alguma.
O historiador árabe Ben Bassam dá-nos o melhor elogio da energia sobre-humana
do Campeador, misturando o ódio e a admiração numa vibração apaixonada:
“O poderio desse tirano foi se tornando cada vez mais oprimente, enchendo de
pavor os de perto e os de longe. Mas esse homem, açoite de sua época, foi, por sua
habitual e clarividente energia, pela varonil firmeza de seu caráter e por sua heróica
bravura, um milagre entre os grandes milagres do Senhor”.
Imitando a tática guerreira do Campeador, o rei Alfonso I de Aragão, el Batallador,
apoderou-se de Saragossa e foi numa cavalgada inebriante até o próprio coração da
Andaluzia: Granada, Córdoba e Málaga. Após este feito de armas, que provocou o
entusiasmo de toda a Cristandade, o Papa concedeu aos guerreiros que lutavam contra o
mouro, em terra espanhola, os mesmos privilégios e indulgências outorgados aos cruzados
da Terra Santa.
* * * * *
Reconquista e as Cruzadas, entrechoque de duas místicas opostas (parte II)
Fr. Maur Cocheril, O.C.R., Essai sur l'origine des Ordres Militaires dans la Péninsule
Ibérique, in Collectanea Ord. Cisterciensium Ref., t. XX, 1958 e t. XXI, 1959.
Charles Grolleau e Guy Chastel, La Trappe, Bernard Grasset, Paris, 1954.
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São Raimundo de Calatrava, monge, fundador e guerreiro
Era vontade do Senhor que nascesse aquela Ordem Militar. O homem foi mero
instrumento, dócil e apto para realizar os planos de Deus.
Fé, esperança, amor à glória de Deus e à Igreja, foram os ideais que seus heróicos
fundadores transmitiram àqueles homens intrépidos que seriam chamados os Cavaleiros
de Calatrava.
O que diferencia a fundação da Ordem de Calatrava das outras Ordens Militares é o
seu nascimento espontâneo. As armas não vieram em socorro de peregrinos ou de
hospitais, como no caso das Ordens dos Templários e dos Hospitalários, na Terra Santa. A
Ordem de Calatrava nasceu de uma decisão rápida, às vésperas de uma ameaça.
O primeiro em sentir ferver o sangue em seu peito foi Frei Diego, homem de nobre
sangue que antes de ser monge havia sido guerreiro. Este humilde filho de Cister sentiu
uma viva dor ao ver seu rei angustiado e sem ajuda. Decidiu apresentar-se a ele e
oferecer-se para tomar sobre si o empreendimento, mas antes devia obter o beneplácito de
seu superior, o abade São Raimundo.
Segundo narram os historiadores, nesta idéia de defender Calatrava mediou a
intervenção divina. Em certa noite, estando o abade e o monge dormindo em celas
vizinhas, no mais avançado do sono levantou-se Frei Diego e correu onde estava seu
abade, acordando-o com esta súplica:
— “Santo abade, santo abade, vamos defender Calatrava!”
Tendo-o por vítima do delírio, ele o despediu com palavras suaves. Frei Diego
voltou a seu leito, mas o sono não vinha fechar suas pálpebras, e novamente dirigiu-se
com reiteradas instâncias a seu superior, propondo-lhe a mesma idéia. Este não se atreveu
então a contradizê-lo, mas deu ouvidos à vontade do Céu manifestada através do monge:
— “Defender Calatrava? Mas de que modo?”
— “Deus proverá, pois sua glória está em jogo”.
Então o abade não hesitou mais e, num sublime ato de fé, respondeu:
— “Defenderemos Calatrava!”
Para melhor compreender a resolução daqueles dois religiosos cistercienses, não
podemos perder de vista a época em que eles viveram.
Naqueles tempos forjavam-se dentro dos claustros homens de espírito bélico,
comparáveis aos melhores capitães de sua época.
Só na aparência o exercício das armas parece estar em pugna com a contemplação.
Essas duas vocações não estão separadas uma da outra, mas fortificam-se e
intensificam-se mutuamente.
O monge beneditino é um soldado de Cristo que combate nos campos do claustro
contra os inimigos invisíveis. Do mesmo modo, o cavaleiro é um soldado de Cristo que
combate não somente os inimigos invisíveis para guardar-se de toda mácula — já que é
um consagrado — mas também os inimigos visíveis de Jesus e do nome cristão.
Não era novidade na Ordem Cisterciense o acometer um empreendimento
guerreiro. Outro grande monge, São Bernardo de Claraval, já abrira o caminho pregando a
Segunda Cruzada.
Os dois religiosos apresentaram-se ante o rei D. Sancho, oferecendo-se para tomar
em seus ombros a defesa de Calatrava.
A princípio o monarca não lhes deu crédito, julgando a missão superior à
capacidade de pobres monges, mais acostumados a cantar no coro do que ao manejo das
armas e à organização dos exércitos.
No entanto, finalmente consentiu em outorgar-lhes quanto pediam, e fez-lhes
entrega da praça por meio de escritura pública:
“Já que a clemência da dignidade real deve encaminhar-se principalmente a
agradar incessantemente a Deus todo-poderoso, em cuja mão estão os corações dos reis,
e a pôr diligência para servir com piedosa intenção o mesmo Deus, sem o Qual não se
pode alcançar o reino da Terra e menos ainda o sempiterno; por isso eu, o rei D. Sancho,
movido por divina inspiração, faço carta de doação e texto de escritura para sempre
válido, a Deus e à Bem-aventurada Virgem Maria, à santa congregação de Cister e a vós,
D. Raimundo, abade de Santa Maria de Fitero, e a todos vossos irmãos presentes e
vindouros, da vila que se chama Calatrava, para que a tenhais e possuais desde agora e
para sempre, e a defendais dos pagãos inimigos da Cruz de Cristo, com seu favor e o
nosso”.
Como o perigo urgia, imediatamente os dois monges puseram em prática suas
medidas de rápida ação. A primeira foi dar parte de seus propósitos a D. Juan, Arcebispo
de Toledo, o qual, ouvindo o santo propósito, deu graças a Deus e prometeu
imediatamente ajudá-los tanto quanto estivesse em suas mãos, fazendo publicar por toda
parte que todos aqueles que acorressem em defesa de Calatrava obteriam a remissão de
todos seus pecados.
Esta medida e a pregação que começou a fazer-se em todo o reino inflamaram os
ânimos das multidões, sendo numerosíssimos os cruzados que em pouco tempo se
alistaram e se ofereceram para combater às ordens dos dois filhos de Cister.
Logo depois, o santo abade Raimundo, feito Capitán General por vontade do rei,
voltou ao mosteiro de Fitero, do qual retirou todos os monges robustos e aptos para
empunhar as armas. Com eles e com os numerosos homens que acorriam formou ele um
exército de 20.000 soldados, multidão entusiasmada e disposta a todos os sacrifícios, que
se dirigiu sem demoras a Calatrava, para fazer frente à mourama na posição-chave de
Castela.
Tendo chegado todo o contingente de Cruzados, começou ele sem perda de tempo a
organizar a defesa. Fortificou imediatamente a vila com muralhas, baluartes, ânimo e
diligência, e, empunhando o bastão de general, iniciou a defesa de tão importante praça.
Com a notícia destes preparativos, desistiram os mouros do ataque, mas Frei Diego
de Velázquez, conhecendo seu temor, não só afastou-os daquela região, mas venceu-os
muitas vezes, fazendo diversas cavalgadas por suas terras, chegando até Úbeda e Baeza,
das quais trouxe grandes despojos.
De tal modo defendeu São Raimundo a chave de Castela, exercendo o ofício de
Capitán General de la frontera, que se desvaneceu inteiramente a negra nuvem que
pairava sobre a Espanha, e o imenso poder que os maometanos haviam ajuntado na África
não se atreveu a tentar conquistar aquilo que todos proclamavam inexpugnável. Apenas
fizeram algumas correrias pela fronteira, mas foram rechaçados deixando muito sangue
no campo, levando consigo uma lição para o futuro e perdendo definitivamente a
esperança de reconquistar a fortaleza de Kalaat Rawaah.
Estava plenamente atingido o objetivo que levara os dois monges a tomar em seus
ombros aquele arriscado empreendimento: defender a mais avançada posição do
catolicismo hispânico. Mas isto não era suficiente.
Deus tinha outros desígnios, e não só havia escolhido São Raimundo para ser
capitão daquelas hostes, mas também fundador de uma instituição não menos honrosa
para a Espanha do que para a Ordem Cisterciense.
Ao ver desaparecer o perigo da invasão, muitos cruzados retornaram a seus lares,
mas outros, pelo contrário, manifestaram o desejo de continuar aquela vida.
Então, São Raimundo, com aquelas luzes sobrenaturais e aqueles dotes de
organização que marcam sua existência, procurou o meio de formar uma nova milícia,
irmanando a vida do monge com a do soldado, já que ele também permaneceria na
brecha.
E, em ordem a isso, movido por Deus e tendo consigo muitos mancebos nobres,
chamados por ele a maior perfeição, fundou uma Ordem de Cavalaria e deu-lhe
constituições, reunindo com maravilhoso acerto a observância dos monges de Cister e os
exercícios da guerra, para homens aos quais chamasse igualmente na quietude e no alarme
o sino ao coro e o clarim ao combate, alternando os salmos e louvores do Senhor com os
violentos entrechoques das lanças e das espadas nas batalhas da Fé.
Desta sorte viu-se em poucos dias que Deus havia escolhido o insigne castelo de
Calatrava para ser santuário de muitas almas que depois se mudaram para as fortalezas do
Céu. As pedras vivas que nele se consagravam a Deus despertavam a devoção universal
do povo, com a admiração e louvor de todos.
Nada é de estranhar que muitos nobres se alistassem na nova milícia, e
submetessem sua cerviz ao império daquele “monge branco” que marchava diante deles,
conduzindo-os à imortalidade do Céu.
A estes primeiros anos de fervor corresponde sem dúvida o episódio acontecido a
um rei castelhano. Encontrava-se ele hospedado em Calatrava, e, quando menos se
esperava, ouviu-se a trombeta de alarme, anunciando a presença do inimigo. Todos
correram com a maior presteza para rechaçar o ataque. Pouco mais tarde, ao voltar a
calma, os mesmos monges guerreiros compareceram ao Ofício de Completas com as
mãos cruzadas sobre o peito e os olhos baixos, modulando com recolhida unção os
divinos louvores.
Admirado ao ver o contraste, o rei não pôde conter-se:
— “Parece-me, Padre, que o som das trombetas transforma vossos súditos em
lobos, e a voz do sino em cordeiros”.
— “Tendes razão — respondeu o abade —, pois aquelas os chamam para resistir
aos inimigos de Cristo e vossos, e este os chama para glorificar a Deus e rezar por vossa
Majestade”.
São Raimundo foi um contemplativo, mas a glória de Deus e o bem da religião,
juntamente com a inspiração que do Senhor recebera, obrigaram-no a abandonar sua
amada solidão e converter-se no organizador e fundador de uma aguerrida Ordem
militante. O militar, dentro de seu estado, deveria continuar sendo religioso, e religioso
contemplativo.
Este foi o ideal que São Bernardo propunha aos templários, e que São Raimundo
também realizou nos Cavaleiros de Calatrava. Eles viviam esta dupla vocação,
aparentemente contraditória, de monges e soldados. O monge está para rezar e o soldado
para combater, mas os Cavaleiros de Calatrava eram monges que rezavam e cantavam o
Ofício Divino, e, na hora do trabalho manual, em vez do arado ou a enxada, empunhavam
a espada.
Aqueles ínclitos cavaleiros viviam plenamente sua vocação na peleja e nos
claustros. Ao voltar do combate, com profunda submissão e humildade de meninos
recebiam aqueles homens de ferro as terríveis admoestações de seus superiores, e com a
cabeça inclinada choravam suas culpas e expiavam com as águas da penitência as faltas
da humana fragilidade. Quão agradável devia ser para os Anjos o pranto desses homens,
que pouco tempo antes, com a espada desembainhada, eram o terror da mourama!
D. Rodrigo Jiménez de Rada, arcebispo de Toledo, que conviveu seis meses com
eles, deixou escrito:
“Os que louvavam a Deus com cânticos cingiram-se da espada, e os que gemiam
na oração eram ferozes no combate. Seu alimento é em extremo parco e pobre, a áspera
lã serve-lhes de hábito e vestidura, a disciplina contínua os exercita e a guarda do
silêncio os acompanha”.
“Grande era o fervor religioso que animava os fundadores daquela santa milícia;
as altas muralhas de Calatrava admiraram em seus novos habitantes a contemplação dos
solitários do deserto unida à prontidão do soldado que aguarda o primeiro sinal para o
ataque”.
Aqueles intrépidos guerreiros lançavam-se, ao menor sinal de alarme, fora dos
góticos claustros, onde rezavam com religioso silêncio, para correr onde os chamasse o
brado de guerra. Num piscar de olhos, suas brancas cogulas desaparecem sob a couraça de
ferro; cobrem suas cabeças com um elmo, em cujo topo, em lugar de brilhantes penachos,
figura uma modesta cruz; embraçando o escudo e empunhando a lança, ardendo em seus
peitos a Fé e o entusiasmo religioso, voam ao combate ao primeiro toque da trombeta,
com aquele valor tranqüilo de uma consciência pura e com o heroísmo que só a
verdadeira Religião sabe inspirar.
Pouco tempo depois, vê-se uma maravilhosa mudança na cena. Quando o clarim dá
a ordem de alto, todos ao mesmo tempo embainham a espada, ainda fumegante de sangue
sarraceno, e com a barba poeirenta e revolta, enegrecidos pelo sol e pelo fumo, cobertos
de suor seus semblantes, tornam a entrar em seus quartéis para prostrar-se novamente ao
pé dos altares, tributar ação de graças ao Deus das batalhas e pendurar nas abóbadas do
templo o troféu da vitória.
Calatrava, como movimento espiritual e gesta histórica, pode ser qualificada com
grandes e pomposos títulos que poderiam refletir as diversas facetas que, ao longo dos
séculos, foram entalhando este fato histórico até convertê-lo numa das pedras preciosas
que embelezam e enriquecem a coroa multissecular de uma nação fecunda em soluções e
em façanhas insuspeitadas. Nós deixamos de lado, não sem grande pena, todos esses
adjetivos para fixar nossa atenção sobre um que costuma passar despercebido, apesar de
condensar em seu rico significado a fonte primordial de toda a grandeza dessa gesta:
Calatrava foi sobre tudo cisterciense.
É verdade que, ao querer conjugar Calatrava e Cister, chega-se a um momento em
que salta, rebelde e insubordinada, uma antítese que só o povo espanhol conseguiu
harmonizar. Os ideais de ambos parecem contradizer-se.
Cister é quietude contemplativa; Calatrava é ação bélica. Cister foge do mundo;
Calatrava o enfrenta. Cister reza ao Deus das batalhas; Calatrava combate nas batalhas de
Deus. Cister é silêncio; Calatrava é estrondo. Cister procura a paz; Calatrava procura a
guerra.
Evidentemente há um ponto de convergência: ambos são monges, e se Calatrava
empreendia os combates de Cristo a golpes de lança, Cister já as havia empreendido com
São Bernardo, a fio de lógica e apostolado. A batalha foi sempre um aspecto dos “monges
brancos”.
Não era difícil harmonizar as idéias de monge e de batalhador para aqueles que
recebiam como primeira lição aquela página áurea de São Bento, na qual ele esboça o
ideal de um monge:
“A ti pois, dirige-se agora minha palavra, sejas quem fores, a ti que, renunciando
às tuas próprias vontades, empunhas as fortíssimas armas da obediência para combater
às ordens do verdadeiro Rei, Cristo Senhor”.
E, glosando estas palavras, escreveu um dos primeiros “monges brancos”, com
pena de aço, estas outras que soavam a brado de guerra e que ainda hoje são um convite
para transformar em realidade belicosa o ideal beneditino de paz, trabalho, harmonia e
oração:
“Levanta-te, soldado de Cristo! Levanta-te e parte para o combate, pois Cristo
precisa de muitos guerreiros”.
Calatrava recebeu sua existência vivaz e agressiva de um mosteiro e de monges
cistercienses, mas ela abriu uma nova e desconhecida perspectiva à Ordem Cisterciense,
que perdurou com brilho e firmeza durante séculos, em terra espanhola.
Em 1163 morreu, cheio de virtudes e merecimentos, o santo fundador Raimundo de
Fitero, “após ganhar muitas vitórias contra os sarracenos, e muitas mais ainda contra os
demônios”.
———————
Urbano II foi Papa de 1088 a 1099. Defensor da liberdade da Igreja, continuador da
obra de São Gregório VII, promoveu a Iª Cruzada.
O Concílio de Clermont tinha como finalidade principal, discutir a Cruzada. O
povo esperava o dia da anunciada expedição. Finalmente o Papa satisfez a sua
impaciência. Sentou-se no trono, especialmente preparado para a ocasião, tendo ao seu
lado o eremita Pedro. A seus pés uma enorme multidão: cardeais, abades, sacerdotes,
monges, cavaleiros e o povo. Após as palavras de Pedro, descrevendo o que vira em
Jerusalém, Urbano II dirigiu-se a todos:
“Ide irmãos, ide com esperança ao assalto dos inimigos de Deus que já há muito
dominam a Síria, a Armênia e os países da Ásia Menor.
“Muitos danos já fizeram: usurparam o Sepulcro de Cristo, os maravilhosos
monumentos de nossa Fé, vedaram aos peregrinos o ingresso numa cidade à qual
somente os cristãos sabem dar o real valor. Não é o bastante para escurecer a serenidade
de nossa face?!
“Ide e mostrai o vosso valor! Ide, soldados, e vossa fama se estenderá por todo o
mundo. Não temais perder o Reino de Deus por uma grande tribulação. Se cairdes
prisioneiros, enfrentai os piores tormentos por vossa Fé e salvareis com isso vossas almas
ao perder o corpo.
“Não hesiteis, irmãos caríssimos, em sacrificar a vida pelo bem dos vossos irmãos.
Não vos detenha o amor à vossa família, à vossa pátria, ou às riquezas. Pois o homem
deve seu amor principalmente a Deus e a terra inteira será vossa.
“E qual maior felicidade para um Cristão, do que ver os lugares onde o Senhor
falou a língua dos homens?”
Às palavras do Pontífice os fiéis responderam unanimemente: “Deus o quer! Deus o
quer!” E Urbano II acrescentou:
“Esse vosso brado não seria unânime se não fosse inspirado pelo Espírito Santo!
Sejam então essas palavras vosso grito de guerra, anunciando o poder do Senhor Deus dos
exércitos!
“Quem empreender esta viagem, deverá portar a figura da Cruz! A Cruz esteja em
vossa espada e em vosso peito, sobre as armas e os estandartes. Seja ela para vós o louro
das vitórias ou a palma do martírio, e a insígnia para reunir os filhos dispersos da casa de
Israel! Ela vos recordará continuamente que Jesus Cristo morreu por vós, e que por Ele
deveis morrer!”
A partida da Cruzada foi marcada para 15 de agosto, festa da Assunção de Maria.
* * *
(Salmos CXXVIII, 21 e 22; CXL, 1; LIII, 7.)
“Porventura não odiava eu, Senhor, aos que Vos odiavam?
E não me consumia por causa dos vossos inimigos?
Com ódio perfeito eu os odiei, e eles se tornaram meus inimigos.
Senhor, a Vós clamei, ouvi-me.
Atendei à minha voz quando eu Vos clame.
Fazei voltar os males sobre meus inimigos
E na vossa verdade destruí-os!”
———————
4. A morte de Vivien
O voto de Vivien
Foi na festa de Páscoa que o conde Guillaume d'Orange armou cavaleiro seu
sobrinho, o jovem Vivien, dando-lhe a bofetada e cingindo-lhe a espada.
Os assistentes são tão numerosos que enchem a grande praça do palácio, e no meio
de todos está o conde.
Primeiramente ele arma cavaleiros cem escudeiros, por amor de Vivien.
Vivien aparece então, e avança em direção a seu tio, caminhando sobre o rico tapete.
Ele é de grande beleza, ombros largos e pescoço ereto.
Guillaume prende-lhe as esporas de ouro, reveste-o de uma loriga mais fulgurante
do que vinte círios, cobre-o de um elmo constelado de pedras preciosas e cinge-lhe a
espada de aço. Depois ergue o braço dá-lhe uma forte bofetada, dizendo:
— “Ide, nobre sobrinho, e que Deus vos dê fortaleza, audácia e coragem, lealdade a
vosso senhor e vitória sobre os descridos!”
Todos admiram o novo cavaleiro e exclamam:
— “Olhai-o! Ele tem senhorio sobre os outros como o falcão sobre os pássaros. Se
viver, que intrépido combatente ele será!”
A alegria é bela, mas será breve.
— “Meu tio — diz Vivien — vós me destes a espada; não temais que eu a desonre,
pois agora prometerei a Deus que jamais recuarei!”
— “Sobrinho — diz Guillaume — não vivereis, se quiserdes fazer tal juramento.
Não existe homem tão valoroso que não fuja quando demasiados inimigos o cercam, pois
estaria perdido. Nobre sobrinho, sois jovem; deixai esta loucura, e quando entrardes em
batalha, não tenhais receio de fugir quando for preciso; voltai atrás! É o que eu faço quando
me vejo assaltado por grande número de inimigos: não espero a ferida mortal! Crede: a
fuga não é censurável quando só ela pode salvar-nos a vida.”
— “Meu tio — responde Vivien — o novo cavaleiro só deve pensar na honra. Não
voltarei atrás em minhas palavras.”
Então, monta em seu cavalo de um salto, passa seu braço esquerdo nas correias do
forte escudo, empunha a lança com sua destra, firma-se nos estribos e brada com voz
potente:
— “Escutai-me, vós todos! Eu juro a meu Senhor Deus, o Rei do Céu, diante de vós,
diante de meus pares e diante do conde Guillaume, que jamais recuarei diante de
sarracenos, turcos ou persas, seja qual for o seu número e sejam quais forem as minhas
feridas!”
Todos o escutam, a alegria cessa, os nobres estão consternados. Guillaume diz:
— “Sobrinho, aqueles que vos amam viverão doravante na tristeza”.
Mas Vivien não se perturba, e responde cheio de ufania:
— “Quando eu estiver morto, será a hora de chorar por mim, mas hoje estejamos
alegres”.
Mas todos temem que, por causa de suas palavras, venha uma grande dor sobre a
França e muito sangue seja derramado.
O desafio de Vivien
Vivien só pensa em alargar o Reino de Deus sobre a Terra. Ele reúne sob seu
comando sete filhos de condes e cinco mil escudeiros que vêm oferecer-se a ele. Eis que
faz anunciar em seu pequeno exército:
— “Todo aquele que prender um sarraceno, não deverá guardá-lo para pedir resgate,
mas deverá matá-lo imediatamente”.
E em seguida penetra na terra maldita.
Durante três anos ele persegue os sarracenos por todas as partes, e conquista a região
até l'Archant-sur-Mer. Mas ali resiste ainda um castelo onde se refugiam os pagãos. São
quinhentos: homens, mulheres e crianças.
Vivien os prende e os faz degolar todos, não poupando mais do que quatro, aos
quais dá ordem de colocar os cadáveres numa nau e levá-los a Desramé, rei dos sarracenos.
A Provence está conquistada, e Vivien se instala na praia de Aliscans.
Eis que o navio com os corpos chega até Desramé, e os quatro pagãos prostram-se a
seus pés, dizendo:
— “Senhor nosso, socorrei-nos! Trazemo-vos uma nau cheia de vossa gente
massacrada. Quem a envia é o sobrinho de Guillaume, como sinal de desprezo e de irrisão.
Ele chama-se Vivien, e ainda não tem dezoito anos! Jamais cristão algum atacou-nos com
tanta violência; incendiou vossas cidades, arrasou vossos castelos e matou vossos parentes.
Toda a Provence foi assolada até o mar, e eis que ele acampa na praia de Aliscans; mas se
ele soubesse que vós estais aqui, viria diretamente contra vós, pois é terrivelmente
intrépido!”
Enorme é o lamento dos pagãos; o velho emir chora de cólera em seu trono, e puxa
sua barba com as duas mãos, gritando:
— “Maomé, senhor meu, ajudai-me a vingar este ultraje! Partamos sem demora!”
E, subindo em suas naus, desdobram as velas e partem. São tantos que só Deus
poderia contá-los, e seu clamor ressoa sobre as águas como um trovão sobre o mar.
Entretanto, Vivien permanece em Aliscans, com apenas cinco mil homens.
A batalha de Aliscans
O conde Vivien ergueu suas tendas na praia de Aliscans, aos pés do velho castelo.
Na segunda-feira, à hora de tércia, eis que ele ouve rumores longínquos que ressoam
sobre as águas e se aproximam cada vez mais.
Chama ele os sete filhos dos condes, e em torno deles os francos se reúnem. Eis que
subitamente aparece a frota pagã, para além dos rochedos; ela se estende e cobre o mar.
Vendo isto, os nossos perdem ânimo e exclamam:
— “Que a Santa Virgem nos ajude! Eis o rei Desramé. Morreremos todos se não
fugirmos depressa.”
Mas Vivien diz a seus homens:
— “Não tenhais medo dos incréus que vedes em tão grande multidão. Confiemos em
Deus, que é mais poderoso do que eles. Não vos perturbeis! Armai-vos e mostrai vossa
coragem!”
Os francos o escutam, mas os mais intrépidos empalidecem como se perdessem seu
sangue.
— “Senhor primo — diz Gautier —, jamais foram vistos tantos navios juntos. Nosso
esforço será vão; melhor seria bater em retirada.”
— “Amigo — responde Vivien — não temos nós boas armas e bons corcéis? Não
somos bravos cavaleiros? E porventura não confiamos no Rei do Paraíso? De minha parte,
fiz a Ele o voto, no dia em que fui armado, de jamais recuar ante os sarracenos. Não me
vereis recusar o combate; aqui ficarei, morto ou vivo.”
Todos estão consternados, abaixam a cabeça e dizem uns aos outros:
— “Ai de nós! Este homem é por demais orgulhoso! Se esses pagãos fossem javalís,
necessário seria um mês inteiro para matá-los!”
— “Senhores francos — diz Vivien o valente, o intrépido — vós pensais em vossos
castelos, vossas pradarias e vossas vinhas, vossas cidades e vossas famílias. Aquele que
disso se lembra, jamais fará proezas. Dispensados estais! Ide para onde quiserdes e eu
permanecerei aqui, cumprindo o meu voto. Entretanto, no grande dia do Juízo, Deus saberá
reconhecer aquele que O serviu sem fraquejar, e esse será coroado na celeste alegria. Mas,
os covardes e traidores serão rejeitados.”
Vivien falou com ufania e nobreza. Ao ouvi-lo, todos abandonam seu temor,
sentem-se reconfortados, erguem a cabeça e exclamam:
— “Senhor Vivien, nós vos juramos, pela Lei que pregaram os Apóstolos de Nosso
Senhor, que jamais vos deixaremos enquanto viverdes!”
— “E eu vos juro, pela caridade de Deus quando sofreu por nossos pecados, que
jamais vos abandonarei por covardia! Armai-vos, pois! Em breve teremos batalha.”
E os sete filhos dos condes prometem não separar-se durante a melée.
Eis que a frota sarracena recolhe suas velas e joga suas âncoras em meio a horrendos
clamores, e de cada navio desce uma multidão armada.
Vivien lança um olhar sobre sua gente; eles esperam, firmes nas selas, com os
escudos embraçados e as lanças erguidas.
— “Meu Deus — implora Vivien — cuidai de nossas almas e recebei-as; quanto aos
corpos, será como Vós quiserdes.”
É segunda-feira, hora de vésperas. Começa então a batalha da qual ninguém se
esquecerá jamais.
As três cargas da cavalaria católica
Por três vezes Vivien reúne sua mesnada sobre as dunas, pois não podem empurrar
os pagãos até o mar.
Na primeira vez, Vivien vê os arqueiros sarracenos na costa, os mortos que jazem
aqui e acolá, atravessados por compridas flechas, os cavalos sem dono e os feridos que
gemem sob seus escudos. Ó Deus! Quanto luto na França por todos esses cavaleiros que
tombaram!
Vivien conta os que o rodeiam: não tem mais de dois mil escudos para sustentar a
batalha!
— “Senhores — diz ele — vede vossos irmãos que os árabes mataram de longe,
como felões que são. Vinguemos os mortos enquanto estamos vivos. Montjoie!”
E todos o seguem.
Na segunda vez, Vivien percebe, através das fileiras de arqueiros, os cavalos que
chegam à praia. Ele vê os seus em torno de si, cobertos de feridas, e conta-os com
angústia. Ai! Para sustentar a batalha, não lhe restam mais de mil escudos!
— “Irmãos — diz ele — o que farei por vós? Nenhum médico na terra poderia vos
curar. E por que iríeis morrer em vossos leitos? Nenhum mártir terá mais honra do que
aqueles que em Aliscans cairão hoje por Deus!”
— “À bênção de Deus!” — respondem eles, e esporeiam seus cavalos.
E na terceira vez, o próprio Vivien sente-se tão cruelmente ferido que desce do
corcel. Suas entranhas pendem fora do corpo e ele as sustenta com a mão esquerda,
invocando a Santa Maria:
— “Santa Maria, Mãe de Deus, protegei-me para que não me matem os felões
sarracenos!”
Mas imediatamente se arrepende:
— “Falo como insensato, ao pensar em preservar o meu corpo. O Senhor Jesus
deixou torturar o seu por nós. Senhor, não tenho o direito de pedir-Vos que me livreis da
morte, pois Vós não tivestes misericórdia de Vós mesmo. Fazei somente que eu possa
rever mais uma vez o conde Guillaume, meu senhor.”
Em torno dele congregam-se os guerreiros restantes. Não há um que não tenha em
sua mão a sangrenta espada e sob seu corpo a sangrenta sela.
— “Vivien, senhor nosso — dizem eles — se voltais a atacar, nós voltaremos; se
combateis, nós combateremos. Tudo o que fizerdes, nós o faremos.”
— “Agradeço-vos, meus irmãos” — responde Vivien.
Ai! Quinhentos escudos para sustentar a batalha!
Ele chama então o cavaleiro Gérard e diz-lhe:
— “Amigo Gérard, estais vós são de corpo?”
— “São e íntegro.”
— “Tendes boas armas?”
— “Senhor, tão boas quanto possam sê-lo as de um homem que acaba de combater
e que está pronto para voltar ao combate.”
— “Como está o vosso cavalo?”
— “Ferido está, mas não cede.”
— “E a vossa coragem?”
— “Jamais esteve tão forte.”
— “Amigo Gérard, ouso implorar-vos: ide onde está o conde Guillaume, para que
ele nos socorra neste doloroso perigo.”
— “Oh! Como me entristece o deixar-vos!”
— “Calai-vos, guerreiro! Não faleis assim!”
E assim separam-se os dois amigos, na segunda-feira, à hora de vésperas.
Assim que Gérard sai do campo das dores, seu bom cavalo cai morto. O guerreiro
caminha apoiado em sua espada, enrubecida de sangue, do pomo até a ponta.
Vivien está ferido, e eis que desmaia. Quando volta a si, os francos dizem:
— “Senhor, estais cruelmente ferido; permanecei aqui e repousai, enquanto nós
combatemos.”
— “Senhores — responde Vivien — sinto a morte que me golpeia; meus olhos se
turvam, mas só morrerei depois de vésperas, e quero fazer o inimigo pagar caro as nossas
feridas. Aquele pois, que me ajudar a montar em meu corcel, pendurar-me o escudo ao
ombro e colocar-me a espada na destra, esse será meu amigo.”
— “Senhor Vivien, nenhum de nós o fará!”
— “Cavaleiros, eu vo-lo ordeno! Se eu morrer em plena melée, serei coroado no
Paraíso, mas se me deixardes aqui, o pecado recairá sobre vós.”
Eles o erguem então em seu cavalo, amarram-no à sela, põem-lhe as rédeas na mão
esquerda e a espada na destra. O próprio Deus o sustenta e o impede de cair.
— “Atiremo-nos contra os pagãos! — exclama Vivien — Não vedes em torno de
nós os Anjos que levarão as nossas almas? São Miguel as espera hoje para dar-lhes grande
honra.”
Os sarracenos uivam e gritam, lançando sobre eles dardos e flechas. Vivien está
ferido, mas só cairá quando Jesus assim o quiser.
Monstruosos e negros ginetes rodeiam-no como demônios, empunhando suas
maças; Vivien faz revoar sua grande espada, mas está preso num cerco intransponível e
reza:
— “Meu Deus, Filho da Virgem, não permitais que entre em meu coração o desejo
de recuar um passo! Por vossas santas bondades, dai-me a graça de guardar o meu voto!”
Perto dele está o conde Bertrand, recuando a cada golpe recebido. Vivien brada:
— “Montjoie!, cavaleiro!”
Bertrand o escuta: seu coração se fortalece, atira-se contra o cerco dos felões,
fende-o, abre uma clareira a golpes de espada e liberta Vivien. Todos cobertos de sangue,
os dois guerreiros se abraçam.
— “Senhor — diz Bertrand — não vos abandonarei enquanto estiver vivo e com
minha espada na mão.”
E eis que em torno deles reúnem-se os outros seis filhos dos condes, acorrendo em
meio aos clamores da batalha, chamados pelo brado de guerra. Dez mil sarracenos os
cercam; Vivien invoca os dois grandes santos da Bretanha e do Reno: São Miguel e São
Herbert. Verdadeiramente, o conde Vivien é um mártir!
Mas ele perde dez homens dos vinte que lhe restavam. Ai! Em meio ao grande
tumulto, ele vê seus cavaleiros caindo um após outro. Os pagãos não deixam um só com
vida.
Vivien está só, com seu escudo.
Já não pensa mais em defender-se, mas somente em golpear: ergue sua grande
espada com as duas mãos, desferindo terríveis cutiladas em todas as direções, e abate uma
centena de inimigos. Seus golpes fendem os sarracenos de alto a baixo, e sua espada
penetra no chão.
— “Santa Maria, Virgem e Mãe, enviai-me o conde Guillaume, meu senhor” —
Esta é a oração que recita o jovem guerreiro na melée.
Um árabe, montando um rápido cavalo, avança contra ele e atira-lhe o dardo que
traz na mão direita. A arma se crava em seu flanco e faz saltar trinta malhas da loriga.
Vivien tem uma grave ferida da qual não mais será curado.
Leva a mão ao flanco, sente a haste e extrai o dardo de seu corpo; golpeia o pagão
nas costas e crava-lhe a arma nos rins. De um só golpe o matou.
— “Sarraceno maldito! — exclama o jovem Vivien — jamais te gloriarás de haver
morto um guerreiro franco!”
E retoma a espada para continuar o combate.
A agonia de Vivien
O calor é forte e ele sofre o tormento da sede; o claro sangue escorre de seus lábios
e de suas feridas. No espaço de quinze léguas não há rio nem fonte, mas só a água salgada
das ondas do mar. Entretanto, no meio da planície corre um riacho maculado de lama,
sangue e miolos. O herói corre e, inclinando-se, bebe aquela água.
Os inimigos fazem chover sobre ele os golpes de lança; só nas pernas e nos braços
recebe mais de vinte feridas. Mas eis que se reergue como um javalí feroz. Tantas flechas
se cravam em seu escudo que o conde não pode mais sustentá-lo e o deixa cair a seus pés.
As lanças desgarram sua cota de malha; as suas entranhas pendem fora de seu
corpo, arrastando pelo chão, e, como sente próximo o fim, pede a Deus misericórdia.
Com a mão direita empunha a espada, ensanguentada do pomo até a ponta. Tomado
pelos estertores da morte, ele caminha sustentado por ela, e reza:
— “Deus verdadeiro de glória, defendei-me, para não ser tentado a recuar um passo
na batalha!”
Um bérbere golpeia a cabeça do nobre cavaleiro com seu dardo de ferro. Vivien cai
de joelhos, exclamando:
— “Deus nosso Pai, Rei glorioso e forte, não permitais que eu consinta no
pensamento de recuar um passo, por medo da morte.”
Mas eis que ao longe aparece um cavaleiro, no alto das colinas, seguido por uma
multidão de estandartes. Os cem mil pagãos o reconhecem: É o conde Guillaume com
seus guerreiros!
A batalha torna-se terrível e os sarracenos cobrem a praia. O conde Guillaume,
cheio de angústia, procura seu sobrinho Vivien. Um de seus homens diz:
— “Senhor, a batalha de Roncesvales não foi nada em comparação com este
combate. A planície, as dunas e o mar estão cobertos de infiéis. Como abriremos o
caminho?”
— “Com a espada! — responde ele — Eu vos encomendo todos ao Filho de Santa
Maria. Segui-me!”
— “Montjoie!” — bradam eles, lançando-se ao ataque.
Tanto resplandece a espada do conde que os pagãos se afastam. No caminho de
Guillaume as selas dos sarracenos se esvaziam; ele golpeia de ponta e de corte, sem saber
onde o leva seu cavalo, e chega assim à praia do mar. Seu elmo pende às suas costas, sua
loriga está desgarrada, seu escudo despedaçado e sua espada fendida. Ele não cessa de
combater, e seus braços estão cobertos de suor e de sangue.
Por fim, ei-lo que entra num pequeno vale que vê diante de si, coberto de bosques e
arbustos.
A noite desce e os sarracenos deixam de atacá-lo. Guillaume, cheio de amargura e
de cólera, avança entre armas despedaçadas e corpos talhados. Subitamente, reconhece o
escudo de Vivien e, não longe dali, à beira das águas, percebe o jovem cavaleiro, jazendo
por terra.
A primeira comunhão
Vivien tem suas brancas mãos cruzadas sobre o peito; sua espada repousa com ele.
O sangue escorre de sua face e inunda suas armas; seu corpo exala aroma de incenso.
Guillaume detém seu cavalo, apeia-se, ajoelha-se e fita-o longamente.
— “Meu nobre sobrinho Vivien, nenhum homem criado por Deus teve tanta
coragem. Tu não te orgulhavas de tuas proezas, mas eras doce e humilde, e contra os
sarracenos eras intrépido e conquistador.
“Jamais cobravas resgate por eles: quando os prendias, arrancavas-lhes a alma do
corpo, que é o que se deve fazer.
“E por não quereres fugir diante deles, eis que te mataram, segunda feira, à hora de
vésperas!
“Ah! Por que não cheguei antes, quando ele ainda vivia? Ele teria recebido o
Santíssimo Sacramento, que trago comigo, e eu teria nisso imensa alegria! Senhor Deus,
dignai-Vos receber sua alma, pois é por Vós que ele morreu em Aliscans!”
O conde Guillaume toma o jovem guerreiro em seus braços, e eis que sente a vida
pulsar em seus flancos.
— “Vivien — diz ele — fala-me! Vivien, meu sobrinho e meu par! Tua vassalagem
não foi longa. Eu te armei cavaleiro com grande honra, junto com cem outros, por amor
de ti!”
Guillaume esconde o rosto entre as mãos, e chora com imensa dor:
— “Vivien, que Deus faça mercê à tua alma e às de todos os que jazem contigo,
mortos ou moribundos, tombados por seu serviço!”
Vivien escuta os lamentos de seu tio e, cheio de compaixão, exala um suspiro e
volta para ele a sua face.
— “Ó Deus — diz Guillaume — eis que fui atendido!”
E aperta o jovem em seus braços.
— “Nobre sobrinho, vives tu, pela caridade divina?”
— “Sim, senhor tio, mas o meu peito está todo aberto pelos golpes.”
— “Já comestes do Pão consagrado?”
— “Hélas! Muito desejava prová-Lo antes de morrer, mas agora é tarde. Se Deus
assim o quiser, não serei condenado por isso, pois Ele conhece a minha vontade.”
— “Saibas que eu O trago aqui. Recebe-O com toda humildade, em nome da divina
Trindade.”
— “É o meu desejo mais ardente. Vejo que o Senhor me visita.”
Guillaume lava suas mãos na água vizinha, e retira de sua teca o Pão consagrado,
dizendo:
— “Prepara-te agora para confessar teus pecados. Sou teu tio, e não tens parente
mais próximo, fora o Senhor Deus nosso Pai. Eu serei teu capelão e teu padrinho.”
— “Erguei minha cabeça, senhor. Sim, por amor de Deus, dai-me a comer desse
Pão Sagrado, pois vou morrer. Apressai-vos, meu tio, pois falha-me o coração.”
Guillaume sustenta a cabeça de Vivien, e o jovem confessa os pecados que pode
recordar:
— “Uma coisa me atormenta: eu fiz outrora, no dia da Páscoa, o voto de jamais
recuar diante dos sarracenos, mas hoje eles tanto me assaltaram que tenho grande temor
de haver faltado à minha promessa.”
— “Não deves temer, Vivien” — responde Guillaume, e põe-lhe nos lábios a
sagrada Hóstia.
Morte de Vivien
———————
A Batalha de Doriléia
O calor era tórrido e esgotante. Pelo péssimo caminho que se embrenhava rumo à
Ásia imensa, estendia-se uma intérmina coluna de cavaleiros, infantes e carroças.
Durante dois dias, este formidável exército repousou em Lafké, diante da ponte que,
neste lugar, transpunha o rio Gallo. Era indispensável recompor as forças dos homens e
das cavalgaduras em torno de um curso de água, antes de enfrentar os rigores de uma
região pedregosa, acidentada e hostil. Os cruzados decidiram separar-se em dois corpos a
fim de — precisa Albert D'Aix — “ter mais espaço e liberdade para acampar e assim
encontrar mais facilmente abastecimentos e forragem para os cavalos”.
Um corpo, composto pelas tropas de Bohémond de Tarento, Tancredo, Roberto de
Flandres, Roberto de Normandia e Estevam de Blois, partiu primeiro. O outro, com
Godofredo de Bouillon, Raimundo de Toulouse e Hugo de Vermandois, pôs-se em
movimento pouco depois e seguiu um caminho quase paralelo, ligeiramente mais ao sul.
Os turcos da Ásia Menor, havendo concentrado todas as suas forças sob as ordens
do Sultão de Nicéia, procuraram tirar proveito desta divisão. Informados por seus espiões,
conheciam eles o caminho tomado pelos cruzados e decidiram interceptá-los.
Acreditavam que não seria difícil exterminar aquele pesado exército franco, porque até
aquele momento ninguém havia podido resistir aos inesperados e fulminantes ataques da
cavalaria turca.
Na tarde do dia 30 de junho de 1097, o exército de Bohémond acampou no vale de
Porsuk, num lugar chamado Doriléia, denominado pelos cronistas da Cruzada de “campo
das flores”.
No dia seguinte, às oito horas da manhã, a cavalaria turca precipitou-se,
subitamente, sobre os cruzados. A violência do ataque foi tal que Bohémond,
surpreendido em plena marcha, apenas teve tempo de reagrupar apressadamente sua tropa
para resistir às ondas avassaladoras dos batalhões muçulmanos que o rodeavam por todas
as partes. A surpresa havia sido total.
“Os turcos — narra o Cronista Anônimo da Cruzada, testemunha ocular deste
drama — nos cercavam por todos os lados, combatendo, lançando dardos e flechas a
uma distância maravilhosa. E nós, ainda que incapazes de resistir e sustentar o peso de
um tão grande número de inimigos, precipitamo-nos ao seu encontro com um só
coração”.
O duque da Normandia, arrancando das mãos do que o levava o seu estandarte
branco com bordados de ouro, lançou-se ao meio dos muçulmanos gritando: “Deus o
quer! Deus o quer! Venham comigo! Normandia!
A presença de Bohémond e do duque da Normandia, os esforços de Tancredo, de
Ricardo, príncipe de Salerno, e de Estevam, conde de Blois, reanimam os cruzados; a
enérgica coragem dos campeões da Cruz resiste ao numeroso exército turco.
Entretanto, em vão os francos, dizimados pela contínua chuva de flechas, tentaram
utilizar a terrível arma de guerra dos exércitos cristãos: a carga cerrada de cavalaria. O
inimigo evitava o contato e afastava-se quando os cruzados avançavam.
Pela primeira vez notavam-se as diferenças que, ao longo de todas as expedições
para o além-mar, deviam marcar a tática de um e outro campo. Do lado dos francos, uma
massa de cavaleiros e infantes revestidos de ferro, avançando num só corpo: fortaleza
inabalável. Do lado dos turcos, uma tropa ligeira, móvel, aproveitando as qualidades de
um corpo de arqueiros sem par, acossando por ondas sucessivas, evitando o
corpo-a-corpo, dizimando um adversário estático.
Foi só quando os guerreiros francos começaram a ficar visivelmente esgotados por
este jogo mortífero que os turcos, desembainhando as cimitarras, aproximaram-se a todo
galope. Os cruzados, repelidos até onde se encontravam as próprias carroças e bagagens,
protegeram-se ao abrigo delas e resistiram com feroz obstinação.
Porém, tal era a multidão dos assaltantes que os guerreiros da Cruz não poderiam
deixar de sucumbir...
Roberto de Paris caiu mortalmente ferido, depois de ter visto perecer em redor de si
quarenta dos seus companheiros de armas. Guilherme, irmão de Tancredo, jovem de uma
impetuosa bravura, rolou na areia ardente, varado de flechas.
Ao longo de toda a manhã, a hoste cristã curvou-se sob os golpes, ameaçando
quebrar-se a qualquer instante.
“Apertados uns contra outros como ovelhas num curral — conta Foucher de
Chartres — permanecíamos imóveis. No ar, ressoavam os gritos ferozes dos assaltantes e
os clamores dos feridos. Perdendo a esperança de escapar vivos, recomendamo-nos à
misericórdia Divina. Havia entre nós quatro bispos e muitos sacerdotes. Todos revestidos
de paramentos brancos cantavam e rezavam, e uma multidão dos nossos precipitava-se
aos seus pés para confessar seus pecados”.
A Cruzada, após o primeiro embate, concluiria num espantoso desastre?
Eram duas da tarde e um sol inclemente abrasava os elmos, tornando-os
verdadeiras estufas. A tropa comandada por Tancredo, último recurso antes do hallali
final, estava a ponto de ceder quando de repente, surgida do alto das colinas vizinhas,
irrompeu na planície de Doriléia a cavalaria de Godofredo de Bouillon! Roberto o Monge,
a compara à águia precipitando-se sobre a sua presa.
Bohémond havia enviado ao duque de Baixa-Lotaríngia um mensageiro
encarregado de expor-lhe a má situação na qual se encontrava seu exército. Sem vacilar,
Godofredo mandara tocar as trombetas anunciando o combate e, deixando para atrás a
infantaria, havia-se lançado à rédea solta, à testa de cinqüenta cavaleiros, em direção a
Doriléia.
No momento decisivo, chegou ele pronto para sustentar as extenuadas tropas
normandas. “Um sol deslumbrante dardejava seu raios — narra Albert D'Aix. — Seu
esplendor fazia reluzir os escudos dourados e as cotas de malha. Os pendões e insígnias
fixados nas lanças, brilhantes de gemas e de púrpura, faiscavam...”
Os batalhões muçulmanos que receberam o impacto do primeiro choque daquele
punhado de cavaleiros, foram como atingidos por um raio.
“Desgraça para aqueles que são alcançados pelos francos! — exclama Roberto o
Monge — Eram homens há poucos instantes e eis que agora não são mais que cadáveres!
A couraça e o escudo não conseguiram protegê-los, e o arco e as flechas de nada lhes
serviram! Os moribundos gemem, afundam a terra com seus calcanhares ou, caindo para
frente, cortam a erva com os dentes”.
Poucos instantes depois, apareceram Hugo de Vermandois, Adhemar de Monteuil e
Raimundo de Toulouse, à frente de todo o corpo do exército, cobrindo as montanhas e
enchendo os ares com toques de trombetas e brados de guerra.
Com os estandartes desfraldados, quarenta mil guerreiros avançavam em ordem
empunhando suas armas. Este magnífico espetáculo lançou o terror no meio dos infiéis.
Rapidamente, o enorme exército cristão organizou-se para cercar a cavalaria turca numa
enorme armadilha: Normandos e Provençais constituíram a ala esquerda; Godofredo de
Bouillon, Roberto de Flandres e Hugo de Vermandois a ala direita. Adhemar de Monteuil,
contornando as posições muçulmanas, fechou completamente a rede.
Vendo seu exército cercado e varrido por furiosas cargas de cavalaria, o sultão
ordenou a retirada. Entretanto, não foi aquilo mais que uma espantosa debandada.
“Os inimigos fugiam a uma velocidade extraordinária até suas tendas, mas não
conseguiram permanecer neste local durante muito tempo. Retomaram a sua fuga e nós
os perseguimos, matando-os no decorrer de todo o dia. Se o Senhor não estivesse
conosco nesta batalha, se Ele não nos houvesse enviado o exército de Godofredo de
Bouillon, nenhum dos nossos teria escapado, porque desde a hora terça até a hora noa
[das 9 da manhã às 3 da tarde] o combate foi ininterrupto”.
No dia seguinte — porque a caça ao homem havia durado a noite inteira — fez-se a
contagem dos mortos e o inventário dos tesouros que continham as tendas do
acampamento inimigo, “feitas com uma arte e uns adornos maravilhosos”. “Com as
armas e outros apetrechos que se conquistaram, equiparam-se e vestiram-se muito bem
todos aqueles que não estavam bem armados”.
O número de muçulmanos mortos na batalha ou durante a fuga foi calculado em
mais de vinte mil pelas crônicas da Cruzada. E quatro mil guerreiros de Cristo tiveram a
glória de entregar suas almas naquele dia memorável.
A jornada do 1º de julho de 1097 anunciou ao mundo que uma força nova havia
surgido: a força dos guerreiros da Cruz! E pela primeira vez, os turcos seldjúcidas foram
derrotados e perderam a reputação de invencibilidade.
“Dois dias após a batalha — escreve Alberto d'Aix — os infiéis fugiam ainda, sem
que ninguém os perseguisse, a não ser o mesmo Deus”“.
Aos árabes que lhe censuravam a fuga dizia o sultão Kilidj-Arslan: “Vós não
conheceis os francos, vós não lhes experimentastes a coragem; essa força não é humana,
mas celeste ou diabólica!”
E por sua vez, o cronista da Gesta francorum escreveu: “Imaginavam eles
assustar-nos com a saraivada de suas flechas, como haviam atemorizado os armênios, os
sírios e os gregos. Mas, com a graça de Deus, nunca prevalecerão sobre nós!”
———————
Assim morreu Bayard
Uma poderosa aliança formava-se na Itália nesse ano de 1524 contra a França.
Carlos V tinha prometido seu apoio aos príncipes italianos e lhes enviou doze mil
soldados. De outro lado, os venezianos tinham engajado os melhores mercenários.
O marquês de Pescara, Ferdinando Francisco de Avalos, comandava o exército
espanhol, no qual os arcabuzeiros bascos distinguiam-se por uma tática ousada: com
muita boa pontaria, eles atiravam unicamente nos chefes, os atingiam no primeiro tiro de
arcabouço e fugiam a toda pressa, antes que alguém tivesse tempo de responder a seu tiro.
Entre os coligados, tinha até um príncipe francês, o condestável de Bourbon, que
tinha passado ao serviço dos alemães.
Como calcular o número desse exército? Os melhores capitães alemães e italianos o
comandavam. Tinham tudo para ganhar: dinheiro, munições, a superioridade numérica e,
também, a excelência dos combatentes que os capitães tinham selecionado um por um.
De seu lado, o vice-rei francês de Nápoles e o marquês de Marignan tinham trazido
seus esquadrões. Mas às poderosas tropas inimigas, eles só podiam opor regimentos
insuficientes, mal alimentados e com poucas munições.
Além disso, estavam mal comandados, pois, desde o inicio das operações, Bonnivet
e Bayard tinham se enfrentado.
O almirante Bonnivet, orgulhoso de seu título, não admitia que alguém discutisse
suas instruções. Assim, o bom cavaleiro Bayard, ficou magoado por servir de subalterno
às ordens de um cortesão que nunca tinha sido provado na guerra, e que tinha acumulado
os mais graves erros.
Bonnivet era corajoso, mas nesta guerra em que ele devia enfrentar os melhores
estrategistas da época, a coragem não podia substituir o talento. Ele subestimou
irrefletidamente as forças de seus adversários que tinham montado um dos exércitos mais
poderosos da época. Enfim, cometeu o erro, imperdoável para um comandante, de não
compreender o valor do capitão que servia sob suas ordens, Bayard.
Os erros de Bonnivet
Foi um engano de Francisco I, rei da França, deixar a Bayard num posto subalterno
e, ainda mais, de tê-lo colocado ao lado de um homem frívolo, vaidoso e ressentido,
decidido a comandar como mestre absoluto, sem receber conselhos de ninguém.
Em lugar de pedir as sugestões de Bayard, que tinha tantas vezes combatido na
Itália, deu-lhe suas instruções com uma empáfia, como se o tivesse feito para um jovem
oficial acabado de chegar de Paris.
O caso de Robecco mostrou bem as dissensões entre Bonnivet e Bayard. Foi
necessário que a incompetência e o autoritarismo do almirante chegassem ao cúmulo, para
que o cavaleiro, sempre tão respeitoso e fiel à disciplina, ousasse nesse dia discutir uma
ordem.
Bonnivet tinha lhe dado a ordem de trancar-se nessa pequena cidade com duzentos
soldados. Bayard observou que para defender Robecco seria necessário a metade do
exército francês.
— Portanto, Monsenhor — acrescentou ele —, eu vos suplico que penseis bem onde
vós quereis me enviar.
A discussão esquentou-se rapidamente e foi com grande desgosto que o mais fraco
foi então ocupar Robecco.
Tudo aconteceu como tinha sido previsto. Os inimigos concentraram-se em torno da
cidade, cada vez mais numerosos. Bayard escreveu a Bonnivet e pediu socorro: o almirante
ficou surdo aos mais prementes apelos.
A guarnição de Robecco era tão fraca que eram necessários todos os homens
disponíveis para fazer guarda. Bayard não saia das muralhas. Era visto andando pelos
caminhos de ronda, noite e dia, esgotado pela falta de sono, tremendo de febre...
Durante esse tempo, os espanhóis de Avalos, conduzidos pelos habitantes da região
que conheciam os caminhos seguros, tomavam conta de todas as proximidades da cidade.
Uma noite, enfim, em que o bom cavaleiro, caindo de cansaço e de doença, tinha se
deitado para dormir um pouco, os vigias gritaram o alarme.
Bayard levantou-se de um salto, e como sempre dormia revestido de sua armadura,
enfrentou o adversário.
Mas era tarde demais. Os tambores dos espanhóis faziam grande barulho nas ruas da
cidade.
— Salvemos as pessoas, se for possível! — disse Bayard.
Recuou até Abbiategrasse, onde estava acampado a maior parte das forças de
Bonnivet.
Esse fracasso não diminuiu a arrogância de Bonnivet, que não queria depender de
ninguém... Perdeu-se Vercelli, depois Novara.
Essas e outras decepções fizeram com que as tropas, já mal-humoradas, ficassem
indispostas com essa absurda campanha. Bonnivet manobrava a esmo, pouco ao par das
estradas e dos rios.
Foi assim que ele acabou conduzindo suas tropas ao rio Sésia, em plena enchente
pelas neves dos Alpes, numa noite de tempestade. Os cavalos perdiam pé e se afogavam
na correnteza. Os homens procuravam seus chefes. A tempestade impedia de escutar as
ordens, de reconhecer as bandeiras...
Quando o resto do exército que tinha podido sair são e salvo da torrente passou do
outro lado do rio, encontraram em boa ordem os cavaleiros e soldados de Pescara, prontos
para atacar.
Foi ali que um tiro de arcabouço quebrou o ombro de Bonnivet. Sentindo que
perdia a vida com seu sangue, o almirante fez chamar Bayard.
— Monsenhor de Bayard, disse-lhe, vós vedes o meu estado. Eu vos entrego o
comando de todo o exército do Rei. Em nome da honra da França, eu vos conjuro de
salvar a artilharia e as insígnias, que entrego inteiramente a vosso valor e a vossa boa
conduta.
Era bastante tarde para reconhecer seu erro, mas Bayard não era rancoroso. Quando
viu seu rival assim desfeito, perdoou-lhe todas as mesquinharias e respondeu:
— Monsenhor, eu teria querido que vós me tivesses feito essa honra numa ocasião
em que a fortuna nos fosse menos contrária. Mas, não importa, eu vos dou minha fé de as
defender tão bem que elas não cairão no poder dos inimigos, enquanto eu estiver vivo.
A última batalha
———————
O BATISMO DE SANGUE DE NUNO ÁLVARES
Este moço, que aos treze anos de idade, Leonor Teles, pasmada do seu ardimento de
criança, por suas mãos armou cavaleiro (servindo-se do pequeno arnês do Mestre de Avis) e
depois andou por morador em casa de el-rei, como escudeiro da rainha - tem agora vinte e
dois anos. De pouca figura, ruivo como cenoura, rosto afiado, face seca, de um vermelho
sujo de sardas, onde, aqui e acolá, no buço e no mento, punge uma penugem de faúlhas de
oiro - todo o valor expressivo está na testa alta e larga, na boca miúda de lábios de reza, e no
sonho pertinaz de dois estranhos olhitos azuis, cândidos e enérgicos, que, no fundo das
órbitas, concentram pureza e poder. Desde tamanhinho - vergonhoso e calado - vive para si,
vive para dentro. Parece calmo; súbito, explodem naquele corpo estreito rebentinas bravas, e
todo o seu místico ser se agita, se transforma em ação que derrui com violência e edifica
como beleza. É a piedade feita energia; a oração feita espada. A idéia de bem servir seu
reino e seu rei é nele obcecante; e este sentimento, feito de muitos sentimentos, enche-o,
exalta-o.
Assim pensando e sentindo, esta alma nobre vive, por esse tempo, esmagada nas suas
aspirações e ofendida pelo que vê em volta de si; Nuno Álvares é violentado a assistir, de
braços cruzados, aos enxovalhos cuspidos sobre a sua amada terra, que ingleses, vindos para
a defender, saqueiam e castelhanos já pisam para a possuir e arrebatar. Freme. Contorce-se.
Derranca-se. Desde o inverno, busca lutar e não lho permite o irmão; requesta o inimigo para
duelos, dez contra dez - e proíbe-lho o rei. Tanto empacho anoja-o. Nuno Álvares vive
cerrado num colete de varas de ferro. O sangue ferve-lhe. Porque o não deixam pelejar?
Pouca gente? Os seus trinta companheiros minhotos, “homens para feitos”, valem por
trezentos; e ele - por um exército! Nuno Álvares sente que tem em si a graça de Deus que o
esclarece, incendeia e o atira, de lado semblante transfigurado, para os chãos das batalhas,
onde os triunfos acorrerão a ele. Santos e arcanjos, descidos do Céu, guerrearão a seu lado.
Guerra Santa! Esta fé dura e cega. É um enviado de Deus e tem uma obra a realizar. Não o
tolham. Furação de aço e de fogo, tudo varrerá, tudo purificará. Deixem-no!
Os castelhanos, com suas oitenta galés ancoradas no Tejo, vem em batéis, amiudadas
vezes, à cidade, roubar o que lhes apetece, afrontando a todos com suas visagens escarnidas,
suas armas arrogantes, enxovalhando, por atos e ditos, os alevantados corações portugueses.
Uma vergonha! Nuno Álvares, rugindo, não se contém. Reúne os seus chegados e, em
segredo, combina com eles uma cilada ao inimigo, que precisa de tremenda lição!
Na manhã do dia seguinte, à ponte de Alcântara, os castelhanos, segundo seu costume,
tem desembarcado e roubam uvas numa vinha, quando Nuno Álvares e os seus, que, ocultos
os espiam por detrás de valados, de repente lhes caem em cima, à lançada, desbaratando
neles, obrigando-os a debandar, espavoridos, pelo outeiro abaixo - a correr, até à riba onde,
precipitadamente, se atiram à água, fugindo a nado para as suas naus. Mas já os outros
castelhanos, que estão a bordo e de longe vêem o que se passa, se armam à pressa, saltam
nos batéis e remam para a margem. Vão castigar com a morte esse punhado de portugueses
atrevidos. Os castelões sãos mais de duzentos; os portugueses, uns cinqüenta somente, entre
besteiros, homens de cavalo e de pé. Embora! Firmes, esperam. Os outros avançam. Nuno
Álvares exulta de alegria. A sua alma enche-se de sol. Vai, enfim, pelejar!
- Amigos - grita aos companheiros, com voz estrondosa e augusta - por nossa honra!
A eles, a eles! Deus é conosco.
Mas os outros replicam-lhe prudentes:
- Mestre, os castelhanos são dez vezes mais do que nós.
- Não importa! - bradou, de novo. Nuno Álvares, com voz vinda do fundo do coração,
vinda de outros mundos. - A eles, a eles! Segui-me. Fazei o que eu fizer. Serei o primeiro.
Sejamos um!
E ia avançar; mas, vendo que os companheiros se não moviam, Nuno Álvares afastou-se,
ajoelhou em terra e, todo dentro de si, orou, de mãos postas, a São Jorge. A sua alma mística
viveu esse rápido momento em luz celeste, iluminando-se de puras claridades, temperando-se
de energias sobre-humanas, despertas, no fundo do seu ser, pela inspiração sublimada. Depois,
montou de um pulo, firmou-se na sela de alto arção, sofregou as rédeas, esporeou rijamente o
corcel nervoso couraçado de testeira e peitoral de ferro, pôs no inimigo e olhar resoluto, e, num
paroxismo de intrepidez (como se fora a própria chama do espírito, armado e alado, quem
galopasse), atirou-se numa arrancada doida, num clarão, numa transfiguração - o corpo em
fogo, a alma em luz, nos olhos um rir de divina alegria, na boca uma flor de divina reza -
atirou-se para esse extenso e espesso sedeiro de duzentas lanças em riste, contra o qual a sua
virginal armadura de aço e de fé se chocou ardidamente. A espada de Nuno Álvares, vibrada de
trás das costas, fende para a direita, fende para a esquerda, fende de través, ataca de chuço,
espedaçando capelos, talhando broquéis, esmigalhando lorigas - sempre brandida por esse
braço de ferro que uma alma religiosa vitaliza incendiando-o de coragem, de virtude, a romper
caminho, a abrir clareiras de sangue em volta de si - a limpar de inimigos a terra santa da pátria
adorada.
Seu cavalo empinado, com olhos em chama e narinas em brasa, lampejando na testeira,
atira-se aos galões, esmagando corpos caídos por terra, ferindo lume, com as ferraduras bravas,
nos arneses, nos escudos, nos ferros das lanças partidas que cobrem o chão. A espada
miraculosa de Nuno Álvares continua ingente, descarregando golpadas de fogo. Sobre ele -
sobre a sua intemerata armadura - ressoam os golpes dos montantes, os encontros das lanças, as
pancadas das pedras, e os arremessos dos virotões. O cavalo, lanceado no peito, no pescoço,
nas ancas, a espadanar sangue, cai para morrer; e, no espernear da agonia, engancha um ferro
numa solha da armadura de Nuno Álvares que, tendo caído com ele, fica preso no corcel. Por
terra, Nuno Álvares brande sempre a espada furiosa e religiosa.
O desastre é fatal; a morte iminente. Mas já no longe surge uma chusma de
companheiros, acorrendo. Chegam. Desprendem-no. Nuno Álvares levanta-se de um pulo.
Toma nas mãos, cheias de sangue, uma das muitas lanças abandoadas que jazem em volta dele;
e, à frente dos seus, alucinado, corre à lançada os castelhanos, derrubando-os, esmagando-os,
matando-os. O inimigo foge. O campo fica varrido. Vencera!
E este foi o seu batismo de sangue - sangue que, depois na ardência das batalhas,
efervesceu e explodiu em bravuras sublimes!
Fatos e elogios sobre Scanderbeg
Em certo dia do ano de 1446, chegava à brilhante Roma dos Papas, um guerreiro ilustre
e envelhecido, a quem, entretanto, não se concedera a homenagem da mais diminuta escolta.
Vinha só.
Passou, à cavalo, ante a indiferença do povo, pelas ruas seculares, adornadas de belas
igrejas e nobres palácios. Tudo à volta parecia estranhar a inesperada figura daquele rude
cavaleiro que descavalgou ante a monumental Basílica de São João de Latrão.
Viu-se, então, que a idade não o abatia. Com a desenvoltura de um possante lutador,
jogou para trás a larga capa que lhe descia dos ombros até às botas guerreiras, armadas de
prateadas esporas, retinindo ao compasso de seu andar seguro. E um peitoril de aço, guarnecido
pela cruz dos cruzados, brilhou ao sol daquela Roma quieta e acomodada.
Um grande elmo, de viseira levantada, cobria-lhe em meio a face robusta. E naquela face
de linhas rígidas — como se a mão de Deus ali quisesse estampar a imagem da bravura — um
olhar dominador e puro, velado de tristeza profunda.
Foi assim que se apresentou na luxuosa sala de audiência papal. O recém-chegado
oferecia notável constraste com as pompas do lugar: ele era simples, era pobre, era o último
cruzado, era SCANDERBEG, O CAMPEAO E ESCUDO DA SANTA IGREJA!
As palavras que proferiu ante o Pai da Cristandade jamais serão esquecidas pela História:
“Depois de 23 anos de guerra incessante apresento-me aqui, só, sem os guerreiros que
me restam. Sou a Albânia fraca, esgotada por tantas batalhas, não tendo uma parte de meu
corpo que não esteja ferida... sobram apenas algumas gotas de sangue para derramar pelo
mundo cristão. Ah, vinde em meu auxílio, senão em breve desaparecerá para sempre o último
campeão de Jesus Cristo!”
Entretanto, não houve em Roma quem quisesse fazer-se cruzado. O dinheiro que o Papa
lhe deu não foi suficiente para ajudá-lo em todas as suas necessidades. Scanderbeg retornou à
sua terra desamparado, lamentando aquela paz profunda da capital do mundo, tão diferente da
devastação turca que por quase meio século era teatro o solo ensaguentado da sua Pátria.
O homem de guerra se retirou, novamente envolto pela solidão. Na realidade, uma
solidão aparente, porque não está só quem está com Nossa Senhora.
Scanderbeg sabia que em Scutari estava sua única esperança: a santa imagem de
Nossa Senhora do Bom Conselho. Diante desse milagroso afresco, o grande guerreiro
rezava, em todos os momentos difíceis de sua vida. Ali esteve sempre, sentindo a alma
penetrada de bençãos e ouvindo as palavras secretas e inefáves com que a santa imagem
animava sua vocação guerreira.
Ele recorda, desde os 9 anos, quando raptado pelos turcos, foi forçado a viver nos
ambiente depravados de Mafoma, era nela que ele confiava. Foi a devoção à Padroeira da
Albania que deu à sua juventude a perseverança na fé durante os terríveis anos de cativeiro.
Ele trazia em sua alma as marcas daquele olhar...
E por aquele olhar, desprezou afagos e venceu ameaças. Não cedeu nem mesmo
quado elevado a membro de elite dos janizaros, famoso esquadrão contituido tão somente de
cristaos pervertidos ao maometanismo.
Sua primeira batalha, aos 20 anos, foi uma dura prova de confiança.
Constituido Bey Generalíssimo do exército otomano, esse Príncipe marchava à frente
de 80 mil maometanos que deviam invadir a Hungria, defendida pelo valoroso magiar
católico João Huniade. Ei-lo assim, na penosa contingencia de lutar contra seu irmão na fé.
Os guerreiros da cruz formavam um exército esplendido: os elmos faiscavam, as
espadas luziam, as armaduras espelhavam, os pendões e estandartes esvoaçavam altivos e
violentos, como desejosos de logo entrar na guerra.
Ouviu-se, então, o torpear de milhares de cavalos e o bater confuso dos pés de
milhares de homens que faziam tremer a terra. O condestável Huniade deu a ordem de
ataque: brados de entusiasmo se elevaram e a pesada cavalaria dos cruzados se jogou em
furiosa investida, sob nuvens de flexas que cobriram o céu. Os melhores guerreiros
hungaros, com a terrivel espada erguida, se arrojavam contra a massa dos turcos fazendo
recuar suas fileiras que não podiam esquivar-se aos golpes do ferro inimigo.
Os cadáveres amontoados embargavam o passo dos vivos. Aproveitando-se da
confusão, o Bey Generalíssimo do exercito maometano, Principe Scanderbeg, passou para o
campo dos seguidores de Jesus Cristo e começou a combater lado a lado com o católico João
Huniade.
Ante a fúria desses heróis, o exército do sultão ficou separado em dois pedaços, com
uma grande fenda no meio, toda cheia de cadáveres, espezinhados pelas patas do cavalo de
Scanderbeg. Um comandante turco morria berrando, cravado na terra pela lança de Huniade.
Apesar de 5 vezes mais numerosas, as tropas turcas não tinham podido resistir ao
impeto dos cruzados: 30 mil muçulmanos jaziam mortos no campo de batalha.
A notícia da fuga de Scanderbeg chegou à corte turca, levantando a cólera do sultão.
Foram enviados 40 mil soldados para trazer de volta o fugitivo. Porém, o jovem principe se
encontrava sob a proteção de Nossa Senhora de Scutari, a Mãe do Bom Conselho!
Reuniu Scanderbeg apenas 15 mil fiéis, dispostos a guardar a soberania de sua santa
religião. Entusiasmados pelo principe, aquele exército mal armado e mal vestido, possuia o
mais importante: a confiança em Nossa Senhora.
A batalha foi sangrenta. Talvez a mais sangrenta de toda a História albanesa. De um
lado, o ódio maometano, aliado à estrategia de um exército poderoso; de outro a fé, apoiada
em escassos recursos. O brado de guerra de Scanderbeg, ressoava, altivo e furioso. O
relampejar do seu ferro claro, enchia o ar de faicas por entre o esvoaçar de cranios e braços.
Tanto foi o sangue que correu, que a terra tornou-se lamacenta e as patas dos cavalos se
atolavam.
Os católicos albaneses, ao lutar sob a luz do gládio de Scanderbeg, tornavam-se
invencíveis. O exemplo de seu principe, enchia-os de ardor e arrostavam todos os perigos da
terra para matar e morrer por ele.
Para Scanderbeg a vitória não trazia sossego, nem comemorações festivas. Suas
batalhas entusiasmaram toda a Cristandade. Scanderbeg tornou-se o alento do povo, o animo
da luta, a certeza da vitória, o homem providencial, protetor de Scutari e o protegido de
Nossa Senhora.
Para o mundo muçulmano, seu nome causava consternação. O sultão reuniu um
exército de 200 mil homens, que ele mesmo em pessoa quis comandar contra o valoroso
chefe albanes.
Como nuvens de tempestade, os esquadrões do Islã cobriram a Albania. As fortalezas
mais bem defendidas, cairam uma após outra. E os poucos sobreviventes se reumniram em
Croja, a capital, onde uma fortaleza humana jamais cairia: Scanderbeg!
Com uma energia sobrenatural, ele lançava-se de maneira imprevista, de dia ou de
noite, no meio dos inimigos; cada um de seus soldados abatia 20 e sob sua espada —
brilhante como o fulgor de um raio — as cabeças dos muçulmanos caiam como flocos de
neve.
O exército do sultão diminuiu a tal ponto que o feroz muçulmano teve que retirar-se,
amargurado de dor e vergonha, perseguido pelos cristão que continuavam esse portentoso
massacre.
A Albania inteira quis se ajoelhar aos pés de Nossa Senhora em Scutari, para
agradecer tais vitórias. À frente deles, um heroi que tirava sua força da devoção, um humilde
principe que nada queria desta terra, o valoroso Scanderbeg, tão doce na paz como terrível
na guerra.
Scanderbeg devia morrer lutando. Não demorou a se aproximar sua derradeira hora.
Em seu leito de morte, confessou-se e recebeu o Santíssimo Sacramento. Os suores da
agonia, banhavam a face do guerreiro.
De repente, gritos terríveis: “os turcos! os turcos!” Ouvindo os alaridos, os olhos do
moribundo se entreabriram, seu rosto se reanimou, cessaram os suores da agonia.
Scanderbeg expulsou para longe de si a morte e foi levá-la aos inimigos da Cristandade!
O som triunfal de um trompete ecoou, solitário pela planicie imensa. Um cavaleiro
apareceu. Estava só. Seu fogoso corcel branco, escarvava a terra com fúria. E como uma
benção que pairasse sobre ele, o estandarte da Albania católica tremulava.
O último simbolo do heroísmo cruzado se levantava da tumba e avançava contra os
turcos! Por um instante, o terror petrificou aquele exército inteiro. Tanto era o pavor que o
cavaleiro inspirava, que a massa de infiéis recuava, espavorida.
A lamina prateada de sua espada faiscou no céu escuro, ouviu-se um grande grito de
guerra, o belo corcel branco empinou e Scanderbeg galopou contra a turba maometana.
O cruzado investiu como uma fera que tivesse represa dentro de si uma cólera de mil
anos! Era como se o raio despencasse, como se o próprio Deus combatesse. Aos seus golpes
certeiro todos tombavam, ninguém dele se aproximava e sua espada cheia de sangue não
parava, não cessava de dar a morte.
O indomito cavaleiro afundava-se, cercado por milhares de maometanos, quebrando
escudos e armaduras, decepando homens e varando montarias. Por mais que fizessem,
aquela coragem santa aumentava, os seus golpes se multiplicavam e apotencia de seu braço
não desafalecia.
Este último combate foi tão sangrento quanto o primeiro que Scanderbeg venceu sob a
proteção da Mãe do Bom Conselho. Ante seu olhar, faiscante de santa cólera, uma vez mais
fogiam espavoridos. Ao valoroso guerreiro ainda restaram forças para retornar ao leito de
morte.
Esta história de Scanderbeg encerra uma lição que se deve gravar em fogo nos
corações: não existem adversidades, por maiores que sejam, capazes de vencer um devoto de
Maria!