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A Cavalaria

Proclamação das Cruzadas por Urbano II


Joseph-François MICHAUD, História das Cruzadas, Vol. I, Editora das Américas, São
Paulo.

— “Acabais de ouvir o enviado dos Cristãos do Oriente. Ele vos disse da sorte
lamentável de Jerusalém e do povo de Deus; ele vos disse de como a cidade do rei dos
reis, que transmite aos outros os preceitos de uma fé pura, foi obrigada a servir às
superstições dos pagãos; de como o túmulo milagroso, onde a morte não pôde conservar
sua presa, esse túmulo, fonte da vida futura, sobre o qual surgiu o sol da ressurreição, foi
manchado por aqueles que não devem ressuscitar, senão para servir de palha ao fogo
eterno. A impiedade vitoriosa espalhou suas trevas nas mais ricas regiões da Ásia:
Antioquia, Éfeso, Nicéia, tornaram-se cidades muçulmanas; as hordas bárbaras dos turcos
plantaram seus estandartes nas margens do Helesponto, de onde ameaçam todos os países
cristãos. Se Deus mesmo, armando contra elas seus filhos, não se detiver em sua marcha
triunfante, que nação, que reino, poderá fechar-lhes as portas do Ocidente?”
O soberano Pontífice dirigia-se a todas as nações cristãs; ele dirigia-se
principalmente aos franceses; na sua coragem a Igreja punha a sua esperança; porque
conhecia sua bravura e sua piedade, o Papa havia atravessado os Alpes e lhes trazia
palavra de Deus. À medida que o Pontífice pronunciava seu discurso, os ouvintes
penetravam-se dos sentimentos de que ele estava animado; ele procurava ora excitar no
coração dos cavaleiros e dos barões que o escutavam, o amor da glória, a ambição das
conquistas, o entusiasmo religioso e principalmente a compaixão por seus irmãos, os
cristãos.
— "O povo digno de elogios, dizia-lhes ele, esse povo que o Senhor, nosso Deus,
abençoou, geme e sucumbe sob o peso dos ultrajes e e das exações mais vergonhosas. A
raça dos eleitos sofre indignas perseguições; a raiva ímpia dos sarracenos não respeitou
nem as virgens do Senhor, nem o colégio real dos sacerdotes. Eles carregaram de ferros
as mãos dos enfermos e dos velhos; crianças arrancadas aos braços maternos esquecem
agora entre os bárbaros o nome do verdadeiro Deus; os asilos que esperavam os viajantes
pobres na estrada dos santos lugares receberam sob seu teto profanado uma nação
perversa; o templo do Senhor foi tratado como um homem infame e os ornamentos do
santuário foram arrebatados como escravos. Que vos direi mais?
“No meio de tantos males, quem poderia reter em suas casas desoladas, os
habitantes de Jerusalém, os guardas do Calvário, os servidores e os concidadão do
Homem-Deus, se não se tivesse imposto a eles a lei de receber e de socorrer os peregrinos,
se eles não tivessem receio de deixar sem sacerdotes, sem altares, sem cerimônias
religiosas uma terra toda coberta ainda pelo sangue de Jesus Cristo?
“Ai! de nós, meus filhos e meus irmãos, que vivemos nestes dias de calamidades!
Viemos então a este século reprovado pelo céu para ver a desolação da cidade santa e para
vivermos em paz, quando ela está entregue nas mãos de seus inimigos? Não é preferível
morrer na guerra do que suportar por mais tempo esse horrível espetáculo? Choremos
todos juntos nossas faltas que armaram a cólera divina; choremos, mas que nossas
lágrimas não sejam como a semente lançada sobre a areia e a guerra santa se acenda ao
fogo de nosso arrependimento; e o amor de nossos irmãos nos anime ao combate e seja
mais forte que a mesma morte, contra os inimigos do povo cristão.
“Guerreiros que me escutais, prosseguia o eloqüente Pontífice, vós que procurais
sem cessar vãos pretextos de guerra, alegrai-vos pois eis aqui uma guerra legítima:
chegou o momento de mostrar se estais animados por uma verdadeira coragem; chegou o
momento de expiar tantas violências cometidas no seio da paz, tantas vitórias manchadas
pela injustiça. Vós que fostes tantas vezes o terror de vossos concidadãos e que vendíeis
por um vil salário vossos braços ao furor de outrem, armados pela espada dos Macabeus,
ide defender a casa de Israel, que é a vinha do Senhor dos exércitos. Não se trata mais de
vingar as injúrias dos homens, mas as da Divindade; não se trata mais do ataque de uma
cidade ou de um castelo, mas da conquista dos santos lugares. Se triunfardes, as bênçãos
do céu e os reinos da Ásia serão vosso prêmio; se sucumbirdes, tereis a glória de morrer
nos mesmos lugares onde Jesus Cristo morreu e Deus não se esquecerá de que vos viu em
sua santa milícia. Que afeições fracas e covardes, sentimentos profanos não vos prendam
em vossos lares; soldados do Deus vivo, escutai somente os gemidos de Sião; quebrai
todos os liames da terra e lembrai-vos do que o Senhor disse: Aquele que ama seu pai ou
sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; todo aquele que deixar sua casa, ou seu
pai, ou sua mãe, ou sua esposa, ou seus filhos, ou sua propriedade, por meu nome, será
recompensado com o cêntuplo e terá vida eterna.”
Estas palavras de Urbano penetravam e abrasavam todos os corações e
assemelhavam-se à chama ardente descida do céu. A assembléia dos fiéis, levados por um
entusiasmo que jamais a eloqüência humana tinha inspirado, ergueu-se totalmente e fez
ouvir estas palavras: Deus o quer! Esse brado unânime foi repetido várias vezes; ecoou ao
longe na cidade de Clermont e até nas montanhas da vizinhança.
Quando se restabeleceu a calma continuou o Pontífice:
— “Vedes aqui a realização da promessa divina: “Jesus Cristo declarou, que
quando seus discípulos se reunissem em seu nome, Ele estaria no meio deles; sim, o
Salvador do mundo está agora em nosso meio e é Ele mesmo que vos inspira os brados
que acabo de ouvir. Que essas palavras: Deus o quer! sejam para o futuro vosso grito de
guerra e anunciem por toda a parte a presença do Deus dos exércitos.”
Terminando de falar, Urbano mostrou à assembléia dos cristãos o sinal da
redenção.
— 20"É o mesmo Jesus Cristo, disse-lhe, que sai de seu túmulo e que vos apresenta
sua cruz; ela será o sinal, erguido entre as nações, que deve reunir os filhos dispersos de
Israel; levai-a em vossos ombros ou sobre o vosso peito; que ela brilhe sobre as vossas
armas e sobre os vossos estandartes; ela será para vós o penhor da vitória ou a palma do
martírio; ela vos há de lembrar continuamente que Jesus Cristo morreu por vós e que
deveis morrer por Ele.”
Depois que Urbano acabou de falar, a agitação foi grande; só se ouviam estes
brados: Deus o quer! Deus o quer!, que era como a voz de todo o povo cristão. O cardeal
Gregório, que depois subiu ao trono de São Pedro, com o nome de Inocêncio, pronunciou
em voz alta uma fórmula de confissão geral; todos prostraram-se de joelhos, batendo no
peito e recebendo o perdão de seus pecados.
Ademar de Monteuil, Bispo de Puy, pediu por primeiro para ingressar no caminho
de Deus e tomou a cruz das mãos do Papa. Vários Bispos seguiram-lhe o exemplo.
Raimundo, conde de Tolosa, desculpou-se no meio de seus embaixadores por não ter
podido assistir ao concílio de Clermont; ele já tinha combatido contra os sarracenos, na
Espanha. Prometia ir combatê-los também na Ásia, seguido por seus guerreiros mais fiéis.
Os barões e os cavaleiros que tinham ouvido as exortações de Urbano fizeram o
juramento de vingar a causa de Jesus Cristo; esqueceram-se de suas próprias questões e
juraram combater juntos os inimigos da fé cristã. Todos os fiéis prometeram respeitar as
decisões do concílio e ornaram suas vestes com uma cruz vermelha de pano ou de seda.
Tomaram desde então o nome de cruzados e foi dada à guerra o nome de Cruzada, isto é,
à expedição que se ia empreender contra os sarracenos.

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A Idade de Ouro das Cruzadas
A. Lecoy de la Marche, Saint Louis, son gouvernement e sa politique, Maison Alferd
Mame et fils, Tour, pp. 161-165.

O sucesso que coroou desde o início o esforço dos Cruzados, a conquista de


Jerusalém, a fundação de um reino cristão sobre a ruína da dominação muçulmana, as
vitórias de Godofredo, dos Balduínos, de Ricardo Coração de Leão, — ainda que
intercaladas com derrotas — tudo isso desenvolveu ao mais alto ponto entre a nobreza o
amor da Guerra Santa.
Alguns bandos populares — sem constância nem disciplina — haviam precedido as
milícias feudais no caminho do Oriente, com Pedro Eremita e Gautier Sans-Avoir. Mas
somente os cavaleiros puderam fazer algo de útil. Eles se atiraram em seguida àquela
arena aberta aos seus instintos belicosos; assumiram a Cruzada como coisa própria e ela
se transformou no objetivo fundamental de sua instituição.
Combater o infiel, e o infiel da Palestina, foi sua palavra de ordem e sua constante
preocupação durante todo o século seguinte. Esse século XII que pode ser chamado a
idade de ouro das Cruzadas.
É então que se fundaram ordens especiais para a defesa dos Santos Lugares, tida
como a grande obra dos cristãos.
Os fidalgos de todas as categorias se lançam com entusiasmo nessas milícias
sagradas do Templo, do Hospital de São João de Jerusalém, da Ordem Teutônica, que
representam a elite de todos os países; ou em outras ordens de caráter mais local, como as
de Calatrava e de Santiago na Espanha, a de Cristo em Livônia e Prússia. Eles se
submetem sem hesitação a uma regra quase monástica.
O fervor é geral; em todas as partes ostenta-se a porfia a Cruz rubra e aos passos
dos pregadores, que repetem periodicamente o solene brado: Deus o quer! os recrutas se
multiplicam como por milagre. (...).
O verdadeiro lugar dos cavaleiros é em face aos infiéis.
Aquele que vai combatê-los expia um passado criminoso; consagra-se ao serviço de
Cristo, que será Ele mesmo, a recompensa de todos os seus campeões.
Desonra àqueles que recuam, que se recusam a partir quando podem, e querem
quando já não podem mais fazê-lo. Se alguém é obrigado a renunciar às mais ternas
afeições o mérito será ainda maior. Além do mais, as esposas e os filhos — se participam
do sacrifício — participarão igualmente dos benefícios espirituais. E esta vantagem se
estende até os parentes defuntos.
Sobretudo as ordens militares são responsáveis pela guarda dos Santos Lugares.
Elas formam o verdadeiro exército da Igreja, pois o conselho dado pelo Evangelho de não
resistir com as armas, não se aplica à defesa exterior da Cristandade, que sem isto teria
sucumbido há muito tempo.
Eles se obrigam por voto, a desembainhar a espada contra os sarracenos da Síria, os
mouros de Espanha, os pagãos da Prússia e Comânia e, sendo necessário, quando a
autoridade superior o ordena, contra os cismáticos da Grécia e os hereges de todos os
países. (...).
Os pregadores narram fatos maravilhosos a seus recrutas anunciando-lhes as
celestes recompensas:
É a Virgem aparecendo a uns cavaleiros e oferecendo-lhes o Menino Jesus no
momento em que faziam o voto de ir à Terra Santa; são os Cruzados que, tendo suas
cabeças cortadas pelos sarracenos,sorriem como se desfrutassem das delícias do Céu,
enquanto seus inimigos, mortos a seu lado, mostram faces horrendas e deformadas; são as
palavras heróicas pronunciadas por uns bravos que se atiram a todo galope contra os
infiéis:
— “Maldito seja o último a chegar ao Paraíso!”
Ou ainda:
— “Meu bom cavalo negro, tu que me levastes tantas vezes ao caminho do inferno
nos torneios, leva-me hoje, e de um só impulso até o Céu”!
Ou mesmo a história de um cavaleiro francês que, após haver seguido as pegadas do
Salvador em toda a Terra Santa, chega por fim ao monte da Ascensão. Ali ergue as mãos e
os olhos para o céu e exclama:
— “Senhor, tanto quanto pude, acompanhei vossos passos, mas agora não posso
mais seguir-Vos, pois não tenho asas nem escada. Eu Vos suplico pois, atraí-me para junto
de Vós e recebei em paz o meu espírito!” E havendo dito isto, sua alma se evola.
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São Luís IX durante a batalha de Mansourah, na campanha do Egito
Henry Bordeaux, da Academia Francesa, Vie, mort et survie de Saint Louis, Plon, Paris,
1949. p. 257-258

Joinville, que viu então [a São Luiz] à testa de seu batalhão, no tumulto dos brados e
do som das trombetas e gongos, (...) deixou-nos um retrato inesquecível.
O Rei se deterá no caminho: “Jamais, diz o historiador, vi um tão belo cavaleiro,
pois ele aparecia por cima de todos os guerreiros, ultrapassando-os a partir dos ombros,
com seu elmo dourado na cabeça e sua espada da Alemanha na mão. (...).
O simples fato de vê-lo passar era suficiente a cada um para sentir o coração em
chamas! Ele comandou então a carga, para abrir caminho ao exército.
Que bela carga! Com espadas, com lanças, com maças de guerra! Toda a fúria
francesa, toda a fé cristã comunicando-se de um cavaleiro ao outro numa espécie de
ebriedade heróica, de absoluto desprezo da morte, e talvez de júbilo. As tropas de Bibars
[o chefe muçulmano] são fendidas, quebradas,
dispersadas. (...).
A cavalaria muçulmana reaparece. É
necessária toda a resolução do Rei para continuar a
avançar sem desordem. Inconfundível com seu
elmo dourado, o Rei é reconhecido pelo inimigo.
Rodeado por seis mamelucos que chegam até a
agarrar as rédeas de seu cavalo, eis que, sozinho,
quebra o cerco a grandes golpes de espada e se
liberta, com essa coragem tranqüila que jamais o
abandona, e com a serenidade vinda de sua
confiança em Deus; de tal modo a vida e a morte se
unem para ele na mesma idéia de submissão, na
mesma vontade de servir a Deus até o fim, aconteça
o que acontecer. E essa serenidade, essa calma são
contagiosas: o Rei quer; que importa o resto?
Morrer ou matar por Cristo não é criminoso, mas glorioso
São Bernardo de Claraval, De laude novae militiae, Migne P.L., t. 182, col. 924 (apud
Plinio Corrêa de Oliveira, Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao
Patriciado e à Nobreza romana, pg.320).

Os cavaleiros de Cristo podem com


tranqüilidade de consciência combater os combates
do Senhor, não temendo, de maneira nenhuma, nem
o pecado pela morte do inimigo, nem o perigo da
própria morte: pois a morte, neste caso, infligida ou
sofrida por Cristo, nada tem de criminoso, e muitas
vezes traz consigo o mérito da glória. Pois, com a
primeira alcança glória para Cristo, com a outra
alcança o próprio Cristo. O qual sem dúvida, toma
prazenteiramente a morte do inimigo como punição;
e mais prazenteiramente ainda se dá ao soldado
como consolação. O cavaleiro de Cristo mata com a
consciência tranqüila e morre ainda mais seguro de
si. Morrendo trabalha por si mesmo; matando
trabalha por Cristo. E não é sem razão que ele porta o gládio: ele é o ministro de Deus
para a punição dos maus e exaltação dos bons. Quando mata um malfeitor não é homicida
mas, por assim dizer, malicida; e é necessário ver nele tanto o vingador que está a serviço
de Cristo, como o defensor do povo cristão. Quando porém é morto, considera-se não ter
morrido, mas ter chegado à glória eterna. Portanto, a morte que ele inflige é um beneficio
para si mesmo. Na morte do pagão o cristão gloria-se porque Cristo é glorificado; na
morte do cristão, a liberalidade do rei mostra-se quando exalta o soldado que merece ser
recompensado. Sobre ele se alegrará o justo quando perceber a punição. Dele dirá o
homem: “Deveras há recompensa para o justo; deveras há um Deus que julga sobre a
terra” (Sl. 57, 12). Os pagãos até não deveriam ser mortos, se se pudesse impedir de
alguma outra maneira as suas grandíssimas vexações e retirar-lhes os meios de oprimir os
fiéis. Mas atualmente é melhor que sejam mortos a fim de que, desse modo, os justos não
se dobrem à iniqüidade das mãos deles, pois do contrário certamente se manterá a chibata
dos pecadores sobre a classe dos justos.

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A Cruzada vista pelos cronistas medievais
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Historie Albigeoise, Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 1951, pp. 13, 23, 34.

O ideal da Cruzada é vingar a injúria feita a Deus e alargar a Cristandade. O santo


exército é a “milícia de Cristo”, o seu estandarte é a Cruz. Os guerreiros travam “os
combates do Senhor”; antes de entrar em batalha, recebem a absolvição e a indulgência.
Se morrerem, transformar-se-ão em mártires e “sua morte é preciosa aos olhos de Deus”.
Mas se obtiverem a vitória, passarão a fio de espada, “do menor até o maior”, todos os
inimigos de Deus.
A Cruzada, tendo como teatro a Palestina ou o sul da França, inspira-se em ilustres
precedentes. Os Cruzados combatem Albigenses e Sarracenos como os Hebreus
combatiam Amalecitas e Filisteus, como os Macabeus lutavam contra os Helênicos pela
libertação de Israel. Entre Josué e Godofredo de Bouillon ou Simon de Montfort não há
solução de continuidade: uma mesma idéia diretriz os conduz, segundo um mesmo
processo, a destinos semelhantes. Numa tal perspectiva grandiosa compreende-se que os
clérigos e monges historiadores das Cruzadas, nutridos por leituras bíblicas, tenham
reencontrado como tema de seus pensamentos os estilos e até as expressões dos escritores
sagrados, de preferência aqueles que narram as guerras do Antigo Testamento ou que
exprimem as idéias de vingança e de extermínio contidas nos Salmos e no Apocalipse. É
sobretudo nesse ponto que eles se assemelham.

* * *

Pierre des Vaux-de-Cernay (o monge cronista da Cruzada contra os Albigenses) viu


o santo exército: os clérigos em primeiro lugar, bispos, sacerdotes e monges, legados e
cruzados. Eles dão de boa vontade seus conselhos, encorajamentos e bênçãos, às vezes até
a sua ajuda material; eles rezam, cantam, “gritam” com tanto fervor que impressionam os
inimigos e fazem fraquejar a sua resistência.
Logo a seguir, os cavaleiros: eles levantam máquinas de guerra, abalam as
muralhas, destroem as torres, tomam de assalto as barbacãs, investem contra o inimigo,
quebram seus esquadrões, massacram sua infantaria, incendeiam suas cidades e obtêm
brilhantes vitórias.
Sua primeira proeza é um massacre de 20.000 pessoas e o incêndio de uma cidade.
Em Lavaur, em Cassés, em Morlhon eles queimam os hereges cum ingenti gaudio
— com extrema alegria (a expressão bíblica volta por três vezes à pena de nosso
historiador). Em Lavaur novamente e em Moissac eles se precipitam com igual ardor
sobre seus inimigos desarmados e os matam: avidíssime cicius occidérunt, avidíssime
interfecerunt.
Em Muret, eles matam os feridos e despojam os mortos.
Após os homens, a terra. Só poupam Carcassone para fazer dela um quartel general
e Moissac por pertencer aos monges, mas destroem as plantações, arrancam as vinhas,
cortam as árvores frutíferas no condado de Foix, no campo de Penne, nos arredores de
Toulouse.
Após a morte de Simon de Montfort, Amaury de Monfort assola uma grande parte
dos domínios do conde de Foix. “De lá — continua Pierre des Vaux-de-Cernay —
prosseguindo sua marcha, ele acossava duramente seus inimigos, devastava os castelos e
massacrava os ímpios.” Tal é a última frase da História Albigense, a palavra final.

———————

Virtude providencial da guerra


A. d'Alés, Dictionnaire Apologétique, Gabriel Beauchesne, Paris, 1926, p. 1272.

Todas as explicações doutrinárias a respeito das condições da Guerra Justa não


suprimem o problema filosófico posto diante das almas que refletem sobre a própria
existência de um açoite como a guerra. É este um dos aspectos mais perplexitantes do
problema mais geral da existência do mal físico e moral sobre a terra.
Como o Deus boníssimo e santíssimo permite que aconteçam tão horríveis
catástrofes? Se Ele não pode evitá-las, onde está sua Onipotência? Se, podendo evitá-las,
Ele as permite assim mesmo, onde está a sua Sabedoria? Onde está a sua Bondade?
Os filósofos cristãos respondem a justo título que, se Deus permite o mal aqui na
terra, sob qualquer forma ou grau, não o faz senão à maneira de prova misericordiosa e
salutar, sempre com vistas a um bem maior e mais elevado. Sejam as crueldades
sangrentas da guerra, sejam as doenças e a morte, a peste e a fome, os crimes e os
escândalos, todas as dores e vergonhas da presente condição, todas estas coisas fazem
parte de nossa prova moral na terra. Prova essa que recebe sua nobreza e sua grandeza de
sua própria amargura. Prova que nos obriga a optar entre a razão e os sentidos, entre o
dever e o capricho, entre o bem e o mal. Prova que impõe o sacrifício mais ou menos
doloroso, e mais ou menos tardio, dos bens perecíveis da terra como condição meritória
para a conquista dos verdadeiros bens espirituais cujo valor é imperecível. Prova austera e
sublime que, na difícil ascenção rumo à imortalidade, faz subir a alma humana pelos
desfiladeiros obscuros até os píncaros gloriosos: per angusta ad augusta. (...).
Porém, aquilo que é verdadeiro a respeito das calamidades da vida presente se torna
especialmente verdadeiro ao tratar da efusão do sangue humano pela guerra. Com efeito,
por mais que sejam criminosas as paixões que tornam necessário o apelo à força das
armas, e que encontram na própria guerra tantas ocasiões detestáveis de manifestar-se,
não se pode negar que a guerra pode possuir um privilegiado valor de expiação e
freqüentemente de regeneração moral e social. (...).
A guerra põe diretamente em ação sentimentos em extremo nobres, profundos e
generosos da ordem moral: ela os exalta e os leva até sua energia mais intensa.
É por esta razão que a guerra cria uma atmosfera na qual a obra de Deus pode
cumprir-se com excepcional esplendor; na qual o fervor religioso pode encontrar toda sua
potente fecundidade; na qual podem manifestar-se, sob a ação interior da graça divina, as
altas virtudes cristãs que salvam as almas e transfiguram os povos.
É pois na guerra, de modo particular, que se realiza a expiação redentora das faltas
cometidas pelos indivíduos e pela sociedade. (...).
É ainda na guerra e pela guerra que as nações (se sabem compreender e querem
aproveitar) podem colher os benefícios divinos de uma prova providencial e, graças à
prática do esforço e do sacrifício, graças às varonis lições de senso patriótico e disciplina
hierárquica, encontrar o segredo de sua grandeza e de sua regeneração futura.
Logo, a meditação do cristão não se transvia quando discerne, no meio dos horrores
trágicos da guerra, o exercício da misericórdia divina e o cumprimento de um admirável
desígnio de amor.

———————
D. Sebastião de Portugal
Antero de Figueiredo, D. Sebastião, Livraria Bertrand, 1943 (trechos selecionados).

A partida para a África

Os conselheiros diziam ao Rei:


— “Não vades!”
Sempre assim falou o clássico juízo dos moderados e dos prudentes.
Agora, diante do ardoroso D. Sebastião, surge, repetindo-se, o mesmo maciço
espírito de ponderação. As vistas destes ajuizados conselheiros têm todas as virtudes da
prudência e nenhuma das belezas do arrojo.
É vista, não é visão. É o pensamento de criaturas sãmente restritas, em oposição ao
transporte heróico das grandes empresas e à formosura dos arrebatamentos sublimes em
vôos altaneiros sobre abismos.
Esses conselheiros não conheciam o Rei; se conheciam o Rei não conheciam o
homem; e se conheciam o homem com certeza ignoravam o herói. O profeta, o santo, o
herói, são criaturas aparte e dificilmente entendidas pelos seus contemporâneos.
O homem de gênio é um ser do presente que vive no futuro. As linhas que traça
durante sua vida mal se distinguem, mas a morte aviva-as, o futuro avulta-as.
O seu andar é o galope. Não pisa a terra: aflora-a! Às vezes voa. Seu corpo é asa;
seu espírito é fuga. D. Sebastião, herói da ação, tem infinita fome e infinita sede de vida
maior, de vida bela. Serve a Deus; tem uma missão. Considera-se escolhido, eleito:
cumprirá diretamente o seu dever.

* * *

Em D. Sebastião a alegria é sã e voluntariosa; e a coragem de tal vigor é, que com


ela não pode coexistir a noção de medo. Nele há a simplicidade na força; a nitidez na
resolução. Sua face é jovial como a dos justos; seu sorriso é fresco como o das crianças; e
o seu claro e fácil heroísmo tem um tanto ou quanto de familiar. D. Sebastião quer entrar
virgem numa grande batalha; pelejar virgem, virgem triunfar! Este era o voto íntimo de
sua fidelidade de guerreiro ao seu sonho de místico.

* * *

No meio do largo Tejo azul, espelho do alto céu azul, a galé “São Martinho”,
branca e ouro, com o gurupês em riste, o castelo toldado de carmesim e toda ela
empavezada com multicolores galhardetes, pavilhões e flâmulas de seda nos topes dos
mastaréus, recebe com júbilo e orgulho este maravilhoso cruzado da antiga era, que vai
atirar-se, repleto de altíssimos sonhos, no ardor da Fé e na obstinação da honra, de
encontro a chusmas de mouros nos areais da África berberesca, para, num sacrifício
ingente, sagrar a sua alma de herói numa epopéia de sangue!
E a frota bela, empenachada de ideal, lá vai, barra fora, rumo ao sul, florida em
suas cores, fidalga em suas determinações, santa em seus propósitos! Abalada das velas e
das almas em cometimentos augustos, é uma empresa mística e patriótica em demanda de
sonhos que agradem a Deus e honrem a nação.
Ó Jesus crucificado, de D. Afonso Henriques; ó Santa Maria de Seiça e São Jorge
de Aljubarrota, com quem Nuno Álvares se apegou; ó Senhora do Carmo, do voto de
Valverde; ó santos e santas, anjos, arcanjos e serafins da corte do Céu, ante cujas imagens
os peitos crentes dos reis, infantes, governadores, fronteiros, capitães, soldados, marítimos
portugueses se têm aberto em horas temerosas de pelejas ingentes por amor à pátria! Vós
bem o sabeis, almas celestiais, que são puras e formosas as intenções deste Rei de sonho!
Piedoso como os mais piedosos dos seus antepassados; guerreiro como os melhores; herói
como os maiores, lá vai ele, em derrota grandiosa, criar história bela!

A morte

Tanto sangue fidalgo a ensopar o


plebeu campo africano! Quanto arrojo,
quanta bravura! Que destemidos são!
Mas é tarde: já o crescente islamita uniu
as pontas, fechou o circuito. Os cristãos,
cercados por numerosos mouros, estão
perdidos! Chegou o momento dos
desesperos nobilíssimos, em que os
grandes portugueses querem morrer com
glória, batalhando até o derradeiro
instante, naquele estado de pundonor e
orgulho que se lança na morte honrada
para se sublimar no sacrifício.
O programa desta dignidade está
todo no brado dos fidalgos ao povo:
—”Morrei como valentes,
rapazes!”
E ainda na frase sublime do
desembargador Antônio Velho Tinoco,
ouvidor do campo, que, a cavalo, pregoa religiosamente impassível:
— “Agora, senhores, aqui não há mais que a alma a Deus e o corpo à honra!”
Era a extrema-unção da Cavalaria!

* * *

Montado num cavalo ferido, surge D. Sebastião. Como o Cid de Vivar, todo ele
esta coberto de sangue até os cascos do corcel! Amolgado o elmo, em farrapos a
sobrecota. Pé no estribo, mão esquerda nas rédeas e no arção, espada na direita, larga a
galope, direito a magotes de mouros que ao longe pelejam com cristãos. No caminho
encontra, estendido no chão, D. Antônio, prior do Crato, junto do seu cavalo lanceado. O
filho do infante D. Luis, reconhecendo D. Sebastião, ergue-se a custo, e certíssimo de que
a batalha esta fatalmente perdida, aponta ao rei um escape, rogando-lhe solícito:
— “Fuja!”
D. Sebastião que, para o ouvir, sofreara um momento a correria, sente-se varado
pelo insulto da idéia da fuga e responde com ufania:
— “E a minha honra?”
E, esporeando o cavalo, abala vertiginoso.
Todo o enorme campo está coalhado de cadáveres: mouros, turcos, portugueses,
castelhanos, italianos e tudescos. A batalha vai no fim; durou duas horas infernais!
D. Sebastião está agora no meio de um punhado de fidalgos portugueses, vassalos
fiéis que, jamais o desamparando, lhe seguram o cavalo e tentam, num desesperado
esforço de amor veemente, arrancá-lo para fora do campo e salvá-lo. Para isso, expõem as
suas vidas pela vida preciosa do seu Rei. De súbito, uma chusma de arábios acorre,
cercam-no e aos seus companheiros, numa epiléptica ronda de canibais em delírio, ébrios
de alegria por poderem deitar a mão naqueles refens cristãos. Já dois mouros disputam
entre si a quem o Rei deve pertencer. Então, no meio de atroadora vozearia, Cristovão de
Távora, seguro da perda fatal de D. Sebastião, ata um lenço branco na ponta da espada e
ergue-a ao ar, pedindo trégua.
Ante o sinal de paz, os mouros suspendem por um momento a algarada, acedendo;
mas apontando para a temível espada do Rei, bradam pela voz de um intérprete renegado:
— “Que largue primeiro as armas!”
— “Só a morte me pode arrancar da mão esta espada!” — ripostou soberbamente
D. Sebastião.
O busto erecto, as pernas retesas nas estribeiras de cobre; grande e belo na sua
desgraça de vencido: a cabeça ruiva sem elmo e golpeada; as faces a escorrerem sangue; a
camisa negra de poeira; o camal lanhado... D. Sebastião olha altaneiro e impávido para
essa repulsiva turba-multa de gentalha esfarrapada, inimigos da sua raça, da sua crença e
da sua pátria.
Cristovão de Távora, vendo D. Sebastião irremediavelmente perdido, levanta para
ele as mãos suplicantes e os olhos desventurados, e clama com voz traspassada:
— “Meu Rei e meu senhor, que remédio teremos?”
— “O do Céu, se as nossas obras o merecem” — responde-lhe calmo o Rei de
Portugal.
E atira-se, num último arranco desesperado, para cima da chusma de imundos
maometanos, ao encontro da morte que o imortalizará! Com todas as purezas de seu corpo
virgem, toda a alvura de sua alma cândida, todas as intenções nobilíssimas do seu arrojo
supremo! Seus erros belos expia-os no vexame infinito de, num momento, ver
destroçados os sonhos de uma vida inteira e no de saber que vai acabar às mãos de
miseráveis inimigos maltrapilhos, que em breve porão suas mãos sujas no seu corpo
branco, o rachaçarão a ele e àquele punhado de portugueses fidelíssimos, que
acompanham na morte o seu Rei, porque nenhuma dessas almas fidalgas padece viver
depois de testemunhar tão crudelíssima tragédia.
Espada alta servida por um braço potente, que durante horas seguidas desfechou em
todas as direções golpes mortais; o cavalo empinado, cujos olhos são lume, cuja boca
remorde o freio entre espumas brancas e bravas, D. Sebastião é um semi-deus descido das
alturas para batalhas de extermínio. Essa espada de fúria e luz ainda faz espirrar muito
sangue; ainda mata inimigos; ainda cria espanto; ainda abre em torno de si clareiras de
morte!
Mas ao alarido guerreiro têm-se juntado muitos mouros, que encurtam, apertam,
estrangulam o terreno a este Rei de lenda, que até o derradeiro momento despede
formidáveis cutiladas com a sua espada de furores sublimes.
Matam-lhe o cavalo. Em pé, batalha ainda. Por fim, uma espadeirada certa, vibrada
ao pescoço sem gorgeira, abate-o. Por terra, crivam-no de lanças.

———————
2. A luz carolíngia atravessa os séculos
Marquis de la Franquerie, La Vierge Marie dans l'histoire de France, pp. 30-35/59/63;
J.B. Weiss, “História Universal”.

Carlos Magno colocou sua glória e sua salvação sob a proteção de Nossa Senhora,
cuja imagem sempre portava, pendente ao pescoço numa corrente de ouro. À sua
poderosa intercessão ele atribuía o sucesso de todos os seus empreendimentos, e por isso
quis deixar às gerações futuras um testemunho de sua piedade e seu reconhecimento a
Maria: a basílica de Aix-la-Chapelle.
E nesta igreja, por ele consagrada a Maria, desejou ele ser coroado Rei dos
Romanos a fim de fazer entender que das mãos de Maria recebia o cetro e a coroa.
Eginhard, o grande historiador contemporâneo do Imperador, afirma: “Ele
comparecia pontualmente à basílica por ocasião das orações públicas da manhã e da
tarde, e assistia aos ofícios da noite e ao Santo Sacrifício. Velava para que as cerimônias
se fizessem com grande dignidade; recomendava continuamente aos guardiães que não
tolerassem no templo a falta de limpeza, indigna da Santa Virgem”.
O culto que tributava à Santíssima Virgem inspirou-lhe igualmente a devoção ao
Espírito Santo e foi ele quem compôs, em honra da Terceira Pessoa da Trindade, esse
admirável apelo à divina luz: o Veni Creátor Spíritus.
Sentindo próximo o seu fim, o Imperador, que fora tão grande durante a vida,
soube sê-lo também diante da morte: Confiante na Rainha dos Céus, a quem ele tão bem
servira, quis ser enterrado com uma estátua de Maria sobre o peito, na basílica de
Aix-la-Chapelle, por ele edificada em honra de sua divina Protetora.
Eginhard nos mostra de perto a personalidade de Carlos Magno:
Era de corpo grande e robusto, de sete pés de altura [mais de 2,10 metros].
Seus olhos eram muito grandes e vivos. Tinha formosos cabelos brancos e uma
fisionomia afável e alegre. Quer estivesse sentado ou de pé, sua fisionomia oferecia uma
aparência em extremo digna e imponente. Seu passo era firme, suas atitudes varonis; clara
era sua voz. Dessa figura heróica emanava um espírito alegre. Um monge de Saint-Gall
conta que quem tivesse chegado triste junto a Carlos Magno, dele separava-se sereno,
somente pelo efeito de sua presença e de algumas palavras.
A frescura e a claridade de sua índole confortavam todos os que se punham em
contato com ele. Sua majestade não consistia jamais numa soberba rigidez nem numa
sombria reserva, mas na serena grandeza de sua personalidade, que superava tudo e, não
obstante, carecia de pretensões e repousava sobre si mesma.
A terrível impressão que produzia como guerreiro, frente a seus exércitos, no
coração de seus inimigos, no-la descreve um monge de Saint-Gall:
“Então se viu o férreo Carlos, que tinha sua cabeça coberta com um elmo de ferro,
os braços revestidos de braçadeiras de ferro. Na mão esquerda levava a férrea lança, e
na direita sua espada de aço sempre vitoriosa. Os músculos cobertos por escamas de
ferro, e o escudo também de ferro. Então ressoou um grito de dor, de todos os habitantes
de Pavia: «Ó Férreo! Ó Férreo! »”.
Este homem de ferro tinha um coração profundamente sensível. Carlos chorava
como um menino à morte de um amigo. O vencedor de cem batalhas cuidava
fraternalmente dos pobres. O homem sob cujos passos de gigante tremia a Europa, por
cujos grandes planos foram subjugados um milhão de homens, era o mais terno pai de
família, que em sua casa não podia comer sem seus filhos.
A religião deu o mais nobre impulso ao seu espírito forte e fecundo. Consagrou o
seu poder e amparou os povos, que sua espada havia subjugado.
Carlos Magno saiu do círculo de seus heróis e entrou na tranqüila morada da morte.
Mas sua imagem sobreviveu no coração dos povos. Seu corpo foi descansar na Catedral
de Aix-la-Chapelle, onde se coroavam os reis da Alemanha. Porque havia cingido coroa,
levava espada, manto e sandálias. Essas passaram a ser as relíquias do Império. Quando o
Ocidente se pôs em movimento para libertar o Santo Sepulcro, todos creram que Carlos
Magno havia ido a Jerusalém, para ser o modelo da Cavalaria, e assim ele sobreviveu
pelos séculos, pois o tempo e a morte perderam seu poder ante sua espiritual grandeza.
Prece dos fracos chamados a grandes feitos dirigida a
Carlos o Grande, Carlos o Forte, Carlos o Vencedor o qual
recebeu de Maria a luz que o tornou sábio, a coragem que o
tornou herói, a força que o tornou invencível até mesmo
contra os fortes

Ó Carlos grande e glorioso por todos os séculos


cuja grandeza nem sequer as calúnias difundidas pela
Revolução gnóstica e igualitária
conseguiram empanar:
atendei nossa prece.

Lembrai-vos de que
quando, no início deste século, a Revolução triunfante
proclamava definitiva a vitória de seus dogmas ímpios, de seus
progressos mentirosos e dos seus costumes corruptos,
quase ninguém ousava sobre a face da terra
trabalhar e lutar para que toda esta Babel, obra de Satanás,
ruísse por terra
libertando do seu jugo os justos que,
afinal vitoriosos, proclamassem sobre a terra a abertura de
mais uma época carolíngia.

Mais. Muito mais do que isto,


a vitória do Reino de Maria.

Eles eram fracos, escarnecidos, menosprezados, esses


lutadores que pareciam insensatos, e votados a todas as derrotas e
a todos os menosprezos.

Esse pequeno punhado de jovens cujo coração transbordava


de Fé e de devoção
ao Sagrado Coração de Jesus, ao Imaculado Coração de
Maria, à Santa Igreja Católica
e de admiração a vós, ó Carlos o Grande, o admirado das
nações. Esse punhado era objeto do desprezo que só se tem aos
“campeões da insensatez”.

“Se esse punhado de heróis conseguisse algum dia


transformar-se em um punhado de grupos...” pensavam os filhos
das trevas.
Já este simples e pequeno êxito
parecia exceder os limites
de uma elementar verossimilhança.

Escoaram-se lentos e monótonos os dias


insípidos e pouco eficientes os anos.
Mas hoje em dia desse punhado de heróis se fez um
punhado de grupos e estes se multiplicaram em TFPs e Bureaux,
palpitantes de entusiasmo nos cinco continentes.

Vê e considera entretanto, ó Carlos, até que ponto estamos


sós e desamparados. É bem verdade que nosso nome se tornou
conhecido em toda a terra, mas muito mais porque o repete sem
fim a maledicência do que pela proclamação de sua justa glória.

Estamos sós a tal ponto que, enquanto crescíamos, as


organizações semelhantes às nossas foram desaparecendo, e hoje,
nesta terra devastada e sem honra, quase só nós nos devotamos à
nobre e específica vocação de sermos um grupo de lutadores
especificamente católicos,
especificamente consagrados à luta contra-revolucionária e
anticomunista.

Nós nos voltamos pois a vós, Carlos o glorioso, filho da


Igreja, servidor fidelíssimo ao Papado, e vos agradecemos a
verdadeira aurora de luz que nosso livro recente vem fazendo
nascer na terra.

Mas nós vos pedimos que, como sublime intercessor de


todos os que são tão poucos, tão pequenos, e incumbidos de
tamanho combate, multipliqueis em torno de nós as almas tocadas
pela mesma vocação,
que vós lhes aumenteis o número e sobretudo as forças.

Em favor deles, como nosso, obtende principalmente que a Virgem multiplique nos
corações deles o amor,
pois atendidas estas preces virá à terra o novo Reino de Maria.

Parece-nos ouvir que em todos os coros celestes e nos corações de todos os justos
na terra um brado se levanta, cada vez mais repassado de amor,
de um amor que para a glória de Maria quer tudo, já e para sempre.

Que neste coro vossa voz, forte e harmoniosa como a de um Serafim,


suplique em nosso nome
a Maria, a Omnipotência Suplicante,
Emítte Spíritum tuum et creabúntur, et renovábis fáciem terrae.
Regína Córdium, vincit, regnat, ímperat.

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VII — As Ordens de Cavalaria (1)

O hábito sob a armadura

João Ameal (da Academia Portuguesa da História), História de Portugal, Livraria


Tavares Martins, Porto, 1942, pp.84/89.

Nos empreendimentos e conquistas dos nossos primeiros Reis tomam grande parte
as Ordens Militares. É o momento de abrir um parêntesis e dedicar algum espaço a essas
admiráveis legiões, bem representativas da alta espiritualidade que domina toda a vida
medieval.
Qual a finalidade desses religiosos combatentes? Uma finalidade que, por assim
dizer, prolonga a das Cruzadas: depois de reconquistado o túmulo de Cristo, querem
formar as milícias de Cristo, para defendê-lo contra quaisquer tentativas do infiel.
Trata-se de uma Cruzada permanente — votada às supremas causas da fé e do bom
combate. Almas mobilizadas e corpos mobilizados. O hábito do monge coberto pela
armadura do guerreiro. A vida inteira absorvida no holocausto fervoroso da guerra santa.
Às Ordens Militares se confiam os grandes postos de vanguarda — baluartes
extremos onde vêm bater as ondas bravas da moraima. Ali se levantam fortalezas dentro
das quais oram e aguardam os monges cavaleiros, em perpétua vigília de armas. Todo o
seu destino consiste em apurar a alma para a oferecer, íntegra, limpa de pecados, à hora
festiva da batalha.
De facto, esses homens, que vivem num transporte de exaltação, partem para a
batalha como para uma festa. Festa de sacrifício e de resgate, que lhes permite dar provas
do seu entusiasmo apostólico, do seu despreendimento dos bens terrenos, da sua
obediência ao apelo divino.
Festa de sangue? O sangue do infiel purifica o mundo! É com tal segurança que os
freires acometem, — missionários da espada, certos de servirem uma verdade mais alta e
de abrirem, nos redemoinhos dos montantes, os claros trilhos da futura redenção humana.
É a morte, para eles, o melhor prêmio. Consagram-se inteiramente a Cristo, à
meditação e prédica da sua doutrina, à imitação do seu exemplo, ao triunfo completo da
sua causa. Desde que lhes seja dada a recompensa de sucumbir no serviço de Deus, às
mãos dos que O blasfemam e injuriam, é porque o seu voto foi aceito, o sentido da sua
trajectória terrena foi cumprido. Varados de cutiladas, a esvair-se por mil feridas —
abre-lhes a morte um sorriso sobrehumano na face deslumbrada. Sabem que, no mesmo
instante em que os olhos perdem a visão do mundo, das suas lutas e das suas misérias —
no mesmo instante se lhes descerram, em beatífico alvor, os horizontes da Vida Eterna e
da Luz Eterna!
Insensíveis, portanto, às agruras e aos perigos do combate. Privações, sofrimentos,
temores do adversário traiçoeiro deixam-nos indiferentes, porque apenas representam
meios propícios de alcançar o desejado objectivo. Quanto mais dor — mais amor. Entre
os lances tumultuários e ferozes das pugnas à arma branca, entre os gritos ululantes dos
mouros enfurecidos — avançam inundados de imensa alegria por se verem convertidos
em irmãos do Crucificado e terem a certeza profunda de merecer, à custa de males
transitórios, bemaventurança sem fim.
Assim transfigurados, assim predestinados, colaboram, na primeira fila, em toda a
epopéia da nossa Reconquista. Quando do famoso assalto nocturno a Santarém, ei-los
junto de D. Afonso I, a saltar às muralhas, a despedir golpes sobre a turba agarena. Nas
campanhas árduas do Alentejo e do Algarve, em que vilas e castelos passam de um a
outro campo e sucessivos fluxos e refluxos marcam o desesperado duelo de duas crenças
e duas raças — suportam quase só por si o peso dos choques bélicos, e os progressos do
nosso domínio assinalam-se pelas doações que lhes são feitas em reconhecimento das
suas proezas. Entre os primeiros Reis e as Ordens Militares a união é estreita, íntima,
completa — porque os liga o espírito de Cruzada e os exorta em conjunto a voz distante
dos Pontífices de Roma.

* * *

A jornada culminante dos monges batalhadores é, porventura, a da conquista de


Alcácer, no tempo de D. Afonso II. Empresa de grande vulto — para ela são convocados
os freires das três principais Ordens: Templários, Hospitalários, Espatários. Sublime
rivalidade os excita: a ânsia de morrer ou vencer tão nobremente uns como outros.
Reunidos no acampamento antes do embate, levantam para Deus os olhos e as almas e
vêem fulgurar, no azul, enorme cruz de luz vivíssima. É o anúncio da vitoria. Se a
multidão de gente moura inunda, a perder de vista, as planícies fronteiras, nada importa:
— a vitória será maior.
Explende o sol alto. As hostes cristãs precipitam-se contra a massa densa dos
islamitas. Uma chuva de ouro cai sobre o pequeno exército dos nossos cavaleiros.
Reflexos acordam nas lanças e nos escudos. De tal violência a torrente de fogo, tão
vibrante e lúcido o ar, que os freires em galopada julgam-se desdobrados por esquadrões
de anjos: — no espaço, acima deles, também galopa aérea e maravilhosa Cavalaria...
O triunfo obtido é completo; a matança se prolonga durante três dias. E nunca será
possível distinguir a quem se deve — tão confundidos andam, nesse remoto painel de
espiritualidade medieval, os Cavaleiros da Terra, corações erguidos ao Céu, e os
Cavaleiros do Céu descidos, por mandado de Cristo, a auxiliar e secundar os Cavaleiros
da Terra.

* * *
Armados de ferro e de Fé

São Bernardo de Claraval, apud Georges Bordonove, Les Templiers, histoire et


tragédie, Fayard, Paris, 1977,p.9

Eles vivem sem nada ter de próprio, nem sequer a sua vontade. Vestidos com
simplicidade e cobertos de poeira, têm a face marcada pelos ardores do sol, e o olhar duro
e severo.
Ao aproximar-se o combate, armam-se de fé no interior e de ferro no exterior. As
armas são seu único adorno, e delas se servem com coragem nos maiores perigos, sem
temer o número ou a força dos infiéis.
Toda sua confiança está posta no Deus dos Exércitos; e, combatendo por sua causa,
procuram uma vitória certa ou uma morte santa.
Ó bem-aventurado gênero de vida!

* * *

As fortalezas templárias vistas pelos sarracenos

Georges Bordonove, La vie quotidienne des templiers au XIII siècle, Hachette, Paris,
1975.

O secretário de Saladino, Imad-Ad-Din, descreve alguns castelos dos templários.


Assim diz a propósito do castelo de La Fève:
“Al-Fula era a mais bela e forte cidadela, e a mais provista de homens e munições.
Esta praça forte pertencia aos templários.
“Era uma base sólida e inexpugnável. Ali passavam o inverno e o verão; ali tinham
seus cavalos; nela jactavam-se orgulhosamente; dela derramavam a torrente de suas
tropas; ali reuniam seus irmãos; ali o demônio se dessedentava; ali estavam cravadas as
cruzes; ali afluíam suas tropas e ali se abrasavam em ardor belicoso.
“Em Trepessac (Darbask para o escriba de Saladino) encontramos o muito
magnânimo castelo, solidamente fortificado, cujo solo fala ao ouvido do céu. Era o ninho
— ou melhor, a guarida — dos templários. De havia longo tempo, eles levantavam suas
garras a partir desse castelo, para perpetrar suas violências”.
Escreve sobre o castelo de Baghrás:
“Baghrás é um castelo que, nas calamidades [os ataques cristãos], responde ao
apelo da vizinha cidade de Antioquia. Vemo-lo erguido sobre um cume inabalável,
elevando-se sobre um barranco inexpugnável, tocando o céu. Infiltrava-se nos
despenhadeiros, escalava os montes, encostava seus muros no céu; escondido nas brumas,
inseparável das nuvens, estendido ao sol e à lua... Ninguém teria ousado subir lá: era um
castelo de templários, guarida de hienas, bosque povoado de feras, antro de suas correrias,
refúgio de onde provinham as calamidades, lugar de onde saíam as desgraças, aljava de
suas flechas, etc.”
* * *

Regras de combate dos templarios

Georges Bordonove, La vie quotidienne des templiers au XIII siècle, Hachette, Paris,
1975.

No meio do tumulto das batalhas, o estandarte é o ponto de agrupamento. Os


cavaleiros e os sargentos têm a obrigação absoluta de não abandoná-lo ou de dirigir-se a
ele quando o avistarem novamente, expondo-se às mais duras punições se assim não
fizerem.
Quando um templário, no fragor da batalha, é levado por seu cavalo para o meio
dos sarracenos, deve dirigir-se novamente ao primeiro pendão da Ordem que veja no
campo. Em caso de derrota, por nenhum pretexto pode abandonar o estandarte, sob pena
de ser excluído da Ordem para sempre.
Pois ninguém tem direito a fugir do inimigo, e nem sequer a retirar-se do combate
sem licença. Deve resistir até a última gota de sangue e morrer dando graças por esse
favor!
Os que eram feridos ou derrubados do cavalo e presos pelos sarracenos, não
podiam oferecer resgate nem renegavam sua fé para salvar a vida. Os sarracenos os
decapitavam, após havê-los submetido à tortura em muitos casos.
Assim eram os templários!
* O estandarte dos templários: a conjunção das virtudes opostas

Jacques de Vitry, História das Cruzadas.

Leões na guerra, cordeiros cheios de doçura em sua casa. Na expedição, rudes


cavaleiros; na igreja, semelhantes a eremitas ou aos monges. Duros e ferozes com os
inimigos de Cristo; para com os cristãos, cheios de benignidade e brandura. Marcham
precedidos por uma bandeira negra e branca — a qual chamam de “Baussant” — porque
são cheios de candura para com os amigos de Cristo, negros e terríveis para com seus
inimigos. Negros para a terra, brancos para o Céu. Ao mesmo tempo cavaleiros da terra e
cavaleiros de Deus, brandindo os dois gládios de que falava São Bernardo.

Assim era o Templo

Georges Bordonove, Conferência no “Centre Franco-Britannique”, Paris, 24-10-91;


Les Templiers, histoire et tragédie, Fayard, Paris, 1977, pp.77/9/130-131; E. Vacandard, Vie
de Saint Bernard, Victor Lecoffre, Paris, 1920, pp. 241/43.

Para o homem medieval, a Cavalaria não é senão a força armada a serviço da Igreja
de Jesus Cristo, contra os pagãos e hereges. Tal é sua particular e gloriosa missão. Na
Chanson d'Antioche, os cavaleiros são chamados Chevaliers de Jésus [Cavaleiros de
Jesus]: “aqueles que servem ao Senhor Deus, com leal e inteiro coração”.
Sob a guarda de uma regra monástica, veremos florescer essa Cavalaria de Deus na
Ordem do Templo.
Com os Templários a idéia do soldado cristão encontra-se eminentemente
realizada; a Igreja não podia dar ao terrível ofício da guerra um caráter mais elevado e
mais santo.
Quem, além do Abade de Claraval, era capaz de propor a Regra do Templo à
nobreza francesa? Cavaleiro por estirpe, era ele monge por escolha de seu livre arbítrio,
mas quando empunhava a pena, julgar-se-ia que brandia uma espada.
Bernardo consentiu em fazer o “Elogio da nova milícia”, e aproveitou a ocasião
para dar uma viva e terrível lição à cavalaria do século XII.
Era necessário, de entrada, justificar o uso da espada aos olhos dos tímidos e dos
indecisos. Então, a exemplo de Santo Agostinho ele exclama:
“Não há lei alguma que proíba o cristão de golpear com o gládio! O Evangelho
recomenda aos soldados a moderação e a justiça, mas não lhes diz: «Abandonai vossas
armas e renunciai à milícia »”. Só é proibida a guerra iníqua, a guerra entre os cristãos.
“É necessário dispersar esses sarracenos que nos procuram guerra, rechaçar esses
obreiros de iniqüidade que tentam conspurcar os Santos Lugares e tomar pose do
Santuário de Deus. Que nobre missão para aqueles que abraçaram o ofício das armas!
Vamos! Que os filhos da Fé desembainhem a espada contra os inimigos!
Seria preciso recorrer a uma aprovação mais alta? Ei-la: “O Príncipe, o Capitão
dos cavaleiros se armou um dia, se não com o ferro, com o látego para expulsar os
vendilhões do Templo”. A seu exemplo, os cavaleiros do Templo devem impedir os
infiéis de manchar os Lugares Santos.
Afastemo-nos por um instante do tumulto dos combates. Sigamos o olhar
maravilhado e curioso do peregrino recém desembarcado na Terra Santa, vindo das ricas
terras de Flandres, de uma baía bretã ou dos úmidos bosques do Poitou.
Subitamente, chegado ao termo de seu longo périplo, imergido nessa luz
incomparável da Palestina, ele avista afinal, do alto de uma colina sob o azul sem mácula
do céu, o objeto de seus fervorosos desejos: Jerusalém! Jerusalém, “a cidade das cidades,
senhora das nações e rainha das províncias, chamada, por insigne favor, Cidade do
Grande Rei, situada no centro do mundo”. Após tantos perigos enfrentados, tantos dias de
ansiosa esperança, ei-lo diante dela...
Vermelha e branca, ela se oferece inteira à sua vista, semelhante “a um cervo
reclinado sobre as colinas”.
Poderosa fortaleza, acúmulo de jóias polidas pelo fulgor do sol, parece-se ela um
pouco a Toledo: os mesmos montes estampados pela alvura das muralhas, as lanças
escuras dos ciprestes e os tufos de prata brunida das oliveiras.
Inúmeras torres flanqueiam as altas muralhas, e, por cima de tudo, entre os telhados
e campanários, surge a cúpula do Templo, em cujo ápice brilha uma enorme cruz dourada.
Quatro quilômetros o separam... não longos para um peregrino, a despeito de seu
cansaço.
O entusiasmo e a emoção dirigem seus passos. Vai primeiro ao Gólgota, onde
outrora os Cruzados acamparam, e ali dá graças ao Senhor. Desce em seguida em direção
à Torre de Davi, entra no vale da Gehena pelo sul, aos pés do Monte Sião, percorre o vale
do Cedron e ganha o Monte das Oliveiras. Detêm-se, meditativo, no Horto de
Getsêmani... Mas a cidade o espera!
Retoma ele sua marcha e atinge por fim a porta de Santo Estevão, destinada aos
peregrinos. Lá o aguardam alguns amigos. Senão, informado pelos relatos dos viajantes e
a leitura das crônicas, penetra sozinho no borbulhar intenso e no barulho inerente a toda
cidade oriental.
Eis a rua do Templo. Em torno dele, misturam-se idiomas e mentalidades: judeus e
sírios, armênios e bizantinos, francos, alemães, espanhóis, venezianos ou genoveses,
ingleses e sicilianos. De repente, essa multidão barulhenta e confusa se afasta para dar
passo a dez cavaleiros brancos, impecáveis e silenciosos, não tendo outro adorno senão a
cruz rubra em seus peitos. São templários!
O peregrino ouviu tanto falar deles e de suas proezas! Ele ama e respeita os que
conheceu em sua província, mas estes... são heróis! E, além do mais, destinados ao
martírio.
Um desejo o toma: visitar sua Casa!
Não é coisa difícil: a finalidade inicial dos “Pobres Cavaleiros de Cristo”
permanece viva e válida, ou seja, acolher e sustentar os peregrinos. Ela é aumentada pela
esperança de que o visitante, seduzido pela Casa e tentado pelos Anjos, não queira mais
partir, e peça para ser um deles...
Saladino assim lamenta, em carta ao califa de Bagdá, a coragem dos Cavaleiros de
Jesus:
“Esperemos da bondade de Alá que o perigo no qual estamos despertará o zelo dos
muçulmanos, e que assim eles se esforçarão por extinguir o ardor de nossos inimigos e
abater o edifício construído pelos Francos.
“Enquanto nossos inimigos acorrem por mar e por terra, nosso país está ameaçado
das maiores desgraças. O que mais nos deixa estupefatos é ver a emulação dos infiéis e a
indiferença dos verdadeiros crentes. Há, porventura, pelo menos um muçulmano que
responda ao convite e venha quando é chamado?
“Vede entretanto os cristãos; vede como vêm em multidão, como se apressam à
porfia, como eles se apóiam mutuamente, como fazem o sacrifício de suas riquezas, como
se unem, como se resignam às maiores privações! Na sua terra, nenhum rei, nenhum
senhor, nenhuma ilha ou cidade, por menor e mais insignificante que seja, deixa de enviar
seus súditos a esta guerra, e os faz comparecer neste teatro de Bravura...”
Por que não há nenhum cavaleiro da Ordem do Templo que tenha sido canonizado
ou beatificado pela Igreja? Pela simples razão de que seriam demasiados!
Não haveria razão para canonizar ou beatificar um cavaleiro mais do que outro;
todos ofereciam suas vidas! E, na sua maior parte, eles morreram combatendo,
prisioneiros ou feridos. Os muçulmanos ofereciam-lhes a vida salva se renegassem sua
Fé; eles recusavam, portanto eram mártires — pelo menos mártires!
Já foram enumerados 20.000 que morreram nessas condições. Sim, 20.000!
Haveria embarras de choix [dificuldade na escolha] para canonizar os Templários...
Assim era o Templo!
São Cízio, Guerreiro de Carlos Magno, Advogado sutil e Mártir

Do livro “Les Saints Militaires”, do Abbé Profillet

No ano de 778, os sarracenos atravessaram os Pirineus e se precipitaram sobre a


Gália. Após ter invadido grande parte da Septimânia, ocuparam os arredores de Toulouse
e construíram grande número de mesquitas ao longo do Garonne.
Entre os guerreiros cheios de fé que se uniram para expulsar esses inimigos de
Cristo, encontra-se em primeiro lugar Cízio de Besançon, descendente dos antigos duques
de Bourgogne e não menos famoso por sua piedade que pelo seu valor de notável
guerreiro.

* Um santo modesto

As datas mais antigas de seu martírio atestam que sob o traje de soldado ele
observava costumes austeros, sendo cheio de gravidade e modéstia.
* Um advogado sutil

Dizia-se que, cumprindo todos os deveres impostos por uma fé sólida, ele havia
convertido inúmeros pagãos à religião cristã. Conta-se também que, nos julgamentos
promovidos por Carlos Magno e aos quais ele assistia, Cízio desenrolava processos com
uma sagacidade maravilhosa, impondo silêncio aos advogados pela aplicação segura das
leis. Ele fazia a cada um a justiça que lhe era devida, com grande espanto dos assistentes.
* Guerreiro valeroso e mártir

Nos combates, com freqüência curava milagrosamente as chagas de seus


companheiros feridos.
Esse soldado de Cristo recebeu de Carlos Magno o comando de um terço dos
cavaleiros que deveriam atacar as planícies do Garonne. Ele investiu as defesas dos
inimigos, os quais se reuniram e avançaram ao seu encontro com grande exército. Cízio se
prepara para o combate e percorre as linhas das tropas, inflamando-as com estas palavras:
“Companheiros! lutai corajosamente e ganhareis a coroa celeste. Nossos inimigos
combatem pelos bens da terra, e nós por uma glória eterna. Que seu número não vos
impressione! Lembrai-vos dos prodígios que o Senhor tantas vezes tem operado contra os
infiéis.”
Ele avança sobre o inimigo e, levado por seu ardor, penetra no meio das espessas
colunas dos sarracenos.
Envolvido por todos os lados é feito prisioneiro. Prontamente lhe oferecem a vida
em troca de seu consentimento em abraçar a religião de Maomé, mas ele rejeita com
desprezo a proposta e, adorando a Jesus Crucificado, pede a graça do martírio. Seus
desejos são realizados: os infiéis descarregam sua raiva contra o soldado e o esmagam
com seus martelos de guerra.
Mas o exército cristão, tornado mais terrível pela morte de seu chefe, não demora
em se vingar: os sarracenos, cortados em mil pedaços, cobriram a planície com seus
corpos.
Carlos Magno fez erguer no próprio local do combate, o qual conserva ainda o
nome de Cízio, um túmulo de mármore no qual foi depositado o corpo do santo mártir.
Depois, com os despojos obtidos do inimigo ergueu uma capela, na qual, com a graça de
Deus, muitos milagres foram operados pela intercessão do santo guerreiro.

Guerreiros na batalha: Carlos Martel em Poitiers


Henri Martin, Histoire de France, Librairie Furne, Paris, 1885, Vol. 2. pp.190/205;
Louis Desormes, Entretiens et récits sur l'histoire de France, Victor Sarlit, Paris, 1869,
p.39,41.

Com a cimitarra numa mão e o Alcorão na outra, os sucessores de Maomé saíram


dos desertos para marchar à conquista do mundo.
A cruz foi abatida [na Ásia] em Damasco, Jerusalém, Antioquia, Edessa e
Alexandria. Antes do fim do século VII, uma das alas do exército árabe atingia o Bósforo
[no limite entre a Turquia e Europa] e outra as Colunas de Hércules (o estreito de
Gibraltar); a Ásia Menor era invadida, Constantinopla sitiada, África conquistada.
Em 711, os árabes cruzaram o estreito [de Gibraltar] e entraram na Europa. O
último rei visigodo da Espanha, Rodrigo, foi vencido e morto na batalha de Guadalete, e
duas campanhas foram suficientes aos árabes para aniquilar a monarquia gótica e
submeter toda a Espanha, com exceção dos agrestes rochedos da Cantábria.
Tinha chegado a vez da Gália.
Ela se encontrava agora no caminho do islamismo; era ela quem devia defender a
Cristandade, no próprio coração da Europa.
Abderrahman, o vali da Espanha, era homem feito para uma guerra de conquista.
Durante dois anos, as notícias vindas da Espanha eram cada vez mais alarmantes
para os franceses: tribos da Arábia, da Síria, do Egito e da África cruzavam sem cessar o
estreito. A Península ibérica se agitava com gritos de guerra.
Dia após dia, novas colunas de cavalaria desembocavam no vale do Alto Ebro,
perto dos Pirineus, ponto de encontro do exército invasor. Em vez de atacar a França pela
costa do Mediterâneo, Abderrahman decidiu atirar-se do alto dos Pirineus ocidentais
sobre o Pais Basco francês.
Só homens de espada poderiam salvar o Ocidente.
Ante o imenso perigo que se aproximava, deviam calar-se todas as oposições de
costumes, de línguas e de origens.
Todos os povos que disputavam a Gália haviam se associado, outrora, contra os
bárbaros de Átila. Esses terríveis dias estavam de volta: novos Átilas se lançavam contra a
França, não mais vindos das estepes geladas da Mongólia, mas dos desertos ardentes da
Arábia. E os povos da Gália meridional viam com espanto estandartes desconhecidos
descendo do alto dos Pirineus.
— “Abderrahman — narra a Crônica do mosteiro de Moissac —, vendo a terra
coberta pela multidão de seu exército, passou por Pamplona, atravessou as montanhas dos
vascões e, cruzando desfiladeiros e planícies, desceu à terra dos francos”.
As tribos da Ásia e da África inundavam o país como um oceano transbordante; as
cidades foram forçadas e saqueadas, as abadias destruídas. O grosso das legiões árabes
avançou sobre Bordeaux, onde se encontrava o rei Eudes da Aquitânia [região sul da
França].
Eudes não esperou o inimigo atrás das muralhas, mas saiu da cidade e apresentou
batalha aos muçulmanos. Mas seu exército foi esmagado...
“Só Deus sabe o número dos que morreram nessa jornada”, diz a crônica. O velho
rei fugiu com a alma desesperançada, e pôde ver, da margem norte do Garonne, as
chamas que devoravam as igrejas de Bordeaux, sua capital, tomada de assalto e saqueada.
Tudo estava perdido.
Desde a época dos hunos, nenhuma invasão se estendera com tanta rapidez. As
correrias dos bárbaros germanos não podiam comparar-se à irrupção desses ginetes que
pareciam chegar sobre as asas do vento meridiano, e que surgiam repentinamente quando
se pensava estarem a cem léguas.
Logo o terror voou da Aquitânia até a Néustria [no norte da França], levado pela
ligeira vanguarda maometana. Bandos de árabes cruzaram a Loire e levaram ferro e fogo
as regiões em torno de Orleans, de Auxerre e de Sens.
Um corpo muçulmano atacou esta última cidade, mas os habitantes receberam o
inimigo com coragem: o bispo Ebbe fez uma saída tão vigorosa, à testa dos mais bravos
de seu rebanho, que os assaltantes deram-se à fuga e abandonaram o cerco. A Igreja
canonizou este belicoso prelado.
Então o vali muçulmano reagrupou suas tropas para uma expedição que inflamou o
fanatismo e a cupidez dos muçulmanos. Ouviram falar de um templo cheio de
inestimáveis riquezas, santuário da “idolatria” dos francos: a basílica de Saint-Martin de
Tours. Abderrahman jurou destruí-la e rumou para ela, arruinando no seu caminho as
casas e incendiando as igrejas.
Porém, a notícia da proximidade de um formidável exército [católico] vindo em
socorro da “casa do Bem-Aventurado Martin”, decidiu o vali a deter-se em Poitiers.
Ali se preparou a enfrentar os guerreiros do Norte.
Um valeroso soldado de Jesus Cristo tinha convocado a estes “cruzados” vindos de
todas as regiões da Europa.
Carlos Martel não esperou que as tribos muçulmanas aparecessem às portas de
Orléans para publicar seu apelo à guerra. Estava pronto para jogar na balança o peso de
sua espada.
A chegada do rei Eudes, vencido, fugitivo, general sem exército, rei sem reino,
mostrou-lhe ainda mais a iminência do perigo. Os clarins romanos e as trombetas
germânicas ressoaram nas cidades da Néustria e da Austrásia [no norte da França], nos
rústicos palácios dos leudos francos e nos gaws da Germânia.
Os mais impenetráveis pântanos do Mar do Norte, as mais selvagens profundezas
da Floresta Negra lançaram ondas de guerreiros que se precipitaram até a Loire, seguindo
os pesados esquadrões francos cobertos de ferro. Esta enorme massa de francos, teutões e
galo-romanos cruzou o rio em Orléans, reuniu-se aos restos do exército aquitânico e
apareceu à vista dos árabes em outubro do ano 732.
Foi este um dos mais solenes momentos nos fastos da História.
O islamismo encontrava-se em face do último baluarte da Cristandade: após os
visigodos, tinha derrotado os vascões; após os vascões, seriam os francos; após os
francos, não haveria mais nada...
Se este exército fosse derrotado, o mundo seria de Maomé...
Qual teria sido o futuro da Humanidade se a civilização européia da Idade Média
tivesse sido afogada em seu berço?
O destino do mundo ia decidir-se entre francos e árabes!
Aqueles bárbaros não percebiam com clareza os desígnios que eram confiados a
suas espadas; entretanto, pareciam tomados por um confuso sentimento da grandeza da
luta que iriam travar.
Os muçulmanos, de seu lado, hesitaram pela primeira vez.
Durante sete dias, o Oriente e o Ocidente se observaram com ódio e horror: os dois
exércitos — ou melhor, os dois mundos — inspiravam-se recíproco estupor pela diferença
de fisionomias, de armas, de trajes e de tática.
Os francos analisavam com olhos surpresos aquelas miríades de homens escuros,
cobertos com turbantes e capas brancas, portando escudos redondos e lanças ligeiras,
caracolando sobre suas éguas descabeladas, em meio a turbilhões de poeira.
Os sheiks muçulmanos iam e voltavam ao galope diante das linhas cristãs, para ver
de perto os gigantes do Norte com seus longos cabelos loiros, seus elmos reluzentes, seus
trajes de pele de búfalo ou de malhas de ferro, suas longas espadas e seus enormes
machados.
Por fim, no sétimo dia, árabes e europeus saíram de suas tendas ao amanhecer e
estenderam-se na planície.
Abderrahman deu o sinal e o exército cristão recebeu impávido a torrente de
flechas que os arqueiros berberes fizeram chover sobre ele.
As massas da cavalaria muçulmana lançaram-se, então, ao grito de guerra Alah
akbar! [Alá é grande!] e caíram como imenso furacão sobre a frente de batalha dos
francos.
A longa fileira [de católicos] nem estremeceu, e permaneceu imóvel sob aquele
espantoso choque.
“Como um muro de ferro, como uma barreira de gelo, os povos do Setentrião
mantinham-se em fileiras cerradas, semelhantes a homens de mármore” — narra a crônica
de Isidoro de Beja.
Vinte vezes os muçulmanos viraram rédeas para retomar impulso e voltar com a
rapidez do relâmpago; vinte vezes a sua carga impetuosa quebrou-se contra aquela
muralha inabalável. Os gigantes da Austrásia, erguidos em seus enormes cavalos belgas,
recebiam os árabes na ponta de suas espadas, e os fendiam de alto a baixo com cutiladas
aterradoras.
A luta prolongou-se durante o dia inteiro e Abderrahman ainda tentava esgotar a
resistência dos cristãos, quando, às quatro horas da tarde, ouviu-se um terrível tumulto e
clamores de lamento na retaguarda muçulmana. O rei Eudes, com o resto de seus vascões
e aquitanos, tinha contornado o exército árabe e atirava-se contra o acampamento do vali
massacrando sua guarda.
Então grande parte da cavalaria maometana abandonou o combate para voar em
defesa das riquezas amontoadas nas tendas, e toda a ordem de batalha de Abderrahman se
desfez. O vali, desesperado, esforça-se em vão para deter o retrocesso e refazer suas
linhas...
Porém, nesse instante, a “muralha de ferro” se põe em movimento.
Carlos Martel e seus austrasianos arremetem! Golpeiam, fendem e esmagam tudo o
que encontram diante de si. Abderrahman e a elite de seus asseclas, derrubados dos
cavalos, desaparecem triturados pela massa de ferro.
No momento em que o sol se esconde no horizonte, a turba confusa dos
muçulmanos se precipita nas tendas, comprimida ao longo de todo o campo de batalha por
uma floresta móvel de espadas que sobem e descem sem cessar, semeando a cada passo
uma nova fileira de cadáveres.
O cair da noite deteve os francos.
Carlos não quis penetrar naquele labirinto de tendas, grande como uma cidade, e
ordenou cessar o avanço. Os soldados, “erguendo suas armas de furor”, pernoitaram na
planície esperando travar no dia seguinte novo combate, para a conquista dos
acampamentos árabes.
Ao amanhecer, os francos viram as tendas inimigas no mesmo lugar e na mesma
ordem que a véspera: nenhum ruído se ouvia, nenhum movimento se percebia no quartel
dos árabes. Carlos, desconfiando de uma cilada, fez todos os preparativos de ataque e
enviou sua vanguarda à frente. Esta avançou sobre as miríades de cadáveres e entrou nas
primeiras tendas: estavam vazias; não havia um só homem com vida naquele vasto
acampamento.
A grande disputa estava decidida!
Se o intrépido Carlos já tinha o sobrenome de Martel, por certo não desmentiu
nessa ocasião a varonil reputação que este lhe trouxera. Se, pelo contrário, foi então que o
recebeu, jamais exército vitorioso soube proclamar e transmitir de modo mais eloqüente,
às gerações futuras, a bravura de seu chefe.
Carlos Martel: o martelo dos sarracenos!

———————
Guerreiros no sepulcro: Fernán González, Mio Cid e Fernando I
Ramón Menéndez Pidal, La epopeya castellana a través de la literatura española,
Espasa-Calpe, Madrid, 1959, pp. 45,46.

[Sublinhados do Senhor Doutor Plinio]

O poema [de Fernán Gonzalez] narra pormenorizadamente as guerras incessantes


que o Conde Fernán González susteve contra o grande rei de Córdoba, Almançor. Apenas
acabava de vencer uma batalha, empreendia outra guerra, sem dar a seus vassalos tempo
para repousar e nem sequer para despir suas armas.
Em vão murmuravam eles: “Esta vida não é senão própria de demônios, que jamais
têm um ponto de repouso; enquanto para todos os seres criados existe descanso, o nosso
conde parece Satanás e nós a hoste infernal! Nosso único passatempo é arrancar almas
dos corpos, combatendo”.
Mas o conde sabia animá-los com um oportuno discurso moral e seus vassalos o
seguiam cheios de entusiasmo, à procura de outra vitória.
Assim, o incansável guerreiro castelhano ficou na imaginação popular como o
campeão eterno do cristianismo, que nem em seu sepulcro de Arlanza queria descanso,
pois em todas as grandes guerras da Cristandade os ossos do herói se agitavam inquietos
dentro do túmulo e sua alma voava sobre os campos de batalha, atraída pela matança de
muçulmanos.
Isto asseguravam testemunhas presenciais: Quando João Huníade venceu em
Belgrado a Mahomet II, ou quando os Reis Católicos iniciaram a última guerra de
Granada, ouviram-se ruídos de ossos e golpes no sepulcro de Arlanza. E a noite antes de
travar-se a tremenda batalha das Navas de Tolosa, um grande fragor, como de um
exército, passou sobre a cidade de León e foi bater à porta do panteão real de San Isidro:
eram o conde Fernán Gonzalez e o Cid, que iam despertar em seu túmulo o rei Fernando
I, para que fosse com eles à batalha.

———————
A Batalha de Ourique
Frei Antônio Brandão, Crônica de D. Afonso Henriques, Livraria Civilização, Porto,
1945, pg. 3/28.

Eram estreitos os limites do senhorio do infante D. Afonso, e não cabia bem um


coração tão grande como o seu em tão pequeno circuito de terra. Resoluto em dilatar seus
estados, fez massa da melhor gente de guerra de todos eles e juntou um exército de onze
ou doze mil soldados, com o qual se deliberou de passar o rio Tejo, esperando que o
Senhor, cujo zelo o guiava naquela empresa, abrisse caminho à restauração daquela
província.
Feitas as preparações necessárias, partiu o exército dos cristãos da cidade de
Coimbra, onde se juntara.
Começaram os nossos a guerra com grande prosperidade: destruíram lugares
povoados, puseram fogo às searas, cativaram mouros e, a ferro e fogo, foram abrindo
caminho por toda aquela província até chegar ao campo de Ourique, o qual fica no remate
dela.
Tinham chegado as novas da preparação desta guerra a Ismário, rei poderoso dos
árabes, o qual, cuidadoso do perigo que o ameaçava, juntara um numeroso exército de
mouros andaluzes e africanos, no qual havia mais quatro reis e tão grande multidão de
soldados, que autores graves chegam seu número a quatrocentos mil combatentes. Isto
confirma a tradição recebida, de haver neste exército quase cem mouros para um cristão, e
se pode ainda considerar que não houve ajuda alguma dos vizinhos ou estrangeiros, como
em outras ocasiões de grande perigo se usou sempre.
Confiados estavam no princípio os nossos, lembrados do socorro que Deus costuma
dar aos seus na maior necessidade, e com certeza de que havia entre eles soldados de
muita experiência e valor, e que os governava um príncipe de grande ânimo e ventura.
Contudo, como o lance fosse tão arriscado, não deixaram de considerar alguns a grandeza
do perigo, e vieram no fim a conceber o temor que o caso requeria. E como se seguisse
um descontentamento exterior manifestado pelos sinais do rosto e práticas dos menos
animosos, veio espalhar-se o temor como mal contagioso pela maior parte do exército.
Diziam que não era lance de valentia, mas temeridade, arriscar-se naquela ocasião.
Que as vitórias, suposto que o Senhor as concedia, não se obrigava contudo a serem
sempre milagrosas. Que devia o exército retirar-se ou fazer algum concerto com os
inimigos, enquanto o tempo dava lugar, e não arrojar-se com tanta desigualdade num tão
evidente perigo.
Isto diziam entre si, e depois o propuseram ao infante D. Afonso os eclesiásticos,
os nobres e os soldados, cada um por sua via. O pedido dos fidalgos nos ficou em
memória antiga de Santa Cruz de Coimbra, e diz assim:
“O grande amor que vos temos, e a vontade com que zelamos pelo bem de vossa
pessoa nos obriga, senhor, a dizer-vos que não queirais tentar este conflito. O perigo é
manifesto porque estamos rodeados dos mouros, que são muitos, e nós poucos. Bem
ouvistes as novas que há pouco trouxeram vossas sentinelas, e como afirmam serem
infinitos os de cavalo, e de pé muito maior número, de sorte que cada um de nós deve
pelejar com cem contrários, e, assim, conforme a isto, ficaremos vencidos.
“Eles, como certos da vitória, a apelidam já de antemão, e desejam que se apresse o
dia para a alcançarem; pelo que vos pedimos: movais tratos de paz com Ismael para que
vos não percais a vós juntamente com o Reino, e as nossas mulheres e filhos.
“Ponde, senhor, os olhos neste Reino, e ao que mais convém a vosso proveito e
honra, desviai-vos desta ruína que nos ameaça. Isto tornamos a pedir com toda instância, e
que nos queirais livrar deste perigo.”
O infante D. Afonso, vendo a perturbação de sua gente, não quis logo contrariar seu
parecer, mas com rosto alegre e sereno, respondeu brevemente que agradecia todo o zelo
que mostravam pela conservação de seus estados e segurança de sua pessoa; que
consideraria a matéria, pois era de tanto peso, e lhes daria brevemente resposta. Com isto
se apartaram.
Passado algum espaço de tempo, suficiente para se aquietarem os corações
temerosos e admitirem melhor as exortações do esforço, mandou o infante pôr os
esquadrões em ordem, e, a cavalo, andou correndo-os todos, mostrando no rosto grande
segurança e alegria, e com palavras de grande eficácia os foi persuadindo de que, no
estado presente, a boa ordem da milícia não consentia retirada ou tratado de paz algum,
nem dilação no ataque.
Com a retirada, além da infâmia de fugitivos, provocavam a seus inimigos, os
quais, com a cavalaria, podiam então desbaratá-los facilmente. No tratado de paz não
podia haver firmeza, porquanto os mouros não guardavam suas promessas, nem iriam
prometer algo que fosse aos nossos de honra e proveito.
Com a dilação da batalha, crescia o ânimo dos mouros, os quais, como excediam
tanto em número, interpretariam a medo dos cristãos toda a tardança que fizessem em
apresentar batalha. Pelo que, depois de Deus, o remédio só estava em romper com grande
ânimo e fortaleza por aquela bárbara gente, a qual Deus lhes juntara em tão grande
número para ser maior a satisfação que tomasse dos blasfemadores de seu santo Nome.
Que nos cinco reis mouros via a vingança de suas chagas, e na grandeza da vitória a maior
celebridade e exaltação de sua Fé sagrada.
Com tão grande ânimo e serenidade propôs o infante estas razões, que no fim delas
se viu em sua gente um geral contentamento, o qual começou a se manifestar logo na
resposta que todos deram: seguiriam-no em tudo, e pelejariam com a fortaleza e
constância que o caso requeria.
Alegre então com a resolução de sua gente, recolheu-se o infante para a tenda a
tomar algum descanso.
As coisas que trazia entre mãos o esforçado príncipe não lhe consentiam tomar
muito repouso, nem os pensamentos ocupados na grandeza do negócio presente davam
lugar a se poder quietar e tomar alívio. E assim, para divertir de algum modo aquela
moléstia, lançou mão de uma Bíblia Sagrada e, começando a ler por ela, a primeira coisa
que encontrou foi a vitória de Gedeão, insigne capitão do povo judaico, o qual, com
trezentos soldados, rompeu os quatros reis Madianitas e seus exércitos, passando à espada
cento e vinte mil homens, sem contar outros muitos que morreram no alcance.
Alegre o infante com tão bom encontro, e tomando desta vitória prognóstico feliz
da que esperava, confirmou-se mais na resolução de dar batalha.
Fala D. Afonso Henriques:
“Eu, Afonso, rei de Portugal, estava com meu exército nas terras de Alentejo, no
campo de Ourique, para dar batalha a Ismael e outros quatro reis mouros que tinham
consigo infinitos milhares de homens, e minha gente, temerosa de sua multidão, estava
atribulada e triste sobremaneira. E eu, enfadado do que ouvia, comecei a cuidar comigo
que faria; e como tivesse na tenda o livro do Testamento velho e o de Jesus Cristo, abri-o
e li nele a vitória de Gedeão, e disse entre mim mesmo:
“ «Mui bem sabeis Vós, Senhor Jesus Cristo, que por amor vosso tomei sobre mim
esta guerra contra vossos adversários; em vossa mão está dar a mim e aos meus fortaleza
para vencer estes blasfemadores de vosso Nome. AF
“Ditas estas palavras adormeci sobre o livro e comecei a sonhar que via um homem
velho vir para onde eu estava e que me dizia:
“ «Afonso, tem confiança, porque vencerás e destruirás estes reis infiéis, e desfarás
sua potência e o Senhor se te mostrará. AF
“Estando nesta visão, chegou João Fernandes de Sousa, meu camareiro,
dizendo-me:
“ «Acordai, senhor meu, porque está aqui um homem velho que vos quer falar. AF
“ «Entre! — lhe respondi — se é católico. AF
“E tanto que entrou, conheci ser aquele que no sonho vira, o qual me disse:
“ «Senhor, tende bom coração, vencereis e não sereis vencido; sois amado do
Senhor, porque sem dúvida pôs sobre vós os olhos de sua misericórdia. Ele manda
dizer-vos que quando ouvirdes a campainha de minha ermida, na qual vivo há sessenta e
seis anos, saiais fora do real sem nenhum criado, porque vos quer mostrar sua grande
piedade. AF
“Obedeci e, prostrado em terra com muita reverência, venerei o embaixador e
Quem o mandava, e como posto em oração aguardasse o som, na segunda vigília da noite
ouvi a campainha, e armado com espada e escudo sai fora dos reais, e subitamente vi
contra o nascente um raio resplandecente, e indo-se pouco a pouco clarificando, se fazia
maior, e vi de repente no próprio raio o sinal da Cruz, mais resplandecente que o sol, e
Jesus Cristo crucificado nela, e de uma e outra parte muitos mancebos resplandecentes, os
quais creio que seriam os santos anjos.
“Vendo pois esta visão, lancei-me de bruços e desfeito em lágrimas, comecei a
rogar pela consolação de meus vassalos, e disse sem nenhum temor:
“ «A que fim me apareceis, Senhor? Quereis, porventura, acrescentar fé a quem
tem tanta? Melhor é por certo que Vos vejam os inimigos e creiam em Vós, que eu, que
desde a fonte do batismo Vos conheci por Deus verdadeiro, filho da Virgem e do Padre
Eterno, e assim Vos conheço agora. AF
“O Senhor, com um tom de voz suave, que meus ouvidos indignos ouviram,
disse-me:
“ «Não apareci deste modo para acrescentar tua fé, mas para fortalecer teu coração
neste conflito, e fundar os princípios de teu reino sobre pedra firme. Confia, Afonso,
porque não só vencerás esta batalha, mas todas as outras em que pelejares contra os
inimigos de minha Cruz.
“ «Acharás tua gente alegre e esforçada para a peleja, e te pedirá que entres na
batalha com título de rei. Não ponhas dúvida, mas tudo quanto te pedirem, concede-lhes
facilmente. Eu sou o Fundador e Destruidor dos reinos e impérios, e quero em ti e teus
descendentes fundar para Mim um império, por cujo meio seja meu Nome publicado entre
as nações mais estranhas.
“ «E para que teus descendentes conheçam Quem lhes dá o reino, comporás o
escudo de tuas armas com o preço pelo qual Eu remi o gênero humano, e com aquele pelo
qual fui comprado dos judeus, e ser-Me-á reino santificado, puro na fé e armado por
minha piedade. AF
“Eu, tanto que ouvi estas coisas, prostrado em terra O adorei, dizendo:
“ «Por que méritos, Senhor, me mostrais tão grande misericórdia? Ponde, pois,
vossos benignos olhos nos sucessores que me prometeis, e guardai salva a gente
portuguesa. E se acontecer que tenhais contra ela algum castigo aparelhado, executai-o
antes em mim e em meus descendentes, e livrai este povo que amo como único filho. AF
“Consentindo nisto, o Senhor disse:
“ «Não se apartará deles nem de ti nunca minha misericórdia, porque por sua via
tenho aparelhados grandes searas e eles serão escolhidos como meus ceifadores em terras
muito remotas. »
“Ditas estas palavras, desapareceu e eu, cheio de confiança e suavidade, me tornei
para o real. E que isto passasse na verdade, juro eu, D. Afonso, pelos santos Evangelhos
de Jesus Cristo tocados com estas mãos. E, portanto, mando a meus descendentes para
sempre, que em honra da Cruz e cinco chagas de Jesus Cristo tragam em seu escudo cinco
escudos partidos em Cruz, e em cada um deles os trinta dinheiros, e este seja o troféu de
nossa geração.
“E se alguém intentar o contrário, seja maldito do Senhor e atormentado no inferno
com Judas, o traidor. Foi feita a presente carta em Coimbra aos vinte e nove de Outubro,
era de 1152.
“Eu, el-rei D. Afonso.”
Amanheceu o venturoso dia vinte e cinco de julho, festa do apóstolo São Tiago,
protetor da Espanha, e se viu em todo o exército geral contentamento que bem parecia
particular favor do Céu, efeito singular do aparecimento de Cristo. D. Afonso, armado de
todas armas, andou a cavalo ordenando sua gente, na forma seguinte: A vanguarda, com
três mil infantes e trezentos ginetes escolhidos, tomou para si, como aquele que queria dar
exemplo aos seus. A retaguarda, a qual constava de igual número de gente, cometeu a
Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa.
Antes de se começar a batalha vieram estes capitães e outros principais do exército
ao infante D. Afonso, e declarando o propósito que tinham todos de o levantar logo por
rei, pediram-lhe encarecidamente que consentisse na aclamação do título real, porque
além de outras conveniências, importava assim na ocasião presente para animar mais os
nossos e causar terror aos contrários.
Consentiu o infante, sabendo ser esta a vontade do Senhor, e se alegraram
sumamente os soldados, e com vivas e aclamações repetiram aquelas palavras:
“Real! Real! por D. Afonso, Rei de Portugal!”
E o acompanharam com estrondo de tambores, trombetas e mais instrumentos
bélicos, fazendo extraordinárias demonstrações de alegria.
Repararam os mouros nas festas dos nossos, e perguntavam-se se porventura lhes
chegara algum novo socorro. Vieram-se chegando com o exército posto em boa ordem
para dar batalha.
Mandou el-rei D. Afonso dar sinal de acometer, quando viu os inimigos em
distância acomodada e, invocando Santiago, deram os nossos com tanto ímpeto nos
mouros, que logo nos primeiros encontros começou-se a conhecer a superioridade da
gente portuguesa.
O alferes Garcia Mendes, por ordem do rei, rompeu pela vanguarda dos contrários
e arvorou o estandarte real no meio deles. Isto fez o príncipe para que, seguindo a
bandeira os de sua ala, que eram fortíssimos, desordenassem o esquadrão contrário, e
causassem no princípio terror aos inimigos. Respondeu o efeito ao pensamento:
acompanharam os portugueses o estandarte e começaram a fazer, com notável dano dos
mouros, provas de seu esforço.
El-rei D. Afonso dava a todos maravilhoso exemplo.
Um mouro principal, o qual se lhe adiantara, atravessou com a lança, e depois,
metido entre a bárbara gente, fazia grandes extremos com espada.
Era este príncipe de grande estatura, tinha muita destreza e exercício das armas, seu
ânimo era invencível, e pelejava então com maior alento e vigor, pela promessa de Cristo.
E, assim, posto que seus feitos de armas em toda a vida foram insignes, na ocasião
presente pareciam fora dos limites da força humana. Não lhe parava diante mouro com
vida, nem era necessário secundar muitos golpes; fazia largo campo por onde andava.
Acudiram os inimigos em grande número a esta parte de maior necessidade.
Achando-se el-rei cercado deles, advertiram os portugueses o perigo e, rompendo pelos
mouros, tratavam de defender a pessoa real, a troco de suas próprias vidas.
Caiu por terra Diogo Gonçalves, tendo feito na presença do rei grandes façanhas. E
como fosse matá-lo um capitão dos árabes, se lhe opôs Fernão Mendes diante. Ficou o
mouro e alguns de sua companhia estirados no campo, e seu cavalo foi dado ao capitão
português que jazia em terra. Estava mui ferido e maltratado da queda e ainda neste
estado pelejou por grande espaço. Mas tinha o Céu ordenado que fizesse neste lugar fim a
seus dias, deixando eternizado seu nome com glória de tão honrada morte.
Nesse tempo sentiam-se já os mouros da vanguarda oprimidos de nossas armas e
começaram a pelejar frouxamente. Quis reparar Ismário esta falta metendo o resto de suas
forças. Entrou com grande ânimo na peleja com a retaguarda, mas, antes de causar dano a
nossa gente, sobrevieram os capitães portugueses da retaguarda, e a batalha se tornou a
renovar com grande fúria. Assinalou-se muito Gonçalo Mendes da Maia — o Lidador —
e os mais fidalgos portugueses. Pareciam os cristãos incansáveis; os mouros com a
multidão e pertinácia se sustentavam. Durou a batalha em peso até meio-dia, sem se saber
a que parte inclinava a vitória.
El-rei D. Afonso, entendendo como a principal força dos contrários consistia num
esquadrão muito forte, que servia de guarda ao rei Ismário — no qual vinha por capitão
um seu sobrinho por nome Homar Atagor, homem de incríveis forças —, resolveu-se em
rematar contas, e, juntos a si os mais fortes de seu campo, investiu-o com tanto valor e
bom sucesso que, mortos os principais dele com seu capitão, começou a desordenar-se o
exército dos árabes. Vendo o rei Ismário o perigo que corria sua vida, sem poder remediar
a ruína de seu campo, pôs-se em fugida; e fazendo-lhe companhia os seus, seguiram-nos
os nossos e foram alanceando por grande espaço.
Dos mouros foi tão excessiva a multidão que pereceu nesta batalha, que não só
inundaram os campos de sangue, e ficaram tintos os rios Cobres e Terges, mas,
sobrevindo tempestade de água, escorreu nos mesmos rios o sangue que ficara congelado
nos corpos defuntos, com o que correram por grande espaço até ensangüentar a corrente
do Guadiana, onde desembocam.
Esta é a celebradíssima vitória do Campo de Ourique, famosa pela desigualdade do
número e duração de tempo. Os inimigos dos portugueses eram a flor dos mouros
espanhóis e africanos, belicosos, exercitados na guerra e confiados pelas grandes vitórias
de sua gente, com as quais sujeitaram a seu império grande parte do mundo. Mas valeu
aos portugueses seu grande esforço, a ventura e o valor de seu príncipe, e sobretudo o
particular e extraordinário favor do Céu, que neste conflito tiveram.

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1. A Espada, símbolo da combatividade e da varonilidade inteira
Pe. Luís de Retana, São Fernando e sua época.

A espada era algo de grande e sagrado nessa época da Idade Média em que os
heróis não tinham outra profissão senão a guerra.
Desde o dia em que era armado cavaleiro, não podia ele deixar a espada. Com ela
vivia, com ela junto a si dormia, com ela entre as mãos morria e era sepultado.
A espada era a arma nobre do cavaleiro cristão, e a poesia medieval é infatigável na
descrição das espadas. A palavra “espada”, no idioma nórdico, procede da mesma raiz
que a palavra “chama” ou “incêndio”.
A espada brilha na noite e brilha nos combates à luz do sol. A de Carlos Magno
tinha trinta refrações. A espada do cavaleiro não podia tocar jamais em outra pessoa a não
ser nele. Osculando ou tocando sua cruz ele fazia seus juramentos, e quando a legava a
um herói ou a seus filhos, era o mais precioso presente do mundo.
A espada tinha seu nome com o qual, se fosse gloriosa, deveria passar para a
História.
Segundo nossas “Partidas” [antigas Leis da Espanha medieval] a razão de ser da
espada é ser a arma principal do cavaleiro e ter certa virtude sacramental. A espada
significava e condensava em si as quatro principais virtudes do cavaleiro: cordura,
fortaleza, medida e justiça.
A cordura estava representada no punho da espada que o homem tem cerrado na
mão enquanto ele tiver o poder de alçá-la, de abaixá-la, de ferir ou de deixá-la.
No pomo do cabo da espada está toda a sua fortaleza.
O símbolo da medida está posto no cabo e no ferro.
Enfim, a justiça aparece no ferro da espada, que é reto, agudo e talha igualmente de
ambos os lados.
Por todas essas razões estabeleceram os antigos que os cavaleiros a trouxessem
sempre consigo.

2. Trecho do “Código cristão de deveres militares”, de Mons. Marc Antoine,


citado por Louis Veuillot, em “La guerre et l'homme de guerre”.

Todo homem nasce soldado, embora nem todo soldado venha a portar armas; mas
os que combatem são privilegiados aos olhos do Deus dos Exércitos, que se compraze em
passar os seus lutadores em revista.
Cada um deles, revestido de suas armas, recebe como depósito a segurança dos
corpos e o repouso dos cidadãos, a vida e a libertação de seus irmãos. Ele se torna a
espada e o escudo daquele que não os possuía e cujo braço é muito fraco para carregá-los,
ou dele não sabe fazer uso.
Deus diz [ao soldado] como a Gedeão, como a Josué e como a todos os servos de
seu povo: “Eis minhas ordens, sê valente! Nada temas que teu coração não alcance. Eu te
vejo, Eu estou contigo, virei em teu socorro e julgarei a tua coragem”.
Eis a ordem de Deus, primeiro princípio dos deveres do soldado e mais firme apóio
do seu valor.

3. Portugal talhado à espada: o assalto de Santarém

D. Thomaz d'Almeida Manoel de Vilhena, História da Instituição da Santa Ordem de


Cavalaria e das Ordens Militares em Portugal, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1920.
pp. 388/403.
João Ameal, História de Portugal, Livraria Tavares Martins, Porto, 1928, pp. 59/63.
Frei Antônio Brandão, Crônica de D. Afonso Henriques, Livraria Civilização, Porto,
1945, pp. 341/345.

A ação militar de D. Afonso Henriques não se interrompe. É preciso não perder de


vista que a sua espada constitui efetivamente a melhor garantia da existência e dos
destinos de Portugal — essa espada que nos combates gira como turbilhão de morte e de
glória, erguida no alto dos seus braços de gigante.
Destemido, temerário mesmo — o vulto do Rei domina o panorama das incessantes
lutas. Bravo, enorme, infatigável, possuído do ardor de seu temperamento guerreiro, corre
a terra de norte a sul, está presente onde haja golpes a receber e a dar, converte-se para a
imaginação crédula e espavorida dos árabes numa espécie de anjo de extermínio, quase
inverossímil: Ibn Errik.
Os lances dramáticos e fulminantes dos ataques aos castelos mouros avolumam-lhe
a lenda — como o assalto ao de Santarém, em Março de 1147, na indecisão sonâmbula do
romper de alva.
A data da arrojadíssima tomada de Santarém marca um novo e brilhante avanço da
nossa Cruzada. Os descridos a estimavam “como força principal e importante”; e
constituía o barranco formidável que afrontava o desenvolvimento do recém-nascido
império português. Forte, quase inexpugnável, mais por favor da natureza do que por
maravilhas da arte, a sua proximidade das fronteiras portuguesas permitia-lhe espiar todos
os movimentos dos cristãos e incomodá-los a miude com as suas algaras [ataques
repentinos de devastação].
Para avançar rumo ao sul, tornava-se indispensável a D. Afonso Henriques
apoderar-se de Santarém.
O empreendimento não se oferecia fácil, porque a povoadíssima praça, além de
fartamente munida de toda a sorte de engenhos de guerra, dispunha de grande número de
valiosos defensores. Deliberou o nosso primeiro rei apoderar-se desse enorme e terrível
covil de feras mouriscas por surpresa, e de tão singular audácia que, ao evocá-la, ainda
agora ficamos pasmos.
Estava a corte em Coimbra, e dali partiu D. Afonso numa segunda-feira de Março,
acompanhado apenas por “duzentos e cinqüenta cavaleiros, todos de valor conhecido e
exercitados na guerra, em que entravam muitos Templários”, com rota para Santarém.
Jornadeavam de noite por caminhos ínvios, com as maiores precauções e guardando
rigoroso silêncio.
Salvo alguns dos principais, eles ignoravam o destino que levavam, porque muito
dependia o êxito do segredo. Só o revelou o rei na sexta-feira, em Pernes, expondo-lhes o
ousado plano do assalto:
“Sabeis, companheiros, que tanto na minha companhia como longe de mim, muitas
calamidades tendes sofrido, vindas daquela cidade em cujos confins nos encontramos.
Sabeis quantas desgraças ela acarretou à vossa terra e a vós, e a todo o meu reino, como
se este estivesse metido num laço. Se eu agora convocasse a flor do meu exército, cada
um me traria o auxílio que as suas forças lhe permitissem; mas não quis. Só a vós escolhi;
a vós que sempre me acompanhastes, como experimentados guerreiros, em todas as
circunstâncias difíceis. A vós confio o meu plano, pois bem certo estou de que
compartilhais meu sentimento.
“Tende confiança em mim, soldados do meu exército! Em virtude da alegria que
me vai no espírito, sinto a demora do dia seguinte e tornam-se-me maiores os dias, que eu
queria passassem depressa. Mas quando vejo que vós ainda desejais isso mais do que eu,
exulto de alegria como se já estivesse dentro da cidade.
“Eis, porém, o que primeiro devemos fazer: Escolham-se de entre vós cento e vinte,
que construam dez escadas, uma para cada doze homens. E quando cada um tiver subido
pela sua, não será um, mas dez sobre os muros da cidade. Chegados lá em cima, hasteai o
meu estandarte antes de mais nada, e seguidamente destruí as portas, para que ao mesmo
tempo, com o ímpeto dos que entram, semeie-se a perturbação entre os que não estão
armados e os que estavam a dormir.
“Mas observai isto com a máxima atenção: não perdoeis nem a idade, nem o sexo:
morra a criança ao peito da mãe, e o velho, por idoso que seja; morra a donzela e a velha
decrépita”.
Até aqui ouviram bem dispostos, mas quando ele falou de seu próprio perigo, “não
puderam conter-se, como outrora os príncipes do exército de David:
“ «Não irás conosco, porque se perecermos todos, não será isso para nossa família
causa de grandes cuidados, mas cobri-la-emos de eterno opróbrio, como filhos de
traidores, se consentirmos que tu, que vales por dez mil, estejas conosco num lance tão
arriscado AF”
Ele não conveio. À sua grande alma cavaleirosa repugnava alhear-se dos riscos
que seus companheiros iam correr. Nos bons tempos da Cavalaria, tinha o chefe militar
de ser o primeiro entre os mais extremados. Não só ordenava o combate, mas combatia
em pessoa, melhor e mais do que ninguém, procurando de preferência os lances
arriscados, e não cedendo a outrem o cruzar ferro com os mais terríveis adversários.
Todo o enorme prestígio desses campeões que conduziam as multidões para os
mais difíceis cometimentos, numa obediência perfeita e num completo desprezo da vida,
resultava da prática de feitos famosíssimos, porventura sobrehumanos, consagrados à
efetuação dos grandes ideais, queridos e anelados pelas sociedades a que pertenciam. O
brilho deslumbrante da coragem, o entusiasmo vívido e contagioso que iluminava as
proezas destes sublimes paladinos, tudo contribuía para divinizar-lhes, por assim dizer, a
autoridade.
Eram obedecidos porque haviam o poder de comunicar aos outros sua fé
inabalável.
Afonso Henriques, numa grande emoção e na impaciência de pelejar, na véspera
da arremetida bradava aos seus cavaleiros:
“Cobrem vigor vossos braços, porque sem falta alguma temos o Senhor da nossa
parte, com cuja ajuda cada um de vós poderá desbaratar cem inimigos!”
Quanto a ele, preferia sucumbir na pugna, a deixar de ver Santarém rendida. E na
ânsia por merecer da Providência a graça do coubiçado vencimento, apegava-se com
grande fervor às melhores armas espirituais.
O prior de Santa Cruz, S. Theotônio, consultado sobre o projeto da conquista,
compôs a oração seguinte, para impetrar o auxílio divino a favor dos portugueses:
“Senhor, Senhor onipotente! Vós que destruístes os muros de Jericó sem arco nem
espada, e que à oração de Josué detivestes o sol sobre Gabaão, nós imploramos vossa
inefável clemência, a fim de que concedais a nosso rei, vosso servo, sob cuja sombra
vivemos, a vitória sobre a inimicíssima cidade do povo cristão. Sejam dela extirpados os
espúrios e nefandos ritos maometanos, e seja ali louvado vosso Nome, Senhor Deus”.
O irmão do rei, D. Pedro Afonso, perfeito exemplar do Cavaleiro medieval,
freqüentara em França o célebre abade de Claraval, Bernardo, já então reputado como
uma das primeiras figuras da Cristandade. O insigne reformador de Císter era uma alma
ardente e cavaleirosa e um dos propagandistas mais eloqüentes e convencidos da guerra
santa contra os infiéis.
Por certo, a cruzada portuguesa deveria ser grata ao seu ânimo. Diante do grave
perigo que prometia a empresa, lembrou D. Pedro a seu irmão que se encomendasse ao
bem-aventurado, pois soubera de muitos milagres que ele obtivera de Deus, em terras de
França.
“Então el-rei, movido à devoção pelas coisas que seu irmão assim lhe contava,
disse:
“ «Eu, à honra e louvor de Deus, prometo que se Ele quiser dar-me Santarém, por
sua piedade e pelos rogos do bem-aventurado S. Bernardo, eu darei esta terra para sua
Ordem, quanto vejo daqui até o mar, e farei um mosteiro em que os seus frades vivam
para o serviço de Deus AF”.
Como é sabido, a célebre abadia de Alcobaça representa o cumprimento desse
voto.
Diz a tradição que naquela noite apareceu o Santo ao rei, e o certificou do bom
sucesso. Também consta por tradição e memória escrita que no mesmo momento em que
ele fez o voto de fundar o mosteiro, foi isto revelado ao Santo em França, o qual com
suas orações franqueou a D. Afonso o despacho daquela vitória.
Quando entraram, de noite cerrada, nos olivais de Santarém, “viram uma estrela
grande e ardente, com grande raio, correndo pelo céu da parte da serra, que alumiava a
terra e foi ferir no mar”.
Deslumbrados, disseram logo todos: “Senhor! Deus todo-poderoso entrega a vila
em vossas mãos!”
Mal a aurora despontava, quando Mem Ramires — que se obrigara por voto a
hastear a bandeira real nos muros de Santarém — e alguns cavaleiros escolhidos,
galgando as muralhas da fortaleza, surgem terríveis e inesperados. Ainda estavam só três
sobre as ameias, quando subitamente as sentinelas acordam estremunhadas e, vendo o
estandarte junto delas, clamaram com vós rouca:
— "Manhum?” — Quem sois?
Mem Ramires exclama:
— "Santiago! e rei Afonso!”
Das dez escadas, só duas desempenharam o serviço a que foram destinadas, e por
elas subiram apenas vinte e cinco homens. Introduzidos na praça, depois de mortas as
sentinelas e vencidas as resistências, correm a arrombar a maciça porta de ferro, chamada
de Atamarma, ao som de brados atroadores, respondidos pelos gritos de alarme dos
mouros:
— “Anaçara! Anaçara!” — Cilada dos cristãos!
Ca de fora respondia-lhes enorme vozearia, da qual sobressaía a voz potente do rei:
— “Santiago!! Santiago, patrão do povo fiel! Santíssima Virgem Maria, socorrei
os vossos! Ânimo, meus soldados, aqui está el-rei D. Afonso! Matai esses inimigos, e não
escape um com vida de vossas mãos! Metei-os à espada!”
Derrubada a porta, avança D. Afonso Henriques à frente de seus cavaleiros, e há
um momento de beleza suprema: no meio da torrente que se precipita para o interior do
castelo, o rei, aureolado pelo clarão do sol nascente, reza de joelhos, dando graças a Deus
que lhe protegeu a empresa...
Já então esvoaçava sobre os muros do castelo, como águia altiva e ameaçadora, o
pendão da Cruz. A audácia da surpresa de tal modo desmoralizou os sitiados que a vitória
dos nossos não se fez demorar.
Entretanto ainda houve muita resistência a vencer, motivando pavorosa carnificina.
Onde se pelejava com mais ardor e maior risco, lá se via o rei, fazendo com a
espada “tais extremos, que bem pudera pôr em esquecimento os dos mais famosos do
mundo”.
Destaca-se, entre seus companheiros, o já conhecido infante D. Pedro Afonso,
personagem de subido interesse porque representa o tipo acabado do guerreiro e monge da
Idade Média, com todo o seu espírito aventuroso e místico, aliando à bravura heróica uma
fé ardente. Era, como seu irmão, de estatura agigantada, rijo e de grandes forças; “não
havia cavaleiro que lhe aguardasse na sela segundo encontro, nem armas que lhe
resistissem golpe da espada”.
Segundo reza a crônica, ele fez ali “tais extremos em armas, que a maior parte da
vitória se lhe atribuiu naquele dia, porque tantos mouros matou por sua mão, que a
espada e braço direito, e todas as mais armas trazia cobertas de sangue, e trocadas de
sua cor”.
Mais tarde, foi Mestre de Avis e veio a morrer em odor de santidade, amortalhado
na cogula de frade de Alcobaça.
Conta-se que o rei D. Afonso Henriques estimou a conquista de Santarém como a
melhor das suas glórias de batalhador; e concordam os historiadores em que o feito foi na
verdade extraordinário. O resultado feliz de semelhante tentativa, “que talvez parecera
loucura se antes se divulgasse”, prestigiou sobremaneira o caudilho cristão e derramou o
pânico entre os infiéis.

* * *

Oração dos monges cistercienses, celebrando a vitória de Santarém

“Exaltemos o Senhor, caríssimos irmãos, exaltemo-Lo com atabales e coros, e


tangendo a lira e o órgão, patenteemos a nossa alegria. Grandemente Se glorificou por
ter submetido ao nosso poder os povos que prestam culto a Maomé; concedeu-nos a
herança mais esplendorosa que Ele prezou.
“E vós, que voluntariamente expusestes as vossas vidas a gravíssimo perigo,
bendizei a Deus, Rei supremo, vós que, apoiados nas vossas lanças e escudos, cingidos de
vossas espadas, corajosamente vos dirigistes às muralhas.
“Chamai todo o povo a louvar o Nome de Cristo, aplaudi, levai até Ele as vossas
vozes de louvor e dizei: «Ouvi, Reis e Príncipes de todo o mundo e gravai em vossos
ouvidos que o Senhor alcançou novas vitórias em nossos dias, não com trezentos e
dezoito homens, como outrora Abraão que venceu cinco reis, ou Gedeão que com
trezentos derrubou Sisara, comandante das tropas; mas com vinte e cinco ou pouco mais,
o nosso Rei, ou antes Deus por seu intermédio, tomou Santarém, a cidade mais bem
defendida de toda a Espanha ».
“Levanta, por isso, também tu, ó nosso Rei Afonso, levanta a tua voz com alegria e
confessa que não atribuis este tão assinalado prodígio aos teus merecimentos, mas a
Cristo, verdadeiro Rei, a quem toda a terra pertence, e perante o qual todo o joelho se
curva; aquele Deus, que é bendito por todos os séculos.”
Palavras de D. Afonso Henriques
“Juro perante Deus do Céu, a cujos olhos tudo é claro e evidente, que tenho por
muito menores milagres o terem outrora caído os muros de Jericó, e a paragem do Sol, a
pedido de Josué, sobre Gabaão, do que este que agora obrou comigo a piedade e
misericórdia divinas; e louvo o nome de Cristo, cujos juízos são impenetráveis e as obras
maravilhosas, por si e pela sua santidade. Nos últimos tempos Ele não repete os milagres
antigos, mas supera-os.”

———————
1. A batalha de Lepanto: o fato histórico
— Ludovico Pastor, Historia de los Papas, Ed. G. Gili, Buenos Aires, 1948, Vol.
XVIII, pp.358,359.
— J.B.Weiss, Historia Universal, Tipografía La Educación, Barcelona, 1929, Vol. IX,
p.537.
— Luís Coloma, S.J., Jeromín, Sopena, Buenos Aires, 1946, pp.139/145.
— William Thomas Walsh, Felipe II, Espasa-Calpe, Madrid, 1976, pp.568/576.

O Papa S. Pio V era favorável a lutar por cima de tudo, e este espírito invencível do
santo ancião do Vaticano foi talvez o fator decisivo. Quando seu Núncio, o bispo
Odescalchi, chegou a Messina para abençoar a esquadra e distribuir uma parte da
Verdadeira Cruz entre as tripulações — de sorte que cada navio teve uma partícula do
Santo Lenho —, trouxe também a D. João d'Áustria a solene certeza de que, se travasse
combate, Deus lhe daria a vitória. Se fossem derrotados, o Papa prometia “ir ele mesmo à
guerra, com seus cabelos brancos, para envergonhar os jovens indolentes”, mas com
coragem tudo daria bom resultado. Não tinham aparecido já várias revelações, inclusive
duas profecias de Santo Isidoro de Sevilha, descrevendo uma batalha ganha por um jovem
muito semelhante a D. João?
Encorajado pelo Santo Padre, D. João adotou um modus operandi raramente
empregado nas escolas navais: castigavam-se as blasfêmias com a morte e, enquanto se
esperava um vento propício, o generalíssimo jejuou durante três dias, fazendo o mesmo
todos os seus oficiais e soldados. Os relatos contemporâneos são concordes ao afirmar
que todos os 80.000 marinheiros e soldados, sem exceção, confessaram-se e receberam a
Sagrada Comunhão.
A partida foi um espetáculo inesquecível: O Núncio do Papa, figura ardorosa,
trajado de vermelho da cabeça aos pés e erguido no cais com a mão levantada para
abençoar cada navio à medida que passavam os cruzados, de joelhos nos tombadilhos. Os
cavaleiros e homens de armas com reluzentes armaduras; os marinheiros com uniformes e
gorros vermelhos; as escuras velas latejando até apanhar a primeira brisa; e na alta proa da
galera almirante, D. João, com sua armadura de ouro, como anjo vingador sob a bandeira
azul dAquela que esmagou a cabeça da serpente.
Assim foram os navios entrando no Mediterrâneo de dois em dois. As seis grandes
galeaças venezianas, verdadeiras fortalezas, cada uma eriçada de 40 canhões, abriam o
caminho no esplendor de safira do amanhecer.
A armada otomana encontrava-se em Lepanto. Pujante, muito superior em número
à cristã e sem nenhuma intenção de fugir do combate, dispunha-se pelo contrário a
provocá-lo.
Dividia-se em três corpos: o centro, comandado pelo grande Almirante Ali-Pachá,
moço arrogante, de mais valor que prudência, com todo o arrojo de sua juventude; a ala
direita às ordens do rei de Negroponto: Mahomet Scirocco, homem maduro e sisudo,
valente e veterano ao mesmo tempo; e a ala esquerda dirigida pelo vice-rei de Argel
Aluch-Ali, antigo renegado calabrês, velho de sessenta e oito anos, prudente, corajoso e
astuto, experiente de quarenta anos de pirataria por aqueles mares.
Estavam já ambas frotas a um lado e outro do cabo Scrofa, como dois inimigos
que, atraídos pelo ódio, se espreitam, se aproximam sem sabê-lo, tomam posição e se
encontram de repente frente a frente, sem suspeitar, ao virarem juntos a mesma esquina.
Ao amanhecer do dia 7 de outubro, quando surgiu o sol radiante sobre o golfo de
Lepanto, o vigia de Andrea Dória, na vanguarda, avistou um esquadrão inimigo a doze
milhas de distância. A bandeira de sinal apareceu no alto do mastro da galera de Dória.
— “Aqui venceremos ou morreremos!” — bradou D. João exultante.
Em seguida mandou seu piloto desembarcar numa das altas ilhotas para observar as
forças inimigas. Abarcava-se dali todo o amplo golfo e nele viu o piloto a frota turca,
quase uma metade maior do que se supunha, empurrada por uma brisa favorável que
embaraçava ao mesmo tempo as manobras dos cristãos. Angustiou-se ele vendo isto e, já
de volta na galera Real, não ousou comunicar a ninguém tão temível notícia, mas
limitou-se a dizer ao ouvido do Generalíssimo:
— “Mostrai vossas garras, senhor, pois a jornada será rude!”
Nem pestanejou D. João ao ouví-lo, e como lhe perguntassem naquele momento
alguns capitães se não convocaria o último conselho de guerra, ele respondeu
serenamente:
— “Já não é tempo de deliberar, mas sim de combater”.
E ordenou que se desfraldasse a bandeira verde, sinal combinado para todos
colocarem-se em ordem de batalha.
O jovem Almirante, com sua armadura dourada, foi num barco rápido, de galera
em galera, levando um crucifixo de ferro que mostrava aos que iam combater:
— “Eia, soldados valorosos — bradava —, tendes a hora que desejastes. Humilhai
a soberba do inimigo, alcançai a glória em peleja tão religiosa, vivendo e morrendo
sempre vencedores, pois ireis ao Céu!”
Dizia-lhes também que não há Céu para os covardes...
A presença de sua guerreira figura juvenil e o som de sua voz fresca produziram
um efeito surpreendente. Um grande brado o acolheu em cada navio e uma longa
aclamação atravessou o mar rutilante quando o estandarte da Liga do Papa com a imagem
de Cristo Crucificado, iluminado pelo sol, se ergueu na Real junto à bandeira azul de
Nossa Senhora de Guadalupe. No mastro dianteiro de sua capitânia colocou D. João um
crucifixo.
Quando os turcos avançaram, formando um imenso crescente, ele se ajoelhou à
proa e em alta voz pediu a Deus sua bênção para as armas cristãs, enquanto sacerdotes e
frades, em toda a esquadra, mostravam os crucifixos aos marinheiros e soldados de
joelhos. O sol estava em seu ponto mais alto. A água cristalina, quase sem ondas, era um
espelho trêmulo onde se refletiam as cores vivas de milhares de estandartes, pendões,
bandeiras e gonfalões, e os fulgores de ouro e prata das armaduras como um maravilhoso
caleidoscópio, entre o mar azul e o céu deslumbrante. Um silêncio solene, como o que se
sente antes da Consagração, durante a Missa, estendeu-se por toda a armada.
Vinha entretanto a frota turca a toda vela, impulsionada por vento favorável,
espantosa, imponente, e via-se já a uma milha da linha de batalha dos cristãos. D. João
não quis esperar mais: persignou-se humildemente e mandou dar o tiro de canhão de
desafio.
Um instante depois respondeu a galera de Ali-Pachá com outra detonação,
aceitando o combate, e desfraldaram na popa a bandeira do profeta guardado em Meca,
imensa e branca, tendo bordados no centro, com letras de ouro, versículos do Alcorão.
Nesse mesmo instante houve um fenômeno, simplíssimo em qualquer outra
ocasião, mas que por fartas razões foi considerado milagre: caiu de repente o vento até
permanecer tudo em calma, e começou logo a soprar favoravelmente para os cristãos e
contrário aos turcos. Parecia como se houvesse ressoado ali aquela voz que disse ao mar:
“Cala-te”, e ao vento: “Sossega-te”.
As galeras cristãs foram empurradas contra o inimigo. Quando os remos turcos
começaram a bater as águas, as seis galeaças venezianas abriram fogo com seus 200
canhões e romperam a linha maometana.
Houve então um movimento espontâneo de retrocesso na armada turca, que a
energia de Ali-Pachá refreou imediatamente: Lançando-se ao timão, fez passar a galera
Sultana entre as galeaças com a rapidez de uma flecha, e seguiu-o toda a sua frota,
desfeita já a linha de formação, mas disposta a unir-se novamente. Começou então o
choque entre ambas armadas.
Atacou Mahomet Scirocco a ala esquerda cristã com imensa raiva e empuxe. Cinco
de seus navios rodearam a galera de Agostinho Barbarigo, capitão dos venezianos, e os
arqueiros mouros lançaram sobre ela uma nuvem de flechas envenenadas. As galeras se
abordaram e começou a luta corpo a corpo, entrando os turcos até o primeiro mastro da
veneziana. Defendiam-se os cristãos como feras, encurralados na popa; o grande
Barbarigo lutou como um leão; tinha a viseira erguida e defendia-se com o escudo das
flechas que cruzavam os ares, mas descobriu-se um momento para dar uma ordem e
entrou-lhe uma pelo olho direito, cravando-se no crânio. Morreu no dia seguinte...
Houve então o gravíssimo risco de que os turcos, apoderados da capitânia de
Veneza, destroçassem toda a ala esquerda e atacassem depois o centro pelo flanco
esquerdo, ganhando assim facilmente a vitória. Mas Marino Contarini, sobrinho de
Barbarigo, afastou o perigo: Abordou a galera de seu tio com toda a sua gente e travou-se
sobre a capitânia a peleja mais furiosa que talvez esta jornada registre. Tudo ali era furor,
ira, carnificina e espanto até que, expulso Mahomet Scirocco da galera veneziana e
cercado por sua vez na própria, sucumbiu por fim às suas feridas agarrado a uma borda;
ali o degolaram e jogaram-no ao mar.
Espalhou-se então o terror entre os turcos da ala direita e, voltando as proas em
direção à terra as poucas galeras livres, ali encalharam salvando-se a nado.
A ala direita dos cristãos teve de sustentar o ataque mais forte dos turcos. Andrea
Dória era temido pelos muçulmanos e ocupava o lugar de mais perigo, mas se havia um
rival digno dele, entre os piratas do Mediterrâneo, era Aluch-Ali, o apóstata calabrês.
Quando a ala esquerda turca tentou ganhar o alto mar, num movimento envolvente, Dória
estendeu sua linha e deixou um espaço aberto entre sua frota e o centro cristão. Aluch-Ali
lançou então suas galeras pela perigosa brecha...
A matança foi espantosa: na capitânia de Malta só ficaram três homens com vida: o
Prior Fra Petro Giustiniani, com cinco flechas cravadas; um cavaleiro espanhol com
ambas as pernas quebradas e outro italiano com um braço decepado por uma machadada.
Na capitânia da Sicília sobraram cinqüenta homens, de quinhentos.
La Fierenza e La San Giovanni, do Papa, e La Piamontesa, de Sabóia, sucumbiram
sem render-se; dez galeras já tinham ido ao fundo, uma ardia e doze outras flutuavam sem
direção nem rumo. Andrea Dória, vermelho de sangue da cabeça aos pés e esmagado pelo
número dos inimigos, lutou de modo magnífico.
Quanto às galeras do centro cristão, estavam elas empenhadas em contenda mortal
contra o centro turco. Com efeito, assim que Ali-Pachá viu as santas bandeiras tremulando
na galera de D. João, lançou-se direto contra ela. Os dois enormes cascos chocaram-se,
proa com proa, ouviu-se um enorme estralo e horríveis gritos, e viu-se, entre o denso
fumo da pólvora, saltarem estilhaços, remos quebrados, ferros, armas, membros humanos,
corpos destroçados que se elevavam no ar e caiam nas águas, tingindo-as de sangue.
A galera de Ali-Pachá era mais alta e pesada, e a tripulavam 500 janízaros
escolhidos; D. João levava a bordo 300 veteranos espanhóis. Enquanto o fogo da artilharia
turca passava entre as cordas da Real, o Generalíssimo, atirando mais baixo, semeava a
morte entre as fileiras dos janízaros. Lutou-se em ambos navios corpo a corpo, de
tombadilho a tombadilho, durante duas horas; ordenou então D. João lançar os ganchos
pela proa e, amarradas já as duas galeras, converteram-se em um só campo de batalha.
Atiraram-se à abordagem os cristãos como leões, destroçando tudo quanto se lhes opunha,
e por duas vezes chegaram até o mastro maior da Sultana. Outras tantas tiveram de
retroceder disputando-se palmo a palmo aquelas frágeis tábuas.
Reforçaram a Sultana sete galeras turcas de reserva e lançou-se Ali, por sua vez, à
abordagem. Sendo a Sultana de mais alto bordo que a Real, caíram os turcos como
catarata que jorra do alto: o impacto foi tão tremendo que os Mestres de Campo Figueroa
e Moncada retrocederam com sua gente até o primeiro mastro. D. João d'Áustria atirou-se
então, de espada na mão, para obrigar o inimigo a recuar, mas à medida que morriam os
janízaros eram substituídos por outros dos navios de reserva. A horda turca, com horríveis
gritos, penetrou duas vezes na Real e outras tantas foi rechaçada. Este foi o momento
crítico da Batalha...
Já não havia formação, nem direita, nem esquerda, nem central; só se via fogo,
fumo e massas compactas de galeras travadas entre si, lançando chamas e morte. Matar,
ferir e queimar era o que se fazia, e caíam na água corpos mortos e vivos, mastros,
cabeças arrancadas, turbantes, espadas, cimitarras e canhões. O estrondo dos mosquetes,
os gritos de cólera e de dor, o entrechoque dos ferros, o troar da artilharia, a queda dos
mastros quebrados e o golpe das águas sangrentas sobre os cascos ressoaram durante a
tarde inteira.
Houve proezas magníficas: O velho Sebastião Veniero, com seus setenta anos,
combateu de espada na mão à testa de seus homens. O jovem príncipe de Parma,
Alexandre Farnésio, entrou sozinho numa galera turca e pôde contá-lo depois.
Em certo momento desprendeu-se com esforço sobre-humano uma galera daquele
caos de morte, e lançou sua proa com a violência de formidável catapulta contra a popa da
Sultana, cravando nela o esporão: era Marco Antônio Colonna que vinha em auxílio de D.
João d'Áustria. Encorajados pelo reforço, atiraram-se os espanhóis com tanta fúria contra
Ali e seus janízaros que os obrigaram a recuar até sua própria galera. Três vezes saltaram
os cristãos à abordagem, sobre o tombadilho vermelho e escorregadio de sangue, cheio de
montes de cadáveres, de troncos horrivelmente talhados, de pernas e braços que ainda
estremeciam.
O momento era crítico e o desenlace ainda duvidoso, quando Ali-Pachá,
defendendo sua galera do último empuxe cristão, caiu derrubado por uma bala espanhola.
Seu corpo foi arrastado até os pés de D. João, e um soldado espanhol, triunfante,
cortou-lhe a cabeça. O príncipe cravou-a na ponta de uma comprida lança e a ergueu para
que todos a vissem. Brados de vitória ecoaram na Real, enquanto os cristãos jogavam ao
mar os aterrados turcos e hasteavam o estandarte de Cristo Crucificado no mastro maior
da Sultana. Não havia um só furo na santa bandeira, sendo que tudo em seu redor estava
crivado de golpes e o mastro que a sustentava via-se eriçado de flechas como um ouriço.
De galera em galera correu um clamor de triunfo, com a notícia de que Ali-Pachá morrera
e os cristãos venciam. O pânico se apoderou dos inimigos, que só pensaram em fugir.
D. João, ferido e sem descansar das fadigas da própria luta, atirou-se então com
suas galeras em auxílio de Andrea Dória, seguido pelo Marquês de Santa Cruz.
Compreendeu Aluch Ali, o astuto renegado, que lhe arrancavam a presa das garras e fugiu
desesperadamente com quarenta galeras para o alto mar que o sol poente iluminava de
vermelho. A esquadra de Dória o perseguiu até que a noite e a tempestade próxima a
obrigaram a voltar.

* * *

Naquele mesmo dia 7 de outubro, durante o fragor dessa imensa batalha, São Pio
V, que não imaginava dar-se tão logo o enfrentamento, trabalhava com seus cardeais.
Subitamente se levanta, abre uma janela e olha para o céu. O que viu então?
Imediatamente exclama:
— “Cessem os assuntos! Não pensemos mais que em dar graças a Deus pela vitória
que Ele acaba de conceder à armada cristã”.
Os espantados cardeais seguem o Papa que se dirige à basílica de S. Pedro. O povo
é logo informado; o prodígio é atribuído à Santíssima Virgem, protetora da esquadra, e
canta-se com júbilo a ladainha, que São Pio V enriquece nesse dia com uma nova
invocação, conservada desde então pela Cristandade agradecida: Auxilium Christianorum!
O augusto Pontífice institui para o dia 7 de outubro a solenidade do Santo Rosário,
celebrada fielmente pela Igreja.
Assim festejava-se em Roma, com públicos regozijos, uma batalha travada a
trezentas léguas de distância; e esta alegria não era vã: os cristãos eram com efeito
vencedores. Após doze horas de combate, os muçulmanos perderam trinta mil homens.
Duzentos navios foram capturados ou afundados pelos católicos, e oitenta outros,
encalhados, entregues às chamas. Os vencedores conquistaram ainda trezentos e setenta
canhões, e vinte e cinco mil escravos cristãos foram libertados.
Maria Santíssima aparecera contra os Turcos como nuvem ameaçadora, carregada
de trovões, e no mesmo instante passara como suave brisa diante dos balcões de São Pio
V, para anunciar-lhe a vitória.
O Islã recebera em Lepanto um golpe do qual não mais se reergueria.

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1. A conquista de Jerusalém

Joseph-François Michaud, História das Cruzadas, Editora das Américas, São Paulo,
1956, Vol, II, pp 11/29.

Quinta-feira, 14 de julho de 1099: ao despontar do dia, os clarins ressoaram no


acampamento dos cruzados.
Todos correram às armas e as máquinas se movimentaram ao mesmo tempo; as
catapultas atiraram contra o inimigo uma chuva de pedras, enquanto, com o auxílio de
galerias cobertas, os aríetes se aproximavam das muralhas.
Os arqueiros dirigiam seus dardos contra os maometanos; guerreiros intrépidos,
cobertos por seus escudos, colocavam escadas nos lugares onde a praça parecia oferecer
menos resistência. Ao sul, ao oriente e ao norte da cidade, as torres rolantes avançavam
no meio do tumulto e dos gritos dos soldados.
Godofredo de Bouillon, na parte mais alta de sua fortaleza de madeira, animava os
seus com o exemplo. Todos os dardos que ele lançava — dizem os historiadores do tempo
— levavam a morte entre os inimigos. Raimundo, Tancredo, o duque da Normandia e o
conde de Flandres combatiam no meio de seus soldados; os cavaleiros e os homens de
armas, animados pelo mesmo ardor, apertavam-se no tumulto e corriam de todos os lados
para o assalto.
Nada poderia igualar o furor do primeiro ataque dos cristãos, mas encontraram por
toda a parte uma resistência obstinada. As flechas, o óleo fervendo, o fogo grego e
quatorze máquinas de guerra que os inimigos opunham às dos cruzados, repeliram o
ataque em todos os pontos. Os infiéis, saindo por uma brecha da muralha, quiseram
incendiar as máquinas dos cruzados e introduziram a desordem no meio dos soldados.
Pelo fim do dia, as torres de Godofredo e Tancredo não se podiam mais mover, e a de
Raimundo estava quase destruída. O combate tinha durado doze horas, sem que a vitória
parecesse pender para os cruzados.
A noite veio separar os combatentes. Os cristãos voltaram para o acampamento
cheios de cólera e de tristeza; os chefes não se podiam consolar “de que Deus ainda não
os tivesse julgado dignos de entrar na Cidade Santa e de adorar o Sepulcro de seu
Filho”.
O dia seguinte trouxe os mesmos combates e os mesmos perigos do anterior. Os
chefes procuravam, com suas palavras, erguer o ânimo dos soldados; os sacerdotes e
bispos percorriam as linhas dos guerreiros anunciando-lhes o auxílio do Céu. O exército
cristão, cheio de uma nova confiança na vitória, tomou as armas e avançou em silêncio
para o lugar do ataque, enquanto o clero marchava em procissão ao redor da Cidade
Santa.
O primeiro choque foi terrível: os cristãos, indignados com a resistência do dia
anterior, combatiam furiosamente. Os infiéis, que receberam a notícia da chegada de um
exército egípcio, animavam-se com a esperança da vitória; imensas catapultas cobriam
suas muralhas; ouvia-se de todos os lados sibilarem os dardos; as pedras lançadas por
cristãos e infiéis entrechocavam-se no ar com ruído espantoso e tornavam a cair sobre os
atacantes. Do alto das torres, os muçulmanos continuavam a jogar tochas acesas e óleo
fervendo, enquanto as fortalezas de madeira dos cruzados aproximavam-se das muralhas
no meio do incêndio. Os golpes dos infiéis dirigiam-se especialmente contra a torre de
Godofredo, sobre a qual alteava-se uma Cruz de ouro, cujo brilho lhes provocava o furor.
No meio do combate, dois magos apareceram nas muralhas da cidade, invocando
os elementos e as potências do inferno. Não puderam, entretanto, evitar a morte que
pediam contra os cristãos e caíram sob uma chuva de dardos e pedras. Dois enviados
egípcios, vindos de Ascalon, foram presos quando tentavam entrar na cidade: um deles
caiu varado de golpes e o outro, após ter revelado o objetivo de sua missão, foi atirado às
muralhas por meio de uma catapulta.
No entanto, o combate havia durado a metade do dia, e os cruzados não podiam
ainda penetrar na cidade. Todas as máquinas ardiam, e eles não possuíam água para
apagar o fogo. Em vão os mais corajosos se expunham aos maiores perigos para impedir a
ruína das torres rolantes e dos aríetes: caíam sepultados pelos destroços, e as chamas
devoravam até seus escudos. Vários dos guerreiros mais intrépidos tinham encontrado a
morte junto às muralhas; um grande número dos que tinham subido às torres de assalto
estavam fora de combate, e os outros, cobertos de suor e de poeira, oprimidos pelo peso
das armas e do calor, começavam a perder a coragem...
Os infiéis, percebendo isto, soltavam grandes gritos de alegria e blasfemavam,
recriminando os cristãos por adorarem um Deus que não os podia defender. Os cruzados
deploravam sua própria sorte e, julgando-se abandonados por Jesus Cristo, ficaram
imóveis no campo de batalha.
Mas o combate iria bem depressa mudar de fisionomia: de repente, os cruzados
viram aparecer no Monte das Oliveiras um cavaleiro que lhes dava sinal para entrarem na
cidade. Godofredo e raimundo exclamaram:
— “São Jorge vem em nosso auxílio!”
A vista do cavaleiro celeste inflama os cruzados com novo ardor e eles voltam ao
ataque. Godofredo avança em meio a uma terrível descarga de pedras e fogo grego, e
encosta sua torre na muralha, enquanto os dardos incandescentes voam em sua direção. O
vento aumenta o incêndio e lança as chamas contra os muçulmanos, os quais, envoltos em
turbilhões de fogo e fumaça, recuam ao verem aparecer as lanças e espadas cristãs.
Godofredo ataca os inimigos, persegue-os e atira-se dentro de Jerusalém, seguido
por seus valentes, e massacrando todos os que encontra à passagem.
Ao mesmo tempo, espalha-se entre os cristãos a notícia de que o santo bispo
Adhemar de Monteil e vários cruzados mortos durante o cerco acabam de aparecer à
frente dos atacantes e arvoram as bandeiras da Cruz sobre as muralhas. Alguns dos
francos entram pela brecha recém-aberta, outros sobem aos muros com escadas e muitos
saltam do alto das torres de madeira. Os muçulmanos fogem de todos os lados e
Jerusalém reboa com o grito de guerra: “Deus o quer! Deus o quer!”
Os guerreiros de Tancredo vão derrubar com machados a porta de Santo Estevão, e
a cidade se abre à multidão dos cruzados, que disputam a honra de dar os últimos golpes
aos infiéis.
Eram três horas da tarde de uma sexta-feira, hora em que Jesus Cristo morreu para
a salvação dos homens.
Os cruzados penetraram na mesquita de Omar, onde os muçulmanos haviam se
defendido por algum tempo; no meio do tumulto, só se ouviam gemidos e gritos de morte,
enquanto os vencedores caminhavam sobre montes de cadáveres para alcançar os que
procuravam inutilmente fugir. Uma testemunha ocular diz que no templo e sob os pórticos
da mesquita o sangue chegava até o joelho dos cavalos.
Quando o exército cristão reuniu-se junto ao Santo Sepulcro, a noite começava a
cair, e o silêncio reinava nas praças públicas e sobre as muralhas. Começaram a ouvir-se
na Cidade Santa cânticos de penitência e estas palavras de Isaías: “Vós que amais
Jerusalém, alegrai-vos com ela”. Os cruzados mostraram uma devoção vivíssima e
enternecida; dir-se-ia que aqueles homens — os quais acabavam de tomar uma cidade e
fazer uma terrível matança — saíam de um longo retiro e de uma profunda meditação
sobre os Santos Mistérios.
[Foi perguntado o que fazer com os maometanos ainda vivos]. Os chefes pensaram
que, se dessem liberdade aos muçulmanos prisioneiros, seria necessário combatê-los
depois. Por outro lado, eles não poderiam, num país afastado e rodeado de inimigos,
guardar sem perigo prisioneiros cujo número superava o dos cruzados. Em conselho, a
sentença de morte foi decretada contra os maometanos da cidade.
Todos os inimigos foram mortos: obrigaram-nos a se lançar do alto das torres,
faziam-nos morrer no meio das chamas, arrancavam-nos do fundo dos subterrâneos e os
arrastavam às praças públicas, onde eram imolados sobre montes de cadáveres. A
matança terminou somente no fim da semana.
Os historiadores orientais, de acordo com os latinos, afirmam que o número de
muçulmanos mortos em Jerusalém foi mais de setenta mil.

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2. A impossibilidade sonhada, realizada num homem: Godofredo de Bouillon.

Michel Parisse, Godefroy de Bouillon, le croisé exemplaire, in Les Croisades, Éditions


Du Seuil, Paris, 1988, pp. 37/41; Pierre Aubé, Godefroy de Bouillon, Fayard, Paris, 1985, pp.
353-354.

A chegada diante dos muros de Jerusalém, em junho de 1099, quase três anos após
a partida, marca o fim da excepcional peregrinação. A Cidade Santa é conquistada mais
rápido do que se supunha; o ataque, apoiado por máquinas de guerra, é conduzido
vigorosamente. E Godofredo de Bouillon combate na primeira linha. É ele quem,
utilizando magistralmente o arco e a espada, dirige o assalto decisivo no dia 14 de julho.
Massacre, sangue, espanto e vingança; o quadro pintado pelos cronistas é terrível.
Mas após a vitória, “o duque Godofredo saiu descalço da cidade, e dando a volta
às muralhas com toda humildade, entrou pela porta que está defronte ao Monte das
Oliveiras; e foi apresentar-se diante do Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus vivo, derramando lágrimas, recitando orações, cantando louvores a Deus e
dando-Lhe graças por ter sido julgado digno de ver aquilo que tão ardentemente
desejara”.
Esta descrição da piedade de Godofredo não é exagero do cronista. O
comportamento desse cruzado, ao longo de toda a viagem, denota uma piedade sem
desfalecimento e uma vontade inabalável de sacrificar-se.
Em inúmeras ocasiões o duque manifestara sua certeza e seu firme desejo de chegar
a Jerusalém. No cerco de Antioquia, quando o desânimo se abatia sobre os soldados,
Godofredo os exortava a pôr sua esperança no Nome do Senhor, capaz de destruir
milhares de inimigos com um só golpe. Na noite em que alguns cavaleiros hesitavam em
subir pela escada que lhes faria entrar na cidade, ele lhes recorda que haviam renunciado
ao mundo por amor de Jesus Cristo, e os incitava a oferecerem suas vidas a Deus, dizendo
“que é próprio daquele que ama sacrificar sua vida por seus amigos”. Para ele, a Fé do
cruzado tinha de ser cega.
A sua piedade não conhecia desfalecimento; os clérigos de seu exército
queixavam-se pelas orações e santas leituras — excessivamente longas ao ver deles — às
quais ele se entregava após as Missas.
A sua Fé total em Jesus Cristo era acompanhada por uma intolerância igualmente
total em relação aos descridos. Vê-se, nos relatos de cada assalto e de cada emboscada,
quanto a guerra era dura e sem misericórdia; os cruzados incitavam-se uns a outros,
continuamente, à matança de sarracenos.
Godofredo de Bouillon, por seu ardor no combate, sua resistência e sua habilidade,
pode ser considerado um perfeito cavaleiro e um guerreiro sem falhas.
Muitos exemplos de sua força física são repetidos nas crônicas:
Um dia Godofredo defende um peregrino atacado por um urso; combate corpo a
corpo contra a fera e é gravemente ferido.
Em outra ocasião, perto de Antioquia, no fragor de um entrechoque em que ele faz
cair muitas cabeças, “coisa inacreditável! golpeou com a espada um turco revestido de
couraça e cortou-o em duas metades”.
Essas proezas denotam uma força pouco comum, se bem não fossem de todo
extraordinárias nas narrações da época.
Desde o dia de sua morte, Godofredo entrou na legenda, e sua memória foi honrada
com especial respeito.
Sua mãe, a condessa Santa Ida, participou de sua glória, tendo por principal mérito o
ter trazido ao mundo Godofredo, do qual uma visão premonitória lhe anunciara o
excepcional destino.
Para o Ocidente, ele se transformou no modelo dos cruzados após ter sido o primeiro
rei de Jerusalém, mesmo não havendo jamais ostentado o título. O Defensor do Santo
Sepulcro permaneceu como uma figura tutelar aureolada de maravilhoso e de lenda,
transformado no próprio símbolo da impossibilidade sonhada e realizada. O sepulcro de
Godofredo de Bouillon passou a ser um verdadeiro farol para todos os cristãos.
A cada domingo, no meio da noite, a antífona Christus resurgens, ecoando nas
abóbadas novas da basílica do Santo Sepulcro, parecia concentrar ali aquele fervor que
subia da Cristandade inteira e que reunia, numa mesma celebração, o lugar onde o
Senhor sofreu e o homem que o libertou.

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Balduíno, o Leproso

Balduíno, o Leproso. “Os Templários”, de Georges Bordonove.


Nada na história das Cruzadas é mais emocionante do que o reino doloroso de
Balduíno IV.

Nada, entre os vários exemplos famosos, pode atestar melhor o império de um


espírito de ferro sobre a carne débil. Este foi um rei sublime, de que os historiadores
tratam só de passagem, o que faz perguntar por que, até aqui, nenhum escritor nele se
inspirou.
Nem o romance nem o teatro o invocam e, entretanto, sua breve existência, cheia
de acontecimentos coloridos, forma uma apaixonante e dilacerante tragédia.

Robusto na sua infância, era ele dotado da inteligência aguçada de sua raça
angevina”.
Aqui começa a tragédia:
Um dia em que brincava de batalha com os filhos dos barões de Jerusalém,
descobriu-se que tinha os membros insensíveis. Os outros meninos gritavam quando se
lhes feria: Balduíno, porém, não dizia uma palavra.
Esse fato se repetiu em muitas ocasiões, a tal ponto que o Arcediago Guilherme
alarmou-se. Primeiro pensou que o menino o fazia por proeza, desprezando o queixar-se.
Então perguntou-lhe por que sofria aquelas machucaduras sem nada dizer. O pequeno
respondeu que não o feriam; ele não se ressentia em nada dos arranhões.
Então o mestre examinou seu braço e sua mão, e certificou-se que estavam
adormecidos. Era o sinal evidente da lepra, doença terrível e incurável naquele tempo...
Toda sua vida não foi senão uma luta contra o mal irredutível, e muito mais ainda
foi testemunha dos poderes de um homem sobre si mesmo, e a encarnação assombrosa
dos seus mais altos deveres.
Balduíno IV foi um rei comparável a São Luís, um santo, um homem, enfim — e é
isto que sobretudo importa à nossa admiração sem reticências — a quem nenhuma
desgraça chegou a destruir o vigor da alma, as convicções, a altivez, as qualidades do
coração e o senso da responsabilidade, dos quais ele hauria o revigoramento e a coragem.

No ano de 1174, Saladino veio sitiar a cidade de Alepo. Balduíno IV empreendeu


uma avançada vitoriosa sobre Damasco, capital do sultão, fazendo com que este
abandonasse o cerco.
Em 1176 Saladino voltou à carga, e a mesma manobra sustou seus planos: Balduíno
venceu seu exército em Damasco e em Andjar, e trouxe um belo lucro da expedição. Nessa
ocasião ele tinha apenas quinze 15 anos, e apesar de sua doença, cavalgava como um
guerreiro veterano, empunhando eximiamente a lança.

Nenhum dos seus predecessores teve tão cedo semelhante noção da dignidade real de
que estava investido, e de sua própria finalidade.
Percebendo as rivalidades existentes entre os que o cercavam, compreendeu quão
necessária era sua presença à cabeça dos exércitos cristãos.
Mas que calvário deveria ser o seu! Aos sofrimentos físicos ajuntava-se a angústia
moral, e ele não era senão um morto vivo, um morto coroado, cujas pústulas e purulências
se disfarçavam sob o ferro e sob a seda, mas que se mantinha de pé e se lançava à ação,
movido não se sabe por que sopro milagroso, por que alta e devoradora chama de
sacrifício!

A batalha de Montgisard

Um novo cruzado acaba de desembarcar; chamava-se Filipe da Alsácia, conde de


Flandres, e parente próximo de Balduíno. O jovem rei esperava muito desse apoio.
Estava claro que era necessário ferir Saladino no coração de seu poder, isto é, no
Egito, se se quisesse abalar a unidade muçulmana. Uma vez conquistado o Egito, Damasco
não poderia deixar de subtrair-se ao poder cambaleante de Saladino.
Mas Filipe de Alsácia opinava de outra forma; e ninguém pôde impedir-lhe que
fosse guerrear na Síria do Norte, levando consigo parte do exército franco [deixando assim
desguarnecida a Cidade Santa].
Saladino viu a oportunidade que ele esperava.
Com a prontidão dos homens de ação e dos grandes capitães, pôs em pé de guerra o
exército que destinava à defesa do Egito e atirou-se na direção da Palestina, à testa de seus
batalhões. Tomando a antiga Via Maris, que bordeja o mar através dos desertos de areia,
chegou ao oásis de El Arish, última cidade antes de entrar na terra dos francos.
Nela instalou sua base de operações, deixando ali bagagens e provisões, e para
avançar com maior rapidez e melhor surpreender seus adversários, só levou consigo as
tropas de elite e toda a cavalaria, o que mesmo assim somava o número impressionante de
sessenta mil combatentes. Nada parecia poder resistir-lhe.
Apesar da extrema celeridade com que havia agido, Saladino não pôde impedir que
Balduíno fosse avisado.
Foi um duro golpe. O jovem rei — convalescente de uma piora de sua doença —
deparava-se com uma situação dramática. O que faria ele, quase inteiramente só? Motivos
haveria para deixar-se tomar pela angústia e o desânimo!
Entretanto, Balduíno manifestou a maior serenidade: com firmeza e decisão chamou
às armas todos aqueles que restavam da hoste real. Porém, como o perigo era iminente,
quis agir com toda a rapidez e, sem esperar a reunião da infantaria — forçosamente mais
demorada — partiu com seus cavaleiros para cortar o passo à invasão inimiga. A rédea
solta chegou com eles a Ascalon, a cidade mais importante e melhor fortificada no sul do
reino.
Já Saladino se aproximava... Seus ginetes se espalhavam em tropéis inúmeros pelas
terras cultivadas do litoral e se assanhavam em devastá-las.
Balduíno o esperava trás os muros de Ascalon.
Vendo aproximar-se o fumo dos incêndios, todos percebiam que o momento
decisivo não tardaria. Logo a atmosfera se encheu de rumores e de gritos dos primeiros
ginetes inimigos, e em seguida todas as forças de Saladino chegaram em ondas sucessivas.
Apesar do pequeno número de seus combatentes, Balduíno saiu da cidade e foi
ousadamente alinhar suas fileiras sobre uma pequena colina próxima às muralhas.
Diante do aspecto resoluto dos francos, Saladino não ousou arriscar um combate,
mas contentou-se em ser dono da campina e poder devastá-la à vontade.
Chegada a noite, pareceu prudente a Balduíno retirar-se ao abrigo das muralhas,
gesto que foi interpretado pelos muçulmanos como um abandono e uma renúncia de
opor-se a sua invasão. Em seu acampamento ecoaram gritos e cânticos de vitória: todo o
país se abria diante deles e o caminho de Jerusalém estava livre. Saladino saboreava seu
triunfo e distribuía recompensas. No dia seguinte lançou avante suas tropas.
Uma nova desgraça esperava os francos: todas as milícias de infantaria, que vinham
reunir-se à hoste real e chegavam em pequenos grupos, viram-se subitamente envoltas pelo
inimigo. Umas após outras, foram massacradas ou cativadas...
Em todo o reino espalhava-se o pânico: todos fugiam, esvaziando campos e cidades.
Do alto do castelo de Mirabel, os aterrados fugitivos podiam ver os inimigos sulcando suas
terras, cortando suas árvores e vinhas, destruindo suas casas e transformando suas colheitas
em braseiros. O terror causado pelos muçulmanos era tal, que até em Jerusalém a
população abandonava suas casas para abrigar-se trás os muros da Torre de David.
Tudo parecia perdido e só um milagre podia salvar o reino.
Balduíno, entretanto, com a firmeza de um verdadeiro capitão, não cedia ao
desespero: estava decidido a travar batalha a qualquer preço, para cortar o caminho a
Saladino.
Um pequeno reforço acabava de chegar-lhe: os templários de Gaza preferiram
abandonar sua praça para juntar-se a ele. Eram oitenta monges-guerreiros comandados pelo
Mestre Eudes de Saint-Amand, elevando assim o número dos combatentes a trezentos e
setenta e cinco cavaleiros! Quando se pensa que mais de cinqüenta mil muçulmanos
avançavam pelos campos, compreende-se que a angústia devia apertar os corações mais
firmes! Entretanto, Balduíno decidiu sair de Ascalon.
Consigo levava, implorando a ajuda do Céu, a Verdadeira Cruz: o Lenho Sagrado
coberto de lâminas de ouro e de pedrarias, que era sempre levado ao combate nos dias de
grande perigo.
À medida que avançavam em meio às searas incendiadas, as casas destruídas, as
vinhas arrancadas e os cadáveres degolados de seus irmãos, os francos sentiam crescer em
si uma terrível cólera. Longe de abatê-los, a vista daquelas desgraças não fazia senão
incitá-los à vingança. Logo chegaram ao pequeno castelo de Montgisard.
Saladino cria-se em segurança, pensando haver deixado os cristãos atrás de si, em
Ascalon. Quando soube que estavam à sua frente, sua surpresa foi total, e mal teve tempo
de reunir suas tropas espalhadas pelo campo. Seus preparativos ainda não estavam
concluídos quando Balduíno e seus cavaleiros apareceram frente à colina de Montgisard.
No momento de formar as fileiras, o senhor de Ramla [em cujo feudo estava o
castelo de Montgisard] aproximou-se do rei e disse:
— Senhor, eu vos peço a primeira carga.
Com efeito, era costume que o senhor da terra na qual iria travar-se o combate
reivindicasse a honra de dirigir o primeiro choque. No meio desta primeira linha veio
colocar-se o bispo de Belém, portando em alto a Verdadeira Cruz.
Sob um céu de tormenta, avançaram eles em fileiras cerradas, como um só homem.
Nesse momento, entretanto, Balduíno sentiu a hesitação penetrar em sua tropa.
Descendo então do cavalo, prosternou-se com o rosto na areia diante da Cruz.
Quando reergueu a cabeça, todos puderam ver que suas faces, tumefactas pela lepra,
estavam sulcadas de lágrimas. Ao presenciar isto, o coração dos soldados foi tomado por
enorme emoção; estenderam as mãos sobre a Cruz, jurando jamais fugir, e olhar como
traidor e apóstata aquele que abandonasse o combate. Montando novamente a cavalo,
avançaram contra os turcos, que se alegravam pensando vencê-los facilmente.
Eram duas horas da tarde quando os cavaleiros de Balduíno iniciaram, com grandes
brados, a primeira carga.
Assim narra a crônica muçulmana: “Ágeis como lobos surgiram os cavaleiros
francos, e atacaram em massa, ardentes como a chama”.
Precipitaram-se como furiosa torrente!
Mas a violência de seu assalto foi logo quebrada pelo verdadeiro mar de inimigos no
qual se atiravam. E o mesmo se deu com as outras duas cargas que se lançaram em seguida.
Não se via mais que uma enorme confusão de homens, cavalos e armas, sobre a qual
apenas emergia o Santo Lenho da Cruz.
Pouco a pouco, entretanto, o combate foi mudando de aspecto. Os guerreiros francos
golpeavam como lenhadores que abatem carvalhos, fazendo em torno de si grandes
clareiras, pois sua coragem, longe de diminuir, só aumentava no decurso do combate. Em
pouco tempo, um estremecimento e uma hesitação percorreram as fileiras adversas, e
vendo as aberturas cada vez maiores que o pequeno exército cristão, animado por
sobrenatural ardor, fazia entre eles, tiveram os muçulmanos de dobrar-se e ceder... Um
vento de derrota dispersou seus esquadrões, arrastando-os numa fuga desvairada.
Viu-se então este extraordinário espetáculo: trezentos e oitenta cavaleiros correndo
ao encalço de milhares de guerreiros de elite!
Em certo momento, o próprio Saladino foi quase alcançado e só deveu a salvação à
rapidez de seu cavalo e ao sacrifício dos mamelucos de sua guarda pessoal. E esses, que
eram mil, nada puderam fazer na debandada geral, senão deixar-se massacrar.
Um socorro inesperado veio ainda completar a vitória dos francos: todos os
prisioneiros que os muçulmanos traziam amarrados, aproveitando-se da confusão geral,
quebraram suas ligaduras e atacaram por sua vez.
A derrota foi então total; do imenso exército invasor nada mais restava. Só a
velocidade podia salvá-los: todo maometano que os cristãos alcançavam era um homem
morto. A perseguição durou três dias...
Em todo o Islã se espalhou a notícia, semeando a consternação. Foi [para eles] um
dia de luto e vergonha.
Ao cair da noite, Balduíno entrou em Ascalon. O rosto chagado daquele leproso de
dezessete anos via-se transfigurado de alegria. Alegria por ter salvo o seu reino; alegria
por ter visto Saladino fugir diante de sua ínfima coorte; alegria por não ter perdido — fato
extraordinário! — mais do que cinco cavaleiros.
A vitória era tão prodigiosa, incrível e completa, que todos — e ele o primeiro —
viam nela a mão de Deus.
Muitos afirmaram que a Santa Cruz se tornara tão alta durante o combate, que
parecia tocar o céu, protegendo os francos com sua sombra. Outros tinham visto um
misterioso cavaleiro de brancas armas, desferindo tremendos e maravilhosos golpes.

No ano seguinte, Balduíno edificou o Gué-de-Jacob, fortaleza destinada a defender


a Galiléia dos ataques de Damasco.

Assim, por toda parte, graças à sua energia sobrehumana, e ainda que daí em diante
ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heróico leproso levava vantagem
sobre o genial muçulmano.

Ele começava, entretanto, a perder a vista, e a não poder mais e servir de seus
membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar seus afazeres do
reinado.
Pode-se bem imaginar o drama interior desse Rei de vinte e dois anos anos, isolado,
corroído por úlceras, semi-paralizado e quase cego, cercado pelas sombras da
desconfiança e dos maus pressentimentos; atormentado ante as insinuações e sugestões
pérfidas dos seus, de um lado, e a alta idéia que tinha de sua missão de Rei, de outro lado.
A lepra o enfraquecia e ele não podia ter esperanças de se curar, mas sempre encontrava
novas forças e resistia da melhor forma.

Como a doença entrava numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela e, sobretudo,
contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.
Saladino, excitado até o cúmulo do furor pelos ataques dos francos, foi sitiar a
fortaleza do Krac de Moab.
Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino
então retirou-se.

A 16 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus. Até os infiéis lhe
tributaram homenagens.
4. Covadonga

Don Rodrigo Jiménez de la Rada (Arcebispo primaz de Toledo no tempo de S.


Fernando de Castela), Historia de los hechos de España, Alianza Editorial, Madrid, 1989, pp.
146/156/165.
Alexandre Herculano, Eurico, o Presbítero, Edições de Ouro, Rio de Janeiro, pp.
122-123.
Modesto Lafuente, Historia General de España, Montaner y Simón, Barcelona, 1887,
t. II.

Invasão da Espanha pelos árabes

O mouro Tárik entregou ao conde Julião 12.000 soldados, os quais levou à Espanha
em navios de mercadores, a fim de fazer passar despercebida sua chegada. E reuniram-se
num monte que, por causa daquele mouro, ainda hoje se chama Gebel Taric (Gibraltar):
“Monte de Tárik”.
Quando isto chegou ao conhecimento do rei Rodrigo, enviou contra eles seu
sobrinho, chamado Iñigo, o qual, tantas vezes quantas lhes apresentou batalha, outras
tantas foi vencido e, por fim, morto. Daí, acrescida sua coragem, aumentaram os árabes
seu arrojo, sendo guiados pelo conde Julião a través da Bética e da Lusitânia [Andaluzia e
Portugal].
O exército dos godos, surpreendido nos primeiros entrechoques e desacostumado
do uso das armas, pelo longo período de paz e de boa vida, desconhecia as antigas proezas
e, transformados em indolentes e fracos, resultaram incapazes de combater. Virando
rédeas ante os obstáculos, chegaram antes à morte que ao recurso da fuga.
Por aquelas ações, a lealdade de Julião foi celebrada com admiração entre os
árabes.
Então o rei Rodrigo, conhecendo a derrota dos seus e o saque da província, após
reunir todos os godos saiu ao encontro dos árabes com coroa de ouro e traje ornado do
mesmo metal, e conduzido num leito de marfim puxado por duas mulas, tal como exigia o
protocolo dos reis godos. E havendo chegado ao rio chamado Guadalete, onde acampara o
exército africano, lutou-se sem interrupção durante oito dias, de domingo a domingo, mas
diante do insistente empuxe do conde Julião e dos godos que estavam com ele, foram
dispersadas as linhas cristãs.
De seu lado, os dois filhos de Witiza [o rei anterior, assassinado por D. Rodrigo],
mancomunados com o conde Julião, estiveram ao lado do rei nesta batalha, um pela
direita e outro pela esquerda, comandando as alas cristãs. E diz-se que, na noite anterior,
conversaram com Tárik a fim de que, retirando-se eles da luta, o exército dos godos fosse
vencido com facilidade, e, uma vez morto Rodrigo, o trono vacante correspondesse a eles.
Pois não lhes passava pela mente que os árabes pudessem ou quisessem ficar em sua
pátria, e por isso, abandonadas as armas, escaparam logo que se travou a contenda.
Diz-se que o exército cristão contava com mais de 100.000 soldados, mas como a
graça de Deus havia afastado dos hispanos sua mão protetora, aquele povo triunfador,
aquele povo nobre foi humilhado pela vitória dos árabes.
Ao iniciar o combate, o rei Rodrigo comportava-se com valentia, mas abatida a
inábil força dos godos, aqueles que tinham por costume envaidecer-se com o sangue de
muitos viram-se reduzidos a que os inimigos se saciassem com o seu.
Julião animava os árabes para que aumentassem seu ardor na luta. O rei Rodrigo
batia em retirada e depois contra-atacava, mas, pela longa duração do combate, o povo
dos godos pereceu.
Desconhece-se o que aconteceu ao rei; no entanto, a coroa, as insígnias reais, o
traje ornado de pedras preciosas e o cavalo, foram encontrados num lugar lamacento junto
ao rio, sem vestígio de seu corpo.
Ó dor! Aqui termina a glória da grandeza goda, e aquela que submeteu tantos
reinos em tantas guerras, abateu numa só as bandeiras de sua glória. Aqueles que
assolaram com diversas matanças a Ásia, a Grécia, a Macedônia e o Ilírico; diante de
quem dobrou os joelhos Roma, senhora das terras; ante os quais o famoso Átila aceitou a
derrota na batalha dos Campos Catalaunicos; ante os quais os fugidios vândalos
abandonaram as Gálias; cujas batalhas ensurdeceram sempre o mundo com seus
imponentes trovões; esse povo, empunhando contra si mesmo sua própria espada, foi
aniquilado na recente revolta de Maomé, numa só batalha, em derrota sem precedentes,
para que todos saibam que o rico não deve vangloriar-se na sua riqueza, nem o poderoso
no seu poder, nem o forte na sua força, nem o sábio na sua sabedoria. Pois quem se gloria,
glorie-se no Senhor, porque é Ele quem fere e quem sara, Ele quem golpeia, Ele quem
cura.
Portanto, encerrada a batalha de forma lamentável, e como apenas houve alguém
que a ela não tivesse comparecido, mortos todos, ficou a terra vazia de gente, coberta de
sangue, banhada em pranto, aturdida de lamentos, aberta aos de fora, estranha aos seus,
despojada de habitantes, privada de seus filhos, confundida pelos bárbaros, apodrecida
pelo sangue, arruinada pelas feridas, desassistida de defesa e desprovista de consolo.
Os invasores foram mais rápidos que os leopardos e mais crueis que o lobo da
noite. Ante o povo dos africanos desabou o poderio dos godos num instante, e apenas há
quem chore o que destruiu o golpe da morte, ou quem grite aos caminhantes: “Vede se há
uma dor semelhante à minha dor!” Sua voz parece vinda de além-túmulo e sua palavra
ressoa como do fundo da terra; apenas se escutam sombrios gemidos e soluços.
Seus lares estão desabitados, sua honra transtornada, seus filhos morreram à espada
e os melhores estão prisioneiros. Seus chefes caíram na desonra e seus guerreiros no
aniquilamento. Que calamidades não se abateram sobre a Espanha? Os meninos são
massacrados, à morte os adolescentes são lançados, com espadas os jovens são
aniquilados, no combate os homens são destroçados, na derrota os anciãos são
exterminados.
A espada respeita os inimigos e se assanha com os próprios; não havia quem
freasse a luta de uns godos contra outros.
Quem dará uma fonte de lágrimas aos meus olhos? Emudeceu a santidade dos
sacerdotes, terminou a abundância dos religiosos, desapareceu a dedicação dos prelados e
perdeu-se o magistério da Fé. Os templos são destruídos, as igrejas derrubadas, e onde se
louvava com alegria, desafia-se com blasfêmias. A cruz é lançada fora dos lugares santos;
não há quem se preocupe em salvar-se. As festividades desapareceram por completo, e a
música da Igreja soou a blasfêmia.
Não houve na Espanha uma sé catedralícia que não fosse incendiada, arrasada ou
conquistada.
Então Oppa, bispo de Sevilha, aconselhava a todos que continuassem sua vida
submetidos aos árabes, pagando-lhes tributo, e se, por acaso, o Senhor quisesse socorrer a
pátria, eles ajudariam aqueles que viessem em seu auxílio. Desta forma, enganados por
essas palavras, entregaram os baluartes e as fortificações das cidades.
E o conde Julião aconselhou a Tárik que dividisse as forças de seu exército para
assolar a Espanha por diversos lugares, e cedeu-lhe alguns dos seus para servirem de
guias aos árabes.
Tárik povoou então as cidades de Córdoba e de Toledo com os árabes que levava e
com os judeus que ali encontrou. Depois chegou a Carmona e, advertido de que era
impossível toma-lê de assalto, enviou adiante o conde Julião com alguns cristãos,
fingindo-se vencidos que fugiam do combate. Acolhidos assim pela cidade,
entregaram-na aos árabes em troco do favor da hospitalidade.
E após tomar Sevilha, povoou-a Tárik com judeus e árabes.
Maldita seja a obcecação da ímpia loucura de Julião e a crueldade de sua raiva.
Maníaco por sua cegueira, impulsionado por sua raiva, lançado por sua loucura, esquecido
da lealdade, descuidado da religião, desprezador da Divindade, cruel contra si mesmo,
assassino de seu senhor, inimigo dos seus, aniquilador de sua pátria e culpado contra
todos. Que sua lembrança seja amargura em todas as bocas e que seu nome apodreça para
sempre.
Mas enquanto destroçavam a Espanha com tantos ataques, Deus onipotente, não
esquecendo, na sua ira, a sua misericórdia, quis preservar sob seus olhos Pelayo, como
uma pequena brasa.

D. Pelayo

O Duque de Cantábria, Pelayo, fora o único em cuja alma não morrera inteiramente
a esperança. Errante pelos cerros quase inacessíveis que se elevam no extremo oriental da
Galícia e que, passando ao norte da Cartaginense, vão encontrar-se no vulto gigante dos
Pirineus, o mancebo não dobrara a cerviz ao fado cruel que pesava sobre seus irmãos.
Poucos o haviam seguido naquela vida quase selvagem: mas esses poucos eram homens a
cujos olhos as afrontas da Cruz derribada do cimo das catedrais seria espetáculo incrível e
insuportável.
Uma caverna servia de paço ao jovem rei das montanhas e de templo ao
Crucificado. Os domínios de Pelayo eram as serranias e os vales profundos onde,
porventura, até então morava o javali indomável; a leve corça abasteciam a grosseira
mesa desses godos a quem a desgraça e a vida dura das solidões fizera mais feros, mais
indomáveis e mais ligeiros do que eles.
Ás vezes, Pelayo e os seus soldados desciam das montanhas para largas correrias,
semelhantes à tempestade noturna, e, como a tempestade, passavam pelas tendas dos
árabes ou pelas aldeias, despovoadas de cristãos, onde os infiéis começavam a fazer
assento. Alta noite ouvia-se aí um gemer de moribundos, via-se o brilhar do incêndio. Era
o vulcão do deserto que rugia por lá. Ao amanhecer tudo estava tranqüilo; porque, bem
como a procela, Pelayo era repentino e destruidor, e só escrevia na terra com os caracteres
sanguinolentos de ruínas e mortes, a notícia da sua quase invisível passagem.

Covadonga

Chegou a notícia do levantamento dos astures a ouvidos do vali [governador de


uma província] El Horr, no momento em que este se dispunha a penetrar com suas hostes
na Gália Gótica, e, não dando grande importância à insurreição, encarregou seu
lugar-tenente Alkamah o empreendimento de sujeitá-los. Partiu este, pois, com enorme
corpo de exército.
À aproximação da hoste sarracena, retirou-se Pelayo com todos os seus para o
monte Auseba. No fundo de um estreito e sombrio vale, ergue-se enorme rochedo, em
cujo centro uma abertura natural forma uma caverna, chamada, então e hoje, Covadonga.
Ali retirou-se Pelayo com quantos soldados pudessem caber naquele agreste recinto,
colocando o resto de sua gente nas alturas e bosques que fecham e estreitam o vale
irrigado pelo rio Deva, e esperou com serenidade o inimigo, contando mais com a
proteção do céu do que com suas próprias forças.
Orgulhoso e confiado, Alkamah fez avançar seu exército por aquela galeria de
rochas, deixando seus imensos flancos expostos aos golpes dos que nas colinas se
emboscavam.
Então começou aquele ataque, cuja celebridade perdurará tanto quanto durar a
memória dos homens. As flechas lançadas pelos árabes golpeavam o rochedo e voltavam
ferindo os infiéis, misturadas com as que, da gruta, os cristãos atiravam. Ao mesmo
tempo, os que se encontravam apostados no alto faziam rolar enormes penhascos e
troncos de árvores, que esmagavam os agarenos causando-lhes terrível destroço.
Apoderava-se o desalento dos muçulmanos, tanto quanto crescia o ânimo dos cristãos,
aos quais fortalecia a fé e encorajava a idéia de que Deus pelejava por eles.
Quando Alkamah viu sucumbir seu companheiro Suleiman, tentou ganhar as
vertentes do monte Auseba e ordenou a retirada, mas os árabes embaraçavam-se uns aos
outros naquelas estreitezas. Desabou então uma violenta tempestade que veio aumentar o
terror dos vencidos. O estrépito dos trovões, cujo eco retumbava com fragor por montes e
penedias; a chuva que caía em torrentes; os penhascos e troncos que de todos lados se
precipitavam sobre os árabes; o chão movediço que afundava sob os pés daqueles que
conseguiam ganhar alguma encosta, fazendo-os cair, escorregando, sobre os outros que
se revolviam no fundo do vale, e que pereciam afogados nas desbordadas águas do rio
Deva; tudo contribuiu para fazer crer que até os montes desabavam sobre os soldados de
Mafoma.
Terrível foi a matança: há quem afirme não ter sobrado um só muçulmano para
contar o desastre. De qualquer modo, o triunfo cristão foi glorioso e completo.

“Cuatrocientas mil cabezas


de los perros de Mahoma,
los valerosos cristianos
siegan, hienden y destrozan,
concediendo así la Virgen
al gran Pelayo victoria.”

[“Quatrocentas mil cabeças


dos cães de Mafoma
os valerosos cristãos,
ceifam, fendem e destroçam
concedendo assim a Virgem
a Pelayo a vitória”]

Durante muito tempo, quando as enchentes do rio descarnavam o sopé das colinas,
descobriam-se ossos e armaduras de soldados sarracenos. No meio da veiga de Cangas,
uma capela com a invocação da Santa Cruz mostra ainda hoje o lugar em que Pelayo
atacou, já em campo raso, seus dizimados inimigos.
Em poucas ocasiões foi mais manifesta para os homens a proteção do céu. Por isso,
não é de estranhar que, numa época de tanta fé, tudo fosse atribuído ao milagre e à
mediação da Virgem Maria, cuja imagem Pelayo levara à gruta consigo. As narrações
árabes referem também o sucesso com assombro, não ocultam que foi terrível a matança,
e fazem justiça ao valor e à audácia de D. Pelayo.
O imenso poder daqueles godos vira-se reduzido a um punhado de montanheses,
refugiados dentro de uma gruta, num canto desta Península. Mas daquela gruta saiu um
poder novo, que devia lutar contra outro povo gigante, e seria o fundador de um reino que
haveria de dominar dois mundos.

Morte dos traidores

Então o governador dos árabes, irritado pela derrota, suspeitou que se devesse a
uma maquinação dos filhos de Witiza e do conde Julião, e os livrou, ao mesmo tempo, de
seus tratados, de suas cabeças e de suas vidas.

———————
5. O Cid Campeador

Anônimo, Poema del Cid; Espasa-Calpe: Madrid, 1970, pg. 63-71. (Trechos
selecionados)

[Dom Rodrigo Díaz de Vivar, o Cid Campeador, após ter sido injustamente expulso
de Castela, encontra-se cercado numa fortaleza com seus guerreiros. Os mouros, muito
superiores em número, tentam vencê-los pela fome e o Cid reúne seus cavaleiros em
conselho.

— Dizei-me pois, cavaleiros, o que vos parece melhor fazer?


Falou primeiro Alvar Fañez, valente guerreiro:
— Até aqui somos vindos da gentil Castela, e se não lutarmos contra os mouros
jamais ganharemos o pão. Chegamos a seiscentos homens e talvez até mais. Em nome de
Deus, não se disponha outra coisa senão começar o ataque ao amanhecer!
Responde o Campeador:
— Muito me agrada vossa resposta, Alvar Fañez, e com ela fostes honrado. Não
podia esperar menos de vós.
No dia seguinte, ao despontar da aurora, o Cid e os seus já estão prontos para o
combate. E o Campeador disse o que agora ouvireis:
— Vós, Pedro Bermúdez, tomai meu estandarte: bravo sois e o defendereis
lealmente, mas não ataqueis enquanto não vo-lo ordene.
Osculou ele a mão do Cid e recebeu o estandarte.
Abriram-se então as portas e saíram todos.
Os sentinelas avançados, ao vê-los, correm a avisar seus exércitos. Com pressa
armam-se os mouros! Tal é o ruído dos tambores que a terra estremece. Armaram-se
prontamente e formaram suas fileiras; trazem eles duas bandeiras principais, e quem
poderia contar as secundárias?
Já se adiantam as fileiras dos mouros para enfrentar o Cid e os seus.
— Quietas, soldados, ninguém se mova daqui. Não saia um só das fileiras enquanto
eu não mandar.
Mas Pedro Bermúdez não pode conter-se. Com o estandarte na mão esporeia seu
cavalo:
— Deus vos valha, Cid Campeador leal! Vou meter vosso estandarte naquele
esquadrão maior. Agora veremos como sabem protegê-lo os que a isso estão obrigados.
Diz o Campeador:
— Não o façais, por caridade!
— Como poderei não fazê-lo?
E esporeando o cavalo avança contra o esquadrão mais compacto, onde os mouros
o esperam para arrancar-lhe o estandarte.
Mas apesar dos grandes golpes que lhe dão não conseguem feri-lo.
E o Cid brada:
— Ajudai-o, por caridade!
Então erguem os escudos diante do coração, abaixam as lanças envoltas cada uma
no seu pendão, inclinam as cabeças, e correm para os ferir com energia!
Aquele que nasceu em boa hora brada:
— Atacai-os, cavaleiros, por amor de Deus! Eu sou Rodrigo Díaz, o Cid
Campeador!
Caem todos sobre o esquadrão em que está lutando Pedro Bermúdez. São trezentas
lanças cada uma com seu pendão, e mataram trezentos mouros. Na segunda carga,
novamente matam mais trezentos.
Ah! se tivésseis lá visto tantas lanças subir e descer, tantos escudos novos
perfurados e quebrados, tantas cotas rasgadas e com as malhas perdidas, tantos pendões
brancos erguerem-se vermelhos de sangue, e tantos cavalos sem cavaleiro...
Os mouros invocam Mahomé e os cristãos São Tiago. Em pouco tempo são mortos
cerca de mil e trezentos mouros.
Ao bom Minaya Alvar Fañez os mouros mataram-lhe o cavalo, e as tropas cristãs o
auxiliam prontamente. Também quebrou ele a lança, mas deitou mão à espada e, mesmo
desmontado, vai dando golpes violentos.
Viu-o o Cid, e aproximando-se de um general mouro que montava um excelente
cavalo, deu-lhe uma espadagada que, cortando-o pela cintura, fez cair ao chão a metade
do corpo. Depois chegou-se a Alvar Fañez para oferecer-lhe o cavalo.
— Cavalgai nele, Minaya, vós sois hoje meu braço direito! Neste dia preciso de
vossa ajuda. Muito firmes estão os mouros, e ainda não os expulsamos do campo; é
necessário acabar com eles.
Montou Alvar Fañez sem soltar a espada e continuou lutando valentemente entre as
forças inimigas: desfaz a quantos atinge.
Entretanto, o Cid, que em boa hora nasceu, desfere três golpes contra o emir Fariz:
dois falham, mas o terceiro acerta e jorra o sangue pela couraça abaixo. O emir vira as
costas e tenta abandonar o campo. Mas com aquele golpe foi ganha a batalha!
Martín Antolínez lançou ao mouro Galvez uma espadagada tão tremenda que lhe
arrancou os rubis do elmo e, rachando-o, entrou-lhe na carne. Não quis o emir esperar o
segundo golpe.
Derrotados estão os emires Fariz e Galvez: dia de glória para a Cristandade! De
todos os lados fogem os mouros.
Ao encalço deles correm as tropas do Cid.
O emir Fariz refugiou-se em Terrer, mas a Galvez não o quiseram receber, e por
isso foge à rédea solta em direção a Calatayud. O Cid Campeador o segue de perto e a
perseguição continua até o pé das muralhas.
Alvar Fañez conseguiu matar trinta e quatro mouros. Como é cortante sua espada, e
como está ensangüentado seu braço, escorrendo-lhe sangue pelo cotovelo!
— Agora estou satisfeito — diz ele —, agora chegarão a Castela as boas notícias:
meu senhor Rodrigo Díaz foi vitorioso na batalha!
Tantos mouros caíram mortos que há poucos sobreviventes. Então começam a
retornar os guerreiros do Cid que os perseguiam.
Vendo chegar os seus, ele exclama: “Graças a Deus, que está no céu: a vitória é
nossa!”
Santa Joana d'Arc, alguns dados históricos

Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie., Paris, 1878.


H. Wallon, Juana de Arco, Espasa Calpe, Madrid, 1963.
J.B. Weiss, Historia Universal, Tipografía La Educación, Barcelona, 1929.

Todos os sinais precursores da morte de uma


nação pareciam anunciar que o fim da França era
iminente: todas as forças políticas e sociais estavam
desagregadas; a realeza, exausta por cinqüenta anos de
demência, não era nem sequer capaz de morrer com
glória; a nobreza, precipitada de derrota em derrota
por seu temerário orgulho e por sua falta de união,
passou de una presunção cega para um abatimento
fatal. O clero, despojado por suas próprias faltas do
domínio que outrora exercia sobre os espíritos,
deixava-se anular na luta entre os dois povos, não
sabendo tomar na defesa o papel que o clero inglês
havia tomado no ataque, e não oferecia mais que
conselhos inúteis à monarquia cristianíssima; a
Universidade de Paris, abandonada por seus melhores
campeões, incensava servilmente o rei estrangeiro. A burguesia sucumbia também, e
Paris, a cabeça e o coração do Tiers-État [da terceira classe social, o povo], traía os
destinos da nação, submetendo-se ao invasor [inglês].
A missão deste grande povo que havia dado à luz a Cavalaria, as Cruzadas, as artes
da Idade Média, que havia sido durante séculos o elo entre o Espiritual e o Temporal, esta
missão passaria agora para um outro povo? O papel da França entre as nações terminava
definitivamente? A Inglaterra o proclamava, e a Europa começava a crê-lo. O doux pays
agitava-se nos estertores da agonia.
De onde virá o socorro? Que potência desconhecida realizará o que não souberam
fazer as forças organizadas da sociedade francesa, o clero, a realeza, a nobreza, a
burguesia?... A única solução veio do Poder que fez sair os regeneradores da humanidade
dos pescadores de Genezaré! O Poder que faz surgir das profundidades sociais, quando as
elites apodrecem, as forças virgens que a Providência reserva misteriosamente! A razão e
a reflexão já não podem mais nada e são incapazes de entrever uma possibilidade de
salvação. A inspiração dos sentimentos saberá encontrar essas “sublimes loucuras” que
salvam o mundo!
Este abismo de confusão foi iluminado subitamente pelo raio puríssimo do ideal
Divino que traz a vida e a salvação! Do seio deste inferno surgirá o libertador, mas este
libertador será uma mulher...
Quando o estandarte da França caía das mãos dos homens, uma donzela, simples
pastorinha, o levantou, manteve-o erguido e infundiu um espírito novo nos corações tíbios
e desesperados. A nação francesa não devia perecer e mais uma vez manifestou Deus seu
poder por meio dos humildes. A salvadora da França foi: Joana d'Arc.

* * *

Os eclesiásticos queriam certificar-se bem de que a ciência de Joana não provinha


de satanás. Ordenou o rei que a Donzela fosse submetida a um solene interrogatório e
levada a Poitiers, onde estavam reunidos os teólogos da Universidade de Paris. O
Conselho do rei transladou-se a Poitiers em companhia de Joana.
Toda iluminada pelas chamas do Espírito Santo e transportada por uma alegria e
uma impaciência divinas, assemelhava-se ela a Jesus no meio dos doutores. Foi um
maravilhoso combate do sentimento inspirado contra a sofística sutil e a pesada teologia
das escolas. Que belo espetáculo! A disputa da ignorante contra os doutos, da donzela
contra os homens, sozinha contra tantos inimigos.
Os doutores fizeram chover sobre ela as citações, envolvendo-a nas mil dobras de
sua dialética, mas ela avançou com passo firme e seguro por meio daqueles labirintos;
desconcertou as sábias argúcias de seus examinadores com o imprevisto de suas respostas
e com o fino senso que ela aliava à exaltação mais ardente.
Após haver narrado como recebera as revelações, dizia ela que o rei devia dar-lhe
tropas para ir em socorro de Orleans.
— Se Deus quer libertar a França —
objetou um dos teólogos — Ele não precisa de
tropas.
— Em nome de Deus! — respondeu ela
— Os soldados combaterão e Ele dará a
vitória!
Um outro perguntou-lhe:
— Qual é a língua que falam as tuas
vozes?
— Uma língua melhor do que a vossa!
— Crês em Deus? — retrucou o teólogo,
irritado.
— Mais do que vós.
— Deus não deseja que acreditemos em
tuas palavras, se não fazes antes um milagre
para prová-las.
— Eu não vim a Poitiers para fazer
milagres! Levai-me a Orleans, e ali vos mostrarei os milagres para os quais fui enviada.
Dai-me homens de armas, por poucos que sejam, e partirei! Em nome de Deus, eu
quebrarei o cerco de Orleans, eu levarei o Delfim a Reims para ser coroado e eu lhe
entregarei Paris após a coroação. Para que tantas palavras? Não é tempo de conversar,
mas sim de agir!
Os teólogos, aturdidos por suas vivas respostas, lançaram mão de inúmeros autores
sacros e profanos, junto com as Sagradas Escrituras e os Padres da Igreja, para contestar a
autenticidade de sua missão, mas ela, levantando os olhos ao céu, respondeu:
— Nos livros de Deus há muitas mais coisas do que em vossos livros.
O espanto e a admiração iam lentamente reavivando aquelas almas ressequidas. Os
corações mais áridos não puderam resistir àquela chama; viram-se velhos legistas sair do
conselho chorando copiosamente. O bispo de Castres exclamou então que aquela donzela
era sem dúvida uma enviada do Senhor.
Joana venceu. Os doutores reunidos em Poitiers declararam que “após ter
examinado a donzela, encontraram nela todo o bem: humildade, virgindade, devoção,
honestidade, simplicidade...” E que aqueles que a rejeitassem ou a abandonassem
tornar-se-iam indignos da ajuda de Deus. Ela deveria ser levada a Orleans para mostrar o
que prometia.
O arcebispo de Reims, presidente da assembléia, assinou todas estas decisões.
Entretanto, La Trémoille, o favorito do Delfim, fazia todo o possível para evitar a
ajuda da Donzela, e só depois de muitas reticências os chefes franceses resignaram-se a
aceitar Joana d'Arc.
Os incidentes maravilhosos multiplicavam-se em torno dela: as vozes
afirmaram-lhe que existia uma espada, com cinco cruzes gravadas na lâmina, enterrada na
igreja de Santa Catarina de Fierbois. Ela mandou procurar, e a espada foi encontrada no
local anunciado. Joana cingiu essa arma misteriosa, e ordenou que fosse feito — sempre
em obediência às vozes — um estandarte branco semeado de flores de lis, “com a figura
de Nosso Senhor sentado em seu trono entre as nuvens do céu, tendo um globo em suas
mãos”, ladeado por dois anjos. Em torno estavam escritas as palavras Jesus, Maria, que
Joana adotou como lema, e no verso do estandarte via-se a imagem da Santíssima
Virgem.
As notícias sobre os fatos extraordinários acontecidos em Chinon e em Poitiers
chegaram rapidamente a Orleans e ao acampamento inglês. Os sitiados enchiam-se de
esperança e os ingleses, não acreditando que Joana pudesse ser enviada do Céu,
começavam a achar que ela bem podia ser um instrumento do inferno. A expectativa
daquele inimigo sobrehumano espalhava entre eles um vago terror.
Um arauto levou aos generais ingleses uma carta do singular capitão que eles
teriam de enfrentar. As vozes haviam ordenado a Joana que oferecesse a paz ao inimigo,
antes de golpeá-lo com a espada.
“+ Jesus, Maria+.
“Rei da Inglaterra, e vós, duque de Bedford, que vos fazeis chamar regente do reino
de França; vós, conde de Suffolk; Jean, senhor de Talbot, e vós, Thomas de Scales, que
vos intitulais capitães do duque de Bedford, dai razão ao Rei do Céu: entregai à Donzela
enviada por Deus, o Rei do Céu, as chaves de todas as cidades que haveis tomado na
França. Ela veio de parte de Deus, para reclamar o sangue real. Ela está pronta a fazer a
paz, se vós quiserdes reconhecer vosso erro e pagar tudo o que fizestes.
“E vós todos, arqueiros, companheiros de guerra, nobres e outros que cercais a
cidade de Orleans, ide para vosso país, em nome de Deus! Se assim não o fizerdes,
aguardai as notícias da Donzela, que vos visitará em breve para vossa desgraça.
“Se assim não fizerdes, Rei da Inglaterra, vede que sou capitão de guerra, e se eu
encontrar gente vossa em qualquer lugar da França, obrigá-los-ei a partir, queiram ou não.
E se não me obedecerem, os matarei a todos.
“Fui enviada por Deus, Rei do Céu, para expulsar-vos de toda a França. Terei
misericórdia daqueles que obedecerem. Vós não recebereis de Deus, Rei do Céu e Filho
de Santa Maria, o reino da França; mas recebê-lo-á o rei Carlos, pois o Rei do Céu assim
o deseja e revelou-o à Donzela, a qual entrará em Paris com seu exército.
“Se não quereis acreditar nas palavras de Deus e da Donzela, nós vos procuraremos
em qualquer lugar em que estiverdes, vos golpearemos e faremos uma caçada tão grande
como não se viu na França em mil anos. E acreditai-me: o Rei do Céu enviará à Donzela
mais forças do que todos os vossos assaltos, e na hora dos golpes veremos quem pode
mais: se vós ou o Rei do Céu.
“A vós, Duque de Bedford, a Donzela vos pede que não a obrigueis a destruir-vos.
Se aceitardes, ainda estareis a tempo de acompanhá-la a um lugar onde os franceses farão
a ação mais bela que foi praticada na Cristandade.
“Respondei-me se quereis fazer as pazes em Orleans. Se assim não quiserdes,
grandes desastres vos acontecerão em breve. Escrita na terça-feira de Semana Santa (22
de março de 1429).
“Da parte da Donzela.”
Joana devia dar com suas ações a própria demonstração de sua missão divina. No
dia 27 de abril, saiu de Blois com grande exército. Portava ela a armadura “tão
naturalmente, que parecia não haver feito outra coisa na vida”. Fez proibir as
blasfêmias, exortava os soldados a se confessarem e expulsou todas as mulheres de má
vida. À testa do exército marchava a Donzela entoando o Veni Creator Spiritus como
cântico de guerra. E o Espírito divino respondia: o seu sopro arrastava aquele exército do
Senhor.
As tropas pernoitaram em pleno campo. No dia seguinte, a Donzela, apesar de
fatigada e doente por haver dormido armada pela primeira vez, levantou-se e recebeu a
sagrada Comunhão diante do exército em ordem de batalha. Uma multidão de soldados,
passando repentinamente da devassidão e da indiferença para o entusiasmo e a fé,
ajoelharam-se diante dos sacerdotes que rodeavam a Joana, pedindo para voltar à graça de
Deus.
O dia 29, a expedição estava próxima de Orleans. Era preciso passar no meio dos
acampamentos ingleses e entrar na cidade sitiada.
Ao chegar diante de Orleans, aqueles cânticos, aquelas bandeiras desconhecidas e
aquele ambiente inusitado encheram os ingleses — que cercavam a cidade — de um
temor supersticioso. Joana havia predito que os inimigos “não se moveriam sequer” e
insistiu para que as tropas francesas fossem instalar-se de fronte às posições mais fortes
do inimigo, mas os capitães franceses, julgando-a por demais ousada, fizeram o contrário.
“Em nome de Deus — exclamou ela —; o conselho de Deus vale mais e é mais
seguro do que o vosso. Haveis tentado enganar-me, mas os haveis enganado a vós
mesmos, pois eu trago o melhor auxílio que jamais teve cavaleiro, vila ou cidade: é o
gozo de Deus e a ajuda do Rei do Céu, quem, a rogos de São Luiz e de São Carlos
Magno, teve misericórdia de Orleans.”
Ao entardecer daquele mesmo dia, inteiramente armada, montando um cavalo
branco e fazendo portar diante de si o seu estandarte, entrou Joana D'Arc na cidade de
Orleans. Dirigiu-se diretamente à catedral, em meio às aclamações e o júbilo de todo o
povo, “dos homens, das mulheres e das
crianças, que mostravam tanta alegria como
se o próprio Deus tivesse descido entre eles”.
Vãos resultaram todos os esforços para
manter à distância aquela multidão: todos
precipitavam-se ao seu encontro querendo
tocá-la ou, pelo menos, roçar seu cavalo.
“Sentiram-se todos muito reanimados —
narra o diário do assédio — como se não
existisse cerco algum, por causa da divina
virtude que emanava daquela humilde
donzela”.
O efeito moral desta primeira jornada
foi imenso: a confiança, que antes animava os
sitiantes, passara para o coração dos sitiados
e da tropa francesa. Joana teria desejado
levá-los todos ao assalto das fortificações
inglesas desde o amanhecer, mas a maior
parte dos capitães protestaram contra essa
temeridade e decidiram, para grande desgosto
de Joana, que não atacariam até a chegada de
todo o exército.
Joana saiu à planície e cavalgou lentamente ao longo das barricadas inimigas,
examinando as posições com olhos de capitão experimentado. O povo a seguiu em
multidão, como se a sua presença fosse proteção mais segura do que as muralhas da
cidade. Os ingleses não tentaram impedir o audacioso reconhecimento nem atacar a turba
desarmada. Aqueles homens intrépidos pareciam medrosos como mulheres, enquanto as
próprias mulheres se transformavam em heróis contra eles.
“Parecia que tinham as mãos atadas. Antes que a Donzela chegasse, apenas
duzentos ingleses faziam fugir oitocentos do exército real, mas depois de sua chegada,
quatrocentos franceses combatiam contra todas as forças inimigas, e as obrigavam a
refugiar-se atrás das barricadas”.
O resto do exército francês apareceu no dia 4 de maio na margem direita da Loire.
Joana foi ao seu encontro com uma parte da guarnição e os ingleses nada fizeram para
impedi-lo. A Donzela, fatigada pela cavalgada, recolheu-se para tomar algum repouso,
mas apenas havia fechado os olhos, acordou bruscamente dando um forte grito:
“As vozes me chamam! As tropas precisam de socorro! Corre o sangue de nossa
gente! Minhas armas, minhas armas e meu cavalo!”
Arma-se precipitadamente, empunha o estandarte, salta em seu cavalo e atira-se à
rédea solta, “arrancando chamas das pedras do solo”, em direção à porta de Bourgogne.
Os franceses haviam feito um ataque sem avisá-la, provavelmente por ordem dos chefes
que não queriam atribuir-lhe as honras da vitória, e muitos soldados voltavam feridos.
Ao vê-la aparecer, os fugitivos lançaram um grande clamor e voltaram ao ataque. O
assalto recomeçou com furor. O inglês Talbot tentou conduzir as tropas em socorro da
fortificação atacada, mas teve medo de ser submergido por aquela onda furibunda e
voltou a seu posto. Nada pôde resistir ao ardor dos franceses e, depois de três horas de
combate, a barricada foi assaltada, destruída e queimada.
No dia 6 de maio, a Donzela, Dunois, La Hire, Boussac e Gaucourt atravessaram o
rio e atacaram as barricadas do lado da Sologne. O inglês Glansdale, que comandava as
fortificações desta margem do rio, retirou-se à barricada dos Augustins, mas a Donzela,
sem esperar que todos seus companheiros cruzassem as águas, correu a seu encalço e
cravou o estandarte aos bordos do fosso. Nesse instante, alguém gritou que os ingleses da
outra margem vinham, com grandes forças, em socorro de Glansdale; os homens da
Donzela recuaram para os barcos em debandada, e arrastaram-na nesse movimento de
retirada.
Ao ver isto, a tropa inglesa saiu da barricada e atirou-se em direção a ela, com
grandes imprecações e injúrias. O instante foi decisivo; uma só derrota ia dissipar o
prestígio que cercava a Joana e arruinar as esperanças da França. O risco não foi longo: a
Donzela virou rédeas, abaixou a lança e precipitou-se contra os ingleses lançando seu
brado de guerra: “Em nome de Deus!”
La Hire correu após ela, e em seguida muitos outros; o pânico apoderou-se dos
inimigos, e deram-se a uma fuga vergonhosa, voltando a seus baluartes. Os franceses os
seguiram, e a barricada foi novamente atacada; fossos, escarpas repletas de armadilhas,
paliçadas, parapeitos guarnecidos de artilharia, tudo foi inútil: os assaltantes penetraram
por todos os lados e passaram a fio de espada todos os defensores.
Joana, ligeiramente ferida, retornou a Orleans e resolveu atacar a barricada das
Tournelles ao dia seguinte. Mas os capitães não eram da mesma opinião: eles temiam
comprometer os resultados obtidos, e talvez temiam mais ainda que as próximas vitórias
dariam à Donzela um brilho que os apagaria a todos.
À tarde, reuniram-se em conselho sem chamá-la, e mandaram dizer-lhe que não
atacariam antes da chegada de novos reforços. Ela então respondeu:
“Vós tivestes vosso conselho e eu tive o meu. O conselho de meu Senhor se
cumprirá; o conselho dos homens perecerá! Amanhã combateremos”.
Ao romper do dia, a Donzela montou a cavalo, anunciando que antes do entardecer
ela voltaria vitoriosa pela ponte da Loire. O conselho dos chefes decidiu impedi-la de
passar e Gaucourt, comandante da cidade, guardava pessoalmente a porta de Bourgogne,
declarando que ninguém a transporia. Joana ordenou ao povo que abrisse a porta. À sua
voz, os soldados precipitaram-se com tal fúria que Gaucourt quase foi despedaçado. O
povo, arrastando os canhões, saiu da cidade como uma torrente e lançou-se ao ataque. Os
capitães viram-se forçados a acompanhar o movimento.
As posições inglesas foram cercadas entre dois fogos: uma tropa francesa abriu um
terrível bombardeio contra o forte das Tournelles, enquanto, do lado oposto, Joana dava o
sinal de ataque.
Foi uma luta de gigantes: Glansdale tinha em torno de si a flor dos melhores
guerreiros da Inglaterra, animados pela ufania das antigas vitórias e pela cólera das
recentes derrotas, que se defendiam com coragem obstinada e furor sombrio. Quanto aos
franceses, atiravam-se ao assalto “como se cressem ser imortais” Através das balas, das
flechas, dos dardos e das pedras, arrancavam as paliçadas, enchiam os fossos e escalavam
as fortificações, mas caíam golpeados pelos machados, as lanças e as maças dos
ingleses...
A luta durava já três longas horas. Joana exortava seus homens a “ter bom coração
e esperança em Deus”, mas ao ver que os franceses fraquejavam e hesitavam,
precipitou-se no fosso, empunhou uma escada e subiu de primeira. Nesse instante, uma
flecha atingiu-a entre a couraça e a gorjeira, e fê-la cair por terra.
Imediatamente foi levada à retaguarda, mas, tomada por um êxtase, retomou toda
sua energia e arrancou ela mesma o dardo da ferida exclamando: “Não é sangue o que
brota das feridas, mas sim glória!” Entretanto, a notícia de sua queda espalhara o
desalento no exército e os chefes queriam dar a ordem de retirada quando Joana proferiu
um brado de guerra: “Às armas! A barricada é vossa!” Lançou-se sobre o cavalo e
ordenou que o ataque continuasse.
O seu estandarte havia ficado cravado junto às fortificações inimigas.
— Olhai! — disse ela ao cavaleiro que a acompanhava — E avisai-me quando a
ponta de meu estandarte tocar a barricada.
Um instante depois, o vento fez ondear o estandarte do lado dos ingleses, e ele
exclamou:
— Eis que já toca!
— Tudo é vosso! Entrai! — bradou a Donzela galopando rumo ao inimigo.
Ao vê-la, um tremor de espanto percorreu as fileiras inglesas; os franceses voltaram
à carga com o ímpeto de um furacão, e escalaram as fortificações tão facilmente como se
fosse uma escadaria. Um furioso combate corpo a corpo recomeçou sobre o próprio
parapeito. A audácia dos companheiros da Donzela pareceu comunicar-se à tropa que
bombardeava as Tournelles do lado oposto. Eles cruzam uma frágil ponte sob o fogo
inimigo e tomam de assalto as defesas exteriores da barricada, no momento em que Joana
e seus homens penetravam afinal no grande forte.
Os ingleses, aterrados, crêem ver exércitos de fantasmas por todos os lados; os
franceses, arrebatados pelo entusiasmo da Donzela, exclamam que os santos patronos de
Orleans acorrem em cavalos brancos; outros vêem o chefe dos exércitos celestes, o
Arcanjo São Miguel, conselheiro de Joana; e uma pomba branca, símbolo do Espírito
Santo, pairando sobre o estandarte da Donzela.
Toda a resistência cessou; o estandarte da Donzela flutuava no alto do forte.
“Rende-te, Glansdale! Rende-te ao
Rei do Céu!” bradou ela, enquanto o
chefe inglês fugia para a fortaleza. Uma
bala, lançada por uma bombarda francesa,
quebrou a ponte levadiça pela qual ele
entrava, e Glansdale desapareceu no fosso
inundado pela Loire.
Quase toda a tropa inglesa foi
morta ou cativada, e o tamanho da derrota
não era simplesmente devido ao número.
Os seiscentos homens que os ingleses
perderam nesse dia eram a elite de sua
Cavalaria.
Os chefes ingleses reuniram-se em
conselho, enquanto ouviam o repicar dos
sinos, cujas alegres badaladas celebravam
a vitória de seus inimigos: resolveram
eles levantar o cerco, enquanto a Donzela,
cumprindo sua previsão, entrava em
Orleans pela ponte da Loire, em meio aos
brados de júbilo e a um regozijo popular,
mais fácil de ser imaginado do que
descrito. Dez mil vozes entoaram o Te
Deum sob as abóbadas da catedral da Sainte-Croix.
A França inteira esperava com ansiedade a realização das promessas de Joana
d'Arc. Os ecos dos acontecimentos sucedidos em Orleans espalharam-se com rapidez
inaudita, reanimaram os corações fiéis à causa nacional e despertaram os que se haviam
resignado ao domínio estrangeiro. Todos diziam que afinal Deus deixara de castigar a
França, e enviava o seu anjo para tirá-la do abismo.

———————
Vitória na terra, traição e holocausto — Vitória no céu e morte dos traidores

Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie., Paris, 1878.


H. Wallon, Juana de Arco, Espasa Calpe, Madrid, 1963.
J.B. Weiss, Historia Universal, Tipografía La Educación, Barcelona, 1929.
Régine Pernoud, Vie et mort de Jeanne d'Arc, Librairie Hachette, 1953.

No dia seguinte à libertação de Orleans, ferida como estava, Joana partiu de


encontro ao rei, a fim de apressá-lo a marchar diretamente sobre Reims. Um entusiasmo
indescritível acolhia-a por todos os lugares onde passava: populações inteiras
ajoelhavam-se a seus pés, e aqueles que não tinham a dita de chegar junto a ela para
oscular suas mãos ou suas vestes, osculavam as pegadas de seu cavalo.
Foi ela recebida pelo rei com grandes honras, mas não eram honras o que desejava
ela: eram soldados e armas; mais ainda, que o próprio rei montasse a cavalo e a seguisse!
Em vão tentou comunicar àquela natureza indiferente e mole, a chama heróica de sua
alma. Carlos VII não teve um só relâmpago de élan, e Joana encontrou nele, no dia
seguinte à vitória de Orleans, os mesmos obstáculos que encontrara anteriormente:
fechava-se àquelas vozes celestiais, que com tanta clareza falavam a Joana, e não se
movia apesar de presenciar as maiores maravilhas.

A campanha do Loire

Quando a Donzela anunciou que “já era tempo de o rei se pôr a caminho, para ser
coroado em Reims”, Carlos e todo o seu conselho protestaram contra a impossibilidade
do empreendimento: “Os inimigos do rei são por demais fortes! O rei não tem dinheiro
para pagar o exército!”
Mas ela respondia: “Eu vos afirmo que levarei o gentil rei a Reims, e lá o vereis
coroado!”
Noutro dia, bateu à porta do monarca e, abraçada a seus pés, implorou-lhe:
— “Nobre Delfim, não vos preocupeis com tantos e tão longos conselhos; ide logo
a Reims para cingir vossa coroa! Pois eu não durarei mais que um ano, e deveis
utilizar-me bem”.
O rei prometeu, afinal, marchar sobre Reims, porém, só quando tivesse reunido um
novo exército. Joana suplicou-lhe que, enquanto esperavam, concedesse alguns homens
de guerra para limpar as margens do Loire de tropas inglesas.
O duque de Alençon recebeu, então, o comando desse corpo do exército, com
ordens de “agir sempre sob o conselho da Donzela”, e entrou em campanha com mil e
duzentas lanças.
O conde de Suffolk defendia Jargeau com setecentos homens de elite, e, à chegada
dos franceses, fez uma súbita e violenta carga. Houve um momento de hesitação e
desordem; a infantaria começava a recuar, mas a Donzela ergueu seu estandarte e
atirou-se no mais forte da melée. Os franceses recuperaram então sua audácia e o inimigo
foi empurrado para dentro de Jargeau.
No dia seguinte a artilharia francesa fulminou a cidade. Foi Joana quem indicou a
posição das baterias com um extraordinário golpe de vista. Às nove horas da manhã,
embora fosse domingo, ela fez tocar as trombetas, bradando ao Duque de Alençon:
“Vamos, gentil duque, ao ataque!” O Duque considerava ser ainda cedo, mas a Donzela
exclamou: “É a hora em que compraz a Deus romper o fogo. Não duvideis; é necessário
obrar quando Deus quer. Trabalhai e Deus trabalhará. Será que tendes medo, gentil
duque?”
Ao terceiro dia, Suffolk pediu a rendição com quinze dias de trégua e com direito a
ser socorrido, mas as condições foram recusadas e os franceses decidiram lançar-se ao
assalto.
Após quatro horas de terrível combate, como a resistência dos ingleses não cedia, a
própria Joana subiu por uma escada de mão, empunhando seu estandarte, no lugar onde a
defesa dos ingleses era mais enérgica. Porém, um tiro acertou o estandarte e uma grande
pedra atingiu seu elmo. Joana rolou até o fosso da muralha, mas reergueu-se com presteza
bradando à sua gente:
— “Avante! Nosso Senhor condenou os ingleses, e serão todos nossos! Ânimo!”
Os franceses, arrebatados por sua voz, atiraram-se então com furor, derrubando
todos os obstáculos: a vila e a ponte fortificada foram tomadas de viva força, e quinhentos
inimigos foram passados a fio de espada.
Poucos dias depois, foi anunciada a proximidade de um corpo do exército inglês de
seis mil combatentes. A alegria brilhou no rosto de Joana, mas vários capitães hesitaram:
aqueles mesmos homens que haviam conquistado as formidáveis posições do inimigo não
se atreviam a enfrentá-lo em campo raso. A superioridade dos ingleses em batalha campal
havia sido tantas vezes confirmada!...
— Combateremos, Joana? — perguntou o duque de Alençon.
— Tendes boas esporas? — respondeu ela.
— O quê? Para fugir?
— Não, para perseguir! Pois os ingleses fugirão, e precisareis das esporas para
correr trás eles. Em nome de Deus, cavalgai com coragem! Ainda que eles se
pendurassem nas nuvens, nós os alcançaremos. Não teremos quase nenhuma perda. O
meu conselho me disse que eles serão todos nossos.
Os capitães ingleses, entretanto, discutiam sobre se convinha ou não aceitar o
combate. Falstoff, objetando que as tropas estavam aterradas, aconselhava a retirada para
as praças fortes das cercanias, “até que os soldados estivessem mais tranqüilizados”. A
discussão ainda durava quando avistaram uma coluna de cavalaria francesa
aproximando-se a trote rápido.
Antes que os ingleses tivessem tempo de preparar-se para a defesa, mil e
quinhentos cavaleiros caíram sobre eles como relâmpagos.
A sorte da jornada decidiu-se num instante. Os ingleses, quebrados no primeiro
choque, viraram rédeas e fugiram através dos campos, seguidos de perto pelos franceses.
Dois mil ingleses foram mortos e duzentos caíram prisioneiros. Os franceses, conforme a
previsão de Joana, quase não tiveram baixas. Tal foi a vitória de Patay.

Vitória e Consagração em Reims

O efeito desta fulminante campanha de oito dias foi prodigioso: o povo e os


soldados só queriam saber de Joana. A sublime Donzela transformava as almas, e só se
ouvia um brado através dos exércitos: “Vamos a Reims! Vamos a Reims!”
Entretanto, em todo o partido francês só havia um lugar onde este clamor não
ecoava: o salão do rei...
Joana havia se deparado inicialmente com a incredulidade do Delfim; mas agora
tinha ele medo de receber serviços por demais grandes. Carlos sentia uma surda inveja
contra essa influência impetuosa que arrastava tudo atrás de si; uma tal generosidade o
ofuscava.
No Conselho real, pediam os capitães uma direção mais prudente da guerra, mas
Joana desejava empreender imediatamente a expedição a Reims. O clamor do exército
aumentava dia após dia, e os soldados teriam-se debandado se não os conduzissem
imediatamente em direção a Reims.
O rei, apesar de sua incredulidade e covardia, não pôde mais resistir. Cedeu
finalmente e pôs-se em marcha à cabeça de 12.000 combatentes, quase todos a cavalo.
A atitude da população confirmava as promessas de Joana e as esperanças do
exército: os franceses eram aclamados como libertadores por onde passavam, e a elite da
nobreza e do povo acorria para aumentar seus esquadrões.
Entretanto, Troyes opôs resistência. Durante cinco dias acampou o exército ao pé
das muralhas sem que a cidade se dignasse a abrir as suas portas.
Reuniu-se então o Conselho do rei, sem convocar a Joana, e já deliberavam a
retirada quando ressoaram violentos golpes na porta. Era a Donzela que se apresentava de
improviso.
— “Acreditareis no que vos direi?” — Perguntou ao rei.
— “Não sei. Depende do que digas” — Respondeu Carlos.
— “Nobre Delfim, lançai vossa gente ao ataque e não vos demoreis mais em
longos conselhos, porque, em nome de Deus, antes de três dias vos introduzirei na
cidade, pelo amor ou pela força”.
Ante este imperioso apelo, resolveu o monarca suspender a retirada e deixou a
Donzela fazer o que desejava.
Joana não esperou o dia seguinte. Saltou no seu cavalo e imediatamente pôs todo o
exército em pé de guerra. Cavaleiros, escudeiros e arqueiros trabalharam sem cessar
durante toda a noite nos aprestos do combate. Joana “fez tão extraordinários trabalhos
como não teriam conseguido fazer dois ou três dos mais experimentados e hábeis
capitães”
O tumulto destes preparativos noturnos produziu um grande desconcerto nos
habitantes da cidade. E às primeiras luzes do amanhecer viram eles tremular ao pé das
muralhas o estandarte da Donzela e ouviram-na bradar “ao assalto!” com poderosa voz.
Os batalhões franceses lançaram-se em direção das fortificações carregando
escadas, com tal ímpeto e segurança, que as altas torres e muralhas pareciam incapazes de
resistir ao impacto. Um súbito terror gelou os sitiados: alguns disseram haver visto uma
multidão de espíritos pairando sobre o estandarte de Joana; e o povo em massa gritava
que, “querendo ou não os senhores, os cavaleiros e os escudeiros”, desejava render-se.
Então, as portas da cidade se abriram, e o próprio bispo, acompanhado dos principais
burgueses e da gente de armas, apresentou a capitulação.
No dia seguinte o exército continuou a marcha em direção a Reims, com Joana à
testa, sempre inteiramente armada.
De todas as partes, acorriam as multidões maravilhadas para ver passar à Donzela
na sua marcha triunfal.
Entretanto, ao ser perguntada se não temia a morte quando se lançava no combate,
respondeu ela: “Eu só temo a traição”. Palavras proféticas que demonstravam que a sua
inocência não diminuía em nada a sua desconfiança, e que ela lia o fundo das almas
perversas que cercavam o monarca.
Finalmente, a Donzela divisou ao longe as grandiosas torres de Notre-Dame de
Reims.
Apesar de que Carlos VII ainda temia um súbito malogro, no domingo 17 de julho
de 1429, ele foi solenemente coroado rei da França, e os clamores de “viva o Rei!”
ressoaram pelas magníficas abóbadas ogivais. Os olhares de todos os assistentes estavam
fixos sobre aquela extraordinária Donzela, que permanecia de pé, à direita do altar,
empunhando seu estandarte de guerra. Esta celestial figura, iluminada por um misterioso
raio de luz que provinha de um vitral, parecia o anjo da França presidindo a ressurreição
da nação. E dir-se-ia que em volta dela, ao som das trombetas que tocavam “até quase
fazer saltar as abóbadas da catedral”, animava-se a imensa multidão que enchia e
rodeava a augusta basílica.
Após a sagração de Carlos VII, ajoelhou-se Joana a seus pés, derramando ardentes
lágrimas, e pela primeira vez chamou-o com o título de Rei:
— “Gentil Rei, cumpriu-se agora a vontade de Deus, que desejava que vós
recebêsseis em Reims a digna unção, para mostrar que sois o verdadeiro rei e aquele a
quem o reino pertence.”
Entretanto, a pálida e fria figura de Carlos VII desaparecia aos olhos de todos,
ofuscada pela fulgurante auréola da pastora de Domremy.
A glória de Joana atingia seu ápice e ultrapassava qualquer outra glória, como a sua
santidade, aos olhos do povo, era superior a qualquer santidade comum. Era considerada
como um ser descido do Céu, mais do que uma pessoa por alcançar o Paraíso. O povo
canonizava-a em vida, sem esperar a prova da morte nem a consagração da Igreja. Muitos
nobres e cavaleiros abandonavam seus escudos e brasões e mandavam fazer estandartes
semelhantes ao da Donzela. O povo levava no pescoço medalhas com sua efígie,
entronizava suas imagens dentro das igrejas e introduzia na própria liturgia da missa
orações em sua honra. Vivia-se numa atmosfera sobrenatural e todos consideravam que
estavam sendo dirigidos diretamente por Deus.
A França, desagregada e quase morta, levantava-se do sepulcro à voz de Joana,
como outrora Lázaro à voz de Jesus.
Nos lugares onde a Religião era ainda um sentimento vivo, um princípio de vida,
todos seguiam a Joana; mas onde a Religião não era senão uma fórmula, uma regra
exterior, uma mera doutrina abstrata — no alto clero político, na turba escolástica —, a
Donzela não despertava mais que uma espantosa inveja. Inveja dos depositários da
autoridade oficial contra a livre inspiração que vem diretamente de Deus; inveja dos
doutores, dos homens da glosa e do silogismo contra a sublime ignorante que lê, como ela
mesma dizia, um livro que os homens não podem ler; áspera e surda cólera das almas
ressequidas e sofísticas contra o Espírito Santo que vem perturbar os mortos nos seus
sepulcros caiados! Enfim — é necessário também dizê-lo — os escravos da letra e da
ortodoxia estreita sentiam medo, ante uma irrupção da Providência que operava fora de
todas as fórmulas estabelecidas!
Igual cisão abria-se entre os chefes de guerra. Os jovens, como o duque de
Alençon, Dunois e Laval, e, entre os velhos capitães, aqueles que tinham conservado,
apesar dos vícios e das violências da época, o antigo coração franco e a generosidade
nativa, todos estes, tinham o mesmo sentir do povo e eram capazes de seguir Joana até as
extremidades da Terra. Mas em muitos outros casos, só havia um ressentimento interior e
uma inveja do domínio desta Donzela que proibia a pilhagem e impunha um freio a todos
os vícios.
Esta imensa ingratidão não permanecia inativa. A inveja, o egoísmo, a volúpia, o
ceticismo, o espírito farisáico, todos os vícios calcados aos pés por esta virgem,
conjuraram-se contra ela.
Quando o homem, num supremo sacrilégio, emprega sua liberdade e sua vontade
para impedir que se cumpram as promessas divinas, não comete ele o irremissível pecado
contra o Espírito Santo do qual nos fala a Escritura?

A traição e a prisão

Joana sucumbiu pela traição como havia temido, e o principal traidor foi o próprio
rei da França...
“A Paris! A Paris!”, exclamou a Donzela após a sagração do monarca. E os 20.000
homens de armas que se encontravam em Reims ecoaram este brado. Mas Carlos VII
queria negociar: assinou uma trégua com o adversário, desprezando o braço que Deus lhe
estendia na pessoa da Donzela.
Joana, profundamente contristada, declarou aos habitantes de Reims que não se
admirassem se ela não tomava Paris “tão brevemente” como havia esperado, e
acrescentava: “Não sei se eu manterei estas tréguas, mas se as mantenho será
unicamente para salvar a honra do Rei.”
E assim, foi Joana obrigada a permanecer inativa durante longo tempo na corte do
monarca.
Nove meses depois, abandonou ela definitivamente ao Rei, sem sequer
despedir-se, e nunca mais voltaram a encontrar-se. Seguida apenas por um punhado de
valentes ligados a ela até a morte, partiu com a alma dilacerada mas decidida a continuar
a luta ainda que sozinha.
O Duque da Borgonha, aliado dos ingleses, prosseguia a guerra, e seu exército
acampou diante de Compiègne. Joana, para salvar esta cidade francesa, penetrou nela
com a pequena tropa que a seguia.
Numa manhã, disse às pessoas que a rodeavam: “Meus amigos, estou vendida e
traída, e logo haverei de morrer. Orai por mim, porque em breve nada mais poderei
fazer pelo Rei e pelo reino de França.”
No dia 24 de maio de 1430, às cinco da tarde, Joana saiu da cidade à testa de
quinhentos homens de elite, para atacar o inimigo. Mas depois de um terrível combate, as
tropas francesas, imaginando-se perdidas, debandaram-se em direção da cidade. No
entanto, os mais bravos, os mais devotados companheiros da Donzela, resistiam em torno
dela. “Retirai-vos à cidade, — bradaram eles — ou vós e nós estamos perdidos”. Mas
Joana respondeu: “Calai-vos! Será vossa culpa se eles não são hoje derrotados! Não
penseis senão em golpear!”
Apesar destas palavras, seguraram as rédeas de seu cavalo e arrastaram-na em
direção à ponte levadiça. Porém, a ponte havia sido levantada e a retirada estava
cortada... Todos os inimigos lançaram-se contra ela, e o estandarte sagrado, que havia
sido a salvação da França, o estandarte de Orleans, de Patay e de Reims agitou-se em
vão, pedindo reforços.
O santo estandarte rolou e os últimos defensores da Donzela foram massacrados ou
separados dela pela imensa multidão dos atacantes.
“Rendei-vos!” — gritavam-lhe todos, mas Joana continuava a defender-se
heroicamente. Seis cavaleiros seguraram seu cavalo e um arqueiro puxou-a violentamente
pela capa. Joana caiu do cavalo...
O anúncio das vozes estava cumprido; o período da luta terminava e iniciava-se o
longo e terrível martírio da Virgem da Lorena.

O processo

No dia 21 de fevereiro, Joana foi chamada ao tribunal, instalado na capela do


castelo de Rouen. Cauchon presidia a assembléia e em seu redor sentavam-se mais de
quarenta doutores de teologia, direito canônico e direito civil.
Joana apareceu pálida, alquebrada pelas angústias de dois meses de um horrível
cativeiro. Uma verdadeira tempestade levantou-se à sua entrada; dir-se-ia que um anjo
penetrava numa assembléia de demônios. As interpelações cruzavam-se de todas as
partes e a cada palavra da acusada redobrava o tumulto. Se a exaltação parecia às vezes
diminuir, não era senão para ceder o lugar à astúcia; o interrogatório só deixava de ser
violento para transformar-se em pérfido. Estas cenas prolongaram-se durante duas horas
seguidas.
Queriam abater Joana tanto pela fadiga física como pelo sofrimento moral;
esforçavam-se em deixá-la fora de combate lançando a dúvida no seu espírito pela
sutilidade, a multiplicidade e a incoerência das perguntas, as quais “os maiores
eclesiásticos só com grandes dificuldades conseguiriam responder”.
No entanto, ela replicava sem duvidar. Às vezes simples e inocente, outras vezes
demonstrando uma impressionante sutileza, muitas vezes sublime, mas nunca débil. A
força de sua alma sustentava seu corpo esgotado, e ela era diante de seus juízes o heróico
guerreiro que havia sido no campo de batalha.
— “Estais em estado de graça?”
— “Se não estou, rogo que Deus mo conceda; e se estou, que Deus nele me
conserve, pois preferiria morrer antes de perder a graça de Deus.”
À pergunta de “se punha a esperança de suas vitórias em seu estandarte ou em si
mesma”, contestou: “A minha esperança está no Senhor, e não noutra coisa”.
Perguntaram-lhe se Deus odiava os ingleses, ao que respondeu: “Deus ama o rei
da França e deseja que os ingleses saiam do país”.
Sobre as aparições, chegaram a perguntar:
— “Estava São Miguel desnudo?”
— “Acreditais que não tem Deus com que vestir a seus anjos?”
Um dos pontos mais controvertidos foi o culto que o povo lhe tributava. Quando a
censuraram pelas missas e orações ditas em sua honra, ela replicou:
— “Se os de meu partido rezaram por mim, parece-me que não fizeram nada de
ruim. E se eles acreditam que Deus me enviou, não se iludem.”
— “Qual era a intenção dos membros de vosso partido quando vos osculavam as
mãos e os pés?”
— “Tanto quanto possível, evitava que me osculassem as mãos; mas as pessoas
acorriam de tão boa vontade que, para não desgostá-las, eu as suportava com
naturalidade.”
— “Acreditais que não podeis pecar mortalmente?”
— “Não sei, mas confio inteiramente em Nosso Senhor. Eu me salvarei, desde que
guarde a virgindade de corpo e de alma.”
— “Mas é preciso confessar-se quando a pessoa se crê salva?”
— “A consciência nunca estará por demais limpa”.
Levantaram uma questão terrível e decisiva:
— “Submetereis as vossas aparições ao juízo da Igreja?”
— “Amo a Igreja e desejo defendê-la com todas as forças. Mas a respeito das
minhas boas obras e minha vinda, submeto-me ao Rei do Céu que me enviou.”
Explicaram-lhe então que havia uma Igreja militante e outra triunfante, que ela
devia submeter-se à primeira porque não podia apelar à segunda, e que a Igreja militante
estava representada nos seus juízes.
— “Solicito ser levada diante do Papa, e só a ele direi o que devo responder”.
[No entanto, o tribunal condenou Joana à fogueira.]
O holocausto

Raiou finalmente aquele terrível e grandioso dia, 30 de maio de 1431. Por um


singular paradoxo, Joana, que havia sido declarada herética e excomungada, foi
autorizada a receber os últimos sacramentos.
Quando Cauchon, acompanhado de sete ou oito assessores, entrou na prisão, Joana
exclamou: “Bispo, morro por vossa culpa!”
Das mãos de um frade dominicano, Joana recebeu a Sagrada Eucaristia “Humilde e
devotamente, com grande abundância de lágrimas”.
Fora, constituía-se o fúnebre cortejo no pátio do castelo.
Joana revestiu-se de uma longa túnica e colocaram na sua cabeça a mitra dos
condenados pela Inquisição, sobre a qual estavam escritas as palavras: “Herética, relapsa,
apóstata, idólatra”, e fizeram-na subir numa carroça puxada por quatro cavalos.
Neste momento, ouviu-se um grande tumulto: um sacerdote, pálido e sobressaltado,
subiu precipitadamente à carroça e dirigiu a Joana palavras entrecortadas e gestos
suplicantes. Era Loyseleur, o infame agente das maquinações de Cauchon, que implorava
perdão a sua vítima. Os guardas ingleses quiseram fazê-lo pedaços, mas o conde de
Warwick salvou-lhe a vida.
O cortejo pôs-se em marcha. 800 homens de armas escoltavam a carroça ou faziam
fileira ao longo das ruas. Todas as tropas inglesas estavam em pé de guerra. O povo
apinhava-se por todos os lados, e uma imensa multidão havia acorrido das aldeias e
campos vizinhos. Enquanto isso, Carlos VII mantinha todas as tropas francesas bem longe
do lugar onde morria, abandonada por todos, aquela que havia devolvido o reino ao
ingrato monarca...
Na praça do Mercado Velho levantava-se a sinistra pira. Quando Joana divisou o
instrumento do suplício, um gemido escapou do fundo de seu coração: “Rouen, Rouen!
Tenho muito receio que tenhas de sofrer por minha morte!”
Depois, escutou calmamente o sermão de Nicole Midi, encarregado da última
pregação. O sacerdote concluiu com esta fórmula: “Joana, vai em paz!... A Igreja não
pode defender-te!” Ao escutar estas palavras, Joana ajoelhou-se e proferiu em alta voz
uma longa e ardente oração: pediu ela as preces dos de seu partido e “do outro”; perdoou
a todos o mal que tinham-lhe feito — perdão que abarcava os dois reis e os dois reinos!
Elevou-se então até o Céu num élan tão tocante e sublime, que, por um instante, pareceu
arrebatar até seus próprios inimigos. Todos choravam... Entretanto, a santa emoção
escorreu pela superfície pétrea dessas almas perdidas.
Cauchon leu a sentença: “Nós te arrancamos da unidade da Igreja, como membro
podre, e te abandonamos ao poder secular”.
Joana pediu uma cruz. Um soldado inglês quebrou um pedaço de pau e fez uma
cruz improvisada, que ela osculou e guardou consigo. Os verdugos arrastaram-na com
fúria e amarraram-na a um poste, no alto da imensa pira. Neste momento, todos
escutaram-na invocando a São Miguel, com voz clara
e sonora. O carrasco ateou fogo na base da fogueira e
as chamas começaram a subir.
— “Jesus, Jesus! exclamou a inocente vítima.
Minhas vozes eram de Deus... Tudo o que eu fiz foi
por ordem de Deus... Não, minhas vozes não
mentiram!...”
Por cima do crepitar das chamas, que subiam
cada vez mais, ouviram-se ainda algumas invocações,
entrecortadas por gemidos lancinantes arrancados pelo
horrível suplício. Joana desapareceu entre os
turbilhões de fumaça. De repente, o vento afastou este
espesso véu e ela lançou um derradeiro brado:
“Jesus!”
E inclinando a cabeça, entregou sua alma ao
Deus que a havia enviado...
Suas cinzas foram lançadas nas águas do rio Sena.
Em vão seus inimigos fizeram todo o possível para difamar sua memória. Todos
proclamavam sua santidade, inclusive seu confessor e vários dos que tiveram parte no
processo. Um destes últimos afirmava entre soluços: “Quisera que minha alma se
encontrasse onde agora se encontra essa donzela”.
Um soldado inglês, que a odiava à morte, jurara levar lenha para a fogueira, mas
quando executava seu propósito, a Donzela lançou o último brado que ressoou por toda a
praça; o inglês permaneceu imóvel, como fulminado, e afastou-se cheio de remorsos,
declarando ter visto uma pomba sair do meio das chamas e elevar-se ao céu.
O próprio carrasco, na mesma tarde do dia da execução, com grande perturbação
foi prostrar-se aos pés de um sacerdote, dizendo: “Matei uma santa! Não tenho mais
salvação!” E afirmou que, no meio das cinzas, o coração de Joana havia permanecido
incólume e gotejando sangue.
Tressart, secretário do rei da Inglaterra, clamava em alta voz que a maldição
pairava sobre os fautores e os cúmplices da morte de Joana, e, cheio de amargura, dizia:
“Estamos todos perdidos; queimamos uma santa!”
Este pensamento converteu-se em clamor público. O povo apontava os que haviam
participado do processo, e a maior execração acompanhou-os desde então, perseguindo-os
para além da morte. Invocava-se contra eles o juízo de Deus, e pouco tempo depois todos
os culpados do martírio de Santa Joana d'Arc pereceram de modo súbito ou foram vítimas
de terríveis doenças: o Bispo Cauchon morreu de um ataque de apoplexia, enquanto lhe
faziam a barba; Midi, o pregador da praça do Mercado Velho, foi atingido pela lepra
poucos dias após seu sermão; Loyseleur, o traidor, caiu morto repentinamente, estando em
Basiléia; o acusador D'Estivet foi encontrado morto, dentro de um esgoto, às portas de
Rouen.

—————
A morte de Roland

Anônimo, La Chanson de Roland, Librairie Larousse, Paris, 1965.

O conde Roland atravessa os montes da Espanha, cavalgando em seu bom corcel


Veillantif. Lá vai o valente empunhando sua lança, cujo ferro aponta para o céu, e que
leva no alto um pendão branco, cujas pontas vêm bater-lhe as mãos.
Roland tem porte nobre, rosto claro e risonho. Segue-o Olivier, seu companheiro, e
todos os francos reconhecem Roland como seu protetor.
Lança ele um olhar ameaçador em direção dos sarracenos, e sobre os francos um
olhar doce e humilde, dizendo-lhes com grande cortesia:
— “Senhores barões, cavalgai lentamente, ao passo. Esses pagãos vêm de encontro
a um imenso massacre!”
E Olivier diz:
— “Combatei com fortaleza, senhores barões! Não penseis mais que em atacar, e
em dar golpe por golpe. Não esqueçamos o brado de guerra de Carlos Magno”.
Ao ouvir estas palavras, os francos bradam! Quem os ouvisse clamar: Montjoie!
entenderia o que é a coragem. Em seguida cavalgam — meu Deus, com quanta ufania! —
e esporeiam com ardor para avançar mais rápido.
O sarraceno Aelroth cavalga o primeiro no exército pagão, e cobre nossos francos
de injúrias:
—"Felões francos! Louco é o rei que vos deixou nestas montanhas. Hoje a França
perderá sua honra, e Carlos Magno seu braço direito”.
Quando Roland ouve isto, ah, que dor ele sente! Esporeia seu cavalo, lança-se à
rédea solta, e golpeia Aelroth com todas suas forças. Atravessa-lhe escudo, desgarra a
loriga, abre seu peito, quebra seus ossos e corta sua espinha dorsal.
Com sua lança, arranca-lhe a alma do corpo. Ele crava o ferro tão fundo que
perfura o tronco, e derruba no chão o sarraceno, cujo pescoço ficou dividido em duas
metades. Mas Roland não deixa de increpá-lo:
— “Vá pois, miserável! Carlos não é louco, e a doce França não perderá hoje sua
honra. Golpeai, ó francos, o primeiro golpe é nosso!”
A batalha é imensa e maravilhosa!
O conde Roland ataca com sua lança, mas quinze golpes
quebraram-na e deixaram-na fora de uso. Ele desembainha então
Durendal, sua boa espada, esporeia o corcel e vai matar o sarraceno
Chernuble; rompe-lhe o elmo onde brilham as pedrarias, corta-lhe a
cabeleira, os olhos, a face, a sua loriga branca de finas malhas, e todo
o corpo até a cintura. A través da sela, a lâmina penetra no cavalo e
quebra-lhe a espinha, abatendo juntamente homem e animal, sobre a
erva verde. E Roland diz:
— “Maldito! Vieste aqui para tua desgraça. Maomé não te
socorrerá!”
O conde Roland cavalga pelo campo de batalha, e empunha
Durendal, que bem corta e bem talha. Entre os sarracenos vai
fazendo imenso massacre. Ó, se o tivésseis visto jogando mortos uns
sobre os outros, e o claro sangue cobrindo a terra! Ensangüentados
tem ele os braços, a loriga e o cavalo.
Olivier não é lento nos golpes, os doze pares não merecem
censura alguma, e os francos atacam com golpes redobrados. Os
pagãos morrem, e muitos desmaiam.
Olivier corre através da melée; sua lança está partida; só
resta-lhe um toco, e com ele golpeia o sarraceno Malon. Quebra-lhe
o escudo, coberto de ouro e ornamentos, faz-lhe cair os dois olhos da
face, e o cérebro rola a seus pés; Olivier o derruba entre setecentos
dos seus.
Depois mata Turin e Estorgous, mas o toco voa pelos ares,
quebrando-se rente a seu punho. Roland exclama:
— “O que fazeis, companheiro? Não precisamos de paus em
semelhante batalha; só o ferro e o aço valem alguma coisa. Onde está
vossa espada, de nome Hauteclaire? A sua guarda é de ouro, e seu
pomo é de cristal”.
— “Não posso tirá-la — responde Olivier —, pois muito
ocupado estou em golpear!”
Mas o conde Olivier já tirou sua boa espada, que tanto
reclamou seu companheiro Roland, e mostra como dela se serve um
bom cavaleiro. Golpeia um pagão, Justin de Val-Ferrée; corta-lhe em
dois a cabeça e o corpo, a sela ornada de ouro e pedrarias, e o próprio
cavalo, abatendo no chão o animal e seu dono. E Roland diz:
— “Verdadeiramente, sois meu irmão! É por causa desses
golpes que o Imperador nos ama”.

Roland toca o olifante

A batalha é maravilhosa, entretanto é em extremo pesada.


Os francos atacam juntos, e os pagãos morrem às centenas e aos milhares. Quem
não foge, nenhuma defesa tem contra a morte; queira ou não, ali deixa sua vida.
Mas os francos perdem seus melhores combatentes. Eles não voltarão a ver nem
pais nem parentes, nem Carlos Magno, que os espera no alto dos montes.
Lá longe, na França, desata-se uma magnífica tempestade: tormenta de trovões e
vento, chuva e granizo em imensa quantidade, raios que caem sem cessar. Toda a terra
treme, do Mont Saint-Michel até Colônia, de Besançon até o porto de Vissant. Não há
uma casa cujos muros não se quebrem; em pleno meio-dia, as trevas são densas; não há
claridade, senão quando os relâmpagos fendem o céu.
Todos se espantam, e muitos dizem: “É o fim do mundo, a consumação dos séculos
chegou!”
Eles não sabem, nem dizem a verdade; é o grande luto pela morte de Roland.
Um sarraceno de Saragossa, chamado Climborin, montando um cavalo mais veloz
que as andorinhas, esporeia-o e solta-lhe a rédea, correndo em direção ao conde Engelier
de Gascogne. Nem o escudo nem a loriga podem protegê-lo, e recebe no peito a ponta da
lança. O ferro o atravessa, e cai morto na planície. Os francos dizem:
— “Ó Deus, que desgraça, perder um tal cavaleiro!”
O conde Roland chama então Olivier:
— “Senhor companheiro, eis que Engelier está morto; não tínhamos cavaleiro mais
valente”.
O barão responde:
— “Que Deus me conceda a vingança!”
Com as esporas de ouro estimula seu cavalo, e levanta Hauteclaire; o aço reluz.
Com todas suas forças vai golpear o pagão. A lâmina ergue-se no ar, o pagão cai;
os demônios levam sua alma.
Depois matou Alfaien, cortou a cabeça de Escarabi e derrubou seis árabes.
Roland diz:
— “Meu companheiro está irado. Por esses golpes, Carlos nos ama ainda mais. Ao
ataque, cavaleiros!”
Ah! Se tivésseis visto Roland e Olivier desferindo terríveis golpes de espada!
Pode-se saber o número dos que eles mataram? Está escrito em documentos e em cartas.
Diz a Gesta: mais de quatro milhares.
Nos quatro primeiros assaltos os francos levam vantagem, mas o quinto pesa-lhes
em extremo: mortos estão todos os cavaleiros francos, exceto sessenta, que Deus
reservou. E esses, antes de morrer, venderão muito caro suas vidas.
O conde Roland vê a grande mortandade dos seus, e chama seu companheiro
Olivier:
— “Nobre senhor, querido companheiro! Em nome de Deus, o que pensais disto?
Vede quantos bons vassalos jazem por terra. Compadeçamo-nos da França, a doce, a bela,
que de tais barões está deserta. Ah, senhor rei, amado nosso! Por que não estais aqui?
— “Olivier, meu irmão, o que poderemos fazer? De que maneira lhe enviaremos
notícias?
Responde Olivier:
— “Não sei! Antes morrer que cair na desonra!”
Então diz Roland:
— “Tocarei o olifante! Ouvi-lo-á Carlos, no alto das montanhas. Eu vos prometo:
os francos voltarão!

Carlos Magno retorna a “Roncesvaux”

O conde Roland, com pena e com esforço, com grande dor toca seu olifante. De
seus lábios jorra o sangue claro, na sua fronte as têmporas se rompem; o som do olifante é
potente, e seu eco se estende a trinta léguas.
Ouviu-o o rei Carlos no alto das montanhas, e disse:
— “Eis que ouço o olifante de Roland; não soaria se não estivesse em pleno
combate”.
Responde Ganelon:
—"Batalha não há! Vós estais velho, florido e encanecido, e com tais palavras
pareceis um menino. Bem conheceis o orgulho de Roland! Por causa de uma lebre, ele é
capaz de tocar o olifante durante um dia inteiro; certamente brinca ele com seus pares. E
quem, sob o céu, ousaria apresentar-lhe batalha? Cavalgai pois! Por que vos detendes?
Muitas terras deveis ainda percorrer.
O conde Roland tem os lábios ensangüentados, e na sua fronte romperam-se as
têmporas. Novamente toca o olifante, com angústia e com dor.
Carlos o escuta, e seus francos também. Então diz o rei:
— “Esse corno tem grande fôlego”.
Responde o duque Naimes:
— “Um barão está em terrível angustia. Digo-vos com certeza: trava-se batalha!
Aquele que vos aconselha é um traidor. Armai-vos, lançai vosso brado de guerra e
socorrei vossa mesnada! Pois aquilo que escutais é o lamento de Roland”.
Altos são os montes, tenebrosos e grandes; profundos são os vales e rápidas as
torrentes!
Soam as trombetas na vanguarda e na retaguarda, e todos respondem ao apelo do
olifante. O Imperador cavalga com imenso furor, e os francos estão cheios de cólera e de
dor; não há um que não chore e se lamente. Eles pedem a Deus que proteja Roland até que
eles cheguem ao campo de batalha. Junto a ele, desferirão fortes golpes.
Mas de que serve tudo isso? De nada! Tardaram de mais, e não podem chegar a
tempo.
O rei faz prender o conde Ganelon, e entrega-o aos homens de sua cozinha, cujo
chefe se chama Begon, dizendo:
— “Guardai-o como felão! Ele traiu minha mesnada”.
Begon o recebe, e põe junto dele cem moços da cozinha. Arrancam-lhe os bigodes
e a barba; cada um lhe dá quatro socos, e golpeiam-no duramente com troncos e paus.
Põem-lhe uma corrente ao pescoço, como fariam a um urso, e colocam-no
ignominiosamente sobre um cavalo de carga. Assim o guardam até o momento de
devolvê-lo a Carlos.

Morte de Olivier

Com seu olhar, Roland percorre montes e colinas. Tantos francos ele vê jazendo
mortos, que chora como nobre cavaleiro:
— “Senhores barões, que Deus vos faça mercê! Que Ele vos acolha no Paraíso!
Que ele vos coloque entre suas santas flores! Jamais vi vassalos melhores do que vós! Ó
terra de França, país tão doce! Terrível calamidade vos sepulta na tristeza! Barões francos,
vejo-vos morrer por mim; não posso proteger-vos! Olivier, meu irmão, morrerei de dor se
alguém não me matar. Senhor companheiro, voltemos e ataquemos!”
O conde Roland retorna ao campo de batalha; leva Durendal, e golpeia como
valente. Corta em dois o sarraceno Faldron e vinte e quatro dos mais famosos pagãos.
Jamais homem algum teve tanto ardor na vingança!
Como os cervos diante do cão, assim fogem os pagãos diante de Roland. Os
francos atacam novamente, intrépidos como leões, mas há grande mortandade de cristãos.
Eis que o rei Marsil golpeia Bevon, senhor de Dijon, e abate-o morto; depois mata
Ivoire e Ivon, e com eles Girard de Rousillon. O conde Roland aproxima-se dele, e diz:
— “Que o Senhor Deus te amaldiçoe, pois mataste meus companheiros! Tu o
pagarás antes que nos separemos, e conhecerás hoje o nome de minha espada”.
Como nobre barão vai golpeá-lo, e arranca-lhe a mão direita. Depois corta a cabeça
de seu filho Jurfaleu.
Entretanto, o sarraceno Marganiz golpeia Olivier pelas costas, quebrando as malhas
de sua loriga branca, e a ponta da lança sai pelo meio de seu peito.
— “Jamais Carlos poderá alegrar-se! — diz o sarraceno — pois com a tua morte
vinguei a de todos os nossos!”
Olivier sente-se mortalmente ferido, mas ergue sua espada Hauteclaire, cujo aço é
brunido, e golpeia Marganiz em seu elmo pontudo e dourado. Florões e pedrarias caem
por terra; Olivier fende-lhe a cabeça até os dentes, sacode a lâmina dentro da ferida, e
mata-o. Depois diz:
— “Maldito sejas, pagão! Não irás gabar-te em teu reino!”
Olivier jamais se cansará de vingar-se: no mais compacto da multidão ele se atira,
talhando lanças e escudos, pés e mãos, selas e troncos humanos. Quem o visse
despedaçando os pagãos, jogando cadáver sobre cadáver, saberia o que é um bom vassalo.
“Montjoie!”, brada ele com voz alta e clara, e clama por Roland, seu amigo e seu
par:
— “Senhor companheiro, vinde a mim! Com grande dor havemos de nos separar”.
Olivier está ferido de morte, e seus olhos se turvam. Nem de perto nem de longe
consegue ele distinguir um homem. Quando se encontra em face de seu fiel companheiro,
desfere-lhe um golpe tão violento que fende seu elmo até o nasal. Ao receber a
espadagada, Roland pergunta-lhe doce e suavemente:
— “Senhor companheiro, sou eu, Roland, que tanto vos ama!”
Olivier diz:
— “Agora vos escuto, mas não vos vejo. Que o Senhor Deus vos veja! Eu vos
golpeei? Perdoai-me!”
Roland responde:
— “Não me fizestes mal. Perdôo-vos aqui diante de Deus”.
Com estas palavras, inclinam-se um diante do outro, e separam-se para sempre.
Olivier sente a morte próxima. Os olhos giram em sua cabeça, perde inteiramente a
vista e o ouvido; deixa seu cavalo, e estende-se por terra. Em voz alta e firme clama suas
culpas; eleva ao Céu suas mãos postas, e pede a Deus que lhe abra o Paraíso, que abençoe
Carlos e a doce França, e sobretudo Roland seu companheiro.
Falha-lhe o coração, seu elmo rola, todo o seu corpo cai por terra. O conde está
morto.

Vingança de Roland

O valente Roland chora e se aflige. Jamais vereis na Terra um homem tão triste.
Roland está irado, e atira-se no mais forte da melée. Abate vinte mouros da
Espanha, mas o inimigo volta ao assalto por todos os lados. O conde combate
nobremente, mas sente terríveis dores na cabeça, pois suas têmporas se romperam quando
soprou o corno. Entretanto, ele quer saber se Carlos voltará: toma o olifante, e sopra-o
debilmente.
O Imperador deteve-se e escutou.
— “Senhores — diz ele —, neste dia, meu sobrinho Roland nos deixa. Pelo som do
corno compreendo que ele já não viverá. Quem quiser estar lá, apresse seu cavalo! Tocai
todas as trombetas do exército!”
Sessenta mil clarins soam tão alto, que os montes ecoam e os vales respondem. Os
pagãos escutam e compreendem. Dizem uns aos outros:
— “Carlos já vem sobre nós!”
Lamentam-se os sarracenos:
— “Destinados fomos para a desgraça! Que dia nefasto para nós! Perdemos nossos
melhores guerreiros, e eis que volta Carlos o valente! Já se ouve o claro som das
trombetas dos francos! Imenso é o clamor de seu brado Montjoie! O conde Roland é tão
intrépido que nenhum mortal poderá vencê-lo jamais. Atiremos flechas contra ele, e
fujamos daqui!”
Quatrocentos deles se reúnem, e assaltam duramente Roland. O conde, ao vê-los
chegar, ergue-se magnífico e forte, corajoso e ardente. Não cederá enquanto estiver vivo!
Lançam-lhe dardos e flechas, lanças e azagaias. Atravessam e quebram seu escudo,
rasgam e destroçam sua loriga, mas não conseguem atingir seu corpo. Trinta golpes ferem
o cavalo Veillantif, abatendo-o por terra. Os pagãos fogem e abandonam o campo de
batalha.
O conde não pode persegui-los, pois está desmontado.
Roland percorre o campo, e encontra seu companheiro Olivier. Sobre um escudo
ele o coloca, e redobra seus prantos:
— “Nobre companheiro Olivier! Para quebrar lanças e atravessar escudos, para
vencer e esmagar os orgulhosos, para ajudar e aconselhar os valentes, e para perseguir os
maus, não existiu na Terra melhor cavaleiro que vós”.

Morte de Roland

Roland sente a morte próxima. Pelos ouvidos afora escorre-lhe o cérebro.


Por seus pares ele reza, pedindo que Deus os acolha. Para si, implora a ajuda do
Anjo Gabriel. Toma seu olifante numa mão e Durendal, sua espada, na outra.
À distância de um tiro de besta, ele caminha em direção à Espanha, e sobe a uma
colina.
Lá, sob a ramagem de duas belas árvores, há quatro rochedos de mármore. Ele cai
ali, sobre a erva verde, e desmaia, pois a morte está próxima.
Altos são os montes e altíssimas as árvores. O conde Roland está estendido por
terra, e eis que um sarraceno o espreita: ele fingiu estar morto e jazia com os outros.
Erguendo-se, aproxima-se; seu orgulho leva-o a empreender aquilo que será sua morte.
Ele toma as armas de Roland, exclamando:
— “Vencido está o sobrinho de Carlos! Eis a espada que eu levarei para a Arábia!”
Mas o conde volta a si, ao sentir que lhe roubam a espada. Abre os olhos e diz:
— “Tu não és dos nossos!”
Empunha o olifante, que jamais quis abandonar, e golpeia o sarraceno em seu elmo
dourado. Quebra-lhe o aço, a cabeça e os ossos; os dois olhos saem da cabeça. A seus pés
cai morto o pagão. E diz o conde:
— “Maldito sarraceno, como ousaste levantar tua mão contra mim? Serás chamado
de louco”.
Então Roland sente que perdeu a vista, e com grande esforço ergue-se de pé. Na
sua face desaparecem as cores.
Diante dele há uma rocha de ágata escura que furiosamente golpeia com a espada,
por dez vezes. O aço geme, mas não se quebra nem se fende. Quando o conde vê que ela
não se quebrará, lamenta-se com doçura:
— “Ah, Santa Maria, ajudai-me! Ah, Durendal, minha boa espada, como és bela e
santa, clara e branca! Como reluzes ao sol! Quantas relíquias há em teu pomo dourado!
Um dente de São Pedro, sangue de São Basílio, cabelos de monseigneur Saint Denis, um
pedaço das vestes de Santa Maria! Que desgraça te espera? Já que eu morro, de ti não
mais cuidarei. Tantas batalhas campais eu ganhei, graças a ti! Tantas vastas terras eu
conquistei para Carlos, o rei da barba florida! Que não te possua nenhum homem capaz de
fugir! Ó Deus, nosso Pai, não permitais que a França sofra uma tal vergonha!”
Roland sente que a morte o invade, e que ela vai descendo da cabeça para o
coração. Aos pés de um pinheiro ele se deita de bruços, sobre a erva verde. Põe embaixo
de si a espada e o olifante, e mantém a sua face voltada para os pagãos. Assim o fez, pois
deseja verdadeiramente que Carlos diga: “O nobre conde morreu conquistando”.
O conde Roland está por terra.
Muitas coisas vêm-lhe à memória: tantas terras por ele conquistadas, a doce França,
os homens de sua linhagem, Carlos Magno, seu senhor.
Não pode conter o pranto e os suspiros. Mas também não esquece de si mesmo:
clama suas culpas e pede a Deus perdão:
— “Ó Pai verdadeiro, que ressuscitastes Lázaro dentre os mortos e protegestes
Daniel contra os leões, livrai minha alma de todo perigo, pelos pecados que em minha
vida cometi!”
A Deus oferece seu guante direito, e São Gabriel recebe-o em suas mãos.
Com as mãos postas, aproxima-se do fim.
Deus lhe envia seu Anjo Querubim, e com ele, São Miguel Arcanjo; junto aos dois,
veio também São Gabriel.
Ao Paraíso eles levam a alma do conde.

Carlos Magno vinga Roland

Roland morreu. Deus recebe sua alma nos Céus. E a Roncesvales chega Carlos o
Imperador.
Não há caminho, nem sendeiro, nem canto de terra vazio. Impossível é andar dois
passos sem encontrar um sarraceno ou um franco jazendo.
Carlos exclama:
— “Onde estais, nobre sobrinho? Onde está o conde Olivier? Onde estão Gérin e
Gérier? Onde está Oton, e o conde Bérenguer? Ivon e Ivoire, que eu tanto amava? O que
sucedeu ao gascão Engelier? E o valente Anséis? Onde está Girard de Rousillon? Os doze
pares que aqui deixei?”
Mas ninguém responde.
—"Ó Deus — diz o rei —, tenho grande desolação por não haver estado aqui desde
o início da batalha!”
E puxa sua barba como um homem irritado.
Os cavaleiros francos choram, lamentando a morte de Roland.
O duque Naimes agiu como valente; foi o primeiro a dizer ao Imperador:
— “Olhai a poeira dos caminhos, à distância de duas léguas. Cobertos estão pela
canalha sarracena. Cavalgai, pois! Vingai a vossa dor!”
— “Ó Deus! — diz Carlos — Devolvei-me o meu direito e a minha honra! Da doce
França roubaram-me a flor!”
O Imperador faz tocar as trombetas, e cavalga com seu grande exército. Todos
juntos vão perseguir os sarracenos da Espanha.
Quando o rei vê a tarde declinar, desce de seu cavalo, numa pradaria, e prosterna-se
sobre a erva verde. Pede a Nosso Senhor que detenha o percurso do sol, que prolongue o
dia e faça tardar a noite.
Então um Anjo, que tinha o costume de falar-lhe, deu-lhe esta ordem:
— “Cavalga, ó Carlos, pois a luz não te faltará. Perdeste a flor da França, Deus o
sabe, mas podes vingar-te da canalha criminosa!”
Ao ouvir estas palavras, o Imperador monta a cavalo.
Deus fez uma imensa maravilha em favor de Carlos Magno: eis que o sol
interrompe seu percurso.
Os pagãos fogem, mas os francos perseguem-nos com firmeza e alcançam-nos no
Vale Tenebroso. Ali os atacam e vão empurrando-os em direção a Saragossa. Golpeiam e
massacram, cortam-lhes os caminhos e as estradas largas. Ei-los diante das águas do rio
Sebro; são profundas, e a correnteza é magnificamente violenta. Não há barcas nem
navios.
Os pagãos invocam seus deuses e pulam nas águas, mas não recebem socorro
algum!
Aqueles que estão mais armados vão logo ao fundo, e são numerosos! Os outros
flutuam na correnteza; os menos infelizes beberam tanta água que se afogam, com imensa
angústia.
O rei Carlos, ao ver que todos os sarracenos foram mortos e afogados, desce do
cavalo, prosterna-se em terra e dá graças a Deus. Quando se reergue, o sol já se escondeu.
Depois de cumprir sua vingança e fazer justiça, o Imperador repousa na pradaria, e
põe a lança junto à sua cabeceira. Não quer desarmar-se essa noite, e dorme revestido de
sua grande loriga, de seu elmo ornado com ouro e pedrarias, e cingido de sua espada
Joyeuse, que não tem semelhante, e que muda de reflexos trinta vezes por dia.
Pela graça de Deus, Carlos possui o ferro da lança com a qual Nosso Senhor foi
transpassado na Cruz, e fê-lo encastoar no pomo dourado de sua espada. Ela foi chamada
Joyeuse, por causa desta honra e desta graça. Seus barões não o esquecem, e deste nome
tiraram seu brado de guerra: Montjoie!
E por isso nenhum povo pode resistir-lhes.

* * * * *
A batalha das Navas de Tolosa

Don Rodrigo Jiménez de Rada (Arcebispo primaz de Toledo na época de S. Fernando


de Castela), Historia de los hechos de España, Alianza Editorial, Madrid, 1989.
Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana Espasa-Calpe, Hijos de J.
Espasa, Barcelona, t. XXXVII.

Em Maio de 1211, o emir dos mouros almóades, Alnasir Mohamed ben Yacub,
cruzou o estreito de Gibraltar à testa de 600.000 homens de infantaria e 90.000 de
cavalaria. Estabelecendo-se em Sevilha, ameaçava ele conquistar toda a Espanha.
Diante daquela irrupção, aliaram-se os reis de Castela, Aragão e Navarra, pedindo
também auxílio aos de Leão e Portugal, a outros reis cristãos e ao Papa. O arcebispo D.
Rodrigo dirigiu-se à França e à Alemanha, e o bispo de Segóvia foi enviado como
embaixador junto ao Pontífice.
Este, que era Inocêncio III, fez pregar uma Cruzada em favor da Espanha, ordenou
um jejum de três dias e celebrou soleníssimas e imponentes orações. Tudo indicava que
iria se travar uma batalha decisiva.
O nobre rei Alfonso VIII de Castela, uma vez convocadas as gentes, preparadas as
armas e, sobretudo, prontos os corações para o combate, organizou a concentração das
tropas em Toledo. Enquanto isso, Rodrigo, arcebispo desta cidade, e os outros
embaixadores, retornaram dos diversos lugares onde haviam sido enviados.
Começou então a cidade régia a encher-se de gente, abastecer-se do necessário,
assinalar-se pelas armas, diferenciar-se pelas línguas e distinguir-se pelos trajes, pois o
ardor da batalha fazia confluir nela uma diversidade de povos de quase todos os cantos da
Europa. E pela graça de Deus todo-poderoso, foi tudo levado a cabo de tal maneira, que
não surgiu nenhuma querela ou desordem que pudesse malograr o empreendimento da
batalha, ainda que o inimigo do gênero humano o tentasse mais de uma vez.
E aumentava dia após dia o número daqueles que ostentavam em seus peitos o
sinal do Senhor.
Assim, oito dias após a festa de Pentecostes, o rei Pedro de Aragão, fiel amigo do
nobre rei Alfonso, chegou a Toledo, onde foi recebido em procissão pelo arcebispo e por
todo o clero; e estabelecendo seu real nos jardins do rei, aguardava ali a chegada dos seus.
Começaram a chegar também nobres da zona das Gálias, o arcebispo de Bordeaux,
o bispo de Nantes e muitos barões dessa região e da Itália. Vieram também simples
cavaleiros e, sobretudo, um número incalculável de gente de infantaria.
Veio também o venerável arcebispo Arnaud-Amaury, o qual, havendo
desempenhado por algum tempo o priorato de Císter, governava então a igreja de
Narbonne. Este, impulsionado pouco tempo antes por seu zelo pela Fé católica, contra
aqueles que ousaram blasfemar com boca sacrílega contra o Nome do Senhor e da Igreja,
em Narbonne e nas províncias limítrofes, animou os corações dos fiéis para que se
armassem com a insígnia da Cruz contra as artimanhas dos hereges.
E pela graça de Deus sucedeu que, onde a pregação foi desprezada e não deu fruto,
uma vez ceifada a heresia com a foice da Cruz, a Fé católica cresceu com felicidade dia
após dia; e tendo sido arrasadas as cidades de Beziers e Carcassone, o sangue dos
blasfemadores foi espremido pelo fogo aniquilador e a espada vingadora, no ano de 1208.
Assim, este arcebispo fez sua entrada em Toledo, acompanhado de uma multidão
da Gália, provida de instrumentos de guerra, estandartes e armas, e ali foi recebido como
merecia, pelo nobre rei e pelo arcebispo dessa cidade.
Também chegaram muitos cavaleiros da zona de Portugal, e uma imensa multidão
de peões, que com surpreendente leveza agüentavam sem dificuldade o peso da marcha, e
atacavam com arrojo.
Ademais, incorporaram-se às forças em Toledo os nobres do rei dos aragoneses,
famosos por seu valor, vistosos por sua marcialidade, providos de armas e cavalos.
Também estiveram ali presentes os bispos, que ajudaram o empreendimento da Fé
colaborando espontaneamente com os gastos e responsabilidades, atentos às dificuldades,
entregues ao trabalho, clarividentes no conselho, generosos na necessidade, sinceros nas
pregações, valentes nos perigos, sofridos nas penalidades.
Da cavalaria secular do reino de Castela, vieram muitos nobres tão ilustres quanto
valorosos, que seria longo enumerar.
Compareceram também os monges de Calatrava, ao comando do mestre Rodrigo
Díaz, fraternal companhia grata a Deus e aos homens; os monges da Ordem do Templo ao
comando de seu mestre Gómez Ramírez, que faleceu em paz após a batalha. Estes foram
os primeiros que, no Novo Testamento, e tomando a insígnia da Cruz, uniram o brilho da
ufania militar ao vínculo da caridade e da religião, sem diminuição de sua bravura.
Também os monges da Ordem do Hospital, ao comando de seu prior Gutierre Ermigildo;
e os monges de Santiago, ao comando de seu mestre Pedro Arias. Estes realizaram muitas
proezas em terras de Espanha.
E havendo cumprido todos seus deveres, o exército do Senhor partiu da cidade
régia no dia 20 de junho. Os ultramontanos [franceses] de um lado, tendo por guia Diego
López de Haro; Pedro, rei dos aragoneses, com os seus; o nobre Alfonso com os seus. E
ainda que marchassem a certa distância, não era grande o espaço que separava os
exércitos.
Os ultramontanos instalaram seu acampamento junto a Guadalferza e, partindo daí,
sitiaram a fortaleza de Malagón. E trazendo a graça divina um bom prenúncio, ainda que
os defensores da fortaleza resistiram bravamente, o empuxe dos ultramontanos quebrou o
valor dos inimigos em nome do Senhor, e eles se apoderaram de Malagón, matando
quantos havia dentro.
Depois, avançando todos juntos, chegamos a Calatrava.
Os agarenos haviam assegurado de tal modo essa fortaleza, com armas e máquinas
no alto das torres, que parecia bastante difícil assaltá-la. Ademais, se bem que ela esteja
em terreno plano, grande parte de sua muralha é inaccessível por ser defendida pelo rio.
Parecia ela imbatível sem um longo castigo das catapultas.
E como estivéssemos há dias no cerco, os reis e príncipes, após deliberar,
concordaram em não abandoná-la sem tentar o assalto, por mais que parecesse difícil. E
assim, aprestadas as armas e distribuídos entre países e príncipes os diferentes pontos de
ataque, invocando o nome da Fé arremeteram contra a fortaleza. E pela graça de Deus
sucedeu de tal modo que, no domingo após a festividade de S. Paulo, afugentados os
árabes, tornou Calatrava às mãos do nobre rei, e imediatamente foi guarnecida pelos
monges-guerreiros que, tempos antes, tinham ali sua sede.
De seu lado, o nobre rei não se reservou nenhuma das coisas que ali se
encontravam, mas deixou tudo aos ultramontanos e ao rei dos aragoneses. Mas como o
inimigo do gênero humano não deixa de prejudicar as obras cristãs, introduziu-se satanás
no exército da caridade e infestou os corações dos invejosos; e aqueles que se haviam
preparado para a contenda da Fé retrocederam em suas boas intenções.
Quase todos os ultramontanos, abandonadas as insígnias da Cruz e os trabalhos da
batalha, tomaram a decisão de retornar a suas terras. O nobre rei fê-los partícipes dos
víveres dos seus e proporcionou-lhes quanto precisavam, mas nem com isso pôde revogar
a obcecada resolução. E partiram eles em massa sem pena nem glória, salvo o venerável
arcebispo Arnaud-Amaury, o qual, com todos os que conseguiu reunir, perseverou na sua
boa disposição sem jamais afastar-se do bem. Eram eles cento e trinta cavaleiros, sem
contar os peões, dos quais também ficaram alguns.
Entretanto, como “para aqueles que amam a Deus, tudo se torna em bem” (Rom.
8,28), ainda que se temessem perigosas conseqüências daquela defecção, pois diminuía o
exército de um terço, sem embargo tudo começou a correr melhor, a cada dia. E assim,
após a partida daqueles que abandonaram a Cruz ante as dificuldades, somente os
hispanos, com os poucos ultramontanos acima mencionados, iniciaram esperançados o
caminho, rumo à batalha do Senhor.
Em primeiro lugar chegaram a Alarcos e, tendo acampado ali, apoderaram-se da
praça e de outros castelos próximos.
Durante aquele alto chegou o rei Sancho da Navarra, el Fuerte, o qual não afastou
do serviço de Deus a honra de sua coragem, quando se aproximava o momento crítico.
E assim, a tríade de reis avançou em nome da Santíssima Trindade.
Ao primeiro dia acamparam em torno de Salvatierra, e no dia seguinte, domingo,
os reis e os príncipes ordenaram que todo o exército tivesse as armas prontas, e tudo fosse
disposto para o combate. E pela graça de Deus era uma tal multidão, engalanada com
armas, estandartes e cavalos, que aos inimigos parecia tremenda e a nós admirável. Pronta
para o combate, ela compensava a retirada dos ausentes, de maneira que inclusive
cresceram os ânimos dos esforçados, receberam força os débeis, asseguraram-se os
duvidosos e borrou-se da mente dos receosos a defecção dos que se foram, o que havia
amedrontado a muitos.
Enquanto isto acontecia, Mohamed, rei dos agarenos, tinha concentrado suas forças
nas montanhas próximas de Jaén e ali aguardava o exército cristão. Não tinha ele intenção
de combater, já que receava dos reforços estrangeiros, mas desejava surpreendê-lo na
volta, quando os cristãos, talvez esgotados pelo esforço e dizimados pelas baixas,
carecessem de recursos para fazer-lhe frente.
Foi então que, por decisão do Altíssimo, os franceses se retiraram; e por meio da
Providência Divina, que não erra em seus decretos, ocorreu que o agareno, informado
dessa retirada, modificou seu plano. Intuindo a glória e recuperando a ousadia, avançou a
partir de Jaén e, dirigindo-se a nós, chegou a Baeza e dali destacou alguns soldados para
as Navas de Tolosa, a fim de cortar o caminho dos cristãos num ponto estreito da
passagem, onde há um rochedo inaccessível e uma torrente de água.
Com esta missão vigiavam os mouros o desfiladeiro, esperando o momento em que
a escassez de víveres nos obrigasse a retornar, vítimas da fome.
Sem embargo, o Senhor dispôs de outra maneira.
Diego López de Haro, a quem tinha sido confiada a direção do exército, enviou em
avançada seu filho Lope Díaz e seus dois sobrinhos, Sancho Fernández e Martín Muñoz,
para que se antecipassem em apoderar-se da cima do monte. Mas quando estes, seguros
de sua coragem, marchavam um tanto descuidados, deram de bruços com uns árabes no
alto do monte, junto ao castelo que se chama Ferral, os quais, caindo de repente sobre
eles, quase puseram-nos fora de combate. Mas os citados cristãos e os seus, por
intervenção da graça divina, tomando as armas, rechaçaram-nos com bravura; e pela graça
de Deus ocuparam o cume da montanha, erguendo em seguida suas tendas e
permanecendo ali.
Na manhã de sexta-feira, os três reis, Alfonso de Castela, Pedro de Aragão e
Sancho de Navarra, após invocar o Nome do Senhor, iniciaram a subida e acamparam
numa esplanada do monte. E nesse dia os nossos tomaram o castelo de Ferral, a cujo pé há
algumas torrentes e uns barrancos, e a passagem é ali tão estreita que se torna difícil até
para os que vão levemente equipados.
Naquele lugar, um destacamento de mouros vigiou o avanço dos cristãos durante
esse dia e parte do seguinte, e ali deram-se algumas escaramuças entre os nossos e eles, de
maneira que houve baixas de
ambos lados.
Enquanto isto sucedia, os
reis e príncipes tentavam encontrar
o caminho mais seguro, pois a
passagem do desfiladeiro de Losa
seria impossível sem derrota.
Tratava-se de um barranco tão
temível, que apenas mil homens
poderiam defendê-lo contra todos
os homens da Terra.
E como o exército do
agareno estava cada vez mais perto
de nós, podendo-se inclusive
divisar sua tenda vermelha, cada
um dava sua própria opinião sobre
o avanço do exército, pois alguns,
tendo a passagem como
impossível, desejavam retroceder
para entrar nos acampamentos dos
agarenos por um lugar mais
accessível.
Ao ouvir essa opinião, disse
o nobre rei Alfonso de Castela:
— “Este plano brilha por
sua prudência, mas já que vemos o
inimigo tão perto de nós, obrigados
somos a avançar contra ele. Seja
feito como dispôs a vontade do
Céu”.
E, impondo-se esta decisão
do nobre rei, Deus todo-poderoso, que governava o empreendimento com graça especial,
enviou um pastor, de traje muito pobre, que indicou um caminho mais fácil, inteiramente
accessível, por uma subida na ladeira do monte, por onde poderíamos chegar a um local
adequado para o combate.
Mas, como numa situação tão crítica era por demais arriscado confiar em
semelhante pessoa, adiantaram-se dois príncipes, Diego López de Haro e García Romero,
para que, se comprovassem ser verdade o que tinha dito o pastor, fosse ocupado o monte e
a esplanada que havia no alto. E assim sucedeu por vontade do Senhor, de maneira que
aquele pastor resultou ser um enviado de Deus, que Se serve dos mais humildes do
mundo. A piedade popular afirmou ser este homem o próprio S. Isidro.
Muito cedo de manhã, os três reis, após receber a bênção episcopal e a graça do
sacramento, chegaram ao mencionado monte com suas forças. Percebendo então os
agarenos que não se tratava de uma retirada mas de um avanço, lamentaram-no
sobremaneira e, ao divisar ao longe as tendas que se erguiam no cimo do monte, enviaram
um grupo de cavalaria para cortar o caminho à vanguarda, já que éramos obrigados a
avançar numa longa coluna devido à estreiteza do sendeiro; e depois de um prolongado
choque com os nossos, quis o Senhor que eles fossem duramente rechaçados.
E quando as tendas estiveram já plantadas, entendendo o rei dos agarenos que de
nada lhe serviam já as emboscadas dispostas no caminho, formou seus exércitos e saiu
nesse mesmo dia a campo aberto, postando o núcleo de suas tropas sobre uma altura de
difícil acesso, desdobrando com grande habilidade o resto de suas forças à direita e à
esquerda.
E ali se mantiveram em expectativa, desde a hora sexta até o entardecer, pensando
que nós apresentaríamos batalha nesse mesmo dia.
Entretanto, reunido o conselho dos cristãos, foi decidido aprazar o combate até a
segunda-feira, pois os cavalos estavam extenuados, e, ademais, para que esse intervalo
nos desse tempo de observar a situação e os movimentos do inimigo.
E como entendesse o agareno que tínhamos medo e não lhe dávamos batalha,
envaidecido, não percebeu que agíamos com astúcia e por isso enviou cartas a Baeza e
Jaén, anunciando que havia cercado três reis, os quais não agüentariam mais de três dias.
Sem embargo, conta-se que alguns dos seus, julgando com mais clarividência, disseram o
seguinte:
— “Estão eles ordenados com critério e razão, e mais parecem dispor-se à luta que
ao recurso da fuga”.
Ao dia seguinte, domingo, novamente saiu o agareno a campo aberto, muito cedo
de manhã, permanecendo em posição de combate até o meio-dia, e para protegê-lo dos
rigores do sol trouxeram como resguardo sua tenda vermelha. Sentado à sua sombra com
vaidade, aguardava ele o entrechoque com luxo real.
De nosso lado, nós continuamos observando seu exército como no dia anterior, e
organizávamos o plano de ataque. O arcebispo de Toledo e demais bispos pregavam
palavras de ânimo e indulgência, com grande unção, através de cada um dos
acampamentos das cidades e dos príncipes.
Naquele dia, o ilustre rei de Aragão armou cavaleiro a seu sobrinho Nuño Sánchez.
Finalmente, após longa espera, os agarenos retornaram a seu acampamento, entre
as horas sexta e noa.
Por volta da meia-noite do dia seguinte, explodiu o brado de júbilo nas tendas
cristãs, e a voz dos arautos ordenou que todos se preparassem para o combate do Senhor.
E assim, celebrados os mistérios da Paixão do Senhor, recebidos os sacramentos, tomadas
as armas, saíram à batalha campal.
As linhas avançaram do modo combinado: Diego López de Haro, com os príncipes
castelhanos, comandava a vanguarda; o conde Gonzalo Nuñez com os monges do
Templo, do Hospital e de Calatrava, o corpo central; na retaguarda, o nobre rei Alfonso, o
arcebispo Rodrigo de Toledo e os outros bispos já mencionados, e, dentre os barões,
Gonzalo Ruiz e seus irmãos, Rodrigo Pérez de Villalobos, Suero Téllez, Fernando García
e outros. Em cada uma destas colunas encontravam-se as milícias das cidades.
O valoroso rei de Aragão desdobrou seu exército em outras tantas linhas: García
Romero na vanguarda, Jimeno Cornel na segunda linha, ele mesmo na terceira.
O rei Sancho de Navarra, notável pela grande fama de sua valentia, marchava com
os seus à direita do nobre rei Alfonso, e em sua coluna avançavam as milícias das cidades
de Segóvia, Ávila e Medina.
Assim, estendidas as fileiras, erguidas as mãos ao Céu, postos os olhares em Deus,
dispostos os corações, desfraldados os estandartes da Fé e invocado o Nome do Senhor,
chegaram todos como um só homem ao ponto decisivo do combate.
Os primeiros a entrar em liça foram o filho e os sobrinhos de Diego López de
Haro, valentes e destemidos.
Os agarenos levantaram no cimo do monte um reduto, no qual estava postado um
corpo de infantaria escolhida, e ali sentou-se o rei, tendo ao alcance sua cimitarra,
vestindo a capa negra que tinha pertencido a Abdelmon, aquele que deu origem aos
almóades, e ademais com o livro da maldita seita de Mafoma, que se chama Alcorão.
Fora do reduto havia também outras linhas de peões, com as pernas amarradas
entre si por correntes. O grosso das tropas almóades estava mais no exterior, diante da
tenda real, imponente por seus cavalos, armas e número incalculável.
À direita e à esquerda deles encontravam-se os árabes, perigosos por sua rapidez e
a presteza de suas lanças, que não só atacam enquanto fogem, mas na fuga voltam-se com
violência; e na planície, onde não há estreiteza que impeça os movimentos, são ainda mais
daninhos. Dedicados a desconcertantes cavalgadas, não mantêm eles formação alguma
nas batalhas, a fim de desbaratar os contrários com seus movimentos e de abrir caminho
aos outros que marcham em formação, uma vez confundidas as fileiras do inimigo.
Creio que nenhum dos nossos teria podido calcular o número destes e aqueles, a
não ser porque depois soubemos que eram oitenta mil ginetes, sem contar a turbamulta da
infantaria.
Havia também uns agarenos da zona de Azcora, que, deixando seus cavalos,
lutaram a pé junto a seu rei, e crê-se que nenhum deles escapou com vida.
Além do mais, ao lado do rei encontrava-se uma impressionante formação, ornada
com bandeiras de cavalaria.
A vanguarda cristã desbaratou prontamente as avançadas inimigas, atirando-se
depois com grande ímpeto contra a segunda linha, que também desfizeram após vencer
enérgica resistência. Desbaratadas as duas primeiras linhas, continuaram os cristãos a
subir, até encontrar os esquadrões almóades.
Estes receberam-nos com grande firmeza, aguentando o impacto quase sem
mover-se do lugar, e conseguiram rechaçar o impetuoso assalto. Tanto vigor mostraram,
que puderam lançar-se por sua vez ao ataque contra os nossos, que subiam por lugares
assaz desvantajosos para o combate. Nestes entrechoques, alguns dos cristãos, esgotados
pela dificuldade da subida, atrasaram-se demasiadamente.
A vanguarda cristã e a segunda linha iam ser empurradas ladeira abaixo, mas
alguns das colunas centrais de Aragão e Castela chegaram à linha de combate, produzindo
entre os agarenos um grande desconcerto.
O desenlace não se via claro.
Então, os da vanguarda redobraram juntos seu esforço, e as colunas dos flancos
combatiam violentamente contra as colunas dos agarenos, alguns dos quais, virando
rédeas, começavam a fugir.
O nobre Alfonso, percebendo entretanto que certos cristãos não se esforçavam
tanto quanto era necessário, desejou avançar e disse diante de todos ao arcebispo de
Toledo:
— “Arcebispo, morramos aqui, eu e vós”.
Mas ele respondeu:
— “Não queira Deus que aqui morrais. Hoje vencereis vossos inimigos”.
Então o rei, sem diminuir o ânimo, disse:
— “Corramos para socorrer as primeiras linhas, que estão em perigo”.
E, ouvindo isto, Gonzalo Ruiz e seus irmãos avançaram rumo à vanguarda, mas
Fernando García, homem de valor e experiente na guerra, reteve o rei aconselhando-o a
permanecer onde estava, controlando a situação. O rei, entretanto, não quis ouvi-lo e disse
novamente:
— “Arcebispo, morramos aqui, pois a morte não é desonra, em tais
circunstâncias”.
E aquele respondeu:
— “Se for vontade de Deus, aguarda-nos a coroa da vitória, mas se não for,
estamos todos dispostos a morrer convosco”.
E em tudo isto, dou fé ante Deus de que o nobre rei não alterou seu rosto, nem sua
expressão habitual nem sua compostura, mas tão bravo quanto um leão impertérrito estava
decidido a morrer ou a vencer.
E não sendo capaz de permanecer por mais tempo sem socorrer as primeiras linhas,
lançou-se avante, e, trás ele, como furacão destruidor, todos os bispos, cavaleiros e
soldados que com ele estavam. O mesmo fizeram os reis de Aragão e Navarra, e os
cavaleiros catalães.
A Cruz do Senhor, que marchava diante do arcebispo de Toledo, passou
milagrosamente entre as fileiras dos agarenos, levada pelo cônego de Toledo Dom
Domingo Pascásio, e ali, tal como o Senhor desejou, permaneceu até o fim da batalha sem
que seu portador, inteiramente só, sofresse dano algum.
Nos estandartes dos reis figurava a imagem de Santa Maria Virgem, que sempre foi
protetora e patrona de toda a Espanha. A sua chegada, aquela imensa formação e
incontável turbamulta dos guerreiros almóades, que até então tinha agüentado os golpes
sem mover-se e era em extremo dura para os nossos, largou a correr, abatida pelas
espadas, afugentada pelas lanças, vencida pelos golpes.
Caíram os cristãos em forma de tenaz contra o reduto fortificado do emir. Os
soldados de sua guarda, amarrados uns aos outros com correntes, opuseram violenta
resistência, mas o rei Sancho da Navarra, el Fuerte, saltou o cerco com seu cavalo,
rompendo afinal a defesa. E os estandartes cristãos chegaram jubilosamente até o último
reduto dos agarenos, por disposição do Senhor.
Mohamed Alnasir recorreu à fuga, acompanhado no perigo por quatro ginetes, e
perseguido com grande sanha pelos cavaleiros cristãos. E como chegasse a Baeza,
perguntaram-lhe os dessa cidade o que deviam fazer, e conta-se que ele respondeu:
— “Não posso velar nem por mim nem por vós; que Deus vos assista!”
E após mudar de cavalo, chegou a Jaén naquela noite.
Enquanto isso, foram mortos muitos milhares de agarenos ante a pressão
simultânea dos aragoneses, castelhanos e navarros por suas frentes respectivas. Vendo
isto, o arcebispo de Toledo disse ao nobre rei o seguinte:
— “Tende presente a graça de Deus, que hoje supriu todas as vossas carências, e
borrou a desonra das derrotas que havíeis suportado durante longo tempo. Agradecei
também a vossos cavaleiros, com cujo concurso tendes alcançado tal glória”.
Uma vez ditas estas palavras, o próprio toledano e outros bispos que com ele se
encontravam, iniciando um cântico de louvor com lágrimas de devoção, romperam a
entoar: Te Deum laudamus, te Dominum confitemur.
O campo de batalha encontrava-se tão repleto pelo desastre dos agarenos que,
inclusive com os mais potentes cavalos, era difícil andar por cima dos cadáveres.
Tremendamente mutilados estavam os agarenos que foram mortos junto à tenda real, os
quais eram de elevada estatura e grande obesidade.
Entretanto, não querendo os nossos pôr limites à graça de Deus, dedicaram-se a
perseguir o inimigo sem descanso, por todas partes, durante a noite inteira, e, segundo os
cálculos, crê-se que foram mortos uns duzentos mil.
Os nossos, pelo contrário, apenas sofreram vinte e cinco baixas.
Creio que ninguém está em condições de relatar as grandes ações da cada um dos
nobres, posto que a ninguém foi dado contemplar cada uma delas. Isto é: de que forma
colaborou a intrépida valentia dos aragoneses na matança, e com que facilidade deram
alcance aos fugitivos; com quanta bravura se uniram os catalães àqueles que combatiam
na primeira linha; com que brilho dissiparam as dúvidas da batalha García Romero, Aznar
Pardo e outros nobres de Aragão e Catalunha; de que forma a aguerrida rapidez dos
navarros lançou-se na emergência do combate e perseguiu os que fugiam; com quanta
esforçada disposição agüentaram também os ultramontanos os assaltos dos agarenos; de
que forma a brilhante nobreza e a nobre entrega dos castelhanos supriu a tudo com
abundância, conjurou os perigos com mão valorosa, antecipou-se na ação com espada
vencedora, aplainou as asperezas da feliz vitória, trocou em glória os insultos à Cruz e
diluiu com cânticos de louvor as blasfêmias do inimigo.
Mas se pretendesse seguir narrando as proezas de cada um, a minha mão se
cansaria de escrever antes que me faltasse matéria para relatar.
Havia tal quantidade de árabes mortos no campo de batalha, que apenas pudemos
ocupar a metade de sua extensão. Por sua vez, aqueles que quiseram saquear encontraram
muitíssimas coisas no campo: ouro, prata, ricas vestiduras e ornamentos valiosíssimos,
muito dinheiro e vasos preciosos, do que se apoderaram os peões. Mas os nobres, e
aqueles que o amor à Fé e os anseios de valentia tinham enobrecido, continuaram
bravamente a perseguição durante a noite, deixando tudo isso de lado.
Este foi o fim da batalha, que teve lugar no dia 16 de Julho do ano de 1212.
Os historiadores árabes, vendo quão de perto se seguiu a ruína do império almoade
à batalha das Navas de Tolosa, chamam-na em suas crônicas de Al-Icab, isto é: “O
Desastre”.
A tenda de seda e ouro do emir foi enviada ao Papa, para a Basílica de São Pedro.
Toledo conservou todos os pendões arrancados aos infiéis, e o rei da Navarra obteve as
correntes que rodeavam a tenda de Alnasir, as quais desde então figuraram no escudo de
Navarra, e hoje no da Espanha. Muitos nobres conservaram em seus brasões lembranças
desta batalha.
Em comemoração desta vitória, celebra-se todos os anos, no dia 16 de julho, a festa
do Triunfo da Cruz.

———————
Simon de Montfort, gládio da Igreja

Iª Parte: A heresia cátara e os primeiros enfrentamentos

Pierre Belperron, La Croisade contre les Albigeois, Librairie académique Perrin, Paris,
1967.
Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie, Paris, 1878.
Achille Luchaire, Innocent III, la Croisade des Albigeois, Hachette, Paris, 1906.
Dominique Paladilhe, Les grandes heures cathares, Librairie académique Perrin, Paris,
1969.
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Histoire Albigeoise, Librairie Philosophique J.
Vrin, Paris, 1951.

O século XIII desponta com tempestuosa e sombria majestade.


Na esfera das idéias e da religião, anunciam-se para a França do Sul lamentáveis
calamidades: jamais as almas tinham sido sacudidas por desordens tão grandes, não só em
nossas regiões meridionais mas em toda a catolicidade, desde a época das imensas lutas
contra o arianismo.

A heresia dos cátaros, ou albigenses, incubada na libertinagem do Languedoc

O Papado, a Igreja, o dogma cristão e o edifício inteiro da religião são atacados por
turbilhões de idéias saídas de todos os abismos do passado e do futuro. As ruínas de eras
extintas revivem e se atropelam com os germes de tempos vindouros, que começam a
eclodir sob formas múltiplas e estranhas.
O maniqueísmo tenta disputar o Ocidente à Igreja Católica, revivendo a heresia
greco-asiática dos dois princípios: “o deus bom, criador das coisas invisíveis e
incorruptíveis, e o deus mau, criador da Terra e de todas as coisas visíveis”.
— “A Igreja Romana — afirmam os maniqueus — pela sua participação nas
riquezas materiais e nas ambições deste mundo, pela sua intervenção no governo da Terra
e pelas perseguições que prescreve, deixou a Cristo para seguir a satanás. Só existe
salvação na igreja dos puros, dos perfeitos, dos cátaros”.
Quando o discípulo, o crente, está bem instruído, ele recebe, pela imposição das
mãos, o consolamentum ou batismo espiritual, em oposição ao batismo de água, instituído
por um demônio chamado João Batista. O crente é transformado então em perfeito, e o
espírito santo desce sobre ele.
Se o perfeito não sente coragem para suportar as austeridades dessa vida, pode
deixar-se morrer de fome, ou mesmo dar-se morte violenta se teme fraquejar sob a mão
dos verdugos católicos.
A Itália do norte e as províncias do sul da França são os dois grandes focos de
heresia, cujas labaredas se entrecruzam por cima dos Alpes.
O Languedoc estava singularmente preparado para acolher a heresia: sua civilização
requintada, sua extrema liberdade de gostos e de costumes, sua cultura intelectual, tão
brilhante e original, tudo isso lhe fazia insuportável o “despotismo” religioso do Papa, e,
em geral, toda tentativa de impor a crença pela força. A estreita relação do Languedoc com
muçulmanos e judeus havia feito desaparecer nele os preconceitos ocidentais, para
entregá-lo sem defesa e sem critério à invasão desordenada de todas as idéias estrangeiras.
Desde o século XI, as cantigas dos trovadores desafiavam as bulas dos Papas,
atacando-as de igual a igual. O clero era desprezado, e os eclesiásticos não ousavam
mostrar-se em público sem esconder suas tonsuras.
A sociedade provençal admirava os cátaros, e aplaudia-os sem pertencer-lhes
inteiramente. Ela oscilava entre a sua própria libertinagem e o extremo ascetismo dos
maniqueus. Na superfície, quantas festas, quantas canções, quanta galanteria, quanta
volúpia elegante nos castelos! Toda uma poética e original civilização desabrochava ao
sol, nas praias do Mediterrâneo!
Entretanto, este florescimento era semelhante à vegetação exuberante que cobre os
vulcões: ela acusava o fervilhar de fogos interiores, que às vezes produziam ameaçadoras
explosões. Os gritos das vítimas do banditismo ressoavam, como lúgubre dissonância, em
meio às cantigas dos trovadores; paixões desenfreadas se incubavam sob os costumes
graciosos e levianos da nobreza. Havia uma ebriedade e uma vertigem de prazeres.
O Languedoc delirava, nas vésperas de sua ruína.
Nessas festas, impregnadas de orgulho e sensualidade, a sede de contrastes levava a
aceitar as pregações dos hereges.
Toulouse era a capital do maniqueísmo, e constava que o conde Raymond VI
participava das crenças dos cátaros. Numa viagem que ele fizera ao Aragão, tendo
adoecido gravemente, fez-se reconduzir em liteira a Toulouse, e como lhe perguntassem
porque se fazia transportar com tanta pressa, apesar da gravidade de seu mal, respondeu
que no Aragão não havia cátaros, em cujas mãos ele pudesse morrer.
A sua vida era de uma libertinagem desenfreada: casava-se e divorciava-se segundo
sua fantasia, e chegou a ter três esposas vivas.
A crise agravava-se cada dia mais, e parecia que de um momento a outro
presenciar-se-ia a expulsão dos bispos da região e a entronização pública dos perfeitos nas
dioceses de Toulouse.

Reação sadia dos católicos


Entretanto, a França do norte e a Alemanha, que viam a cada instante a doutrina
maniquéia explodir em seu próprio seio, como incêndios ateados pelas fagulhas surgidas
da labareda provençal, agitavam-se com cólera, e ameaçavam de longe a ímpia terra do
Languedoc. Já circulava em todas partes a idéia de que os piores inimigos da Fé não
estavam mais às margens do Nilo ou do Jordão, mas no sul da França.
No próprio Languedoc, o partido católico, exasperado pelos progressos e as
provocações dos hereges, pedia o auxílio do estrangeiro.
A todos esses elementos de vitória e vingança não faltou o gênio capaz de
coordená-los e lançá-los à ação: na Cátedra de S. Pedro estava sentado um desses homens
cujo olhar de águia abarca todos os perigos, e cuja alma inflexível não recua diante de
nenhuma necessidade. Inocêncio III, semelhante ao Anjo exterminador, preparou durante
dez anos o espantoso furacão que precipitou afinal sobre as regiões provençais.
A vitória de Roma e da França sobre o maniqueísmo era inarredável.
Essas belas províncias, essas inteligentes e orgulhosas cidades onde a liberdade teve
enorme surto; essa literatura; essa sociedade sem preconceitos, na qual a burguesia trata a
nobreza em pé de igualdade, e rivaliza com ela nas cortes de amor e nas liças dos torneios;
tudo isso vai desabar em meio a torrentes de sangue: os homens do Norte vão irromper na
França meridional, esmagando, sob as patas de seus cavalos de guerra, artes, indústria,
poesia e liberdade!

A Cruzada espiritual

A tempestade se preparava lentamente no horizonte: os “monges brancos” de Cister


foram os primeiros instrumentos de que Inocêncio III se serviu. A própria escolha
equivalia a uma ameaça: os cistercienses eram conhecidos como pregadores de Cruzada.
A missão não teve resultado algum.
No ano de 1203, o Papa enviou dois legados, Pierre de Castelnau e Raoul,
cistercienses também, munidos de poderes extraordinários e dispostos a agir com todo
vigor, mas os perfeitos dedicaram-se a pregar de noite, em vez de fazê-lo em pleno dia.
Arnaud-Amaury, abade de Cister, foi logo em auxílio de seus filhos Pierre e Raoul;
era ele um desses açoites de Deus que a Providência envia nos dias de cólera. Aquele
homem possuía, sob o hábito do monge, o gênio destruidor de um Átila ou de um
Genserico, mas não pôde utilizar imediatamente o gládio exterminador que estava
impaciente por empunhar.
Oito anos tinham transcorrido desde o envio dos primeiros missionários, e a obra
não avançava.
Entrementes, dois clérigos castelhanos, Diego de Osma e Domingos de Gusmão,
passaram pela região e encontraram-se com Arnaud-Amaury, Pierre e Raoul, que já
pensavam em renunciar a sua missão. Os dois espanhóis reacenderam o fervor dos
desanimados legados, e uniram-se a eles na pregação e nos debates.
Mas aproximava-se o momento em que iriam ser empregadas outras armas além da
palavra.
A exasperação crescia em ambos os lados.
Diego de Osma faleceu, implorando ao Senhor que descarregasse Seu braço sobre
os inimigos da Fé; São Domingos tinha sido vinte vezes coberto de escarros e de lama.
Um dominicano do tempo de São Luis, Etienne de Salagnac, narra que o fundador
de sua ordem disse um dia à multidão reunida em Prouille:
— “Durante muitos anos tenho-vos feito ouvir palavras de paz. Preguei, supliquei e
chorei, mas, como se diz na Espanha: «Onde a bênção não produziu efeito, o pau
produzirá ». A força prevalecerá, onde a bênção fracassou”.
Pierre de Castelnau, “cujos lábios não deixavam de proferir a palavra de Deus,
para exercer a vingança sobre as nações e derramar o castigo sobre os povos”,
exclamava com freqüência:
— “A obra de Jesus Cristo não triunfará jamais neste país, se um de nós não
morrer em defesa da Fé. Queira Deus que eu seja a primeira vítima!”
Estavam eles igualmente prontos a derramar seu próprio sangue e o sangue de seus
adversários.
Pierre de Castelnau foi atendido.
Um dia, intimou ele o conde Raymond a unir-se aos outros nobres para exterminar
os hereges. Raymond recusou-se e Pierre o excomungou; Inocêncio III ratificou a
sentença por meio de uma carta na qual tratava o conde de “pérfido, insensato e
pestilencial”.
No dia 14 de Janeiro de 1208, Pierre de Castelnau saiu da cidade de Saint-Gilles
após uma entrevista tempestuosa com Raymond de Toulouse.
Subitamente aparece um tropel de ginetes em meio a uma nuvem de poeira;
dirigem-se ao legado e injuriam-no a grandes gritos. Um deles empunha a lança e
golpeia-o violentamente nas costas, exclamando:
— “Lembra-te do conde de Toulouse!”
Na confusão geral os assassinos fogem, enquanto Pierre cai por terra dizendo num
sussurro:
— “Que Deus te perdoe, assim como eu te perdôo”.
Aquele homem, implacável para vingar a honra de Deus, sabia no entanto perdoar
seu próprio assassino.
Todo o mundo estava convencido de que Raymond era o responsável.
“A reprovação desse assassinato era tal — escreve Pierre des Vaux-de-Cernay,
cronista da época — que até os próprios cães recusavam-se a comer da mão daquele que
matara o homem de Deus”.
Pode-se imaginar o furor de Inocêncio III ao saber da morte de seu legado; lançou
ele um brado de vingança que retumbou na Europa inteira, e ordenou que Raymond fosse
coberto de anátemas em todas as igrejas.
Agora, a lança e a fogueira encarregar-se-ão de submeter a heresia.

Carta de Inocêncio III

“Inocêncio, bispo, servo dos servos de Deus, a nossos filhos bem-amados os


condes e barões, e aos arcebispos das províncias de Narbonne, Embrun, Aix e Vienne,
nossa bênção apostólica. (...).
“Nós lhes ordenamos firmemente, em Nome do Espírito Santo e em virtude da
obediência que eles nos devem (...) que em todas suas dioceses eles declarem
excomungados o assassino do servo de Deus e todos aqueles que o aconselharam,
favoreceram ou ajudaram seu crime.
“Que esta condenação seja solenemente renovada nos domingos e dias festivos, ao
som dos sinos e à luz dos círios, até que o assassino e seus cúmplices se apresentem ante
a Sé Apostólica e mereçam receber a absolvição. (...).
“E se esse castigo não lhe devolver a inteligência, nós saberemos fazer pesar
ainda mais nossas mãos sobre ele. (...).
“Mas, pelo contrário, a todos aqueles que, animados pelo zelo da Fé católica para
vingar o sangue do justo — que faz subir da terra ao Céu um apelo incessante, até que o
Deus das vinganças desça do Céu sobre a Terra para a confusão dos corruptores e dos
corrompidos —, a todos os que tomarem as armas contra esses pestíferos, que os
mencionados arcebispos assegurem a indulgência concedida por Deus e seu Vigário para
a remissão dos pecados (...).
“Avante pois, cavaleiros de Cristo! Exterminai a impiedade por todos os meios que
Deus vos proporcionar; combatei com mão vigorosa os sectários da heresia, fazendo-lhes
guerra mais rude do que aos sarracenos, pois são piores do que eles”.
“Quanto ao conde Raymond, ainda que voltasse a procurar o Nome de Deus e
desejasse dar satisfação a nós e à Igreja, não deixeis por isso de fazer pesar sobre ele o
fardo da opressão que ele chamou sobre si: expulsai-o de seus castelos e privai-o de suas
terras, a fim de que os católicos sejam estabelecidos em todos os domínios dos hereges”.
Ao mesmo tempo, inúmeros monges dos mil e duzentos mosteiros cistercienses
espalharam-se como enxames por toda a França, a Alemanha e a Itália, chamando o povo
às armas.

A Cruzada relâmpago

O exército reuniu-se em Lyon.


À testa marchavam os grandes senhores eclesiásticos e leigos, rodeados de seus
vassalos. Também compareceu uma multidão de cavaleiros da França, da Alemanha, da
Lorena, da Borgonha, da Lombardia e da Aquitânia.
Os cruzados penetraram nas terras de Raymond-Roger Trencavel, visconde de
Béziers e de Carcassone, e no dia 22 de Julho, festa de Sta. Maria Madalena, chegaram
diante de Béziers.
O bispo da cidade fez uma derradeira tentativa para convencer seu rebanho e
apresentou-lhe o ultimatum dos cruzados. Dirigindo-se aos católicos, “se é que os havia”,
intimou-os a render a cidade e entregar todos os hereges, que ele, bispo, bem conhecia e
dos quais tinha a lista. Se não pudessem, que saíssem da cidade abandonando os hereges,
a fim de não perecer com eles.
Eles responderam que “preferiam comer suas próprias crianças antes que fazer tal
coisa”.
Ao ouvir esta resposta, “o legado jurou que não deixaria em Béziers pedra sobre
pedra, e que levaria tudo a sangue e fogo”.
A cidade foi tomada de assalto e inundada de inimigos. “Foi o maior massacre que
jamais se fez no mundo, pois nada foi poupado”. Os cruzados tinham perguntado ao
abade de Cister como distinguiriam os hereges dos fiéis:
— “Matai-os todos! — respondeu Arnaud-Amaury — Deus reconhecerá os seus!”
“Tudo foi passado a fio de espada, e ninguém se salvou. A cidade foi incendiada e
tudo ficou devastado, tal como se vê hoje, de sorte que não restou um ser vivo”.
Tal foi a primeira ação dos campeões da Fé. Os cruzados deixaram um monte de
ruínas e de cadáveres onde tinha estado Béziers.
Um silêncio de morte reinava a sua passagem: as guarnições dos castelos tinham
fugido para Carcassonne.
Aos olhos dos cruzados, esta cidade era tão diabólica quanto Béziers. Nela, os
judeus eram muitos e poderosos, e os hereges eram donos incontestados. O bispo tinha
sido expulso da cidade, e seu sucessor, Bertrand-Raymond de Roquefort, era de uma
família abertamente cátara.
No dia 3 de Agosto, enquanto os clérigos entoavam o Veni Sancte Spíritus, deu-se
o assalto.
As primeiras defesas são rapidamente desbaratadas, e nas ruas a luta se torna feroz;
Raymond-Roger Trencavel defende-se casa por casa, mas após duas horas de combate
encarniçado, vendo-se ameaçado por um movimento envolvente dos cruzados, ele é
obrigado a retirar-se às torres da cidade.
No dia seguinte, 4 de Agosto, os cruzados tentam o assalto, mas uma chuva de
pedras e flechas obriga-os a recuar. Esta chuva é tão violenta que ninguém se atreve a
socorrer um cavaleiro que jaz no fosso com uma perna quebrada.
E é neste instante que vemos aparecer pela primeira vez um barão francês que
deverá assinalar-se por sua bravura e que será conhecido ao longo das gerações como o
terror do Languedoc. Voltando ao fosso acompanhado de um único escudeiro, ele
consegue salvar o cavaleiro, apesar da torrente de projéteis que lhe atiram. Seu nome é
Simon de Montfort.
Por fim, no dia 15 de Agosto, rendeu-se Carcassonne.
Após celebrar a missa do Espírito Santo, Arnaud-Amaury reuniu o conselho do
exército para escolher um chefe que tomaria posse do viscondado de Trencavel. A escolha
recaiu sobre Simon, senhor de Montfort, mas ele recusou-se decididamente, e foi
necessária a autoridade do legado pontifício para fazê-lo ceder.
Inocêncio III aprovou imediatamente a decisão, e em duas cartas felicitou o conde de
Montfort por ser ele o “monte forte” que se opunha ao avanço dos inimigos da Igreja.
Simon de Montfort, gládio da Igreja

IIª Parte: Vitórias e milagres

Pierre Belperron, La Croisade contre les Albigeois, Librairie Académique Perrin, Paris,
1967.
Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie, Paris, 1878.
Achille Luchaire, Innocent III, la Croisade des Albigeois, Hachette, Paris, 1906.
Dominique Paladilhe, Les grandes heures cathares, Librairie Académique Perrin,
Paris, 1969.
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Histoire Albigeoise, Librairie
Philosophique J. Vrin, Paris, 1951.

O perfeito cavaleiro

O conde Simon de Montfort acabava de se instalar no seu novo feudo, quando a


Cruzada dispersou-se. Haviam transcorrido os quarenta dias obrigatórios, prescritos pelo
Papa para a obtenção das indulgências, e os cruzados não pensavam senão em voltar a suas
casas. “O conde ficou só e desolado; restaram-lhe apenas trinta cavaleiros, — com suas
respectivas gentes de armas — que tinham vindo da França e que colocavam acima de
tudo o serviço de Deus e do conde”.
Congregados em torno de seu chefe, esses cavaleiros formarão um grupo coeso que
o seguirá com um só coração e um só élan. Entre eles não haverá uma só defecção ou
traição.
O novo chefe da Cruzada era católico fogoso, conhecido por seu ódio à heresia e por
seu zelo em cumprir todas as vontades da Igreja. Cavaleiro de Ile-de-France, região onde as
paixões religiosas eram ardentes e exprimiam-se freqüentemente pela combustão dos
hereges.
Pierre de Vaux-de-Cernay descreveu-o assim: “Era de elevada estatura, fisionomia
distinta, corpo de um vigor e uma agilidade surpreendentes. Muito eloqüente, afável com
todos, excelente para seus amigos, de uma castidade rígida e de uma rara modéstia”.
Sabedoria e prudência consumadas, firmeza nas decisões, ousadia no ataque, obstinação
nas determinações tomadas; nada faltava a esse homem “devotado por inteiro à obra de
Deus”.
Simon de Montfort, ao longo da guerra, será admirável na resistência e na energia.
Jamais vencedor algum mereceu tanto o sucesso. Acossa o inimigo sem tréguas, não lhe
permitindo um instante de repouso; está presente por todas as partes, cavalga no inverno
e no verão de uma extremidade à outra do Languedoc, de cidade em cidade, de fortaleza
em fortaleza; rechaça assaltos e sítios sem jamais abandonar a ofensiva! O vigor desse
barão ultrapassa o limite das forças humanas.
E quantos atos de bravura pessoal! Ao chegar diante do castelo de Foix, de tal
modo está tomado pela impaciência das batalhas que se lança à carga, acompanhado de
um único cavaleiro, contra os soldados que defendem a porta.
Trata-se, mais tarde, de ocupar o castelo de Muret: ele cruza o Garonne a nado
com seus cavaleiros e entra na praça, mas percebe que a infantaria ficou indefesa na outra
margem, não ousando cruzar o rio, cujo caudal foi aumentado pelas chuvas. Eis que
chama seu marechal:
— “Vou buscar o resto do exército” — declara.
— “O que estais pensando, Senhor? — responde-lhe o outro — Só restou a
infantaria além do rio. A torrente é tão violenta que não podereis voltar a cruzá-la. Isto
sem contar com que os tolosanos podem sobrevir e matar-vos”.
— “Mau conselho! — atalha Simon — Permanecerei eu em segurança na
fortaleza, enquanto os pobres de Cristo estão expostos ao ferro inimigo? Irei lá e ficarei
com eles!”
Atravessa ele novamente o rio com cinco cavaleiros e permanece do outro lado
durante vários dias protegendo a infantaria, até à reconstrução da ponte.
E em que condições deploráveis ele prossegue sua campanha! Repetidas vezes os
cruzados que terminaram sua “quarentena” o abandonam durante um cerco ou no meio de
uma expedição. Em vão suplica que fiquem por mais algum tempo; esses peregrinos só
têm uma preocupação: voltar às suas terras, uma vez ganha a indulgência.
Animado por uma Fé profunda e convencido da santidade de sua missão, Simon
não conhece o medo ou o desânimo. É um guerreiro que luta pela Religião, sem pena de
si nem dos outros.
Num domingo, após haver assistido a Missa e comungado, parte para o combate.
Um monge cisterciense julga necessário dirigir-lhe algumas palavras de alento.
“Pensais que tenho medo? — diz Simon — Trata-se da obra de Jesus Cristo: a
Igreja inteira reza por mim. Não seremos derrotados!”
Tal confiança torna-o invencível e atrai os milagres. Durante o cerco de Termes, o
chefe dos cruzados conversa com um de seus cavaleiros, com a mão apoiada no seu
ombro. Uma enorme pedra cai sobre eles, destroça a cabeça do cavaleiro, e Montfort nem
é tocado. Num outro dia ele assiste ao ofício de pé, quando uma flecha mata o soldado
que se encontrava exatamente nas suas costas.

A conquista

Após ser nomeado chefe militar da Cruzada, Simon de Montfort empreende a


conquista da região, com método eficaz e terrível: cada passo do exército invasor é
marcado por uma chacina.
Dois hereges são presos em Castres, um deles abjura seus erros. Será sincero?
Duvida-se, discute-se... Deus decidirá! Simon ordena que ele seja queimado: se for
sincero, o fogo purificá-lo-á de seus pecados; se não o for, “receberá o justo castigo de
sua perfídia”.
Em Lavaur ordena à queima mais de quatrocentos perfeitos.
Após a conquista dessa última cidade, o senhor Aimery de Montréal e oitenta
cavaleiros são levados às forcas, mas estas, mal plantadas, caem por terra. Simon, com
pressa de acabar, ordena que aqueles que não puderam ser enforcados sejam
simplesmente degolados. Num instante os peregrinos efetuam o massacre.
Uma velha dama cátara “muito caridosa”, Giraude de Lavaur, é precipitada viva
num poço que depois os cruzados enchem de pedras.
O monge Pierre encerra essa narração dizendo: “Com extrema alegria, nossos
peregrinos queimaram ainda uma grande quantidade de hereges”.
Quando deitam mão sobre os perfeitos, a alegria é redobrada. Em Cassés é detido
um numeroso grupo deles; os bispos querem pregar-lhes a boa doutrina e arrancá-los de
seu erro, mas não convertem um só. Então, os cruzados massacram-nos “com imenso
gáudio”.
O barão meridional Giraud de Pépieux, após submeter-se a Simon, aproveita-se da
dispersão da Cruzada para entrar em dissidência: apodera-se do castelo de Puyserguier,
defendido por dois cavaleiros de Montfort e cinqüenta soldados, joga estes últimos no
fosso e enterra-os até à metade do corpo. Quanto aos dois cavaleiros, arranca-lhes os
olhos, corta-lhes as orelhas, o nariz e o lábio superior, e envia-os a Simon.
O sangrento desafio é respondido condignamente. Pouco mais tarde o conde de
Montfort ataca o castelo de Bram, conquistando-o em três dias. Toda a guarnição, de
mais de cem homens, sofre a mesma sorte dos dois cavaleiros franceses. Somente a um é
deixado um olho, para poder conduzir “o ridículo cortejo de nossos inimigos” ao castelo
de Cabaret, distante de vinte quilômetros. Para Simon de Montfort, as represálias são
imediatas e a lei do talião é aplicada na proporção de cem por dois.
Implacável com os hereges, Simon não o é menos com os traidores. Um clérigo
francês, ao qual havia confiado o castelo de Montréal, tem a desgraça de mancomunar-se
com Aimery, senhor herético, e de entregar-lhe a praça. Pouco depois, esse clérigo é
preso por Montfort, degradado pelo bispo de Carcassonne, amarrado ao rabo de um
cavalo, arrastado por toda a cidade e, por fim, enforcado.
Após a rendição do castelo de Minerve, o legado Arnaud-Amaury determina que
todos os crentes e perfeitos cátaros terão a vida salva se abjurarem sua heresia e se
reconciliarem com a Igreja, mas esta solução pacífica levanta uma tempestade entre os
cruzados. Um dos cavaleiros, o catolicíssimo Robert Mauvoisin, braço direito de Simon
de Montfort, indigna-se ao ver que deixarão escapar os cátaros, e em nome de todos
declara “em face” ao legado que o exército não aceita essa decisão. Porventura não
tinham eles tomado a Cruz expressamente para degolar os hereges?
Note-se que Robert Mauvoisin era homem de uma fé profunda, vida exemplar e
grande ponderação, sem nada de aventureiro ou de mercenário. Sua atitude não é senão
uma amostra do ódio que a Idade Média tinha à heresia.
— “Levados pelo medo, — diz ele — prometerão tudo o que exigirmos, para
renegar novamente quando estiverem livres!”
O legado acalma o furor dos cruzados:
— “Tranqüilizai-vos — responde —, creio que muito poucos se converterão”.
O abade Guy de Vaux-de-Cernay, “varão zeloso pela obra de Cristo”, dirige-se ao
local onde os perfeitos estão reunidos e tenta convertê-los, mas logo às primeiras palavras,
estes o interrompem: “Para que nos admoestais? Nós renunciamos à Igreja de Roma.
Nem a vida nem a morte poderão fazer-nos abandonar nossa crença”.
Ele vai então à casa das perfeitas, esperando obter melhores resultados, mas
encontra aquelas mulheres ainda mais obstinadas do que os homens.
O próprio Simon tenta converter os hereges, mas não tendo maior êxito que o
abade, fá-los conduzir às aforas do castelo, onde uma imensa pira está preparada. São
mais de cento e quarenta e, acrescenta o monge cronista: “Os nossos não tiveram o
trabalho de empurrá-los, pois, obstinados em seu erro, eles próprios se precipitaram no
fogo”.
Milagres

O exército tem certeza de praticar um ato religioso massacrando os hereges; é ao


cântico do Veni Creator Spiritus que se destroem os castelos e se acendem as fogueiras.
Como não poderiam eles estar persuadidos de que Deus os acompanha? Os milagres
acontecem por toda parte.
O corpo do mártir Pierre de Castelnau, no momento de sua transladação, é
encontrado intacto como se acabasse de ser enterrado, e exalando um suave perfume.
A multiplicação dos víveres é operada em favor dos cruzados: os cinqüenta mil
homens da primeira expedição têm pão em abundância, num país onde não há mais
moinhos.
Alguns cruzados recebem flechas no peito sem sofrer o menor dano. Quando um de
seus contingentes se instala para sitiar um castelo inimigo, as fontes de água, antes
insuficientes, jorram com abundância; após sua partida, retomam seu fluxo natural.
Cruzes luminosas são vistas pelos católicos sobre os muros de uma igreja. Uma
coluna de fogo baixa sobre os cadáveres de uns cruzados mortos em emboscada e eles são
encontrados jazendo com os braços em cruz.

A batalha de Castelnaudary

Entretanto, o conde Raymond de Toulouse decide-se finalmente a agir e convoca


todos seus vassalos, amigos e mercenários. Assim narra a Chanson de la Croisade:
“Imenso era o exército do conde de Toulouse! Vieram os homens de Moissac, de
Montauban, de Castelsarrasin e de Agenais. Ninguém permaneceu em sua casa! Lá estão
também os de Comminges e de Foix, e todos proferem ameaças contra o «conde Forte »,
chamando-o de traidor. Eles afirmam que irão até Carcassonne, e quando o prenderem,
esfolá-lo-ão vivo”.
Simon percebe o perigo e imediatamente reúne seus barões em conselho. O que
fazer? Um cruzado irlandês, Hughes de Lacy, adianta-se, dizendo:
“Senhor, se vos refugiardes nas cidades mais fortes, Carcassonne ou Fanjeaux,
parecerá que tendes medo do conde de Toulouse e sereis desonrado. Fazei o contrário:
avançai e escolhei a cidade mais débil para esperar o inimigo. Ele virá procurar-vos e
então, em campo raso, vencê-lo-eis”.
Simon adota essa tática sensata e audaciosa, e decide esperar o combate na orla de
suas terras, em Castelnaudary. Apenas se instala na fortaleza, Raymond vem sitiá-la.
As hostes de Montfort são reduzidas, por isso ele apela a todos os que podem vir
em seu auxílio: o fiel cavaleiro Bouchard de Marly que guarnecia o castelo de Lavaur,
deixa uns poucos homens na praça e põe-se em marcha; no caminho encontra-se com
Mathieu de Marly, seu irmão, e Guy de Levis que vinham de Carcassonne com seus
homens.
Porém, no campo de Toulouse soube-se da chegada dos reforços. O conde
Raymond-Roger de Foix, um dos mais resolutos e intrépidos soldados da causa
meridional, decide atacá-los sem demora: ele arrasta atrás de si todos os bandidos
mercenários e os principais cavaleiros de Toulouse, e posta-se em emboscada, a uma
légua da vila. Tem esperança de poder surpreender a coluna, mas nessa planície inundada
pelo refulgente sol de setembro não é possível esconder-se por muito tempo. Além do
mais, os irmãos de Marly e Guy de Levis estão vigilantes. Assim que vêem aparecer os
primeiros soldados do conde de Foix, alinham-se em ordem de batalha, prontos para
resistir a um inimigo muito mais numeroso e melhor armado.
De seu lado, Raymond-Roger exorta suas tropas: “Barões, já é tempo de acabar
com este bando de estrangeiros! Que ninguém repouse até haver matado o último deles!”
E erguendo a lança, brada: “Toulouse!” Imediatamente os besteiros lançam seus
dardos, toda a cavalaria inclina suas lanças e atira-se impetuosamente ao galope, gritando
mil vezes: “Toulouse! Foix! Comminges!”
Bouchard de Marly e os seus adotam a única tática possível: esporeiam seus
cavalos e lançam-se também à carga contra o centro do inimigo, respondendo aos gritos
com o brado: “Montfort!”
Num instante, em meio a um aterrador clamor de brados, relinchos, tinir de armas,
galopes e lanças partidas, começa o combate. No entanto, os cruzados estão na proporção
de um contra trinta e vêem-se obrigados a ceder. A cavalaria francesa recua em boa
ordem; Raymond-Roger parece vitorioso...
Simon de Montfort permanecia tranqüilamente na fortaleza de Castelnaudary,
quando percebe que se trava batalha. Foi avisado por um mensageiro? Viu ou escutou
algo de suspeito? Não se sabe. O certo é que ele não perde um segundo. Dando-se conta
de que chegou a hora de arriscar tudo num lance decisivo, convoca seus homens, dizendo:
“Deste combate depende toda a obra de Jesus Cristo. Quero vencer com os meus
ou morrer com eles. Avante, nós também!”
Deixando apenas cinco cavaleiros e a infantaria custodiando as muralhas, sai do
castelo e voa à rédea solta em socorro de Bouchard. Com grandes brados precipita-se
ladeira abaixo, sobre a retaguarda do inimigo. Guy de Levis e os irmãos de Marly, ao ver
aparecer o pendão vermelho com o leão dourado de Montfort, fazem meia volta e
contra-atacam ao brado de “Montfort! Montfort!”
Os meridionais, já ocupados em despojar os mortos, são surpreendidos pela carga.
Num instante a vitória do conde de Foix se transforma em derrota. Sua numerosa e
elegante tropa, tomada de pânico, foge em todas as direções.
Raymond-Roger, com o escudo fendido e a espada quebrada, defende-se com
bravura, mas Montfort derruba tudo diante de si, e os fugitivos, para salvar a vida, gritam
por sua vez: “Montfort!” Ao ouvir isto, os vencedores dizem: “Se for assim, matemos
todos os que estiverem à nossa frente!”
Enquanto o conde de Foix perdia a batalha, Raymond de Toulouse tentava assaltar
o castelo e era rechaçado pelos cinco cavaleiros e pela infantaria.
Montfort é um chefe decidido e clarividente; na primeira batalha campal acaba de
esmagar, por sua audácia, forças muito superiores. De volta à fortaleza, ele dirige-se à
igreja, onde faz cantar o Te Deum.
No dia seguinte o conde de Toulouse levanta seu acampamento e retira-se, após
incendiar suas máquinas de guerra. A insurreição em massa do Languedoc não tinha
podido dar conta de um punhado de cavaleiros franceses. Insofismável prova da
superioridade daqueles homens de ferro, que viviam em armas, sobre os barões
meridionais habituados à vida fácil, que chamavam os bandidos para lutar em seu lugar e
que não sabiam mais o que era o sofrimento.

————
3 — Simon de Montfort, gládio da Igreja

IIIª Parte: Vitórias de Muret e Toulouse

Pierre Belperron, La Croisade contre les Albigeois, Librairie Académique Perrin,


Paris, 1967.
Dominique Paladilhe, Les grandes heures cathares, Librairie Académique Perrin,
Paris, 1969.
William de Bazelaire, La bataille de Muret, in Historia, nº 373 bis, Nov/Dez 1977.
Dominique Paladilhe, Simon meurt et Toulouse triomphe, in Historia nº 373 bis,
Nov/Dez 1977.

A batalha de Muret

Na abadia cisterciense de Boulbonne, um guerreiro deposita sua espada


desembainhada sobre o altar e implora em alta voz:
— “Ó meu Senhor Jesus! Vós me escolhestes, apesar de indigno, para dirigir
Vossa guerra. Quero neste dia receber meu gládio de Vosso altar, para travar batalha
por Vós”.
Este cavaleiro é Simon de Montfort.
No dia seguinte, 11 de setembro de 1213, ele enfrentará as forças conjuntas do rei
de Aragão e dos condes do Languedoc.
Quando o conde Raymond de Toulouse, protetor dos cátaros, se viu despojado de
suas terras por Simon de Montfort, cruzou os Pirinéus e foi pedir ajuda a seu cunhado, o
rei de Aragão, Pedro II, para defender-se dos cruzados.
A ocasião pareceu boa a Pedro II. Este logo viu a possibilidade de, esmagando
Montfort, apoderar-se dos seus domínios. Desobedecendo às ordens do Papa, entrou no
Languedoc e reuniu-se aos condes de Foix e de Toulouse para atacar os defensores da Fé.
Em setembro de 1213, chega diante das muralhas do castelo de Muret, defendido
por guarnição francesa, e inicia o sítio.
Simon estava em Fanjeaux. Ao saber das intenções do rei e de seus aliados, põe-se
a caminho sem hesitar um só instante para socorrer a praça, acompanhado pelos
cavaleiros de seu fiel grupo e por São Domingos de Gusmão. O intrépido guerreiro sabe
perfeitamente quão decisivo será o entrechoque e por isso deseja rezar antes de combater.
Avançando às pressas, detém-se unicamente na abadia de Boulbonne para
encomendar-se às orações dos monges e consagrar a Deus sua espada sobre o altar. Simon
confessa-se e redige seu testamento.
No dia seguinte, durante a Missa, os bispos excomungam solenemente, uma vez
mais, todos os fautores, cúmplices e defensores da heresia.
Feito isto, o exército parte rumo a Muret.
Uma violenta chuva alaga os campos. A estrada é estreita e escorregadia, e o rio
Leze inunda uma parte. Fazem alto, e enquanto cada qual procura um abrigo, Simon entra
numa igreja para rezar. Quando sai, a chuva já cessou e ele pode continuar seu caminho.
Muret já está muito próxima. Com quanta impaciência eles cavalgam! Procuram
com os olhos o local da batalha e, subitamente, avistam afinal a fortaleza. A planície sem
fim está repleta de uma imensa multidão de ricas e coloridas tendas, estandartes
brasonados, tropas e cavalos.
Com um golpe de vista, Montfort abarca a massa de seus inimigos: são milhares e
milhares aqueles a quem combaterá, e, ao considerar seu pequeno exército, sente um
aperto no coração. Mas, resolutamente, penetra na praça sitiada.
Cai a tarde do dia 11 de setembro. Todos os protagonistas do drama estão
presentes.
Para os cruzados, a situação é crítica: suas hostes contam com pouco mais de 800
cavaleiros acompanhados de 700 peões, cercados numa vila estreita e mal fortificada.
Como se isto não bastasse, têm víveres para apenas vinte e quatro horas. É bem verdade
que a cavalaria é composta por intrépidos guerreiros e a flor dos cruzados, mas o que
poderão eles contra a multidão que os cerca?
O inimigo dispõe de 4.000 ginetes e 40.000 soldados de infantaria!
Apenas chegaram, os franceses clamam por batalha a altos brados, desejando punir
o rei de Aragão, traidor à Fé e cúmplice dos hereges.
Os bispos, no entanto, ainda não perderam a esperança de chegar a um acordo, e
enviam ao rei de Aragão palavras de paz, suplicando-lhe que não trave combate contra os
representantes da Igreja.
Pedro II responde insolentemente que “não vale a pena entrar em acordo algum
com esse punhado de soldados”.
Na manhã seguinte, os dois campos estão convencidos de que a batalha se travará
nesse dia, e ela teria começado muito mais cedo se os bispos não prosseguissem suas
tentativas de conciliação.
Por seu lado, os inimigos convocam o conselho de guerra, após ter banqueteado
copiosamente esvaziando boas barricas de vinho.
O rei de Aragão propõe o ataque sem demoras: “Montfort não poderá escapar!”
afirma.
Só um homem prega a prudência: Raymond de Toulouse. Para que atirar-se na
refrega irrefletidamente, quando se dispõe de um acampamento solidamente fortificado?
“Melhor é esperar que os cruzados nos ataquem”, sugere. E faz ver que um dardejar
mortífero dos besteiros dizimaria os franceses, obrigando-os a virar rédeas; nesse
momento a cavalaria poderia sair do acampamento em sua perseguição e despedaçá-los.
Um nobre aragonês, Miguel de Luésia, contesta com violência esse projeto,
objetando que a honra não pode se aliar à reflexão, à prudência e aos cálculos
complicados. Um homem honrado só escuta sua coragem e atira-se sem pensar na
batalha! É indigno de um cavaleiro o entrincheirar-se atrás de uma barricada e esperar,
ladeado por vulgares besteiros, que o adversário — aliás tão pouco numeroso — chegue
até ele! Como poderão apresentar-se diante das damas de Aragão após semelhante
combate? “Isso é indigno do rei de Aragão!”, exclama. E esse brado conquista todas as
opiniões.

Na fortaleza, a atmosfera é bem outra. Logo ao amanhecer Simon e seus homens


assistem à santa Missa na capela do castelo. Após terem-se confessado todos, discute-se o
plano de batalha e Montfort faz ver que, em semelhante situação, somente um recurso tem
probabilidades de sucesso: a batalha em campo raso. Quanto mais obrigarem o inimigo a
afastar-se de seu acampamento, tanto mais difícil será para a infantaria correr-lhe em
auxílio. No fundo, Simon age como todos os grandes estrategistas: divide para esmagar.
Os cruzados estão ávidos pelo combate e impacientam-se com a inatividade, na
presença do inimigo tão próximo. No entanto, os bispos ainda não renunciaram ao desejo
de ter uma entrevista com o rei de Aragão e, enquanto os cavaleiros estão inflamados ante
a perspectiva de uma luta tão desigual, eles desejam esgotar todas as chances de uma
solução pacífica. Eles enviam uma nova mensagem a Pedro II.
Mas no momento em as portas se abrem para deixar sair o emissário, a infantaria
de Toulouse precipita-se dentro da vila e é preciso rechaçá-la com energia.
Então Simon de Montfort declara aos bispos que a hora das tratativas já passou:
— “Vede que não ganhamos nada com vossas negociações. Já suportamos mais
do que bastante. Tempo é de que vós nos deis permissão para combater”
Os prelados cedem por fim, tanto mais que as catapultas dos tolosanos fazem
chover pedras sobre a própria casa onde estão reunidos.
Logo começa a se ouvir por toda a vila um tinir de armas e estribos, de ordens de
comando e trote de cavalos. Já revestido de loriga e elmo, Simon desce para a praça e,
passando em frente à capela, entra uma última vez e ajoelha-se. Nesse gesto rompe-se a
correia que prende suas perneiras de ferro.
Alguns vêem nisso um mau presságio, mas Simon, sem perder a serenidade,
ordena que lhe tragam uma nova correia. “Como bom católico, ele não sentiu temor nem
perturbação”.
Curiosamente, os “maus presságios” vão acumular-se nos instantes que precedem o
combate. Montfort encontra-se agora num terraço que é visível pelos assaltantes. Ao
montar seu corcel, eis que a correia da sela rompe-se e ele quase cai por terra. E quando
Simon coloca novamente o pé no estribo, o animal, debatendo-se, golpeia seu dono na
fronte, deixando-o aturdido por instantes.
A soldadesca inimiga que observava a cena diante das muralhas, ri e caçoa de
Simon, mas este, erguido nos estribos, responde-lhe a plenos pulmões:
— “Ride, ride à vontade! Eu me rirei em breve muito mais, quando vos perseguir
até às portas de Toulouse!”
O chefe dos cruzados divide sua cavalaria em três corpos, comandando em pessoa
o terceiro. Ver-se-á que com isso ele deu provas de seu gênio militar.
Enquanto a infantaria defende a fortaleza de um possível ataque, a cavalaria
marchará contra o acampamento do rei, para atraí-lo a campo raso. Simon afirma: “Os
nossos são assaz numerosos para esmagar o inimigo, com a ajuda de Deus”.
Neste momento aparece o bispo Foulques, portando uma relíquia da Verdadeira
Cruz. Os cavaleiros osculam-na um após o outro e partem, “havendo-se perdoado
mutuamente todos os rancores que pudessem ter entre si”.
Todos sentem que a jornada será rude. A cavalaria inimiga é cinco vezes mais
numerosa, e se a infantaria intervier a proporção será de um contra 50. Os cavaleiros
Alain de Roucy e Florent de Ville fazem voto de matar o rei de Aragão.
Montfort e os seus saem da vila evitando o encontro com a infantaria inimiga, que
almoça tranqüilamente. Os cruzados marcham em ordem, atravessam o rio Louge, e os
dois primeiros corpos partem ao trote em direção ao acampamento real.
Entretanto, na igreja de São Tiago de Muret, São Domingos reza o rosário.

No campo da nobreza inimiga tudo é confusão. O rei de Aragão iniciava seu


almoço quando recebe a notícia da proximidade de Montfort. Todos se armam
precipitadamente e começam a formar os esquadrões, certos entretanto da vitória. Porém,
cada nobre deseja travar sua própria batalha, sem ordem nem tática.
Pedro II decidiu trocar suas armas com as de um cavaleiro para, segundo um
costume da época, honrá-lo.
No entanto, eis que subitamente aparece todo o exército cruzado em ordem em
batalha. Para os aliados a surpresa é total, pois não imaginavam que Simon fosse agir com
tanta rapidez. Eles tentam em organizar-se, e, num enorme tumulto, as duas cargas
opostas lançam-se simultaneamente uma contra a outra; mas enquanto os cruzados atacam
em perfeita ordem, os meridionais fazem-no com afobamento e confusão.
O primeiro esquadrão dos aliados é comandado pelo conde Raymond-Roger de
Foix, ávido de vingar a derrota que sofrera em Castelnaudary; mas o primeiro corpo
cruzado, ao comando de Guillaume des Barres, golpeia com tanta violência a vanguarda
inimiga, que Raymond-Roger cede imediatamente ao impacto da massa de ferro.
O rei aragonês deseja mostrar sua coragem e comanda em pessoa o segundo
esquadrão que vai em socorro do conde de Foix; mas a segunda carga dos cruzados,
comandada por Bouchard de Marly, acaba de dispersar os restos da cavalaria de
Raymond-Roger que foge em debandada, lançando a desordem nas hostes do rei. Pedro II
vê-se submergido pela torrente dos cruzados.
O terceiro esquadrão dos aliados, confiado ao conde de Toulouse, nem sequer tem
tempo de entrar em combate.
A luta transforma-se então numa melée tempestuosa e confusa. Em meio a um
redemoinho de lanças quebradas, espadas e maças, a batalha fragmenta-se numa série de
combates individuais. “O entrechoque das armas e o ruído dos golpes era semelhante ao
de uma floresta sendo derrubada por uma multidão de machados” — escreve o cronista
Guillaume de Puylaurens.
Os cruzados Alain de Roucy e Florent de Ville, abrindo caminho a golpes de
espada e de machado, procuram o rei de Aragão, e quando avistam o escudo dourado com
as barras vermelhas, portado pelo cavaleiro a quem o rei havia cedido suas armas,
precipitam-se ao ataque. Alain de Roucy desfere uma formidável espadagada, e, vendo
seu adversário cair ao primeiro golpe, exclama surpreso e irritado:
— “Este não é o rei! O rei é melhor cavaleiro!”
Pedro II, ouvindo isto, atalha:
— “Eis aqui o rei!”
E investe contra aqueles que juraram matá-lo, mas logo é crivado de golpes,
derrubado do cavalo e morto. Os nobres aragoneses deixam-se massacrar sobre seu
cadáver.
No momento em que o rei sucumbe, Simon de Montfort, à testa do terceiro corpo
dos cruzados, envolve o inimigo pelo flanco. Um contingente tenta cortar-lhe o caminho,
Simon avança, e nesse instante rompe-se um de seus estribos. Tenta esporear o corcel,
mas perde a espora. Um inimigo aproveita-se de seu desequilíbrio para desferir-lhe uma
espadagada na cabeça, mas recebe como resposta um tremendo soco na face que o
derruba do cavalo. Tão espantoso golpe faz fugir todos os que o cercavam, e ele atira-se
por fim à carga.
O ataque inesperado e furioso enche de pânico as forças inimigas, já
desmoralizadas pela morte do rei. Cada qual foge para onde pode. Todos os esquadrões
aliados debandam-se sucessivamente, sentindo nas costas a ponta das espadas dos
cruzados, e Simon de Montfort lança seus esquadrões em perseguição dos vencidos.
Porém, para os cruzados, isto não é senão uma meia vitória. Permanece ainda
intacta a infantaria inimiga, 50 vezes superior em número, tranqüila no acampamento,
tendo por certa a vitória da sua cavalaria.
Qual não foi sua surpresa e terror ao verem aparecer todos os cavaleiros cruzados,
atirando-se numa carga furiosa contra eles! Aquela enorme massa de milhares de homens
não tem tempo de reagir e, sem opor a menor resistência, fogem em direção ao rio.
A cavalaria francesa, ébria de vingança, precipita-se a golpes de espada sobre a
peonagem em fuga. Um grande número cai nas águas, enquanto que os outros são
despedaçados. 15.000 deles perecem, talhados ou afogados.
O campo de batalha está juncado de cadáveres. A rapidez fulminante desta batalha
é confirmada pelo cronista, testemunha ocular dos fatos: “Os franceses dispersaram seus
inimigos como o vento varre a poeira do chão”.
Jamais se viu tão pequeno exército obter vitória tão completa! Segundo a narração
da época, Montfort não perdeu mais do que uns poucos soldados e um cavaleiro!
Foi visto como sinal do Céu o fato de que o rei de Aragão, sempre invicto na luta
contra os muçulmanos, foi morto quando se levantou contra aqueles que defendiam a
Igreja, sendo que neste dia sua força era maior do que nunca.
Para Simon de Montfort, a vitória é miraculosa, mas o mérito dos cruzados em
nada é diminuído por isso. A disciplina, a coesão e a coragem tiveram grande parte na
vitória, e, ao contrário de seus inimigos, não havia entre os cavaleiros franceses nenhuma
divisão ou inveja, mas apenas a emulação de desferir o primeiro golpe.
Voltando à fortaleza, Simon de Montfort, com uma humildade toda medieval, dá
seu cavalo como esmola aos pobres, e dirige-se à igreja para agradecer Àquele que lhe
deu a vitória.
Entrada em Toulouse

A vitória de Muret paralisou de terror todo o Languedoc, e a cidade de Toulouse,


“onde não havia uma família que não tivesse de chorar um morto”, espera com angústia
as decisões do vencedor.
Em apenas três dias, Simon percorre 200 quilômetros e chega a Montgiscard, às
portas de Toulouse. Ali reúne todas suas tropas para entrar na grande cidade.
Diante do perigo que representa a inesperada chegada do cruzado, os burgueses,
urdindo uma cilada, decidem manifestar surpresa e ingenuidade.
Assim pois, com fingida cortesia eles saem da cidade para acolher seu novo senhor.
Ora, não é sem pavor que eles vêem chegar as fileiras cerradas, as lanças erguidas e os
estandartes de combate. Montfort e seu exército não vestem trajes de seda, mas vêm
cobertos de lorigas de ferro.
Os tolosanos, mostrando espanto, dirigem ao cruzado palavras cheias de doçura:
— “Senhor conde, muito nos surpreende que vós venhais a nós com a espada e o
ferro assassino, pois nada aproveitareis destruindo aquilo que vos pertence. Devíeis
entrar, senhor, com cavalo de passeio, sem armas nem loriga, vestindo túnica bordada,
cantando e coroado de guirlandas, como é próprio àquele que é dono e senhor. Estamos
prontos a obedecer tudo o que vós mandardes, e eis que vós nos trazeis o terror, vindo a
nós com um coração de leão feroz”.
Mas Simon responde com voz dura e severa:
— “Senhores! Queirais ou não queirais, eu entrarei nesta cidade e farei o que
desejo, pois vós agistes muito mal ao provocar-me. Já recebi vinte mensageiros
anunciando que vós conspirais contra mim. Assim, juro pela verdadeira Cruz onde Nosso
Senhor Jesus Cristo foi cravado, que não retirarei minha loriga nem meu elmo, até que
vós me entregueis os reféns que eu escolher entre os mais importantes da cidade. E quero
ver se vos atrevereis a recusar”.
Ouvindo isto, os burgueses recuam precipitadamente, lançando a alarma na cidade
e gritando:
— “Às armas! Defendamo-nos! Eis o leão que chega!”
Imediatamente as ruas são fechadas com barricadas e o povo corre às armas, mas
os cavaleiros de Montfort atiram-se à carga, e o combate ferve nas praças e nas ruas. Em
certo momento, os cruzados são de tal modo cercados pela multidão, que Simon ordena a
seus homens:
— “Incendiai tudo!”
E enquanto os prédios ardem, ele lança uma nova carga de cavalaria para dispersar
o inimigo.
“Na praça de Sainte-Scarbes, o conde e os seus atiraram-se à carga com tanto
furor, que fazem tremer o chão”. Os tolosanos fogem, e então os cruzados “lançam-se
novamente ao ataque com enorme violência, quebrando e destruindo obstáculos e
barricadas”.
Chegada a noite, Simon e seus homens ocupam o Castelo Narbonnais.
O bispo Foulques emprega todos os recursos de sua diplomacia para obter que os
combatentes cheguem a um acordo, mas Simon não quer conciliação. O calor dos
combates não diminuiu a sua cólera, e ele persiste na determinação de aniquilar a cidade.
Por fim, os principais burgueses de Toulouse comparecem diante do cruzado —
cuja fisionomia severa não é nada própria a tranqüilizá-los — para apresentar a rendição.
Montfort ainda não está aplacado, e exige a submissão completa, a entrega das armas e a
demolição das muralhas, além da entrega de quatrocentos reféns.

———————
A Reconquista e as Cruzadas: entrechoque de duas místicas opostas (parte I)

Fr. Maur Cocheril, O.C.R., Essai sur l'origine des Ordres Militaires dans la Péninsule
Ibérique, in Collectanea Ord. Cisterciensium Ref., t. XX, 1958 e t. XXI, 1959.
Francis Gutton, La Chevalerie militaire en Espagne, in Cîteaux, Studia Cisterciensia,
Achel (Bélgica), 1980.
Ramón Menéndez Pidal, El Cid Campeador,, Espasa-Calpe, Buenos Aires, 1951.

Todas as manhãs, na magnífica sala capitular do convento de Santa María la Real


de las Huelgas de Burgos, as religiosas cistercienses se reúnem diante do troféu da vitória
das Navas de Tolosa, para ouvir o comentário da Regra de S. Bento. Sobre o vermelho
escuro do estandarte maometano vêem-se, bordados em caracteres azuis, alguns
versículos do Alcorão:
— “Em nome de Alá, clemente e misericordioso! Ó crentes: crede em Alá e em seu
profeta, e fazei a guerra santa no caminho de Alá. Que ela seja o vosso alimento!”
Este trecho e muitos outros semelhantes impõem ao verdadeiro maometano o dever
sagrado da jihad, a guerra “santa”, a propagação do Islã pelas armas. O Alcorão garante
ao “crente” que morre em combate o “paraíso” reservado aos mártires da fé.

Iª invasão muçulmana na península ibérica

Nunca faltaram “piedosos” muçulmanos que colocaram acima de tudo o dever da


guerra santa. Desde muito cedo, o Islã conheceu a instituição das rábidas, espécie de
mosteiros-fortalezas onde esses maometanos verdadeiros se retiravam a fim de
preparar-se para o combate por meio da ascese e da oração.
O fervor místico maometano e seu impetuoso desenvolvimento devem-se não só à
tradição da sempre renovada guerra santa contra os cristãos, mas sobretudo, e talvez
principalmente, ao entusiasmo dos muçulmanos pela disciplina desses retiros
“monásticos”, onde eles dividiam seu tempo entre as práticas ascéticas e o treinamento
militar.
Após a conquista fulminante da Espanha, os muçulmanos da Andaluzia
dedicaram-se à guerra de fronteiras, e a cada ano as expedições maometanas penetravam
na Espanha do norte. Essas algaras, conduzidas por tropas aguerridas, superiormente bem
equipadas e muito numerosas, semeavam as ruínas à sua passagem. Mulheres e crianças
eram levadas à escravidão, os homens eram massacrados, e, à guisa de troféus, os
vencedores levavam a Córdoba as cabeças dos mortos. Longas fileiras de crucificados
marcavam o itinerário dos muçulmanos.
O adversário mais encarniçado dos cristãos foi o terrível Almanzor, que conduziu
mais de 50 expedições, todas elas vitoriosas.
Após a batalha de Calatañazor, Almanzor, no momento de expirar, fez-se trazer um
cofre no qual guardava o pó que suas vestes traziam após cada expedição, a fim de
“mostrá-lo aos olhos de Alá, em testemunho do zelo que ele aplicara na propagação da
fé”.
A crônica cristã de Burgos contentou-se apenas com escrever singelamente: “Ano
1002; morreu Almanzor e foi sepultado no Inferno”.

A Reconquista

Entretanto, nos reinos cristãos, alguns chefes enérgicos passaram à ofensiva. O


primeiro golpe fora desferido na região montanhosa de Covadonga, e daí partira a
Reconquista, verdadeira Cruzada que só teria fim oito séculos mais tarde, aos pés da
Alhambra de Granada.
A célebre vitória de Clavijo, em 844, trouxera um grande alento. Não havia
aparecido, porventura, o Apóstolo São Tiago sobre um cavalo branco e empunhando a
espada? Santiago Matamouros! Daí em diante, é com o brado de Santiago! que os
guerreiros cristãos atacarão o Islã.
As investidas cristãs assemelham-se às algaras muçulmanas, e a terra reconquistada
cobre-se de fortalezas, de onde o seu nome: Castela.
No século X, os reinos de Leão, Castela e Navarra, assim como o condado de
Barcelona, já estão formados, e os reis cristãos impõem-se cada vez mais aos
muçulmanos: Alfonso VI de Castela, uma das grandes figuras da Reconquista, apodera-se
de Toledo e chega até Gibraltar numa cavalgada.

IIª invasão muçulmana: os almorávides

Entretanto, no sul do deserto do Saara, os nómades de face velada acabavam de


“converter-se” ao islamismo, arrastados pela pregação de um estranho personagem,
fundamentalista fanático: o faqui (“doutor da lei”) Abdalah ben Yasin.
Retirado numa rábida, ele congrega em torno de si uns partidários, que serão
designados pelo nome de Al-Murábitun, “os homens da rábida”, “os consagrados a Alá”,
os almorávides.
Considerando os outros muçulmanos como heréticos e depravados, lançam-se eles
sobre o Marrocos, estabelecendo ali sua capital. Os reis mouros da Andaluzia, para os
quais era insuportável ver Alfonso VI em Toledo e em Gibraltar, pediram socorro ao
chefe daqueles fanáticos, Yúsuf ben Tasufin.
Arrepender-se-iam! Para um sectário da têmpera de Yúsuf, aqueles régulos
muçulmanos que se adornavam com títulos orgulhosos, pactuavam com os cristãos e
bebiam vinho, só serviam para serem derrubados.
Os almorávides cruzaram o Estreito de Gibraltar. Eram tropas de tuaregs [nómades
do Saára] de face velada, bérberes [marroquinos das montanhas] e negros do Sudão; em
suma, era toda a África selvagem e guerreira que irrompia na planície andaluza, excitada
pelos faquis em nome da implacável jihad.
Aqueles africanos pouco se importavam com as conquistas territoriais; só
desejavam o cumprimento do preceito da guerra santa em todo seu rigor, tal como o
impôs Maomé.

O Santo Sepulcro ultrajado: as Cruzadas

Ao mesmo tempo, a ameaça muçulmana cercava a Terra Santa. O Sepulcro de


Cristo caiu em mãos dos infiéis, e os turcos seljúcidas fundaram um império que também
restaurava a ortodoxia islámica.
A Armênia foi invadida e o imperador de Bizâncio sofreu uma derrota decisiva em
Manzikert, caindo prisioneiro dos turcos. O Islã recuperava assim sua superioridade
agressiva dos primeiros tempos.
A resposta de Roma foi imediata: Urbano II pregou a Cruzada.
Era o desafio supremo: o Papado contra o califado. Da defesa passava-se ao ataque,
e a guerra chamava a guerra; a Cristandade e o Islã entrechocavam-se em duas frentes.

Vitórias almorávides

Em outubro de 1086, Alfonso VI e Yúsuf encontram-se face a face, em Sagrajas.


Os sinistros nómades embuçados, os sudaneses cobertos de amuletos, os camelos e o rufar
ensurdecedor dos tambores — instrumentos jamais ouvidos na Espanha, que faziam
tremer a terra e retumbavam nos montes — deram conta das tropas cristãs. Alfonso,
ferido, teve de fugir com alguns sobreviventes.
Naquela tarde, os almorávides ergueram uma pirámide com as cabeças cortadas
dos vencidos, e do alto desse macabro minarete um muezzin chamou os “crentes” à
oração. Depois, muitas carroças carregadas com milhares dessas cabeças partiram para as
cidades da Andaluzia, anunciando aos muçulmanos que podiam respirar livres do temor
de Alfonso. Navios carregados com cabeças rumaram para a África, a fim reparti-las nas
cidades do Magreb, como anúncio da grande vitória.
Desde os tempos de Almanzor, os muçulmanos não viam estes púlpitos de cabeças
cristãs nem estas carroças carregadas de sangrentos troféus. O império almorávide estava
fundado.
Ante a aparição da nova e insuperável organização militar dos guerreiros de Yúsuf,
todos os príncipes cristãos começaram a sofrer contínuas derrotas. Sagrajas, Almodóvar,
Jaén, Lisboa, Consuegra, Malagón, Uclés... Perderam-se as terras de Santarém, Cuenca,
Ocaña, Calatrava...
Muito mudadas estavam as coisas na Península! Antes, a debilidade dos mouros
andaluzes permitira aos reis cristãos o avassalamento daqueles, mas agora os exércitos
africanos, com seu espírito guerreiro, forte e coeso, e com sua nova tática de grandes
massas ordenadas a tambor batente, paralizavam a ação dos cristãos. As hostes de
Alfonso, habituadas a percorrer a Andaluzia em todas as direções como em passeio
militar, não voltaram mais às suas correrias.
A invasão africana vinha provista de uma força irresistível para todos, exceto para
um homem: Rodrigo Díaz de Vivar, o Cid Campeador.

O Cid Campeador

O Cid, desterrado injustamente pelo rei de Castela, fazia-se cada vez mais
necessário no secular campo de batalha, mas Alfonso era um desses homens que não
possuem a grandeza suficiente para ceder o passo aos que melhor sabem dirigir, e preferiu
agir sozinho, obstinando-se em prescindir do Campeador, o qual combatia sozinho no
Levante. Por certo, o rei continuou pelejando com energia contra o invasor, mas os seus
exércitos não obtiveram já outros méritos que os da heróica tenacidade ante a desgraça.
Alfonso renunciou então à ofensiva, e nas suas próprias terras de Coimbra e Toledo sofreu
grandes reveses.
Se Alfonso não tivesse sido avesso à admiração pelo mérito alheio, e se tivesse
nomeado o Cid defensor de Gibraltar, os almorávides nunca teriam vindo à Espanha, e a
Reconquista teria concluído em breve prazo.
A figura do Campeador, em seu senhorio de Valência, permanece então
majestosamente isolada, face ao imenso império almorávide, desafiando o vencedor de
Alfonso e os irresistíveis generais africanos, conquistadores de tantos reinos.
Os mouros espanhóis tinham aberto o Estreito de Gibraltar aos almorávides.
Porém, diante desse contubérnio a que se entregavam as raças moura e africana, o
Cid adota uma atitude oposta e terminante: a guerra com os invasores não poderá acabar
em conivência, mas em eliminação dos africanos.
Suas vitórias bélicas, vitórias de poucos sobre muitíssimos, vitórias sempre
infalíveis, são confirmadas de forma surpreendente pela crônica muçulmana:
“Rodrigo — maldito seja! — viu suas bandeiras favorecidas pela vitória, e com
um pequeno número de guerreiros aniquilou exércitos numerosos”.
Esta dupla vitória sobre a inveja e sobre os almorávides resume toda a vida do
Campeador.
Só ele mostrou perspicácia e inventiva; só ele encontrou imediatamente as novas
modalidades de guerra necessárias para vencer e intimidar os almorávides; só ele
declarou-lhes guerra sem quartel, guerra de repulsa irreconciliável. Foi ele quem fez
compreender que toda aliança com os africanos era imperdoável, e resistiu sozinho, sem
vacilar, contra toda a força do Islã, assumindo a Reconquista na sua totalidade.
A permanência de Rodrigo em terras de Valência era intolerável a Yúsuf, quem se
considerava e era considerado senhor de toda a Andaluzia.
O emir enviou de Marrocos, onde retornara, uma mensagem ao Campeador,
intimando-o a não permanecer em terras valencianas, mas Rodrigo respondeu-lhe com
uma carta cheia de indignação e desprezo, e, ademais, enviou missivas a todos os emires
da Andaluzia, publicando que Yúsuf não se atrevia a voltar à Espanha por medo dele. E as
palavras do Cid não soavam a oca fanfarronada...

A batalha de Valencia

Para castigar a insolência do Campeador, Yúsuf preparou um poderoso exército,


mas a partida adiava-se pois ele duvidava em embarcar-se...
E a retração do poderoso emir pôde ser comprovada quando o exército preparado
em África cruzou afinal o estreito, mas Yúsuf ficou por lá; estava ele muito temeroso de
murchar seus louros de Sagrajas, e alegara razões de saúde para não vir em pessoa. O
novo exército era comandado pelo genro do emir, Abu Béker.
Chegaram a Rodrigo avisos de que a hoste almorávide, imobilizada por longo
tempo em Lorca, aproximava-se dele afinal, e que a demora devia-se a uma doença de
Abu Béker. Pode-se pensar que a proximidade dos 8.000 cavaleiros do Campeador não
era própria a dar ao genro melhor saúde da que obrigara o sogro a permanecer em
Marrocos... Mas, afinal, Abu Béker vinha sobre o Cid.
Rodrigo, que sitiava Valência, rebelada contra sua autoridade, decidiu esperar o
choque. O júbilo dos mouros de Valência transbordava, e as turbas subiam às torres para
ter o prazer de divisar no horizonte a vanguarda do exército salvador.
Ao cair da noite, viu-se já, na escuridão, o resplendor das inúmeras fogueiras que
iluminavam o acampamento almorávide na planície. Os valencianos não cessavam de
elevar orações a Alá, e já tinham decidido que quando a batalha se travasse junto às
muralhas, eles cairíam sobre o campo cristão.
De seu lado, os homens do Campeador passaram a noite em vigília de orações.
Mas a noite foi borrascosa: caiu uma chuva torrencial como nunca antes se vira. Ao
amanhecer, quando o dia clareou no céu ainda tormentoso, já os mouros da cidade
estavam nas torres para avistar as bandeiras almorávides. Olhavam e olhavam... sem
divisar coisa alguma, e não entendiam como tinha podido desaparecer o imenso exército.
Nessa angustiosa espera permaneceram até que chegou um mensageiro com a notícia: os
almorávides não viriam, e já desandavam o caminho feito.
O terror do Cid afugentara-os no meio das tormentosas trevas daquela noite. Assim
narra a crônica árabe:
“A vontade divina decidiu que a formação cerrada em que o Cid mantinha seu
exército fizesse os muçulmanos retroceder”.
Os mouros valencianos caíram no desalento mais abatido, e ouviam como
relâmpagos e trovões as ameaças dos cristãos, que se aproximavam das muralhas para
jogar-lhes em rosto a fuga dos almorávides:
“Falsos, traidores, renegados! Devolvei a cidade ao Cid Rodrigo Díaz, pois não
podereis escapar dela!”
E os de dentro nem tinham ânimo para responder.
Algum alento tiveram ao receber a notícia de que o exército de socorro não se
retirara por covardia, mas por falta de víveres; longe de fugir, preparava-se para voltar
contra o Campeador. Mas logo veio o desmentido: o exército de Abu Béker não se retirara
provisoriamente, mas reembarcara-se de volta para Marrocos.
As portas de Valência foram abertas e os cristãos voltaram a ocupar todas as torres
da muralha.
A notícia da recuperação da cidade pelo Cid encheu todos os muçulmanos de dor e
humilhação. Várias cartas foram enviadas a Yúsuf, queixando-se mais uma vez de
Rodrigo e de suas contínuas cavalgadas, que mantinham todo o Levante em insegurança e
alarme. Yúsuf caiu em iracunda tristeza: precisava recuperar a grande cidade.
Rapidamente reuniu um novo exército que enviou à Península, ao comando de seu
sobrinho Mohámad.
Os africanos desembarcaram mais uma vez na Espanha, e, unidos às tropas
andaluzas, foram acampar a uma légua de Valência. Aterrorizados os cristãos ante a
enorme massa de inimigos que aparecia à sua vista como um oceano que ameaçava
engolir a cidade, queriam abandonar Valência, mas só o Campeador não mostrou a menor
inquietação e impôs a serenidade entre eles, prometendo-lhes vitória.
O descomunal exército de Mohámad rodeou os muros e iniciou o assalto
furiosamente, com uivos ensurdecedores. O Campeador, com a fortaleza de seu coração,
confortava os seus, inspirando-lhes confiança com as incessantes preces que promovia.
Passaram-se assim dez dias de contínuas agressões.
Mohámad, cheio de desprezo pelos sitiados, acreditava seguro o êxito do cerco e
não percebia que em seu exército havia medo ao invencível Campeador.
O Cid decidiu não esperar os reforços que havia pedido a Castela e Aragão. Saiu
uma noite com seus cavaleiros, encoberto pela espessura dos jardins, e enviou parte deles,
em cilada, a um vale próximo ao acampamento de Mohámad. Com os outros ele atacou ao
amanhecer, e tão alheios estavam os sitiadores à audácia dos sitiados, que o alarme foi de
grande tumulto e desordem.
Os almorávides montaram seus cavalos e saíram para rechaçar o ataque, e como o
Cid, fingindo ceder, se retirasse em direção à cidade, eles, perseguindo-o, deixaram o
acampamento desprovido das melhores tropas. Então os cristãos da cilada caíram sobre as
tendas com tanto empuxe, que o sobrinho de Yúsuf foi o primeiro a fugir. Uma
prolongada gritaria percorreu o acampamento, e os mouros corriam em todas as direções.
“Aquilo foi loucura de espanto”, diz a crônica árabe.
Uma carta da época afirma que nessa vitória de El Cuarte, alcançada com incrível
rapidez e escassas baixas do lado cristão, o Cid prendeu todo o exército almorávide.
Aquela mão invencível tinha detido a inundação almorávide, mas a energia
avassaladora do Campeador iria apagar-se antes de tempo, sem cumprir os desejos em que
ardia.

A herança do Cid
No mesmo ano em que morria Urbano II, e Godofredo de Bouillon fundava o reino
de Jerusalém, morria também o Campeador. O luto da Cristandade pela sua morte
produziu-se em meio ao triunfo da primeira Cruzada.
Apesar da morte prematura do herói, as conseqüências de sua conquista foram da
maior importância. Recordemos que o Islã retomava então um vigor extraordinário: os
dois extremos do Mediterrâneo viam-se novamente assaltados, como nos dias da primeira
expansão maometana, e essa crítica situação foi salva pelo Cid no Ocidente e pela
Cruzada no Oriente. Era aquele o momento mais irresistível da invasão, e, sem o Cid
Campeador, dias muito piores que o de Sagrajas teriam amanhecido para a Espanha e para
a Europa.
Em suma, Rodrigo Díaz de Vivar salvou a Cristandade.
Ele encontrou com agilidade e rapidez a nova tática contra os africanos, desfez e
cativou os exércitos dos capitães do Saara nas batalhas de El Cuarte e Bairén, imobilizou
Yúsuf na África, de terror, fez retroceder Abu Béker antes do entrechoque e não sofreu
jamais derrota alguma.
O historiador árabe Ben Bassam dá-nos o melhor elogio da energia sobre-humana
do Campeador, misturando o ódio e a admiração numa vibração apaixonada:
“O poderio desse tirano foi se tornando cada vez mais oprimente, enchendo de
pavor os de perto e os de longe. Mas esse homem, açoite de sua época, foi, por sua
habitual e clarividente energia, pela varonil firmeza de seu caráter e por sua heróica
bravura, um milagre entre os grandes milagres do Senhor”.
Imitando a tática guerreira do Campeador, o rei Alfonso I de Aragão, el Batallador,
apoderou-se de Saragossa e foi numa cavalgada inebriante até o próprio coração da
Andaluzia: Granada, Córdoba e Málaga. Após este feito de armas, que provocou o
entusiasmo de toda a Cristandade, o Papa concedeu aos guerreiros que lutavam contra o
mouro, em terra espanhola, os mesmos privilégios e indulgências outorgados aos cruzados
da Terra Santa.

IIIª invasão muçulmana

No entanto, um novo sobressalto iria sacudir os sentimentos religiosos das massas


muçulmanas, que se deixavam facilmente amolecer no clima andaluz.

* * * * *
Reconquista e as Cruzadas, entrechoque de duas místicas opostas (parte II)

Fr. Maur Cocheril, O.C.R., Essai sur l'origine des Ordres Militaires dans la Péninsule
Ibérique, in Collectanea Ord. Cisterciensium Ref., t. XX, 1958 e t. XXI, 1959.
Charles Grolleau e Guy Chastel, La Trappe, Bernard Grasset, Paris, 1954.

IIIª invasão muçulmana na península ibérica

Um novo sobressalto iria sacudir os sentimentos religiosos das massas


muçulmanas, que se deixavam facilmente amolecer no clima andaluz.
Estamos nos umbrais do século XII. Numa aldeia do Alto Atlas, no norte africano,
uma seita de fundamentalistas islámicos congrega-se em torno de um faqui, Mohámed Ibn
Tumart, o qual se faz proclamar mahdi, “o enviado de Deus” por cuja vinda esperavam os
bérberes. Seus partidários tomaram o nome de Al-muwah-hidura, “os unitários”, os
almóades. Sua doutrina, de extrema severidade, opunha-os aos cristãos a aos próprios
almorávides.
Ibn Tumart pregou a “guerra santa” contra os “hereges” almorávides e ocupou todo
o Marrocos. Sob a direção de seu chefe, Abdelmón, os almóades cruzaram o Estreito de
Gibraltar e subjugaram a Andaluzia em menos de três anos. Repetia-se a história da
invasão almorávide, mas o fanatismo dos recém-chegados tornava-os ainda mais
perigosos que os guerreiros embuçados de Yúsuf. Eles ameaçaram Santarém, atacaram
Lisboa, conquistaram Madrid e sitiaram Toledo.

Surgem as Ordens de Cavalaria

Entretanto, nesses tempos, a Cavalaria, instituição militar idealizada pela Igreja,


sentiu a necessidade de aproximar-se da condição monástica. O monge já era soldado, e o
soldado desejou ser monge.
Devemos por acaso nos surpreender? Entre o estado monástico e o estado militar
há uma identidade de doutrina e de princípios. Serviço, obediência e sacrifício são as
mesmas palavras nos dois campos, mas o monge elevou a uma condição mística o papel
do soldado.
Eis que a influência benfazeja de Cister vai transbordar sobre as milícias
guerreiras. Um monge chamado S. Bernardo prega a Cruzada, os soldados pedem regras
monásticas, e a Ordem de Cister começa a inspirar os corações dos cavaleiros.
O espírito agressivo de Roma e o entusiasmo religioso dos conquistadores de
Jerusalém criam um clima favorável à instituição e ao desenvolvimento de uma nova
forma de vida religiosa, que toma a guerra como atividade própria. Aparecem as primeiras
Ordens de Cavalaria.
O conceito de uma Ordem religiosa e combatente, de homens votados por
definição à prática de todas as virtudes — a começar pela caridade, virtude essencial sem
a qual ninguém pode arrogar-se o belo título de religioso ou de monge —, mas ao mesmo
tempo lançando-se à chacina, espadagando e talhando, aplicando implacavelmente as leis
da guerra e massacrando os prisioneiros, é um paradoxo ao qual, geralmente, não se dá a
atenção devida.
Não nos façamos ilusões! Seria erro crasso idealizar o paladino cristão à maneira
romântica do século XIX. As guerras da Idade Média não eram jogos de crianças, e a
interminável Reconquista não foi mais do que uma longa seqüência de espantosas
matanças.
A crônica de Silos narra que o rei Fernando I de Castela mandou matar a metade
dos muçulmanos apresados em Portugal, e deu o resto deles como escravos, acorrentados,
às igrejas e mosteiros.
Conhece-se também o aterrador suplício infligido pelo Cid Campeador ao alcaide
de Valência, Yafar Ibn Yehaf, cozinhado vivo num fosso cheio de carvões acesos, e a
sorte terrível das “bocas inúteis” que fugiam de Valência sitiada, atiradas ao fogo pelos
soldados cristãos.
Evidentemente, não se podia esperar mais clemência da parte dos mouros, muito
pelo contrário.
O século XII permanecerá na História da Igreja como o século das Ordens
Religiosas e Militares. Os monges-guerreiros fazem frente ao Islã, mais ameaçador do que
nunca.
Duas místicas se entrechocam num duelo sem piedade, não somente em torno do
Sepulcro de Cristo, mas também na Península Ibérica, onde os pequenos reinos cristãos
enfrentam um adversário fanatizado pelas incessantes pregações dos faquis de Córdoba e
os apelos à “guerra santa”.
A guarda dos pontos nevrálgicos de ambos os lados é confiada a soldados
animados por um ideal religioso.
Ao longo da fronteira movediça que se estende de Lisboa a Saragossa, dois
mosteiros-fortalezas se erguem, face a face: o castelo dos monges-guerreiros e a rábida
dos muçulmanos. Uns são inflamados pelo espírito de Cister e outros pelo espírito do
mahdi; ao fanatismo de Ibn Tumart responde o entusiasmo de São Bernardo; ao
fundamentalismo de uns responde a intransigência dos outros; às algaras maometanas
respondem as cavalgadas cristãs.
Nasce a Ordem de Calatrava

A Ordem de Calatrava nasceu de uma palavra insensata segundo os cálculos


humanos, mas que se revelou eficacíssima como uma espada.
No dia 21 de agosto de 1157, Espanha, com imensa dor, via extinguir-se uma das
luminárias que mais brilhara no século XII: Alfonso VII de Castela, denominado el
Emperador.
Quando os mouros almóades souberam da morte do monarca e da divisão do reino
entre seus dois filhos, creram chegado o momento de vingar tanto agrávio que lhes
causara a espada sempre vitoriosa do falecido Emperador. Apressaram-se em fazer um
levante de tropas em todo o norte africano, para formar um poderoso exército e lançá-lo
sobre Castela. O primeiro ímpeto do ataque iria contra a velha fortaleza, outrora
maometana, de Kalaat Rawaah — “o mosteiro-fortaleza”, Calatrava, chave de acesso aos
reinos cristãos.
A praça havia sido conquistada em 1147 por Alfonso VII, o qual, consciente de sua
importância estratégica, não confiou a qualquer um sua defesa, mas pôs os olhos numa
Ordem Militar famosa em toda a Europa por suas proezas bélicas no Oriente: os
Cavaleiros Templários.
Estes perseveraram durante dez anos, rechaçando os encarniçados ataques dos
mouros, que inúmeras vezes tentaram em vão arrebatá-la.
Entretanto, os preparativos bélicos dos almóades após a morte do Emperador
tinham posto em alarme toda a Espanha, especialmente Castela. A vila de Calatrava
parecia tão ameaçada que os Templários devolveram-na às mãos do rei D. Sancho, filho
de D. Alfonso, para que não se perdesse nas suas próprias, confessando não ter forças
para defendê-la.
Desconcertado estava o jovem rei à vista do fracasso daqueles cavaleiros em quem
tinha posto tantas esperanças. Urgentemente mandou apregoar por todo o reino que
cederia a fortaleza a qualquer senhor que quisesse engarregar-se de sua defesa.
Mas os rumores que circulavam sobre o imenso exército mouro, e, de outro lado, a
retirada dos templários, veteranos de mil batalhas, contribuiram para que todos os nobres
recusassem um empreendimento tão honroso quanto arriscado.
Quando mais angustiado estava o rei, chegaram a Toledo dois monges
cistercienses, enviados por Deus para pôr fim ao inquietante pesadelo, tomando em seus
ombros o gigantesco empreendimento.
Os dois paladinos da proeza eram São Raimundo, abade de Fitero, e Frei Diego de
Velázquez, religioso do mesmo mosteiro navarro. Dois “monges brancos” que eram
conduzidos pela mão de Deus para uma inaudita aventura: fundar uma nova Ordem de
Cavalaria!

———————
São Raimundo de Calatrava, monge, fundador e guerreiro

F.M. Félix de Rojas, Espiritualidad de Calatrava, in Cistercium, Revista Monástica,


Set./Dez. 1958. nº 59.
Francis Gutton, La influencia calatravense en el ámbito nacional español, ibidem.
Fr. Mª Damián Yáñez, O.C.S.O., Orígenes de la Orden de Calatrava, ibidem.
Fr. María Julián Domínguez, La Orden de Calatrava, Cisterciense, ibidem.
Fr. M. Hipólito González, O.C.S.O., Influjo de la Orden Militar de Calatrava en la
reconquista española, ibidem.

Era vontade do Senhor que nascesse aquela Ordem Militar. O homem foi mero
instrumento, dócil e apto para realizar os planos de Deus.
Fé, esperança, amor à glória de Deus e à Igreja, foram os ideais que seus heróicos
fundadores transmitiram àqueles homens intrépidos que seriam chamados os Cavaleiros
de Calatrava.
O que diferencia a fundação da Ordem de Calatrava das outras Ordens Militares é o
seu nascimento espontâneo. As armas não vieram em socorro de peregrinos ou de
hospitais, como no caso das Ordens dos Templários e dos Hospitalários, na Terra Santa. A
Ordem de Calatrava nasceu de uma decisão rápida, às vésperas de uma ameaça.

A vila de Calatrava parecia tão ameaçada pelos almoádes, que os Templários


devolveram-na às mãos do rei, para que não se perdesse nas suas próprias, confessando
não ter forças para defendê-la.
Desconcertado à vista do fracasso daqueles cavaleiros em quem tinha posto tantas
esperanças, o rei urgentemente mandou apregoar por todo o reino que cederia a fortaleza a
qualquer senhor que quisesse encarregar-se de sua defesa.
Mas os rumores que circulavam sobre o imenso exército mouro, e, de outro lado, a
retirada dos templários, veteranos de mil batalhas, contribuíram para que todos os nobres
recusassem um empreendimento tão honroso quanto arriscado.

O primeiro em sentir ferver o sangue em seu peito foi Frei Diego, homem de nobre
sangue que antes de ser monge havia sido guerreiro. Este humilde filho de Cister sentiu
uma viva dor ao ver seu rei angustiado e sem ajuda. Decidiu apresentar-se a ele e
oferecer-se para tomar sobre si o empreendimento, mas antes devia obter o beneplácito de
seu superior, o abade São Raimundo.
Segundo narram os historiadores, nesta idéia de defender Calatrava mediou a
intervenção divina. Em certa noite, estando o abade e o monge dormindo em celas
vizinhas, no mais avançado do sono levantou-se Frei Diego e correu onde estava seu
abade, acordando-o com esta súplica:
— “Santo abade, santo abade, vamos defender Calatrava!”
Tendo-o por vítima do delírio, ele o despediu com palavras suaves. Frei Diego
voltou a seu leito, mas o sono não vinha fechar suas pálpebras, e novamente dirigiu-se
com reiteradas instâncias a seu superior, propondo-lhe a mesma idéia. Este não se atreveu
então a contradizê-lo, mas deu ouvidos à vontade do Céu manifestada através do monge:
— “Defender Calatrava? Mas de que modo?”
— “Deus proverá, pois sua glória está em jogo”.
Então o abade não hesitou mais e, num sublime ato de fé, respondeu:
— “Defenderemos Calatrava!”
Para melhor compreender a resolução daqueles dois religiosos cistercienses, não
podemos perder de vista a época em que eles viveram.
Naqueles tempos forjavam-se dentro dos claustros homens de espírito bélico,
comparáveis aos melhores capitães de sua época.
Só na aparência o exercício das armas parece estar em pugna com a contemplação.
Essas duas vocações não estão separadas uma da outra, mas fortificam-se e
intensificam-se mutuamente.
O monge beneditino é um soldado de Cristo que combate nos campos do claustro
contra os inimigos invisíveis. Do mesmo modo, o cavaleiro é um soldado de Cristo que
combate não somente os inimigos invisíveis para guardar-se de toda mácula — já que é
um consagrado — mas também os inimigos visíveis de Jesus e do nome cristão.
Não era novidade na Ordem Cisterciense o acometer um empreendimento
guerreiro. Outro grande monge, São Bernardo de Claraval, já abrira o caminho pregando a
Segunda Cruzada.
Os dois religiosos apresentaram-se ante o rei D. Sancho, oferecendo-se para tomar
em seus ombros a defesa de Calatrava.
A princípio o monarca não lhes deu crédito, julgando a missão superior à
capacidade de pobres monges, mais acostumados a cantar no coro do que ao manejo das
armas e à organização dos exércitos.
No entanto, finalmente consentiu em outorgar-lhes quanto pediam, e fez-lhes
entrega da praça por meio de escritura pública:
“Já que a clemência da dignidade real deve encaminhar-se principalmente a
agradar incessantemente a Deus todo-poderoso, em cuja mão estão os corações dos reis,
e a pôr diligência para servir com piedosa intenção o mesmo Deus, sem o Qual não se
pode alcançar o reino da Terra e menos ainda o sempiterno; por isso eu, o rei D. Sancho,
movido por divina inspiração, faço carta de doação e texto de escritura para sempre
válido, a Deus e à Bem-aventurada Virgem Maria, à santa congregação de Cister e a vós,
D. Raimundo, abade de Santa Maria de Fitero, e a todos vossos irmãos presentes e
vindouros, da vila que se chama Calatrava, para que a tenhais e possuais desde agora e
para sempre, e a defendais dos pagãos inimigos da Cruz de Cristo, com seu favor e o
nosso”.
Como o perigo urgia, imediatamente os dois monges puseram em prática suas
medidas de rápida ação. A primeira foi dar parte de seus propósitos a D. Juan, Arcebispo
de Toledo, o qual, ouvindo o santo propósito, deu graças a Deus e prometeu
imediatamente ajudá-los tanto quanto estivesse em suas mãos, fazendo publicar por toda
parte que todos aqueles que acorressem em defesa de Calatrava obteriam a remissão de
todos seus pecados.
Esta medida e a pregação que começou a fazer-se em todo o reino inflamaram os
ânimos das multidões, sendo numerosíssimos os cruzados que em pouco tempo se
alistaram e se ofereceram para combater às ordens dos dois filhos de Cister.
Logo depois, o santo abade Raimundo, feito Capitán General por vontade do rei,
voltou ao mosteiro de Fitero, do qual retirou todos os monges robustos e aptos para
empunhar as armas. Com eles e com os numerosos homens que acorriam formou ele um
exército de 20.000 soldados, multidão entusiasmada e disposta a todos os sacrifícios, que
se dirigiu sem demoras a Calatrava, para fazer frente à mourama na posição-chave de
Castela.
Tendo chegado todo o contingente de Cruzados, começou ele sem perda de tempo a
organizar a defesa. Fortificou imediatamente a vila com muralhas, baluartes, ânimo e
diligência, e, empunhando o bastão de general, iniciou a defesa de tão importante praça.
Com a notícia destes preparativos, desistiram os mouros do ataque, mas Frei Diego
de Velázquez, conhecendo seu temor, não só afastou-os daquela região, mas venceu-os
muitas vezes, fazendo diversas cavalgadas por suas terras, chegando até Úbeda e Baeza,
das quais trouxe grandes despojos.
De tal modo defendeu São Raimundo a chave de Castela, exercendo o ofício de
Capitán General de la frontera, que se desvaneceu inteiramente a negra nuvem que
pairava sobre a Espanha, e o imenso poder que os maometanos haviam ajuntado na África
não se atreveu a tentar conquistar aquilo que todos proclamavam inexpugnável. Apenas
fizeram algumas correrias pela fronteira, mas foram rechaçados deixando muito sangue
no campo, levando consigo uma lição para o futuro e perdendo definitivamente a
esperança de reconquistar a fortaleza de Kalaat Rawaah.
Estava plenamente atingido o objetivo que levara os dois monges a tomar em seus
ombros aquele arriscado empreendimento: defender a mais avançada posição do
catolicismo hispânico. Mas isto não era suficiente.
Deus tinha outros desígnios, e não só havia escolhido São Raimundo para ser
capitão daquelas hostes, mas também fundador de uma instituição não menos honrosa
para a Espanha do que para a Ordem Cisterciense.
Ao ver desaparecer o perigo da invasão, muitos cruzados retornaram a seus lares,
mas outros, pelo contrário, manifestaram o desejo de continuar aquela vida.
Então, São Raimundo, com aquelas luzes sobrenaturais e aqueles dotes de
organização que marcam sua existência, procurou o meio de formar uma nova milícia,
irmanando a vida do monge com a do soldado, já que ele também permaneceria na
brecha.
E, em ordem a isso, movido por Deus e tendo consigo muitos mancebos nobres,
chamados por ele a maior perfeição, fundou uma Ordem de Cavalaria e deu-lhe
constituições, reunindo com maravilhoso acerto a observância dos monges de Cister e os
exercícios da guerra, para homens aos quais chamasse igualmente na quietude e no alarme
o sino ao coro e o clarim ao combate, alternando os salmos e louvores do Senhor com os
violentos entrechoques das lanças e das espadas nas batalhas da Fé.
Desta sorte viu-se em poucos dias que Deus havia escolhido o insigne castelo de
Calatrava para ser santuário de muitas almas que depois se mudaram para as fortalezas do
Céu. As pedras vivas que nele se consagravam a Deus despertavam a devoção universal
do povo, com a admiração e louvor de todos.
Nada é de estranhar que muitos nobres se alistassem na nova milícia, e
submetessem sua cerviz ao império daquele “monge branco” que marchava diante deles,
conduzindo-os à imortalidade do Céu.
A estes primeiros anos de fervor corresponde sem dúvida o episódio acontecido a
um rei castelhano. Encontrava-se ele hospedado em Calatrava, e, quando menos se
esperava, ouviu-se a trombeta de alarme, anunciando a presença do inimigo. Todos
correram com a maior presteza para rechaçar o ataque. Pouco mais tarde, ao voltar a
calma, os mesmos monges guerreiros compareceram ao Ofício de Completas com as
mãos cruzadas sobre o peito e os olhos baixos, modulando com recolhida unção os
divinos louvores.
Admirado ao ver o contraste, o rei não pôde conter-se:
— “Parece-me, Padre, que o som das trombetas transforma vossos súditos em
lobos, e a voz do sino em cordeiros”.
— “Tendes razão — respondeu o abade —, pois aquelas os chamam para resistir
aos inimigos de Cristo e vossos, e este os chama para glorificar a Deus e rezar por vossa
Majestade”.
São Raimundo foi um contemplativo, mas a glória de Deus e o bem da religião,
juntamente com a inspiração que do Senhor recebera, obrigaram-no a abandonar sua
amada solidão e converter-se no organizador e fundador de uma aguerrida Ordem
militante. O militar, dentro de seu estado, deveria continuar sendo religioso, e religioso
contemplativo.
Este foi o ideal que São Bernardo propunha aos templários, e que São Raimundo
também realizou nos Cavaleiros de Calatrava. Eles viviam esta dupla vocação,
aparentemente contraditória, de monges e soldados. O monge está para rezar e o soldado
para combater, mas os Cavaleiros de Calatrava eram monges que rezavam e cantavam o
Ofício Divino, e, na hora do trabalho manual, em vez do arado ou a enxada, empunhavam
a espada.
Aqueles ínclitos cavaleiros viviam plenamente sua vocação na peleja e nos
claustros. Ao voltar do combate, com profunda submissão e humildade de meninos
recebiam aqueles homens de ferro as terríveis admoestações de seus superiores, e com a
cabeça inclinada choravam suas culpas e expiavam com as águas da penitência as faltas
da humana fragilidade. Quão agradável devia ser para os Anjos o pranto desses homens,
que pouco tempo antes, com a espada desembainhada, eram o terror da mourama!
D. Rodrigo Jiménez de Rada, arcebispo de Toledo, que conviveu seis meses com
eles, deixou escrito:
“Os que louvavam a Deus com cânticos cingiram-se da espada, e os que gemiam
na oração eram ferozes no combate. Seu alimento é em extremo parco e pobre, a áspera
lã serve-lhes de hábito e vestidura, a disciplina contínua os exercita e a guarda do
silêncio os acompanha”.
“Grande era o fervor religioso que animava os fundadores daquela santa milícia;
as altas muralhas de Calatrava admiraram em seus novos habitantes a contemplação dos
solitários do deserto unida à prontidão do soldado que aguarda o primeiro sinal para o
ataque”.
Aqueles intrépidos guerreiros lançavam-se, ao menor sinal de alarme, fora dos
góticos claustros, onde rezavam com religioso silêncio, para correr onde os chamasse o
brado de guerra. Num piscar de olhos, suas brancas cogulas desaparecem sob a couraça de
ferro; cobrem suas cabeças com um elmo, em cujo topo, em lugar de brilhantes penachos,
figura uma modesta cruz; embraçando o escudo e empunhando a lança, ardendo em seus
peitos a Fé e o entusiasmo religioso, voam ao combate ao primeiro toque da trombeta,
com aquele valor tranqüilo de uma consciência pura e com o heroísmo que só a
verdadeira Religião sabe inspirar.
Pouco tempo depois, vê-se uma maravilhosa mudança na cena. Quando o clarim dá
a ordem de alto, todos ao mesmo tempo embainham a espada, ainda fumegante de sangue
sarraceno, e com a barba poeirenta e revolta, enegrecidos pelo sol e pelo fumo, cobertos
de suor seus semblantes, tornam a entrar em seus quartéis para prostrar-se novamente ao
pé dos altares, tributar ação de graças ao Deus das batalhas e pendurar nas abóbadas do
templo o troféu da vitória.
Calatrava, como movimento espiritual e gesta histórica, pode ser qualificada com
grandes e pomposos títulos que poderiam refletir as diversas facetas que, ao longo dos
séculos, foram entalhando este fato histórico até convertê-lo numa das pedras preciosas
que embelezam e enriquecem a coroa multissecular de uma nação fecunda em soluções e
em façanhas insuspeitadas. Nós deixamos de lado, não sem grande pena, todos esses
adjetivos para fixar nossa atenção sobre um que costuma passar despercebido, apesar de
condensar em seu rico significado a fonte primordial de toda a grandeza dessa gesta:
Calatrava foi sobre tudo cisterciense.
É verdade que, ao querer conjugar Calatrava e Cister, chega-se a um momento em
que salta, rebelde e insubordinada, uma antítese que só o povo espanhol conseguiu
harmonizar. Os ideais de ambos parecem contradizer-se.
Cister é quietude contemplativa; Calatrava é ação bélica. Cister foge do mundo;
Calatrava o enfrenta. Cister reza ao Deus das batalhas; Calatrava combate nas batalhas de
Deus. Cister é silêncio; Calatrava é estrondo. Cister procura a paz; Calatrava procura a
guerra.
Evidentemente há um ponto de convergência: ambos são monges, e se Calatrava
empreendia os combates de Cristo a golpes de lança, Cister já as havia empreendido com
São Bernardo, a fio de lógica e apostolado. A batalha foi sempre um aspecto dos “monges
brancos”.
Não era difícil harmonizar as idéias de monge e de batalhador para aqueles que
recebiam como primeira lição aquela página áurea de São Bento, na qual ele esboça o
ideal de um monge:
“A ti pois, dirige-se agora minha palavra, sejas quem fores, a ti que, renunciando
às tuas próprias vontades, empunhas as fortíssimas armas da obediência para combater
às ordens do verdadeiro Rei, Cristo Senhor”.
E, glosando estas palavras, escreveu um dos primeiros “monges brancos”, com
pena de aço, estas outras que soavam a brado de guerra e que ainda hoje são um convite
para transformar em realidade belicosa o ideal beneditino de paz, trabalho, harmonia e
oração:
“Levanta-te, soldado de Cristo! Levanta-te e parte para o combate, pois Cristo
precisa de muitos guerreiros”.
Calatrava recebeu sua existência vivaz e agressiva de um mosteiro e de monges
cistercienses, mas ela abriu uma nova e desconhecida perspectiva à Ordem Cisterciense,
que perdurou com brilho e firmeza durante séculos, em terra espanhola.
Em 1163 morreu, cheio de virtudes e merecimentos, o santo fundador Raimundo de
Fitero, “após ganhar muitas vitórias contra os sarracenos, e muitas mais ainda contra os
demônios”.

———————
Urbano II foi Papa de 1088 a 1099. Defensor da liberdade da Igreja, continuador da
obra de São Gregório VII, promoveu a Iª Cruzada.
O Concílio de Clermont tinha como finalidade principal, discutir a Cruzada. O
povo esperava o dia da anunciada expedição. Finalmente o Papa satisfez a sua
impaciência. Sentou-se no trono, especialmente preparado para a ocasião, tendo ao seu
lado o eremita Pedro. A seus pés uma enorme multidão: cardeais, abades, sacerdotes,
monges, cavaleiros e o povo. Após as palavras de Pedro, descrevendo o que vira em
Jerusalém, Urbano II dirigiu-se a todos:
“Ide irmãos, ide com esperança ao assalto dos inimigos de Deus que já há muito
dominam a Síria, a Armênia e os países da Ásia Menor.
“Muitos danos já fizeram: usurparam o Sepulcro de Cristo, os maravilhosos
monumentos de nossa Fé, vedaram aos peregrinos o ingresso numa cidade à qual
somente os cristãos sabem dar o real valor. Não é o bastante para escurecer a serenidade
de nossa face?!
“Ide e mostrai o vosso valor! Ide, soldados, e vossa fama se estenderá por todo o
mundo. Não temais perder o Reino de Deus por uma grande tribulação. Se cairdes
prisioneiros, enfrentai os piores tormentos por vossa Fé e salvareis com isso vossas almas
ao perder o corpo.
“Não hesiteis, irmãos caríssimos, em sacrificar a vida pelo bem dos vossos irmãos.
Não vos detenha o amor à vossa família, à vossa pátria, ou às riquezas. Pois o homem
deve seu amor principalmente a Deus e a terra inteira será vossa.
“E qual maior felicidade para um Cristão, do que ver os lugares onde o Senhor
falou a língua dos homens?”
Às palavras do Pontífice os fiéis responderam unanimemente: “Deus o quer! Deus o
quer!” E Urbano II acrescentou:
“Esse vosso brado não seria unânime se não fosse inspirado pelo Espírito Santo!
Sejam então essas palavras vosso grito de guerra, anunciando o poder do Senhor Deus dos
exércitos!
“Quem empreender esta viagem, deverá portar a figura da Cruz! A Cruz esteja em
vossa espada e em vosso peito, sobre as armas e os estandartes. Seja ela para vós o louro
das vitórias ou a palma do martírio, e a insígnia para reunir os filhos dispersos da casa de
Israel! Ela vos recordará continuamente que Jesus Cristo morreu por vós, e que por Ele
deveis morrer!”
A partida da Cruzada foi marcada para 15 de agosto, festa da Assunção de Maria.

* * *
(Salmos CXXVIII, 21 e 22; CXL, 1; LIII, 7.)
“Porventura não odiava eu, Senhor, aos que Vos odiavam?
E não me consumia por causa dos vossos inimigos?
Com ódio perfeito eu os odiei, e eles se tornaram meus inimigos.
Senhor, a Vós clamei, ouvi-me.
Atendei à minha voz quando eu Vos clame.
Fazei voltar os males sobre meus inimigos
E na vossa verdade destruí-os!”

———————
4. A morte de Vivien

Robert Bossuat, Extraits des chansons de geste, Larousse, Paris, 1935.


Anônimo, La légende de Guillaume d'Orange, renouvellée par Paul Tuffrau, L'Édition
d'Art, Paris, 1920.

O voto de Vivien

Foi na festa de Páscoa que o conde Guillaume d'Orange armou cavaleiro seu
sobrinho, o jovem Vivien, dando-lhe a bofetada e cingindo-lhe a espada.
Os assistentes são tão numerosos que enchem a grande praça do palácio, e no meio
de todos está o conde.
Primeiramente ele arma cavaleiros cem escudeiros, por amor de Vivien.
Vivien aparece então, e avança em direção a seu tio, caminhando sobre o rico tapete.
Ele é de grande beleza, ombros largos e pescoço ereto.
Guillaume prende-lhe as esporas de ouro, reveste-o de uma loriga mais fulgurante
do que vinte círios, cobre-o de um elmo constelado de pedras preciosas e cinge-lhe a
espada de aço. Depois ergue o braço dá-lhe uma forte bofetada, dizendo:
— “Ide, nobre sobrinho, e que Deus vos dê fortaleza, audácia e coragem, lealdade a
vosso senhor e vitória sobre os descridos!”
Todos admiram o novo cavaleiro e exclamam:
— “Olhai-o! Ele tem senhorio sobre os outros como o falcão sobre os pássaros. Se
viver, que intrépido combatente ele será!”
A alegria é bela, mas será breve.
— “Meu tio — diz Vivien — vós me destes a espada; não temais que eu a desonre,
pois agora prometerei a Deus que jamais recuarei!”
— “Sobrinho — diz Guillaume — não vivereis, se quiserdes fazer tal juramento.
Não existe homem tão valoroso que não fuja quando demasiados inimigos o cercam, pois
estaria perdido. Nobre sobrinho, sois jovem; deixai esta loucura, e quando entrardes em
batalha, não tenhais receio de fugir quando for preciso; voltai atrás! É o que eu faço quando
me vejo assaltado por grande número de inimigos: não espero a ferida mortal! Crede: a
fuga não é censurável quando só ela pode salvar-nos a vida.”
— “Meu tio — responde Vivien — o novo cavaleiro só deve pensar na honra. Não
voltarei atrás em minhas palavras.”
Então, monta em seu cavalo de um salto, passa seu braço esquerdo nas correias do
forte escudo, empunha a lança com sua destra, firma-se nos estribos e brada com voz
potente:
— “Escutai-me, vós todos! Eu juro a meu Senhor Deus, o Rei do Céu, diante de vós,
diante de meus pares e diante do conde Guillaume, que jamais recuarei diante de
sarracenos, turcos ou persas, seja qual for o seu número e sejam quais forem as minhas
feridas!”
Todos o escutam, a alegria cessa, os nobres estão consternados. Guillaume diz:
— “Sobrinho, aqueles que vos amam viverão doravante na tristeza”.
Mas Vivien não se perturba, e responde cheio de ufania:
— “Quando eu estiver morto, será a hora de chorar por mim, mas hoje estejamos
alegres”.
Mas todos temem que, por causa de suas palavras, venha uma grande dor sobre a
França e muito sangue seja derramado.

O desafio de Vivien

Vivien só pensa em alargar o Reino de Deus sobre a Terra. Ele reúne sob seu
comando sete filhos de condes e cinco mil escudeiros que vêm oferecer-se a ele. Eis que
faz anunciar em seu pequeno exército:
— “Todo aquele que prender um sarraceno, não deverá guardá-lo para pedir resgate,
mas deverá matá-lo imediatamente”.
E em seguida penetra na terra maldita.
Durante três anos ele persegue os sarracenos por todas as partes, e conquista a região
até l'Archant-sur-Mer. Mas ali resiste ainda um castelo onde se refugiam os pagãos. São
quinhentos: homens, mulheres e crianças.
Vivien os prende e os faz degolar todos, não poupando mais do que quatro, aos
quais dá ordem de colocar os cadáveres numa nau e levá-los a Desramé, rei dos sarracenos.
A Provence está conquistada, e Vivien se instala na praia de Aliscans.
Eis que o navio com os corpos chega até Desramé, e os quatro pagãos prostram-se a
seus pés, dizendo:
— “Senhor nosso, socorrei-nos! Trazemo-vos uma nau cheia de vossa gente
massacrada. Quem a envia é o sobrinho de Guillaume, como sinal de desprezo e de irrisão.
Ele chama-se Vivien, e ainda não tem dezoito anos! Jamais cristão algum atacou-nos com
tanta violência; incendiou vossas cidades, arrasou vossos castelos e matou vossos parentes.
Toda a Provence foi assolada até o mar, e eis que ele acampa na praia de Aliscans; mas se
ele soubesse que vós estais aqui, viria diretamente contra vós, pois é terrivelmente
intrépido!”
Enorme é o lamento dos pagãos; o velho emir chora de cólera em seu trono, e puxa
sua barba com as duas mãos, gritando:
— “Maomé, senhor meu, ajudai-me a vingar este ultraje! Partamos sem demora!”
E, subindo em suas naus, desdobram as velas e partem. São tantos que só Deus
poderia contá-los, e seu clamor ressoa sobre as águas como um trovão sobre o mar.
Entretanto, Vivien permanece em Aliscans, com apenas cinco mil homens.

A batalha de Aliscans

O conde Vivien ergueu suas tendas na praia de Aliscans, aos pés do velho castelo.
Na segunda-feira, à hora de tércia, eis que ele ouve rumores longínquos que ressoam
sobre as águas e se aproximam cada vez mais.
Chama ele os sete filhos dos condes, e em torno deles os francos se reúnem. Eis que
subitamente aparece a frota pagã, para além dos rochedos; ela se estende e cobre o mar.
Vendo isto, os nossos perdem ânimo e exclamam:
— “Que a Santa Virgem nos ajude! Eis o rei Desramé. Morreremos todos se não
fugirmos depressa.”
Mas Vivien diz a seus homens:
— “Não tenhais medo dos incréus que vedes em tão grande multidão. Confiemos em
Deus, que é mais poderoso do que eles. Não vos perturbeis! Armai-vos e mostrai vossa
coragem!”
Os francos o escutam, mas os mais intrépidos empalidecem como se perdessem seu
sangue.
— “Senhor primo — diz Gautier —, jamais foram vistos tantos navios juntos. Nosso
esforço será vão; melhor seria bater em retirada.”
— “Amigo — responde Vivien — não temos nós boas armas e bons corcéis? Não
somos bravos cavaleiros? E porventura não confiamos no Rei do Paraíso? De minha parte,
fiz a Ele o voto, no dia em que fui armado, de jamais recuar ante os sarracenos. Não me
vereis recusar o combate; aqui ficarei, morto ou vivo.”
Todos estão consternados, abaixam a cabeça e dizem uns aos outros:
— “Ai de nós! Este homem é por demais orgulhoso! Se esses pagãos fossem javalís,
necessário seria um mês inteiro para matá-los!”
— “Senhores francos — diz Vivien o valente, o intrépido — vós pensais em vossos
castelos, vossas pradarias e vossas vinhas, vossas cidades e vossas famílias. Aquele que
disso se lembra, jamais fará proezas. Dispensados estais! Ide para onde quiserdes e eu
permanecerei aqui, cumprindo o meu voto. Entretanto, no grande dia do Juízo, Deus saberá
reconhecer aquele que O serviu sem fraquejar, e esse será coroado na celeste alegria. Mas,
os covardes e traidores serão rejeitados.”
Vivien falou com ufania e nobreza. Ao ouvi-lo, todos abandonam seu temor,
sentem-se reconfortados, erguem a cabeça e exclamam:
— “Senhor Vivien, nós vos juramos, pela Lei que pregaram os Apóstolos de Nosso
Senhor, que jamais vos deixaremos enquanto viverdes!”
— “E eu vos juro, pela caridade de Deus quando sofreu por nossos pecados, que
jamais vos abandonarei por covardia! Armai-vos, pois! Em breve teremos batalha.”
E os sete filhos dos condes prometem não separar-se durante a melée.
Eis que a frota sarracena recolhe suas velas e joga suas âncoras em meio a horrendos
clamores, e de cada navio desce uma multidão armada.
Vivien lança um olhar sobre sua gente; eles esperam, firmes nas selas, com os
escudos embraçados e as lanças erguidas.
— “Meu Deus — implora Vivien — cuidai de nossas almas e recebei-as; quanto aos
corpos, será como Vós quiserdes.”
É segunda-feira, hora de vésperas. Começa então a batalha da qual ninguém se
esquecerá jamais.
As três cargas da cavalaria católica

Por três vezes Vivien reúne sua mesnada sobre as dunas, pois não podem empurrar
os pagãos até o mar.
Na primeira vez, Vivien vê os arqueiros sarracenos na costa, os mortos que jazem
aqui e acolá, atravessados por compridas flechas, os cavalos sem dono e os feridos que
gemem sob seus escudos. Ó Deus! Quanto luto na França por todos esses cavaleiros que
tombaram!
Vivien conta os que o rodeiam: não tem mais de dois mil escudos para sustentar a
batalha!
— “Senhores — diz ele — vede vossos irmãos que os árabes mataram de longe,
como felões que são. Vinguemos os mortos enquanto estamos vivos. Montjoie!”
E todos o seguem.
Na segunda vez, Vivien percebe, através das fileiras de arqueiros, os cavalos que
chegam à praia. Ele vê os seus em torno de si, cobertos de feridas, e conta-os com
angústia. Ai! Para sustentar a batalha, não lhe restam mais de mil escudos!
— “Irmãos — diz ele — o que farei por vós? Nenhum médico na terra poderia vos
curar. E por que iríeis morrer em vossos leitos? Nenhum mártir terá mais honra do que
aqueles que em Aliscans cairão hoje por Deus!”
— “À bênção de Deus!” — respondem eles, e esporeiam seus cavalos.
E na terceira vez, o próprio Vivien sente-se tão cruelmente ferido que desce do
corcel. Suas entranhas pendem fora do corpo e ele as sustenta com a mão esquerda,
invocando a Santa Maria:
— “Santa Maria, Mãe de Deus, protegei-me para que não me matem os felões
sarracenos!”
Mas imediatamente se arrepende:
— “Falo como insensato, ao pensar em preservar o meu corpo. O Senhor Jesus
deixou torturar o seu por nós. Senhor, não tenho o direito de pedir-Vos que me livreis da
morte, pois Vós não tivestes misericórdia de Vós mesmo. Fazei somente que eu possa
rever mais uma vez o conde Guillaume, meu senhor.”
Em torno dele congregam-se os guerreiros restantes. Não há um que não tenha em
sua mão a sangrenta espada e sob seu corpo a sangrenta sela.
— “Vivien, senhor nosso — dizem eles — se voltais a atacar, nós voltaremos; se
combateis, nós combateremos. Tudo o que fizerdes, nós o faremos.”
— “Agradeço-vos, meus irmãos” — responde Vivien.
Ai! Quinhentos escudos para sustentar a batalha!
Ele chama então o cavaleiro Gérard e diz-lhe:
— “Amigo Gérard, estais vós são de corpo?”
— “São e íntegro.”
— “Tendes boas armas?”
— “Senhor, tão boas quanto possam sê-lo as de um homem que acaba de combater
e que está pronto para voltar ao combate.”
— “Como está o vosso cavalo?”
— “Ferido está, mas não cede.”
— “E a vossa coragem?”
— “Jamais esteve tão forte.”
— “Amigo Gérard, ouso implorar-vos: ide onde está o conde Guillaume, para que
ele nos socorra neste doloroso perigo.”
— “Oh! Como me entristece o deixar-vos!”
— “Calai-vos, guerreiro! Não faleis assim!”
E assim separam-se os dois amigos, na segunda-feira, à hora de vésperas.
Assim que Gérard sai do campo das dores, seu bom cavalo cai morto. O guerreiro
caminha apoiado em sua espada, enrubecida de sangue, do pomo até a ponta.

Vivien ve morrer seus companheiros

Vivien está ferido, e eis que desmaia. Quando volta a si, os francos dizem:
— “Senhor, estais cruelmente ferido; permanecei aqui e repousai, enquanto nós
combatemos.”
— “Senhores — responde Vivien — sinto a morte que me golpeia; meus olhos se
turvam, mas só morrerei depois de vésperas, e quero fazer o inimigo pagar caro as nossas
feridas. Aquele pois, que me ajudar a montar em meu corcel, pendurar-me o escudo ao
ombro e colocar-me a espada na destra, esse será meu amigo.”
— “Senhor Vivien, nenhum de nós o fará!”
— “Cavaleiros, eu vo-lo ordeno! Se eu morrer em plena melée, serei coroado no
Paraíso, mas se me deixardes aqui, o pecado recairá sobre vós.”
Eles o erguem então em seu cavalo, amarram-no à sela, põem-lhe as rédeas na mão
esquerda e a espada na destra. O próprio Deus o sustenta e o impede de cair.
— “Atiremo-nos contra os pagãos! — exclama Vivien — Não vedes em torno de
nós os Anjos que levarão as nossas almas? São Miguel as espera hoje para dar-lhes grande
honra.”
Os sarracenos uivam e gritam, lançando sobre eles dardos e flechas. Vivien está
ferido, mas só cairá quando Jesus assim o quiser.
Monstruosos e negros ginetes rodeiam-no como demônios, empunhando suas
maças; Vivien faz revoar sua grande espada, mas está preso num cerco intransponível e
reza:
— “Meu Deus, Filho da Virgem, não permitais que entre em meu coração o desejo
de recuar um passo! Por vossas santas bondades, dai-me a graça de guardar o meu voto!”
Perto dele está o conde Bertrand, recuando a cada golpe recebido. Vivien brada:
— “Montjoie!, cavaleiro!”
Bertrand o escuta: seu coração se fortalece, atira-se contra o cerco dos felões,
fende-o, abre uma clareira a golpes de espada e liberta Vivien. Todos cobertos de sangue,
os dois guerreiros se abraçam.
— “Senhor — diz Bertrand — não vos abandonarei enquanto estiver vivo e com
minha espada na mão.”
E eis que em torno deles reúnem-se os outros seis filhos dos condes, acorrendo em
meio aos clamores da batalha, chamados pelo brado de guerra. Dez mil sarracenos os
cercam; Vivien invoca os dois grandes santos da Bretanha e do Reno: São Miguel e São
Herbert. Verdadeiramente, o conde Vivien é um mártir!
Mas ele perde dez homens dos vinte que lhe restavam. Ai! Em meio ao grande
tumulto, ele vê seus cavaleiros caindo um após outro. Os pagãos não deixam um só com
vida.
Vivien está só, com seu escudo.
Já não pensa mais em defender-se, mas somente em golpear: ergue sua grande
espada com as duas mãos, desferindo terríveis cutiladas em todas as direções, e abate uma
centena de inimigos. Seus golpes fendem os sarracenos de alto a baixo, e sua espada
penetra no chão.
— “Santa Maria, Virgem e Mãe, enviai-me o conde Guillaume, meu senhor” —
Esta é a oração que recita o jovem guerreiro na melée.
Um árabe, montando um rápido cavalo, avança contra ele e atira-lhe o dardo que
traz na mão direita. A arma se crava em seu flanco e faz saltar trinta malhas da loriga.
Vivien tem uma grave ferida da qual não mais será curado.
Leva a mão ao flanco, sente a haste e extrai o dardo de seu corpo; golpeia o pagão
nas costas e crava-lhe a arma nos rins. De um só golpe o matou.
— “Sarraceno maldito! — exclama o jovem Vivien — jamais te gloriarás de haver
morto um guerreiro franco!”
E retoma a espada para continuar o combate.

A agonia de Vivien

O calor é forte e ele sofre o tormento da sede; o claro sangue escorre de seus lábios
e de suas feridas. No espaço de quinze léguas não há rio nem fonte, mas só a água salgada
das ondas do mar. Entretanto, no meio da planície corre um riacho maculado de lama,
sangue e miolos. O herói corre e, inclinando-se, bebe aquela água.
Os inimigos fazem chover sobre ele os golpes de lança; só nas pernas e nos braços
recebe mais de vinte feridas. Mas eis que se reergue como um javalí feroz. Tantas flechas
se cravam em seu escudo que o conde não pode mais sustentá-lo e o deixa cair a seus pés.
As lanças desgarram sua cota de malha; as suas entranhas pendem fora de seu
corpo, arrastando pelo chão, e, como sente próximo o fim, pede a Deus misericórdia.
Com a mão direita empunha a espada, ensanguentada do pomo até a ponta. Tomado
pelos estertores da morte, ele caminha sustentado por ela, e reza:
— “Deus verdadeiro de glória, defendei-me, para não ser tentado a recuar um passo
na batalha!”
Um bérbere golpeia a cabeça do nobre cavaleiro com seu dardo de ferro. Vivien cai
de joelhos, exclamando:
— “Deus nosso Pai, Rei glorioso e forte, não permitais que eu consinta no
pensamento de recuar um passo, por medo da morte.”
Mas eis que ao longe aparece um cavaleiro, no alto das colinas, seguido por uma
multidão de estandartes. Os cem mil pagãos o reconhecem: É o conde Guillaume com
seus guerreiros!
A batalha torna-se terrível e os sarracenos cobrem a praia. O conde Guillaume,
cheio de angústia, procura seu sobrinho Vivien. Um de seus homens diz:
— “Senhor, a batalha de Roncesvales não foi nada em comparação com este
combate. A planície, as dunas e o mar estão cobertos de infiéis. Como abriremos o
caminho?”
— “Com a espada! — responde ele — Eu vos encomendo todos ao Filho de Santa
Maria. Segui-me!”
— “Montjoie!” — bradam eles, lançando-se ao ataque.
Tanto resplandece a espada do conde que os pagãos se afastam. No caminho de
Guillaume as selas dos sarracenos se esvaziam; ele golpeia de ponta e de corte, sem saber
onde o leva seu cavalo, e chega assim à praia do mar. Seu elmo pende às suas costas, sua
loriga está desgarrada, seu escudo despedaçado e sua espada fendida. Ele não cessa de
combater, e seus braços estão cobertos de suor e de sangue.
Por fim, ei-lo que entra num pequeno vale que vê diante de si, coberto de bosques e
arbustos.
A noite desce e os sarracenos deixam de atacá-lo. Guillaume, cheio de amargura e
de cólera, avança entre armas despedaçadas e corpos talhados. Subitamente, reconhece o
escudo de Vivien e, não longe dali, à beira das águas, percebe o jovem cavaleiro, jazendo
por terra.

A primeira comunhão

Vivien tem suas brancas mãos cruzadas sobre o peito; sua espada repousa com ele.
O sangue escorre de sua face e inunda suas armas; seu corpo exala aroma de incenso.
Guillaume detém seu cavalo, apeia-se, ajoelha-se e fita-o longamente.
— “Meu nobre sobrinho Vivien, nenhum homem criado por Deus teve tanta
coragem. Tu não te orgulhavas de tuas proezas, mas eras doce e humilde, e contra os
sarracenos eras intrépido e conquistador.
“Jamais cobravas resgate por eles: quando os prendias, arrancavas-lhes a alma do
corpo, que é o que se deve fazer.
“E por não quereres fugir diante deles, eis que te mataram, segunda feira, à hora de
vésperas!
“Ah! Por que não cheguei antes, quando ele ainda vivia? Ele teria recebido o
Santíssimo Sacramento, que trago comigo, e eu teria nisso imensa alegria! Senhor Deus,
dignai-Vos receber sua alma, pois é por Vós que ele morreu em Aliscans!”
O conde Guillaume toma o jovem guerreiro em seus braços, e eis que sente a vida
pulsar em seus flancos.
— “Vivien — diz ele — fala-me! Vivien, meu sobrinho e meu par! Tua vassalagem
não foi longa. Eu te armei cavaleiro com grande honra, junto com cem outros, por amor
de ti!”
Guillaume esconde o rosto entre as mãos, e chora com imensa dor:
— “Vivien, que Deus faça mercê à tua alma e às de todos os que jazem contigo,
mortos ou moribundos, tombados por seu serviço!”
Vivien escuta os lamentos de seu tio e, cheio de compaixão, exala um suspiro e
volta para ele a sua face.
— “Ó Deus — diz Guillaume — eis que fui atendido!”
E aperta o jovem em seus braços.
— “Nobre sobrinho, vives tu, pela caridade divina?”
— “Sim, senhor tio, mas o meu peito está todo aberto pelos golpes.”
— “Já comestes do Pão consagrado?”
— “Hélas! Muito desejava prová-Lo antes de morrer, mas agora é tarde. Se Deus
assim o quiser, não serei condenado por isso, pois Ele conhece a minha vontade.”
— “Saibas que eu O trago aqui. Recebe-O com toda humildade, em nome da divina
Trindade.”
— “É o meu desejo mais ardente. Vejo que o Senhor me visita.”
Guillaume lava suas mãos na água vizinha, e retira de sua teca o Pão consagrado,
dizendo:
— “Prepara-te agora para confessar teus pecados. Sou teu tio, e não tens parente
mais próximo, fora o Senhor Deus nosso Pai. Eu serei teu capelão e teu padrinho.”
— “Erguei minha cabeça, senhor. Sim, por amor de Deus, dai-me a comer desse
Pão Sagrado, pois vou morrer. Apressai-vos, meu tio, pois falha-me o coração.”
Guillaume sustenta a cabeça de Vivien, e o jovem confessa os pecados que pode
recordar:
— “Uma coisa me atormenta: eu fiz outrora, no dia da Páscoa, o voto de jamais
recuar diante dos sarracenos, mas hoje eles tanto me assaltaram que tenho grande temor
de haver faltado à minha promessa.”
— “Não deves temer, Vivien” — responde Guillaume, e põe-lhe nos lábios a
sagrada Hóstia.

Morte de Vivien

Vivien bate no peito e não fala mais.


Por última vez ele fita o conde e esforça-se por inclinar-se diante dele. Depois sua
cabeça tomba bruscamente e ele exala um suspiro. Sua alma partiu.
Deus a recebe no Paraíso, em meio a seus Anjos.
O conde Guillaume estende o corpo do jovem guerreiro sobre um grande escudo,
junta-lhe as mãos e cobre-o com outro escudo. Depois monta em seu corcel e afasta-se,
fazendo o Sinal da Cruz.
E ninguém mais verá a face do jovem Vivien, que repousa em l'Archant, no vale de
Aliscans, jazendo entre dois escudos.

———————
A Batalha de Doriléia

Pierre Aubé, Godefroy de Bouillon, Librairie Fayard, 1985.


René Grousset, L'épopée des Croisades, Editions Marabout, 1981.
Georges Bordonove, Les Croisades et le Royaume de Jérusalem, Editions Pygmalion,
1992.
J.F. Michaud, História das Cruzadas, Editora das Américas.

Em abril do ano 1097, 18 meses depois das graças de Clermont-Ferrand, descidas


dos céus em resposta ao apelo de Urbano II, os cruzados atravessaram o Bósforo e
penetraram na Ásia Menor.
Depois da conquista de Nicéia, empreenderam a travessia do planalto de Anatólia,
região de secas estepes e de difícil abastecimento.

O calor era tórrido e esgotante. Pelo péssimo caminho que se embrenhava rumo à
Ásia imensa, estendia-se uma intérmina coluna de cavaleiros, infantes e carroças.
Durante dois dias, este formidável exército repousou em Lafké, diante da ponte que,
neste lugar, transpunha o rio Gallo. Era indispensável recompor as forças dos homens e
das cavalgaduras em torno de um curso de água, antes de enfrentar os rigores de uma
região pedregosa, acidentada e hostil. Os cruzados decidiram separar-se em dois corpos a
fim de — precisa Albert D'Aix — “ter mais espaço e liberdade para acampar e assim
encontrar mais facilmente abastecimentos e forragem para os cavalos”.
Um corpo, composto pelas tropas de Bohémond de Tarento, Tancredo, Roberto de
Flandres, Roberto de Normandia e Estevam de Blois, partiu primeiro. O outro, com
Godofredo de Bouillon, Raimundo de Toulouse e Hugo de Vermandois, pôs-se em
movimento pouco depois e seguiu um caminho quase paralelo, ligeiramente mais ao sul.
Os turcos da Ásia Menor, havendo concentrado todas as suas forças sob as ordens
do Sultão de Nicéia, procuraram tirar proveito desta divisão. Informados por seus espiões,
conheciam eles o caminho tomado pelos cruzados e decidiram interceptá-los.
Acreditavam que não seria difícil exterminar aquele pesado exército franco, porque até
aquele momento ninguém havia podido resistir aos inesperados e fulminantes ataques da
cavalaria turca.
Na tarde do dia 30 de junho de 1097, o exército de Bohémond acampou no vale de
Porsuk, num lugar chamado Doriléia, denominado pelos cronistas da Cruzada de “campo
das flores”.
No dia seguinte, às oito horas da manhã, a cavalaria turca precipitou-se,
subitamente, sobre os cruzados. A violência do ataque foi tal que Bohémond,
surpreendido em plena marcha, apenas teve tempo de reagrupar apressadamente sua tropa
para resistir às ondas avassaladoras dos batalhões muçulmanos que o rodeavam por todas
as partes. A surpresa havia sido total.
“Os turcos — narra o Cronista Anônimo da Cruzada, testemunha ocular deste
drama — nos cercavam por todos os lados, combatendo, lançando dardos e flechas a
uma distância maravilhosa. E nós, ainda que incapazes de resistir e sustentar o peso de
um tão grande número de inimigos, precipitamo-nos ao seu encontro com um só
coração”.
O duque da Normandia, arrancando das mãos do que o levava o seu estandarte
branco com bordados de ouro, lançou-se ao meio dos muçulmanos gritando: “Deus o
quer! Deus o quer! Venham comigo! Normandia!
A presença de Bohémond e do duque da Normandia, os esforços de Tancredo, de
Ricardo, príncipe de Salerno, e de Estevam, conde de Blois, reanimam os cruzados; a
enérgica coragem dos campeões da Cruz resiste ao numeroso exército turco.
Entretanto, em vão os francos, dizimados pela contínua chuva de flechas, tentaram
utilizar a terrível arma de guerra dos exércitos cristãos: a carga cerrada de cavalaria. O
inimigo evitava o contato e afastava-se quando os cruzados avançavam.
Pela primeira vez notavam-se as diferenças que, ao longo de todas as expedições
para o além-mar, deviam marcar a tática de um e outro campo. Do lado dos francos, uma
massa de cavaleiros e infantes revestidos de ferro, avançando num só corpo: fortaleza
inabalável. Do lado dos turcos, uma tropa ligeira, móvel, aproveitando as qualidades de
um corpo de arqueiros sem par, acossando por ondas sucessivas, evitando o
corpo-a-corpo, dizimando um adversário estático.
Foi só quando os guerreiros francos começaram a ficar visivelmente esgotados por
este jogo mortífero que os turcos, desembainhando as cimitarras, aproximaram-se a todo
galope. Os cruzados, repelidos até onde se encontravam as próprias carroças e bagagens,
protegeram-se ao abrigo delas e resistiram com feroz obstinação.
Porém, tal era a multidão dos assaltantes que os guerreiros da Cruz não poderiam
deixar de sucumbir...
Roberto de Paris caiu mortalmente ferido, depois de ter visto perecer em redor de si
quarenta dos seus companheiros de armas. Guilherme, irmão de Tancredo, jovem de uma
impetuosa bravura, rolou na areia ardente, varado de flechas.
Ao longo de toda a manhã, a hoste cristã curvou-se sob os golpes, ameaçando
quebrar-se a qualquer instante.
“Apertados uns contra outros como ovelhas num curral — conta Foucher de
Chartres — permanecíamos imóveis. No ar, ressoavam os gritos ferozes dos assaltantes e
os clamores dos feridos. Perdendo a esperança de escapar vivos, recomendamo-nos à
misericórdia Divina. Havia entre nós quatro bispos e muitos sacerdotes. Todos revestidos
de paramentos brancos cantavam e rezavam, e uma multidão dos nossos precipitava-se
aos seus pés para confessar seus pecados”.
A Cruzada, após o primeiro embate, concluiria num espantoso desastre?
Eram duas da tarde e um sol inclemente abrasava os elmos, tornando-os
verdadeiras estufas. A tropa comandada por Tancredo, último recurso antes do hallali
final, estava a ponto de ceder quando de repente, surgida do alto das colinas vizinhas,
irrompeu na planície de Doriléia a cavalaria de Godofredo de Bouillon! Roberto o Monge,
a compara à águia precipitando-se sobre a sua presa.
Bohémond havia enviado ao duque de Baixa-Lotaríngia um mensageiro
encarregado de expor-lhe a má situação na qual se encontrava seu exército. Sem vacilar,
Godofredo mandara tocar as trombetas anunciando o combate e, deixando para atrás a
infantaria, havia-se lançado à rédea solta, à testa de cinqüenta cavaleiros, em direção a
Doriléia.
No momento decisivo, chegou ele pronto para sustentar as extenuadas tropas
normandas. “Um sol deslumbrante dardejava seu raios — narra Albert D'Aix. — Seu
esplendor fazia reluzir os escudos dourados e as cotas de malha. Os pendões e insígnias
fixados nas lanças, brilhantes de gemas e de púrpura, faiscavam...”
Os batalhões muçulmanos que receberam o impacto do primeiro choque daquele
punhado de cavaleiros, foram como atingidos por um raio.
“Desgraça para aqueles que são alcançados pelos francos! — exclama Roberto o
Monge — Eram homens há poucos instantes e eis que agora não são mais que cadáveres!
A couraça e o escudo não conseguiram protegê-los, e o arco e as flechas de nada lhes
serviram! Os moribundos gemem, afundam a terra com seus calcanhares ou, caindo para
frente, cortam a erva com os dentes”.
Poucos instantes depois, apareceram Hugo de Vermandois, Adhemar de Monteuil e
Raimundo de Toulouse, à frente de todo o corpo do exército, cobrindo as montanhas e
enchendo os ares com toques de trombetas e brados de guerra.
Com os estandartes desfraldados, quarenta mil guerreiros avançavam em ordem
empunhando suas armas. Este magnífico espetáculo lançou o terror no meio dos infiéis.
Rapidamente, o enorme exército cristão organizou-se para cercar a cavalaria turca numa
enorme armadilha: Normandos e Provençais constituíram a ala esquerda; Godofredo de
Bouillon, Roberto de Flandres e Hugo de Vermandois a ala direita. Adhemar de Monteuil,
contornando as posições muçulmanas, fechou completamente a rede.
Vendo seu exército cercado e varrido por furiosas cargas de cavalaria, o sultão
ordenou a retirada. Entretanto, não foi aquilo mais que uma espantosa debandada.
“Os inimigos fugiam a uma velocidade extraordinária até suas tendas, mas não
conseguiram permanecer neste local durante muito tempo. Retomaram a sua fuga e nós
os perseguimos, matando-os no decorrer de todo o dia. Se o Senhor não estivesse
conosco nesta batalha, se Ele não nos houvesse enviado o exército de Godofredo de
Bouillon, nenhum dos nossos teria escapado, porque desde a hora terça até a hora noa
[das 9 da manhã às 3 da tarde] o combate foi ininterrupto”.
No dia seguinte — porque a caça ao homem havia durado a noite inteira — fez-se a
contagem dos mortos e o inventário dos tesouros que continham as tendas do
acampamento inimigo, “feitas com uma arte e uns adornos maravilhosos”. “Com as
armas e outros apetrechos que se conquistaram, equiparam-se e vestiram-se muito bem
todos aqueles que não estavam bem armados”.
O número de muçulmanos mortos na batalha ou durante a fuga foi calculado em
mais de vinte mil pelas crônicas da Cruzada. E quatro mil guerreiros de Cristo tiveram a
glória de entregar suas almas naquele dia memorável.
A jornada do 1º de julho de 1097 anunciou ao mundo que uma força nova havia
surgido: a força dos guerreiros da Cruz! E pela primeira vez, os turcos seldjúcidas foram
derrotados e perderam a reputação de invencibilidade.
“Dois dias após a batalha — escreve Alberto d'Aix — os infiéis fugiam ainda, sem
que ninguém os perseguisse, a não ser o mesmo Deus”“.
Aos árabes que lhe censuravam a fuga dizia o sultão Kilidj-Arslan: “Vós não
conheceis os francos, vós não lhes experimentastes a coragem; essa força não é humana,
mas celeste ou diabólica!”
E por sua vez, o cronista da Gesta francorum escreveu: “Imaginavam eles
assustar-nos com a saraivada de suas flechas, como haviam atemorizado os armênios, os
sírios e os gregos. Mas, com a graça de Deus, nunca prevalecerão sobre nós!”

———————
Assim morreu Bayard

Uma poderosa aliança formava-se na Itália nesse ano de 1524 contra a França.
Carlos V tinha prometido seu apoio aos príncipes italianos e lhes enviou doze mil
soldados. De outro lado, os venezianos tinham engajado os melhores mercenários.
O marquês de Pescara, Ferdinando Francisco de Avalos, comandava o exército
espanhol, no qual os arcabuzeiros bascos distinguiam-se por uma tática ousada: com
muita boa pontaria, eles atiravam unicamente nos chefes, os atingiam no primeiro tiro de
arcabouço e fugiam a toda pressa, antes que alguém tivesse tempo de responder a seu tiro.
Entre os coligados, tinha até um príncipe francês, o condestável de Bourbon, que
tinha passado ao serviço dos alemães.
Como calcular o número desse exército? Os melhores capitães alemães e italianos o
comandavam. Tinham tudo para ganhar: dinheiro, munições, a superioridade numérica e,
também, a excelência dos combatentes que os capitães tinham selecionado um por um.
De seu lado, o vice-rei francês de Nápoles e o marquês de Marignan tinham trazido
seus esquadrões. Mas às poderosas tropas inimigas, eles só podiam opor regimentos
insuficientes, mal alimentados e com poucas munições.
Além disso, estavam mal comandados, pois, desde o inicio das operações, Bonnivet
e Bayard tinham se enfrentado.
O almirante Bonnivet, orgulhoso de seu título, não admitia que alguém discutisse
suas instruções. Assim, o bom cavaleiro Bayard, ficou magoado por servir de subalterno
às ordens de um cortesão que nunca tinha sido provado na guerra, e que tinha acumulado
os mais graves erros.
Bonnivet era corajoso, mas nesta guerra em que ele devia enfrentar os melhores
estrategistas da época, a coragem não podia substituir o talento. Ele subestimou
irrefletidamente as forças de seus adversários que tinham montado um dos exércitos mais
poderosos da época. Enfim, cometeu o erro, imperdoável para um comandante, de não
compreender o valor do capitão que servia sob suas ordens, Bayard.

Os erros de Bonnivet

Foi um engano de Francisco I, rei da França, deixar a Bayard num posto subalterno
e, ainda mais, de tê-lo colocado ao lado de um homem frívolo, vaidoso e ressentido,
decidido a comandar como mestre absoluto, sem receber conselhos de ninguém.
Em lugar de pedir as sugestões de Bayard, que tinha tantas vezes combatido na
Itália, deu-lhe suas instruções com uma empáfia, como se o tivesse feito para um jovem
oficial acabado de chegar de Paris.
O caso de Robecco mostrou bem as dissensões entre Bonnivet e Bayard. Foi
necessário que a incompetência e o autoritarismo do almirante chegassem ao cúmulo, para
que o cavaleiro, sempre tão respeitoso e fiel à disciplina, ousasse nesse dia discutir uma
ordem.
Bonnivet tinha lhe dado a ordem de trancar-se nessa pequena cidade com duzentos
soldados. Bayard observou que para defender Robecco seria necessário a metade do
exército francês.
— Portanto, Monsenhor — acrescentou ele —, eu vos suplico que penseis bem onde
vós quereis me enviar.
A discussão esquentou-se rapidamente e foi com grande desgosto que o mais fraco
foi então ocupar Robecco.
Tudo aconteceu como tinha sido previsto. Os inimigos concentraram-se em torno da
cidade, cada vez mais numerosos. Bayard escreveu a Bonnivet e pediu socorro: o almirante
ficou surdo aos mais prementes apelos.
A guarnição de Robecco era tão fraca que eram necessários todos os homens
disponíveis para fazer guarda. Bayard não saia das muralhas. Era visto andando pelos
caminhos de ronda, noite e dia, esgotado pela falta de sono, tremendo de febre...
Durante esse tempo, os espanhóis de Avalos, conduzidos pelos habitantes da região
que conheciam os caminhos seguros, tomavam conta de todas as proximidades da cidade.
Uma noite, enfim, em que o bom cavaleiro, caindo de cansaço e de doença, tinha se
deitado para dormir um pouco, os vigias gritaram o alarme.
Bayard levantou-se de um salto, e como sempre dormia revestido de sua armadura,
enfrentou o adversário.
Mas era tarde demais. Os tambores dos espanhóis faziam grande barulho nas ruas da
cidade.
— Salvemos as pessoas, se for possível! — disse Bayard.
Recuou até Abbiategrasse, onde estava acampado a maior parte das forças de
Bonnivet.
Esse fracasso não diminuiu a arrogância de Bonnivet, que não queria depender de
ninguém... Perdeu-se Vercelli, depois Novara.
Essas e outras decepções fizeram com que as tropas, já mal-humoradas, ficassem
indispostas com essa absurda campanha. Bonnivet manobrava a esmo, pouco ao par das
estradas e dos rios.
Foi assim que ele acabou conduzindo suas tropas ao rio Sésia, em plena enchente
pelas neves dos Alpes, numa noite de tempestade. Os cavalos perdiam pé e se afogavam
na correnteza. Os homens procuravam seus chefes. A tempestade impedia de escutar as
ordens, de reconhecer as bandeiras...
Quando o resto do exército que tinha podido sair são e salvo da torrente passou do
outro lado do rio, encontraram em boa ordem os cavaleiros e soldados de Pescara, prontos
para atacar.
Foi ali que um tiro de arcabouço quebrou o ombro de Bonnivet. Sentindo que
perdia a vida com seu sangue, o almirante fez chamar Bayard.
— Monsenhor de Bayard, disse-lhe, vós vedes o meu estado. Eu vos entrego o
comando de todo o exército do Rei. Em nome da honra da França, eu vos conjuro de
salvar a artilharia e as insígnias, que entrego inteiramente a vosso valor e a vossa boa
conduta.
Era bastante tarde para reconhecer seu erro, mas Bayard não era rancoroso. Quando
viu seu rival assim desfeito, perdoou-lhe todas as mesquinharias e respondeu:
— Monsenhor, eu teria querido que vós me tivesses feito essa honra numa ocasião
em que a fortuna nos fosse menos contrária. Mas, não importa, eu vos dou minha fé de as
defender tão bem que elas não cairão no poder dos inimigos, enquanto eu estiver vivo.

Bayard, comandante do exército

Bayard tomou o exército a seu comando; ergueu a moral dos soldados


desanimados, reuniu os desertores e deu uma certa coesão a esses restos de regimentos em
debandada. Enviou a Ivrea a artilharia e as cargas, organizou a retirada permanecendo ele
próprio na retaguarda com um punhado de suíços que serviam a Jean de Diesbach.
Partiram assim, acossados pelos espanhóis que os seguiam de perto, feridos pelos
tiros de arcabouço dos bascos.
Porém, não se tratava mais de um exército vencido em debandada, mas uma tropa
altaneira e corajosa, caindo de cansaço e morrendo de fome que, apesar de sua
inferioridade numérica e seu estado de fraqueza, enfrentava com coragem a todos os
assaltos.
A partir do momento em que Bayard tomou o comando, dir-se-ia que uma alma
nova havia entrado nesse corpo esgotado. A dignidade da retirada, a audácia com a qual a
retaguarda resistia aos mais violentos ataques, inspiraram aos espanhóis um respeito tão
grande que os chefes do exército imperial se reuniram em conselho para saber se era o
caso de perseguí-los mais longe.
A simples presença de Bayard era para alguns uma garantia de vitória e foi
necessária toda a energia de Pescara para persuadir os capitães de continuar a luta. “Ainda
um esforço, dizia ele, e conseguiremos vencer!”
Enquanto isso, o bom cavaleiro, “seguro como se estivesse em casa, fazia andar
seus soldados, se retirava lentamente, com a face sempre voltada para seus inimigos, a
espada em punho, dando-lhes mais medo do que cem outros juntos”.

A última batalha

Chegaram então ao vilarejo que os cronistas chamam de Ravisingo, na região de


Ivrea. Acamparam na noite de 29 de abril de 1524, para permitir um descanso aos homens
e aos cavalos. Mas, Bayard, que se sentia perseguido de perto pelos espanhóis, fez
levantar acampamento no meio da noite e retirou-se detrás de uma elevação de terreno,
onde pensava que o inimigo não podia surpreendê-lo.
Dessa vez, não foram concedidas à
tropas extenuadas senão algumas horas de
sono e, em seguida, retomaram o caminho,
na aurora cinzenta.
De seu lado, Pescara queimava as
etapas. Reuniu a cavalaria ligeira mais
rápida do que os soldados pesadamente
armados. Os arcabuceiros bascos,
atiradores infalíveis, subiram nas garupas
dos cavalos.
Os dois adversários encontraram-se
frente a frente na hora do amanhecer.
O ataque da cavalaria ligeira e dos
arcabuceiros bascos foi tão violento que a
retaguarda francesa cedeu. Os espanhóis
tinham começado a pilhar as bagagens, das
quais Bayard não se preocupava muito;
mas no momento em que o bom cavaleiro
viu que estavam levando embora duas
peças de artilharia, não pôde suportar ver
esses belos canhões caírem nas mãos do
inimigo.
— Vou retomá-los! — gritou.
E lançou-se na melée.
— Irei convosco! — respondeu Jean de Chabannes, Senhor de Vandenesse, irmão
de La Palisse, o velho companheiro de guerra de nosso cavaleiro.
Lamentavelmente, os arcabuceiros bascos tinham boa pontaria. Das duas balas
atiradas, uma matou Vandenesse na hora. A outra atingiu Bayard nas costas e lhe quebrou
a espinha dorsal.
— Jesus! — gritou, e agarrou-se à sela para não cair.
Aqueles que o acompanhavam o ouviram gritar depois: “Hélas, meu Deus, estou
morto!
Apressaram-se em socorrê-lo, mas qualquer ajuda dos homens não podia mais nada
por ele. Sentindo que suas forças o abandonavam, Bayard desembainhou sua espada que
desde há tanto tempo esteve em sua companhia em todas as campanhas, nas quais ele
tinha batalhado tão bem pela França; levantou-a diante de seus olhos, osculou a cruz que
formava a empunhadura como se ele tivesse querido associar nesse gesto a devoção por
nosso Redentor e o amor que devotava a arma do cavaleiro.
— “Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam”, disse ainda.
De repente, calou-se. Tinha ficado pálido e vacilava sobre a sela. Um jovem
ajudou-o a descer do cavalo. Era um delfinês, Jacques Joffrey, que desde alguns anos o
servia fielmente e o acompanhava em todas as suas aventuras.
Bayard abriu os olhos. Com um gesto, mostrou um carvalho que se erguia perto de
lá e indicou que queria repousar sob a sombra dessa arvore venerável.
— Colocai-me de maneira a que eu tenha a face voltada para os inimigos — disse
num murmúrio — eu nunca lhe dei as costas e não quero neste último momento que seja
a primeira vez, pois estou acabado.
Jean de Diesbach, chefe dos lansquenets, aproximou-se e suplicou a Bayard que se
deitasse na maca que os soldados tinham fabricado com suas picas, mas ele recusou de ir
com eles.
As aventuras tinham terminado. As belas cavalgadas e as nobres batalhas ficavam
para outros. Bayard queria morrer em paz, com a face voltada a Deus.
— Deixai-me, eu vô-lo peço, preciso pensar um pouco na minha consciência.
Tirar-me daqui não servirá senão para encurtar cruelmente a minha vida, pois com a
mais pequena mexida, sinto todas as dores que é possível sentir, salvo a da morte que
sentirei em breve.
Jacques Joffrey chorava ajoelhado perto de seu senhor. Bayard sorriu para ele e
acariciou sua cabeça que se inclinava sobre o moribundo.
— Jacques, meu amigo, deixa de lado a tua dor, é vontade de Deus tirar-me desse
mundo. Por sua graça, fiquei longamente nele e recebi mais bens e honras do que
merecia. O que mais lamento ao morrer, é de não ter feito meu dever tão bem quanto
devia. Era minha esperança, se tivesse vivido mais tempo, reparar as faltas passadas.
Mas como isso não pode mais ser, suplico a meu Criador, pela sua misericórdia infinita,
que tenha pena de minha pobre alma. Tenho confiança que Ele o fará, e que por sua
grande e incompreensível bondade, Ele não aplicará sobre mim uma rigorosa justiça.
Ao longe, uns esquadrões espanhóis apareceram galopando em direção ao grupo de
homens reunidos em torno do carvalho e do cavaleiro. Para poupar a seus companheiros a
vergonha de cair nas mãos do inimigo, Bayard suplicou-lhes que se afastassem, mas eles
não quiseram.
Então, o bom cavaleiro pediu que seu ajudante o ouvisse em confissão, pois no
campo não havia padre para fazê-lo e dar-lhe a absolvição.
Depois de ter-se confessado a Deus, afastou de si suavemente os que o
acompanhavam.
— Meus senhores, eu vos peço, ide! Caireis nas mãos dos inimigos e isso não será
de nenhuma utilidade, pois minha vida acabou. Adeus, meus bons senhores e amigos, eu
vos recomendo minha pobre alma.
Prenderam-se às suas vestes, e como pareciam querer continuar a resistir ele, como
uma afetuosa insistência, fez um gesto significando: “Eu o mando!”
Docilmente despediram-se dele. Oscularam-lhe as mãos com muitas lágrimas,
enquanto o grupo de cavaleiros inimigos aumentava de tamanho no horizonte. Viam-se já
brilhar os capacetes e flutuar os estandartes.
Só Joffrey ficou perto dele.
Bayard, esgotado, tinha fechado os olhos. Quando as lamentações e os gemidos
cessaram, os pássaros recomeçaram a cantar.
Bayard abriu os olhos, e viu na sua frente um cavaleiro revestido de uma
esplendida armadura, brilhando no meio de sedas e penachos. Era um adversário digno
dele, um valente soldado, um grande general: o marquês de Pescara.
O general espanhol tinha ficado surpreso ao ver um homem deitado contra uma
árvore, ao lado de quem, chorava um jovenzinho. Quando reconheceu o Cavaleiro “sans
peur et sans reproche”, o marquês saltou de seu cavalo e aproximou-se cheio de respeito
e de compaixão.
— Queira Deus, gentil senhor de Bayard, ainda que isso me custasse um quarto de
meu sangue e que eu não coma carne durante dois anos, mas que eu vos guarde em boa
saúde como meu prisioneiro! Pois, pelo tratamento que eu vos daria, vós veríeis quanto
eu estimo a alta proeza que vós representais. Desde que estou no serviço das armas,
nunca ouvi falar de nenhum cavaleiro que nem de longe se parecesse convosco.
Assim falou ele, por causa da grande glória que Bayard tinha conquistado, depois
de toda uma vida de coragem e dedicação que obrigava mesmo seus inimigos a admirá-lo
e amá-lo.
— Eu deveria estar bem contente de vos ver assim moribundo, sabendo bem que
nas guerras do Rei meu mestre, ele nunca teve maior, nem mais terrível inimigo. Mas,
quando eu considero a grande perda que sofre hoje toda a Cavalaria, que Deus não mais
me ajude se não for verdade que eu gostaria de dar a metade do que possuo para que isso
não aconteça! Mas, uma vez que para a morte não há remédio, eu peço Àquele que nos
criou à sua semelhança, que receba vossa alma junto dEle.
Em seguida, insistiu para que aceitasse de se deixar conduzir à sua casa,
assegurando-lhe que seus cirurgiões o curariam tão bem que o guardariam em vida.
Mas Bayard sorria ouvindo esses dizeres, pois ele havia escutado a voz da morte e
entendeu que ela já estava perto, prestes a conduzi-lo ao paraíso dos soldados valorosos!
Nunca um gentil-homem fez convites mais atraentes e insistentes para receber em
casa um hóspede principesco. Bayard sabia que Pescara era sincero em seus protestos e
que ele seria tratado como cavaleiro por esse generoso inimigo. Mas, para que perder
tempo de disputar com a morte um corpo sobre o qual ela já havia pousado a sua mão? A
alma é o que importa, e ela pertence a Deus.
— Deixai-me no mesmo campo onde combati — respondeu o moribundo — para
que eu morra aqui como homem de guerra, como sempre o desejei.
Pescara aceitou. Para comprazer os desejos do cavaleiro, fez montar sua própria
tenda em torno da árvore, instalou um leito e, com suas próprias mãos, colocou ali o
inimigo ferido.
Não eram mais dos soldados ao serviço de causas opostas que estavam frente a
frente, mas dois cavaleiros unidos fraternalmente pelo rito da Cavalaria, animados pelo
mesmo ideal, que as circunstâncias da vida tinham levado a combater-se, mas que tinham
sido feitos para compreender-se e amar-se.
Bayard não quis receber os médicos que se apresentaram para curá-lo. Aceitou, isso
sim, muito devotamente, o capelão do marquês, ao qual renovou a confissão que tinha
feito há pouco ao pequeno Joffrey. Depois disso, pediu que o deixassem sozinho.
Enquanto ele se recolhia, Pescara ordenou seu exército para um desfile. As ordens
de comando ressoavam de uma ponta à outra dos esquadrões, ouviam-se os cavalos
galopar, tocar os tambores e os trompetes. Todos esses barulhos familiares se
entrecruzavam em torno do moribundo.
De repente, uma grande fanfarra começou: o passo cadenciado dos cavalos, a
pesada marcha dos lansquenets.
O exército espanhol desfilava na frente do cavaleiro que morria, inclinando seus
estandartes no momento que chegavam a altura do carvalho. Era o último adeus de
Pescara, a última homenagem de um valente a outro valente.
— A França não sabe o que perde hoje com esse bom cavaleiro.
A noite chegava. O rumor do exército em marcha se apagava ao longe. Novamente,
a calma e o silêncio do crepúsculo circundaram o carvalho. Bayard rezava...
Uma voz familiar o tirou de sua meditação.
— Ah! Capitão Bayard, vós a quem sempre amei por vossa grande proeza e
lealdade, tenho grande pena de vos ver nesse estado.
O rosto de Bayard ficou triste e severo. Por que ter sido incomodado por um tal
homem, em tal momento? O condestável de Bourbon estava na frente dele. Em seus olhos
via-se uma compaixão e uma admiração sincera, talvez um remorso...
Não era o momento de dar explicações. Bayard não queria saber quais eram as
razões que tinham movido esse homem a combater num exército estrangeiro contra o seu
Rei. Provavelmente, Bourbon estava vindo se justificar, para explicar-se, mas Bayard não
queria ouví-lo. Não queria saber nada das crises de consciência que o levaram a isso, nem
de seu ideal falido, nem da noção mais ou menos quimérica que ele tinha da honra e de
seus deveres de soldado.
Bourbon esperava uma palavra, um julgamento ou um perdão. Queria sair absolvido
por esse homem de honra. Mas Bayard não quis discutir.
— Monsenhor, eu vos agradeço. Não tenhais pena de mim, pois morro como homem
de bem, servindo a meu Rei. Mas deveis ter pena de vós mesmo que tomais as armas contra
vosso príncipe e vossa pátria.
Depois disso calou-se, e não disse mais uma palavra a nenhum homem. Bayard
pertencia agora a Deus.
Era para Ele que iam seus últimos pensamentos; à medida que se afastava da terra,
aproximava-se da luz pura da grande verdade evidente, das certezas definitivas. Bayard
rezava...
— Meu Deus, Vós o dissestes, eu o sei, que qualquer um que de bom coração se dirija
a Vós, por maior pecador que seja, Vós estais sempre prestes a recebê-lo na Vossa graça e
a perdoá-lo. Hélas, meu Deus, Criador e Redentor, eu vos ofendi gravemente durante minha
vida, mas me arrependo de todo meu coração.
Reconheço ainda, que se ficasse nos desertos durante mil anos, a pão e água, isso
não seria suficiente para ter o direito de entrar no Reino de vosso Paraíso, se por vossa
grande e infinita bondade, Vós não Vos dignais de me receber; pois nenhuma criatura pode
neste mundo merecer tão alta recompensa.
Meu Pai e Salvador, eu vos suplico que vos digneis não considerar as faltas que
cometi. Julgai-me segundo vossa grande misericórdia e não segundo os rigores de tua
justiça...
O sol havia se posto, a noite chegava. A oração de Bayard ficou incompleta.
“Le chevalier sans peur et sans reproche” entrou na grande paz de Deus.

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O BATISMO DE SANGUE DE NUNO ÁLVARES

Antero de Figueiredo (Do livro “Leonor Teles”)

Este moço, que aos treze anos de idade, Leonor Teles, pasmada do seu ardimento de
criança, por suas mãos armou cavaleiro (servindo-se do pequeno arnês do Mestre de Avis) e
depois andou por morador em casa de el-rei, como escudeiro da rainha - tem agora vinte e
dois anos. De pouca figura, ruivo como cenoura, rosto afiado, face seca, de um vermelho
sujo de sardas, onde, aqui e acolá, no buço e no mento, punge uma penugem de faúlhas de
oiro - todo o valor expressivo está na testa alta e larga, na boca miúda de lábios de reza, e no
sonho pertinaz de dois estranhos olhitos azuis, cândidos e enérgicos, que, no fundo das
órbitas, concentram pureza e poder. Desde tamanhinho - vergonhoso e calado - vive para si,
vive para dentro. Parece calmo; súbito, explodem naquele corpo estreito rebentinas bravas, e
todo o seu místico ser se agita, se transforma em ação que derrui com violência e edifica
como beleza. É a piedade feita energia; a oração feita espada. A idéia de bem servir seu
reino e seu rei é nele obcecante; e este sentimento, feito de muitos sentimentos, enche-o,
exalta-o.
Assim pensando e sentindo, esta alma nobre vive, por esse tempo, esmagada nas suas
aspirações e ofendida pelo que vê em volta de si; Nuno Álvares é violentado a assistir, de
braços cruzados, aos enxovalhos cuspidos sobre a sua amada terra, que ingleses, vindos para
a defender, saqueiam e castelhanos já pisam para a possuir e arrebatar. Freme. Contorce-se.
Derranca-se. Desde o inverno, busca lutar e não lho permite o irmão; requesta o inimigo para
duelos, dez contra dez - e proíbe-lho o rei. Tanto empacho anoja-o. Nuno Álvares vive
cerrado num colete de varas de ferro. O sangue ferve-lhe. Porque o não deixam pelejar?
Pouca gente? Os seus trinta companheiros minhotos, “homens para feitos”, valem por
trezentos; e ele - por um exército! Nuno Álvares sente que tem em si a graça de Deus que o
esclarece, incendeia e o atira, de lado semblante transfigurado, para os chãos das batalhas,
onde os triunfos acorrerão a ele. Santos e arcanjos, descidos do Céu, guerrearão a seu lado.
Guerra Santa! Esta fé dura e cega. É um enviado de Deus e tem uma obra a realizar. Não o
tolham. Furação de aço e de fogo, tudo varrerá, tudo purificará. Deixem-no!
Os castelhanos, com suas oitenta galés ancoradas no Tejo, vem em batéis, amiudadas
vezes, à cidade, roubar o que lhes apetece, afrontando a todos com suas visagens escarnidas,
suas armas arrogantes, enxovalhando, por atos e ditos, os alevantados corações portugueses.
Uma vergonha! Nuno Álvares, rugindo, não se contém. Reúne os seus chegados e, em
segredo, combina com eles uma cilada ao inimigo, que precisa de tremenda lição!
Na manhã do dia seguinte, à ponte de Alcântara, os castelhanos, segundo seu costume,
tem desembarcado e roubam uvas numa vinha, quando Nuno Álvares e os seus, que, ocultos
os espiam por detrás de valados, de repente lhes caem em cima, à lançada, desbaratando
neles, obrigando-os a debandar, espavoridos, pelo outeiro abaixo - a correr, até à riba onde,
precipitadamente, se atiram à água, fugindo a nado para as suas naus. Mas já os outros
castelhanos, que estão a bordo e de longe vêem o que se passa, se armam à pressa, saltam
nos batéis e remam para a margem. Vão castigar com a morte esse punhado de portugueses
atrevidos. Os castelões sãos mais de duzentos; os portugueses, uns cinqüenta somente, entre
besteiros, homens de cavalo e de pé. Embora! Firmes, esperam. Os outros avançam. Nuno
Álvares exulta de alegria. A sua alma enche-se de sol. Vai, enfim, pelejar!
- Amigos - grita aos companheiros, com voz estrondosa e augusta - por nossa honra!
A eles, a eles! Deus é conosco.
Mas os outros replicam-lhe prudentes:
- Mestre, os castelhanos são dez vezes mais do que nós.
- Não importa! - bradou, de novo. Nuno Álvares, com voz vinda do fundo do coração,
vinda de outros mundos. - A eles, a eles! Segui-me. Fazei o que eu fizer. Serei o primeiro.
Sejamos um!
E ia avançar; mas, vendo que os companheiros se não moviam, Nuno Álvares afastou-se,
ajoelhou em terra e, todo dentro de si, orou, de mãos postas, a São Jorge. A sua alma mística
viveu esse rápido momento em luz celeste, iluminando-se de puras claridades, temperando-se
de energias sobre-humanas, despertas, no fundo do seu ser, pela inspiração sublimada. Depois,
montou de um pulo, firmou-se na sela de alto arção, sofregou as rédeas, esporeou rijamente o
corcel nervoso couraçado de testeira e peitoral de ferro, pôs no inimigo e olhar resoluto, e, num
paroxismo de intrepidez (como se fora a própria chama do espírito, armado e alado, quem
galopasse), atirou-se numa arrancada doida, num clarão, numa transfiguração - o corpo em
fogo, a alma em luz, nos olhos um rir de divina alegria, na boca uma flor de divina reza -
atirou-se para esse extenso e espesso sedeiro de duzentas lanças em riste, contra o qual a sua
virginal armadura de aço e de fé se chocou ardidamente. A espada de Nuno Álvares, vibrada de
trás das costas, fende para a direita, fende para a esquerda, fende de través, ataca de chuço,
espedaçando capelos, talhando broquéis, esmigalhando lorigas - sempre brandida por esse
braço de ferro que uma alma religiosa vitaliza incendiando-o de coragem, de virtude, a romper
caminho, a abrir clareiras de sangue em volta de si - a limpar de inimigos a terra santa da pátria
adorada.
Seu cavalo empinado, com olhos em chama e narinas em brasa, lampejando na testeira,
atira-se aos galões, esmagando corpos caídos por terra, ferindo lume, com as ferraduras bravas,
nos arneses, nos escudos, nos ferros das lanças partidas que cobrem o chão. A espada
miraculosa de Nuno Álvares continua ingente, descarregando golpadas de fogo. Sobre ele -
sobre a sua intemerata armadura - ressoam os golpes dos montantes, os encontros das lanças, as
pancadas das pedras, e os arremessos dos virotões. O cavalo, lanceado no peito, no pescoço,
nas ancas, a espadanar sangue, cai para morrer; e, no espernear da agonia, engancha um ferro
numa solha da armadura de Nuno Álvares que, tendo caído com ele, fica preso no corcel. Por
terra, Nuno Álvares brande sempre a espada furiosa e religiosa.
O desastre é fatal; a morte iminente. Mas já no longe surge uma chusma de
companheiros, acorrendo. Chegam. Desprendem-no. Nuno Álvares levanta-se de um pulo.
Toma nas mãos, cheias de sangue, uma das muitas lanças abandoadas que jazem em volta dele;
e, à frente dos seus, alucinado, corre à lançada os castelhanos, derrubando-os, esmagando-os,
matando-os. O inimigo foge. O campo fica varrido. Vencera!
E este foi o seu batismo de sangue - sangue que, depois na ardência das batalhas,
efervesceu e explodiu em bravuras sublimes!
Fatos e elogios sobre Scanderbeg

Em certo dia do ano de 1446, chegava à brilhante Roma dos Papas, um guerreiro ilustre
e envelhecido, a quem, entretanto, não se concedera a homenagem da mais diminuta escolta.
Vinha só.
Passou, à cavalo, ante a indiferença do povo, pelas ruas seculares, adornadas de belas
igrejas e nobres palácios. Tudo à volta parecia estranhar a inesperada figura daquele rude
cavaleiro que descavalgou ante a monumental Basílica de São João de Latrão.
Viu-se, então, que a idade não o abatia. Com a desenvoltura de um possante lutador,
jogou para trás a larga capa que lhe descia dos ombros até às botas guerreiras, armadas de
prateadas esporas, retinindo ao compasso de seu andar seguro. E um peitoril de aço, guarnecido
pela cruz dos cruzados, brilhou ao sol daquela Roma quieta e acomodada.
Um grande elmo, de viseira levantada, cobria-lhe em meio a face robusta. E naquela face
de linhas rígidas — como se a mão de Deus ali quisesse estampar a imagem da bravura — um
olhar dominador e puro, velado de tristeza profunda.
Foi assim que se apresentou na luxuosa sala de audiência papal. O recém-chegado
oferecia notável constraste com as pompas do lugar: ele era simples, era pobre, era o último
cruzado, era SCANDERBEG, O CAMPEAO E ESCUDO DA SANTA IGREJA!
As palavras que proferiu ante o Pai da Cristandade jamais serão esquecidas pela História:
“Depois de 23 anos de guerra incessante apresento-me aqui, só, sem os guerreiros que
me restam. Sou a Albânia fraca, esgotada por tantas batalhas, não tendo uma parte de meu
corpo que não esteja ferida... sobram apenas algumas gotas de sangue para derramar pelo
mundo cristão. Ah, vinde em meu auxílio, senão em breve desaparecerá para sempre o último
campeão de Jesus Cristo!”
Entretanto, não houve em Roma quem quisesse fazer-se cruzado. O dinheiro que o Papa
lhe deu não foi suficiente para ajudá-lo em todas as suas necessidades. Scanderbeg retornou à
sua terra desamparado, lamentando aquela paz profunda da capital do mundo, tão diferente da
devastação turca que por quase meio século era teatro o solo ensaguentado da sua Pátria.
O homem de guerra se retirou, novamente envolto pela solidão. Na realidade, uma
solidão aparente, porque não está só quem está com Nossa Senhora.
Scanderbeg sabia que em Scutari estava sua única esperança: a santa imagem de
Nossa Senhora do Bom Conselho. Diante desse milagroso afresco, o grande guerreiro
rezava, em todos os momentos difíceis de sua vida. Ali esteve sempre, sentindo a alma
penetrada de bençãos e ouvindo as palavras secretas e inefáves com que a santa imagem
animava sua vocação guerreira.
Ele recorda, desde os 9 anos, quando raptado pelos turcos, foi forçado a viver nos
ambiente depravados de Mafoma, era nela que ele confiava. Foi a devoção à Padroeira da
Albania que deu à sua juventude a perseverança na fé durante os terríveis anos de cativeiro.
Ele trazia em sua alma as marcas daquele olhar...
E por aquele olhar, desprezou afagos e venceu ameaças. Não cedeu nem mesmo
quado elevado a membro de elite dos janizaros, famoso esquadrão contituido tão somente de
cristaos pervertidos ao maometanismo.
Sua primeira batalha, aos 20 anos, foi uma dura prova de confiança.
Constituido Bey Generalíssimo do exército otomano, esse Príncipe marchava à frente
de 80 mil maometanos que deviam invadir a Hungria, defendida pelo valoroso magiar
católico João Huniade. Ei-lo assim, na penosa contingencia de lutar contra seu irmão na fé.
Os guerreiros da cruz formavam um exército esplendido: os elmos faiscavam, as
espadas luziam, as armaduras espelhavam, os pendões e estandartes esvoaçavam altivos e
violentos, como desejosos de logo entrar na guerra.
Ouviu-se, então, o torpear de milhares de cavalos e o bater confuso dos pés de
milhares de homens que faziam tremer a terra. O condestável Huniade deu a ordem de
ataque: brados de entusiasmo se elevaram e a pesada cavalaria dos cruzados se jogou em
furiosa investida, sob nuvens de flexas que cobriram o céu. Os melhores guerreiros
hungaros, com a terrivel espada erguida, se arrojavam contra a massa dos turcos fazendo
recuar suas fileiras que não podiam esquivar-se aos golpes do ferro inimigo.
Os cadáveres amontoados embargavam o passo dos vivos. Aproveitando-se da
confusão, o Bey Generalíssimo do exercito maometano, Principe Scanderbeg, passou para o
campo dos seguidores de Jesus Cristo e começou a combater lado a lado com o católico João
Huniade.
Ante a fúria desses heróis, o exército do sultão ficou separado em dois pedaços, com
uma grande fenda no meio, toda cheia de cadáveres, espezinhados pelas patas do cavalo de
Scanderbeg. Um comandante turco morria berrando, cravado na terra pela lança de Huniade.
Apesar de 5 vezes mais numerosas, as tropas turcas não tinham podido resistir ao
impeto dos cruzados: 30 mil muçulmanos jaziam mortos no campo de batalha.
A notícia da fuga de Scanderbeg chegou à corte turca, levantando a cólera do sultão.
Foram enviados 40 mil soldados para trazer de volta o fugitivo. Porém, o jovem principe se
encontrava sob a proteção de Nossa Senhora de Scutari, a Mãe do Bom Conselho!
Reuniu Scanderbeg apenas 15 mil fiéis, dispostos a guardar a soberania de sua santa
religião. Entusiasmados pelo principe, aquele exército mal armado e mal vestido, possuia o
mais importante: a confiança em Nossa Senhora.
A batalha foi sangrenta. Talvez a mais sangrenta de toda a História albanesa. De um
lado, o ódio maometano, aliado à estrategia de um exército poderoso; de outro a fé, apoiada
em escassos recursos. O brado de guerra de Scanderbeg, ressoava, altivo e furioso. O
relampejar do seu ferro claro, enchia o ar de faicas por entre o esvoaçar de cranios e braços.
Tanto foi o sangue que correu, que a terra tornou-se lamacenta e as patas dos cavalos se
atolavam.
Os católicos albaneses, ao lutar sob a luz do gládio de Scanderbeg, tornavam-se
invencíveis. O exemplo de seu principe, enchia-os de ardor e arrostavam todos os perigos da
terra para matar e morrer por ele.
Para Scanderbeg a vitória não trazia sossego, nem comemorações festivas. Suas
batalhas entusiasmaram toda a Cristandade. Scanderbeg tornou-se o alento do povo, o animo
da luta, a certeza da vitória, o homem providencial, protetor de Scutari e o protegido de
Nossa Senhora.
Para o mundo muçulmano, seu nome causava consternação. O sultão reuniu um
exército de 200 mil homens, que ele mesmo em pessoa quis comandar contra o valoroso
chefe albanes.
Como nuvens de tempestade, os esquadrões do Islã cobriram a Albania. As fortalezas
mais bem defendidas, cairam uma após outra. E os poucos sobreviventes se reumniram em
Croja, a capital, onde uma fortaleza humana jamais cairia: Scanderbeg!
Com uma energia sobrenatural, ele lançava-se de maneira imprevista, de dia ou de
noite, no meio dos inimigos; cada um de seus soldados abatia 20 e sob sua espada —
brilhante como o fulgor de um raio — as cabeças dos muçulmanos caiam como flocos de
neve.
O exército do sultão diminuiu a tal ponto que o feroz muçulmano teve que retirar-se,
amargurado de dor e vergonha, perseguido pelos cristão que continuavam esse portentoso
massacre.
A Albania inteira quis se ajoelhar aos pés de Nossa Senhora em Scutari, para
agradecer tais vitórias. À frente deles, um heroi que tirava sua força da devoção, um humilde
principe que nada queria desta terra, o valoroso Scanderbeg, tão doce na paz como terrível
na guerra.
Scanderbeg devia morrer lutando. Não demorou a se aproximar sua derradeira hora.
Em seu leito de morte, confessou-se e recebeu o Santíssimo Sacramento. Os suores da
agonia, banhavam a face do guerreiro.
De repente, gritos terríveis: “os turcos! os turcos!” Ouvindo os alaridos, os olhos do
moribundo se entreabriram, seu rosto se reanimou, cessaram os suores da agonia.
Scanderbeg expulsou para longe de si a morte e foi levá-la aos inimigos da Cristandade!
O som triunfal de um trompete ecoou, solitário pela planicie imensa. Um cavaleiro
apareceu. Estava só. Seu fogoso corcel branco, escarvava a terra com fúria. E como uma
benção que pairasse sobre ele, o estandarte da Albania católica tremulava.
O último simbolo do heroísmo cruzado se levantava da tumba e avançava contra os
turcos! Por um instante, o terror petrificou aquele exército inteiro. Tanto era o pavor que o
cavaleiro inspirava, que a massa de infiéis recuava, espavorida.
A lamina prateada de sua espada faiscou no céu escuro, ouviu-se um grande grito de
guerra, o belo corcel branco empinou e Scanderbeg galopou contra a turba maometana.
O cruzado investiu como uma fera que tivesse represa dentro de si uma cólera de mil
anos! Era como se o raio despencasse, como se o próprio Deus combatesse. Aos seus golpes
certeiro todos tombavam, ninguém dele se aproximava e sua espada cheia de sangue não
parava, não cessava de dar a morte.
O indomito cavaleiro afundava-se, cercado por milhares de maometanos, quebrando
escudos e armaduras, decepando homens e varando montarias. Por mais que fizessem,
aquela coragem santa aumentava, os seus golpes se multiplicavam e apotencia de seu braço
não desafalecia.
Este último combate foi tão sangrento quanto o primeiro que Scanderbeg venceu sob a
proteção da Mãe do Bom Conselho. Ante seu olhar, faiscante de santa cólera, uma vez mais
fogiam espavoridos. Ao valoroso guerreiro ainda restaram forças para retornar ao leito de
morte.
Esta história de Scanderbeg encerra uma lição que se deve gravar em fogo nos
corações: não existem adversidades, por maiores que sejam, capazes de vencer um devoto de
Maria!

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