Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
TEMA
Análise do Discurso das campanhas antidrogas.
PROBLEMATIZAÇÃO
Uma das mazelas que aflige o nosso país é o narcotráfico, ou
seja, o tráfico ilegal de substâncias entorpecentes. De acordo com a
pesquisa realizada em 2001 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre
Drogas Psicotrópicas (CEBRID), publicada tanto em seu site1 quanto em
livros, cerca de 7% da população brasileira entre 12 e 65 anos (quase
três milhões e meio de pessoas) já fizeram uso, ao menos uma vez, de
maconha; por volta de 2,3% (pouco mais de um milhão) experimentaram
cocaína. O índice de dependentes da maconha chega a meio milhão, ou
seja, uma em cada sete pessoas que experimentaram tornou-se
dependente da droga. A pesquisa não aponta para o número de
dependentes de cocaína.
Ainda no campo das drogas ilícitas, o crack é notoriamente
conhecido, mas pouco se sabe estatisticamente a respeito de seu
consumo e sua correlata dependência.
Além dessas drogas, as mais conhecidas dentre as ilícitas, a
pesquisa revela também dados concernentes a outros tipos de drogas,
dentre as quais, interessa ressaltar as chamadas ´´solventes´´. São drogas
inaláveis (por serem muito voláteis, evaporam-se rapidamente, o que
facilita a inalação), e é grande a variedade de produtos que contém
substâncias desse gênero (volátil): colas, esmaltes, vernizes, aerossóis,
tintas, removedores, propelentes, graxas, ceras, fluídos para isqueiros,
azeites, resinas, corantes, soluções para lavagens a seco, perfumes,
combustíveis, etc. Lícitos, esses são produtos facilmente encontrados e
de custo muito baixo, o que pode explicar o grande número de pessoas
que já fizeram uso de algum tipo de solvente: dois milhões e setecentas
1
www.cebrid.epm.br
1
mil pessoas, ou 5,8% da população brasileira entre 12 e 65 anos, sendo
que cerca de quatrocentas mil (0,8%) tornaram-se dependentes dessa
droga, segundo a pesquisa do CEBRID.
Como dito, os solventes, nas formas citadas, são substâncias
lícitas, mas nem por isso podem ser desconsideradas, quando se quer
demonstrar um panorama de dependência química de ordem social.
Além delas, outras drogas legais de alto poder de dependência, como o
tabaco e o álcool, foram citadas na pesquisa do CEBRID, de modo que,
pela mesma razão, expor-se-ão seus dados: mais de trinta e dois milhões
de pessoas (68,7%) já experimentaram álcool e mais de quatro milhões
delas (11,2%) ficaram dependentes da droga. No caso do tabaco, quase
vinte milhões de pessoas (41,1%) experimentaram, tornando-se
dependentes pouco mais de quatro milhões ou 9% da população
brasileira entre 12 e 65 anos.
Esses dados, repete-se, servem para entendermos mais
detalhadamente, ao menos em números estatísticos, a situação do
consumo de entorpecentes e da dependência química no Brasil.
Entretanto, o presente estudo se concentrará nos dados referentes
às drogas ilícitas, aprofundando no devido momento seus aspectos
históricos e sociais, uma vez que as campanhas antidrogas, o objeto de
estudo desse trabalho, são contrárias apenas às drogas ilícitas.
Frente ao panorama apresentado acima, os Governos Federal,
Estadual e Municipal pouco têm agido, no que diz respeito ao trabalho
de Comunicação, para amenizar o quadro. Quase todas as campanhas
antidrogas realizadas na década passada, bem como as que estão em
curso nesta, veiculadas tanto na mídia televisiva, radiofônica ou
impressa, são financiadas por Organizações não Governamentais, como
a Associação Parceria contra Drogas (APCD). As campanhas dessa
associação têm como objetivo, de acordo com suas próprias palavras,
´´aumentar a consciência da população sobre os riscos e conseqüências
2
do uso de droga ilícitas, através da divulgação de campanhas
educativas de caráter preventivo contra o seu uso.´´
Porém, o que se tem visto é um aumento crescente de jovens que
fazem uso de drogas. Em um outro estudo promovido pelo CEBRID,
desta vez entre estudantes de 1º e 2º graus da rede pública de ensino de
dez capitais brasileiras, é possível perceber esse crescimento durante o
período de 1987 a 2004:
3
rumo para as próprias vidas; droga como instrumento de prazer e de uso
recreativo, hedonista; a droga como mais um objeto do consumismo, em
uma sociedade estruturada por um modelo econômico que se
fundamenta no capital, portanto, no consumo; e tantas mais razões de
caráter pessoal ou social.
Diante desta complexa rede que compõe o problema do auto-
entorpecimento, as medidas atenuantes podem ser de diferentes ordens,
englobando políticas de saúde pública, como criações de centro de
recuperação e apoio ao tóxico-dependente; medidas educativas de
prevenção nas escolas primárias e secundárias; dentre outros
instrumentos complementares que o Estado e a sociedade civil
organizada têm à sua disposição para intervir e diminuir o problema.
Nesse leque complementar, surgem justamente as campanhas de
combate e prevenção ao uso de drogas, que desempenham um papel
importante por terem um alcance populacional enorme, capaz de
disseminar as informações básicas e necessárias para se compreender
melhor a questão das drogas.
Entretanto, nisso que lhes é possível, ou seja, informar a
população acerca das questões que envolvem esse difuso assunto das
drogas, essas campanhas não vêm cumprindo com seus propósitos.
Sendo assim, quais são as falhas desses trabalhos de comunicação?
Nosso estudo pretende responder a essa e outras questões dela derivadas
ou a ela associadas, através da Análise do Discurso de algumas dessas
campanhas.
HIPÓTESES
4
Despreza-se as origens históricas e sociais do problema. Ao retratar uma
realidade dissonante da observada em seu círculo-social, o público-alvo
não se identifica com a campanha.
OBJETIVOS
Objetivo Geral
Destacar, através da análise do discurso, as falhas de
comunicação das campanhas antidrogas.
Objetivo Específico
Demonstrar os mecanismos pelos quais se construiu o discurso
aparentemente hegemônico de ´´combate às drogas´´.
JUSTIFICATIVA
Este trabalho tem importância social pelo fato de tratar-se o
nosso tema de um dos mais delicados problemas que vem atravessando
este país, e não somente ele. Um tema que muito tem sido discutido, que
tem gerado muitas reações de setores específicos de nossa sociedade
(des)organizada, mas que poucos resultados têm promovido.
Embora não seja o intento desse trabalho apontar sugestões para
melhorias do trabalho de comunicação das campanhas de ´´combate às
5
drogas´´, esta será inevitavelmente uma conseqüência do presente
estudo, ao menos pela lei dos contrários, ou seja: partindo-se da
constatação de que, à maneira torta que vêm sendo feitas as campanhas,
elas não cumprem com o que deveriam, pode-se concluir que, feitas à
maneira contrária, é bem provável que passem a cumprir.
METODOLOGIA
O presente trabalho se apoiou em pesquisas bibliográficas para
fundamentar aquilo proposto, que é fazer uma análise do discurso das
campanhas de combate às drogas. Foi necessária também uma pesquisa
documental a fim de selecionar tais campanhas.
ESTRUTURA DO TRABALHO
O presente estudo está dividido em cinco partes, sendo quatro
capítulos e a conclusão:
No primeiro, são apresentadas as ferramentas teóricas
fundamentais para a realização e compreensão do estudo. Percorre-se
sua formação histórica para melhor definir seus conceitos.
No segundo capítulo, tenta-se delinear a relação milenar que o
homem mantém com as diversas drogas, dando destaque às mais
consumidas, quer sejam lícitas, quer não. No primeiro momento,
descreve-se as variantes formas de consumo e sua evolução, revelando
aspectos próprios da chegada no Brasil de cada uma das drogas
estudadas. No segundo momento, aprofunda-se algumas questões: o
narcotráfico interno como parte de uma rede global de um lucrativo e
disputado negócio.
No capítulo terceiro, o objeto de estudo é delimitado e melhor
caracterizado. Desenvolve-se a abordagem sob três primas: o do
enunciador como produtor-transmissor do discurso; o do receptor
pretendido como público-alvo; e o da mídia utilizada para comunicar-se
com esse público.
6
No quarto capítulo, tem-se a análise propriamente dita do objeto
de estudo. Foi determinada uma divisão dos vídeos em grupos,
obedecendo às categorias argumentativas primárias que cada grupo
adota.
Na conclusão, retoma-se as hipóteses levantadas a fim de mostrar
quais puderam ser confirmadas pelo desenvolvimento do trabalho e
quais não. Faz-se, também, comentários do que se pôde concluir a partir
do estudo realizado.
7
CAPÍTULO I
1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2
Que se encontra fora das frases. O formalista russo entende que uma frase não pode
ser analisada separadamente do contexto sócio-histórico em que é expressa.
8
vertente européia que indica a importância da exterioridade da frase
como sendo o ponto fundamental da análise do discurso.
9
sua especificidade no interior dos estudos da
linguagem, sob o risco de permanecer numa lingüística
imanente.´ (BRANDÃO, 1996. p.17-18).
10
1.2 PERSPECTIVA TEÓRICA
1.2.1.1 Ideologia
Para conceituar ideologia, Marx e Engels distinguem a produção
das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas. Não
à toa os dados fundamentais às suas formulações são de natureza
empírica: ´´os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de
existência, aquelas que já se encontram a sua espera e aquelas que
surgem com a sua própria ação´´ (BRANDÃO, 2006. p. 19-20)
Assim sendo, ainda segundo o pensamento marxista, não há outra
forma de se produzir idéias senão correlacionada ao comércio material
dos homens, como uma linguagem da vida real. Com isso, tem-se que,
quando das observações empíricas, mostrar que a estrutura sócio-política
mantém ligação evidente com a produção.
O que acontece, contudo, é que as ideologias colocam o homem e
as suas relações de cabeça para baixo, quer dizer, ao invés de constatar a
realidade para se chegar às idéias, faz-se o contrário. É aí, então, que
nasce a ideologia: quando o sistema de idéias e de regras encontra-se
separado das condições materiais de produção, uma vez que quem
determina tais regras e idéias não são os mesmos que produzem o
material de condição de existência. Quem sai ganhando, assim, é o
trabalho intelectual que, sobrepondo-se ao trabalho material, acaba por
ditar as idéias da classe dominante.
A ideologia passa a ser meio de dominação social, onde uma
determinada classe tenta impor as suas idéias para perpetuar seu
domínio. Escondem-se as contradições que surgem dessa divisão social
do trabalho material, de um lado, e intelectual, do outro, para assim criar
a ilusão, ou seja, a abstração e inversão da realidade.
11
Ao citar Marilena Chauí, assim explica Brandão (1996) os
mecanismos de criação dessa realidade ilusória:
12
distanciamento entre o indivíduo e a realidade. E diz Althusser que é
esse distanciamento o responsável pela ´´alienação no imaginário da
representação das condições de existência dos homens.´´(ALTHUSSER,
1980. p. 80)
1.2.1.2 Discurso
Para se entender o que é e como se dá o discurso, é interessante
definir outros dois termos: enunciado e formação discursiva:
Enunciado é o elemento básico do discurso; difere-se da ´´frase´´,
termo designado pelos gramáticos e da ´´proposição´´, concebido pelos
lógicos; do mesmo modo, difere-se do ato da linguagem, muito embora
o enunciado seja necessário para determinar a existência e a legitimidade
de cada uma dessas estruturas das quais se difere. O enunciado, ao
contrário, não constitui uma estrutura, até mesmo porque ele não é em si
uma unidade, mas uma função capaz de fornecer concretude, no tempo e
no espaço, às unidades e estruturas que cruzam com essa função que
exerce.
13
Logo, seria mais adequado conceituar enunciado como sendo
14
competência de um sujeito falante quando constrói
frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas,
históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço,
que definiram numa dada época e para um
determinada área social, econômica, geográfica ou
lingüística, as condições de exercício da função
enunciativa.´´ (FOUCAULT, 1997. p. 136)
15
´´Um produto ideológico faz parte de uma realidade
(natural ou social) como todo corpo físico, instrumento
de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário
destes, ele também reflete e refrata um outra realidade,
que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si mesmo.
(...) Tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não
existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio:
não significa nada e coincide inteiramente com sua
própria natureza. Nesse caso, não se trata de
ideologia. No entanto, todo corpo físico pode ser
percebido como símbolo: é o caso, por exemplo, da
simbolização do princípio da inércia e de necessidade
na natureza (determinismo) por um determinado objeto
único. E toda imagem artístico-simbólica ocasionada
por um objeto físico particular já é um produto
ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto
físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade
material passa a refletir e a refratar, num certa medida,
uma outra realidade.´´(BAKHTIN, 1986. p. 31).
16
1.2.3 Objetivo da Análise do Discurso
Para a (AD), é imprescindível identificar qual o domínio maior
(formação discursiva) ao qual o discurso em estudo está ligado; quais
são os outros enunciados que este enunciado em questão mantém franco
ou obscuro pacto. Tal tarefa não implica remeter o discurso à sua
distante e possivelmente inatingível origem; é preciso, isso sim,
considerá-lo no jogo de sua instância.
Numa análise precisa de qualquer enunciado (aqui, grosso modo,
equivalente a discurso), Foucault (1997) propõe a renúncia de certas
verdades admitidas (as quais ele chama ´´temas´´) que somente servem
como garantia de uma ´´infinita continuidade do discurso e sua secreta
presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida´´ (FOUCAULT,
1997. p. 28). Dois são os temas: um é justamente este que torna a análise
histórica do discurso fadada a ser uma busca e repetição de uma origem
que não pode ser historicamente situada. E o outro a condena ser mera
interpretação de um ´´já-dito´´ que seria, simultaneamente, um ´´não-
dito´´, um discurso sem corpo, uma voz silenciosa, um discurso cuja
totalidade já estaria articulada nesse meio-silêncio que lhe antecede.
(FOUCAULT, 1997)
Suspendem-se essas formas cristalizadas do saber para que se
tenha um olhar mais apurado daquilo que parece descansar numa
irrefletida aceitação, como se se justificassem por si só, o que não pode
ser tomado como inquestionável, uma vez que essas formas pré-
determinadas de continuidade são frutos de uma combinação de regras
que devem ser conhecidas e cujas justificativas, controladas. Somente
assim poderá se dizer quais os discursos são legítimos e quais são
inadmissíveis.
Falando de outra maneira, uma vez suspensas e questionadas
essas unidades que constituem formas imediatas de continuidade, surge
diante do analista do discurso o ´´projeto de uma descrição dos
acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades
17
que aí se formam.´´ (Foucault, 1997. p.30. Grifado em negrito por
Foucault). O autor faz assim uma diferenciação da análise da língua
propriamente dita e dessa descrição dos acontecimentos discursivos: se
aquela, na ânsia de determinar um sistema lingüístico, trata de coletar
todo o corpo de enunciados para, então, ditar quais as regras que
subsidiam a construção de novos e infinitos enunciados, esta dita
descrição vai, no entanto, tentar tão-somente enumerar as seqüências
lingüísticas que tenham sido formuladas. Ainda que a enumeração seja
laboriosa e possa passar a fronteira da capacidade de registro, memória e
leitura, ela ao menos tem um fim. Cada uma dessas abordagens gera um
questionamento distinto: para o analista da língua é importante
responder às perguntas: quais as regras determinaram a construção de
um enunciado e, por tabela, segundo que regras enunciados semelhantes
poderiam ser construídos? Ao passo que a descrição dos acontecimentos
discursivos suscita outras questões: como apareceu um determinado
enunciado e porque este e não outro?
18
enunciação, porque este é que lhe dá forma. A separação ocorre apenas
para a análise da construção do sentido.
Essa distinção entre o que é dito e o ato de dizer faz surgir uma
outra distinção: o eu do enunciado (narrador) que se difere do eu da
enunciação (enunciador).
Em: ´´O gato morreu´´, sabe-se, por pressuposição, que existe um
eu (enunciador) que enunciou tal enunciado. Pode ser um autor literário,
uma criança vinda do quintal ou um repórter sensacionalista!
Em: ´´Lucas disse que o gato morreu´´, temos tanto o eu do
enunciado (narrador Lucas), como o eu da enunciação, que é aquele que
enunciou o enunciado ´´Lucas disse que o gato morreu´´.
19
2005). Tem-se um estado inicial, uma transformação e um estado final. A
narratividade é a transformação de conteúdo.
20
ocorre a passagem de um estado a outro. Esse enunciado mostra as
transformações do sujeito e do objeto dentro da narrativa (narratividade).
Sujeito e objeto são papéis narrativos, portanto podem ser representados,
tanto um quanto outro, por pessoas, coisas, animais, etc. Sujeito não é
necessariamente uma pessoa, assim como não se pode confundir objeto
com coisa.
Quatro são as fases de uma narrativa complexa (texto):
manipulação, competência, performance e a sanção (FIORIN, 2005).
Na manipulação, um sujeito (na acepção de papel narrativo) age
com o intuito de persuadir o outro. Este outro, então, é lavado a querer
ou dever fazer alguma coisa. Para manipular, o sujeito pode se valer de
vários meios, sendo os mais comuns a tentação (propõe-se uma
recompensa, um objeto de valor positivo); a intimidação (obriga-se a
fazer por meio de ameaças); sedução (quando se faz um juízo positivo
sobre a competência daquele que se quer manipular); provocação
(quando se faz um juízo negativo da competência do sujeito que se quer
manipular). (FIORIN, 2005).
Se na manipulação, o sujeito a ser convencido é impelido a agir
segundo o sujeito manipulador, é na fase da competência que o
manipulado atinge um saber e/ou poder fazer para que tal ação ocorra.
E será na performance que a ação, a transformação central da
narrativa acontecerá. É nessa fase que se dá a mudança de um estado
para o outro. Aqui também os sujeitos entram em conjunção ou
disjunção com objetos.
Na fase da sanção, constata-se a realização da performance (a
mudança central) e o reconhecimento do sujeito operante da
transformação. Pode ocorrer distribuição de prêmios e castigos.
Ao contrário do que se possa ter sugerido, essas fases não
ocorrem necessariamente na ordem apresentada. Tampouco é necessária
a presença de todas na narratividade para dar sentido a um texto,
21
podendo algumas dessas fases serem pressupostas, deduzidas ou mesmo
dispensadas.
Na semântica do nível narrativo, os objetos são revestidos de
valores. Há os objetos modais e os de valor. Os modais são ´´o querer, o
dever, o saber e o poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição é
necessária para realizar a performance principal´´ (FIORIN, 2005
p.37). Os objetos de valor, por sua vez, são aqueles com os quais se dá a
conjunção ou a disjunção, na performance principal. Numa palavra, o
objeto modal é o necessário para se conseguir outro objeto, que é o
objeto valor.
a) Sintaxe Discursiva
22
forma ocorre debreagem quando se projeta no enunciado as pessoas, o
tempo e o espaço do enunciado.
Em: ´´Eu vi que o gato morreu ontem no quintal´´, tem-se que o
eu da enunciação está inscrito no interior do enunciado, assim como o
eu do enunciado. Dá-se, então, uma debreagem enunciativa (a
construção do enunciado na 1ª pessoa).
Em: ´´A criança viu que o gato morreu ontem o quintal´´, tem-se
que somente o eu do enunciado está inscrito no interior do enunciado. O
eu da enunciação é pressuposto, visto que alguém haverá de ter dito tal
enunciado. Dá-se, assim, uma debreagem enunciva (a construção do
enunciado na 3ª pessoa).
Por outro lado, o mecanismo de embreagem ocorre quando há
´´uma suspensão das oposições de pessoa, de tempo ou de espaço.´´
(FIORIN, 2005 p.74). E assim exemplifica o autor: ´´(...)quando o pai
diz ao filho ´O papai não quer que você faça isso´, suspende-se a
oposição entre o eu e o ele, empregando-se a terceira pessoa no lugar
da primeira.´´ (FIORIN, 2005 p.74)
Na relação entre enunciador e enunciatário, aquele tenta
persuadir este, construindo sua argumentação através de artifícios
lingüísticos e lógicos. Os artifícios argumentativos mais freqüentes são a
ilustração e as figuras de pensamento.
Na ilustração, o enunciador (através do narrador) enuncia uma
proposição e, para comprová-la, tece alguns exemplos. Ilustra-se,
portanto, através de uma narratividade, a afirmação geral anteriormente
apresentada.
23
Ironia: quando se diz algo, querendo se dizer o contrário. Ou
seja, quando se diz no enunciado e se nega, na enunciação, o que
foi dito.
Metáfora: quando se cria, no contexto, uma outra possibilidade
de leitura de um determinado texto, e mais, quando entre essas
duas possibilidades houver um cruzamento de traços semânticos,
dá-se a metáfora.
Metonímia: quando entre duas possibilidades de leitura existir
uma relação de inclusão, dá-se a metonímia.
Eufemismo: quando aquilo que é dito (enunciado) atenua o que
se quer dizer (enunciação).
Hipérbole: quando aquilo que é dito (enunciado) intensifica o
que se quer dizer (enunciação).
Reticência: quando algo é subentendido, apesar de não dito. Ou
seja, se diz na enunciação, mas não aparece no enunciado.
b) Semântica Discursiva
Foi dito que no nível narrativo os esquemas são abstratos e que
ganham concretude no nível discursivo. De fato, é precisamente aqui na
semântica discursiva que os sujeitos e objetos estão suscetíveis a
diferentes formas de aparição. Deve-se dizer que, ainda aqui na
concretização, essas formas obedecem a diferentes graus de abstração,
porém de outra ordem. São os temas e as figuras (não são as figuras de
pensamento). Tematização e figurativização são dois níveis de
concretização do sentido, sendo que todos os textos tematizam o nível
narrativo, podendo este nível temático ser figurativizado ou não
(FIORIN, 2005). O tema (mais abstrato) tem uma função interpretativa e
predicativa do mundo, enquanto a figura (mais concreta) tem por função
descrever, representar a realidade do mundo. Tudo isso, é claro, segundo
a visão do enunciador. O tema é de natureza conceptual, é um
24
investimento semântico; a figura remete a algo do mundo natural, quer
existente, quer construído (FIORIN, 2005).
***
25
No material a ser abordado pelo presente trabalho, a
fundamentação teórica adotada será esta mesma descrita nos tópicos
antecedentes, de modo que se mostra necessário recuar séculos, milênios
no espaço-tempo e então tentar delinear o caminho dos laços humanos
com as diversas substâncias psicoativas, bem como as maneiras distintas
pelas quais elas foram e vêm sendo usadas, tratadas, mal-faladas,
desejadas, endeusadas, comercializadas, contrabandeadas, surrupiadas,
revestidas, enfim, de significações.
Em um segundo momento, após feita essa descrição dos
acontecimentos discursivos, passar-se-á à fase da análise propriamente
dita dos vídeos. Pretende-se, desta maneira, fazer emergir os múltiplos
sentidos inscritos no cada vez mais questionado, debatido e proliferado
discurso3 daquilo que se adotou chamar ´´combate às drogas´´. Sentidos
inscritos, mas nem sempre, muito menos para todos, visíveis.
3
De fato, o tema ´´drogas´´ é permeado por inúmeros discursos, diferentes na forma e,
por vezes, no conteúdo mas que se aproximam pela abordagem. Distantes uma das
outras, no tempo e no espaço, diversas sociedades compuseram ao seu modo um
discurso único, próprio, a este respeito. E mesmo quando se assemelham na postura
que adotam, bem como no espaço-tempo em que ocorrem, os discursos mantêm uma
heterogeneidade, seja pela distinção do sujeito falante – ou o que escuta, seja pelos
peculiares interesses que envolvem: se um Governo adota uma atitude de proibição a
certas drogas e, por conseqüência, toma para si o discurso de combate a elas, os
interesses em jogo são de outra ordem quando confrontados com os de um pai que
também se faz valer do mesmo discurso proibicionista para tentar manter o controle
sobre os filhos. De modo que, apesar de um tema poder tomar formas discursivas
próximas ou mesmo antagônicas, em qualquer um dos casos, uma pluralidade de
enunciados se apresentará, unidos pelo tema que tratam, separados pelas características
intrínsecas de formação de cada um. Desta maneira, quando se fala de ´´discurso de
combate às drogas´´, deve-se entender que se fala de inúmeros ´´discursos´´, aos quais
aquele nutre obrigatória ligação e dos quais futuros discursos serão tributários.
26
CAPÍTULO II
2 O HOMEM E AS DROGAS
27
De registro milenar, na Ásia Central, difundiu-se pela Eurásia por
ter múltiplas aplicações, migrou no século XVI para a América através
da Europa e África Oriental. E chegou ao Brasil no final do século
XVIII. Vinda também da África, a planta foi aqui introduzida pela coroa
portuguesa, que buscava ampliar suas atividades econômicas na colônia.
No início, seu uso era mais amplo entre os negros, o que conferia à
droga um estigma pejorativo, moral e socialmente.
Já a folha de coca, planta da qual se extrai o princípio ativo da
cocaína e do crack, é natural dos altiplanos andinos e seu mais remoto
registro data do século X a.C, época em que as civilizações pré-incaicas
a utilizavam, crentes que eram, como instrumento para derrotar um certo
deus maligno. Mais tarde, os incas acreditavam ser a planta um presente
divino para o homem suportar a fome e a fadiga. Apesar de não saberem
tirar da folha seu princípio ativo, esses povos misturavam substâncias
alcalinas à planta, de modo que conservava o seu efeito.
Foi durante a colonização espanhola na América do sul que as
folhas de coca chegaram à Europa. Porém, devido talvez aos estragos
que sofriam durante as longas viagens, as folhas não se popularizaram
entre os europeus, rejeição que durou até o começo do século XIX. No
entanto, a primeira publicação científica acerca do assunto data de 1708,
escrita por Herman Boerhaave, publicada na revista Institutiones
Medicae (CARNEIRO; VENÂNCIO, 2005). Logo na virada do século
XVIII para o próximo, despertou o interesse dos europeus pelas
propriedades farmacológicas da folha de coca: botânicos, médicos e
farmacologistas entusiastas da droga teceram apologias as mais diversas.
Mentes contrárias à euforia da descoberta alertavam sobre o potencial
uso abusivo da coca, comparando esta ao ópio. Somente em 1859,
quando Albert Niemann isolou o princípio ativo puro da planta que a
medicina passou a adotá-la. Como anestésico, foi utilizada no tratamento
28
de dores de dente e garanta, além de ter aberto novas fronteiras nas
cirurgias oftalmológicas.
Nessa época, o psicanalista Sigmund Freud, juntamente com
outro colega de profissão, efetuou testes medicinais com a cocaína, a fim
de substituir a morfina, sendo que as suas propriedades farmacológicas
já eram conhecidas nos Estados Unidos e já era usada em tratamentos
psiquiátricos. Os médicos alemães acabaram aprovando-a para os
mesmos fins. Conseqüentemente, a explosão do consumo da droga
ocorreu no final do século XIX, favorecida pelas descrições de Freud a
respeito dos efeitos ocasionados pela droga: bom humor, sensação de
segurança, autocontrole, grande capacidade de trabalho e lucidez.
(SOMOZA, 1990)
Da medicina para o comércio não levou muito tempo. Na
segunda metade do século XIX, os primeiros produtos cuja fórmula
tinha a substância da cocaína apareceram em forma de chás de folha de
coca, pastilhas para aliviar dores dentárias, tônicos e bebidas, alcoólicas
ou não. Duas bebidas conseguiram se destacar: o Vinho de Coca Mariani
e a Coca-Cola, do boticário norte-americano J.S. Pemberton. Veio a Lei
Seca, Pemberton trocou o álcool por noz de cola (continente de cafeína),
gaseificou a água e a anunciou como ´´a bebida dos intelectuais e
abstêmios´´ (ESCOHOTADO apud CARNEIRO; VENÂNCIO, 2005).
Em 1909, havia nos Estados Unidos 69 tipos de bebidas cuja fórmula
continha cocaína.
Em 1902, só na cidade de Cincinnati, no estado de Ohio nos
EUA, dez mil pessoas estavam viciadas. Em 1942, em Paris, a polícia
calculava algo em torno de oitenta mil viciados, sendo a maioria
representada por crianças e adolescentes. (SOMOZA, 1990)
A chegada da cocaína no Brasil é controversa, porém, sabe-se
que seu consumo chamou atenção na década de 70 e intensificou-se a
partir das décadas seguintes (EVANGELISTA, 2003).
29
Nota-se que a relação que o homem, desde há milênios, vem
mantendo com as inúmeras espécies de droga4 tem sido marcada por
litigiosos e incessantes interesses. Seja por questões religiosas, em nome
do mal ou do bem, seja por mercantis demandas, a difusão escancarada
desta e o boicote sorrateiro àquela outra droga sempre estiveram ligados
à disputa do poder, com a conseguinte manutenção da ordem ou eclosão
do caos.
Pelas especiarias das Índias, as grandes navegações vingaram;
pelo ópio, o império britânico fez duas guerras. Pelo açúcar e pelo
álcool, as colônias no sul da América escravizaram milhões de africanos.
Pela contenção do plantio e comércio da folha de coca e do cânhamo, a
nação que atualmente dita as regras tem investido largas quantias de
dólares.
Colocar lado a lado substâncias aparentemente díspares como o
açúcar, a cocaína, as especiarias hindus (canela, cravo, pimenta, noz
moscada, etc.), o cânhamo, o álcool, dentre outras, tem sua razão de ser:
a distinção entre droga e comida, alimento e remédio é, além de um fato
não comum a todas as épocas e sociedades, uma operação questionável,
vide os fracos parâmetros que tentam separá-los, mas que se revelam
insuficientes na determinação de reais e confiáveis fronteiras. Um chá
pode tanto ser ingerido por ser uma bebida agradável como para acalmar
um estômago embrulhado; uma planta pode servir de anestésico, de
alimento rico em nutrientes ou mesmo como fibras para a manufatura de
cordas ou tecelagem. (CARNEIRO; VENÂNCIO, 2005)
4
´´Do holandês ´droog´, que significa produtos secos. No período que vai do século
XVI ao XVIII costumava designar um conjunto de substâncias naturais utilizadas,
sobretudo, na alimentação e na medicina. Mas o termo também foi usado na tinturaria
ou como substância que poderia ser consumida por mero prazer. Tal noção continua
presente no Dicionário da Língua Portuguesa Recopilada, de Antônio de Moraes Silva,
de 1813, que define droga como: ´Todo o gênero de especiaria aromática; tintas, óleos,
raízes oficiais de tinturaria, e botica. Mercadorias ligeiras de lã, ou seda.”´
(CARNEIRO; VENÂNCIO, 2005)
30
Nos tempos contemporâneos, a corrente e incriminadora
determinação do que é uma coisa e do que é outra suscita a necessidade
da vigilância da produção e do consumo de certas substâncias. O
parâmetro que subsidia as proibições de consumo não pode vir dos
aspectos naturais das substâncias, como o efeito alterador da consciência
que algumas possuem, mesmo porque o álcool e o tabaco, apesar de
inclusas nesse grupo, são substancias lícitas. Muito menos o malefício à
saúde do corpo pode ser base das tais proibições, como argumento de
saúde pública, visto que o açúcar e a gordura, responsáveis por dois dos
grandes males da saúde das sociedades atuais, o diabetes e a obesidade,
não somente são livremente consumidos, como seu consumo é
propagandeado, incentivado.
Evidentemente que aspectos artificiais como o controle político,
jurídico e social são os determinantes do proibicionismo, que teve sua
origem no início do século XX, com a implantação da Lei Seca5 nos
Estados Unidos (1920 – 1933), e que vem se alastrando pelas décadas,
influenciado tomadas de decisões de muitos países. De modo geral, os
Estados sul-americanos e asiáticos que lucram com a produção em larga
escala da matéria-prima de substâncias psicoativas se vêem acuados
perante o cada vez mais influente intervencionismo ianque.
5
Esta lei proibia a produção e o consumo de bebidas alcoólicas em território
estadunidense.
31
o narcotráfico. Soa unânime o discurso de combate às drogas, quaisquer
sejam seus meios apresentados por instituições governamentais,
eclesiásticas ou acadêmicas.
A representação maciça que determinadas organizações puritanas
alcançaram nas classes políticas norte-americanas nos primeiros anos do
século XX coincide com o controle dos hábitos e condutas do seu povo.
Cada vez mais representativo nas camadas sociais do país, o puritanismo
ia ganhando força e influência nos rumos que a nação americana devia
seguir (RODRIGUES, 2002). Entretanto, o proibicionismo reivindicado
pelas vozes puritanas recebeu contornos concretos e, diga-se de
passagem, repressivos primeiramente em território estrangeiro. Em 1909
foi realizado em Xangai6 um encontro de nações que pretendiam discutir
a questão do consumo e tráfico de drogas. A conferência ficou marcada
por ser a primeira da história que determinou diretrizes, ainda que não
proibitivas, para o controle de um mercado até então livre.
Foram três anos depois, em resultado doutra conferência (Haia,
Holanda) patrocinada pelo EUA, que se assinou um documento em que
os países membros da reunião passariam a proibir o uso de opiáceos e
cocaína sem aval médico. O objetivo americano era pressionar o seu
Congresso a aprovar a proposta de lei que determinava não somente a
fiscalização estatal, mas a proibição do consumo dessas duas
substâncias. A promulgação da lei interna ocorreu em 1914 e o acordo
internacional devia, então, ser cumprido nas outras nações. Criou-se a
pressão de fora para influir a decisão interna. Agora a decisão do
Congresso americano é que vai incitar outras nações a seguir o mesmo
caminho, afinal há um acordo assinado.
6
Nessa época, nações européias, em especial a Inglaterra, detinham o controle
econômico e político dessa região asiática, por meio do comércio de ópio. O
proibicionismo americano, pauta da reunião em Xangai, visava, antes de mais nada e
ainda que sob pretextos morais, diminuir o poder europeu na Ásia (RODRIGUES,
2002).
32
Qualquer voz contrária à coibição do uso de drogas passou a
perder força durante essa década. A influência do proibicionismo tomou
tamanho poder que em 1920 não mais eram permitidos a produção, o
transporte, importação e exportação de álcool em território americano,
uma antiga reivindicação puritana, que se punha contra a ´´diabólica´´
tríplice jogo-álcool-luxúria. A conseqüência foi o surgimento de uma
rede, agora ilegal, de tráfico de álcool e, pouco depois, também de
cocaína. Surgiram como marginais aqueles que comandavam esse
comércio lucrativo: italianos, irlandeses, mexicanos, chineses e negros
(RODRIGUES, 2002). Como aplicação dos tratados internacionalmente
firmados, esses grupos bem definidos foram perseguidos por
constituírem o novo inimigo não só americano, mas global: o
narcotraficante. Ressalta-se o caráter estigmatizado que a esses grupos, à
margem da lei, foi incutido. Uma lei apoiada na justificativa da paz
social teve como conseqüências o preconceito e a discriminação de
classes e grupos étnicos.
Nas décadas que se seguiram, os EUA continuaram capitaneando
reuniões que discutissem e determinassem rumos para a questão das
drogas. Uma das mais importantes foi realizada em Dezembro de 1994,
em território americano, chamada Cúpula das Américas. Dentre vários
tópicos, havia um intitulado "A luta contra o problema das drogas ilícitas
e delitos conexos", que pedia às nações da América (exceto Cuba, única
que não participou da reunião) que fiscalizem melhor as transações
financeiras suspeitas de envolvimento com lavagem de dinheiro; que
fossem combatidas as organizações narcotraficantes; que fossem
substituídos cultivos ilícitos nos campos por culturas alternativas; que se
controlasse a circulação de insumos químicos e que se realizassem mais
encontros e acordos internacionais sobre o controle de substâncias
psicoativas (ARNAUD7, 1996 apud RODRIGUES, 2002).
7
ARNAUD, V. – Mercosur, Unión Europea, NAFTA y los procesos de integración
regional. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1996. apud RODRIGUES, T. M. S. – A
33
As drogas ilícitas, portanto, ainda são apresentadas como um
problema grave que ameaça a sociedade, a economia de livre mercado e
as instituições democráticas do hemisfério, uma vez que o uso de drogas
(as não tributadas) traz um enorme déficit para o Estado e, além do mais,
as organizações que lucram com o mercado estão relacionadas à
violência das cidades e às corrupções das instituições públicas.
(RODRIGUES, 2002).
No Brasil, até a década de 10 do século XX, não havia lei alguma
que proibisse a produção e o consumo de substâncias psicoativas. No
rastro do caminho americano, o governo brasileiro, que participara e
assinara os acordos do encontro na Holanda, adotou em 1921 uma lei
restritiva ao uso de ópio, heroína, cocaína e morfina. Sem prescrição
médica, usar essas substâncias configurava-se crime e os contraventores
deviam ser punidos. Agora, aquilo que no Brasil era socialmente imoral
e condenado por jornais conservadores do moralismo cristão, torna-se
também uma conduta criminosa e passível de punição não só mais
divina, mas também juridicamente humana. E mesmo a romântica
intoxicação dos filhos da Oligarquia da República Velha, que acontecia
livremente nos prostíbulos chics, passou a ser repreendida pelo Governo
no momento mesmo em que esta prática se disseminava nas classes
menos abastardas, como a plebe negra, parda e imigrante
(RODRIGUES, 2002).
A partir daí, o Brasil tornou-se assíduo freqüentador dessas
reuniões internacionais, sempre seguindo a cartilha ordenada por seus
realizadores, como o fez através do Decreto-Lei nº. 891 – 1938, editado
pelo Estado Novo de Getúlio Vargas que se fundamentava nas
determinações antidrogas assinadas nas convenções de Genebra de 1931
e 1936. A título de exemplo, outras determinações seguidas pelo governo
brasileiro foram aquelas decididas pela Convenção Única sobre
34
Entorpecentes, assinadas em 1961 na sede da ONU, que acabou servindo
de base para a reforma brasileira da lei sobre tóxicos, de 1967
(RODRIGUES, 2002). Modificações após modificações, sempre
acompanhando os conselhos internacionais, acabaram por editar a Lei de
Tóxicos, Lei n.º 6386 – 1976 que vigorou, em meio a ocasionais
mudanças, até 8 de Outubro de 2006, quando entrou em vigor a nova Lei
de Tóxicos n.º11.343, instituindo o Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas (SISNAD). Mais punitiva para o traficante e mais
branda para o usuário8, essa recente Lei mantém obediência à
Convenção de Viena de 1971, realizada também na sede da ONU, cujos
interesses proibicionistas dos EUA ficam claramente expostos neste
artigo:
8
Em relação à Lei de 1976, essa nova Lei torna o tráfico de drogas um crime passível
de detenção por maior tempo (no mínimo 05 anos). Ao usuário caberá cumprir penas
sociais, como prestar serviços a hospitais, entidades educacionais, programas
comunitários, dentre outros (BRASIL, Lei n.º 11.343 de 23 de agosto de 2006).
35
indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados;´´
(BRASIL, Lei n.º 11.343 de 23 de Agosto de 2006).
36
chegava aos Estados Unidos e faturava cerca de 200 bilhões de dólares
anuais (SOMOZA, 1990).
Porém, uma vez descoberto como um negócio lucrativo e em
progressiva expansão, outros países aderiram à entorpecente tendência
de mercado, criando-se, assim, uma rede mundial de narcotraficantes.
Para que o narcotráfico aconteça, são envolvidos desde o camponês que
cultiva as plantas que servem de matéria-prima até altos consultores
financeiros americanos e banqueiros europeus, formando uma
verdadeira multinacional, que, segundo o ex-presidente peruano Alan
García, “é a única multinacional de sucesso da América Latina”.
(SOMOZA, 1990).
Na passagem dos anos 80 para a década seguinte, configurou-se
um quadro mundial de tráfico de drogas que ´´permitiu a formação de
uma poderosa corrente que alimenta milhares de pessoas (...) e a
produção de riquezas suficientes para corromper funcionários estatais,
chegando ao paradoxo de financiar abertamente um governo.”
(SOMOZA, 1990).
No Brasil, este quadro despontou-se no final dos anos 60. Nessa
época, por força da ditadura militar, os chamados guerrilheiros urbanos
cumpriam suas penas na penitenciária da Ilha Grande, no Estado do Rio
de Janeiro. As guerrilhas, então, trocavam informações com os
assaltantes e seqüestradores que se encontravam encarcerados na mesma
ala (RODRIGUES, 2002). Com a anistia, os guerrilheiros foram
libertados, deixando para trás um ambiente conflituoso entre as facções
do cárcere. Usando táticas organizacionais aprendidas com a guerrilha,
os presos não beneficiados pela anistia e acuados pelo domínio exercido
por outros grupos da penitenciária, criaram um grupo de autodefesa
nominado Falange Vermelha, embrião do Comando Vermelho (CV).
Esse grupo dominou, no início dos anos 80, o sistema
penitenciário fluminense, facilitando a fuga de alguns detentos que, nas
37
ruas, aplicavam aquilo que em teoria fora aperfeiçoado na Ilha Grande: o
assalto a bancos. Contudo, um novo negócio, lucrativo e em expansão,
desviava os rumos do CV, o tráfico de drogas.
Nesse período, a demanda por cocaína na Europa e nos Estados
Unidos crescia a tal velocidade que foi preciso que países andinos 9
responsáveis por produzir a cocaína aumentassem em larga escala a sua
produção, criando excedentes para exportar. Nesse cenário, o Brasil
surgiu como via de passagem do produto final para os mercados
estrangeiros, com a devida retirada da parcela que abastecia o mercado
interno, é claro. Nos anos 80, sob a chefia do Comando Vermelho, que
dominava os mercados varejistas no Rio de Janeiro, o Brasil entrou de
vez na rota do narcotráfico internacional. O poder dessa organização se
tornou tamanho que as áreas por ela dominadas seguiam leis próprias,
surgindo a figura do ´´dono do morro´´, onde o Estado era desafiado a
entrar. O poder era exercido através da coerção e do assistencialismo, o
que incitava na população das favelas respeito, admiração, dependência
e medo (RODRIGUES, 2002).
Enquanto aqui o narcotráfico ganhava poder, nos Estados Unidos
o então presidente Ronald Reagan editava um documento chamado
National Security Decision Directive on Narcotics and National Security
(NSDD-221), onde o Governo "oficializa sua percepção de que a
principal ameaça aos Estados Unidos e ao hemisfério ocidental passara
a residir na simbiose entre terrorismo de esquerda e narcotráfico (...)
´´(RODRIGUES10 apud RODRIGUES, 2002).
Com o fim da guerra fria, o inimigo americano já não é mais o
comunismo e o narcotráfico assume esse papel, como ficou emblemático
9
Bolívia e Peru ficavam, nesse época, responsáveis pelo processo inicial que é a feitura
da pasta-base. A Colômbia transformava a pasta em cocaína pura e revendia a grandes
atacadistas internacionais.
10
RODRIGUES, T. – Política e drogas nas Américas. Dissertação de Mestrado. São
Paulo, PUC-SP, 2001 apud RODRIGUES, T. – A infindável guerra americana.
Brasil, EUA e o narcotráfico no continente. São Paulo Perspectiva. São Paulo, v. 16,
n. 2, 2002.
38
na captura do presidente do Panamá, Manuel Noriega, realizada na
Cidade do Panamá pela marinha americana. Nesse momento as
acusações que lhe pesavam eram de ´´conspiração por tráfico de drogas
´´, em lugar da agora inútil e desinteressante denúncia de ´´conspiração
ao comunismo´´ (RODRIGUES, 2002).
Na onda norte-americana, o Brasil intensifica suas ações
repressoras ao tráfico e consumo de drogas: constrói a prisão Bangu I,
feita para isolar traficantes; infiltra-se nos morros na tentativa de conter
a venda de drogas; declara guerra ao Comando Vermelho e assiste a um
terrível derramamento de sangue de civis e policiais, que vem
perdurando ao longo desses anos todos. O país, desta maneira, se
incorpora aos ditames da política internacional antidrogas.
Outro momento crucial e justificativo para a intensificação da
repressão foi quando se tornou público o envolvimento de deputados
federais, estaduais e juízes nas negociações narcóticas. Em 1991, uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), formada no Congresso
Nacional, iniciou as investigações que mais tarde demonstraram as
relações do deputado Jabes Rabelo (PTB-RO) com o tráfico. Cinco anos
depois, o nome de outro político, o deputado e policial militar
Hildebrando Pascoal (PFL-AC) surgiu em meios aos inquéritos como
sendo o que comandava um grupo de extermínio a serviço de traficantes
acreanos. Em 1999, já expulso de seu partido, mas ainda com direitos
políticos, Hildebrando foi apontado por outra CPI como líder de uma
rede de narcotráfico que atuava no Brasil, Bolívia e Peru. Provas
suficientes para cassá-lo e prendê-lo. O que de fato aconteceu.
A conseqüência mais expressiva foi uma ementa de Lei 11 que
criou a Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), em 1998. Logo no
ano seguinte, o órgão coordenou juntamente com as forças armadas e a
11
O governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, através do Decreto n.º
2.623, fez esta ementa na Lei de Tóxicos de 1976.
39
Polícia Federal, uma ação12 no Estado de Pernambuco, prendendo
camponeses e queimando plantações no chamado polígono da maconha.
Percebe-se que os caminhos trilhados pelo Governo brasileiro
quanto à questão das drogas foram marcados por influências externas,
cujos objetivos aparentes (enfraquecer grupos criminosos; diminuir a
violência; atingir, enfim, a paz social) velavam o interesse maior: o
poder econômico, político e de controle social.
Para os países que mais lucram com o sistema capitalista e para
específicas classes de uma sociedade (inclusive do Brasil) que também
abarcam grande pedaço do bolo, o tráfico ilegal de substâncias
psicoativas realmente surge como um empecilho, digamos, de mercado,
um concorrente ´´desleal´´, quando lealdade significa ter autorização
institucional, da lei para praticar a venda e a compra de um determinado
produto.
Não é de se estranhar que tais países, e suas classes empresariais,
se coloquem contrárias ao uso de drogas, ganhando força e adesão de
políticos e empresários de nações que querem (ou devem) se enquadrar
no atual sistema econômico, por similares interesses daqueles outros.
No entanto, era de se esperar que as deliberações do Governo
brasileiro e da iniciativa civil, religiosa ou empresarial, o que por vezes
se confundem, defendessem o interesse do povo, entendido em sua
organização social. Não se quer sugerir que esses grupos agem de forma
sistemática e predeterminada, como em um maquiavélico complô. São
eles, mais do que autores, vítimas de todo um sujo e disputado jogo de
interesses mais profundos do que suas próprias ambições mercantis,
econômicas e morais. Mas nem por isso deixam de ser responsáveis pela
difusão de uma preconceituosa e discriminatória imagem de tudo que
está ligado às drogas.
12
Ficou conhecido como Operação Mandacaru e custou aos cofres públicos quatro
milhões de dólares (RODRIGUES, 2002.)
40
CAPÍTULO III
3 DO OBJETO DE ESTUDO
Serão analisados alguns vídeos produzidos pela Associação
Parceria Contra as Drogas (APCD), uma organização não governamental
formada por um grupo de empresários do setor privado e parceiros
diversos, como agências de publicidade, emissoras de televisão e rádio,
editoras de jornais e revistas, dentre muitos outros que, mais pra frente,
serão identificados. Esses vídeos, ´´educativos e de caráter preventivo
ao uso de drogas´´13, no dizer da própria associação, têm sido veiculados
nas mídias televisivas desde o ano de 1996 e podem ser encontrados na
rede mundial de computadores, no site oficial14 da APCD. São peças que
duram em média 30 segundos, divididas de acordo com o viés adotado
por cada campanha, como, por exemplo, ligação das drogas com a
violência, a responsabilidade dos pais, os riscos na maternidade e outros.
Há também veiculação de peças radiofônicas e impressas. Porém,
13
Ver site da APCD (acesso em 12/12/2006)
14
http://www.contradrogas.org.br
41
como o material usado no rádio é mera transposição do áudio dos vídeos
apresentados na mídia televisiva, e o conteúdo da mídia impressa faz
referência às peças da televisão, nosso trabalho tomará como objeto de
estudo somente as peças veiculadas por essa última mídia.
´´A Associação Parceria Contra Drogas é uma ONG sem fins lucrativos, em
operação desde abril de 1996, constituída por vários empresários da iniciativa
privada, cuja missão é aumentar a consciência da população sobre os riscos e
conseqüências do uso de droga ilícitas, através da divulgação de campanhas
educativas de caráter preventivo contra o seu uso.
42
sejam criadas e comunicadas à população de forma criteriosa e honesta e, ao
mesmo tempo, de maneira interessante. São parceiros estratégicos: as
emissoras de televisão e rádio, as editoras de jornais e revistas e as empresas
de mídia exterior e mídia alternativa pois são elas que, de forma totalmente
gratuita, fazem com que as mensagens cheguem a todos os lares brasileiros.
Também trabalham de forma voluntária os profissionais de agências de
propaganda, produtoras de cinema e gráficas, assegurando que a criatividade
e alta qualidade das peças produzidas se responsabilizem por conseguir a
atenção e memorização das informações veiculadas. Todas as agências de
propaganda podem criar para as campanhas da Parceria.´´
PARCEIROS:
43
Filantrópica Safra, Klabin S/A, Liberty Seguros S.A - Há 100 anos fazendo
mais por você., Whirlpool S.A - Unidade de Eletrodoméstico, Pfizer, Procter &
Gamble.
Colégio Marista Dom Silvério, Comad São José dos Campos, Fundação Itaú
Social.´´
APOIADORES:
Alumni, American Airlines, Artfix Digital & Screen Printing, Assist Telefônica,
Atlântica Imobiliária Administradora, Bar des Arts, Best Design Gráfica
Expressa, Brother Internacional Corporation do Brasil, Buffet Collomba, Café
Sachê, Careware Multimídia, Cultura Inglesa, Colégio Índio Peri, DHL,
Editora Gente, Editora Gráficos Burti, Embratel, FIESP - Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo, Fuji Films, Gráfica Chesmann, Gráfica
Ribaldo, Gilberto Aronso - G.A. Eletrodomésticos Ltda., Hotel Othon S/A, HP-
Hewlett Packard Brasil, IMESP - Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
Inal Ind. Nacional de Latex, Inpacel, Infraero, Italian Coffee, Kodak, Label
Participações, L´Hotel, La Terrina Restaurante, Lagoinha Transportadora,
Lindoyana de Águas, Locaweb Soluçoes Completas em Hosting, Mack Color,
Maksoud Plaza, Metro, Microsoft, Mina d`agua, Motorola, Multiservice
Informática, Multipark, MPM Ar Condicionado Refrigeração e Comércio
Ltda, Native Alimentos, Orgânicamix, Paulista Grill Jardins, Papelaria
Tráfego, Personal Despachantes, Pão de Açucar - Teodoro Sampaio, Planalto
Ind. de Artefatos de Papel, Portal Terra, Pousada Maravilha, Prefeitura
Municipal de Jundiaí, Prefeitura Municipal de Praia Grande, Prefeitura
44
Municipal de São José dos Campos, Rede de Hotéis Sofitel, Rimed,
Restaurante Bassi, Restaurante Gigetto, Restaurante São Paulo I, SBJ
Produções, Semp Toshiba, SENAC, SESC, Sistema Banstur de Turismo,
Scientific Post, Speedy, Symantec do Brasil, Shopping Eldorado, Shopping
Iguatemi, Shopping Higiênopolis, Shopping Paulista, Shopping West Plaza,
TelSul, Transamérica Rede de Hotéis, Unidas Rent a Car, Uol, Videolar
Multimídia, Varilog, Vivo, W3 Vídeo e Xerox do Brasil.´´
45
pelos assessores de imprensa Vivian N. Keller e Carlos Murillo de Oliveira.
Fonte: Assessoria de Imprensa APCD.´´
3.3 O RECEPTOR
Para quem é dirigida a mensagem contida nos vídeos? Qual o
enunciatário visado pelo enunciador? A julgar pelo que diz a APCD
nesta passagem do texto supracitado: ´´(...) cuja missão é aumentar a
consciência da população sobre os riscos (...)´´, o público-alvo das
15
Fonte: site da APCD.
46
campanhas é todo o povo brasileiro, a população em geral. Mas não é
bem assim. Existem aí algumas triagens inseridas na própria composição
do vídeo, das mídias escolhidas, da abordagem do tema. Ora, somente
aqueles que têm rádio ou televisão podem constituir a recepção. Essa é
uma triagem técnica e óbvia. Há outra que é de caráter mais analítico, e
tem a ver com as personagens, o ambiente, o vocabulário, tudo
demonstrando que o público a ser atingido, majoritariamente, são os
jovens, especialmente os de classe média. Em alguns vídeos, existem
mesmo referências literais a eles. Há também, em menor número,
mensagens nitidamente direcionadas para outros públicos, como os pais,
ou empresários, ou gestantes.
3.4 A MÍDIA
A TV é uma mídia de vasto alcance popular e constitui aquilo
que se chama de cena validada, quer dizer, algo já enraizado na
memória coletiva, seja um modelo rejeitado, seja um valorizado
(MAINGUENEAU, 2005). A TV é precisamente uma cena validada de
um modelo valorizado: tudo aquilo por ela transmitido recebe contorno
senão de verdade, ao menos de verossimilhança, ou seja, algo similar
(símile) ao verdadeiro (vero), o que garante a esta mídia certa autoridade
para dizer aquilo que bem (ou mal) entender. É, pois, em função disso
que ela própria se torna uma ferramenta de persuasão, por esse apelo que
se faz à autoridade em que se tornou.
47
CAPÍTULO IV
16
Ainda que tenham sido separados pelo tema fundamental abordado, os vídeos podem
apresentar mais de um tema e estes novos temas podem não ser abordados pelos outros
vídeos de seu grupo. Portanto, o que os une não é a concordância em todos os temas,
mas no tema principal.
48
Vídeos que tematizam a responsabilidade dos pais com seus
4.1.1 Escola
Percurso figurativo: um garoto entre 7 e 9 anos protagoniza o
vídeo, que se passa na favela de um morro. Começa ele entrando numa
casa (enquanto na tela vai se escrevendo AULA DE...), então aparecem
outros meninos da mesma faixa etária ´´bolando´´ cigarros de maconha,
trouxinhas de cocaína (momento em que completa-se a frase:
...QUÍMICA). Ouve-se um sino, semelhante aos de colégio. Muda-se a
cena: o garoto aparece sentado na calçada brincando com outra criança,
quando chega uma pessoa dentro de um carro, que não condiz com a
realidade financeira do ambiente. O garoto entrega um papelote e recebe
uma grana: AULA DE MATEMÁTICA é o que se lê na tela, obedecendo
àquele mesmo esquema de manter em suspenso a revelação da matéria
da aula. Bate o sino. O garoto agora está empinando pipa na rua.
Aparece a polícia (AULA DE...), ele corre, se escondendo nos labirintos
do morro (...EDUCAÇÃO FÍSICA). Toca o sino. Ele chama outros
meninos pra perto de si. É a HORA DO RECREIO e eles acendem um
baseado. Com esta cena em segundo plano, aparece uma tarjeta, em
primeiro plano, com a inscrição: ESCOLA DO CRIME: APROVADO.
49
O locutor, in off17, completa a mensagem: QUEM USA DROGAS,
FINANCIA ESSA ESCOLA. PREPARE-SE: LOGO UM RECÉM-
FORMADO CRUZA COM VOCÊ.
17
Expressão em inglês que indica que o locutor não participa da cena, mas tão-somente
a narra ou a comenta.
50
Comentários
O fato de a figurativização do tema ocorrer na favela de um
morro constitui também o argumento da cena validada. A relação das
personagens e a história que é contada naquele ambiente retomam cenas
que cotidianamente são apresentadas pelos meios de comunicação ou
por conversas informais. Por receber esses contornos verossímeis, a peça
publicitária garante à sua mensagem uma força de persuasão que
definitivamente não se encontra na veracidade de seu conteúdo, mas
simplesmente da composição de sua forma.
O sino que se assemelha escolar e que toca a cada mudança de
cena; a inscrição das matérias e da hora do recreio, em giz, na tela; a
tarjeta com a inscrição ESCOLA DO CRIME: APROVADO; o termo
RECÉM-FORMADO na fala do locutor; eis os sinais que constroem a
metáfora, comparando o tráfico de drogas a uma escola. Ocorre também
a ironia: espera-se que uma escola forme um cidadão e não um bandido.
Na construção do texto persuasivo, o sujeito também baseia seu
discurso na manipulação por intimidação: ´´Logo um recém-formado
cruza com você´´ e no raciocínio apodítico, no qual a argumentação
recebe um tom de verdade inquestionável, fechada em si mesma, não
dando ao receptor nenhuma chance de refutação: ´´Quem usa drogas,
financia essa escola´´. Essas são marcas do discurso autoritário, a ´´(...)
forma discursiva em que o poder mais escancara suas formas de
dominação.´´ (CITELLI, 2005)
A maneira como são retratadas e opostas a protagonista (garoto
pobre, que serve ao tráfico) e a antagonista (jovem de classe média, que
se serve do tráfico) cria a ilusão de que aquela é parte invariavelmente
integrante do tráfico de drogas, enquanto esta apenas está integrante,
pois basta parar de usar drogas e sua culpa no jogo social desaparece. Já
o menino pobre, infere-se, não tem jeito, restando a ele esperar inerte e
marginalmente pelo desaparecimento do tráfico.
51
4.1.2 Seu Dinheiro II
Percurso figurativo: num ambiente escuro, aparentando um beco,
um jovem branco, bem vestido, de aparência saudável troca uma quantia
de dinheiro por droga com um jovem negro, encapuzado, de aparência
não tão boa assim. In off, diz o locutor: O QUE VOCÊ FAZ COM SEU
DINHEIRO É PROBLEMA SEU. A cena muda, aparece o traficante
trocando o dinheiro por projéteis de arma. In off, o locutor: ´´O QUE
ELE FAZ COM SEU DINHEIRO TAMBÉM É PROBLEMA SEU´´. E
completa: ´´O TRÁFICO É DEPENDENTE DE VOCÊ. QUEM
COMPRA DROGAS, FINANCIA A VIOLÊNCIA´´. Fecha com a
assinatura da APCD.
Comentários:
52
Também neste vídeo o enunciador constrói seu fazer persuasivo
através do raciocínio apodítico (´´o tráfico é dependente de você.´´ e
´´quem compra drogas, financia a violência´´) e manipula o enunciatário,
por intimidação, ao sugerir que a violência gerada pelo tráfico pode
vitimá-lo.
Ao dizer ´´o que você faz com seu dinheiro é problema seu´´, o
enunciatário faz referência, extralingüística, a um dos conhecidos
argumentos (´´meu dinheiro é problema meu´´) daqueles que defendem
o uso de drogas. E ao completar: ´´o que ele faz com seu dinheiro
também é problema seu´´, o enunciatário desconstrói o primeiro
argumento, por meio de um silogismo simples: você financia o
traficante; o traficante gera violência; você será vítima da violência. A
fragilidade das premissas invalida a conclusão.
Esse mesmo processo argumentativo se encontra no término da
peça, pela afirmação categórica: ´´quem compra drogas, financia a
violência´´. Não estão em pauta outros fatores geradores da violência.
Marca de um discurso omisso, falho, apodítico.
4.2.1 Censura
Percurso Figurativo: em uma rua de aparência ruim, um garoto
mulato entre 10-12 anos, de trajes rasgados, tem o rosto encoberto por
um daqueles mosaicos cuja função normalmente é não revelar o rosto de
menores que cometeram algum crime. Diz o garoto: ´´AÍ, MANO, É
MUITO FÁCIL DE ENTENDER O FUTURO DE QUEM USA
53
DROGAS E O FUTURO DE QUEM NÃO USA. QUER VER, Ó?
PRESTA ATENÇÃO´´. Então, mantendo-se por atrás do mosaico, ele
diz: ´´USANDO DROGA´´. No momento seguinte ele se curva para um
lado, deixando o mosaico onde estava, revelando assim seu rosto, no que
diz: SEM USAR DROGA. E passa a alternar entre o disfarce do
mosaico e a fuga dele, repetindo a fala própria de cada instante: ´´COM
DROGA´´, ´´SEM DROGA´´. E conclui: ´´AÍ, CARA, SE VOCÊ
QUISER TER FUTURO, NÃO USE DROGAS, FALÔ?´´.
54
A câmera em movimentos lentos confere certa tranqüilidade ao
vídeo. O plano americano que emoldura o garoto cria um
distanciamento eqüidistante entre a intimidade e a indiferença, o
que proporciona um caráter ao mesmo tempo seguro e
aconchegante.
A empatia do garoto (sorriso, piscada,) reforça esses caracteres.
A sua linguagem, coloquial, e preenchida de gírias (´´mano´´,
´´cara´´, ´´falô´´), ao sugerir uma leveza e informalidade, tenta
aproximar o enunciatário do enunciador.
O ritmo da música (animado, lembra um samba) enfatiza o
caráter de descontração. Por isso, também tenta aproximar o
enunciatário do enunciador.
Comentários
A oposição identidade / alteridade sugere que o indivíduo que se
droga o faz por ser fraco, por não ter opinião própria, por ser
influenciável por outrem (alter). Esse recurso argumentativo constitui,
assim, uma agressão à inteligência e ao caráter do indivíduo.
Percebe-se que o mosaico, empregado como símbolo da
marginalidade, é invariavelmente concedido àqueles que usam drogas.
Assim, aproxima-se o usar drogas à prática do crime18. A relação é
apresentada pelo enunciador de maneira inquestionável, como verdade
absoluta. Desconsidera-se as inúmeras e distintas maneiras de se fazer
uso de drogas e coloca todos aqueles que se drogam em um só patamar:
o marginal.
O raciocínio apodítico, marca do discurso autoritário, aparece na
fala (até mesmo carismática) do garoto: ´´aí, cara, se você quiser ter
futuro, não use drogas, falô?´´. Fica clara a idéia de que o uso de drogas
implica, necessariamente, a perda de um futuro promissor.
18
O uso de drogas por si só é um crime, previsto em lei. Porém, alude-se aqui a outras
práticas criminosas, de caráter mais danoso, talvez mesmo hediondo.
55
4.2.2 Pedido
Percurso figurativo: a família reunida à mesa. O pretenso genro
toma a palavra e, referindo-se aos pais de sua namorada, diz que gostaria
de aproveitar o momento para pedir em casamento a sua mão, porém,
por mais que se esforce, não consegue se lembrar do nome dela. O pai
da jovem moça, com voz pesada, recorda-lhe o nome da filha e se
levanta da mesa. A situação fica claramente desconfortável para todos. O
locutor, in off, enfatiza: ´´A MACONHA MATA... DE VERGONHA.´´
56
sala revelam seu sentimento de contrariedade e indignação. O
sentimento de vexame por parte do pretenso genro é expressado em seu
rosto cada vez mais aflito e quando se coloca cabisbaixo. O uso da droga
colocado como causa de um momento humilhante é manifestado, além
de o tudo mais, pela oposição entre a felicidade aparente das
personagens no começo do vídeo (troca de sorrisos, olhares tenros) e o
visível mal-estar que se encontra no final.
Comentários
No seu construir persuasivo, ao expressar uma ligação inexorável
de causa e efeito entre o consumo de droga e situações de mal-estar, o
enunciador não oferece ao enunciatário o poder de reflexão, mas
simplesmente a ele impõe sua mensagem, característica do discurso
autoritário.
Quando diz o locutor: ´´A maconha mata... de vergonha´´,
reforça-se, num primeiro momento, a idéia da ligação entre o uso de
drogas e a morte. Vale ressaltar que, por colocar o termo maconha como
sujeito da ação matar, ele transfere do indivíduo para a droga a ação
ativa, como se esta última tivesse vida própria, sendo que, não custa
lembrar, a ação ativa pertence ao indivíduo (consumir droga), e a droga
age passivamente (é consumida). Essa distorção contribui para aquilo
que este trabalho decidiu chamar de ´´demonização das drogas´´.
Num segundo momento, com o complemento da frase (´´de
vergonha´´), o enunciador modifica o sentido anteriormente proposto,
dizendo agora que o consumo da droga coloca o indivíduo em situações
vexaminosas. A modificação do sentido repousa na interpretação que se
faz do verbo matar, que assume duas acepções (a literal e a figurada), o
que constitui, essa ambígua interpretação, uma metáfora, um
57
deslocamento de um significado para outro, coexistindo as duas
acepções.
4.2.3 Promoção
Percurso figurativo: um homem de terno e gravata, por trás de
um balcão, em um tom debochado, simula a venda de drogas. Para
conseguir os clientes, ele aponta as ´´vantagens´´ de seus produtos e
mostra adolescentes em situações patéticas em função do uso dessas
drogas. Assim é construída sua fala: GRANDE LIQUIDAÇÃO DE
NEURÔNIOS! APROVEITE: COMPRANDO AGORA OS NOSSOS
PRODUTOS, VOCÊ SE TRANSFORMARÁ NUM IMBECIL
FUMADO, OU UM IDIOTA CHEIRADO OU MESMO UM DÉBIL-
MENTAL PICADO. MANDE TODO SEU DINHEIRO AGORA.
DEPOIS O DO SEU PAI, DA SUA MÃE E DE QUEM MAIS VOCÊ
CONSEGUIR. NÃO TEM DINHEIRO PARA DROGAS? QUE
VERGONHA! NÓS ACEITAMOS TOCA-FITAS, RELÓGIOS, TÊNIS.
USE DROGAS. VOCÊ SÓ NÃO SERÁ UM JUMENTO PERFEITO
PORQUE NINGUÉM É PERFEITO.
In off, o locutor completa: SEJA BURRO: USE DROGAS. A peça
finaliza com a marca da APCD e a inscrição: DROGAS. NEM MORTO!
58
No nível narrativo, a construção da narratividade se apóia na
ironia. Portanto, há uma oposição entre aquilo que é dito (enunciado) e
aquilo que se quer dizer (enunciação). Analisando a enunciação, temos
que a performance, ou seja, a transformação central da narrativa é fazer
com que o enunciatário entre em conjunção com a liberdade (objeto
valor). Para isso, é preciso que na fase da competência ele seja dotado de
um saber (as drogas prejudicam a saúde, levam a situações ridículas),
que é o objeto modal. A manipulação se dá por meio de provocação
(como eu sei que você é burro e jumento o suficiente para comprar
drogas, eu lhe ofereço drogas). A sanção vem através da constatação de
que o enunciatário não usa mais drogas, logo, está livre.
Comentários
A ironia construída pelo enunciador é marcada por termos
ofensivos: imbecil, idiota, débil-mental, jumento, burro.
As cenas em que são representadas as personagens adolescentes
lhes conferem uma aparência ridícula, patética e ingênua: o jovem que
bate com o sorvete na própria testa; o outro jovem em roupa de super-
herói com cara de bobo, e o rapaz que tenta se eletrocutar com o abajur e
a tomada.
O enunciador apresenta na fala do narrador uma ´´grande
liquidação de neurônios´´, aludindo aos efeitos negativos do consumo de
droga. Desta maneira, ele constrói um argumento fechado e simplista,
59
sem explicar que esses efeitos vêm com o consumo prolongado e intenso
de drogas. Por meio da generalização apressada, ele tenta persuadir o
enunciatário.
No seu fazer persuasivo, o enunciador é contunde ao relacionar o
uso de drogas unicamente a uma suposta (e imposta) estupidez do
indivíduo: ´´comprando agora os nossos produtos, você se transformará
num imbecil fumado, (...)´´. Desconsidera, assim, de forma
absolutamente agressiva os inúmeros motivos que podem levá-lo a se
entorpecer.
Ao pedir ao enunciatário que este mande todo seu dinheiro, o de
sua família e tudo mais que ele conseguir, o enunciador sugere que o
consumo de drogas invariavelmente leva ao vício, à prática do crime
para sustentá-lo, à perda de valores morais, à perda de si mesmo. Coloca
o individuo contra a sociedade.
No final, o narrador diz que o enunciatário só não será um
jumento perfeito porque ninguém é perfeito. Percebe-se que ser jumento
é um constante invariável, modificada ou não pelo adjetivo perfeito, o
que compreende a um raciocínio apodítico, sem margem a
questionamento. Marca do discurso autoritário.
4.2.4 Crack
Percurso figurativo: a droga é personificada 20 no corpo de uma
mulher sedutora e sensualmente vestida. Inicialmente, ela se apresenta
bem maquiada, de batom e vestido vermelhos. Com voz também
sedutora, em um ambiente escuro, ela diz: ´´MUITO PRAZER, MEU
NOME É CRACK. LEVO APENAS QUINZE SEGUNDOS PRA
CHEGAR AO SEU CÉREBRO. QUINZE MINUTOS DEPOIS...´´.
Então a cena muda: a câmera em movimentos rápidos e incertos percorre
um fechado ambiente de terror com fogo e sombras, até focalizar a
20
Processo pelo qual se transforma algo originalmente não humano em corpo de
humano.
60
mulher acuada num canto de parede e grade. Seu rosto, agora sem
maquiagem, assume uma feição de desespero e, com voz amedrontadora
e ofegante, a mulher completa o que deixara em suspenso: ´´...VOCÊ
´TÁ ME QUERENDO DE NOVO, PRA ACABAR COM A
DEPRESSÃO PROFUNDA! DEPRESSÃO PROFUNDA! EU SOU
BEM POPULAR. MUITO POPULAR: BÓIA FRIA, MOLEQUE DE
RUA, ATE QUEM NÃO TEM ONDE CAIR MORTO SEMPRE
ARRUMA UMA GRANINHA PRA PODER ME CONSUMIR. EU TO
FELIZ, EU TO TÃO FELIZ. VOCÊ VAI ME FUMAR DIA E NOITE,
NÓS SÓ VAMOS NOS SEPARAR QUANDO EU PROVOCAR
DANOS CEREBRAIS IRREVERSÍVEIS.´´ Nesse trecho, a peça se
torna ainda mais aterrorizante, com a personagem assumindo feições ora
agonizantes, ora ameaçadoras, em meio a cenas sombrias. A mulher,
então, ressurge como aparecera no início e finaliza: ´´MAS AÍ EU JÁ
TO EM OUTRA, OU OUTRO. MEU NOME É CRACK!´´ A peça
termina com o locutor, in off, pedindo a colaboração financeira daqueles
que querem a continuação das campanhas contra drogas.
61
transformação central que, apesar de não figurativizada no vídeo, é
dedutível. A sanção é o reconhecimento do indivíduo longe das drogas,
portanto, nos moldes morais e legais.
Comentários
O enunciador personifica a droga em corpo de mulher sedutora
aludindo aos prazeres que a droga pode proporcionar. Logo em seguida,
ele apresenta os malefícios da busca desse prazer e por fim afirma que
outras pessoas estão sujeitas a se drogar. É um discurso que situa o
indivíduo como o sujeito passivo, sem poder de decisão e altamente
influenciável pela sedução das drogas. A droga mais uma vez assume o
papel da ação ativa, aqui levada ao extremo da personificação. Por
deixar se seduzir, o indivíduo invariavelmente sofrerá as conseqüências
maléficas e, por isso, passa a ser ridicularizado na irônica frase ´´eu to
feliz, eu to tão feliz´´.
Ao apresentar as conseqüências do uso de drogas, o enunciador
lança mão do raciocínio apodítico, dizendo que não muito tempo depois
de consumir a droga o indivíduo entrará em depressão e vai se drogar de
novo para sair dela, entrando num círculo vicioso.
62
A droga, como se sabe, vicia. Porém, destacar, demonizando, o
poder do vício e não assumir em seu discurso as múltiplas facetas da
droga é marca de um pensamento restrito, apodítico. Além do mais, o
discurso acentua as decorrências do uso de drogas, mas não aponta as
causas nem a solução.
A repetição de termos (´´depressão profunda´´, ´´eu to feliz´´) é
uma forma de persuasão do discurso autoritário.
O enunciador aponta aqueles que fazem uso de crack, aos quais é
dirigida a mensagem: bóia-fria, moleque de rua, até quem não tem onde
cair morto. Mas como podem essas pessoas ter acesso às informações
veiculadas na televisão, rádio ou jornal, dado a sua paupérrima
circunstância social? O discurso, além de autoritário, constrangedor e
agressivo, é inútil, porque não atinge seu pretendido público-alvo.
4.2.5 Cocaína
Percurso figurativo: nesta peça também se personifica a droga em
um corpo feminino sedutor. Vestida de branco e com batom vermelho, a
mulher se oferece apresentando seus encantos. Mas logo revela o preço a
ser pago por quem a quiser consumir. De um estado de beleza admirável,
seu rosto vai aos poucos se desfigurando, com sangramentos nas narinas
que escorrem por todo o corpo. O ambiente, em tons prateados,
acompanha a desfiguração da personagem, tornando-se obscuro e
manchado de vermelho. Paredes ondulam, a personagem grita, rola pelo
chão, asfixia-se, vomita. Sua fala é marcada por entonações que vão da
sedução à ameaça, com frases que são mantidas em suspenso para logo
receberem um complemento que modifica o sentido imaginado, criando
um intenso clima de sugestão: ´´QUER SABER MEU NOME? MEU
NOME É COCAÍNA, TO LOUCA PRA VOCÊ ME CHEIRAR
INTEIRINHA. COMIGO VOCÊ VAI SE SENTIR O DONO, O DONO
DO MUNDO! VOU TE DEIXAR BONITO, MUITO BONITO.
63
DEPOIS VOCÊ VAI PERDER O SONO, O APETITE. EU VOU
DEVORAR O SEU NARIZ. QUANDO A GENTE ESTIVER BEM
ÍNTIMO, EU PROMETO A VOCÊ UMA PARADA CARDÍACA,
PARADA RESPIRATÓRIA, OU UM COLAPSO NO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL. AÍ, MEU BEM, VOCÊ VAI VER NO QUÊ DÁ
METER O NARIZINHO AONDE (sic) NÃO É CHAMADO. MEU
NOME É COCAÍNA!´´ A peça termina com o locutor, in off, pedindo a
colaboração financeira daqueles que querem a continuação das
campanhas contra drogas.
64
aparece bem maquiada e com voz suave. O som de fundo é rápido e
assemelha-se ao de uma boate; a passagem de uma cena para outra é
marcada por flashes21 prateados, a coloração dominante no início.
Conforme a mulher (droga) apresenta seus efeitos colaterais, sua voz se
torna ameaçadora, ela sangra e mancha de vermelho seu vestido e o
cenário. O som acelera mais ainda e recebe efeitos da batida de um
coração; soam gritos e sopros macabros.
Comentários
É a intimidação o papel manipulador central da narratividade. A
sedução e a tentação representadas compõem aquilo que o enunciador
julga como causas do indivíduo usar drogas (autoconfiança). Ele ironiza
essas causas, ao mostrar a qual situação o indivíduo acaba sendo
invariavelmente levado. Onde ele meteu o narizinho.
O argumento do enunciador é marcado pelo raciocínio apodítico,
destacado dos seguintes casos:
´´Quando a gente estiver bem íntimo (...)´´. O uso do termo
´´quando´´ configura um argumento persuasivo por pressuposição, ou
seja, não está em discussão se ele pode ou não se viciar. Pelo contrário,
determina que o indivíduo, necessariamente, irá se viciar. Ao assegurar
conseqüências danosas ao enunciatário, o enunciador não dá margem
para discordância.
O discurso apresenta traços condenatórios ao uso de droga,
ridiculariza os efeitos no indivíduo, porém, somente apresenta como
causas do entorpecimento o que convém à construção do discurso
autoritário/agressivo e, ademais, não oferece soluções ao problema
apontado.
21
Termo em inglês cuja tradução literal pode significar brilho, relâmpago, instante,
momento. Significa também a luz emitida pelas máquinas fotográficas no momento de
captar a imagem.
65
O enunciador constrói seu fazer persuasivo demonizando a
droga, ao colocá-la como causa invariável de diversos males e na
posição ativa da ação. O indivíduo é passivo e nada pode fazer para
evitar.
66
Tematiza a importância e a responsabilidade que os pais têm na
educação dos filhos com relação às drogas. Tematiza também a
determinação do caráter em não usar drogas.
67
No nível da manifestação, o movimento leve da câmera em zoom
in22 diante das imagens do álbum de família passa a sensação de
proximidade cada vez mais íntima com a protagonista. A locução em
tom sereno reforça esse ambiente descontraído, familiar, pretendido pelo
enunciador.
Comentários
As imagens de álbum de família e de competições vitoriosas do
esportista reforçam o argumento por serem cenas validadas: a instituição
família e a vitória profissional e pessoal.
Ao construir seu fazer persuasivo, o enunciador se utiliza de
alguns recursos retóricos: o argumento pelo exemplo, que é a base da
construção do vídeo, sintetizado pela frase final ´´funcionou na família
do Gustavo. Vai funcionar na sua´´. Essa frase é estruturada por meio de
um raciocínio ao mesmo tempo apodítico (não dá chance de contrariar o
que se diz) e falacioso (generalização apressada), quer dizer, aquilo que
é dito constitui uma verdade questionável. Apelo à autoridade: Gustavo
Borges é um esportista vitoriosamente reconhecido e por isso sua
determinação e seu caráter são tidos como modelo reforçador da conduta
que se espera do indivíduo.
Ao dizer que a protagonista tornou-se segura o suficiente para
viver intensamente sem drogas, o enunciador sugere que a fragilidade do
caráter é uma causa do uso de drogas, constituindo uma dissimulada
ofensa que, por sua vez, é rastro de um discurso autoritário.
Percebe-se que apesar do vídeo ter, num nível mais superficial, a
aparência serena, familiar, como foi apontado no começo da análise, o
conteúdo fundamental revela-se justamente o contrário: agressivo e
autoritário.
22
Movimento no qual o foco da câmera se aproxima mais e mais de uma mesma
imagem, normalmente em um ponto fixo.
68
4.3.2 MARÍLIA GABRIELA
Percurso figurativo: num ambiente sombrio, a protagonista diz:
´´HOJE VOU CONVERSAR COM UMA PESSOA MUITO
ESPECIAL: VOCÊ. E VOCÊ VAI PERCEBER QUE O TRABALHO
QUE EU FAÇO, QUE É CONVERSAR COM AS PESSOAS, PODE
AJUDAR SEU FILHO A FICAR LONGE DAS DROGAS. DIÁLOGO
É MUITO IMPORTANTE. QUANDO VOCÊ NÃO DÁ ATENÇÃO A
ELE, A RELAÇÃO FICA ASSIM... DISTANTE. E AÍ NÃO DÁ PRA
ENTENDER O QUE ELE ESTÁ SENTINDO E PENSANDO.
QUANDO A GENTE CHEGA PERTO, O RELACIONAMENTO FICA
MAIS INTENSO. PONHA OLHO NO OLHO, ESCUTE,
COMPREENDA, RESPEITE OS SENTIMENTOS. QUANTO MAIS
PRÓXIMO VOCÊ FICAR DO SEU FILHO, MAIS AS DROGAS VÃO
FICAR LONGE DELE. DIÁLOGO E CARINHO: E ELE VAI FAZER
ASSIM (ela estende a palma da mão em direção à lente do vídeo) PRAS
DROGAS.´´
69
No nível discursivo, a forma abstrata responsabilidade
concretiza-se no ato de conversar com o filho a respeito das drogas. A
liberdade concretiza-se no afastamento delas e de seu vício.
Comentários
A protagonista do vídeo apresenta-se como alguém que quer
conversar com o enunciatário, papel que desempenha no seu cotidiano
profissional. Ao colocar Marília Gabriela interpretando ela mesma, o
enunciador utiliza-se de uma cena validada, que é o programa de
televisão da protagonista, para persuadir o enunciatário.
O recurso do apelo à autoridade, aqui na pele da jornalista
Marília Gabriela, tenta dar verossimilhança à mensagem do vídeo. Sua
palavra tem poder de verdade, ainda mais por sua imagem estar
constantemente ligada à televisão, uma mídia que, como foi explicado,
também detém de antemão a inquestionabilidade daquilo que diz.
O enunciador constrói seu fazer persuasivo também com base
nos valores ligados à família: fraternidade, diálogo, compreensão,
respeito; e se utiliza do imperativo para convencer o enunciatário. A
família e seus valores compõem uma cena validada.
O enunciador utiliza-se do raciocínio apodítico, não dando
margem à dúvida, ao dizer que o diálogo é muito importante. Essa é
premissa maior. A premissa menor aparece quando se diz que, ao não dar
atenção ao filho, a relação com ele fica distante. A conclusão é a de que
não se pode entender o que o filho pensa ou sente. Desse silogismo,
surgem outras afirmações: a de que a aproximação com o filho torna o
70
relacionamento mais intenso e, com isso, mais distante das drogas ele
vai ficar.
4.3.3 CARRO
Percurso figurativo: dois adolescentes bem vestidos, de aparência
saudável, tentam quebrar o vidro de um carro parado em uma rua. Eles
estão aflitos e, quando finalmente conseguem abrir a porta do carro, um
deles alerta da chegada da mãe do outro. Pego em flagrante, o filho se
desculpa. A mãe diz: ´´PAULINHO! MEU FILHO! COMO VOCÊ FAZ
UMA COISA DESSA? EU JÁ FALEI, EU JÁ FALEI TANTAS VEZES,
MEU FILHO: NÃO É PRA SAIR DE CASA SEM O AGASALHO.´´
O locutor in off completa: ´´SE VOCÊ ACHA NORMAL SEU FILHO
FUMAR MACONHA HOJE, AMANHÃ VOCÊ VAI ACHAR
NORMAL CRIMES MUITO MAIORES.´´
71
No nível discursivo, o conceito abstrato crime ganha
revestimento concreto no uso de drogas e no roubo de carro.
No nível da manifestação, o posicionamento da câmera, por trás
de uns pilares, e o seu movimento despreocupado com o foco nítido da
imagem dão ao vídeo um caráter de flagra, que é também parte da
narratividade do texto (o filho flagrado pela mãe).
Comentários
Na construção da personagem da mãe, o enunciador a coloca
como ingênua, condescendente por não perceber que tem em casa um
criminoso. Desta forma, seu discurso se torna agressivo.
Ao passar a sensação de flagrante, o enunciador confere à cena
(roubo de carro) um valor negativo. E pelo roubo ser apresentado como
conseqüência inevitável do uso de maconha, este também passa a ter um
aspecto negativo.
O argumento constrói-se sobre os pilares do raciocínio apodítico,
explicitado na frase ´´se você acha normal seu filho fumar maconha
hoje, amanhã você vai achar normal crimes muito maiores.´´, sem deixar
espaço ao questionamento. O silogismo é simples: o uso de maconha
leva à prática do crime. Seu filho usa maconha. Seu filho vai cometer
crimes.
Interessante perceber que o enunciador coloca o usar maconha e
o roubar um carro próximos na criminalidade, ainda que em graus
distintos. Isso dá margem ao contra-argumento que defende a
descriminalização do uso de drogas como meio de reincorporar à
sociedade, moral e legalmente, o individuo que se entorpece com
substâncias ilegais. Portanto, não deixa de ser irônico, além de frágil, um
discurso que se pressupõe contrário às drogas (logo, contrário à sua
descriminalização), mas que em suas mensagens deixa escapar subsídios
para se argumentar o oposto.
72
4.3.4 Xuxa Tom
Percurso figurativo: em um quarto de bebê, colorido em suaves
tons pastéis, a protagonista, gestante e vestida de cetim, passeia pelo
ambiente afagando as roupinhas, os brinquedos, o berço, enfim, tudo que
remete ao bebê que estar por vir. Como fundo musical, uma canção
infantil suaviza ainda mais a peça: ´´VENHAM TODOS, MEUS
AMIGOS, VAMOS TODOS FESTEJAR O NENÉM MAIS
BONITINHO QUE ACABA DE CHEGAR. É BEM-VINDA SE É
MARIA, É BEM-VINDO SE É JOÃO, NA PALMA DA MINHA MÃO
´´. A protagonista, então, afirma: ´´TEM PRAZER QUE A DROGA
NÃO PROPORCIONA´´.
73
da satisfação da maternidade. A concretização da identidade própria se
dá pela decisão pessoal de não usar drogas.
Comentários
Ao criar esse cenário acolhedor, belo e rico, o enunciador tenta
persuadir o enunciatário, por meio do exemplo, de que há outras formas
de se obter prazer que não usando drogas. Entretanto, desconsidera que a
realidade apresentada não é a mesma vivida pela imensa maioria das
pessoas que compõe o público-alvo da campanha24, em um país onde a
desigualdade social é marcante25.
O argumento pelo exemplo, neste caso, é reforçado pelo apelo à
autoridade (a protagonista Xuxa é uma pessoa reconhecida
profissionalmente e seu carisma com as crianças é notório). Xuxa
interpreta ela mesma, o que confere um poder de verossimilhança à
realidade ali representada.
Quando coloca na fala da protagonista o dizer ´´tem prazer que a
droga não proporciona´´, o enunciador alude à satisfação da
maternidade, porém, deixa implícito que podem existir prazeres
23
Fusão de imagem ocorre quando a passagem de uma cena para a seguinte não se dá
de supetão, mas aos poucos a primeira vai sumindo da tela enquanto a próxima assume
o lugar, tendo um breve momento em que as duas se fundem.
24
Segundo o Instituo Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), as classes
que mais assistem televisão são as C e D.
25
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), referente ao ano de 1999, o Produto Interno Bruto per capita (que corresponde
a uma estimativa de toda a riqueza produzida pelo país divida entre os seus habitantes)
é de R$ 5.844,00. Contudo, segundo a mesma pesquisa, o rendimento médio mensal da
população com mais de 10 anos situa-se na faixa de R$ 313,00.
74
proporcionados pela droga, o que contradiz outras mensagens da
campanha de combate às drogas, onde estas são apresentadas tão-
somente como danosas ou demoníacas (Pedido, Crack, Cocaína). A
contradição não faz cair por terra a idéia de que as drogas prejudicam a
saúde, fato esse inquestionável. Porém, a incoerência dos discursos
deixa claro que, conforme aquilo que convém ao enunciador, este revela
ou esconde aspectos da droga. Prática que demonstra a despreocupação
do em passar completa e verdadeiramente as informações.
75
No nível fundamental, tem-se a oposição responsabilidade /
irresponsabilidade.
26
Esse é um termo cunhado recentemente e designa a condição de algo ou alguém
cujas atitudes estão em conformidade com determinada moral, lei. No caso, por conta
de o consumo de droga ser imoral e ilegal, não seria politicamente correto para a
empresa fazer vistas grossas (ou, de certa forma, financiar) ao entorpecimento de seus
funcionários.
76
enunciador quer para eles, uma relação de interdependência: a droga
consumida pelo médico tem ligação direta com a morte da paciente.
Comentários
O enunciador é incisivo ao fazer o elo entre o consumo de droga
por parte do médico e a morte da paciente, não possibilitando o
enunciatário refletir a respeito, marca de um raciocínio apodítico, que
por sua vez é instrumento do discurso autoritário. Esse raciocínio é a
base da construção do texto, uma vez que narra-se a história como se
fosse a realidade ali representada, ou seja, aquilo tudo que se diz recebe
um aspecto verossímil. Conforme o desenrolar dos acontecimentos, cada
ato parece justificar o anterior (uma garota na boate, que desmaia, que é
levada pro hospital, que morre...), o que reforça a conclusão apresentada
pelo enunciador: o médico matou a garota por ter usado droga.
Ao determinar essa ligação, o enunciador sugere que a empresa
deve punir o funcionário, porque ela também é responsável pela atitude
dele. Desta maneira, o discurso revela-se também agressivo 27, ao incitar
o conflito entre empresa-funcionário.
O discurso é silogístico: premissa maior: empregar usuários de
droga traz malefícios sociais. Premissa menor: você emprega usuário de
drogas. Conclusão: você é responsável pelos males sociais. A falha do
argumento encontra-se na premissa maior, cuja veracidade é no mínimo
discutível. Quantos casos semelhantes aconteceram? Como provar a
relação entre consumo de drogas e a morte da paciente? E ainda que se
consiga de fato comprovar, seria caso mesmo de simplesmente
demitir/punir o funcionário, prejudicando um profissional,
marginalizando-o, incitando ressentimentos, ou seria caso de se tentar
ajudá-lo?
O discurso também apresenta falhas de outra ordem: diz que a
maioria dos usuários de drogas está empregada. Porém, não há estudo
27
A agressão, no caso, não se dá diretamente com o enunciatário (empresário), mas faz
com que este tome atitudes agressivas.
77
algum no Brasil que aponte para esses dados. Percebe-se que o
enunciador tenta, através da generalização apressada, convencer o
enunciatário de que há uma situação de extrema urgência, visto o
panorama terrível apresentado.
CONCLUSÃO
No início do trabalho, ao ser constatada a ineficácia das
campanhas antidrogas, foram levantadas algumas causas hipotéticas que
tentaram explicar o porquê do não cumprimento de seus propósitos.
Aqui, elas serão, uma a uma, confirmadas. À medida que for sendo
avaliada cada hipótese, serão acrescentadas algumas considerações
finais acerca do que se pôde inferir do presente estudo.
78
De fato, constatou-se que peças como Pedido, Crack e Cocaína,
enfatizam as conseqüências danosas do uso de droga e dão a entender
que ninguém escapa desses malefícios. Quando destacam os prazeres e
as vantagens da droga, o fazem de forma irônica para desqualificá-los e,
ainda, ridicularizam o indivíduo que se deixa levar por esses falsos
benefícios. Ao construir em seu discurso essa imagem da droga, a
campanha reflete e refrata a disseminada idéia de que o auto-
entorpecimento invariavelmente só pode fazer mal ao indivíduo,
tornando a droga uma figura desprezível, demoníaca. Em alguns casos,
tem-se até mesmo a personificação da droga: sedutora e destrutiva, ela
parece ter vida própria e está à espera dos ingênuos e tolos para furar-
lhes com seu tridente.
Também se pôde constatar que as peças Escola e Seu Dinheiro II
querem convencer o usuário, e assim jogá-lo contra a sociedade, de que
a estância última do tráfico de drogas (que é a venda nas chamadas boca-
de-fumo) é a maior culpada, senão única, do funcionamento dessa
organização multinacional que é o narcotráfico. Foi mostrado no
desenvolvimento do trabalho como as disputas de poder entre nações
que lucram com o comércio de drogas e aquelas que, por ora, não
conseguem lucrar são peças-chave para se compreender a gênese e a
consolidação do discurso de combate às drogas.
Omitir esse aspecto é, além de fraudar a realidade, sintoma de um
discurso simplista, por julgar a origem da violência somente pela ótica
silogística e unilateral da culpabilidade do usuário, desconsiderando as
razões históricas, sociais e políticas que geram essa violência.
A configuração da droga como um mal em si próprio não condiz
com o que o indivíduo encontra em seu círculo de amizades, onde a
droga recebe aspetos positivos e o seu consumo é até incentivado. Temos
que, diante desses dois extremos (demonizar e endeusar a droga), o
indivíduo tende a discordar daquele discurso que não lhe parece
79
verdadeiro e, sobretudo, o condena. A campanha não consegue adesão
do público-alvo.
80
Informações superficiais compuseram a característica geral de
todos os vídeos analisados. A construção da mensagem se baseia em
alguns poucos aspectos da realidade do narcotráfico e consumo de
drogas. Daquele, limita-se a dizer que sua consolidação e sua
conseqüente violência só são possíveis porque o dinheiro do usuário os
sustenta. Não leva em conta todas as outras razões exaustivamente
reivindicadas e apontadas pelo presente estudo. Quanto ao consumo de
drogas, o discurso é taxativo ao condenar de forma ofensiva o usuário,
colocando-o como criminoso nocivo à sociedade. No entanto, não
apresenta formas de se evitar o consumo28, muito menos apresenta
solução para o problema29.
O foco na conseqüência do uso de drogas também foi uma
constante do discurso de todas as peças, exceto em Xuxa Tom. Prevenir o
consumo apontando as conseqüências ruins é uma forma aparentemente
boa de convencimento. Porém, quando entendida a questão em sua
totalidade, quer dizer, quando entram em cena os motivos pessoais e
sociais do uso de droga, quer sejam moralmente aceitos ou não, tais
como os prazeres sensoriais, a alienação como fuga de uma dura
realidade, o relacionamento em grupo, a aceitação em grupo, o uso
recreativo e festivo, a figura do traficante como benfeitor da comunidade
e, portanto, conferindo à droga um aspecto positivo; quando, enfim, a
questão é levada a sério, parece razoavelmente claro que o problema não
é tão simples como aparenta.
O discurso antidrogas, até mesmo pelo seu posicionamento
radical, tende a reafirmar a existência do chamado ´´mundo das drogas´´.
O ´´mundo das drogas´´ é um conceito que generaliza todos aqueles que,
de um modo ou de outro, por esta ou aquela razão, consomem drogas,
28
E quando apresenta, como nos casos das peças direcionadas aos pais, o faz ou de
maneira ameaçadora ou os ridicularizando.
29
A aparente exceção é a peça Boate, que no final diz existir no site da APCD um tal
´´programa de combate às drogas´´. No entanto, no período de realização deste trabalho
(segundo semestre de 2006 até abril de 2007) nada foi encontrado que dissesse a esse
respeito. Foi encaminhado um e-mail para a APCD, através da sessão CONTATO em
seu site oficial, solicitando o conteúdo desse programa. Porém, até o fechamento do
presente trabalho, não foi obtida a resposta.
81
colocando todos à margem da lei e da moral vigentes. São vistos como
seres de um mundo à parte do mundo idealizado, como um tumor, um
câncer social que deve ser prontamente curado, no melhor dos casos, ou
renegado, entregue a sua própria desgraça nas clínicas, presídios,
cemitérios. Uma vez sucumbido a esse submundo, o indivíduo só pode
dele sair quando as drogas largar, que é o caminho para a conformidade
moral estabelecida.
Porém, para efeito de análise, peguemos uma situação em que a
droga pode assumir um caráter assertivo, como no caso dos círculos de
amizade, nos quais ela pode funcionar como instrumento de interação do
grupo, por vezes indispensável e até mesmo exigido: a moral cultivada
pela sociedade aparenta uma abstração distante e condenatória, enquanto
seu grupo de amigos é uma realidade próxima e acolhedora (nesse
ambiente ele é aceito e ninguém o recrimina por usar drogas, pelo
contrário, incentiva). Diante desse quadro, a sociedade moralista passa a
ter um caráter negativo, enquanto o seu grupo de amizade (e o consumo
de drogas) recebe um caráter assertivo. Nas drogas, o individuo
marginalizado (que se encontra à margem moral e legal da sociedade)
pode deixar de obter somente um momento de recreação para encontrar
um refúgio que lhe acalente dos males que sobre suas costas recaem.
Cria-se, dessa maneira, um círculo vicioso, aparentemente labiríntico,
cuja saída parece distante, improvável. Se do raciocínio acima
desenvolvido puder se concluir que a sociedade cria os mecanismos e
um ambiente favorável para a alienação do indivíduo através do auto-
entorpecimento, não deixa de ser terrível perceber que a condenação
legal e moral é uma forma perversa, desumana e covarde de transferir
toda a culpa social ao indivíduo, sua criatura.
Se o problema da dependência química não é simples, sua
solução parece também não sê-lo. Dentre as diversas frentes
potencialmente capazes de amenizar essa questão, uma delas são as
82
campanhas informativas sobre drogas que, no entanto, apresentam-se
ineficazes.
O presente trabalho, como dito no início, não tem o propósito de
apresentar as soluções para as falhas dessas campanhas. Foi dito também
que tais soluções poderiam emergir da constatação dos erros, bastando
evitar sua perpetuação. E, a partir daí, procurar alternativas funcionais
para se atingir o objetivo comum, que é, senão acabar, ao menos atenuar
o problema da dependência química, sintoma de uma intricada rede que
envolve aspectos pessoais, psicossociais, econômicos, políticos, etc.
Situação em que as campanhas de prevenção e controle sobre o
uso de drogas podem colaborar de maneira importante, por serem
instrumento disseminador de uma ferramenta poderosa na estrutura das
sociedades atuais: a informação. Mas que, como se viu, não somente se
omitem a prestar todas as informações, como aquilo que informam é
carregado por tom autoritário, preconceituoso, discriminador,
condenatório.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
83
médio da rede pública de ensino nas 27 capitais brasileiras. –
Universidade Federal de São Paulo, 2004.
REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indic
adoresminimos/tabela2.shtm
Acesso em: 24 de Fevereiro 2007
http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?
temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&nome=pesquisa_leitura&db=cald
b&docid=5D904805FF8259FF83256EE4004952B0
Acesso em: 24 de Fevereiro 2007
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11343.htm
Acesso em: 15 de Março 2007
84
OBRAS CONSULTADAS
85
FIGUEIREDO, R. Prevenção ao abuso de drogas em ações de saúde e
educação. Uma abordagem sócio-cultural e de redução de danos.
Diadema: Nepaids, 2002.
86