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APONTAMENTOS (CRÍTICAS) OPORTUNOS

[Excertos de prosas de Antero de Quental]

«Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição
independentíssima de homem sem pretensões literárias me dá para julgar desassombradamente,
com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não pretendo lugar algum, mesmo ínfimo, na
brilhante falange das reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora, posso como
ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso
esquadrão. Posso também falar livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste
tempo de conveniências, de precauções, de reticências  ou, digamos a coisa pelo seu nome,
de hipocrisia e de falsidade. Livre das vaidades, das ambições, das misérias duma posição a que
não pretendo, posso falar nas misérias, nas ambições, nas vaidades desse mundo tão estranho
para mim, atravessando por meio delas e saindo puro, limpo e inocente.
A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais
grave e mais obrigatório, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força
desconhecida que nos leva muita vez, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda
contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que
acreditamos a justiça. É ela que me manda falar. Não que a justiça e a verdade se ofendessem
com V.Ex.ª ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão tão altas, que não têm olhos
com que vejam as pequenas coisas e os pequenos homens das ínfimas questiúnculas literárias
dum ignorado canto da terra, a que ainda se chama Portugal.
(...)
Sim, Exmo. Sr. Eu não sei se V.Ex.ª tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque
a inteligência dos hábeis, dos prudentes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em lhe faltando
uma coisa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes  a boa-fé.
(...)
Isto, resumindo em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de
Coimbra por causa do negro crime da sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do
atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e
pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às
vaidades omnipotentes, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual.
(...) Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do
que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do que envenenar com o erro as fontes do
espírito público, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa
falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar. (...) Inovar
é dizer aos profetas, aos reveladores encartados: “há alguma coisa que vós ignorais; alguma
coisa que nunca pensastes nem dissestes; há mundo além do círculo que se vê com os vossos
óculos de teatro; há mundo maior do que os vossos sistemas, mais profundo do que os vossos
folhetins; há universo um pouco mais extenso e mais agradável sobretudo do que os vossos
livros e os vossos discursos”. Isto, sim, que é intolerável! Isto, sim, que é infame e revoltante e
ímpio e subversivo! (...)
(...) atacar a independência do pensamento, a liberdade dos espíritos, é não só ofender o
que há de mais santo nos indivíduos, mas é ainda levantar mão roubadora contra o património
sagrado da humanidade  o futuro.»
(De Bom Senso e Bom Gosto  carta a António Feliciano de Castilho)

«Exmo. Sr. Pego na pena, mais pesaroso do que irritado. As misérias morais de qualquer
homem contristam-me, porque nelas vejo o abaixamento da alma humana, que devia pairar
serena e sem mácula. As misérias morais dos homens, que pela posição, pela autoridade, pelos

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anos, têm missão de dar o exemplo da justiça incorruptível, e ser como apóstolos entre as
nações, essas compungem-me dobradamente, porque vejo nelas a degradação duma coisa
augusta, a lei, e o envelhecimento duma coisa veneranda, os cabelos brancos. Nada disto,
porém exclui a indignação: somente, é uma indignação entristecida. Porque havia V. Ex., velho
que eu não conheço, ministro que eu quisera respeitar, fazer calar em mim o respeito que é
devido aos anos e à posição, e obrigar-me a falar-lhe num tom que não é o da cólera, mas que
é o da indignação, e que pode ser o do desprezo? Se os cabelos brancos, que passam diante de
mim, em vez de terem a compostura plácida das cabeças dos santos, trazem nos seus anéis
emaranhados as palhas da loucura, posso eu deixar de sorrir os esgares do louco, e enxotá-lo
do meu caminho, se me embaraça?
Vou ser descaridoso com V. Exa., porque V. Ex. deixou de merecer a minha caridade.
Dirigindo-me a V. Ex., dirijo-me sobretudo ao público: por isso escrevo pela imprensa.
Particularmente não lhe escreveria, porque me prezo de não ter por correspondentes senão
pessoas inteligentes, pouco condecoradas, e de provada ortodoxia em gramática portuguesa.
V. Ex. não está neste caso. Além disso, a questão não é pessoal. Para mim o marquês de Ávila
é apenas mais um titular: isto é, uma coisa hirta que passa (...). Já vê V. Ex. que era impossível
incomodar-me, e menos ainda ofender-me. A questão é com o ministro, cujo nome me é
indiferente, e com a opinião pública, que tem de julgar os atos desse ministro.
Ora, a portaria com que V. Exa. Mandou fechar a sala das Conferências Democráticas, é
um ato não só contrário à lei e ao espírito da época, mas sobretudo atentatório da liberdade do
pensamento, da liberdade da palavra e da liberdade de reunião, isto é, daqueles sagrados
direitos sem os quais não há sociedade humana, verdadeira sociedade humana, no sentido
ideal, justo, eterno da palavra. Pode haver sem eles aglomeração de corpos inertes, que a força
da gravidade social sustenta justapostos: não há associações de consciências livres. Além disso
é um ato tolo.
Ora, se fosse somente um ato tolo, te-lo-ia cometido V. Exa. reflectida e
conscienciosamente. Como é muito mais, como é quase uma grande coisa, como é quase um
crime contra a dignidade humana, tenho boas razões para supor que V. Exa. não soube o que
fez. V. Exa. contemplava cuidadosamente o seu museu de veneras: entre a contemplação
extática da ordem do Elefante e a contemplação seráfica da ordem do Camelo, teve uma
distracção, e fez uma portaria. Obrou como um verdadeiro ministro constitucional.
Simplesmente, não se lembrou V. Exa. que as pessoas que salpicava com a sua prosa, apesar de
não terem o peito coberto de veneras, ou antes, por isso mesmo, sentiam nesse peito coração,
dignidade, independência. Um ministro constitucional não podia prever estas excentricidades.
V. Exa. obrou como quem é: nada mais. Quase que sinto desejo de o aplaudir.
Resta o acto. É ilegal, disse eu. É-o. Ninguém pode ser julgado sem processo, diz a Lei
Fundamental; V. Exa. não só julgou sem processo, como também condenou: porque impedir-
nos de falar é já uma condenação, e é uma condenação maior ainda atrair sobre as nossas
cabeças, apontando-nos à indignação do país, como inimigos da ordem e das crenças públicas,
a reprovação universal. Fazer isto, contra homens indefesos, com todo o peso da autoridade,
do lugar, da reputação, é além de tudo cobarde.
(...)
É um acto contrário ao espírito da época, disse eu. A época é liberal, e o acto é
despótico. A época é tolerante, e o acto é inquisitorial. A época é inteligente, e o acto é
estúpido.
(De Carta ao Exmo. Sr. António José de Ávila  Marquês de Ávila, Presidente do
Conselho de Ministros)

«Tanta mediocridade coroada.»


Manuel Antunes

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"E foi então que percebi que todos os temas das crónicas se resumiam a um: a
reivindicação, que deveria ser desnecessária, do estatuto de ser humano, num tempo e numa
sociedade em que a noção de êxito se opõe à de humanidade, e os heróis que nos propõem são
os que estão dispostos a vender o bigode, a roupa, a família, o pudor, por um prémio dos
nossos anunciantes e uma salva de palmas do nosso respeitável público."
Diana Andringa, 30-Dez-95.

"É insuportável, para não dizer penoso, ver pessoas, algumas até de barba, e outras de
bigode, para não falar dos que usam óculos à adulto e vestem fatos de bom corte com
gravatinha de marca a condizer, desfiarem discursos molarengos, onde as ideias são tão raras
como uma vaca gorda no deserto da Somália."
Mário de Carvalho(?)

«O pequeno país que nós somos tem uma classe média débil; uma intelectualidade
exígua; um sector político promíscuo com patos-bravos e lanistas; subelites ténues e volúveis;
tradições operárias erodidas; um atraso económico e cultural reconhecido. E heranças
oneradas. Somos muito vulneráveis: Não temos reservas nem defesas.»
Mário de Carvalho, 29 de Dezembro de 1996.

"Lê-se, de preferência , o que não nos coloca problemas de leitura e, mesmo assim, lê-se
sempre menos ... Mas procuram-se bodes expiatórios para acalmar as consciências: a
aceleração da vida profissional, a televisão, o stress, a falência dos métodos de ensino, os jogos
de computador, etc., etc..
As novas gerações não lêem por isso. Nós, adultos responsáveis, lemos muito pouco (ou
mesmo nada) por iguais razões.
Pois é! ... Ler necessita de um esforço. Esforço que, como todos os actos, pode também
ser gerador de prazer, quando a sua prática se torna repetida e imprescindível. Como diz
Daniel Pennac "Na leitura é necessário imaginar tudo ... A leitura é um acto de criação
permanente."
No entanto, para Hans Robert Jauas "o leitor lê um texto em função de modelos
resultantes da sua experiência de leitura e aceita, ou não, o romance que infringe o seu
paradigma de romance, a peça de teatro que infringe o seu padrão de peça de teatro". Isto,
partindo do princípio que o leitor dispõe de paradigmas ou padrões de romance, de peça de
teatro, de poema, de manifesto ideológico, e que está interessado em desenvolver uma
experiência de leitura. Paradigmas e padrões que, quando existem, passam a funcionar como se
fossem os seus próprios olhos: os olhos com que lê os textos e com que imagina o que lê
nesses textos.
Questionar criticamente, pôr em causa ou transgredir as visões que esses nossos olhos
proporcionam, pode mesmo transformar-se na fonte de estímulos das sensações de prazer que
a leitura é capaz de proporcionar. Mas casos destes são manifestamente em minoria, já que a
isso se chama exactamente saber ler."
E. M. de Melo e Castro, 23-03-1993.

"Como quase sempre, os jornalistas interessam-se sobretudo pelos conflitos de pessoas,


uma vez que partem de uma concepção da História economicista e fulanizada (daí as duas
perguntas obsessivas: quanto custa? quem substitui quem?)."
Eduardo Prado Coelho

"Ratzinger encara a Igreja como provocação, grito e aguilhão contra todas as estratégias
e formas de adormecimento da consciência nas sociedades actuais. A Igreja tem de constituir
uma oposição ao deslizamento para o banal, o medíocre. Não pode deixar o homem adormecer
nos braços de ideologias que vai forjando e pelas quais se aliena. Não deve temer surgir, seja
onde for, como escândalo, em contradição clara com a universal demissão. Deve alertar e
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resistir, sem medo de ser uma minoria. Basta-lhe ser sal e fermento para que surja como luz,
mesmo quando a maioria prefere as trevas. A democracia não é um critério de verdade."
Frei Bento Domingues

Dado o poder de desumanidade que nos habita e que alimenta as escolas do ódio e do
fanatismo, ser humano é também um dever.
(...)
Parte-se do princípio de que o nosso mundo nem sequer se importa muito com saber
para onde vai. Ocupado com mil coisas  negócios, divertimentos e evasões nuns casos, dia-
a-dia pesado ou grande miséria em muitos mais , não dispõe de tempo, nem de gosto, nem
de condições para enfrentar problemáticas de ética metafísica ou teológica. As clássicas
perguntas  'quem somos, donde vimos, para onde vamos, o que esperamos'  já nem azia
lhe causam. Deixam-no na indiferença. Desde que todos os fundamentos foram abalados, não
há céu nem terra para levantar uma grande esperança. No reino do niilismo, os vagos pedidos
de socorro à ética e à religião são apenas reminiscências de uma idade desaparecida. Não falta
quem julgue que é melhor assim. Aqueles que esperam pouco também não têm grandes
desilusões."
Frei Bento Domingues

"Há muitos, muitos anos, existiu uma coisa chamada dignidade. A dignidade ensinava as
pessoas a respeitar as outras e, sobretudo, a respeitarem-se a si mesmas. A dignidade
engendrava a reputação e a honra, duas coisas também muito importantes. Uma das leis não
escritas da dignidade dizia que certas coisas não têm preço, sendo incorruptas por natureza e
definição. As pessoas não vendiam o seu nome por dinheiro, não vendiam o seu pudor por
dinheiro.
Um dia, daqui a poucos, poucos anos, teremos de explicar aos nossos filhos o
desaparecimento da dignidade."
Clara Ferreira Alves

"Sempre achei que tão ridículo como os velhos que querem passar por jovens são os
novos que se envelhecem de propósito, para sugerir respeitabilidade.
Mais vale perder com a cara que se tem, do que sair do campo antes da batalha,
disfarçado de observador. (...)
Fico siderado com a facilidade e a veemência com que uns são a favor e outros são
contra o aborto ... dos outros. Como se alguém pudesse decidir em nome dos outros uma coisa
que é entre cada um e a sua consciência!
E se me choca a hipocrisia de muitos dos militantes antiaborto, choca-me por igual a
ligeireza das proclamações morais pró-aborto. Peguemos, por exemplo, na frase de Fernando
Rosas: o aborto é um direito fundamental das mulheres. Porquê um direito, e logo um direito
fundamental? Se ele dissesse que era um poder, uma fatalidade, uma decisão em estado de
necessidade, uma legítima defesa contra circunstâncias inelutáveis, eu poderia estar de acordo.
Mas um direito fundamental? E porquê das mulheres? Se a paternidade é um dever e um
direito das mulheres e dos homens, por igual, porque é que o aborto há-de ser uma decisão
exclusiva das mulheres? Compreendo que à mulher caiba o gesto decisivo, mas um homem não
tem o direito de se pronunciar sobre se o seu filho há-de viver ou não?"
Miguel Sousa Tavares

"Em que é que consiste exactamente o Natal? A que práticas concretas se dedica essa
chamada "classe média urbana" e que sentidos, explícitos ou implícitos, estão em jogo?
Comecemos por constatar os factos. Os primeiros sinais do Natal (e surgem cada vez mais
cedo) são dados pelas iluminações decorativas das ruas, por iniciativa das autoridades
municipais. É o primeiro sinal de que o Estado, e não a Igreja, toma cada vez mais conta da

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celebração. Segue-se a decoração das montras e das lojas: como toda a gente sabe, as lojas
dedicam-se ao comércio e não à celebração do nascimento do fundador de uma religião. O
terceiro sinal é a crescente presença do tema natalício nos variados suportes publicitários. A
publicidade, como se sabe, não se dedica a vender o Natal, mas sim todo e qualquer produto
que possa ser veiculado pelo Natal.
Iluminações, decorações e motivos publicitários, todos insistem em meia dúzia de
símbolos. Entre aqueles cujo suporte é visual contam-se as cores vermelho e verde, as luzes, as
velas, estrelas, sinos, Pai Natal, trenó e renas, bolas e fitas de decoração da árvore de Natal, a
própria árvore, etc. Simultaneamente, surgem uma série de eventos públicos a propósito do
Natal: concertos e bailados, estreias de filmes, operações de beneficência, festas de natal das
escolas e empresas (que assim se apresentam como "famílias"). Os motivos repetem-se, já
ritualizados: o bailado "Quebra Nozes", o excelente "Messias" ou a xaroposa música pop de
Natal americana de origem alemão (!), a ajuda a toda a sorte de excluídos, a focagem nas
crianças e o elogio quer da solidariedade social quer do espírito do espírito de família, que aliás
se fazem equivaler.
Nos dias anteriores ao Natal, a vida dos centros urbanos transforma-se. Ganha uma
espécie de frenesim que ora é alegre, ora histérico e agressivo. A actividade principal é, de
facto, a compra e venda de presentes. O que caracteriza a época natalícia é, de forma
esmagadora, o consumo. Para garantir boas condições de consumo, várias decisões sociais são
tomadas: estabelece-se um período de férias escolares; distribui-se um 13º mês de salário; os
horários comerciais alargam-se; e suspende-se a vida política. Quando chega o Natal
propriamente dito, muita gente desloca-se, consumindo gasolina e portagens. Consumo, lazer e
circulação: é a tríade da sociedade capitalista moderna.
Neste jogo tão legítimo como os vários natais "tradicionais" do passado, aquilo que é
diferente é a dinâmica psicológica gerada pelo consumismo: a ansiedade das compras, a
vertigem do consumo, a obrigação moral de participar na coisa, a sensação de ligeira mentira
na justificação da coisa, o anticlímax depressivo que se segue à coisa (e que gera a necessidade
de divertimento "aeróbico" na passagem do ano). Se calhar é por tudo isto que, pelo menos
para mim, o Natal sempre gerou uma espécie de tristeza depressiva, como se as coisas
estivessem aquém do que "deviam ser"."
Miguel Vale de Almeida

"O que caracteriza o Bairro Alto de há uns anos para cá é qualquer coisa que nunca
existiu em Portugal: um bairro em que se justapõem formas antigas de marginalidade social
com formas novas de cosmopolitismo. O Bairro Alto, na redefinição constante de fronteiras
simbólicas, tem ajudado a tornar as fronteiras sociais mais fluidas e indistintas. Tem permitido a
criatividade cultural. É isto que muita gente odeia.
Quem odeia isto não é necessariamente "skinhead". Quem odeia isto podem ser pessoas
da chamada "maioria silenciosa", pessoas de reduzido capital cultural, apegadas a formas
dogmáticas de viver, muitas vezes em virtude de elas próprias serem vítimas de processos de
exclusão. (...)
O problema com os "skinheads" e quejandos1 é o problema da estupidez. É muito mais
fácil a uma sociedade ou às autoridades lidarem com a inteligência, por muito perversa que ela
seja. É muito mais difícil lidar com a estupidez, pois tudo o que se disser aos estúpidos lhes
entra por um ouvido e sai pelo outro. Do mesmo modo que se torna impossível "chamar à
razão" os sérvios da Bósnia (e os outros ...). Basta que os seus argumentos se baseiam na
pureza da étnica, no nacionalismo e na sacralidade do território, para que a razão desapareça
de cena."
Miguel Vale de Almeida

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Quejando  da mesma natureza ou laia; que tal.
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"Disfrutamos de todos os êxitos da civilização moderna, que facilitaram a nossa
existência física em muitos aspectos importantes. No entanto, não sabemos exactamente o que
fazer de nós, aonde acudir. 0 mundo da nossa experiência parece caótico e confuso. Por muito
que os peritos nos expliquem todos os fenómenos do mundo, cada vez compreendemos
menos a nossa própria vida. Vivemos num mundo pós-moderno, onde tudo é possível e quase
nada é seguro. Este estado de coisas tem consequências. sociais e políticas. A civilização
planetária a que todos pertencemos lança-nos desafios mundiais. Não sabemos como levá-los
a cabo, porque a nossa civilização só universalizou a superfície das nossas vidas.
Nos foros internacionais, os políticos poderão reiterar mil vezes que a base da nova
ordem mundial deve ser o respeito universal dos direitos humanos, mas as suas palavras não
terão significado enquanto esse imperativo não derivar do respeito pelo milagre do Ser, o
milagre do Universo, o milagre da Natureza, o milagre da nossa própria existência."
Frei Bento Domingues

"Quando a realidade mediática se baseia na deificação da "vedeta", o jornalismo vai ao


tapete por KO, porque deixou de ser um fim em si mesmo. O jornalismo que contempla,
embevecido, o seu falacioso mito, e acede ao papel de "go-between" (essa espécie
desacreditante de traz-leva-e-traz), abdica de pensar e de interpelar por si próprio, perde o
dom da fala e apenas muda de roupa de sessão para sessão."
Baptista Bastos

"O trabalho infantil é uma grave sequela dos comportamentos esclavagistas da sociedade
e da família portuguesas. Só a sua eliminação nos poderá integrar de maneira definitiva na
modernidade social e tecnológica."
Alfredo Margarido

"A degradação ecológica, as ameaças de catástrofe com dimensões planetárias, a eclosão


de novos cenários bélicos, o terrorismo e a insegurança em muitas cidades podem acordar
novamente medos ancestrais. Mas penso que o grande perigo não vem daí. O medo actual é
mais difuso e mais íntimo. Há uma sensação de que nada conduz a lado nenhum. É uma
evolução sem rosto, uma mecânica sem intenção, indiferente como a morte.
Instaurou-se o culto de tudo o que se pode fabricar materialmente. E pode-se fabricar
tudo. Daí surgiu um novo culto do destino: tudo existe para ser ultrapassado. O culto do
fabrico sem fim obriga ao culto da substituição sem fim. São duas faces da mesma moeda. O
resultado é uma corrida sem meta, (...) uma apatia generalizada. O Homem não foi o primeiro
a chegar à Terra e, por aquilo em que a vida se está a tornar, também não será o último a partir.
(...)
É urgente parar, interromper a fábrica da violência: essa contínuo produzir, consumir e
substituir. Precisamos de novas formas para dizer que é esta concepção do tempo que está
carregada de perigos."
Frei Bento Domingues

"Dizemos que queremos a paz, mas com os modelos de vida que continuam a ser
recopiados, é a violência que se universaliza.
Talvez por isso, se tornem tão inquietantes algumas formas da sua presença na
televisão. A possível correlação entre alguns casos monstruosos e os seus efeitos no
comportamento de crianças e adolescentes merece exame: estará a violência só na sociedade
 não passando a televisão de um espelho  ou será a televisão uma das fábricas de violência?
Que a televisão tem uma capacidade especial para influenciar os comportamentos, está
mais que provado, por exemplo, nos gastos astronómicos com a publicidade. No entanto,
maior violência seria ainda a imposição da censura para ocultar a violência. Então que fazer
com as crianças abandonadas horas a fio ao poder dos negócios da televisão? Quem as poderá
ajudar nas horas em que os pais têm de trabalhar? Seria desejável uma classificação dos
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programas televisivos, análoga à que existe para o cinema? Não será também uma forma de
violência a insistente mediocridade dos programas que estimulam o que há de mais estúpido
no gosto e nos desejos da maioria dos telespectadores? E quem se pode arrogar o papel
ridículo de "educador da classe operária" ?
Estas e outras alíneas continuam na mesa da discussão. Colocar, porém, em causa os
modelos de vida que alimentam a violência é assunto que ninguém quer abordar. Nas contas
das grandes audiências e dos grandes negócios, são questões consideradas para além do bem e
do mal. (...)
Chegamos à vida sem saber o que queremos, abertos a uma infinidade de possibilidades,
sem estarmos predeterminados por nenhuma. Passamos a procurar ou desejar alguma coisa por
"mimese", isto é, imitando aquilo que vemos nos outros. Somos, desde o começo, "seres
sociais". 0 nosso conhecimento e desejo estão marcados pelo conhecimento e pelo desejo dos
outros. São eles que nos indicam, pelo seu comportamento, aquilo que se torna vital para nós
próprios.
Em rigor, um conhecimento-desejo que emerge por imitação podia ter sido
"construtivo": os desejos de todos convergindo para o "bem-comum", centrados numa
bondade partilhada, de forma que cada um, ao desejar o seu próprio bem, desejasse o bem dos
outros. Que assim podia ter sido é o que sugerem a saudade do paraíso perdido ou a esperança
de um futuro de paz perpétua. De facto, aconteceu e acontece o contrário. A história humana
revelou-se, desde o começo, um "conflito de desejos". Cada um deseja o que o outro tem
deseja que o outro não tenha. É o desejo de apropriação. Se todos lutam, é porque todos se
julgam ameaçados pelo desejo do outro. Segundo R. Girard, "o desejo e a crise mimética estão
em todas as zonas ditas 'privadas', desde o erotismo à ambição profissional". (...).
A lógica da violência é manter-se e triunfar. Na luta indiscriminada de todos contra
todos, chega-se a uma situação tão extrema que se torna evidente o perigo da autodestruição.
Basta pensar em tantos cenários de guerra em que são destruídos, por todos e para todos, o
que por todos é cobiçado... As dimensões a que chegou a corrupção política e económica,
envolvida no crime organizado à escala, mundial, dizem o que é a violência do desejo
mimético. Para o ocultar são precisas justificações, mentiras razoáveis. Um terceiro, um que
não tem nada a ver com o assunto, um inocente, é constituído inimigo comum, responsável por
todos os males. É o "bode expiatório", a vítima de uma reconciliação mentirosa: "É preciso
que um só homem morra e não pereça a nação toda" (Jo 11, 49), foi a sentença que matou
Jesus Cristo."
Frei Bento Domingues

"A rapidez das substituições tecnológicas não respeita a lentidão das mudanças culturais
nem as exigências éticas. Se não forem criados mecanismos de solidariedade, a globalização da
economia liberal terá de contar com turbulências de dimensões tais que até os cordeiros
tendem a transformar-se em lobos esfomeados. A publicidade, ao acirrar as expectativas de
entrada fácil no mundo dos privilegiados, estimula desejos que, para muitos, só podem ser
satisfeitos enveredando pela via do crime. Para que o jogo mundial da competição não faça do
mundo uma selva, será preciso promover um jogo de valores e virtudes presidido pelo amor da
sabedoria e pela sabedoria da compaixão."
Frei Bento Domingues

“A televisão é demasiado selectiva e exige demasiada rapidez para uma reflexão serena e
profundamente convincente.”
João de Almeida Santos

"Vejamos o caso dos referendos, que criam tantas expectativas. Os autores de


expectativas  incluindo aquilo a que se convencionou chamar classe política e que às vezes se
caracteriza pela falta de classe  acharam que os portugueses estariam interessados em

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referendar a sua vida e a sua consciência. Sacudindo a expectativa do capote, a classe política
apelou ao civismo e aos cidadãos e, em vez de legislar como lhe competia, preferiu criar novas
expectativas. Os cidadãos acham que, expectativa por expectativa, um Domingo de praia ou de
futebol é superior a uma decisão patriótica ou humana e que, se pagam impostos, é para os
políticos resolverem as questões que os ultrapassam, como o aborto, a regionalização e a
Europa, e não para serem incomodados ao Domingo no sossego de gatos gordos e de
espectadores de televisão. Um espectador não é um expectante. O cidadão está-se nas tintas
para legislar, o cidadão quer ser legislado, ou seja, quer que tomem conta dele, que o aliviem
de responsabilidades. Como na política. A mentalidade é antiga e tem raízes fundas."
Clara Ferreira Alves (4 de julho de 1998).

"Esta tentação para tribalizar não é naturalmente apenas do passado e também não é
apenas própria da atitude religiosa. A tribalização é no fundo uma tentação permanente e
mesmo uma antecipação de alguns dos fundamentalismos hoje tão presentes na nossa
sociedade e apesar de tudo tão pouco sublinhados.
O tribalismo economista internacional e nacional, aquele que tudo submete à lógica
exclusiva dos cifrões e do lucro, procurando no entanto dar sempre a imagem de um
permanente altruísmo e de uma inevitabilidade pouco menos que científica.
O tribalismo partidário, aquele que se cobre com o manto diáfano da competência e do
serviço público (que os outros, por acaso, nunca sabem fazer tão bem como nós ou os
nossos).
O tribalismo mediático, aquele que permite dizer com a maior candura que (só) nós é
que (lhe) dizemos tudo e (só) nós não guardamos notícias na gaveta.
Os tribalismos nacionalista, científico, militar, desportivo e muitos outros.
O que importa sublinhar é que a organização tribal e a sua linguagem criaram e criam
uma habituação e uma mentalidade tribais.”
Joaquim Cardozo Duarte (25-09-94).

“Já vivemos numa realidade virtual, a dos meios de comunicação e da manipulação dos
governantes, que nos faz julgar que vivemos num mundo, quando na realidade o mundo é
outro.”
(Autor?, Outubro de 1994)

“(…) E aquela velha frase que lembra que, mesmo quando se discorda das ideias do
adversário, vale a pena lutar pelo direito dele a exprimi-las, continua a parecer-me valiosa.
(…) quero melhores quadros políticos, deputados dignificados, ministros que não
confundam, pelo menos em relação a Timor-Leste, «revolta armada contra ocupação
estrangeira» com «terrorismo separatista», etc., etc.
(…) é que o complemento normal de todas essas coisas, existência de partidos, debate
interpartidário, eleições livres, direito de voto, é a existência de uma imprensa livre e pluralista.
(…) E parecia-me evidente que todos os políticos, excepto os pública e decididamente
autoritários, deveriam partilhar esta opinião. Mas não. Temos, há dez anos, um primeiro
ministro que não lê jornais nem gosta de jornalistas. Temos, há mais anos ainda, um presidente
do governo de uma região autónoma que se diverte a atacar sistematicamente os jornalistas e
os jornais que não lhe agradam. (…) Ora se eu considero que, quer como cidadã, quer como
jornalista, preciso dos políticos, mesmo daqueles que pessoalmente me repugnam, será assim
tão difícil que estes percebam que também eles precisam dos jornalistas? (E não só para os
tornarem conhecidos junto dos potenciais votantes: também para garantirem a circulação e o
debate de ideias que é  ou deveria ser  a essência da democracia.)
(…) É que se alguns jornalistas, mesmo entre aqueles que depois se decidem por uma
actividade política, gostam de encarar os políticos como adversários, e alguns políticos
consideram inimigos todos os jornalistas que não se limitam a ampliar-lhes as vozes, a verdade

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é que uns e outros contribuem, ou deveriam contribuir, para o mesmo fim: a possibilidade de
debater ideias e de confrontá-las.”
Diana Andringa, 19 de Agosto de 1995.

O César
«A gente vê o político apertando a mão do doente no hospital, com um sorriso lasso e
parado, o olho desperto apontado como uma fisga à dor alheia, a dor do outro, que é tão fácil
de carregar e tão útil ao político. Ele belisca a bochecha do menino, inquire sobre a tosse e a
palidez. Esteve doente? Está doente, pois se é no hospital que estamos, o menino tem de estar
doente, está doente, talvez muito doente, apresentando a fragilidade das
crianças-flores-de-estufa. Ele belisca outra vez a bochecha do menino, e uma promessa vaga
sai-lhe da boca, como quem se submete com optimismo à desilusão e inutilidade dos remédios
prescritos. A seguir, o político segue em frente, abraça o estropiado, dá o braço à mulher
grávida, acaricia com os olhos, ao longe, a cama do entubado. 0 hospital corre atrás do
político, como sempre se corre atrás dos políticos em visita, num tropel de mesuras e passinhos
curtos de perturbação e obséquio. Quanto maior for o político, maior a perturbação e o
obséquio. A seguir, o político, registando com a memória a conta das vítimas do dia, faz o
discurso, aquele discurso de política que fala em abstracto e no futuro sobre benesses e
satisfações, vencedores e vencidos, e a infinita supremacia dos justos aos quais o político
pertence. Do lado dos quais ele justamente se encontra. Naquele dia.
A seguir, o político confere com os assessores do político, confere as fotografias, as
câmaras, a agenda. Quem consolar a seguir? Os operários, naquele dia, os operários da fábrica
que vai fechar por causa de outros políticos e outras decisões políticas. Por que um político só
funciona, se repararmos, contra outro político. Então, registando o êxito destas jornadas junto
do povo, o político mete-se no carro com o motorista, arranca na velocidade dos apressados, e
vai acudir aos operários, que estão num protesto algures à porta da tal fábrica. As mãos já lá
estão, convulsas e à espera da mão do político, as caras já falaram às televisões, já gritaram
contra o opressor, e recebem a mão do político com a intuição de quem sabe que a exploração
da situação é generosa para todos os implicados. Por que estão eles ali? Ali, se o político
mandasse, não estariam eles ali. E quando o político mandar, não estarão eles ali. Nem haverá
doentes nos hospitais, nem protestos nas ruas, nem sonhos que a vida normal não consiga
organizar. Ele, o político superiormente inteligente, diz-lhes sem dizer que os ama a todos, e
eles acreditam que é verdade, porque amar alguém significa amar a ideia que esse alguém faz
de nós mesmos. 0 político revê-se assim no olhar agradecido dos pobres, no afago das
mulheres, nos apertos por corpos estranhos, nas palavras caídas no precipício da inconsciência.
0 político precisa dos outros para a sua substância e se ao cabo de um dia de apertos de mãos e
consolações de aflitos lhe perguntarem se é verdade tudo o que disse e pensou, ele responderá
que sim, que a sua alma só entra em actividade vulcânica quando o político amorosamente se
entrega ao mundo que o aguarda à saída do seu carro com o seu motorista.
E a gente podia perguntar-se se tudo aquilo, o político como perfeita expressão da
inquietação das populações, é a verdade. Que é verdadeiro já sabemos, mas será a verdade?
Perguntar com simplicidade se o político, afinal, gosta de nós, se interessa por nós, quer saber
de nós, ou se a sua mão de afectos é só uma extensão da criatura que a si se vê como César, a
criatura do poder e da vontade e da conquista e da humilhação do inimigo em ano de eleições.
0 César para quem os verbos e os gestos comuns que o aproximam de todos nós, o vulgo
profano, passam a ser, pelo milagre da acção política, empreendimentos, ofensivas, oficinas
onde se emenda e remenda a infelicidade alheia. Que é sempre mais fácil de carregar e tão útil
ao político.
Imaginemos, por um ataque de lucidez, que deixamos de acreditar no amor do político
por nós. Imaginemos que em vez das certezas com que o político nos enreda, passamos a ver
os caminhos da desilusão. E que no hospital a criança afasta a face, e na fábrica o operário
recusa a mão estendida, e na beira da estrada o povo nega o aplauso, e no comício o povo
declina o convite. Imaginemos deixar de acreditar no amor do político por nós e na existência
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do político por nós. Seria um pensamento muito perigoso, porque sem nós o político deixaria
de existir, passaria de gigante a pigmeu, de César a escravo, de luz a penumbra. E como
brindaríamos ao futuro, sem o político? Em que irremediável orfandade a morte do político nos
abandonaria? Precisamos do político, da crença no político e na bondade e omnisciência do
político como o crente precisa do amparo dos deuses. Alguém, lá em cima, gosta de nós, quer
saber de nós, vela por nós. Em troca, algumas preces e actos piedosos, votos e ex-votos. Sem
o político e os sentimentos que ele vai inscrevendo na consciência colectiva, sem os templos e
os sacerdotes da política, que alimentamos e enriquecemos todos os dias, que seria de nós?
Como combater os obstáculos? Como enfrentar o medo da sombra?
Por isso, quando o carro do político chega à nossa terra e dele o político desce rodeado
do círculo de políticos em miniatura, devem recebê-lo como quem recebe o anjo da
anunciação. Manhãs cheias de sol nos esperam, o político chegou cheio das amabilidades de
quem chega de viagem, espalhando uma ternura pela humanidade. Afastem-se os ascetas e os
cépticos, os estetas da desconsolação, porque o político vem para nos embalar. E à noite, no
telejornal, atrás do sorriso lasso e parado e fixo do político, vemos o rosto lasso e parado e
fixo do povo, ambos olham para a câmara da televisão, que veio para os embalar aos dois. 0
povo sofre na televisão, o político ama o povo na televisão. Consideremo-nos felizes assim.»
Clara Ferreira Alves, 23 de Janeiro de 1999.

«Nunca me senti empurrado para a política, fi-lo sempre com vontade e nunca por um
sentido de dever ou de missão. Aliás, detesto essas palavras. Foram actos de vontade de que
não me arrependo.»
« … parte das pessoas são pagas ou estão envolvidas numa operação de dizer bem das
obras públicas dos governantes, dos chefes partidários, dos teatros, dos livros. Eu prefiro fazer
a outra parte, que considero ser mais útil, que a ajudar as pessoas a não obedecer, a
reivindicar.»
«Para além da minha idade e das minhas ilusões, hoje tenho a sensação de que a política
está cada vez mais impotente.
- Impotente no sentido de se ter tornado ineficaz?
Sim, no sentido em que traduzir ideias em acção é muito difícil. As de pendências
externas são fortíssimas. Hoje, um ministro sente-se impotente, porque tudo o que queria
fazer, por mais justo e necessário que seja, tem de Ter o acordo da União Europeia, das
Nações Unidas, das empresas multinacionais, das nacionais, etc. A política hoje é uma espécie
de administração de interesses e de gestão de compromissos, e esta soma de dependências não
faz uma política, pelo contrário, cria dependências, gera impotência e paralisia. Perante esta
realidade, eu pergunto-me: se tenho um capital de talento e energia, porque é que não hei-de
aplicá-lo noutras áreas onde tenha mais eficácia do que na política?»
António Barreto, Entrevista ao DN, 30-01-99.

«Uma das grandes conquistas da civilização ocidental é a guerra em directo na televisão.


À hora do jantar, ao abrir do telejornal  hora mais conveniente para a generalidade da
população no hemisfério norte, em fusos horários aproximados , entra o som da banda sonora
da guerra. E, num arremedo electrónico das clássicas trompetas, entre a garfada de batatas ou
esparguete e o copo de vinho tinto ou coca-cola, lá caem duas bombas num país primitivo.
Confortavelmente sentado na sua cadeira, com o guardanapo no colo e o controlo remoto na
mão, o espectador arregala os olhos de excitação e exclama: «Esta rapaziada americana não
brinca em serviço. Antes isto o que andarem a meter-se com estagiárias nos corredores da
Casa Branca, que é o que toda a gente faz lá na repartição e não tem nada de mais, eu se fosse
presidente atirava-me a outro lombo. Mas enfim, são gostos. E depois, isto é política, da
verdadeira, e na verdadeira política não se pode andar com bons sentimentos. 0 Saddam estava
a pedi-las. Estava a pedi-las.» No ecrã, uma explosão no meio de um quadrado verde ou
cinzento, ou então várias explosões sobre pontos determinados e invisíveis. Um clarão, outro

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clarão, e trás, pás, entram de novo o relator da guerra, a banda sonora e o genérico da guerra,
que costuma ter nomes inesquecíveis, nomes dos livros do James Bond, como este: Operação
Raposa do Deserto.
À sobremesa, enquanto mexe o café, o espectador solta a imaginação e o arrebatamento:
«Isto é bestial, é pena ser tão rápido, torna-se um bocado repetitivo. Mas é melhor do que a
Bósnia, que era uma confusão e só se viam mortos e hospitais e tipos todos partidos. Assim, é
uma limpeza, é outra inteligência. E está a entrar na hora da telenovela, espero que acabem
com o Saddam antes da telenovela porque a telenovela está na melhor parte, quando o ricaço
se prepara para liquidar o rival e não sabe que a mulher fugiu com o melhor amigo.»
A noite do espectador médio é assim, feita de emoções fortes. A guerra em directo, com
música, exactamente como um jogo de computador, tem várias vantagens. A primeira de todas
é que oferece aos pobres que não têm computador a oportunidade de se divertirem um pouco
sem desembolsar umas notas para adquirir o «software». Um dia, cada televisão virá
acompanhada do seu «joystick» para que, em casa, possamos participar na guerra interactiva. 0
Clinton do futuro dará a ordem ao Pentágono, o Pentágono avisa as cadeias de televisão, e o
espectador pode participar no jogo real. Enquanto os bombardeiros americanos vão
disparando mísseis, o espectador carrega nos botões do comando e tenta fazer um «score», no
sofá, rivalizando com a realidade. No fim, os militares contam os alvos acertados e, em casa, o
espectador apura pontuações para comparação. As televisões decerto oferecerão prémios aos
mais dotados para o dedo no gatilho em cada país civilizado. 0 primeiro prémio será uma visita
à Casa Branca, com tudo pago e um aperto de mãos do presidente. Tudo o que falta a esta
guerra virtual, sem corpo a corpo, sem cadáveres, sem feridos e sem humanidade, é um bom
patrocínio. Mas lá virá a hora das agências de «marketing», e teremos a guerra com o apoio de
uma qualquer marca fidalga. Assim, com o harmonioso suporte de todos os intervenientes,
poderemos finalmente ajudar a estabelecer a paz no mundo e, de caminho, defender o nosso
estilo de vida, o do Ocidente, sem tirar o rabo da cadeira. Aliás, o cinema já começou a
explicar como se faz. Dantes, ia-se ver um «thriller» com um actor como Robert de Niro e lá
nos caía em cima o psicologismo barato do bandido contra o justiceiro, ou do polícia contra o
ladrão, ou do mafioso contra o mafioso. Como toda a gente sabe, os filmes estão cada vez
mais caros de fazer e os Robert de Niros exigem muita nota, e há «thrillers» psicológicos a
mais, e os estúdios tiveram de arranjar uma maneira de ganhar um dinheirinho honesto sem
espremer a cabeça, divertindo o espectador. Como? Transformando a nobre arte que chamam
sétima num gigantesco videoclip publicitário de duas horas e meia, metendo-lhe no meio uma
intriga inverosímil e insustentável para manter as aparências. (…)»
Clara Ferreira Alves, 24 de Dezembro de 1998.

"... E cá estamos nós em 99. A um passo de 2000. Chegámos aqui por força do
calendário e não à custa do nosso esforço, da nossa capacidade. Por isso continuamos com a
Saúde, a Educação e a Justiça a níveis quase medievais. (...) Há quem deposite muitas
esperanças no euro. Desenganem-se. A solução não reside numa mudança de moeda. Vai ser
preciso mudar de mentalidade."
Vítor Direito, "Correio da Manhã", 5-1-99.

«Hoje, a partir do pressuposto que os recursos humanos são limitados, tornou-se


corrente pensar a sociedade só a partir dos diversos extractos da classe média para cima.
Todos os outros são ignorados, para não complicar um sistema que, sem eles, funciona muito
melhor … Eduardo Lourenço recordou as consequências sociais deste modelo: “A exclusão
não é nova: novo é o contraste entre as capacidades inimagináveis de produção de riqueza e as
inimagináveis injustiças na sua distribuição.”»
Frei Bento Domingues, 18 de Dezembro de 1994.

«Os grandes princípios são breves e claros. Diz-se que um dos mais relevantes da econo-
mia é tão simples como isto: "Não há almoços grátis"! Não há milagres económicos. Nada cai
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do céu. Como não sei nada de economia, tiro conclusões precipitadas: quem não souber
roubar, não tiver rendimentos ou trabalho remunerado está exposto a passar muito mal. Nas
sociedades modernas e ricas, há muita gente que não sabe roubar, não tem rendimentos -nem
trabalho remunerado. Desenvolvem-se, por isso, novas formas de pobreza, de solidão e
isolamento, novos processos de exclusão. 0 apelo do necessitado, sem direitos reconhecidos, é
voz de condenado. Quem não tiver qualificações profissionais especializadas ou recicláveis
passa a fazer parte do lixo social. Voltamos, como um destino, aos possessos de doenças
malditas, abandonados de todos e da própria família como na antiguidade pagã. Quando os ha-
bitantes da Amareleja recusaram a iniciativa do Frei Elias para estabelecer, perto dessa
localidade alentejana, um centro de acolhimento a seropositivos e a toxicodependentes, um
comentador televisivo foi muito espontâneo ao comparar os doentes da sida a uma lixeira que
as populações têm todo o direito de rejeitar. É sintomático que o debate acerca da localização
dos centros de acolhimento das vítimas da sida tenha ido parar ao tema das lixeiras.
Perante isto, fica-se sem paciência para conversas sobre a sociedade moderna e
pós-moderna. Que nome dar a este presente?»
Frei Bento Domingues, 12 de Fevereiro de 1995.

«A miséria dos outros torna-se o nosso campo de aventura mediática. Somos os


consumidores do espectáculo da miséria, da catástrofe e do espectáculo comovente dos nossos
exercícios de caridade.»
Frei Bento Domingues, 5 de Março de 1995.

«A pergunta inevitável é esta: se com tantas e tão caras reuniões o ambiente natural está
cada vez mais poluído, se cresce o fosso entre ricos e pobres, se aumenta a degradação social,
não seria melhor riscar dos objectivos da Carta das Nações Unidas o "progresso económico e
social" de todos os povos e abandonar cada um à sua sorte? Que adianta continuar a alimentar
o ritual de utopias em que já ninguém acredita?
Os povos não podem viver sem utopia como os indivíduos não podem viver sem sonho,
lembrou Paul Ricoeur o ano passado, em Lisboa.
No entanto, se o presente é insuportável para muitos milhões de seres humanos, o
regresso ao passado é impossível e as figuras com que se anunciava um futuro de paz e
abundância estão mortas. É sem dúvida higiénico enterrar as visões do futuro que serviram
apenas para afundar o horizonte e secaram a terra. Mas é fundamental "reinventar o futuro,
abrir um novo horizonte de possibilidades, cartografado por alternativas radicais às que
deixaram de o ser" (cf. Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice. 0 Social e o Político
na Pós- Modernidade, Afrontamento, 1994, p. 278). Como?
As utopias que só vivem do desejável e não têm em conta o que é possível realizar
tornam-se irresponsáveis e não conseguem alimentar a esperança. E será possível saber o que
nos é permitido esperar a partir do próprio coração da história actual?
Séneca dizia há dois mil anos que o vento só é favorável para aqueles que sabem para
onde ir. Desde que se perdeu a crença no progresso, ninguém se atreve a desenhar o sentido da
História.
Não é necessário saber todavia para onde vai a história, isto é, conhecer a sua orientação
final, para compreender a nossa responsabilidade a seu respeito. Não é a falta de uma visão
unificada do processo histórico e das leis do seu devir que impede acordos concretos para
intervir no seu processo com convicção e com responsabilidade.»
Frei Bento Domingues, 12 de Março de 1995.

O briefing
«Uma das grandes formas de comunicação contemporânea é o briefing. A conferência de
imprensa também tem os seus méritos, mas nada bate o briefing como traço de união entre a
humanidade. Em Portugal, país irremediavelmente atrasado, a arte do briefing - que é também,

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por assim dizer, a arte de não dizer nada - não tem conhecido o desenvolvimento e refinamento
que o briefing tem nos países mais ricos e mais avançados do que o nosso. Os especialistas do
briefing, não fossem eles os autores da palavra, são os anglo-saxónicos. Ingleses e americanos,
acossados pela violência dos jornalistas e os inquisidores do jornalismo de investigação, a que
se juntaram, nos últimos anos, os inquisidores da vida privada e costumes impróprios,
especializaram-se neste discurso de vacuidades políticas, em que um grupo de jornalistas
sentados numas cadeirinhas e de blocos em punho assiste a uma comunicação lida em tom
sério e solene por um senhor ou uma senhora vocacionados para responder às inquietações dos
assistentes do briefing e assistir às suas dúvidas. Devido à relativa perda de influência da
imprensa escrita e das rádios, o briefing é orquestrado em função dos horários e exigências das
televisões. E devido à guerra da NATO com a Jugoslávia, temos podido assistir ao mais
profissional e bem feito dos briefings, o briefing militar, forma suprema do género. Os briefings
da NATO, do Pentágono e do Ministério da Defesa britânico são exercícios com os quais
Portugal só tem a aprender. Um civil, com ar de quem perdeu a família mais chegada num
desastre mas mesmo assim está no seu posto a cumprir o seu dever, abeira-se dos microfones
e cumprimenta os presentes, depois passa às leituras do dia, neste caso, a contabilidade da
guerra, o deve e haver. Mais tarde, com um aceno de discrição, passará a palavra a um militar.
A compunção e a compenetração são essenciais no início mas, logo a seguir, o senhor do
briefing adopta uma linguagem seca, em tom monocórdico e despido de emoções, com a qual
vai enumerando os lucros acumulados. Tantas missões para aqui, tantas missões para ali, muito
bons resultados, muito mau tempo, destruídas mais três refinarias, quatro instalações militares
desertas, três fábricas sem ninguém e duas casas abandonadas, por engano estas últimas. Como
esta guerra se trava a contar com a superioridade da força aérea dos Aliados e a inteligência
tecnológica das armas, como esta guerra se trava sem mortos civis e com alvos militares, de
cada vez que morre alguém da população arranja-se uma pirueta linguística, a fabulosa
invenção da novilíngua que dá pelo nome de «danos colaterais». 0 míssil matou os viajantes do
comboio cujos corpos queimados e rígidos como carvão vimos a rolar pela encosta na
televisão? 0 míssil falhou o alvo, militar, claro, resolveu voltar para trás e atacar aquele
comboio onde por mero acaso viajavam pessoas. Aquelas pessoas que o Presidente Clinton
chama, nos briefings dele, os «ordinary Serbs», para os distinguir dos militares, que devem ser
sérvios extraordinários, animados pela fome de guerra. 0 Presidente Clinton, que nunca foi à
tropa, acha que os soldados são uma raça diferente do resto da população e ignora que o
recrutamento vai buscar os filhos e pais das famílias, esses mesmos «ordinary Serbs» que,
segundo ele, nada têm a ver com Milosevic ou com a limpeza étnica. Estas distinções, cheias
de subtileza e insinuação, constituem a substância do briefing. Quando o Presidente Clinton
mandou bombardear a fábrica de aspirinas no Sudão, à procura das armas do Osama Bin
Laden - um inimigo de gabarito muito inferior a Milosevic -, teve o cuidado de informar, num
briefing, que só dera a ordem de disparo depois de saber que o último vigilante tinha saído do
posto, para que o míssil não matasse um pobre sudanês de vigia, um pormenor de humanismo
e grandeza normalmente reservado a filmes de Hollywood em que o presidente é Michael
Douglas ou Harrison Ford. E, anestesiados pela sonolência que o briefing provoca, os
jornalistas esqueceram-se de perguntar como diabo é que uma fábrica de armas químicas ou
um depósito de mísseis só tem a guardá-lo um sudanês inocente e pai de família. Por exemplo,
a mim inquieta-me esta ideia do míssil que voltou para trás de repente e resolveu atacar um
comboio cheio de civis, falhando o alvo. Como é que um míssil volta para trás? E, já agora,
como é que é possível ganhar esta guerra, continuando a bombardear sempre e até ao fim (ao
fim de quê?) sem causar mortos e baixas civis? Aqui, os senhores do briefing têm uma resposta
preparada: nós sempre dissemos que não queríamos causar mortos entre a população, mas
nunca dissemos que não provocaríamos «danos colaterais». Eis o «distinguo». Uns matam,
outros provocam danos colaterais. Os «maus» matam, os «bons» provocam danos colaterais.
Como todas as criações da propaganda, o briefing, político, militar, ou político-militar, é uma
dissipação da inteligência. Não serve para nada mas é imprescindível, é pura desinformação,
mas destina-se a garantir o direito à informação, é um desperdício de energia mascarado de
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aprendizagem. Nos tempos que correm, em que os políticos deixaram de vender sonhos à
mistura com propaganda e só vendem propaganda e imagem, dizer a verdade ou estabelecer
uma aproximação à verdade é um suicídio e uma baixa de popularidade. Chamam-se então as
coisas por outros nomes, e com a cumplicidade do jornalismo, a mistificação aguenta-se.
Nenhum político ousaria, hoje, produzir um discurso como os de Churchill ou de Bismarck,
senhores da guerra e da paz antes da invenção do briefing contemporâneo. Em vez de intuições
e certezas, temos sugestões e palpites. O que queriam que fizéssemos? gritou Robin Cook.
Decerto devido à indolência provocada pelo briefing, os jornalistas esqueceram-se de lhe
responder que não são eles os destinatários das perguntas.»
Clara Ferreira Alves, ‘Expresso’, 17 de Abril de 1999.

«(…) a que chamarei literatura descartável, antes de mais porque o único sentido que
ela faz é o de um consumo inócuo, sem outra consequência que não seja o rápido
esquecimento de uma experiência insossa e inodora  assim se ofendendo a dignidade e a
seriedade da verdadeira literatura. Chamo a esta segunda literatura descartável, como se diz
das fraldas e das seringas, porque ela é testemunho (um certo e datado testemunho) de um
tempo em que se produz para se gastar, em que se consome por consumir, em que se abandona
e esquece aquilo que não tem outra duração que não seja a breve existência de uma utilização
pontual e inconsequente.
E contudo, o descartável vende-se bem: ele é ligeiro, encontra-se em muitos pontos de
venda, não se guarda (por isso não obriga a cuidados, para além do momento do consumo) e é
até barato porque produzido em grandes quantidades. Não se estranha, assim, que uma certa
escrita literária, a sua produção, distribuição e consumo pareçam obedecer, por um fenómeno
de mimetismo que não é desinteressado, aos princípios e às conveniências dos produtos
descartáveis.»
Carlos Reis

«(…) ilusão da tolerância colonial e racial portuguesa. (…) Existe uma ideia de que o
colonialismo português foi mais brando; de que os portugueses se miscigenaram alegremente;
de que os africanos têm saudades dos portugueses. (…)
Ora, o racismo não é apanágio de apenas alguns povos. Radica no etnocentrismo, que é
como um “pecado original” que todos os povos carregam, reverso da medalha do próprio
sentimento de identidade. O etnocentrismo degenera em racismo quando as relações de poder
se desequilibram progressivamente. (…) O que aconteceu com Portugal é que sempre foi um
país pequeno e pobre, que não conseguiu ser potência colonial a sério. Daí a miscigenação,
feita da necessidade e ela própria uma espécie de colonialismo à escala portuguesa, pois a
“enorme vontade de ter uma mulher” batia forte. Basta dizer que o movimento de mistura se
fazia no sentido homem branco – mulher negra e não no contrário …
(…) Esta cultura do silêncio, típica de gente pobre, pequena, sem poder, …
(…) A Baixa cheia de gente à beira da apoplexia2, entre o consumo, o prestígio, a
publicidade e a falta de dinheiro.
(…) Só que na democracia do silêncio, filha da cultura do silêncio, as palavras são
perigosas.»
Miguel Vale de Almeida, 27 de Dezembro de 1992.

«A sida surgiu publicitada como doença das comunidades “gay” dos Estados Unidos e a
verdade é que nunca se libertou dessa associação. De seguida, foram os toxicodependentes e,
mais tarde, a África: terrenos férteis para toda a série de preconceitos  sexuais,
comportamentais, raciais. Ora, quando se juntam grupos estigmatizados e ideias de contágio, o
resultado é um caldo cultural explosivo. Imediatamente se revivem os grandes fantasmas da
peste e por detrás de cada esquina tocam as campainhas que anunciam o homossexual, o
2
Apoplexia  afecção dos centros nervosos que se manifesta pela perda súbita das sensações e dos movimentos.
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drogado ou o negro. O verdadeiro contágio da sida é este, o contágio do medo do outro, do
bode expiatório, do poluído.
Não admira, pois, que todo o esforço oficial seja no sentido de esclarecer que não há,
afinal, grupos de risco, mas sim comportamentos de risco. E que as possibilidades de contágio
não são grandes, antes podendo ser este evitado. Como? Através do uso de preservativo, da
monogamia, ou mesmo da abstinência, e da não reutilização de seringas. Esta posição é sem
dúvida louvável, mas não inocente, pois só surgiu em força depois da doença ter alastrado
alarmantemente para os heterossexuais, mulheres, recém-nascidos e ter explodido nas cidades
do Ocidente.(…)
O corpo e a sexualidade, sendo socialmente construídos, são todavia os campos da vida
humana mais remetidos para o natural: a identidade sexual, os comportamentos sexuais, até a
raça, são vistos como dados adquiridos quando, na realidade, tudo o que sobre eles pensamos
e dizemos é por nós inventado e sobrevive, nas estruturas simbólicas, apesar das mudanças
feitas “de cima”. O negra não é por o ser que é vítima de racismo, mas sim devido a uma
relação desigual de poder. O toxicodependente é marginalizado pela sua recusa em participar
na vida social, o homossexual por não se reproduzir e por suscitar a dúvida (e por vezes a
tentação) sobre o limitado uso do corpo que a cultura impõe à maioria das pessoas.
(…)
O vírus é, hoje, a metáfora cultural do diabo, da tentação. Está algures e nenhures, não
se vê, pode atacar qualquer um. Sob o seu ataque, pode-se sucumbir jovem, “antes do tempo”.
(…)
No que diz respeito à seropositividade e/ou à doença em si, já não apenas ás
possibilidades de aquisição do vírus, vemos o regresso à tentação de criar territórios murados:
o hospital transformado em leprosaria, a prisão transformada (como também no caso do crime)
em meio ideal para a disseminação  e não para o combate  da doença. Também aqui vemos,
no outro prato da balança, movimentações sociais no sentido de garantir direitos legais aos
seropositivos, e atitudes pessoais de forte cariz mediático, com “stars” que assumem a sua
condição. Que outra doença leva uma pessoa a “assumir” que a tem? O termo em si é
revelador do estigma social desta doença; (…)
Vem à memória o papel simbólico que a tuberculose jogou na romantização da pessoa
como entidade transitória, vítima do seu corpo, produzindo arte e sabedoria enquanto é tempo.
(…)
A sida é o exemplo acabado de que as doenças não são apenas fenómenos biológicos,
mas também construções sociais. Porque atacam os corpos que, longe de serem meras
anatomias e fisiologias, são “corporizações” da sociedade. No caso vertente, é ainda o próprio
vírus que se constrói. Como se finalmente se tivesse descoberto (e isto numa era em que a
ciência é a “religião“ oficial) o que de virulento e físico os “anormais” fazem à sociedade:
põem-na doente. Todas as doenças são simbolicamente impuras. Hoje, parece haver doenças
mais impuras que outras.»
Miguel Vale de Almeida, 6 de Dezembro de 1992.

«… e a ética é isso, cuidado concreto em cada situação.


A regra ética geral é formulável assim: não ao aborto, sim ao planeamento familiar.
Excepto nos casos eugénicos que o diagnóstico permita. Não à liberalização do aborto, sim
apenas à sua despenalização. Porque há muitos casos em que o planeamento familiar falha por
razões aleatórias, em que haverá sempre que medir a possibilidade razoável da autonomia da
criança futura e do empenho possível da mãe e do pai: nessa decisão, nenhuma instância pode
passar acima da decisão destes. É ainda um problema de ética, de autonomia, de democracia.
Se uma senhora piedosa e bem-intencionada convence uma pobre mocinha a ter um filho para
o qual lhe faltam todas as condições e esta acaba por se prostituir para a criar, não é a piedade
da boa senhora que é eticamente responsável? Impedir totalmente o aborto pode ser pedir o
gesto de certas raparigas que deitam o nascituro clandestinamente na caixa do lixo.»
Fernando Belo, 26 de Março de 1997.
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«O pudor É o sentimento de não mostrar aquilo que é sentido como inferior, que é
sentido como ridículo, melhor dizendo. (…) Quando há dificuldade na exibição é sempre
porque se sente ridículo, risível, inferior, e tem medo da troça dos outros.
(…) o grande traço da mulher histérica é um sentimento de inferioridade em relação à
auto-imagem sexuada.
Existem duas atitudes num indivíduo que tenha problemas com a sua auto-imagem: ou a
esconde ou a exibe como forma de reacção, de compensação e reacção. É importante dizer
que apenas há uma regra sem excepção na psicopatologia: um indivíduo só exibe aquilo que
não tem. (…) Não há nenhuma mulher que constantemente exiba a sua beleza que não esteja
convencida que é feia, embora este sentimento possa não ser consciente. Nem nenhum homem
que exibe constantemente a sua força que não esteja convencido que é fraco. (…) A arrogância
pode cobrir um enorme complexo de inferioridade.
(…) actualmente, as nossas sociedades podem ser consideradas como sociedades de
sucesso onde, portanto, o que é vergonhoso é ter insucesso.»
Excertos de uma entrevista a Coimbra de Matos.

«Nos espaços da economia “mais avançada”, quer dizer, mais dispensadora de mão-de-
obra, milhões de homens não estão apenas “desempregados”, estão já e estruturalmente à
margem do mundo onde a criatividade humana se exprime. Na melhor das hipóteses, são
assistidos materialmente  o que não é o caso de toda a humanidade , mas desconectados da
máquina social, como um doente desligado do aparelho que o faz viver.»
Eduardo Lourenço, 25 de Fevereiro de 1996.

«Apesar de português, sei pouco. Tenho, ainda por cima, a mania de ouvir as várias
versões da mesma história, ou as partes do problema (o que vem quase sempre a dar no
mesmo). (...)
Confidenciava-me alguém (tudo off-the-record, porque este é o país em que tudo se diz
á boca pequena, não só para não ferir susceptibilidades, como  e sobretudo  para não
provocar ódios que sejam prejudiciais) (...).»
Possidónio Cachapa, JL, 2 de Abril de 2001.

«Temos de escolher entre a Pedagogia e a Demagogia. Achincalhar e destruir


publicamente quem fuja ao “lugar comum” é a normalidade entre nós, uma das constantes que
formam a famosa “alma nacional” e que motivaram comentários célebres de homens como
Sena e Sérgio, vítimas notáveis de tais “tiques” ... Um ambiente intelectualmente rico faz-se da
diversidade de perspectivas, do ensaio de formulações alternativas, de respeito e do cultivo da
troca de opiniões díspares, o que é incompatível com a tradição do terrorismo unanimista e
maniqueísta que a cultura dos «familiares do Santo Ofício» forjou em séculos de ortodoxia
caceteira.
Ensaiar outro ponto de vista, estar atento às limitações da nossa própria opinião e às
virtudes da opinião alheia, estimular a franqueza intelectual em vez do oportunismo,
compreender as alteridades, opormo-nos aos “donos da verdade” e à “direcção única”, é uma
atitude terapêutica em que o nosso meio é deficitário. (...)
Assim, as principais vítimas das cruzadas que a nossa comunicação social “promove” são
os próprios consumidores, manipulados com a melhor das intenções e saem com a cabeça cada
vez mais acrítica e conformada. Quanto ás opiniões, vivemos numa sociedade que cria a ilusão
de que todos nós somos opinativos, vivendo-se mesmo um “boom” de recolha de opiniões;
mas trata-se de uma ilusão. A opinião tem de ser, em primeiro lugar, abalizada, relevante,
exposta segundo os princípios da racionalidade e, dando espaço ao contraditório, deve ter um
carácter de ensaio e traduzir o respeito pelas opiniões divergentes.

16
Na vida política, por exemplo, abusa-se das expressões “eu quero”, “não admito”, “não
gosto”, “esteja calado”, que impõem a ordem consonante. De facto, não serão precisos tantos
deputados, por exemplo, se se limitam à disciplina de voto, se têm as mesmas opiniões que a
sua direcção manda que tenham, se votam automaticamente. (...) O relevo nacional que um
pequeno facto ou uma pequena opinião ganham nos noticiários, sem uma avaliação correcta da
proporção entre o destaque e o peso real, constitui um dos maiores focos de enquistamento do
famoso “senso comum”. Colocar a “bomba atómica” da comunicação nas mãos do “senso
comum” é o melhor caminho para a estupidificação nacional. As evidências do “senso comum”
são as mais necessitadas de ser desmontadas, pois são o principal factor do unanimismo, do
conformismo, do oportunismo, dos preconceitos, dos tiques mentais e do feudalismo
intelectual. Regiamente pagos e dispondo de enorme poder social, os profissionais da
comunicação social devem pôr no seu trabalho um escrúpulo, um rigor e uma competência
iguais aos que, por exemplo, os historiadores colocam no seu discreto trabalho. Nos “frente-a-
frente”, a lógica, em vez de ser a da compreensão do que cada um pensa é antes a da
destruição da possibilidade da diferença. A substituição da crítica pela má-língua descamba no
ataque “ad hominum” impune e descarado.
Por fim, a “argumentação quantitativa”, a que se faz com estatísticas e inquéritos, polui
ainda mais o ambiente. O que se pergunta, como se pergunta, quando e a quem se pergunta, a
que realidade substantiva o número se refere  tudo fica escamoteado perante o prestígio do
número (...).»
Artur M. de Carvalho

«Tolerância é algo em que um grupo dita a norma, mas admite que outros a tenham
diferente, e o que se pretende é que nenhum grupo dite a norma, que todas as normas tenham
igual valor.»
«Eu não quero que me tolerem, mas que me respeitem, tal como não quero tolerar os
outros, mas respeitá-los como iguais.»
«É por isso que não gosto da palavra “tolerância”. Porque significa já superioridade de
uns sobre os restantes. Tão superiores, que até podem tolerá-los.»
Diana Andringa

«Resta-nos o Ser Pequenino. Andamos há mais de 800 anos (...). Parecemos um rolinho
de “Mars”, entalado entre a Espanha e o mar. Ou então, um irmão mais pequenino, que se
chegasse para a bordinha da cama, para não levar uma patada do hermano gordo e bruto. E os
séculos passam e a gente cá está. Volta e meia, até nos metemos em bicos de pés e fingimos
que somos grandes exploradores. Mas é tudo a brincar. Quando a coisa se torna séria e temos
que gerir açucares e ouros dos Brasis, começamos a torcer a ponta do manto bordado na mão,
olhando para as fivelas dos sapatos de cetim. Como quem dissesse que já não lhe está a
apetecer brincar. É por isso que a gente não acredita nos nossos políticos. Porque são
portugueses. E tudo o que digam com voz grossa e palavreado aprendido em terras onde a
cabeça manda mais que o coração, não são para levar a sério.»
Possidónio Cachapa, 17 de Outubro de 2001.

«(...) perceber a diferença entre a incapacidade de compreender ou discernir (vulgo


estupidez) e a falta geral de conhecimento (vulgo ignorância), que, embora diferentes, andam
muitas vezes associadas.»
Américo Ramos dos Santos

«O português, “língua de viagem e de mestiçagem”, sempre se foi enriquecendo e


fortalecendo com empréstimos, que no entanto o seu metabolismo ia transformando em sangue
próprio.»
João Barrento
17
«Quando eu me vejo às voltas com a Ilíada acode sempre um plumitivo3 de jornal que,
sabendo tudo sobre a “questão homérica”, afirma, sustenta e desenvolve aquilo a que a minha
ignorância se não atreve. E isto vale para todos os clássicos, para apenas mencionar esta
categoria, porque no que respeita aos outros, o conforto do saber que sinto em volta instalado
é ainda mais extenso, profundo, inquestionável e definitivo. Vai-se longe, neste país. Conhece-
se. Há talento, há saber.
(...) Abençoados os audazes que se expõem onde os pobres dos outros não ousam.»

«O mesmo ar, impante4 de impunidade, do jovem arrogante da gravura, vejo eu hoje nos
jornalistas que, de micro enristado 5 perguntam, lançando a atarantação e o terror: ”Tem
alguma coisa contra a comunicação social?”»

«(...) a promoção generalizada dos energúmenos6 do futebol, (...).»


«(...) a prática canibal da injúria e da calúnia ...).»
Mário de Carvalho, Público

«Então em democracia não se pode discutir tudo? Não, não pode, há limites: os do bom-
gosto, os do respeito pelos outros, os do respeito por si próprio. E também o do respeito pelas
pouquíssimas e preciosas aquisições civilizacionais, inseguras e fragilíssimas, que nos separam
da barbárie.
(...)
Eles os das televisões vêm difundindo a relice, o palavrão, o sangue, a violência, os
apelos ao linchamento. Vêm remexendo os instintos mais baixos e mais sanguinários que há no
populacho. Vêm disseminando a agressividade e a rasquice mais despudoradas.
É notícia! Dizem. Uma ova. É mas é o vil servilismo perante os patrões, a demagogia da
manipulação das audiências, a ausência de princípios, a perseguição do lucro. Obedecem a
ordens. Tudo está bem, desde que lhes paguem bem, ou que, pelo menos, os mantenham
empregados.
(...) A degradação provocada pela programação reles, pela música pimba, pela conversa
de autocarro, pela incitação à violência e pelo apelo à barbárie é mais nociva que a
cimentomania de meia dúzia de autarcas megalómanos.
(...)
Quando, num dia nefasto, aparecer um caudilho carismático a mobilizar turbas
infantilizadas, embrutecidas, afeitas às formulações primárias e aos apelos sanguinários, não se
admirem.»
Mário de Carvalho, Público, Outubro de 1996.

«Fui, entretanto, reparando em sinais muito inquietantes: não há muita gente capaz de
perceber uma ironia, há menos ainda capaz de decifrar um texto que se desvie minimamente do
vocabulário básico elementar. Fórmulas correntes de cortesia, como, por exemplo, “obrigado
por se ter lembrado de mim”, são interpretadas por jovens jornalistas à letra, como se nos
estivessem, de facto, a fazer um favor. Se eu falar de um autor que não conste dessas listas de
3
Escritor público; jornalista.
4
Impante  cheio de soberba; ufano;
5
Enristar  pôr em riste (a lança); investir; preparar-se para acometer o inimigo.
6
Energúmeno  possesso do Demónio; pessoa que, dominada por uma obsessão, pratica desatinos.

18
lixaria que as livrarias e os jornais promovem às carradas sou considerado pedante, ou
arrogante. Se eu declarar que não leio essas revistas idiotas que há por aí, cheias de bonecos e
de vidas que não me interessam para nada, há quem me julgue excêntrico; se eu protestar
contra o progressivo empobrecimento dos jornais, contra a javardização na imprensa
apasquinada, contra o abandalhamento ambiental promovido pela infâmia das televisões, vêm
dizer-me que eu não percebo nada de negócios. Mas não é de negócios que eu estou a falar. É
de obscenidade.
(...)
O perigo vem da derrocada das resistências culturais e morais; do conformismo
atoleimado7 com o estado das coisas; da ignorância ostensiva, quase provocatória, do que
ficou para trás, da veniaga8 capitalista que tritura todos os princípios e todas as dignidades; do
populismo e do irracionalismo alvar9 que são lisonjeados e ampliados por uma comunicação
social vendida; da bruteza e do velhaquismo instalados, sem que ninguém ouse protestar, da
grotesca cacicagem10, sem escrúpulos, sem alma e sem vergonha, que se corteja e a que se dá
voz ... Eu sei lá ...»
Mário de Carvalho, Público

«Um popular, que não queria que na escola lhe misturassem os filhos com os dos
ciganos, explicou à televisão: “Eles são de uma raça, nós somos de outra”. (...) Como é que
isto me aconteceu, chegar aos 50 anos e ouvir dizer e reproduzir estas falas na minha terra?
(...) É que eu julguei, em tempos, que estas coisas deixariam de ser possíveis. E que
outras gerações viriam, melhores que a minha. Educadas em democracia. Empenhadas em
valores básicos de tolerância, racionalidade e respeito pelos outros. E, no entanto, o que eu
ouço é grunhir, uivar e blaterar11 por todo o lado é a voz da canalha. Nuns tempos em que já
não devia haver sequer canalha.
(...)
A direita ajeita-se bem a estas realidades. Ou constitui ela própria a canalha, ou, sendo
mais educada, entende que a canalha é necessária e que faz parte da ordem eterna das coisas.
O povoléu deve estar confinado às suas inferioridades naturais. Assim até é mais útil. E desde
que rosne extramuros, bem pode chafurdar e dar espectáculo, enquanto os bem-nascidos
folheiam in-fólios e brincam às suas coisas dilectas. Em sendo preciso recorrer à plebe, ensaia-
se a demagogia, método milenarmente comprovado. Diz-se-lhes o que eles gostam de ouvir.
Açula-se-os. Dá-se-lhes “conversa de autocarro”. Ajavarda-se a compostura (“É o bicho, é o
bicho...”). Bebe-se uns copázios com eles.
(...)
O pequeno país que nós somos tem uma classe média débil; uma intelectualidade exígua;
um sector político promíscuo com patos-bravos e lanistas; subelites ténues e volúveis;
tradições operárias erodidas12; um atraso económico e cultural reconhecido. E heranças
oneradas13. Somos muito vulneráveis. Não temos reservas nem defesas. Não há nichos, não há
abrigos, não há resistências, não há territórios, como outros têm. Nove séculos de conturbada
história não dão para aguentar toda esta pressão. As aquisições civilizacionais são de vidro
fino. De quebrar num instante.»
7
Atoleimado  um tanto tolo; apatetado.
8
Veniaga  artigo vendível; mercadoria; ( figurado) traficância.
9
Alvar – (fig.) aparvalhado, boçal.
10
Cacique  chefe, mandão político.
11
Blaterar  soltar a voz; gritar.
12
Erodir - causar erosão em; desgastar; carcomer; corroer.
13
Onerar  verbo transitivo: impor ónus ou obrigação a; obrigar; sobrecarregar com tributos; vexar; oprimir;
verbo reflexo: sobrecarregar-se.

19
Mário de Carvalho, Público, Setembro de 1996.

«Não há nada tão inesgotável nem tão insondável como a estupidez humana.»
Victor Rodrigues

«(...) Tudo isto são coisas que eu fui tentando dizer, embora por vezes as dissesse de tal
forma que, penso, não havia condições de escuta, por parte daqueles que deveriam ser os meus
interlocutores privilegiados (...). Isto é, cada situação tem não apenas uma componente
racional mas uma componente afectiva, e ignorar essa componente afectiva dos nossos
auditórios leva a que se façam discursos que não têm possibilidade de ser escutados. (...)»
Eduardo Prado Coelho, Expresso, 19/12/1992.

«Sejamos sérios: o critério do aborrecimento não é por si só válido para ninguém, mas
muito menos quando se trata de personagens totalmente insignificantes, que apenas têm de
relevante no seu currículo o facto de se aborrecerem muitas vezes.»
Eduardo Prado Coelho

«Aprendemos mais com o que não percebemos do que com o que percebemos.»

«(...) uma pessoa só ganha em manter-se igual àquilo que pensa e sente, aprofundando
tudo isso à medida que vai vivendo, e é assim que pode ser interlocutor de muitas mais
pessoas. (...) Se alguém se esforça para se adaptar a determinada tendência obviamente sente-
se que tudo fica desfasado, que é uma mentira. Como se sentiu quando o marxismo esteve em
grande moda, no princípio dos anos 70: “toda a gente” era marxista (...) Tenho horror a essas
modas e a um pensamento dominado por modas. É aí que tudo se torna pantanoso, ou mais ou
menos igual.»
João Bénard da Costa, (Excerto de uma entrevista ao JL, 18/12/1990)

«Há a anedota que se conta e a anedota que se é. Se a anedota que se conta é uma das
espécies literárias (literárias, claro, embora a ignorem as histórias e as teorias da literatura)
mais apreciadas no mundo (em todo o mundo, sim), parece estranho que se chame anedota a
alguém que se quer depreciar ou ridicularizar.
Mas a relação é evidente: a anedota, como o sujeito ou a sujeitinha em causa, faz rir. Ou
então: a sujeita ou o sujeitinho em causa parecem-se com personagens da anedota, mas não
personagens positivos, que as anedotas podem ter (e se não têm é o narrador-enunciador ou o
receptor-leitor-ouvinte que faz as suas vezes), antes personagens que se definem pela sua
ignorância, estupidez, ingenuidade, distracção, hipocrisia, vaidade, teimosia, fragilidade,
prosápia14, ambição, esperteza saloia.
São estes, como regra, os defeitos que a anedota castiga — pelo riso. E o que é o riso,
para que ele possa castigar (…)?
Talvez não seja difícil definir o riso fisiológico, mau grado a amplitude das suas
variações, que vão do “ataque” e da gargalhada ao sorriso, às vezes tão ambíguo como o da
Gioconda; mas até hoje ninguém conseguiu definir bem o riso do ponto de vista psicológico —
as suas causas, as suas motivações, os seus mecanismos, as suas funções —, como ninguém
conseguiu ainda distinguir bem entre as diversas cores ou modalidades do cómico ou das
espécies cómicas: satírico, irónico, humorístico, sarcástico, jocoso, burlesco, grotesco, …
comédia, sátira, epigrama, paródia, piada, graça, gracejo, chiste, chalaça … Pensando apenas
no humor, damo-nos conta de que ele pode ser “bom” e “mau”, “britânico”, “negro”,
“absurdo”, “trágico”, etc.
(…)
Arnaldo Saraiva

14
PROSÁPIA - Linhagem; ascendência; progénie; raça; (fig.) orgulho; jactância; fanfarrice; bazófia.
20
«(…) E é essa mudança de atitude que urge fazer, substituindo a frase rebuscada pelo
pensamento cristalino, o embrulho de luxo do lixo intelectual pelo embrulho ecológico e
simples da subtileza mental, a pretensão inchada pelo entusiasmo humilde de conhecer e
compreender, o pensamento sibilino sobre o que não se pode dizer pelo pensamento
dessacralizado do que se pode pensar.»

Desidério Murcho

«As acções mais baixas são apresentadas sob uma máscara tolerável. O que outros
chamam avareza parece ao autor um cuidado prudente com a família ou com os amigos; a
fraude parece-lhe uma conduta astuta; a malícia e a vingança, um sentido justo de honra e a
defesa do nosso direito à propriedade e à fama; o fogo e a espada, e a devastação dos inimigos,
uma justa defesa convicta do nosso país; a perseguição, um zelo pela verdade e pela eterna
felicidade dos homens, a que os heréticos se opõem. Em todos estes casos, os homens agem
geralmente com base num sentido de virtude baseado em falsas opiniões e benevolência
enganada; em perspectivas erradas ou parciais do bem público, e dos meios para o promover;
ou baseado em sistemas muito pacóvios, constituídos por opiniões analogamente tolas. Não é
um deleite com a miséria alheia, ou a malícia, que está na origem dos crimes horríveis que
preenchem as nossas histórias; é antes, em geral, um injudicioso entusiasmo irrazoável por uma
espécie qualquer de limitada virtude.»
Francis Hutcheson

«Que há algo de paralisante na mentalidade portuguesa já Eça o sabia: grandes discursos


e revoluções acabam na cervejaria da esquina, à frente de uns pipis. Gente a fazer realmente
algo em prol do que julga melhor, há pouca. A culpa, claro, é sempre do governo, do sistema,
dos outros portugueses todos, que são tolos, ao contrário de nós, que somos espertos.»
Desidério Murcho

«(…)os efeitos desastrosos que o multiculturalismo e o relativismo epistémico têm na


sociedade indiana. As pseudociências, o irracionalismo e o tradicionalismo opressor são o
resultado real das políticas falsamente de esquerda, que ao querer pôr ao mesmo nível a
bruxaria e a ciência, acabam por legitimar toda a tolice opressora, desde que seja tradicional.»
Desidério Murcho

Liberdade e insulto
«Há quem pense que é possível conciliar a liberdade de expressão e a proibição do insulto. Mas isto é
falso; como escreveu Orwell, "Se a liberdade significa realmente alguma coisa, significa o direito de
dizer às pessoas o que elas não querem ouvir".
O conceito de insulto é demasiado escorregadio para se poder determinar o que é um insulto ou não.
Nem todas as falsidades que se afirmam de alguém o insultam: se as pessoas disserem que o papa é
espanhol, estarão a dizer uma falsidade que não insulta os católicos. Mas algumas verdades são sentidas
como insultuosas: afirmar que o papa é um homem que usa roupas que parecem saias e que acredita
que o vinho se transforma em sangue de Cristo é afirmar verdades, mas poderão ser sentidas como
insultuosas por alguns católicos. Assim, um insulto é seja o que for que alguém afirma e que outra
pessoa qualquer não gosta, por este ou aquele motivo. Donde se segue que se aceitarmos a proibição do
insulto, colocamos uma mordaça ubíqua na liberdade de expressão, pois seja o que for que alguém diz
pode ser entendido como insultuoso por outra pessoa qualquer.
A ideia de viver em liberdade e democracia inclui a ideia de aprender a viver com a diversidade de ideias
e estilos de vida, o que implica a disposição para aceitar a realidade tal como é, com pessoas que nos
desagradam mas que têm direito a existir. A humanidade é muito diversificada; sem uma vontade
honesta para a aceitar, a liberdade e a democracia estarão sempre ameaçadas. As pessoas religiosas
21
preferiam um mundo sem ateus, alguns ateus preferiam um mundo sem pessoas religiosas, muitas
pessoas preferiam um mundo sem homossexuais, e estes preferiam um mundo sem essas pessoas. É esta
desvontade para aceitar a humanidade tal como é que faz as pessoas deitar mão do conceito de insulto: é
uma tentativa infantil de fingir que no mundo não há pessoas que nos desagradam profundamente, pois
se elas existirem mas estiverem caladinhas, até parece que não existem.»
Desidério Murcho

Insulto

«Supostamente, toda a gente defende a liberdade de expressão. Mas quando esta ideia vaga se condensa
em algo de palpável vê-se que as palavras usadas já não querem dizer o que poderíamos pensar que
querem dizer. "Liberdade de expressão" passa então a querer dizer algo como "cada qual pode dizer o
que quiser, desde que não me insulte nem me ofenda nem ponha em causa as minhas causas mais
queridas ".
(…) Não há liberdade de expressão sem liberdade para insultar. Na verdade, a liberdade para insultar é
fundamental numa sociedade que se quer honesta porque o insulto é precisamente uma das mais
poderosas armas conhecidas contra o auto-engano. (…) o insulto é precisamente o balde de água fria
que ameaça liquidar a fantasia em que o insultado insiste em viver. Se o insultado não desconfiasse de
que há uma ponta de verdade no insulto, não se teria sentido insultado.
(…) Não é uma boa ideia viver a vida a fingir que somos o que realmente não somos, sempre
desconfiados de que somos outra coisa menos nobre. Que se lixe. Se formos honestamente humanos,
saberemos que temos falhas: não somos os mais corajosos, os mais ricos, os mais bonitos, os mais
inteligentes, mas saberemos dar qualquer coisa de valor aos que nos rodeiam, modestamente.
Daqui a apenas cento e cinquenta anos estaremos todos mortos, incluindo os bebés que acabaram de
nascer. Não há boas razões para pensar que há uma vida depois desta; mas mesmo que haja, é uma boa
ideia fazer desta uma vida boa. Acontece que isso não é possível enquanto continuarmos a sentir-nos
insultados, pois só podemos sentir-nos insultados quando queremos proteger uma mentira acerca de nós
mesmos. E nenhuma felicidade genuína é possível se vivermos na mentira.»
Desidério Murcho

«Diz-se por vezes que os fins não justificam os meios. Mas isto é com certeza uma palermice. Pois se os
fins não justificam os meios, o que haveria de os justificar? É um exagero dizer que a finalidade dos fins
é precisamente justificar os meios, mas não anda longe da verdade: é que nada mais pode justificar os
meios excepto os fins. Por exemplo, o que justifica uma viagem longa e desconfortável até chegar a uma
dada praia é o fim de querer apanhar Sol e nadar nessa praia.
Claro que o que se quer dizer com essa frase feita tem de ser outra coisa. Quer-se dizer que certos fins
não justificam certos meios. Por exemplo, tornar um dado país mais rico, que é em si um fim desejável,
não justifica todo e qualquer meio, incluindo, por exemplo, declarar guerra a um país vizinho que nada
nos fez de mal. Ou, para dar outro exemplo, o fim que alguém tem de ir ao cinema não justifica o meio
de deitar o seu bebé pela janela por não ter quem cuide dele durante esse intervalo.
(…) Ideias originalmente boas são distorcidas e tornam-se péssimas práticas, ideias más são vistas
como boas porque são superficialmente parecidas com outras que realmente são boas: e é destes
equívocos que é em parte feita a vida política contemporânea. Bombardeado com desinformação
disfarçada de informação, publicidade que vende o que não existe e discursos políticos extravagantes, o
cidadão comum acaba por criar uma certa indiferença que só pode ser combatida com escândalos cada
vez mais escandalosos. O ecologista, por exemplo, vê-se obrigado a mentir, pintando um futuro negro,
do qual quase nada sabe; o defensor dos direitos das minorias vê-se obrigado a fingir que toda e
qualquer tolice de toda e qualquer minoria é de aplaudir, só por emanar de uma minoria; e afasta-se
cada vez mais da vida pública o pensamento subtil e cuidadoso, (…).
A escola deveria dar ao cidadão um contacto com o pensamento sofisticado e cuidadoso, mas não o faz.
O amor à verdade e à precisão parece hoje uma excentricidade castiça. Mas sem esta atitude, prevalece
a mentira. Se temos como fim uma vida mais honesta, cultivar a verdade e a precisão é um meio
perfeitamente adequado.»
Desidério Murcho

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