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Book review
Essa é a grande novidade da modernidade que mongering 2 a arte de “vender” doenças novas ou
sobrevive nos dias de hoje: a fantasia de que o de alargar os limites das categorias diagnósticas
discurso científico da medicina é produtor de já existentes como forma de aumentar o merca-
verdades inquestionáveis. Nessa seara, as ques- do de consumo das drogas psiquiátricas. Outros
tões são muitas: O discurso médico é um dis- autores têm usado o termo farmacologização 3
curso científico? O discurso psiquiátrico é um para expressar a medicalização contemporânea,
discurso médico? Há um único modelo de cien- fortemente pautada na transformação de condi-
tificidade? O que é um discurso científico? O dis- ções humanas em oportunidades para interven-
curso científico é um discurso verdadeiro? ções farmacológicas.
Whitaker não tem pretensões epistêmicas e O jornalista nos mostra ainda que os medi-
não se aventura em promover um debate sobre camentos são verdadeiras armadilhas, no sentido
a relação entre ciência e verdade, mas mostra de de promoverem um alívio sintomático a curto
forma bem fundamentada que apesar da histó- prazo, mas perturbarem um sistema de neuro-
ria contada pela Psiquiatria ser a de uma ciência transmissores que promove adaptações com-
rigorosa em ação, a realidade é muito distante pensatórias do cérebro. Em consequência dessas
disto. Os cientistas não identificaram qualquer mudanças, a pessoa que retira o medicamento
processo patológico ou anormalidade cerebral torna-se vulnerável a recaídas, o que provoca a
que pudesse causar os sintomas dos quais os pa- ilusão de que a droga é indispensável.
cientes se queixam. O autor afirma a inexistência Mas Whitaker argumenta que são as próprias
de estudos bem conduzidos de longo prazo sobre drogas – e não as doenças – as responsáveis pela
os efeitos dos psicotrópicos. Também desbanca, recaída. O uso contínuo das drogas psiquiátricas
com expressiva consistência teórica, a teoria do causa doenças mentais incapacitantes e tem ge-
desequilíbrio químico dos transtornos mentais. rado uma epidemia de doentes mentais crônicos.
Whitaker não se limita a apontar a fragilida- Illich 4 diria que estamos diante de uma iatrogê-
de da Psiquiatria como saber científico, mas nos nese clínica, isto é, que parte dos distúrbios psi-
mostra que diversos estudos evidenciaram a ine- quiátricos de hoje são doenças criadas na medida
ficácia das drogas psiquiátricas. Outros demons- em que são condições clínicas das quais os medi-
traram eficácia comprovada de alguns medica- camentos, os médicos e as instituições de saúde
mentos em termos de alívio de sintomas em cur- são os agentes patogênicos.
to prazo e um desastroso desfecho a longo prazo. Whitaker se pergunta por que, apesar das evi-
A evidência de que a maioria dos psicotrópicos dências, a sociedade acredita na existência de uma
tem efeitos benéficos a curto prazo mas cobram “revolução psicofarmacológica”. A problematiza-
um alto preço a longo prazo, tanto em termos fí- ção desse aspecto é, talvez, a maior fragilidade do
sicos quanto psíquicos, é o dado mais importante trabalho. O autor reduz a vitória da Psiquiatria
do livro. Ela nos faz entrar no segundo ponto ca- Biológica ao esforço de psiquiatras em superar a
ro aos estudiosos da medicalização: a produção imagem da fragilidade científica própria da espe-
de doenças. cialidade. Faz referência ao empenho dos psiquia-
Uma das faces clássicas da medicalização tras em reabilitar a imagem dos psicotrópicos e
é a expansão das fronteiras diagnósticas ou a contar a história dos transtornos mentais dentro
classificação de condições próprias da vida co- de uma perspectiva centrada exclusivamente no
mo transtornos mentais, passíveis de tratamen- modelo biomédico, fortemente associado à ver-
to médico. Whitaker reafirma essa realidade na dade científica no imaginário social.
atualidade da Psiquiatria, sobretudo no que se Como resposta à perda de mercado para ou-
refere à bipolaridade e à patologização dos com- tras terapias, que se mostraram mais eficazes,
portamentos de crianças e adolescentes. Auto- configurou-se aquilo que Whitaker denomi-
res contemporâneos têm chamado de disease nou de uma “aliança espúria” entre a indústria