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R IHGB

a. 177
n. 472
jul./set.
2016
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2015-2016)
Presidente: Arno Wehling
1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: José Arthur Rios
1º Secretário: Cybelle Moreira de Ipanema
2º Secretário: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva
CONSELHO FISCAL
Membros efetivos: Antonio Gomes da Costa, Luiz Felipe de Seixas Corrêa,
Marilda Correia Ciribelli
Membros suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,
Roberto Cavalcanti de Albuquerque
CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Antonio Gomes da Costa, Carlos Wehrs, Célio Borja,
José Pedro Pinto Esposel, Miridan Britto Falci e Vasco
Mariz

DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: Pedro K. Vasquez
Informática e Dissem. da Informação: Carlos Eduardo de Almeida Barata
Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenação da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal
Guimarães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda
COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Affonso Arinos de Mello Franco
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Alberto Venancio Filho
Carlos Wehrs Helio Jaguaribe de Matos Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires José Murilo de Carvalho João Maurício A. Pinho
José Arthur Rios Maria Beltrão Victorino Chermont de Miranda

GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:


Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Cybelle Moreira de Ipanema Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
José Almino de Alencar Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Miridan Britto Falci Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Vera Lúcia Cabana de Andrade Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177, n. 472, pp. 11-334, jul./set. 2016.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 177, n. 472, 2016.

Indexada por/Indexed by
Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –
Sumários Correntes Brasileiros

Correspondência:
Rev. IHGB – Av. Augusto Severo, 8-10º andar – Glória – CEP: 20021-040 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/fax. (21) 2509-5107 / 2252-4430 / 2224-7338
e-mail: revista@ihgb.org.br home page: www.ihgb.org.br
© Copright by IHGB
Tiragem: 700 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Sandra Pássaro
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o


Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Trimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)
N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventá-
rio analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervo
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley
– N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006.
– N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império.

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Celia da Costa


CONSELHO EDITORIAL
António Manuel Dias Farinha – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal
Arno Wehling – Universidade Veiga de Almeida – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Carlos Wehrs – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Lucia Maria Bastos Pereira das Neves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Manuela Mendonça – Universidade de Lisboa – Lisboa – Portugal
Maria Beatriz Nizza da Silva – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Vasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Eduardo Silva – Fundação Casa de Rui Barbosa – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Esther Caldas Bertoletti – Ministério da Cultura – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Lucia Maria Paschoal Guimarães – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ-Brasil
Maria de Lourdes Viana Lyra – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Mary del Priore – Universidade Salgado de Oliveira – Niterói-RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
Aniello Angelo Avella – Universidade de Roma Tor Vergata – Roma – Itália
António Manuel Botelho Hespanha – Universidade Nova Lisboa – Lisboa – Portugal
Edivaldo Machado Boaventura – Universidade Federal da Bahia – Salvador-BA-Brasil
Fernando Camargo – Universidade Federal de Pelotas – Pelotas-RS – Brasil
Geraldo Mártires Coelho – Universidade Federal do Pará – Belém-PA – Brasil
Guilherme Pereira das Neves – Universidade Federal Fluminense – Niterói-RJ – Brasil
José Marques – Universidade do Porto – Porto – Portugal
Junia Ferreira Furtado – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte-MG – Brasil
Leslie Bethell – Universidade de Oxford – Oxford – Inglaterra
Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos – Ministério das Relações Exteriores – Brasília-DF – Brasília
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – Universidade Federal de Pernambuco – Recife-PE – Brasil
Maria de Fátima Sá e Mello Ferreira – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa – Lisboa – Portugal
Mariano Cuesta Domingo – Universidad Complutense de Madrid – Madrid – Espanha
Miridan Britto Falci – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro-RJ – Brasil
Nestor Goulart Reis Filho – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Renato Pinto Venâncio – Universidade Federal de Ouro Preto – Ouro Preto-MG – Brasil
Stuart Schwartz – Universidade de Yale-Connecticut – EUA
Ulpiano Bezerra de Meneses – Universidade de São Paulo – São Paulo-SP – Brasil
Victor Tau Anzoategui – Universidade de Buenos Aires – Buenos Aires – Argentina
SUMÁRIO
SUMMARY
Carta ao Leitor 11
Lucia Maria Paschoal Guimarães
I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS
Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama 13
On the history of brazilian historiography: a brief overview
Maria da Glória de Oliveira
Rebeca Gontijo
Os caminhos do sertão 39
The paths of the hinterland
André Heráclio do Rêgo
A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação 77
dos senadores em 1826. Estratégias políticas na formação do
Legislativo brasileiro.
The “ill-fated choice”: D. Pedro I and the appointment of the se-
nators in 1826. Political strategies in the formation of the brazilian
legislature.
Marina Garcia de Oliveira
Monica Duarte Dantas
República e soberania antes de 1889 117
Republic and sovereignty before 1889
David F. L. Gomes
A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro 147
The monarchy and sea bathing in brazil
Paulo Francisco Donadio Baptista
Um republicano em plena monarquia. A construção 165
das memórias de Ramiz Galvão no IHGB
A republican in the midst of the monarchy: constructing the memo-
ries of Ramiz Galvão in IHGB
Ana Paula Sampaio Caldeira
O que há de errado com o português? O processo de 197
adaptação linguística de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro
What’s wrong with portuguese? Stephen and Lotte Zweig´s
language adaptation process in the country of the future
Maria das Graças Salgado
Eduardo Silva
II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS
Um pioneiro da limnologia no Brasil: 215
Herman Kleerekoper (1910-2005)
A pioneer in the field of limnology in brazil: Herman Kleerekoper
(1910-2005)
Melquíades Pinto Paiva
O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial 227
e o seu significado para o Brasil
The 70th anniversary of the end of the Second World War
and its meaning for Brazil
Sérgio Paulo Muniz Costa
D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro 255
D. João III, D. Catarina and Rio de Janeiro
Fernando Lourenço Fernandes
III – DOCUMENTOS
DOCUMENTS
E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice 273
sobre rituais no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
E-236 – Pastorals and Edicts. 1742-1838. A Codex about rituals in
the Archive of the Metropolitan Curia of Rio de Janeiro
Beatriz Catão Cruz Santos
V – RESENHAS
REVIEW ESSAYS
D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos 317
(Elementos para uma biografia)
Armando Alexandre dos Santos
Azulejaria em Belém do Pará. Inventário. 325
Arquitetura Civil e Religiosa. Século XVIII ao XX
Cybelle de Ipanema
• Instrução aos autores 329
Guide for the authors 331
Carta ao Leitor
Nos últimos quinze anos, a história da historiografia brasileira co-
nheceu grandes avanços e consolidou-se como campo de investigação
fecundo. Neste número da R.IHGB, a seção Artigos e Ensaios apresenta
um balanço panorâmico desse movimento renovador, produzido por Ma-
ria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo. As autoras apontam os fatores
que contribuíram para a emergência de uma reflexão historiográfica nos
anos 1970, bem como discutem os novos modelos de pesquisa que possi-
bilitaram a reconfiguração do campo, a partir do final da década de 1980.
O segmento Artigos e Ensaios traz mais seis inéditos, a começar
pela análise de André Heráclio do Rêgo sobre os chamados “caminhos
do sertão”. Ele demonstra como o processo de conquista do território e
o seu povoamento ajudaram a implantar a soberania portuguesa seja nos
sertões americanos, seja nos sertões de África. Por sua vez, a instigan-
te contribuição de Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas
examina as estratégias políticas empregadas por D. Pedro I na formação
do Legislativo brasileiro, em especial, na composição do Senado impe-
rial, cujos membros eram vitalícios. Ainda no âmbito da história políti-
ca, David F. L. Gomes oferece um alentado ensaio sobre a história dos
conceitos de república e de soberania no Brasil antes da proclamação de
1889, tomando como exemplo paradigmático os escritos de Frei Caneca.
Já a colaboração de Francisco Donadio Baptista – um exercício de micro-
-história – contempla a prática dos banhos de mar no Rio de Janeiro no
século XIX, iniciada pelos membros da familia real portuguesa (D. João
e D. Carlota Joaquina) e, depois da independência, cultivada pelos mem-
bros da família imperial. O artigo de Ana Paula Sampaio Caldeira tem
como objeto a figura do médico Benjamin Franklin de Ramiz Galvão. Ela
aborda a atuação de Ramiz no cenário intelectual do Segundo Reinado
e depois o papel proeminente que desempenhou no Instituto Histórico
já no período republicano ao lado de Max Fleiuss e do conde de Afonso
Celso, devassando as memórias de Ramiz construídas no IHGB, no seu
entender, um espírito republicano em plena monarquia. A seção se encer-
ra com o ensaio da dupla Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva, que
joga luz sobre a presença do escritor austríaco Stefan Zweig e sua esposa
alemã Lotte no Brasil, centrando o foco no processo de adaptação do ca-
sal Zweig às particularidades do idioma de Camões, no “país do futuro”.
Na parte destinada às Comunicações, em que se divulgam trabalhos
expostos nas sessões da CEPHAS/IHGB, o sócio titular Melquíades Pin-
to Paiva se debruça na história de vida do cientista holandês Hermann
Kleerekoper (1910-2005), um dos pioneiros no estudo da limnologia
no Brasil, enquanto o sócio correspondente Sérgio Paulo Muniz Costa,
a propósito da passagem do 70º aniversário do fim da Segunda Guerra
Mundial, tece comentários sobre a efeméride e o seu significado para o
nosso país. Outro sócio correspondente, Fernando Lourenço Fernandes,
examina o contexto internacional que levou à fundação da cidade do Rio
de Janeiro, em 1565, articulando a presença francesa na Guanabara com
a tentativa de colonização dos huguenotes na Flórida, em 1562, chefiados
por Jean Ribauld.
A seção Documentos reproduz um conjunto de manuscritos íneditos,
sob o título “Pastorais e Editais. 1742 – 1838”. Trata-se de um códice que
reúne diversos tipos de documentos relativos aos rituais eclesiásticos no
Rio de Janeiro. A transcrição vem acompanhada de ensaio crítico, redigi-
do por Beatriz Catão Cruz Santos.
Arrematam o número duas resenhas. A primeira é de autoria de Ar-
mando Alexandre dos Santos e aborda o livro D. Marcos de Noronha e
Brito, 8º Conde dos Arcos (Elementos para uma biografia) – (Lisboa:
Academia Porguesa da História, 2011), escrito por um descendente do
fidalgo português, o seu hexaneto D. Marcus de Noronha da Costa. A
segunda vem assinada por Cybelle de Ipanema, que esquadrinha a obra
Azulejaria em Belém do Pará. Inventário. Arquitetura Civil e Religiosa.
Século XVIII ao XX. (Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional, 2016), contribuição produzida pelas especialistas Dora
Alcântara, Stella Regina Soares de Brito e Thais Alessandra Bastos Ca-
minha Sanjad.
Boa leitura!
Lucia Maria Paschoal Guimarães
Diretora da Revista
13

I – ARTIGOS E ENSAIOS
ARTICLES AND ESSAYS

SOBRE A HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA:


UM BREVE PANORAMA
ON THE HISTORY OF BRAZILIAN HISTORIOGRAPHY:
A BRIEF OVERVIEW
Maria da Glória de Oliveira1
e Rebeca Gontijo2

Resumo: Abstract:
Neste ensaio, propomos um balanço, mais pano- We propose in this essay to present an overview
râmico do que exaustivo, dos estudos de história rather than an in-depth analysis of the studies of
da historiografia no Brasil, de modo a destacar the history of historiography in Brazil in order
questões e temas mais frequentes, bem como to address some of the more frequent questions
possibilidades e perspectivas de investigação and topics related to it, as well as to focus on
que contribuíram para a configuração dessa the possibilities and research perspectives that
subárea de pesquisa. Na primeira parte da ex- contributed to the configuration of this research
posição, procuramos mapear a emergência de sub-area. First, we seek to map the emergence
uma reflexão historiográfica, que se evidencia of a historiographical reflection, evidenced by
com os trabalhos desenvolvidos até a década de the works developed up to the 1970s. We then
1970 e, na segunda, destacamos alguns modelos highlight some models of historiographical re-
de pesquisa historiográfica surgidos a partir da search that emerged from the 1980s onwards
década de 1980, que se constituíram em referên- and which have become landmark references
cias balizadoras para as pesquisas produzidas for the researches produced in the following
nas décadas seguintes. decades.
Palavras-chave: História da historiografia; his- Keywords: History of historiography; contem-
toriografia brasileira contemporânea; Teoria da porary Brazilian historiography; theory of his-
História. tory.

A história da historiografia brasileira renovou-se como campo de pes-


quisa fecundo, nos últimos quinze anos.3 Vinculados ao tema da escrita da
1 –1 Doutora em História Social/Universidade Federal do Rio de Janeiro; professora ad-
junta do Departamento de História e Relações Internacionais / Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro; bolsista de produtividade CNPq, nível 2.
2 –1 Doutora em História/Universidade Federal Fluminense; professora adjunta do De-
partamento de História e Relações Internacionais / Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro.
3 –1 É importante considerar que tal renovação vincula-se à criação de grupos e linhas de
pesquisa que contemplam a história da historiografia, sobretudo a partir dos anos 2000,
dentro de programas de pós-graduação como os da UFRGS e a UFOP e, o mais antigo, da

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

história, é possível identificar um conjunto de estudos que, a despeito da


diversidade de objetos e recortes temporais, buscam ultrapassar o exercí-
cio de crítica da produção historiográfica, de longa tradição acadêmica,
marcado pela análise das obras dos historiadores sob a estrita perspecti-
va da construção progressiva e acumulativa do conhecimento científico,
mediante a identificação de tendências e diretrizes balizadoras no âmbito
da disciplina. Tampouco vislumbramos nesses trabalhos a preocupação,
cara a certas abordagens da sociologia do conhecimento, em identificar
“matrizes ideológicas” subjacentes ao discurso histórico ou em atribuir às
“determinações sociais” a chave explicativa decisiva para a sua produção.

A despeito da autonomia e especificidade de suas novas agendas


de investigação, seria duvidoso afirmar que, em sentido mais amplo, a
história da história seja um empreendimento absolutamente recente e,
para demonstrá-lo, não caberia aqui traçarmos uma genealogia do cam-
po.4 Desde que o saber histórico passou a ser percebido como dotado
de historicidade e condicionado pelas perspectivas espaço-temporais de
sua elaboração, a abordagem crítica das narrativas históricas precedentes
tornou-se tarefa constitutiva da prática historiográfica moderna. Assim, o
exercício crítico retrospectivo dirigido ao gênero histórico, grosso modo,
pode ser identificado como preceito apregoado nos tratados de ars histo-
ricae dos humanistas, adquirindo estatuto de princípio metodológico da
construção do conhecimento pela ciência histórica moderna.5

Sob tal perspectiva temporalizada, acentuou-se o caráter tanto cumu-


lativo quanto provisório e relativo da historiografia, em torno da qual
sempre convergiram as expectativas de uma representação fidedigna dos

PUC-Rio; bem como à organização de eventos como o Seminário Nacional de História da


Historiografia, com encontros realizados anualmente desde 2008; a criação, da Sociedade
Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH), em 2009; e de revistas espe-
cializadas, como a História da Historiografia, criada em 2008.
4 –1 Neste sentido, ver: CARBONELL, Charles-Oliver. Pour une histoire de
l’historiographie. Storia della Storiografia 1, pp. 7-25 1982 e BLANKE, Horst W. Para
uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Editora Contexto, 2006, pp. 27-64.
5 –1 GRAFTON, Anthony. What was history? The Art of History in Early Modern Europe.
Londres: Cambridge University Press, 2007.

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

eventos passados. Entre meados do século XVIII e, notadamente, no


XIX, mais do que designar uma modalidade narrativa, a história passou
a definir uma nova episteme, constituindo-se em modo de ser do que é
evidente, ou seja, de tudo o que nos é dado à experiência. A nação emerge,
nesse momento, como categoria privilegiada por suas articulações com
uma noção de temporalidade histórica, compreendida como qualidade in-
trínseca e imanente da própria realidade.6

No Brasil, sobretudo a partir da independência, configura-se o pro-


cesso de disputa em torno do passado, evidenciado nos diversificados pro-
jetos para a nação recém-emancipada. Assim, o contexto das produções
letradas oitocentistas foi marcado pelo debate acerca da escrita de uma
história afinada aos desígnios do Estado monárquico imperial, quando
não se havia fixado ainda um modelo canônico para a sua elaboração. Por
conta disso, um dos desafios impostos aos pesquisadores da historiogra-
fia brasileira está, precisamente, no reconhecimento da dinâmica peculiar
desse contexto intelectual em que coexistiram tradições letradas e usos
de referenciais, modelos e concepções teóricas diversas, de um modo não
necessariamente excludente ou antagônico. Nesse caso, a historiografia,
entendida, em sentido mais amplo, como corpus de textos dados à leitura
de uma coletividade em seu próprio esforço de elaboração da experiên-
cia do tempo, apresenta-se como observatório privilegiado dos embates
intelectuais que prefiguraram respostas possíveis, e não obrigatoriamente
necessárias, para o problema da representação do passado.

Embora haja indícios de uma consciência historiográfica ao longo


do século XIX, a história da historiografia permaneceu como parte da
história da literatura até o início do século XX.7 E embora haja algumas
narrativas autônomas sobre essa história nas décadas de 1920 e 1930,
com as obras de Alcides Bezerra e Henri Hauser, sabemos que o esforço

6 –1 PALTI, Elías. La nación como problema: los historiadores y la “cuestión nacional”.


Buenos Aires: FCE, 2002, pp. 44-45.
7 –1 ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na forma-
ção nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Editora Hucitec, 2008.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

mais sistemático de estudo e escrita foi posto em prática por José Honório
Rodrigues entre os anos 1940 e 1970.8

Nas páginas seguintes, propomos um balanço, mais panorâmico do


que exaustivo, dos estudos de história da historiografia no Brasil, de modo
a destacar as questões e temas mais frequentes, bem como as possibilida-
des e perspectivas de investigação que contribuíram para a configuração
dessa subárea de pesquisa.9 Na primeira parte da exposição, procuramos
mapear a emergência de uma reflexão historiográfica, que se evidencia
com os trabalhos desenvolvidos até a década de 1970 e, na segunda, des-
tacamos alguns modelos de pesquisa historiográfica surgidos a partir da
década de 1980, que se constituirão em referências balizadoras para as
pesquisas produzidas nas décadas seguintes.

A EMERGÊNCIA DE UMA REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA


Em linhas gerais, identificam-se dois momentos específicos nos es-
tudos sobre historiografia brasileira no século XX: o período que vai do
fim dos anos 1940 até os anos 1960, quando as obras de José Honório
Rodrigues estabeleceram um modelo que se tornou referência obrigató-
ria nos cursos de graduação; e os anos 1970, quando outras propostas de
escrita dessa história entraram em cena.

José Honório Rodrigues destaca-se como o pesquisador que mais in-


vestiu no exame da produção historiográfica brasileira.10 A monumentali-
8 –1 BEZERRA, Alcides. Os historiadores do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Ofi-
cinas Gráficas do Arquivo Nacional, 1927; HAUSER, Henri. Notes et réflexions sur le
travail historique au Brésil. Revue Historique, Paris, t. XXXI, jun-mars1937, pp. 89-90.
9 –1 Outros balanços semelhantes também se encontram em: GUIMARÃES, Lucia Maria
Paschoal. Sobre a história da historiografia brasileira como campo de estudos e reflexões.
In: NEVES, Lúcia M. Bastos Pereira et. al. Estudos de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2011, pp.19-35 e ARAÚJO, Valdei Lopes de. O século XIX no
contexto da redemocratização brasileira: a escrita da história oitocentista, balanço e de-
safios. In: OLIVEIRA, Maria da Glória de e ARAÚJO, Valdei L. de. (org.) Disputas pelo
passado: história e historiadores no Império do Brasil. Ouro Preto/MG: Edufop/PPGHIS,
2012. (Edição Kindle)
10 – IGLÉSIAS, Francisco. José Honório Rodrigues e a historiografia brasileira. Estudos
Históricos, n. 1, 1988, pp. 55-78; GLEZER, Raquel. O saber e o fazer na obra de José
Honório Rodrigues. São Paulo: USP, tese de doutorado em História, 1976; MARQUES,

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

dade de seu projeto pode ser medida não apenas pelas intenções explícitas
de conjugar o exame da teoria e da historiografia brasileira, mas também
pela forma de divulgação de seus trabalhos para um público amplo, com-
posto por estudantes universitários de história e professores secundários,
por meio da importante coleção Brasiliana, dedicada à edição de estudos
nacionais e estrangeiros sobre o Brasil, com destaque para pesquisas his-
tóricas. Tal empreendimento teve participação efetiva no movimento de
“redescobrimento do Brasil” ocorrido ao longo dos anos 1930 e 1940.

Por meio desse projeto, José Honório expôs as linhas gerais para
a interpretação da história da história do e no Brasil, listando nomes e
obras, estabelecendo uma cronologia da produção historiográfica, tecen-
do relações entre essa produção e as teorias da história. Mas, além disso,
tal empreendimento possui uma clara função crítica. Seu alvo principal
é aquela historiografia que o autor considerava distante dos interesses
nacionais, incapaz de dar conta do processo de emancipação do país. Em
sua opinião, essa historiografia a ser ultrapassada só tinha olhos para a
história colonial, não sendo capaz de desenvolver seu oposto: uma histó-
ria nacional. A primeira, consitiria em uma escrita da história inspirada
por valores estrangeiros e compromissada com a difusão de ideologias
antinacionais. A segunda, que ainda não estaria plenamente desenvolvida,
representaria o pensamento genuinamente brasileiro. Segundo o autor, a
historiografia brasileira era “um espelho de sua própria história”, inega-
velmente integrada à sociedade de que era parte, por meio de um “nexo é
econômico e ideológico”.11

José Honório procurou desenvolver um exercício crítico que con-


siderava fundamental: o revisionismo. Este procedimento deveria ser
aplicado tanto aos fatos históricos quanto às ideias, ou melhor, às ideo-

Ana Luiza. José Honório Rodrigues: uma sistemática teórico-metodológica a serviço da


história do Brasil. Dissertação de Mestrado em História. Rio de Janeiro: PUC-Rio, , 2012;
FREIXO, André de Lemos. A arquitetura do novo: ciência e história da História do Brasil
em José Honório Rodrigues. Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.
11 – RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil: introdução metodológica.
5ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 32.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

logias.12 É interessante notar que um dos significados do termo revisar é


“ver com atenção, examinar cuidadosamente”, fazendo correções. Outro
significado é “trazer à memória, relembrar, recordar”. O duplo viés, crí-
tico e memorialístico, ajuda a dimensionar o projeto de José Honório.
Nesse sentido, caberia ao historiador da historiografia denunciar a ideo-
logia subjacente à escrita da história e, ao mesmo tempo, estabelecer um
cânone por meio da catalogação de autores e obras consideradas mais
importantes, a partir dos quais seria possível estabelecer a cronologia
evolutiva da disciplina.

Além de analisar os referenciais teóricos presentes na historiografia


brasileira, apontar seus principais nomes e obras, destrinchar seus méto-
dos e traçar um panorama da pesquisa histórica em nosso país, apresen-
tando seus principais arquivos e fontes documentais, o que José Honório
parece visar é a construção de uma tradição historiográfica em meio a
qual, talvez, ele mesmo pudesse se inserir, não apenas como historiador
entre tantos outros, mas como aquele que organiza o legado, apontando
caminhos para futuras pesquisas. Supostamente, ao construir sua versão
da história da história, ele também reservou um lugar para si, pois, nas pa-
lavras de sua esposa, Leda Boechat Rodrigues, o historiador “tinha cons-
ciência do valor de sua obra e esperava, sem modéstia, figurar no futuro
entre os grandes da História e da Historiografia brasileiras”.13

O modelo de história da historiografia proposto por José Honório


perdurou por longo tempo, tornando-se referência obrigatória nos cursos
de História ao menos até a década de 1970, quando outros autores procu-
raram refletir sobre a história da historiografia, introduzindo novos ele-
mentos nessa história, mas sem abandonar totalmente a chave de leitura
consolidada pelo autor de Teoria da história no Brasil.

12 – RODRIGUES, José Honório. Vida e história. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 62.
13 – RODRIGUES apud MARQUES, Ana Luíza. José Honório Rodrigues: uma siste-
mática teórico-metodológica a serviço da História do Brasil. Rio de Janeiro: PUC/Pós-
-Graduação em História, 2000, p. 5 (nota 17). Dissertação de mestrado.

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

HISTORIOGRAFIA COMO HISTÓRIA DAS IDEOLOGIAS


Uma demanda por renovação nos estudos sobre historiografia brasi-
leira pode ser observada no I Seminário de Estudos Brasileiros, realizado
no IEB em 1971. O objetivo do encontro dividido em áreas era “conhe-
cer como os autores entenderam e escreveram a História do Brasil, seus
métodos e técnicas, procedimentos operacionais, suas fontes, falhas e la-
cunas, pontos positivos a serem retomados, pontos negativos a serem re-
tificados e, sobretudo, quais os seus modelos de explicação da história”.14

Além das discussões ocorridas no I Seminário de Estudos Brasi-


leiros, alguns autores se destacam no cenário da década de 1970 como
propositores de novas abordagens da historiografia como, por exemplo,
Carlos Guilherme Mota, com Ideologia da cultura brasileira, 1933-1974,
livro publicado pela primeira vez em 1977 e, desde então, acumulando
mais de oito edições. Recebido por Florestan Fernandes e Antonio Can-
dido como um “clássico”, a obra foi originalmente concebida como tese
de doutorado, defendida na USP em 1975, sendo apresentada pelo autor
como um ensaio que, em parte, era fruto de um “exercício de memória”.

De acordo com Guilherme Mota, não se tratava de uma história da


cultura brasileira, nem de uma história intelectual tradicional, preocupada
com o arrolamento sistemático dos principais pensadores com indicação
de suas respectivas influências. A proposta era apresentar uma história
da consciência social no Brasil, por meio de uma “história das ideolo-
gias”, feita a partir da crítica das interpretações a propósito da chamada
cultura brasileira. Em outras palavras, seu objetivo era compreender os
pressupostos ideológicos que fundamentavam as interpretações de cunho
histórico sobre a cultura brasileira.

O autor considerava importante conhecer as determinações sociais


das formas de pensamento estudadas, não sem antes estabelecer os mar-
cos da historiografia geral do Brasil. Tais marcos estão distribuídos em
“momentos decisivos”, a exemplo do que propusera Antonio Candido
14 – Anais do I Seminário de Estudos Brasileiros. São Paulo: IEB/USP, 1971, p. 8, volu-
me 1.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

para a história da literatura. Assim, haveria cinco momentos decisivos na


história da historiografia brasileira: 1) o momento do redescobrimento do
Brasil entre 1933 e 1937; 2) o momento em que os primeiros frutos da
universidade começaram a ser colhidos, entre 1948 e 1951; 3) o momento
da ampliação e revisão reformista, entre 1957 e 1964; 4) o momento das
revisões radicais, entre 1964 e 1969; e, 5), o momento dos impasses da
dependência, entre 1969 e 1974.15

Ainda nos anos 1970, dois livros se destacam por abordar a produção
historiográfica oitocentista na interseção com a história política e a ques-
tão nacional, ambos frutos de teses de doutoramento: O fardo do homem
branco: Southey, historiador do Brasil (1974), de Maria Odila Leite da
Silva Dias; e João Francisco Lisboa: jornalista e historiador (1977), de
Maria de Lourdes Mônaco Janotti.

Em O fardo do homem branco (1974), Maria Odila Leite da Silva


Dias analisa a obra History of Brazil (1810-1819), de Robert Southey,
procurando integrá-la à época e ao meio em que foi escrita. A autora visa
compreender o modo pelo qual os valores da política imperialista da In-
glaterra na primeira metade do século XIX nortearam aquela que é tida
como a primeira sistematização das fontes sobre a história colonial bra-
sileira que, por sua vez, fundamentou a primeira interpretação das possi-
bilidades do Brasil vir a ser uma nação independente, na época da sepa-
ração de Portugal. A obra de Southey é lida como uma visão de conjunto
sobre a história do Brasil, que o insere no contexto da Europa moderna a
fim de explicar a evolução e as peculiaridades da colonização portuguesa
na América.16 Para Dias, a obra de Southey é, “ao mesmo tempo uma

15 – MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo:


Editora Ática, 1977.
16 – O fardo do homem branco foi, originalmente, a tese de Dias, resultado do desdo-
bramento da pesquisa iniciada em seu mestrado, O Brasil na historiografia romântica
inglesa. Um estudo das afinidades de visão histórica: Robert Southey e Walter Scott. Mais
recentemente, a tese de doutorado de Flávia Varella discute a obra de Southey, realizando
a crítica à análise de Dias. Enquanto Dias situa Southey como precursor do Romantis-
mo inglês, fundamentalmente interessado no “reviver histórico”, Varella procura situá-lo
em meio a um contexto discursivo marcado pela pesquisa documental e pelo esforço de
monumentalização do passado. Ver: VARELLA, Flávia. Reunindo o passado: contextos

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

crítica à colonização de exploração comercial e uma análise do processo


de formação do Estado no interior de uma sociedade colonial”, sendo que
o “fardo do homem branco” seria a missão civilizadora, que implicava
o direito de destruir civilizações e culturas atrasadas, vistas como obstá-
culos ao progresso. Observa-se, portanto, a afinidade entre a “ideologia
imperialista” inglesa e a dos construtores do império do Brasil, por meio
da escrita da história.

Trata-se de um estudo do significado ideológico implícito na inter-


pretação de Southey sobre a colonização do Brasil, que considerava a
presença dos valores do autor na historiografia brasileira. Por conta dis-
so, Dias supõe que por meio de sua obra seja possível estudar muitos
dos preceitos dos intelectuais e estadistas brasileiros do século XIX, algo
que não almeja realizar. Nas palavras da autora, trata-se de um “estudo
das matrizes ideológicas da historiografia e da consciência nacional”, que
procura integrar a obra de Southey na ideologia de seu tempo e não es-
miuçar supostas “influências” ou acompanhar aquilo que define como “o
enraizamento dos valores europeizantes na historiografia brasileira”.

Em João Francisco Lisboa: jornalista e historiador, Maria de Lour-


des Monaco Janotti partiu da constatação de que a historiografia brasileira
vinha sendo abordada por dois tipos de estudo – as histórias da literatura
e os trabalhos com foco em obras e historiadores específicos –, caracteri-
zando-se por uma “completa assistematização processual”, o que dificul-
taria uma compreensão objetiva dessa historiografia. Tal tarefa consisti-
ria, a seu ver, em: identificar suas principais linhas evolutivas; localizar os
pressupostos metodológicos que orientaram seu estágio atual; conhecer
seu público em diferentes épocas, bem como os homens e pensamentos
que contribuíram para sua formação, etc.17

discursivos e linguagens historiográficas na History of Brazil, de Robert Southey. Porto


Alegre: UFRGS/Pós-Graduação em História, 2015.

17 – JANOTTI, Maria de Lourdes M. João Francisco Lisboa: jornalista e historiador.


São Paulo: Editora Ática, 1977.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

A autora constatava, então, que os estudos historiográficos brasilei-


ros necessitavam de uma metodologia que possibilitasse a compreensão
de sua “evolução e significado”. Em sua opinião, “a realidade da cultura
nacional exige estudos que concebam a Historiografia brasileira como
processo de elaboração da mentalidade de um povo”. A “validade” dos
estudos de historiografia envolveria um “julgamento” da obra de história
não como trabalho individual, mas como “resultado material e intelectual
de uma determinada sociedade”. Por conta disso, considerava que o estu-
do das “condições ambientais em que viveu o historiador” seria tão im-
portante quanto as citações bibliográficas contidas em sua obra. Em uma
referência a Benedetto Croce, nas palavras de Janotti, devia-se aspirar a
“uma história da historiografia com problemas historiográficos”.18

Observa-se, na proposta da autora, que a compreensão da historio-


grafia, como “elaboração de uma determinada cultura”, somente seria
possível desde que se afastasse da perspectiva tradicional da história das
ideias que buscava as reverberações de modelos culturais e filosóficos
europeus em solo brasileiro, o que equivaleria à procura inútil entre os
historiadores brasileiros de “um Ranke, um Guizot e um Mommsen na-
cionais…”. Em vez disso, a compreensão do significado cultural da his-
toriografia brasileira (tema que também ocupava as reflexões de Carlos
Guilherme Mota) só poderia ser atingida, em suas palavras: “mediante
seu enquadramento na evolução histórica do pensamento brasileiro, na
ordem social e política que a preside e na estrutura econômica que atua
sobre ela”. Desse modo, a autora recusa buscar no Brasil as réplicas ca-
boclas dos expoentes da historiografia europeia, optando por investigar o
“autêntico significado” das obras de nossos historiadores.

Além de Croce, em suas reflexões sobre a historiografia, Janotti tam-


bém se inspirava no trabalho de dois autores: João Cruz Costa, autor de,
entre outros livros, O desenvolvimento da filosofia no Brasil no século
XIX e a evolução histórica nacional, publicado em 1950; e Antonio Cân-
dido, com sua Formação da literatura brasileira, de 1959. O primeiro

18 – Idem, p. 10

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

fornecia-lhe a ideia de que haveria um estilo próprio de cada meio, estilo


condicionado pelas vicissitudes históricas dos povos, capaz de determinar
a “transformação dos sistemas que a inteligência constrói para explicar a
vida”. O segundo forneceria a noção de literatura como sistema de obras
interligadas por denominadores comuns, tais como a língua, os temas, as
imagens, etc. A literatura seria um aspecto orgânico da civilização, que
envolveria um conjunto de produtores literários, um conjunto de recepto-
res e um mecanismo transmissor. Para Janotti, a historiografia poderia ser
abordada com a mesma perspectiva proposta por Cândido para a história
da literatura, destacando-se a perfeita sincronia observada entre o desen-
volvimento social e a consciência historiográfica. Segundo a autora, a
vantagem dessa interpretação da historiografia como sistema seria “liber-
tar a matéria de uma rígida imposição cronológica”.19

Em 1976, Raquel Glezer defendeu sua tese de doutorado, intitulada


O saber e o fazer na obra de José Honório Rodrigues. Trabalho não foi
publicado, provavelmente obteve repercussão restrita naquele momento,
quando as teses ainda não eram acessíveis por meio digital. Contudo,
cabe retomá-lo aqui como exemplo de estudo sobre a história da historio-
grafia, que se ocupa do “estudo do processo de evolução do conhecimento
histórico”, compreendendo-o como um setor particular, distinto da filo-
sofia da história, da teoria da história e da metodologia da história. Nas
palavras da autora,

a história da história é a área de conhecimento que se dedica ao estudo


da produção histórica ou historiografia, da prática do historiador, vi-
sando permitir o conhecimento das teorias da história concretamente,
através de um arquivo – o ‘corpus’ das histórias possibilitando o es-
tudo do discurso do historiador e a separação entre o fazer e o saber.20

Glezer compreendia, então, que o estudo da produção histórica po-


deria ser feito por assunto, por período ou por autor e que cada uma des-
sas possibilidades mereceria tratamento diferente. No caso de sua tese, a
19 – Idem, p. 16.
20 – GLEZER, Raquel. O saber e o fazer na obra de José Honório Rodrigues. Tese de
Doutorado. São Paulo: USP, 1976, p. 7.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

opção foi estudar o discurso de um historiador, distinguindo o fazer e o


saber, de modo a compreender a evolução do conhecimento histórico a
partir de seu trabalho. A produção histórica, portanto, seria tratada como
um arquivo capaz de fornecer informações sobre como os historiadores
pensam. Ou ainda, como um procedimento analítico que deveria explici-
tar os “fatores ocultos” da interpretação histórica, considerando não ape-
nas os pensadores individuais, mas também a história das instituições,
órgãos de ensino, etc.21

De modo inovador em sua época, Glezer observava a necessidade de


um modelo de análise da historiografia próprio, capaz de considerar a es-
pecificidade do trabalho histórico, visto que seu objetivo era saber como
a obra de história se concretiza, identificando seus níveis de elaboração,
sem perder de vista seu vínculo com um dado momento histórico.

Entre os esforços de análise da produção historiográfica nacional,


outro autor que se destaca nesse contexto é José Roberto do Amaral Lapa,
com A história em questão: historiografia brasileira contemporânea, pu-
blicado em 1976. Lapa procurou definir a historiografia como um campo
de estudos ocupado com a história crítica dos processos de “registro da
realidade histórica”, incluindo aí a reflexão sobre esse próprio registro.
Em suas palavras, tal campo compreenderia “o circuito que vai do histo-
riador – como agente produtor – passando pelo processo de produção do
conhecimento histórico para chegar à sua transmissão e consumo, isto é, à
formação de uma memória, uma consciência e uma prática ideológica por
21 – Segundo Glezer, a proposta de tratar a produção histórica como um arquivo capaz
de fornecer um acervo documental foi apresentada por Herbert Butterfield no livro Man
on his past: the study of history of historical scholarship (1955). De acordo com a auto-
ra, para Butterfield, a história da produção histórica não deveria ter como foco central
o arrolamento de historiadores e obras, agrupados em escolas ou movimentos, mas o
historiador, a ser inserido na própria história. A historiografia pensada em meio ao desen-
volvimento dos estudos históricos condicionados pela própria história. Outra referência
destacada por Glezer é Dante Moreira Leite, cujo estudo O caráter nacional brasileiro
(1969) propõe uma “análise intuitiva” do conteúdo a ser comparada à análise quantitativa
das informações obtidas. E ainda, os estudos desenvolvidos pela crítica literária, sendo
que o modelo teórico utilizado é inspirado em Lucien Goldmann, Sociologia do romance
(1967), especialmente no capítulo “O método estruturalista genético na história da litera-
tura”.

24 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):13-38, jul./set. 2016


Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

parte dos agentes que reproduzem, promovem a circulação, assimilam e


interagem nesse conhecimento”.22

Segundo Lapa, uma das limitações da história da historiografia brasi-


leira estaria no “caráter repetitivo dos modelos analíticos, em relação aos
perfis e às obras mais significantes, e do arrolamento dos impedimentos à
maior operacionalidade do historiador”. Em outras palavras, o autor criti-
cava certo “pacto consensual” em torno de dois pontos: as obras mais im-
portantes e os fatores que criaram obstáculos ao trabalho do historiador.
Em seu tempo, considerava haver um movimento de ruptura dessa visão
unívoca, movimento esse observado em um momento em que a historio-
grafia era vista como marcadamente pobre, quantitativa e qualitativamen-
te, sendo objeto de poucos estudos. Segundo Lapa, a ampliação dos es-
tudos sobre a história da historiografia seria indicativa de uma tomada de
consciência de fundamental importância para a crítica ideológica em sua
época. Era, portanto, “necessário desengravidar a Historiografia brasilei-
ra de sua carga ideológica e justamente as avaliações ao nível ideológico
é que poderão oferecer esse discernimento. A ideologia seria aí objeto e
não motor do conhecimento histórico”.23

Em 1979, Nilo Odália propunha uma análise da historiografia bra-


sileira com base no conceito de “visão de mundo”, que permitia fazer
a relação entre a obra de um autor e sua época.24 Ao analisar a obra de
Francisco Adolfo de Varnhagen, Odália identifica três elementos básicos
em sua História Geral do Brasil (1854-1857): a nação, o Estado e o ho-
mem branco brasileiro. O objetivo era desvendar a ideologia que nortea-
va a elaboração da obra. Neste caso, o estudo da historiografia fornece-
ria subsídios para uma história das ideologias, sob uma chave de leitura
eminentemente política.25 O autor e seu contexto seriam compreendidos

22 – LAPA, José Roberto do Amaral. A História em questão. Historiografia brasileira


contemporânea. Petrópolis: Vozes, 1974, pp.14-15.
23 – Idem, p. 194.
24 – ODÁLIA, Nilo (org.). Varnhagen. História. São Paulo: Ática, 1979. Coleção Gran-
des Cientistas Sociais n. 9. Observa-se em Odália, novamente, a inspiração nas reflexões
de Lucien Goldmann.
25 – GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e cultura histórica: notas para

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

como parte da construção de uma ideologia política, ou ainda, como parte


de um processo social de dominação. Alguns anos mais tarde, em 1997,
com As formas do mesmo, Odália reafirma sua proposta de análise da his-
toriografia, desta vez focalizando, além de Varnhagen, Oliveira Vianna,
de modo a confirmar a tese anteriormente exposta: a de que a historio-
grafia produzida por ambos nada mais fez do que legitimar um processo
de dominação.26 Conforme argumenta Guimarães, Odália contribuiu para
a consolidação de uma forma peculiar de estudo da historiografia, que
consistia em interrogar os textos a partir de propósitos externos aos mes-
mos.27

O breve esforço de apresentar os modelos de história da historiogra-


fia produzidos entre os anos 1940 e 1970 permite tecer alguns comen-
tários acerca dos caminhos desse domínio de estudos entre nós. Como
primeira observação, destaca-se a presença de José Honório Rodrigues
nesse campo ao longo de, ao menos, três décadas, ainda que faltem es-
tudos mais sistemáticos acerca do alcance efetivo da sua recepção. Ine-
gavelmente, sua obra permaneceu, por longo tempo, como um tipo de
referência única, não apenas devido à proposta monumental de conjugar
teoria, metodologia e historiografia, mas pela divulgação no meio acadê-
mico por meio de publicações de ampla circulação.

O segundo comentário refere-se à permanência, pelo menos por três


décadas, da noção de ideologia como categoria-chave dos estudos sobre
a historiografia, o que pode ser compreendido levando em conta a expe-
riência vivida por esses intelectuais, pensadores da história, entre as dé-
cadas de 1950 e 1970, quando a temática da “questão nacional” retornou
à cena sob novo prisma, suscitando interpretações diversas e exigindo no-
vos instrumentos teóricos. A noção de ideologia permitia relacionar texto
e contexto, frequentemente a partir de uma relação de subordinação do
primeiro ao segundo, além de atender à necessidade de explicitar os pres-
um debate. Ágora – Revista de História e Geografia, EDUNISC, 1995, p. 42.
26 – ODÁLIA, Nilo. As formas do mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiográfico de
Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: UNESP, 1997, p. 43.
27 – GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e cultura histórica, op. cit., p.
43.

26 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):13-38, jul./set. 2016


Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

supostos que orientavam as interpretações produzidas pelos intelectuais


em diferentes tempos, promovendo, sob certos aspectos, um movimento
de autocrítica e de explicitação de suas próprias orientações.

O terceiro comentário relaciona-se à observação da presença de An-


tonio Candido, cuja amplitude ainda é difícil de ser medida, como re-
ferência para pensar um novo rumo para o estudo da historiografia nos
anos 1970. Na década anterior, ao compreender a história da literatura
como uma história social, com uma proposta de método, Candido permi-
tia romper com a abordagem norteada pelo materialismo histórico, que
opunha estrutura e superestrura, considerando as manifestações culturais
(superestruturais) como reflexos da primeira. O autor forneceu novas
coordenadas para os estudos de história da cultura no Brasil, difundindo
e sofisticando noções como a de geração, influência e tema, que contri-
buiriam para a abordagem da literatura como um todo “orgânico”. Candi-
do afastou-se, assim, da perspectiva tradicional de uma história fundada
na perspectiva geracional e na sucessão cronológica direta de autores e
obras. Além disso, considerou o estudo da obra em um contexto histórico
sem perder de vista a noção do texto literário enquanto dotado de carac-
teres formais próprios.

Por fim, nos anos 1970, a emergência de uma preocupação em de-


senvolver a história da historiografia parece estar relacionada, ao menos
em parte, com uma transformação interna do campo dos estudos históri-
cos no Brasil. Como observou Amaral Lapa em 1977, naquele momento
era notório o crescimento do interesse dos historidores a respeito do de-
senvolvimento do próprio conhecimento que produziam, indicando certa
preocupação epistemológica.

HISTORIOGRAFIA, HISTÓRIA DAS IDEIAS E HISTÓRIA DAS


INSTITUIÇÕES
A partir dos anos 1980, identifica-se um conjunto de pesquisadores
que se dedicaram a pensar a historiografia a partir de referenciais oriun-
dos da história das ideias, produzindo estudos sobre autores, obras e ins-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):13-38, jul./set. 2016 27


Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

tituições. É necessário considerar que esse contexto é marcado por uma


inflexão da historiografia brasileira, por efeito da expansão das pesquisas
realizadas no âmbito das pós-graduações, criadas na década anterior, e
das transformações no plano internacional, decorrentes, em larga medida,
da renovação da história política e da história intelectual, do giro lin-
guístico e da ascensão da história cultural. Categorias como ideologia
não necessariamente foram deixadas de lado, mas outras foram incluídas,
tornando o quadro conceitual mais complexo.

Chamamos a atenção, ainda que brevemente, para a obra de Arno


Wehling que, desde a década de 1970, realizava estudos sobre a historio-
grafia, compreendida enquanto história da história, com metodologia pró-
xima da história das ideias e da história da ciência. Nesse campo, o autor
notabilizou-se por uma série de estudos sobre o historicismo, reunidos no
livro A invenção da história: estudos sobre o historicismo (1994); além
de um alentado estudo sobre Francisco Adolfo de Varnhagen e Capistrano
de Abreu, parcialmente publicado.28

Em texto mais recente, o autor propõe verificar se é possível que a


história da historiografia funcione como laboratório de uma epistemolo-
gia histórica, cujo objetivo seria testar a aplicação de categorias e proce-
dimentos epistemológicos a um tipo específico de fontes, as obras histo-
riográficas, contribuindo, assim, para o “refinamento teórico da área”.29

28 – WEHLING, Arno. De Varnhagen a Capistrano: historicismo e cientificismo na cons-


trução do conhecimento histórico. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992. Tese para professor titular
de Metodologia da História, 2 volumes; WEHLING, Arno. Estado, História e Memória:
Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Wehling compreende que o historicismo não é um problema estritamente historiográfico,
circunscrito ao domínio da epistemologia da história, mas se dedica ao estudo de sua
presença nesse campo, considerando-o fecundo para a história das ideias científicas e filo-
sóficas. O autor elege um conjunto de questões pertinentes ao historicismo e as examina a
partir do estudo de casos relativos a autores, tais como Varnhagen e Capistrano de Abreu,
e instituições, como o IHGB.
29 – WEHLING, Arno. Historiografia e epistemologia histórica. In: MALERBA, Jurandir
(org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, p.
175.

28 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):13-38, jul./set. 2016


Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

Na década final do século XX, entre os estudos que evidenciaram


a articulação fecunda entre historiografia, história política e história das
instituições, a tese de Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da ime-
diata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro (1838-1889), defendida em 1994, na Universidade de
São Paulo, sob orientação de Nanci Leonzo, não apenas contribuiu para a
ampliação da escassa bibliografia específica então disponível sobre aque-
la agremiação, como assinalou uma importante inflexão de análise dentro
dos estudos com foco nos lugares de produção do conhecimento histórico
no Brasil do Oitocentos. Com base no mapeamento do perfil sociopolítico
dos fundadores, alinhados ao projeto de consolidação do Estado Imperial,
e em detalhado levantamento do material publicado na Revista Trimen-
sal do IHGB, Lucia Guimarães introduziu a hipótese do descompasso
entre os discursos proferidos acerca da história e sua prática efetiva den-
tro da instituição, preponderantemente marcada pelo trabalho de fixação
de uma “memória nacional”.30 E, entre as evidências incontornáveis da
preocupação dos sócios do Instituto com o combate ao esquecimento, a
presença significativa de “biografias e necrológios” estampados nas pá-
ginas do periódico da institutição, servia para demarcar a centralidade do
problema da memória no processo de institucionalização da historiografia
brasileira no século XIX.31

HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA, CULTURA HISTÓRICA E


MEMÓRIA DISCIPLINAR
A partir do final dos anos 1980 e ao longo da primeira década do
século XXI, observa-se o interesse por problemas relacionados à escrita e
à narrativa históricas, às práticas e lugares institucionais de investigação
30 – GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de Sua Ma-
jestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). Revista do
IHGB, a. 156, n. 388, jul.-set. 1995, p. 457.
31 – O tema da memória permanecerá onipresente na pesquisa posterior da autora, apre-
sentada como tese de concurso para professor titular da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro/UERJ, na qual estende o recorte temporal da história do IHGB da queda do Impé-
rio até o governo Vargas. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao
Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu
da República, 2007.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

em estudos que, de modo geral, mantêm os referenciais da história polí-


tica e da “questão nacional”, mas também despontam com outras preocu-
pações, por vezes relacionadas à cultura histórica, à experiência do tempo
e à recepção das obras historiográficas, assim como aos problemas de teo-
ria da história ou da história dos conceitos. O livro de Ricardo Benzaquen
de Araújo, Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto
Freyre nos anos 30 (1994) é exemplar nesse sentido. Cabe lembrar que,
o artigo do autor, “Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capis-
trano de Abreu”, foi publicado em 1988, no primeiro número da revista
Estudos Históricos, como parte do dossiê “Caminhos da historiografia”.

Neste mesmo dossiê, Manoel Luiz Salgado Guimarães despontava


com uma perspectiva de análise que se revelou profícua para os estudos
da historiografia nas suas articulações com a teoria da história e a história
política. O artigo “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional” correspon-
dia à síntese de sua tese de doutorado, A escrita da história no século XIX.
Historiografia e nação no Brasil (1838-1857), defendida no ano anterior,
na Universidade Livre de Berlim, sob a orientação de Hagen Schulze.32
Naquele momento, Manoel Salgado situava a sua proposta de pesquisa na
convergência entre dois temas caros às ciências sociais, a historiografa e
a questão nacional e, nesse âmbito, reconhecia uma lacuna: com exceção
dos trabalhos de José Honório Rodrigues, havia poucos estudos sobre os
“primórdios” da escrita da história no Brasil e constituição do projeto
político de nação no século XIX.33 O recorte temporal da pesquisa estava
nos marcos de “origem da historiografia científica sistemática” entre nós,
a fundação do IHGB, em 1838, e a publicação do segundo volume da
História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1857.

Dez anos após a publicação de “Nação e civilização nos trópicos”,


Manoel Salgado apresenta aquelas que seriam as suas reflexões concei-

32 – A tese foi traduzida por Paulo Knauss e Ina de Mendonça, e publicada no Brasil
postumamente: GUIMARÃES, Manoel L. Salgado. Historiografia e nação no Bra-
sil:1838-1857. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
33 – Idem, p. 52.

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

tuais mais sistemáticas acerca da historiografia, em dois artigos publica-


dos no final da década de 1990 e início dos anos 2000, nos quais apontava
caminhos possíveis para uma delimitação renovada das especificidades
dos estudos historiográficos.

Escrito no final do milênio, “Repensando os domínios de Clio: as


angústias e ansiedades de uma disciplina” assinala, em seu próprio títu-
lo, o diagnóstico geral de um período de “crise” no âmbito disciplinar,
mas que também se apresentava como oportunidade para os historiadores
repensarem o próprio campo e o exercício de seu ofício. No final dos
anos de 1990, quais seriam os caminhos possíveis para a renovação da
historiografia como subárea de pesquisa para além da sua função auxiliar,
diluída entre as práticas do ofício e limitada à “elaboração de catálogos
de autores e obras”?34

No artigo publicado no ano 2000, “Usos da história: refletindo so-


bre identidade e sentido”, a referência ao contexto das celebrações dos
500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil servia como mote para
o aprofundamento da análise das relações entre história e memória nos
processos de fabricação simbólica dos laços de identidade coletivos, tema
apenas esboçado no texto anterior.35

O que merece ser destacado no conjunto de interrogações então pro-


postas é a afirmação da historicidade da própria disciplina e dos entrela-
çamentos entre os projetos de escrita da história e a produção da memória
social e, sobretudo, os usos e sentidos políticos do conhecimento fabrica-
do pelos historiadores. O que Manoel Salgado identificava como “a tarefa
de quebrar o espelho” era imprescindível para a desnaturalização de certa
imagem da história-ciência que, tal como no mito narcísico, permanecera
seduzida e subjugada pela memória de seu triunfo disciplinar e potência
institucional.

34 – GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Repensando os domínios de Clio: as angústias


e ansiedades de uma disciplina. Revista Catarinense de História, n. 5, 1998, pp. 10-11.
35 – GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Usos da história: refletindo sobre identidade e
sentido. História em Revista. Pelotas/RS, v. 6, 2000, pp. 21-36.

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Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

A possibilidade de se delimitar algo como uma história da histo-


riografia sempre esteve diretamente vinculada ao trabalho de memória
e de construção de uma narrativa de identidade da disciplina, que envol-
veu também o silenciamento de tradições como a dos antiquários, bem
como a compreensão dos chamados “textos fundadores” como formas
de “disputas pelo passado” e da própria normatização de uma história
disciplinar no Brasil oitocentista. Por conseguinte, a renovação dos es-
tudos de história da historiografia, tal como o entendia Manoel Salgado,
pressupunha uma vigilância ao mesmo tempo epistemológica e ética, que
decorria do reconhecimento dessas disputas e interdições em torno dos
modos possíveis de representação do passado, materializados em uma
memória disciplinar.

Neste sentido, na proposta de ultrapassar a confecção de catálogos e


balanços bibliográficos que, tradicionalmente, se confundiram com os es-
tudos de historiografia, se era imprescindível a demarcação dos seus ob-
jetos, a formulação de problemas e de pautas renovadas de investigação,
igualmente se fazia necessário o trabalho de edição crítica e comentada
de textos como forma de se constituir um corpus de fontes possíveis de
pesquisa. Essa preocupação estava na base de um dos importantes proje-
tos de Manoel Salgado, que se concretizou postumamente com a publi-
cação do Livro de fontes de historiografia brasileira, composto por dis-
cursos, dissertações e memórias, originalmente publicados na revista do
IHGB, ao longo do século XIX, transcritos em sua ortografia e pontuação
originais e acrescidos de elucidativas notas do seu organizador.36

Já assinalada no artigo de 1998, a abordagem crítica dos “mitos de


fundação” da ciência histórica e de sua subsequente hegemonia, desde o
século XIX, entre as demais ciências sociais, consistiria no primeiro pas-

36 – GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Livro de fontes de historiografia brasileira.


Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. Recentemente, dois projetos de edição comentada de fon-
tes para estudos de historiografia, afinados a essa proposta, foram publicados: VARELLA,
Flávia; OLIVEIRA, Maria da Glória de e GONTIJO, Rebeca (orgs.). História e historia-
dores no Brasil: da América Portuguesa ao Império do Brasil: c. 1730-1860. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2015 e NICOLAZZI, Fernando (org.) História e historiadores no Brasil: do
fim do Império ao alvorecer da República: c. 1870-1940. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015.

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Sobre a história da historiografia brasileira: um breve panorama

so para dessacralizar certa memória construída em torno da disciplina. No


entanto, o que se formula de modo mais consistente nos textos de reflexão
teórica de Manoel Salgado é a constatação de que tal tarefa implicava
necessariamente a ampliação do escopo reflexivo para além do âmbito
das questões endógenas ao campo disciplinar, ou seja, uma história da
história não poderia deixar de ser pensada também como uma crítica da
cultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
François Hartog identificou na emergência de uma consciência his-
toriográfica, desde o final dos anos 1980, o fenômeno mais amplo de crise
do regime moderno de historidade, caracterizada pelo presentismo (“um
presente onipresente”), que se faz acompanhar pela experiência de “um
futuro imprevisível” e de “um passado visitado e revisitado de forma
incesssante e compulsiva”.37 No âmbito da produção acadêmica, tais mu-
tações talvez nos permitam refletir sobre as relações que as pesquisas
atuais de história da historiografia mantêm com o que podemos identi-
ficar como uma “tradição” de estudos historiográficos, sobretudo aquela
que, no passado recente (entre os anos de 1970-80), consolidou certos
modelos de análise.38 Como foi destacado acima, em grande parte desses
estudos “precursores”, havia a explícita preocupação de retirar a histo-
riografia brasileira de um nicho originalmente ocupado nas histórias da
literatura nacional, para situá-la entre os objetos privilegiados de análise
dos historiadores, tomando-a como “documento” para a identificação das
linhas de “evolução” da história da disciplina.

Uma tarefa recomendável para aqueles que hoje pretendem pesquisar


no campo da história da historiografia talvez esteja justamente em uma
leitura cuidadosa desse repertório de trabalhos acumulados que, a despei-

37 – HARTOG, François. Prefácio. In: O século XIX e a história: o caso Fustel de Cou-
langes. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, p. 2.
38 – Um balanço analítico cuidadoso dos trabalhos mais recentes na área, incluindo pes-
quisas realizadas desde o início dos anos 2000, ainda está por ser feito. Neste sentido, des-
tacamos o mapeamento inicial dessa produção em: ARAÚJO, O século XIX no contexto
da redemocratização brasileira, op. cit..

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):13-38, jul./set. 2016 33


Maria da Glória de Oliveira e Rebeca Gontijo

to de suas especificidades, constituíram modelos de história intelectual,


em sua grande parte, tributários da história das ideias e das ideologias,
cujas limitações nos saltam aos olhos na atualidade, lidos a distância, mas
também podem servir para ancorarmos sobre bases mais firmes a renova-
ção das agendas e das abordagens de pesquisa. Com efeito, os trabalhos
de história da historiografia que compõem algo próximo a um “cânone”
desse campo de estudos talvez mereçam ser mais bem avaliados, consi-
derando o que, na perspectiva hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, se
entende por “horizonte móvel” da tradição, frente a qual talvez ganhásse-
mos mais com uma postura de reconhecimento e abertura e não apenas de
recusa e estranhamento. E isso abriria a possibilidade de revisitar traba-
lhos que despontaram há décadas atrás, como os de José Honório, Carlos
Guilherme Motta, Maria Odila da Silva Dias, Maria de Lourdes Janotti,
Nilo Odália e outros historiadores da historiografia do Brasil, adotando
o procedimento usual no trato com as fontes, o que implicaria interrogar
esses estudos por suas determinações específicas, mediante o esforço de
compreensão de seus diferentes horizontes de questões para, com isso,
livrá-los de expectativas infundadas de que eles nos ofereçam interpreta-
ções com prazo de validade atualizado.

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Texto apresentado em janeiro/2016. Aprovado para publicação em


março/2016.

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OS CAMINHOS DO SERTÃO
THE PATHS OF THE HINTERLAND
André Heráclio do Rêgo1

Resumo: Abstract:
Os caminhos do sertão foram decisivos para a The paths of the hinterland both in America
conquista do território e para o seu povoamen- and in Africa were decisive for the conquest of
to, seja nos sertões americanos, seja nos sertões territory and its settlement. The process was
africanos. Esse processo se caracterizou, de um characterized on the one hand by persistence,
lado, pela persistência e, de outro, pela desconti- and on the other by discontinuity, both in time
nuidade, tanto no tempo quanto no espaço. Ter- and space. Whether terrestrial or fluvial, wide
restres e fluviais, amplos e mesquinhos, estradas or narrow, royal or damaged, these paths were
reais e picadas, esses caminhos, boa parte dos used by the natives on both sides of the Atlantic
quais aproveitados dos nativos dos dois lados and helped to establish Portuguese sovereignty
do Atlântico, ajudaram a implantar a soberania in the back lands, however fragile and precari-
portuguesa naqueles sertões, por mais frágil e ous it may have been. Originating in Brazil in
precária que ela fosse. Tendo como origem, no the hubs of Olinda, Salvador, Rio de Janeiro and
Brasil, os núcleos de Olinda, Salvador, Rio de São Paulo, and in Africa in cities like Luanda,
Janeiro e São Paulo e, na África, de Luanda, Bié, Sofala, these paths were essential not only
Bié, Sofala e outros, esses caminhos foram es- for exploitations, discoveries and movement
senciais para as tentativas de exploração e des- of troops, but also for daily activities such as
cobrimento e para a circulação de tropas, mas trade and the transportation of goods by mules
também para atividades mais comezinhas como or by the natives. Built on the initiative of the
as trocas comerciais e o transporte de mercado- Crown, with or without its collaboration or con-
rias, seja nos lombos das mulas, seja nas costas sent, they were also one of the favored places
dos nativos. Feitos por iniciativa da Coroa, com for the expression of one of the great paradoxes
sua colaboração ou a sua revelia, foram, tam- of the Portuguese expansion and colonization
bém, um dos locus privilegiados para a manifes- process, namely the permanent tension, not to
tação de um dos grandes paradoxos do processo mention confusion, between the public and pri-
de expansão e colonização portuguesa: a tensão vate realms.
permanente, para não dizer a confusão, entre o
público e o privado.
Palavras-chave: Brasil; África Portuguesa; Keywords: Brazil; Portuguese Africa, hinter-
Sertões; Expansão; Ocupação. land, expansion, occupation.

Capistrano de Abreu foi dos primeiros, se não o pioneiro, entre os


historiadores, a tratar dos caminhos do sertão, em artigo denominado,
sintomaticamente, Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil2. Es-
ses caminhos partiriam de quatro centros, três deles na marinha, um no
próprio sertão: Olinda de Pernambuco, Rio de Janeiro, Salvador da Ba-

1 –1 Diplomata. Doutor em Estudos Portugueses, Brasileiros e da África Lusófona pela


Universidade de Paris Nanterre. E-mail: andre.heracliorego@itamaraty.gov.br.
2 – Este artigo foi incluído posteriormente em: ABREU, J. Capistrano de. Caminhos anti-
gos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1988.

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André Heráclio do Rêgo

hia, e, terra adentro, São Paulo de Piratininga. Eram de diversa natureza:


terrestres e fluviais; pelas caatingas, florestas tropicais, cerrados, pampas
e outros. Com base neles se fez a expansão territorial da América Portu-
guesa. Recorde-se, a bem da verdade, que muitos desses caminhos eram o
mero aproveitamento das trilhas utilizadas pelos indígenas, entre as quais
se destaca a de Peabiru, entre o litoral vicentino e o Paraguai; essa, de
origem guarani, seria um dos dois caminhos mais utilizados pelos ban-
deirantes. Outra trilha, em direção ao sul, ia em demanda do sertão dos
Patos, e era de origem tupiniquim3. Com o correr do tempo, também os
escravos africanos deram sua contribuição à abertura dos caminhos do
sertão, sendo os responsáveis pela feitura de inumeráveis trilhas e es-
tradas, inclusive calçadas com pedras, sobretudo em direção às Minas
Gerais.

Por esses caminhos eram conduzidas boiadas procedentes das zo-


nas de criação nos diversos sertões; circulavam os comboios de cativos
negros ou indígenas, do litoral para o sertão, e do sertão para o litoral,
conforme o caso; e viajavam os tropeiros com suas mulas, encarregando-
-se do transporte e da comercialização de mercadorias tão díspares quanto
minerais preciosos e produtos de luxo importados da Europa; cereais e
roupas; e armas e ferramentas.

Àqueles caminhos mais antigos e de mais importância, que sofriam


um controle mais severo da Coroa, que era a sua proprietária, denominou-
-se ‘estradas reais’. Estas exerceram papel fundamental nas comunica-
ções de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Caracterizada
pelo calçamento de pedra que ainda hoje subsiste em alguns trechos, a
mais famosa delas era a Estrada Real que unia o Rio de Janeiro e Parati,
portos por onde era embarcado o ouro para Portugal, às Minas Gerais.
Nessas estradas reais foram instalados a maior parte dos registros e dos
postos fiscais de controle4.
3 –1 MORAES, Antônio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil – o terri-
tório colonial brasileiro no “longo” século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000, p. 319, nota.
121; HOLANDA, Sergio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3ª ed. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2008, pp. 15 a 23.
4 –1 SANTOS, Marcio. Caminhos. In: Dicionário Histórico das Minas Gerais, 3ª ed., pp.

40 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016


Os caminhos do sertão

Esses caminhos, roteiros e itinerários foram registrados, entre ou-


tros, por Antonil, que descreveu em sua obra vários deles entre São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais. Registrou também aqueles abertos pelos
criadores de gado, o principal deles sendo o caminho da cidade da Bahia
para as ‘Minas do rio das Velhas’5·.

Esses caminhos eram mesquinhos, o que, associado à própria defi-


ciência das técnicas de transporte, tornava o comércio difícil, pelo ex-
cessivo custo das mercadorias. Essas mercadorias, no comércio a longa
distância, eram transportadas sobretudo pelos índios ou negros de carga,
como se fossem mulas, ainda quando tivessem filhos a criar6. O uso de ca-
valos era raríssimo, devido às fragosidades do terreno e a longa distância
percorrida. A marcha a pé era a regra corrente entre os paulistas, preser-
vando a tradição indígena, o que causava o assombro dos espanhóis, que
se espantavam com as dilatadíssimas jornadas que eram capazes de per-
correr a pé, descalços7. Os caminhos, em resumo, mal se distinguiam das
picadas dos índios, ou daquilo que se denominava “caminhos de cabras”8.

A pouca largura desses caminhos, que se adaptavam particularmente


ao sistema de marcha característico dos índios, não constituiu sério
obstáculo a que fossem mais tarde utilizados pelos adventícios. O que
sucedeu em outros lugares da América, onde as picadas abertas pelos
naturais da terra serviram mais tarde aos europeus, permitindo sua
expansão através do continente, ocorreu igualmente, e em maior esca-
la, entre nós. Há testemunhos desse aproveitamento e é significativo
que em textos coloniais a presença de alguma antiga trilha indígena
se presta, não raro, para determinar a localização de datas de terras9.

81-87, pp. 81 e 82.


5 –1 MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil colonial. 4ª ed. São Pau-
lo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 237.
6 –1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O extremo oeste. São Paulo: Brasiliense, 1986, pp.
31 e 33.
7 –1 Idem, p.170.
8 –1 CUNHA, Amadeu. Sertões e fronteiras do Brasil – Notícia da época colonial. Lisboa:
Divisão de Publicações e Biblioteca da Agência Geral das Colônias, 1945, p. 332.
9 –1 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras, p. 33.

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André Heráclio do Rêgo

Sérgio Buarque de Holanda comenta que essa colaboração indígena,


fosse ela voluntária ou involuntária, foi essencial para a expansão bandei-
rante em todas as direções, e teve influência duradoura, já que, séculos
depois, marcaria o próprio traçado de muitas estradas de ferro.10

Ademais dos caminhos terrestres, mormente de origem indígena,


avultavam os caminhos fluviais. E, nesse contexto, o grande caminho da
civilização brasileira foi o rio de São Francisco, já que a partir de suas
cabeceiras se alcançaram as minas; e no seu curso médio e inferior se
expandiu o gado, em um raio de ação que uniu São Paulo, por meio de
Minas Gerais, ao Piauí, ligado a Pernambuco. Outro caminho fluvial foi
o rio Tietê, por onde partiram as expedições que exploraram e conquista-
ram o que seria Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais,
Goiás e Mato Grosso11.

O estudo dos caminhos coloniais está cheio de dificuldades: não ha-


via nem roteiros definidos, nem cartas para documentação dos traçados
seguidos; em resumo, os registros eram raros. Outro problema era o da
descontinuidade, no tempo e no espaço: o caminho que parecera fácil e
accessível tornava-se pouco depois intransitável por conta dos gentios
bravos, da seca, das enchentes, etc.12

OS CAMINHOS DE SÃO PAULO E DO RIO DE JANEIRO


Seguindo grosso modo as indicações dos centros difusores do povoa-
mento e adaptando-as aos caminhos sertanejos, olhemos com mais aten-
ção alguns deles, começando por aqueles que partiram de São Paulo e sua
zona de influência. Dali partiam caminhos sertanejos em várias direções,
já que a vila de São Paulo era o centro de amplo sistema de estradas que
levavam tanto ao sertão quanto à costa 13. Um desses caminhos, inclusive,

10 – Idem, p.25.
11 – MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil colonial, p.289.
12 – LIMA SOBRINHO, Alexandre José de Barbosa. O devassamento do Piauí. São Pau-
lo: Companhia Editora Nacional, 1946.
13 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras, p.13.

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Os caminhos do sertão

se dirigia ao Peru, e era frequentado pelos ‘peruleiros’, portugueses que


viviam em Potosí e que controlavam o comércio da prata14.

Alguns desses desses caminhos, entretanto, conduziam para as Mi-


nas Gerais. O primeiro deles, entre São Paulo, Rio de Janeiro e Vila Rica
- Ouro Preto, o ‘Caminho Velho’, tratava-se do caminho dos Guaianases,
que partia de Parati pela serra da Mantiqueira, e pelo qual veio gente que
se espalhou pelo córrego do Ouro Preto abaixo e pelo rio das Velhas,
“rompendo matos, e abrindo picadas de caminhos os homens, e situando-
-se onde achavam conveniência”15.

Nos começos do século XVIII, substituiu-se esta via pelo ‘Caminho


Novo’, ligando o porto do Rio de Janeiro aos sertões mineiros. De ini-
ciativa da Coroa, a obra foi encarregada a Garcia Rodrigues Pais, filho
do Caçador das Esmeraldas. Com efeito, Garcia Rodrigues teria se ofe-
recido para esta missão, obrigando-se a “abrir um atalho e fazer estala-
gens” ao longo do Caminho Novo. Este caminho seria “mui utilíssimo”,
conforme afiançava el-rei em carta escrita em Lisboa a 15 de novembro
de 1701. Garcia Pais, entretanto, acabaria por ‘isentar-se’ de abrir o tal
caminho novo, sob pretexto “de que os seus muitos anos já lhe não permi-
tiam aturar as inclemências do sertão”. Concluiu o projeto o sargento-mor
Bernardo Soares de Proença, que se ofereceu para fazer este serviço à sua
custa, sem mais interesse que o seria de servir-se e ao bem comum, como
vem explícito na provisão régia dirigida ao governador do Rio de Janeiro
em 172516.
14 – HOLANDA, Sérgio Buarque de. O extremo oeste. São Paulo: Brasiliense, 1986,
p.168.
15 – “Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais e os sucessos de algumas coi-
sas mais memoráveis que sucederam de seu princípio até o tempo que as veio governar o
Excelentíssimo Senhor Brás da Silveira. In: Códice Costa Matoso – Coleção das notícias
dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa
Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749
e vários papéis. Coordenação geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria
Verônica Campos. 2 volumes. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estu-
dos Históricos e Culturais, 1999, vol. I, pp.194-202, pp.195 e 196.
16 – Idem, p.326. 1727, Agosto, 22, Rio de Janeiro CARTA do [governador do Rio de Ja-
neiro], Luís Vaia Monteiro, ao rei [D. João V], em resposta à provisão régia de 6 de Julho
de 1725, sobre o cumprimento da ordem para agradecer ao sargento-mor, Bernardo Soares

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André Heráclio do Rêgo

O Caminho Novo, entre o porto do Rio de Janeiro e as Minas Gerais,


encurtava bastante o trajeto, passando dos 90 dias do Caminho Velho, que
vinha por São Paulo, para apenas 17, partindo da baía da Guanabara. À
sua margem havia roças, o que garantia pouso e alimento para os viajan-
tes, com a ocupação das terras circunvizinhas. Não era a única via entre o
litoral e as minas, mas era a mais curta e eficiente, sendo, por isso mesmo,
a mais controlada pela Coroa, o que levava os eventuais contrabandistas e
‘desencaminhadores’ a se utilizar de outros caminhos, menos conhecidos
e vigiados17.

Assim, da mesma forma que a malograda bandeira de Fernão Dias


Pais Leme, o caçador de esmeraldas, teria dado origem ao Caminho Ve-
lho, que ligava São Paulo e outros centros vicentinos ao que era então
denominado o sertão dos Cataguases, nas Minas Gerais, o seu filho teve
papel fundamental na abertura do Caminho Novo, que veio em substitui-
ção àquele.

Havia caminhos de São Paulo para Cuiabá, também por terra e por
rio, em meio a “cachoeiras seguidas” e “matas muito grossas”, povoadas
ainda de muitas nações de gentios, muito ferozes, que viviam “vagos sem
domicílio”18. É o caso daquele que passava pela Vila Boa de Goiás, de
cuja abertura foi encarregado o cartógrafo Tosi Colombina, em troca da
concessão do seu rendimento por dez anos, em 1750. A iniciativa não foi
adiante, por falta de recursos do interessado. Havia caminhos também
para o sertão paraguaio, “parte de navegação, parte de viagem por terra”,
que ligavam o litoral brasileiro ao Peru. O Paraguai era o epicentro des-
sas comunicações, que visavam instituir uma nova – e informal – rota da
prata, em concorrência com a oficial.
de Proença, a abertura do novo Caminho para as Minas, iniciado por Garcia Rodrigues
Pais. AHU-Rio de Janeiro, cx. 19, doc. 124. AHU_CU_017, Cx. 18, D. 2022.
17 – MACHADO, Marina Monteiro. Duas gerações de caminhos pelos sertões: Fernão
Dias Pais e Garcia Rodrigues Pais. In: MOTTA, Márcia; SERRÃO, José Vicente; MA-
CHADO, Marina (orgs). Em terras lusas: conflitos e fronteiras no Império Português.
Vinhedo: Editora Horizonte, 2013, pp. 23-53, pp. 42 e 43.
18 – “Demonstração dos diversos caminhos de que os moradores de São Paulo se servem
para os rios Cuiabá e Província de Cochiponé”. Anais do Museu Paulista, Tomo I. São
Paulo: Oficinas do Diário Oficial, 1925, pp. 459-464, pp. 460 e 462.

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Os caminhos do sertão

Havia, por fim, dois caminhos que ligavam São Paulo aos extremos
da colônia. O primeiro deles, o Caminho Geral do Sertão, que ia dar no
rio São Francisco, rota para caçar índios e alcançar o norte. Este caminho
foi descrito em manuscrito arquivado na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa,
intitulado Das vilas de São Paulo para o Rio São Francisco19. Este ma-
nuscrito, de autoria provável de dom Luís César de Meneses, governador-
-geral do Brasil entre 1705 e 1710, fez uma das primeiras descrições dos
caminhos para as Minas Gerais a partir de São Paulo, baseados em um
eixo central, o mencionado Caminho Geral do Sertão, que se desdobrava
em inúmeras picadas e veredas, praticamente impossíveis de controlar.
Ele, aberto por paulistas em demanda do sertão do São Francisco, fonte
de tapuias para apresar, que segundo o manuscrito seriam as “melhores
minas”, praticamente desconsiderava a região das minas, e seguia rumo
ao norte, encontrando e se interligando com caminhos oriundos da Bahia,
de Pernambuco e do Maranhão20.

O outro caminho ligava São Paulo ao continente do Rio Grande de


São Pedro, e era de extrema importância para o comércio de animais,
para a comunicação e os transportes entre essas regiões e suas áreas de
influência. Autores há, como Alfredo Ellis Junior, que afirmaram que sem
ele não teria havido os ciclos do ouro e do café, e muito menos a unidade
nacional tal como a conhecemos hoje21. Esse caminho especializou-se
no transporte das chamadas tropas de mulas entre as suas regiões de pro-
dução, os campos do sul, e as de maior consumo, na região do ouro de
Minas Gerais, permitindo o acesso e a maior penetração dos longínquos
desertos e quase desconhecidos sertões platinos. Ele encurtava a viagem,
até então feita por mar até Laguna, em Santa Catarina, e daí por terra,

19 – “Das Vilas de São Paulo para o Rio de São Francisco (…)”. Anais da Biblioteca Na-
cional do Rio de Janeiro, vol. LVII, 1935. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério
da Educação, 1939, pp. 172-186.
20 – RESENDE, Maria Efigênia Lage de. Itinerários e interditos na territorialização das
Gerais. In: RESENDE, Maria Efigênia e VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de
Minas Gerais. As Minas Setecentistas. Vol 1. Belo Horizonte: Autêntica, Companhia do
Tempo, 2007, pp. 25-53, pp. 39, 40 e 41.
21 – ELLIS JUNIOR, Alfredo. ‘O ciclo do muar’. Revista de História, nº 1., janeiro-
-março, 1950, São Paulo.

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André Heráclio do Rêgo

‘caranguejando’, ou seja, caminhando próximo ao litoral, até o seu des-


tino. Após muitas marchas e contramarchas entre diversos interesses, o
caminho foi finalmente aberto em 1727 por um certo Francisco de Sou-
sa Faria, a mando do governador de São Paulo, Caldeira Pimentel, “da
capitania de São Paulo aos campos de Curitiba por onde possam passar
gados e cavalgaduras”. Sua abertura foi objeto de Notícia enviada ao pa-
dre Diogo Soares, segundo a qual Faria teria saído de Correntes, no rio
Araranguá, e chegado aos campos de Curitiba, após quase dois anos de
travessia. Esse caminho foi ‘retificado’ em 1738 por Cristóvão Pereira de
Abreu, abandonando a rota de Araranguá a Laguna, e desta aos campos
de Lajes e Sorocaba, em benefício do “caminho de Viamão”, que passava
por Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Campos da Va-
caria, campos de Lajes, Campos Gerais, Itararé e Sorocaba, esta última
o seu epicentro, por conta de sua feira de gado e muares. Essa retificação
também foi objeto de uma notícia encaminhada ao padre Diogo Soares22.
A consequência mais visível desse caminho ‘retificado’ foi a decadência
de Laguna e a ascensão de Curitiba e Sorocaba23.

OS CAMINHOS DA BAHIA
Mais ao norte havia os caminhos baianos, como aquele que ia de Sal-
vador ao São Francisco, pelas freguesias de Itapicuru, Lagarto, Itabaiana
e Jeremoabo, descrito por volta de 1698 na Informação sobre o estado das
missões nos sertões da Bahia e Pernambuco como um dos três caminhos
mais comuns entre a capital baiana e os “dilatadíssimos sertões”. Trata-se
de um dos mais antigos caminhos sertanejos, mencionado por Martinho
de Nantes, que o teria frequentado. Outros caminhos baianos seriam os
do Peruaçu, Jacobina e Morro do Chapéu, mencionados anos depois por
Domingos Afonso Sertão em carta para o governador-geral, em 1702.
Esta carta, dirigida a dom João de Lencastro, é de extrema valia como
testemunho feito por um dos mais célebres sertanistas. Domingos Afonso
nela descreveu, a pedido do governador, os “caminhos, povoações e dis-
22 – Essas notícias podem ser encontradas no manuscrito sob o código CXVI 1-15, FLS.
169-178V, da Biblioteca Pública de Évora.
23 – GOULART, José Alípio. Tropas e tropeiros na formação do Brasil. Rio de Janeiro:
Conquista, 1961.

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Os caminhos do sertão

tâncias da Bahia ao último povoado para a parte do Norte, caminhando-


-se pelo sertão em direção ao Maranhão”. A primeira parte do trajeto, de
Salvador até o rio São Francisco, fazia-se por uma ‘estrada coimbrã’24,
pela Jacobina, por aproximadamente 130 léguas. Por essa estrada cami-
nhava a “maior parte dos gados que se criavam naqueles sertões”. Dali,
sempre seguindo o rio, andava-se por cerca de 20 léguas rumo ao norte,
passando-se nessa altura para outra estrada, também coimbrã, por onde
circulavam as boiadas vindas das povoações do Piauí e de Parnaíba, entre
outras. Segundo Domingos Afonso Sertão, os currais de gado da primeira
dessas povoações distavam cerca de 40 léguas das margens do São Fran-
cisco; e 30 léguas até a fronteira do Maranhão, acrescidas de mais 40 se
fosse até a capital São Luís. Dessa mesma povoação do Piauí, verdadeiro
entroncamento dos sertões, partia outra estrada para o Ceará, Rio Grande,
Paraíba e Pernambuco, pela qual podiam transitar ‘socorros’ de carros e
cavalos sempre que necessário, por ser ela margeada de muitos “currais
de gados e farinhas”.

Voltando aos sertões baianos, a certa altura do percurso de 100 lé-


guas entre Salvador e Jacobina, conectava-se uma outra estrada que,
passando por um lugar chamando Morro do Chapéu, ia dar no rio São
Francisco, daí seguindo até a barra do rio das Velhas, 100 léguas depois.
Daí havia caminhos para as minas de ouro, que estavam despovoados.
Pelo rio de São Francisco acima, das duas bandas, tudo era povoado de
currais de gado. Havia ademais um caminho de Salvador para as minas
de ouro, que ia sair no São Francisco perto da barra do rio das Velhas,
mas este era igualmente despovoado. Sertão complementou o seu relato
com a observação de que tanto o rio São Francisco quanto o das Velhas
eram navegáveis, podendo ser descidos em canoas, como o faziam os que
vinham das minas para a Bahia, mas não se podia navegar rio acima, por
conta da corrente. Comentou também que os caminhos por terra eram
bons, conduzindo-se por eles os fardos que iam alimentar os “fabricado-
res” das minas25.

24 – A Estrada Coimbrã era o caminho principal que ligava o norte ao sul de Portugal, a
partir de Coimbra, desde o século XII. Vale por estrada principal.
25 – RAU, Virginia; SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Os manuscritos do arquivo da

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André Heráclio do Rêgo

Em direção às Minas Gerais, partindo de Salvador, mas comum em


certa medida a Pernambuco e ao Maranhão, havia assim o Caminho do
São Francisco, considerado, ao lado do Caminho Velho e do Caminho
Novo para aquela região, uma das três mais importantes vias de acesso
às minas26. Por ele os moradores dos sertões do São Francisco haviam
começado a frequentar a zona do ouro.
Este caminho é geral para todas as povoações da Bahia, Pernambuco e
Maranhão, assim das costas do mar, como dos recôncavos e sertões de
seus distritos, porque de todas as partes e povoações das ditas capita-
nias há hoje caminhos, comunicações e trato para os currais do rio São
Francisco, com maior ou menor distância, mais ou menos frequência,
conforme a parte donde o buscam; sendo porém tantos e tão vários
caminhos, como a vastidão dos lugares que se comunicam com os
ditos currais e rio para dele seguir para as minas se reduzem todos a
um só [...] o da beira do rio São Francisco, porque a pouca distância
dele, assim de uma banda, como da outra, aparecem serras e matos tão
impenetráveis que nem os paulistas os entrarem nunca, nem sabem
dar razão da sua qualidade nem de seu fim27.

Este era considerado o mais antigo caminho para as Minas Gerais, e,


na opinião de Antonil, o mais adequado para as Minas, por ser “muito me-
lhor que o do Rio de Janeiro, e o da vila de São Paulo, porque, posto que
mais comprido, é menos dificultoso por ser mais aberto para as boiadas,
mais abundante para o sustento e mais acomodado para as cavalgaduras e
para as cargas”28. Opinião contrária, portanto, à do manuscrito ‘Das vilas’
mencionado mais atrás. Seja como for, esses vários caminhos reuniam-se
em um só, o do arraial de Matias Cardoso, e daí seguiam por cem léguas
pela beira do rio São Francisco, até a barra do rio das Velhas, indo pela
casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Vol. II. Coimbra: Por ordem da Universidade –
Acta Universitatis Conimbrigensis, 1956. Baía, 15 de Janeiro de 1702. Papeis Varias, 27
– Cód., n. 399-400; n. 395-396.
26 – Das Villas, p. 174.
27 – Idem, p. 173.
28 – ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas;
introdução e notas por Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo (Documenta Uspiana II), 2007, p. 273; IVO, Isnara Pereira. Homens de
caminho: trânsitos culturais, comércio e cores nos sertões da América portuguesa, século
XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012, p. 130.

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Os caminhos do sertão

beira deste último até as minas de ouro à sua margem, bem como co-
municando-se com “todas as minas descobertas, assim para as chamadas
gerais [do sertão dos Cataguases] como para as do Serro Frio e para todas
as outras de que se tira ouro por entre aquelas dilatadas serras”29. O certo
é que, por esse caminho, vieram muita gente e muitos problemas, dos ser-
tões da Bahia para as minas, como especificou esse testemunho coetâneo:
E com notícias de haver ouro nestas minas e povoação de gente, vie-
ram do sertão da Bahia abrindo picadas e trazendo algum gado para
elas, e o grande preço por que vendiam a cabeça, que era a meia libra
de ouro naqueles princípios, os animava à esterilidade do caminho, no
qual morreu muita gente naquele tempo de doenças e à necessidade,
e outros que matavam para os roubar na volta, que levavam o ouro, e
ainda os camaradas que iam juntos fazer seu negócio ou de retirada
com algum ouro matavam uns aos outros pela ambição de ficarem
com ele, como sucederam muitos casos destes; e pelo tempo em diante
se foram franqueando mais os caminhos com a muita gente que para
elas veio de toda América, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São
Paulo, e também do sertão, que é muito extenso e tem muita gente. E
fizeram arraiais onde achavam melhores conveniências, que alguns
são hoje vilas, como seja esta Vila Rica, a Cidade Mariana, duas no
Rio das Mortes, a do Sabará, Caeté, Pitangui, Serro do Frio30.

OS CAMINHOS DE PERNAMBUCO
Durante a ocupação holandesa, ao contrário do que geralmente se
supõe, houve uma certa penetração nos sertões, pelo estabelecimento de
novos caminhos que procuravam escapar do encontro com os flamengos,
que ocupavam o litoral. Assim, além das rotas de abastecimento de gado
e mão de obra indígena, foram abertos caminhos para o deslocamento de
tropas, dos quais o mais famoso foi o de Luís Barbalho Bezerra. A esse
se deve acrescentar o caminho do Camarão, trilha de 70 léguas utilizada
por Filipe Camarão e sua tropa de índios nas suas tropelias contra os
holandeses31. O resultado foi o aprofundamento das relações entre as ca-
29 – Das Vilas, p. 174.
30 – “Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais...
31 – CASCUDO, Luiz da Câmara. Geografia do Brasil holandês. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1956, p. 169.

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pitanias: a invasão holandesa, nesse sentido, contribuiu para a unificação


interna da colônia, gerando maiores e mais articulados contatos entre os
seus habitantes32.

O próprio inimigo holandês, conquanto ocupasse efetivamente ape-


nas a faixa litorânea, também estabeleceu alguns caminhos do sertão,
como aqueles que, partindo do Recife, se dirigiam para o norte, para os
currais de Belquior Álvares Camelo, e para o sul, para Nossa Senhora do
Loreto, Piripiri e Piabi33.

Ademais dos caminhos em direção às minas, que se confundiam com


os baianos, havia caminhos para o Piauí, a partir da margem pernambuca-
na do São Francisco. Estes caminhos, precários e sob constante ameaça
de gentios bravos, eram dois, tais como descritos pelo padre Miguel do
Couto Carvalho: um entre as cabeceiras do rio Piauí e a fazenda Sobrado,
pertencente a Domingos Afonso Sertão, nas margens do rio São Fran-
cisco, e o segundo entre as cabeceiras do rio Canindé e uma corredeira
do São Francisco chamada cachoeira de Domingos Afonso. As duas vias
teriam 40 léguas de extensão cada e percorriam “matos desertos, em que
se não acha água no tempo da seca”. Segundo o padre Miguel Couto,
haveria ainda um caminho ‘seguido’ de cerca de 90 léguas, entre o Piauí
e o Maranhão, pelo qual já se haviam iniciado as trocas comerciais entre
as duas regiões.

Esses caminhos dependeram sempre da redução do gentio e da mar-


cha da conquista e da pacificação dos índios bravos. Esses empecilhos
dificultavam o conhecimento mais aprofundado daqueles sertões, pouco
devassados até fins do século XVII. Nessa época, o bispo de Olinda, frei
Francisco de Lima, preocupado em conhecer a imensidão do seu bispado,
dentro do qual se incluíam os descobertos do Piauí, “se empenhou a fazer
em pouco tempo o que outros não fariam em dilatados anos”, e efetuou
várias visitas aos sertões, como afirmou Domingos de Loreto Couto no
seu Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Teria, em visitas

32 – MORAES, Antônio Carlos Robert. Bases da formação territorial do Brasil, p. 364.


33 – CASCUDO, Luís da Câmara, op. cit., p. 169.

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Os caminhos do sertão

pastorais às freguesias e aldeias, andado mais de 300 léguas, o que, dadas


as condições de transporte da época e a sua idade – mais 70 anos – não
deixa de ser um fato notável. Em uma dessas visitas chegou até ao Piauí,
à freguesia de Oeiras, por ele criada em 1696. Foi ele também quem de-
terminou ao padre Miguel Couto a elaboração da minuciosa Descrição
do Sertão do Piauí.

O CAMINHO DO BRASIL
A busca e a exploração desses caminhos do sertão revelavam uma
visão estratégica que, em primeira mão, era a Coroa e seus agentes que
possuíam. Essa visão estratégica se consubstanciou sobretudo no que se
refere à descoberta e exploração do chamado caminho do Brasil, que li-
gava este ao Maranhão, então Estado separado formalmente, e difícil de
alcançar pelo mar, devido às correntes marítimas contrárias34.

A preocupação principal era, assim, o que Capistrano de Abreu de-


nominou “a questão máxima do Estado: achar comunicações com o Bra-
sil, independente do capricho das monções, sobranceira à linha dos vaus
à beira-mar”. A Bahia seria o objetivo, e o rio Parnaíba, o rumo a seguir.
Com efeito, era mais fácil ir de Pernambuco a Portugal do “que é vir do
Maranhão em direitura, isto da vinda por mar, que por terra é impossível
falando-se moralmente”, lamentava o padre Luís Figueira em 160935. O
padre Antônio Vieira mencionava, em 1655, um caminho terrestre até o
Maranhão, com “mais de cem léguas, atalhado de muitos e grandes rios,
infestado de diversas nações tapuias, ferozes e indômitos, que a ninguém
perdoam”36, mas sem muitos detalhes. O fato é que a Coroa e seus repre-
sentantes no Brasil estavam especialmente interessados na descoberta de

34 – ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de história colonial, 1500-1800. 7ª ed. Ver.


anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 164.
35 – Apud MELLO, Ceres Rodrigues. “O sertão nordestino e suas permanências (séc.
XVI-XIX). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 148, jul./set. 1987,
Rio de Janeiro, 1990, pp. 283-438, p. 312.
36 – Idem, p. 313.

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André Heráclio do Rêgo

uma via terrestre entre o Estado do Maranhão e o do Brasil, pois persis-


tiam as dificuldades causadas à navegação pela direção dos ventos37.

Em 1684, querendo chegar à Bahia, João Velho do Vale, partindo do


Maranhão, e passando pela serra do Ibiapaba, abriu três estradas, e teria
conseguido seu intento pela segunda delas, talvez pelas ribeiras do Poti e
contravertentes do São Francisco, Cabrobó, Ibó e Jeremoabo38. Anos de-
pois, o governador-geral do Brasil, dom João de Lencastro, informava ao
governador do Estado do Maranhão, Antônio de Albuquerque Coelho de
Carvalho, das possibilidades de “haver comunicação por terra entre esse
e este Estado”, mencionando uma recomendação do rei “para se facilitar
o caminho que há tantos anos se procura, e o recíproco benefício que dele
há de resultar a uns e outros povos”39. Dando seguimento à determinação
régia, dom João de Lencastro, por patente, autorizou Manoel Gonçalves
Pereira, em 28 de março do mesmo ano, a explorar um caminho mais
livre entre o Maranhão e o Brasil. Este já teria conseguido passar para
o Maranhão por meio daqueles sertões com uma pequena tropa de sol-
dados e índios. Com o intuito de fixar a exata rota desse caminho, teria
feito nova jornada, por ordem do governador do Maranhão, “em que se
gastaram quatro meses padecendo as inclemências do tempo com grande
risco de vida”40.

O tema foi também objeto da carta de Domingos Afonso Sertão a


dom João de Lencastro, já mencionada, na qual informava que “o ca-
minho para o Maranhão pelo sertão, afastado da costa do mar mais de
cem léguas pelo sertão dentro, importava duzentas léguas pelo sertão
dentro”41.

37 – Ibidem, p. 312.
38 – Ibidem.
39 – Ibidem, p. 314.
40 – PUNTONI, Pedro, op. cit. Patente de Manuel Gonçalves Pereira, 28 de março de
1695 […] citado por Afonso de E. Taunay. História Geral das bandeiras paulistas, São
Paulo, 1950, vol. 6, pp. 287-8, p. 28.
41 – ANTONIL, André João, op. cit., Anexos, – Arq. Casa Cadaval – Cód. 1087, fl. 399-
400), pp. 401 e 402.

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Os caminhos do sertão

A descoberta do caminho, entretanto, não acabou com todos os pro-


blemas. Ainda em começos do século XVIII, o assunto causava preocu-
pação, e em 1710 a Coroa ordenou que um terço de paulistas assistisse no
sertão que ficava entre o Ceará e o rio Parnaíba, onde poderia ter utilidade
para fazer guerra aos rebeldes “e mais nações bárbaras que há naqueles
sertões de 110 léguas de distância que vos impedem a comunicação des-
se Estado para o Maranhão”42. Em 1715 esses índios estavam causando
estragos, mortes e roubos nos sertões do Maranhão e distritos do Piauí43.

O caminho do Brasil e suas variantes foi tema de documentação con-


servada no Arquivo Histórico Ultramarino. É o caso daquela, de 1738, em
que João de Abreu de Castelo Branco solicitou a el-rei permissão para a
abertura de uma estrada entre a vila de Icatu e a de Parnaíba, por conta
dos incômodos que havia nas ligações entre o sertão do Piauí e Belém do
Pará. Já em 1775, João Pereira Caldas, governador e capitão-general do
Pará e Rio Negro, informou ao secretário de Estado da Marinha e Ultra-
mar, Martinho de Melo e Castro, sobre o contrato de arrematação da aber-
tura da estrada entre Belém do Pará e a vila de Ourém, facilitando a co-
municação por terra entre Maranhão e Piauí, com ênfase na introdução de
gado vacum naqueles sertões e na prestação de socorros às populações44.

O fato é que expectativas foram frustradas e, em meados do século


XVIII, o comércio entre os dois Estados era praticamente nulo, e as notí-
cias do Maranhão continuavam a chegar à Bahia por navios procedentes
de Portugal. Desse modo, ainda eram difíceis as comunicações, por terra
ou por mar, entre a costa norte-sul e a costa leste-oeste. A situação não
seria muito diferente da descrita em 1.609 pelo padre Luís Figueira. O
caminho do Brasil não seria, ademais, uma via com trajeto definido e ba-
42 – MELLO, Ceres Rodrigues, op. cit., p. 314.
43 – Idem.
44 – 1730, Abril, 26, Lisboa DESPACHO do Conselho Ultramarino.AHU-Bahia, cx. 31,
doc. 17. AHU_CU_003, Cx. 5, D. 436; 1753, Junho, 1, Lisboa PARECER do Conselho
Ultramarino. AHU_CU_003, Cx. 13, D. 1159; OFÍCIO do governador e capitão-general
das capitanias do Maranhão e Piauí, D. Fernando António de Noronha. AHU_CU_009,
Cx. 93, D. 7685;1775, Janeiro, 18, Pará OFÍCIO do governador e capitão general do Es-
tado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o [secretário de estado da Marinha e
Ultramar], Martinho de Melo e Castro. AHU_CU_013, Cx. 73, D. 6186.

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André Heráclio do Rêgo

lizado, mas uma rota possível de comunicação entre os dois Estados, em


um trajeto de aproximadamente 1.600 quilômetros, por terras pouco ou
não povoadas de portugueses, somente de tribos indígenas desconhecidas
e bravias.

Aqui a história se complica, e a historiografia não tem parecer unâ-


nime, já que, em 1695, o governador-geral do Brasil, dom João de Len-
castro, teria recebido carta do governador-geral do Maranhão, Antônio de
Albuquerque Coelho de Carvalho, por meio do sargento-mor Francisco
dos Santos. A novidade é que o sargento-mor trouxera a carta por terra, o
que configurava e confirmava a abertura do ‘caminho do Brasil’ até então
impraticável por conta dos índios hostis e das dificuldades naturais em
rota tão dilatada, que eram as calamidades ou asperezas do sertão.

O sargento-mor Francisco dos Santos seria, nessa versão, o verda-


deiro descobridor do caminho do Brasil, tendo, na companhia de alguns
soldados, se internado no sertão para verificar qual seria o caminho mais
breve, de modo a facilitar o comércio. Logo que “alguém de Pernambu-
co se inteirasse do caminho”, deveria ser definido “um piloto inteligente
[isto é, um guia] para se graduar o sertão e se dividirem com certeza as
terras que tocam a cada Estado e se evitar o embaraço das jurisdições”45.

Assim, o caminho do Brasil teria três descobridores: o primeiro, João


Velho do Vale, o preferido por Capistrano de Abreu, segundo o qual have-
ria mesmo uma narrativa desse descobrimento, perdida, o que represen-
tava uma lacuna enorme para “a etnografia e história pátria, a julgar pelas
indicações ligeiras fornecidas por frei Domingos Teixeira46. O segundo,
o capitão Manuel Gonçalves Pereira, enviado pelo governador-geral do
Brasil. E o terceiro o sargento-mor Francisco dos Santos, enviado pelo
governador do Maranhão.

45 – PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Ser-


tão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; Editora da Universidade de São
Paulo: Fapesp, 2002, p. 28.
46 – ABREU, Capistrano de, op. cit., p. 164.

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Os caminhos do sertão

Esses caminhos do sertão, fossem eles velhos ou novos, e de proce-


dências diversas, são bastante citados na documentação pertencente ao
Arquivo Histórico Ultramarino. Assim, em 1728, o governador e capitão-
-general de São Paulo mandou carta a el-rei sobre a abertura do caminho
de São Paulo para o Rio de Janeiro. Em 1729, o provedor da Fazenda
Real das Minas escrevia carta “a respeito do contrato das Entradas dos
Caminho Novo e Velho do Rio de Janeiro e São Paulo e do Caminho do
sertão da Bahia e Pernambuco. Já em 1730, o novo governador de São
Paulo, Antônio da Silva Caldeira Pimentel, informava que os moradores
de Itu haviam aberto um caminho por terra e outro por via fluvial para as
minas de Goiás, sem que o juiz de fora dessa vila impedisse tais empreen-
dimentos. O motivo seria, segundo o governador, o interesse do ouvidor-
-geral da capitania em desviar ouro sem pagar os quintos. Em 1733, a
Câmara de São Paulo advertia o rei sobre o inconveniente da abertura das
“picadas”, feitas nos sertões das Minas Gerais, Currais da Bahia, Piauí e
Maranhão, para as minas de Goiás, pelo ouro que continuamente se ex-
traía, apesar das ordens expressamente afixadas que proibiam a sua passa-
gem47. Em 1737, o governador de Minas, Martinho de Mendonça e Pina,
noticiou a abertura de um caminho terrestre das minas de Cuiabá para
as de Goiás. E, em 1775, o governador e capitão-general de São Paulo
referia-se à determinação da Coroa de “mandar obstruir alguns caminhos
e picadas que ligam São Paulo à capitania de Minas Gerais”, para evitar
os “extravios de ouro em pó, diamantes e quintos reais”48.
47 – 1737, Abril, 4, Vila Rica OFÍCIO do Governador de Minas, Martinho de Mendonça
de Pina e Proença para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Antônio Gue-
des Pereira. Nº de inventário no catálogo: 13595 AHU-Minas Gerais, cx. 33, doc. 24
AHU_CU_011, Cx. 33, D. 2638; 1728, Março, 6, Vila de Cuiabá CARTA do [governador
e capitão-general da capitania de São Paulo] Rodrigo César de Meneses ao rei [D. João
V]. AHU-MATO GROSSO, cx. 1, doc. 14ahU_CU_010, Cx. 1, D. 12; 1730, Abril, 25,
São Paulo CARTA do (governador e capitão-general da capitania de São Paulo), Antônio
da Silva Caldeira Pimentel, a (D. João V). AHU-São Paulo-MGouveia, cx. 6, doc. 711.
AHU_CU_023-01, Cx. 6, D. 711; 1733, Agosto, 25, São Paulo Representação dos oficiais
do Senado da Câmara da cidade de São Paulo a (D. João V). AHU-São Paulo-MGouveia,
cx. 8, doc. 927. AHU_CU_023-01, Cx. 8, D. 927.
48 – 1729, Agosto, 3, Vila Rica Carta de Antônio Berquó Del Rio, provedor da Fazenda
Real das Minas AHU-Minas Gerais, cx. 15, doc. 3 AHU_CU_011, Cx. 15, D. 1187; 1775,
Dezembro, 20, São Paulo Ofício do governador e capitão-general da capitania de São
Paulo, Martim Lopes Lobo de Saldanha, ao [Secretário de Estado da Marinha e Ultramar],

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016 55


André Heráclio do Rêgo

OS CAMINHOS DE ANGOLA, OU DA COSTA


No outro lado do Atlântico, os sertões africanos também foram obje-
to de tentativas de travessia e ocupação por parte dos portugueses. Inicia-
tivas nesse sentido haviam sido tomadas desde, pelo menos, os tempos de
dom João II. Esse processo foi extremamente lento, bem mais demorado
que a travessia e ocupação dos sertões brasileiros, cujo início se deu de-
pois, com resultados que apareceram de forma bem mais efetiva e pre-
coce que os dos seus correspondentes d’além-mar. Com efeito, desde os
primeiros contatos com o interior africano, foram precisos mais de quatro
séculos para conhecer – que dirá atravessar e ocupar os sertões.

Tal como na América, a penetração lusitana nos sertões africanos


louvou-se dos caminhos terrestres abertos pelas civilizações africanas
para entrar em contato com o litoral. Numa comparação feliz, Maria
Emília Madeira Santos comenta que os portugueses, tendo aprendido a
bolinar49 no Atlântico, utilizaram o mesmo método para penetrar no in-
terior das terras, e “passaram a percorrer caminhos terrestres no sentido
da longitude, unindo trilhos já abertos em todas as direções no sertão
africano”50. Essa simbiose teve continuidade e foi essencial no processo
de conhecimento e ocupação desses sertões, perpassando toda a atividade
lusa na região.

Em face das dificuldades financeiras e de pessoal da Coroa, que se


tinha de desdobrar em atividades em quatro continentes, o processo de
travessia e ocupação dos sertões africanos, tal como no caso dos sertões
brasileiros, somente pôde ser iniciado com o apelo aos – ou com a inicia-
tiva de particulares, com ou sem o beneplácito do Estado. Estes verda-
deiros intermediários entre dois mundos, gente experimentada, prática da
terra, como os soldados baqueanos, os conquistadores antigos, os velhos
Martinho de Melo e Castro ofício n.º 13 do ano de 1776, Março, 9. AHU-São Paulo, cx.
6, doc. 13. AHU_CU_023, Cx. 7, D. 418.
49 – Bolinar, em termos náuticos, significa levar a proa da embarcação para a linha do
vento, ou seja, navegar seguindo obliquamente a rota traçada.
50 – SANTOS, M. Emília Madeira. Prefácio. In: SANTOS, Maria Emília Madeira. Nos
caminhos de África. Serventia e Posse (Angola – Século XIX). Lisboa: IICT – Centro de
Estudos de História e Cartografia Antiga, 1998, pp. XI-XIII, p. XII.

56 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016


Os caminhos do sertão

sertanejos e os missionários, haviam acumulado vasta experiência e exce-


lente conhecimento do terreno, que se revelaria fundamental.

Os primeiros caminhos dos sertões africanos, da costa, tentados ain-


da no tempo de dom João II, foram pela Guiné, pelos rios Senegal, Gâm-
bia e Níger; e pelo Congo, seguindo o rio Zaire. Caminhos fluviais, por-
tanto. Nessa época, a ideia era que, seguindo aqueles caminhos fluviais,
sobretudo do Senegal e do Gâmbia, seria possível chegar ao reino do
preste João51. No século XVI, o interesse por esses caminhos sertanejos
diminuiu, já que o ouro e os escravos chegavam com certa facilidade às
feitorias portuguesas na costa. Na segunda metade desse século, entretan-
to, os fluxos do ouro sudanês para a costa diminuíram, e os portugueses se
aventuraram pelos caminhos do Sudão, na altura do Saara, novamente52.
Nessa mesma época, mais precisamente em 1574, Paulo Dias de Novais,
recém-nomeado capitão e governador do reino de Angola, começou a
percorrer o caminho fluvial do Cuanza, em direção do reino do Ngola,
situado naqueles sertões. O caminho, entretanto, já havia sido aberto pelo
comércio entre litoral e sertão53. Como se vê, esses caminhos sertanejos
eram abertos pelos exploradores e comerciantes, e depois confirmados
pelas expedições militares, e tinham por objetivo a busca das riquezas dos
sertões, no caso os metais preciosos e os escravos.

O caminho preferido continuava a ser a via fluvial do Cuanza, mas


outras rotas começaram a ser exploradas, mais ao sul, no sertão de Ben-
guela, em busca de escravos, cobre e marfim. Fundou-se a fortaleza de
São Filipe de Benguela, e a partir daí começaram a ser percorridos os
caminhos que conduziam aos reinos ovimbundu dos planaltos, rumo à
África Central. Em 1638 abriu-se o caminho até Caconda, 40 léguas ser-
tão adentro, e estabeleceram-se relações de comércio com os potentados

51 – SANTOS, M. Emília Madeira. Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em


África. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar/Instituto de Cultura Portu-
guesa/Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1978, pp. 34 e 36.
52 – Idem, p. 40.
53 – Ibidem, p. 99.

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André Heráclio do Rêgo

locais. Nesse mesmo ano, foram descobertas as nascentes do Cunene,


cuja foz somente seria descoberta dois séculos depois54.

Configurou-se a partir daí uma situação que se consolidaria nos dois


séculos seguintes. Luanda, a capital do reino de Angola, era o principal
ponto de partida para os caminhos do sertão, a que se seguiam Caçanje,
Pungo Andongo, Benguela, Caconda e Bié. Este último também se desta-
cava por se localizar no planalto de onde eram procedentes quase todos os
rios de Angola, sobretudo o Cuanza, o Cunene e o Cubango. Algo compa-
rável, guardadas as proporções, ao papel de São Paulo no planalto de Pi-
ratininga: centro sertanejo irradiador de caminhos do sertão. Observe-se,
mais uma vez, que, a exemplo do que ocorria no Brasil, os portugueses se
aproveitavam de caminhos já descobertos, já abertos pelos nativos, que
muitas vezes os franquearam55. Em 1793 atingiu-se o alto Zambeze, nas
terras do Lovele, a partir do Bié. Os sertanejos José da Assunção Melo e
Alexandre da Silva Teixeira foram dos primeiros a percorrer esse cami-
nho, descrito por este último a pedido das autoridades56.

Sertanejos e pombeiros avançavam em caravanas constituídas por


brancos, negros e mestiços. Chegavam a comandar cinco mil homens
e mulheres, na sua maioria escravos, carregando às costas as fazendas
para o negócio, os presentes para os sobas e as armas […] A princípio
o grande comércio era o dos escravos, depois começou a procura do
marfim, da cera, do cobre e, por fim, da borracha. Por vezes as viagens
duravam alguns anos […] Durante a viagem muitos morriam, alguns
nasciam, para pouco depois morrerem também, mas os que regressa-
vam não ficavam muito tempo, partiam para nova aventura. A expe-
riência desses homens era riquíssima e a sua capacidade de resistir no
interior muito superior à dos destacamentos militares. Os capitães-
-mores não logravam ter sobre eles qualquer autoridade […] Alguns
governadores, sentindo-se incapazes de os controlar, temiam as suas
violências, apontando-os como causadores e até instigadores dos mo-
vimentos de insubordinação dos negros […] Outros entenderam que
poderiam tirar vantagem da sua atividade, não só no campo comercial,

54 – Ibidem, pp. 138,139 e 140


55 – Ibidem, p. 164.
56 – Ibidem, pp. 165 e 166.

58 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016


Os caminhos do sertão

mas igualmente na execução dos projetos de exploração terrestre […]


Os governadores que se empenharam no descobrimento do interior
acabaram sempre por solicitar a colaboração dos sertanejos57.

Permiti-me essa longa citação de trecho da obra clássica de Maria


Emília Madeira Santos sobre as viagens de exploração terrestre dos por-
tugueses nos sertões africanos, pelo que ela contém, e revela, de suges-
tões para uma visão comparada das explorações e conquista dos sertões
dos dois lados do Atlântico. Com efeito, fazendo-se algumas adaptações,
ali estão descritas a composição de uma bandeira e as relações entre a
Coroa e os sertanistas brasileiros, sobretudo os paulistas. Em princípio,
a busca pelos cativos indígenas, a preação de índios e negros; a seguir,
a diversificação dos interesses, que passaram a incluir minerais e drogas
do sertão. A pecha de insubordinados e rebeldes, que era aplicada aos
paulistas, a quem se reconhecia, no entanto, a grande experiência e a in-
superável capacidade de se adaptar e resistir às calamidades do sertão. E
a utilização desses sertanistas como auxiliares e agentes da Coroa, não só
no comércio, mas na exploração dos sertões desconhecidos.

Note-se, a propósito dos termos “baqueano” e “sertanejo”, que am-


bos, aplicados nos dois lados do Atlântico, com sentidos muito próximos,
revelavam realidades que, de certo modo, muito se assemelhavam. Com
efeito, “baqueano” (algo que lembra backlands, uma das possíveis tra-
duções da ideia de sertão em inglês) valia por “gente já acostumada ao
sertão, que tinha acostumado o seu organismo às condições do clima do
sertão”58. Uma definição muito exata do que era um bandeirante paulista.
Já o termo sertanejo, comum também ao Brasil e à África Portuguesa,
apresentava algumas diferenciações, a mais notável das quais, no caso
africano, era a sua identificação com o comércio de longo curso.

57 – Ibidem, pp. 164 e 165.


58 – Ibidem.

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André Heráclio do Rêgo

OS CAMINHOS DE MOÇAMBIQUE, OU DA CONTRACOSTA


Na contracosta, os caminhos sertanejos tinham por objetivo princi-
pal o império do Monomotapa59, grande produtor de ouro dos sertões que
mantinha relações comerciais com o litoral. Foi inclusive a existência
de ouro no sertão de Moçambique que levou à instalação de feitorias no
litoral sul da África Oriental60.

O pioneiro português nesses caminhos teria sido um certo Antônio


Fernandes, mencionado por Afonso de Albuquerque já em 1513 e que
nesse ano e no seguinte, 1514, teria atingido o Monomotapa por cami-
nhos que, partindo de Sofala, passavam por Manica, daí subindo até o
médio rio Zambeze61. Por esse caminho viajou Francisco Barreto e seu
exército, na malograda expedição de conquista do Monomotapa, na déca-
da de 1570. Por ele seguiram também mercadores e missionários, sobre-
tudo os dominicanos. O Zambeze era considerado “as portas por onde os
portugueses entram” no Monomotapa62. Assim, os mercadores navega-
vam por esse rio até o forte de Tete, e daí por terra até o império do Mo-
nomotapa. Pelo caminho foram criando o que se convencionou chamar as
“feiras” do sertão em Luanze, Manzo e Massapa, entrepostos controlados
por portugueses indicados pela Coroa e confirmados pelo Monomotapa,
que serviam de intermediários entre as duas potências63.

A partir da costa oriental africana havia ainda outros caminhos pe-


los sertões, como aquele que conduziu os náufragos do galeão São João,
em 1552, à baía de Lourenço Marques, atual Maputo, que era na costa o
ponto mais meridional onde chegava o comércio regular lusitano. Esse
caminho foi percorrido várias vezes, tantas quantas eram os naufrágios,
e era feito parte junto à costa, parte fazendo largas curvas para o interior,
para evitar a travessia dos rios na foz. Em finais do século XVI fez-se um
regimento sobre o itinerário que as tripulações de náufragos no Cabo da

59 – Grande império dos sertões austrais africanos, que floresceu a partir do século XV.
60 – SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre, pp. 71 e 73.
61 – Idem, p. 75.
62 – Ibidem, p. 83.
63 – Ibidem, p. 84.

60 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016


Os caminhos do sertão

Boa Esperança deveriam seguir, baseado na experiência dos sobreviven-


tes do galeão Santo Alberto que, em 1593, sob a liderança do piloto Nuno
Velho Pereira, decidiram evitar o caminho junto à costa e atravessaram os
sertões, “pelas entranhas da cafraria”, chegando em 88 dias ao rio de Lou-
renço Marques, passando as montanhas Ingeli e rumando após para leste
na direção da costa. Itinerário baseado nas observações astronômicas64.
Mais uma coincidência e semelhança entre o mar e o sertão. As observa-
ções astronômicas eram o meio mais seguro para guiar os exploradores
dos sertões africanos, usando-se, como se nos mares estivessem, o astro-
lábio e a carta de marear, e contando com a colaboração de pilotos65.

Também na contracosta ocorriam as viagens do comércio de longo


curso características dos sertões angolanos, se bem que com muito menor
importância. Os caminhos percorridos tinham por destino o Zumbo, na
confluência do Lungua com o Zambeze. Desse ponto os comerciantes
brancos enviavam seus agentes negros, os ‘mussambazes’, semelhantes
aos pombeiros angolanos, para comerciarem em zonas proibidas aos eu-
ropeus. A partir dali, era o sertão desconhecido66.

O CAMINHO DA COSTA À CONTRACOSTA


Também na África Portuguesa era a Coroa que revelava uma visão
estratégica: do mesmo modo que do outro lado do Atlântico era questão
de Estado descobrir o caminho que ligava o Brasil ao Maranhão, em ter-
ras africanas era fundamental descobrir e percorrer o caminho da costa à
contracosta, qual seja, entre as colônias de Angola, na costa atlântica, e de
Moçambique, na costa índica. Foi assim que, quer pelo lado de Angola,
quer pelo de Moçambique, se iniciaram sondagens a que se sucederam,
no século XVII, projetos de travessia do continente, que não se concre-
tizaram67.

64 – Ibidem, pp. 88,89 e 90.


65 – Ibidem, p. 91.
66 – Ibidem, p. 169.
67 – Ibidem, p. 119.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016 61


André Heráclio do Rêgo

O tema estava na ordem do dia desde a época de dom João II, quan-
do se esboçou a ideia de um caminho ligando a costa ocidental e a costa
oriental da África, havendo, na última década do século XV, a esperança
de se chegar à Etiópia oriental, ao império do preste João, possível alia-
do contra os muçulmanos, como testemunhou um estrangeiro, Jerônimo
Munzer, em visita a Lisboa:
Desde a costa ocidental até a costa oriental há muitos domínios que
não foi possível ainda atingirmos por causa da barbárie dos indígenas
que, no entanto, se vão tornando cada vez mais tratáveis, de modo que
os portugueses esperam chegar brevemente à Etiópia oriental68.

Essa esperança era reforçada pela geografia imaginária da época que,


a exemplo do que ocorreria no outro lado do Atlântico, diminuía a dis-
tância entre a costa e a contracosta. Somente no século XVII, entretanto,
começaram a surgir, de forma mais efetiva, conquanto incipiente, proje-
tos de travessia do continente. Em 1616, o governador de Angola, Luís
Mendes de Vasconcelos, se propôs a realizá-la, oferecendo-se para con-
quistar o Monomotapa. Cerca de 1646, apareceu outro plano de travessia
da África, “que traria a dom João IV a solução da falta de dinheiro para a
guerra com a Espanha”69. O projeto baseava-se em informações obtidas
por soldados, religiosos, funcionários da Coroa e mercadores, bem como
em um mapa que “compreendia todo o corpo desta terra, de Mombaça até
ao rio Zaire, no qual estavam todas as minas e terras descobertas, rios,
caminhos, lagoas e serras”70. Essa expedição seria constituída de dois mil
soldados e levaria mantimentos para dois anos: partiria do Brasil em di-
reção ao litoral africano, onde procuraria lugar próprio para fortificação,
em latitude próxima dos 26 graus, e de onde a expedição iria internar-se
até Uropande, no Monomotapa71.

68 – MUNZER, Dr. Jerônimo. Itinerário do…(excertos). Trad. de Basílio Vasconcelos.


Coimbra, 1932, pp. 58 e 59. Apud SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de explora-
ção terrestre dos portugueses em África, p. 33.
69 – SANTOS, M. Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre dos portugueses em
África, p. 123.
70 – Idem, pp. 123 e 124.
71 – Ibidem, pp. 123 e 124.

62 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016


Os caminhos do sertão

Em 1663, o padre Manoel Godinho referia-se ao “caminho de Ango-


la ao mar de Moçambique, por terra”, ainda não descoberto, mas que não
deixava de ‘ser sabido’. Esse caminho, quando percorrido, não apresenta-
ria maiores dificuldades, já que de Angola à lagoa Zachaf, localizada no
sertão da Etiópia, que se estendia por quinze léguas de largo, não se lhe
conhecendo o comprimento, eram menos de duzentas e cinquenta léguas:
Esta lagoa põem os Cosmógrafos em quinze graus e cinquenta mi-
nutos: e segundo um mapa que vi feito por um português, que andou
muitos anos pelos reinos de Monomotapa, Manica, Butua, e outros
daquela Cafraria, fica esta lagoa não muito longe de Zimbabue, quer
dizer Corte, de Mesura, ou Marabia. Sai dela o rio Arvui, que por cima
do nosso forte de Tete se mete no rio Zambeze. E também o rio Chire,
que cortando por muitas terras, e ultimamente pelas do Rondo, se vai
ajuntar com o rio de Cuama, para baixo de Sena72.

Assim, para se fazer aquele caminho de Angola a Moçambique,


“atravessando o sertão da Cafraria”, dever-se-ia buscar a lagoa Zachaf,
e a partir dela descer por via fluvial a Tete e Sena, e daí até a barra de
Quilimane, prosseguindo por terra e por mar até a ilha de Moçambique.
A conclusão do padre, entretanto, é bem sintomática da geografia ima-
ginária que era tributária da falta de conhecimento e de iniciativa dos
colonizadores: “Que haja a tal lagoa, dizem-no não só os cafres, senão
portugueses, que já lá chegaram, navegando pelos rios acima; e por falta
de prêmio se não tem descoberto até agora este caminho.”73

Mas não foi assim a realidade, que evoluiu bem longe de tais pla-
nos. O que se verificou ao longo de todo o século XVII e até meados do
seguinte são diversas tentativas, de iniciativa governamental, dotadas de
meios muito modestos e que produziram resultados bastante limitados,
já que “os exércitos encontravam uma resistência tenaz e os descobrido-
72 – “Comunicação entre as duas costas africanas (1663) In: BRÁSIO, Padre Antônio.
Monumenta Missionaria Africana – África Ocidental (1655-1665), coligida e anotada
pelo padre Antônio Brásio, C.S.Sp. Vol. XII, Lisboa: Academia Portuguesa da História,
MCMLXXXI, p 474; “Relação do novo caminho que fez por terra e mar, vindo da Índia
para Portugal no ano de 1663. Padre Manuel Godinho S. J. Lisboa, 1665, cap. 24, pp. 156-
157.
73 – Idem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016 63


André Heráclio do Rêgo

res isolados desistiam, sentindo-se impotentes perante uma distância que


inesperadamente aumentava sempre”74.

Em 1725, dom Luís da Cunha propunha o projeto de um caminho


“ligando a costa meridional com a costa setentrional de África” em carta
dirigida ao cardeal da Cunha, em reação à presença cada vez maior dos
holandeses naquela região, pela qual eles também tentavam estabelecer
vias de penetração no continente. Eles estariam tentando abrir um cami-
nho por terra até o Cabo da Boa Esperança, o que, se concretizado, seria
fatal para as frágeis posições portuguesas na costa e na contracosta75.

Assim, longe dos sertões, mais exatamente em Paris, iniciou-se o


planejamento de uma viagem de exploração geográfica em moldes cien-
tíficos, em 1725, resultado da colaboração de dom Luís da Cunha, em-
baixador português na Corte francesa, com Jean-Baptiste Bourguignon
d’Anville, geógrafo do rei da França, de cuja cooperação surgiram novas
cartas da África Austral, baseadas na geografia antiga e atualizadas com
a cartografia portuguesa e holandesa e memórias sobre regiões do conti-
nente, bem como uma memória descritiva – a Description Geographique
de la partie de l’Afrique, qui est au sud de la ligne Equinoxiale.

Esses documentos foram elaborados com base em informações for-


necidas pelos comerciantes que faziam as rotas do interior do continen-
te. Este projeto inspirou tentativas, no terreno, de travessia transconti-
nental, algumas por iniciativa de familiares ou amigos próximos de dom
Luís da Cunha, como a do vice-rei dom Pedro de Almeida Portugal, que,
em 1748, enviou para Moçambique um capitão-mor, com a memória de
d’Anville, na missão fracassada de avaliar a possibilidade de estabelecer
um caminho para a costa ocidental76.

74 – SANTOS, Maria Emília Madeira, Viagens terrestres, p. 125.


75 – FURTADO, Júnia Ferreira. “Entre Angola e Moçambique: um projeto português de
ligação terrestre entre as duas costas da África e suas fontes europeias e africanas”; “Carta
de dom Luiz da Cunha (1725) propondo o projeto ligando a costa meridional com a costa
setentrional da África – dirigida ao cardeal da Cunha (Biblioteca da Ajuda MS. AV. 54-
XIII-3, Nº 5).
76 – SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens terrestres, p. 125.

64 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016


Os caminhos do sertão

A situação melhoraria um pouco durante a administração do marquês


de Pombal, mas ainda assim a situação continuava difícil e complicada.
Não podendo contar com exploradores profissionais, os governadores
que quiseram fazer explorações terrestres tiveram de se sujeitar à irregu-
laridade da colaboração dos sertanejos, que dispunham do conhecimento
do terreno. A experiência do sertanejo foi, assim, quase sempre, o “com-
plemento da aptidão científica e técnica do engenheiro ou do piloto”77.

Nos finais do século XVIII e princípios do XIX, voltou à carga o


projeto de comunicação entre a costa e a contracosta, desta vez por meio
do “descobrimento do resto do grande sertão do país desconhecido de
Benguela”, nos moldes de projeto de dom Francisco Inocêncio de Sousa
Coutinho. Nesse intento, fez-se uma descrição geográfica do sertão de
Benguela, dando-se uma noção geral de seus habitantes, costumes, ca-
ráter e governo, bem como das suas “copiosas e excelentes produções”,
e da sua religião, mas sobretudo das “consequências e vantagens para o
comércio e para a Coroa deste descobrimento”, e o modo como podia ser
feito. O sertão de Benguela, por essa descrição, se estenderia para leste
até o sertão de Moçambique e Rios de Sena, “com perto de quinhentas
léguas, havendo numa e noutra costa boa porção de terreno conhecido e
tratável”, e imensa povoação, dividida “em muitos governos de diferente
extensão e autoridade”. Esse sertão era dominado por sovas e sovetas,
“aleivosos e muito atraiçoados”, cuja amizade pelos brancos era fundada
no interesse pela importação de gêneros, ademais de serem todos antro-
pófagos. Suas guerras, declaradas por motivos frívolos, ademais de for-
necer comida, eram “o meio de haverem escravos e da sua venda tirarem
os interesses desejados”. Tudo isso no quadro de um clima “benigno e
saudável, como o de Portugal”, e de um solo “tão fértil que apesar do
desprezo e negligência com que o cultivam, chega a dar cento por um”.
As grandes vantagens desse caminho entre as duas costas seriam estender
as conquistas portuguesas e adquirir novos conhecimentos de povos e ter-
ras nunca dantes praticados; auxiliar-se uma e outra costa nos momentos
de necessidade, “no caso de alguma delas ser acometida ou debelada”;

77 – SANTOS, Maria Emília Madeira. Viagens de exploração terrestre, p. 149.

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André Heráclio do Rêgo

os navios da Ásia poderiam descarregar em Moçambique e as fazendas


serem “transportadas a Benguela e outras terras do sertão, sem ser preciso
dobrar-se o cabo e haver a grande demora e risco da viagem”. Além disso,
ambas as conquistas ficariam mais seguras e mais sujeitas, abstendo-se
os indígenas de “roubos e maus tratamentos” que faziam muitas vezes
aos desamparados sertanejos, ficando assim o comércio livre e seguras as
vidas e as fazendas78.
Temos, pois, de Benguela para dentro, ou caminhando para leste, boas
cento e oitenta léguas de sertão trilhado e conhecido, e da parte de
Moçambique e da costa oriental se acham descobertas cinquenta lé-
guas com pouca diferença; e sendo quinhentas o total, restam apenas
duzentas e setenta a descobrir. [...] É portanto mais fácil do que talvez
se julga, esse descobrimento, não somente pelo que pertence ao sertão
desconhecido, mas também pelo que respeita às asperezas, e aprestos
necessários. Porque alguns instrumentos matemáticos e quem saiba
usar deles para se tomarem as dimensões e alturas da derrota, quatro-
centos homens (e talvez menos) resolutos, valentes, sujeitos e bem
armados, e duas peças de campanha [seriam suficientes]79.

As expedições seriam acompanhadas por “práticos e endurecidos no


país”, em troca de patentes honoríficas, para eles ‘estimáveis’, de títulos
como os de ‘empacaceiros’, ‘atalaias’, ‘aventureiros’ e ‘guerra preta’:

Estes homens, chamados Sertanejos como disse, prezam-se muito


destes títulos, e o Estado só despende palavras quando lh’os concede.
Estes, pois, com alguns soldados que se puderem ajustar e escolher,
cheios de honra, e amantes da Pátria e da glória, e que completem o
número indicado, e força suficiente. […] Para a subsistência desta ex-
pedição poder-se-á comprar uma boa porção de gado, de que abundam
aquelas terras, e dado que acabe, nunca se pode temer a fome; porque,
havendo pólvora, chumbo e bala, há de haver certamente que comer,

78 – LACERDA, José Maria de. Observações sobre o sertão de Benguela – Observações


sobre a viagem da costa de Angola à costa de Moçambique, por José Maria de Lacer-
da. Documento oferecido à Associação Marítima pelo seu ex-Presidente, o Exmo. Sr.
Visconde de Sá da Bandeira. Anais Marítimos e Coloniais. Publicação mensal redigida
sob a direção da Associação Marítima e Colonial. Quarta série. Parte não oficial. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1844, pp.188-214, pp. 193 e 194.
79 – Idem, pp. 198 e 199.

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Os caminhos do sertão

por ser o sertão todo muito povoado de imensa e vária caça, como
elefantes, rinocerontes, impacaças, zebras, impalancas…80.

Havia, entretanto, quem achasse dificultosa a execução desse proje-


to, já que a ocupação e a ‘civilização’ de povos afeitos a guerras e rou-
bos não seria fácil, e os brancos não poderiam viver em segurança em
sertões “onde muito pouco prosperam os estabelecimentos portugueses”,
por conta da dificuldade em reprimir as “contínuas correrias” daqueles
bárbaros em tão extensas províncias. O sertão africano era assim um po-
derosíssimo inimigo contra os europeus, pela sua esterilidade, aspereza e
falta de águas, o que seria suficiente para, em terras desconhecidas, fazer
perecer um exército inteiro81.

A Coroa e as autoridades portuguesas, apesar do grande interesse e


desejo de descobrir o caminho da costa à contracosta, viam-se ademais
tolhidas pela falta de meios. Exemplo disso é o Aviso de 6 de outubro de
1796, em que o ministro dom Rodrigo de Sousa Coutinho estabelecia que
as tentativas de travessia não deveriam implicar grandes despesas.

Havia também a ponderação, contrária ao pensamento de dom Luís


da Cunha, de que mais valia dobrar o Cabo da Boa Esperança para ir à
contracosta em busca de comércio e riquezas do que tentar a travessia
por terra, pelos sertões, “por entre diversas e imensas nações de negros
bárbaros”, e onde além do mais seria muito mais difícil encontrar gente
disposta para ali se estabelecer do que tripulantes para as embarcações
que cruzassem o Cabo da Boa Esperança:
em um clima contrário aos europeus como é este [...]ou que então o
mesmo Senhor dando-me crédito se desengane que Angola não é o
Brasil, que tudo quanto tentarmos fazer na África há de ser perdido,
e pelo contrário aproveitado o que se despender, ou de cabedia, ou de
80 – Ibidem, pp. 200 e 201.
81 – “Parecer do ouvidor-geral João Álvares de Melo sobre a Memória do dom Francis-
co Inocêncio de Sousa Coutinho acerca do comércio da Ásia e da África (7-12-1798)”.
In: FELNER, Alfredo de Albuquerque. Angola – Apontamentos sobre a colonização dos
planaltos e litoral do sul de Angola. Extraídos de documentos históricos por Alfredo de
Albuquerque Felner (obra póstuma). I Tomo. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca
da Agência Geral das Colônias, 1940, pp. 238-242, p. 239.

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André Heráclio do Rêgo

fadiga, na América. Que a força e o vigor da Coroa portuguesa nunca


há de sair de Angola, mas sim do Brasil, e que esta colônia de África
só é um meio para que prosperem pela agricultura e mineralogia as da
América Portuguesa82.

OS DESCAMINHOS
O governador-geral do Brasil, dom João de Lencastro, discorren-
do sobre a arrecadação dos quintos do ouro das minas, observava que
daquelas novas minas de ouro descobertas naqueles sertões do Brasil,
que prometiam riquezas e felicidades, já se previam consequências pre-
judiciais. Nesse sentido, indicava que o primeiro grande mal que pode-
ria advir daquelas minas, “seria sair o ouro pelo mesmo Tejo por onde
entrasse”, já que França, Inglaterra, Holanda e Itália, se, a exemplo do
ocorria com a prata espanhola, dele se apropriassem, “seria o proveito
todo seu e o trabalho nosso, além de que iríamos dar armas e nutrir quem
nos poderia guerrear e fazer sombra”. A esses se somavam os “inconve-
nientes no próprio Brasil, nascidos da liberdade, a todos concedida, de ir
às minas”. Com efeito, para lá se dirigia uma multidão de vagabundos e
desocupados, que viviam à margem da lei e da justiça. Havia o perigo de
se formar ali um “valhacouto de criminosos, vagabundos, e malfeitores”,
que, se rebelados, poderiam pôr em perigo todo o Brasil. Outro problema
seria que, com o livre acesso às minas, haveria no Brasil mais ouro que o
conveniente, desvalorizando-se em relação à prata, o que seria altamente
prejudicial. As minas, ademais, prejudicavam as lavouras de açúcar e de
tabaco, bases econômicas do reino, atraindo muitos dos que podiam ser-
vir nestas lavouras, que as abandonavam levados pela ambição do ouro,
tanto brancos quanto negros. O preço destes últimos subia, o que não só
dificultava mas impossibilitava a manutenção das lavouras na Bahia, em
Pernambuco e no Rio de Janeiro. Havia ainda a questão do descaminho
dos quintos reais, agravado pela livre entrada nas minas. O remédio para
82 – “Carta de dom Miguel Antônio de Melo, de 8/3/1800, para dom Rodrigo de Sousa
Coutinho”. In: FELNER, Alfredo de Albuquerque. Angola – Apontamentos sobre a colo-
nização dos planaltos e litoral do sul de Angola. Extraídos de documentos históricos por
Alfredo de Albuquerque Felner (obra póstuma). I Tomo. Lisboa: Divisão de Publicações
e Biblioteca da Agência Geral das Colônias, 1940, pp.243-247, pp. 244, 245 e 246.

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Os caminhos do sertão

tais males seria, em primeiro lugar, proibir, sob pena de morte e confisca-
ção de bens, que se fosse às minas sem autorização do governador-geral,
ou dos governadores de Pernambuco e Rio de Janeiro, sendo estas auto-
rizações limitadas a um determinado número de pessoas, pelas quais se
repartiriam as terras ou ribeiras segundo as possibilidades de cada um.
Outra solução seria estabelecer o caminho mais curto para minas, segun-
do ele pelo Espírito Santo, “vila marítima e a mais bem fortificada do Bra-
sil”, a mais adequada por ser a “porta única” daquelas minas83. A solução
para todos esses problemas, em resumo, era limitar a entrada nas minas.

Dom João de Lencastro refere-se, assim, aos descaminhos do ouro,


que eram “infalíveis”, no dizer de certa autoridade do século XVIII, “pela
situação do país no centro do sertão, com a extensão de duzentas e tantas
léguas de circunferência”, e pelas “saídas francas por rumos desertos”,
que havia por toda parte84.

Com efeito, a tarefa de vigiar e policiar aquela quantidade enorme


de caminhos, trilhas e veredas imbricadas e confusas era ingrata, para
não dizer impossível. Tentou-se, no entanto, fazer alguma coisa, como a
instalação de ‘passagens’ e ‘registros’, onde se cobravam respectivamen-
te direitos de passagem e de entrada sobre a circulação e sobre escravos,
gado e cargas de secos e molhados. As ‘passagens’ localizavam-se nas
travessias dos rios caudalosos, e os registros nos caminhos terrestres mais
movimentados, e dispunham de tropas militares para facilitar sua tarefa.
O objetivo era evitar a evasão fiscal85.
83 – RAU, Virginia; SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Os manuscritos do arquivo da
casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Vol. II. Coimbra: Por ordem da Universidade –
Acta Universitatis Conimbrigensis, 1956. 28 – Cópia do papel que o senhor Dom João
de Lancastro fez, sobre a arrecadação dos quintos do ouro das minas, que se descobriram
neste Brasil...
84 – Parecer contra a capitação e as casas de fundição e pela imposição de quantia equi-
valente ao quinto sobre os gêneros. In: Códice Costa Matoso – Coleção das notícias dos
primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Ma-
toso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749
& vários papéis. Coordenação geral de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Maria
Verônica Campos. 2 volumes. Belo Horizonte Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos
Históricos e Culturais, 1999, vol. I, pp.536-558, p. 540.
85 – REZENDE, Maria Efigênia Lage. Itinerários e interditos na territorialização das Ge-

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André Heráclio do Rêgo

O principal “descaminho” do ouro se dava no caminho da Bahia,


evitando-se o pagamento dos quintos, direitos de entrada e direitos de
passagem, entre outros. A quantidade de ouro contrabandeada por esse
descaminho baiano superaria todo o mais contrabando. Mas não era so-
mente ouro: também os escravos eram contrabandeados por ali. A situa-
ção chegou a tal ponto que a Coroa decidiu fechar o caminho da Bahia,
em 1701, proibindo a circulação de todas as mercadorias, com exceção
do gado86. Com efeito, durante o governo geral de dom Rodrigo da Costa,
de 1702 a 1705, tentou-se impedir a comunicação da Bahia e de outras
capitanias do norte com as Minas, com vistas a evitar o contrabando de
ouro e a decadência da lavoura canavieira por conta da evasão e desvio
de mão de obra escrava, o que tinha repercussões inclusive na defesa da
marinha contra ataques estrangeiros. Mais uma vez, a tensão entre sertões
e litoral na história brasileira. A medida, no entanto, era inócua e inapli-
cável, tendo em vista a vastidão e as asperezas daqueles sertões, como
veem descritas no manuscrito já mencionado, o Das vilas de São Paulo
para o rio de São Francisco, do acervo da Biblioteca da Ajuda. Em 1705
Baltasar de Godoi Moreira comentava em carta ao rei, dom Pedro II, que
era muito difícil mandar proibir o caminho do sertão da Bahia para as
minas porque “este sertão tem muitos caminhos por onde entram e saem
os homens que vêm com negócio da Bahia...”.87

Era impossível assim realizar uma interdição efetiva de quaisquer


dos caminhos que levavam às Minas: o Velho, o Novo e o do São Fran-
cisco, ou da Bahia. No caso específico deste último, mesmo na época de
maior controle não se havia conseguido impedir o trânsito dos viajantes
para as Minas, por ser impossível colocar guardas em todas as capitanias
do Norte, pela imensidade daqueles sertões88.

rais. In: História de Minas Gerais. Vol 1. As Minas setecentistas, p. 31.


86 – SANTOS, Marcio. Caminhos. In: Dicionário Histórico das Minas Gerais, p. 86.
87 – ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas.
“Carta de Baltasar de Godoy Moreira a D. Pedro II – Minas Gerais, 30.7.1705 – AHU
–Rio de Janeiro-3106, p. 380.
88 – REZENDE, Maria Efigênia Lage, op. cit., pp. 35, 37 e 43.

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Os caminhos do sertão

Descaminhos também eram aqueles caminhos não autorizados pela


Coroa portuguesa, que considerava crime de lesa-majestade a sua abertu-
ra, por recear o extravio dos quintos. Na tentativa de proibir esses desca-
minhos, a Coroa ordenou o fechamento de trilhas e logradouros próximos
às áreas mineradoras, o que deu origem às “áreas proibidas”, aos “sertões
proibidos” como, por exemplo, os sertões da Mantiqueira e os sertões do
leste da capitania de Minas Gerais. Essa medida, ademais de atentar con-
tra os interesses privados, muitas vezes legítimos, tinha pouca eficácia.
Com efeito, não somente com vistas ao contrabando, mas também para
facilitar o comércio, muitos “desvios” foram criados naqueles sertões. A
certa altura, tornou-se inevitável, a bem dos próprios interesses da Coroa,
incorporar esses desvios, esses sertões proibidos, mas efetivamente ocu-
pados, aos espaços conhecidos e controlados. Foi o que fez o governador
dom Rodrigo José de Meneses, ao se aventurar pelos sertões proibidos
da Mantiqueira, onde corria fama de existirem faisqueiras de bons rendi-
mentos, com o objetivo de, num quadro de retração econômica, descobrir
novas fontes de rendimentos para a Coroa89.

Os caminhos do sertão foram, assim, fundamentais para a conquista
do território e para o seu povoamento, seja nos sertões americanos, seja
nos sertões africanos. Esse processo se caracterizou, de um lado, pela
persistência e, de outro, pela descontinuidade, tanto no tempo quanto no
espaço.

Terrestres e fluviais, amplos e mesquinhos, estradas reais e picadas,


esses caminhos, boa parte dos quais aproveitados dos nativos dos dois
lados do Atlântico, ajudaram a implantar a soberania portuguesa naqueles
sertões, por mais frágil e precária que ela fosse.

89 – RODRIGUES, André Figueiredo. Os sertões proibidos da Mantiqueira, desbrava-


mento, ocupação da terra e as observações do governador dom Rodrigo José de Meneses.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23, nº 46, 2003, pp. 253-270, pp. 255, 257 e
260.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):39-76, jul./set. 2016 71


André Heráclio do Rêgo

Tendo como origem, no Brasil, os núcleos de Olinda, Salvador, Rio


de Janeiro e São Paulo e, na África, de Luanda, Bié, Sofala e outros, esses
caminhos foram essenciais para as tentativas de exploração e descobri-
mento e para a circulação de tropas, mas também para atividades mais
comezinhas como as trocas comerciais e o transporte de mercadorias, seja
nos lombos das mulas, seja nas costas dos nativos. Feitos por iniciativa
da Coroa, com sua colaboração ou a sua revelia, foram, também, um dos
locus privilegiados para a manifestação de um dos grandes paradoxos do
processo de expansão e colonização portuguesa: a tensão permanente,
para não dizer a confusão, entre o público e o privado.

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Texto apresentado em outubro/2015. Aprovado para publicação em


janeiro/2016.

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77

A “MAL-AVENTURADA ESCOLHA”: D. PEDRO I E A


NOMEAÇÃO DOS SENADORES EM 1826.
ESTRATÉGIAS POLÍTICAS NA FORMAÇÃO DO
LEGISLATIVO BRASILEIRO.
THE “ILL-FATED CHOICE”: D. PEDRO I AND THE
APPOINTMENT OF THE SENATORS IN 1826.
POLITICAL STRATEGIES IN THE FORMATION OF THE
BRAZILIAN LEGISLATURE
Marina Garcia de Oliveira1
e Monica Duarte Dantas 2

Resumo: Abstract:
Neste artigo, nos propomos a analisar a monta- We analyze in this paper the formation of the
gem do primeiro Legislativo do Império do Bra- first legislature of the Brazilian Empire, with
sil, dando especial ênfase às estratégias usadas special focus on the strategies used by D. Pe-
por d. Pedro I para a escolha dos senadores, a dro I for appointing senators from the provin-
partir das listas provinciais, em janeiro de 1826. cial lists in January of 1826. We seek to further
Pretendemos, assim, elucidar quais critérios elucidate the criteria used by the emperor in
foram utilizados pelo imperador na nomeação the appointment of the senators, as well as the
dos senadores, bem como os recursos utilizados resources he used to guarantee to his allies a
para garantir, aos seus aliados, uma cadeira na lifetime chair in the legislature so that the Up-
casa vitalícia, de tal modo que a câmara Alta se per House could serve as a barrier capable of
colocasse como uma barreira capaz de conter as curbing the discussions held in the Chamber
discussões propostas na Câmara dos Deputados. of Deputies. Along this line, we will analyze
Dentro dessa temática, será analisado o funcio- how the first legislature (1826 - 1830) worked
namento do primeiro legislativo (1826 – 1830), when drafts were discussed in the two houses
tanto no sentido de discutir os projetos debati- and what position the senators took towards
dos nas duas casas do Legislativo, quanto os po- the drafts coming from the temporary house. We
sicionamentos dos senadores frente aos projetos will show that in light of the content of the drafts
oriundos da casa temporária. Além disso, já com elaborated by the deputies, D. Pedro I made use
o Legislativo em funcionamento, diante do teor of one more resource to assure the support of
1 –1 Doutoranda em História Social (FFLCH – USP), desenvolvendo pesquisa intitulada
“O poder da distinção ou a distinção da recusa: a política das concessões de títulos de
nobreza no Segundo Reinado (1840-1889)”, financiada pelo CNPq e orientada pela Profª
Drª Monica Duarte Dantas.
2 –1 Doutora em História Social pela USP. Professora do Instituto de Estudos Brasileiros
da Universidade de São Paulo (IEB – USP) e do Programa de Pós-Graduação em História
Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade
(FFLCH – USP). No presente artigo, foram incorporadas discussões desenvolvidas no
âmbito do projeto intitulado “O Código do Processo Criminal e a reforma de 1841: de-
bates legislativos e influências estrangeiras na disputa pela implementação de diferentes
modelos de organização do Estado (1826 - 1841)”, que conta com bolsa de produtividade
em pesquisa do CNPq.

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dos projetos elaborados pelos deputados, d. Pe- the senators, granting them titles of nobility and
dro I fez uso de mais um recurso para assegurar pecuniary benefits. Finally, we discuss the dif-
o apoio dos senadores, concedendo títulos de ficulties faced by the emperor after the influx of
nobreza e uma mercê pecuniária a eles. Final- new senators in the second legislature during
mente, a partir da entrada de novos senadores ao the First Empire, and the obstacles he had to
longo do Primeiro Reinado e da posse da segun- overcome so that the strategy he had adopted
da legislatura, tratamos das dificuldades enfren- in 1826 could have the same impact as in the
tadas pelo Imperador, bem como os empecilhos years before.
para que a estratégia por ele adotada em 1826
continuasse a funcionar da mesma maneira que
nos anos anteriores.
Palavras-chave: Senado, Eleições, Primeiro Keywords: Senate, elections, First Empire.
Reinado.

Os deputados haviam sido eleitos em 1824 segundo as formas esta-


tuídas na Constituição; porém na escolha dos senadores, o Imperador,
sem infringir consideravelmente o seu sentido literal, achou meio de
iludir o seu espírito legal, para introduzir neste corpo certos indiví-
duos que pouco mais eram do que cegos instrumentos de sua vontade.
Como já se viu no extrato da Constituição, Sua Majestade devia no-
mear um membro dentre os três candidatos mais votados de cada lista.
Em vários exemplos, aconteceu que os mesmos candidatos tinham
votos em duas províncias: disto se prevaleceu Sua Majestade para es-
colher tais candidatos para uma das duas províncias, eliminar seus
nomes de todas as outras listas, e eleger o quarto, ou quinto candidato,
em lugar do primeiro, segundo ou terceiro: um exemplo poderá me-
lhor aclarar esta exposição. O Imperador desejava nomear o quinto
candidato de Goiás em lugar de um dos três mais votados: os dois
primeiros na respectiva lista haviam também obtido maioria de votos
em outras províncias. Depois de haver nomeado esses dois candidatos
pelas outras províncias, eliminou seus nomes da lista de Goiás, e con-
tou o quinto nela como o terceiro mais votado.3

Com essas palavras, o inglês John Armitage descrevia o modo como


d. Pedro I havia selecionado, em janeiro de 1826, os membros do Senado,
cujos trabalhos começariam na primeira sessão preparatória, em 29 de
abril de daquele ano. Tempos depois, já em 1871, João Manuel Pereira
da Silva traçava um quadro ainda mais contundente das manobras do mo-
narca.

3 –1 ARMITAGE, John. História do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP,
1981, p.128.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

A lista tríplice de Goyaz compunha-se do conde de São João da Palma,


do general José Joaquim Curado, e do Padre José Caetano Ferreira de
Aguiar: cada um delles obtivera cerca de cento e vinte votos accordes
da provincia, o que exprimia quase unanimidade dos eleitores. Esco-
lheu o Imperador ao Conde da Palma pela provincia de São Paulo,
em cuja lista se incluira tambem seu nome. Exerceu o seu direito em
favor do Padre José Caetano, tirando-o da lista do Rio de Janeiro.
Restava só o nome do general Curado, e os serviços deste militar eram
tão relevantes [...] que ninguém suppunha podesse ser preterido por
qualquer outro candidato na escolha [...]. Surprehendeu porem a todos
que não só o imperador deixasse de parte o general Curado, como
que preenchesse elle próprio a lista já anullada, figurando n’ella, além
do seu nome, mais os de dous indivíduos, que haviam apenas obtido
alguns e raríssimos votos dos eleitores. Era um d’estes o Francisco
Maria Gordilho de Barbuda, empregado dos paços imperiaes, á quem
foi logo expedida a carta de senador do imperio e posteriormente ao
titulo de Marquez de Jacarepaguá.

Mostrou assim o imperador que não só se importava pouco com a opi-


nião geral, tão affeiçoada e manifestamente grata ao general Curado,
como que não trepidava em infringir a Constituição, que elle próprio
outorgara, lamentando-se que não lhe impuzesse freio ao capricho
nem um ministro atilado e previdente, por meio de conselhos e avisos
esclarecidos.

Não occultava o publico sua reprovação á esta malaventurada escolha.


Por toda a parte, em todos os círculos, por entre todas as classes da so-
ciedade, um grito unânime resoava [sic], manifestando quasi indigna-
ção de que no systema representativo um obscuro criado do paço fosse
elevado ás honras e cargo de senador do imperio, sem ter sido incluído
em lista tríplice, sem ter por si o voto popular, com infração escanda-
losa da Constituição, e mais ainda, que preterisse á um velho general
crivado de cicatrizes de feridas nobremente rasgadas em campos de
batalha ou em defesa da patria. [...] Os pasquins converteram-se em
echos do sentimento geral. Subio sua audácia ao ponto de comparar
D. Pedro I á Calígula, e Barbuda ao cavallo, que o imperador romano
nomeara cônsul da cidade eterna.4
4 –1 SILVA, João Manuel Pereira da. Segundo Período do Reinado de Dom Pedro I no
Brazil. Narrativa Histórica. Rio de Janeiro: Garnier, 1871, pp.34-37. Joaquim Cura-

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

Armitage e Pereira da Silva não deixavam, portanto, dúvidas quanto


às estratégias do monarca na “mal-aventurada escolha” dos primeiros se-
nadores do Império. A despeito de ter dissolvido a Assembleia Legislativa
e Constituinte em novembro de 1823, Pedro I outorgou a carta do Império
em 25 de março de 1824, mantendo, como previsto no chamado projeto
Antônio Carlos, a existência de um legislativo bicameral, a ser eleito tão
logo fossem realizadas as eleições para as duas casas.

As eleições para a formação da Assembleia Geral (que incluía a Câ-


mara dos Deputados e o Senado) foram convocadas por decreto de 26 de
março de 18245 e realizadas, em diversas províncias, ainda no mesmo
ano. Votantes sufragaram então os eleitores e, estes, por sua vez, votaram
nos deputados e senadores que deveriam representar suas províncias. Se
as eleições determinaram, então, quem seriam os deputados, no caso do
Senado, como determinava a Constituição, cabia ao monarca escolher,
dentre os eleitos, aqueles que seriam indicados para ocupar os assentos
na Câmara alta.

O Império contava então com 19 províncias. O número de assentos


no Senado derivava, constitucionalmente, das cadeiras a que cada provín-
cia teria direito na Câmara dos Deputados. Assim, se Minas Gerais teria
20 representantes na câmara baixa, Santa Catarina, Mato Grosso, Espí-
rito Santo, Rio Grande do Norte e Piauí contariam com apenas um cada.
Quanto aos senadores, cada província teria direito à metade do número
de deputados (sendo que, em caso de números ímpares, a quantidade de
senadores corresponderia sempre à metade do número imediatamente in-
ferior ao total de deputados da província); no caso das citadas províncias,

do desenvolveu larga carreira militar, especialmente na região do Prata. Em virtude de


sua atuação, foi nobilitado em 12 de outubro de 1825 com o baronato de São João das
Duas Barras com grandeza e elevado, no ano seguinte, a conde. Consultar, por exemplo,
AZEVEDO, Francisca Nogueira de. Dom Joaquim Xavier Curado e a política bragantina
para as províncias platinas (1800-1808). Revista Topoi. Rio de Janeiro, dezembro, 2002,
pp.161-183.
5 –1 Ver http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/Le-
gimp-G_14.pdf#page=1 – acesso em 07/03/2013.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

elas contariam então com apenas um deputado e um senador. Desta feita,


o total de representantes à Câmara baixa seria de 102, e ao Senado de 50.

Assim, não parece em nada descabida a expectativa dos coevos, dado


o texto constitucional – as “eleições serão feitas pela mesma maneira, que
as dos Deputados, mas em listas triplices, sobre as quaes o Imperador
escolherá o terço na totalidade da lista”6 –, de que fossem formadas 50
listas tríplices. Porém, além dos dispositivos constitucionais, o decreto de
26 de março de 1824, seguido de instruções que regulavam o processo
eleitoral, determinava o modo como deveriam ser feitas e apuradas as
eleições. No que se referia à Câmara alta, no parágrafo primeiro do ca-
pítulo V das ditas instruções, estabelecia-se que, no concernente às listas
tríplices previstas na Carta, “achando-se o collegio eleitoral reunido no
lugar indicado, procederá immediatamente por esta primeira vez á eleição
da Camara dos Senadores, cujos membros serão vitalícios, e feita a sua
proposta por eleição provincial”.7

Por texto do Executivo, unia-se em uma só determinação duas previ-


sões constitucionais originalmente descritas em artigos distintos, ou seja,
a elaboração das listas tornava-se doravante provincial. Em vez de se
elaborarem 50 listas tríplices (uma para cada cadeira senatorial), seriam
feitas 19 listas tríplices, uma para cada província (cada qual com o triplo
dos nomes a que tinha direito cada uma delas), a partir das quais o impe-
rador deveria escolher os 50 senadores do país.

Entre julho e novembro de 1824, várias províncias já veiculavam,


nos jornais, notícias sobre o término das eleições e as respectivas apu-
rações, sendo que alguns periódicos apresentavam inclusive as listas de
sufragados e o número de votos recebidos. Pelo que se pode levantar nos
jornais do período, este foi o caso de Minas Gerais, São Paulo, Bahia,
Rio de Janeiro e Cisplatina8. No Diário Fluminense, em julho de 1825,

6 –1 Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Rio de Janeiro: Imprensa Nacio-


nal, 1886, p.12. Doravante, Constituição do Império.
7 –1 Decreto de 26/03/1824. Coleção das Leis do Império do Brasil, parte 2. Rio de Janei-
ro: Imprensa Nacional, 1886, pp.17-28 (grifos nossos); doravante CLIB.
8 –1 As listas com as votações para o Legislativo foram publicadas nos seguintes jor-

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previa-se, então, a abertura dos trabalhos do Legislativo com “maior


brevidade”9. A uniformidade, contudo, não foi uma marca das primeiras
eleições para a Assembleia Geral do Império, uma vez que, nos meses de
julho a novembro de 1825, foram publicados na imprensa decretos im-
perais conclamando as províncias do Norte a enviarem ao Ministério do
Império as listas de eleitos10.

Fato é que, somente em janeiro de 1826, publicou-se o decreto lis-


tando os primeiros 50 senadores, nomeados pelo monarca a partir de “lis-
tas triplices que serviram de base á nomeação de cincoenta senadores por
decreto imperial de 22 de janeiro de 1826”, e que se encontram repro-
duzidas na obra Notícia dos Senadores do Império do Brazil, de 188611.
Curiosamente, contudo, pelo que se pode inferir de seis listas provinciais
de votados publicadas nos jornais, listas que continham, na maior parte
das vezes, o triplo de sufragados em relação ao número de assentos de
senadores por província, o rol de nomes reproduzido no livro de 1886
não correspondia (à exceção de Alagoas12) ao que havia sido divulgado
nos jornais.

nais: Abelha de Itaculumy, 05/07/1824 e 23/08/1824; Diário Fluminense, 03/08/1824,


17/09/1824, 23/10/1824 e 16/11/1824; O Spectador Brasileiro de 27/10/1824 e
20/12/1824; e Diário do Rio de Janeiro de 03/08/1824. Os jornais foram consultados na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
9 –1 Na edição de 22 de julho, o jornal retomava um decreto de 01 de fevereiro de 1825,
solicitando urgência na realização de eleições para a Assembleia Geral, cuja reunião o
monarca desejava que acontecesse com a “maior brevidade”, o que, contudo, não ocor-
reria ainda no ano de 1825, já que a constituição determinava que “A Sessão Imperial de
abertura será todos os annos no dia tres de Maio”. Constituição do Império, p.10.
10 – Para exemplificar, em 05/07/1825, o Diário Fluminense publicou a lista referente a
Alagoas, porém, nesse mesmo jornal, pedia urgência para que o Maranhão enviasse as
atas das eleições; e nas edições de 22/07 e 22/11, foram publicados decretos conclamando
as províncias do Norte, especificamente Pará e Pernambuco, a enviarem as atas das elei-
ções realizadas nessas províncias.
11 – Conforme explicado na obra e, posteriormente, no livro de Affonso Taunay, tal ma-
terial foi organizado a partir de documentos existentes no Arquivo do Senado. Notícia dos
Senadores do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886; TAUNAY,
Affonso de E. O Senado do Império. Brasília: Senado Federal, 1978.
12 – A província tinha direito a dois senadores e a lista foi composta por seis nomes. Diá-
rio Fluminense, 05/07/1825.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

Além da lista de Alagoas, encontramos o rol de sufragados, do mais


ao menos votado (com o número de votos de cada um dos potenciais
senadores) para Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Goiás e
Cisplatina.

No caso da Cisplatina, tanto a lista publicada no jornal O Spectador


Brasileiro como aquela existente na Notícia dos Senadores, apresenta-
vam os mesmos três nomes, diferenciando-se, contudo, no que tange ao
número de votos adscritos a cada um. O periódico apresentava Lucas José
Obes com 74 votos; Nicolas Herrera com 72 votos; e Damaso Antonio
Larrañaga com 37. Já conforme a lista final, que teria servido de base à
seleção do monarca, Herrera estaria em primeiro com 72 votos, mesmo
número de votos de Obes (no segundo lugar), e Larrañaga com os mes-
mos 37. Tal diferença, ao final, não parece ter importado muito, já que a
escolha do monarca recaiu justamente no menos votado13.

Em se tratando da lista tríplice da Bahia, publicada no Diário Flu-


minense, em 16 de novembro de 1824, a diferença, em relação ao rol de
eleitos utilizado pelo imperador, já se mostrava bem mais marcante. A
lista publicada pelo Diário continha apenas 18 nomes, o triplo do total de
senadores que deveriam representar a província, porém a lista usada pelo
monarca era composta por 22 nomes, mas nenhum dos quatro nomes a
mais foi indicado para o cargo vitalício.

A lista relativa a São Paulo, publicada no Diário Fluminense de 17


de setembro de 1824, continha apenas 11 nomes, um a menos do que o
triplo das quatro cadeiras a que a província teria direito. A lista utilizada
por d. Pedro para nomear os senadores pela província contava 17 nomes.
Neste caso, o Imperador nomeou dois candidatos da lista original e dois
dentre os nomes incluídos posteriormente, de modo que sua interferência
na elaboração da lista mostrou-se decisiva para a futura composição do
Senado.

13 – O Spectador Brasileiro, 20/12/1824; Notícia dos Senadores, pp.144-145.

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A situação, contudo, mostra-se mais complexa se considerados os


casos de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Goiás, que, inclusive, escandali-
zaram os contemporâneos. Goiás tinha direito a um único senador, o que
implicava, portanto, a formação de uma lista de três nomes, como aquela
publicada, em abril de 1825, no Diário Fluminense. Se os três mais vota-
dos apareciam, na mesma ordem, no rol de nomes utilizado pelo monarca,
tal lista também continha um quarto e um quinto colocados, sendo esco-
lhido justamente um dos nomes extras, o quarto colocado.14

Em relação ao Rio de Janeiro, dois jornais publicaram listas idênticas


(com 12 nomes),15 que diferiam, porém, da lista final usada pelo Impera-
dor. A lista que serviu de base para a nomeação continha 22 nomes, sendo
que os sufragados do 1º ao 10º lugar eram idênticos. Contudo, o 11º, d.
Francisco de Assis Mascarenhas, foi excluído da lista utilizada por Pedro
I e substituído por Estevão Ribeiro de Resende. O 12º nome foi mantido,
ainda que não mais fosse o último da lista, já que foram incluídos outros
dez nomes, que figuravam entre a 13ª e a 22ª posições, dos quais o 16º
terminou por ser nomeado para o Senado.

Em se tratando de Minas Gerais, não só a lista usada pelo Imperador


não era igual àquelas publicadas na imprensa, como também se observou
uma série de diferenças entre as listas divulgadas por distintos jornais.
A lista do Diário Fluminense, de 23 de outubro de 1824 (idêntica à do
Spectador de 27 de outubro), divulgada como sendo “o resultado da apu-
ração”, continha quatro nomes que não apareciam na Abelha do Itacu-
muly de 29 de outubro de 1824 (que, obviamente, apresentava outros no
lugar). Essa última lista continha, do 1º ao 30º lugares, os mesmos nomes

14 – Embora Armitage tenha afirmado que a lista de Goiás fora formada por cinco nomes
porque os dois primeiros foram nomeados senadores por outras províncias (o que teria
motivado sua exclusão dos mais votados, justificando-se, assim, um rol de cinco nomes),
tal estratégia não se transformou em uma regra no que tange às demais nomeações para o
Senado, já que em outras províncias, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, por
exemplo, o total de nomes nas listas ultrapassava o triplo de assentos a que cada uma tinha
direito, sendo que o total de nomes excedentes não correspondia ao número de senadores
nomeados por outras províncias.
15 – Diário Fluminense e Diário do Rio de Janeiro, 03/08/1824.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

arrolados na lista do monarca, que, contudo, em vez do triplo de cadeiras


destinadas à província, apresentava 37 nomes.

Os nomes retirados da lista do Diário Fluminense eram José Anto-


nio da Silva Maia, João José Lopes Mendes, Francisco Vilela Barbosa e
Januário da Cunha Barbosa, substituídos, na Abelha do Itaculumy, por
Manuel Inácio de Melo Souza, Lucio Soares Teixeira de Gouveia, Se-
bastião Luiz Tinoco e José Clemente Pereira. A princípio, apenas Silva
Maia deveria ser retirado da lista final, uma vez que, em 1824, contava
apenas 35 anos, sendo 40 a idade mínima para o exercício do cargo de
senador. De fato, os outros três nomes que apareciam no Diário, e não na
Abelha, retornaram à lista do imperador, mas não nas mesmas posições,
e sim em 32º, 34º e 35º lugares (ou seja, entre os sete extras incluídos no
arrolamento final).

Assim, partindo do princípio de que a exclusão do nome de Silva


Maia, por não ter a idade mínima exigida, foi exceção e não a regra, cabe
analisar, com mais vagar, as alterações feitas nas listas senatoriais a fim
de compreender quais interesses estavam possivelmente envolvidos na
(re)montagem das listas que serviram de base para a nomeação do pri-
meiro Senado do Império.

Além do caso de Goiás, em que o quarto, de uma lista que deveria


ter apenas três nomes, foi justamente o escolhido, também chamam a
atenção as nomeações por São Paulo e Rio de Janeiro. Se os paulistas
tinham direito a quatro assentos (ou seja, um rol de 12 nomes), a lista
final utilizada pelo monarca era composta de 17 pessoas, das quais foram
nomeados os colocados em 7º, 9º, 13º e 15º lugares. No caso fluminense,
igualmente escandaloso, em vez de 12 nomes (uma vez que a província
tinha direito a quatro representantes no Senado), formou-se uma lista com
22 integrantes, dos quais foram nomeados o 3º, 6º, 7º e 16º colocados.

Se, conforme os coevos, a opção por nomes que não deveriam cons-
tar das respectivas listas provinciais era especialmente digna de espanto,
tampouco se deve desconsiderar a reiterada preferência do monarca por

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

figuras com votações pouco expressivas. Mesmo que, no caso de Minas


Gerais, ele não tenha optado por indicar qualquer dos nomes colocados
entre o 31º e o 37º lugares, ainda assim não se furtou em nomear, além
do 1º e 2º mais votados, aqueles colocados em 8º, 10º, 12º, 18º, 20º, 21º,
22º e o 27º lugares. No caso dos eleitos por Pernambuco, cuja lista final
continha 19 nomes (e não 18, como seria o caso), o monarca parece ter
repetido a mesma prática utilizada com relação a Minas, indicando o 1º,
2º, 9º, 10º, 16º e 17º colocados.

Diante desses cinco exemplos, salta aos olhos não apenas a opção
por listas provinciais, como também o inchaço dessas mesmas listas e,
finalmente, a opção por figuras pouco expressivas em termos de votos.
Esse último ponto fica ainda mais evidente se atentarmos para alguns
exemplos, especialmente para políticos com votação significativa e que
não foram escolhidos pelo Imperador.

Como o número de eleitores variava de província para província,


não é possível construir uma lista, para o país todo, dos mais aos menos
votados; há que se considerar, sempre, as quantidades de votos relativas
para cada uma das 19 províncias. No caso de São Paulo, o mais votado foi
Nicolau Vergueiro, que, a despeito de encabeçar a lista, com 263 votos,
não foi escolhido. Aliás, em se tratando dessa província, merece destaque
que os seis primeiros colocados não foram nomeados para o Senado. O
sétimo colocado dentre os paulistas, este sim selecionado pelo monarca
para representar a província, recebeu apenas 151 votos, apenas 57% do
total de votos de Vergueiro. José Feliciano Fernandes Pinheiro, também
escolhido para representar a província, alcançara o 15º lugar dentre os
sufragados por São Paulo, com somente 108 votos, ou seja, 41% do pri-
meiro colocado.

Vale também olhar com mais vagar para o caso dos sufragados pelo
Rio de Janeiro. Ainda que a província tivesse direito a quatro assentos,
o que corresponderia a uma lista provincial de 12 nomes, o Imperador
escolheu os quatro senadores da província a partir de um arrolamento de
22 candidatos. Não bastasse tal discrepância, chama ainda a atenção o

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

fato de que 14 daqueles que receberam votos dos fluminenses tenham de


fato alcançado um assento na casa vitalícia (ainda que apenas quatro pelo
Rio de Janeiro).

Assim, excetuando os quatro indivíduos efetivamente nomeados


pelo Rio de Janeiro (que ocupavam o 3º, 6º, 7º e 16º lugares da lista da
província), outros três foram nomeados por Minas Gerais (em cuja lista
constavam em 8º, 10º e 27º lugares), quatro pela Bahia (sendo, neste caso,
o 2º, 7º, 8º e 12º colocados), um por Pernambuco (o 17º da respectiva
lista), um pela Paraíba (4º colocado nessa província) e um por São Paulo
(neste caso, d. José Caetano da Silva Coutinho, que, a despeito de indi-
cado em primeiro dentre os candidatos fluminenses, obteve seu assento
por São Paulo, em que ocupava o 13º lugar dentre os sufragados para o
Senado).

A existência de um nome indicado por mais de uma província não


foi, contudo, uma exclusividade do Rio de Janeiro. O próprio Vergueiro
constava tanto entre os candidatos mais votados por São Paulo, como por
Minas Gerais, ainda que não tenha sido escolhido por qualquer uma das
duas. Gervásio Pires Ferreira, Manuel Caetano de Almeida e Albuquer-
que, e José Caetano Gomes constavam respectivamente das listas de Cea-
rá, Alagoas e Pernambuco; Minas Gerais e Pernambuco; Minas Gerais e
Rio de Janeiro. Vergueiro e Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque,
ainda que sem o beneplácito do imperador, vieram a tomar parte do Le-
gislativo em 1826, mas no ramo temporário.

O caso de Goiás merece ser revisitado, até porque três dos cinco
nomes de sua lista alcançaram o posto de senadores. O primeiro coloca-
do, d. Francisco de Assis Mascarenhas, tornou-se senador por São Pau-
lo, o terceiro, José Caetano Ferreira de Aguiar, pelo Rio de Janeiro, e
o quarto colocado, Francisco Maria Gordilho Velloso de Barbuda, pela
própria província de Goiás. Assim, não foram nomeados para a casa vita-
lícia, o segundo colocado, Joaquim Curado e, o quinto, Raymundo José
da Cunha Mattos (que veio a assumir a representação por Goiás, mas na
Câmara dos Deputados).

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A partir desses exemplos, é possível entrever, por parte do monarca,


uma cuidadosa seleção das figuras que viriam a representar cada uma das
províncias no Senado, especialmente no caso dos nomes sufragados por
mais de uma província. Como mencionado, no caso da lista final flumi-
nense, do rol de 22 nomes (dentre os quais 14 alcançaram um assento na
câmara vitalícia), nove deles eram membros do Conselho de Estado. Tal
Conselho foi criado por decreto de 13 de novembro de 1823, após a disso-
lução da Assembleia Geral Legislativa e Constituinte, ao qual competia,
dentre outras atribuições, a redação da constituição do Império16. Vale
destacar que o décimo conselheiro de Estado, João Gomes da Silveira
Mendonça, também foi indicado senador, mas pela província de Minas
Gerais, na única lista em que aparecia, no caso ocupando o 12º lugar.

Ou seja, independentemente de suas colocações nas 19 listas pro-


vinciais, o monarca optou, em vários casos, por desconsiderar a vontade
dos eleitores de modo a garantir a presença de seus conselheiros na casa
vitalícia. Dentre os candidatos a senador pelo Rio de Janeiro, ganharam
assento por esta província os conselheiros Mariano José Pereira da Fonse-
ca, Francisco Vilella Barbosa e José Egídio Álvares de Almeida, que ocu-
pavam, respectivamente, a 3ª, 6ª e 7ª posições na lista. Outros três con-
selheiros foram nomeados senadores pela Bahia, caso de José Joaquim
Carneiro de Campos, Luiz José de Carvalho e Melo e Clemente Ferreira
França, que figuraram em 2ª, 7ª e 12ª posições dentre os sufragados. Os
quatro últimos, por sua vez, garantiram seus assentos pelas províncias de
Pernambuco, Paraíba e dois por Minas Gerais (respectivamente Antonio
Luiz Pereira da Cunha; João Severiano Maciel da Costa; João Gomes
Silveira de Mendonça e Manuel Jacinto Nogueira da Gama).

16 – Em 1823 foi eleita uma Assembleia Legislativa e Constituinte, que elaborou um pro-
jeto de constituição, conhecido como Projeto de 1823, porém essa assembleia foi dissol-
vida por Pedro I em 12 de novembro de 1823. No dia seguinte à dissolução, o Imperador
nomeou um conselho de Estado, formado por dez membros, que deveria redigir a nova
Constituição para o Império do Brasil, outorgada em 25 de março de 1824. Uma interpre-
tação da Constituição e uma análise de suas determinações e comparações com o Projeto
de 1823 podem ser consultadas em DANTAS, Monica Duarte. Constituição, poderes e ci-
dadania na formação do Estado-nacional brasileiro. In Instituto Prometheus (org.), Rumos
da cidadania. São Paulo: Instituto Prometheus, 2010.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

No caso da província do Rio de Janeiro, dos 22 nomes arrolados


na lista final utilizada pelo Imperador, 64% alcançaram a posição de se-
nadores. Em se tratando da Bahia, que deveria responder então por seis
assentos, 12 dos 22 que compunham a lista alcançaram a representação
junto à Câmara alta, um total de 54,54%. Frente a tais porcentagens, tor-
na-se imperativo ponderar com mais vagar acerca de posição política dos
50 senadores escolhidos por Pedro I. Como já mencionado, a estratégia
usada pelo Imperador serviu para dar assento, na casa vitalícia, aos dez
conselheiros de Estado. Evidentemente, esses dez nomeados não eram os
únicos aliados do monarca. Ainda assim, o fato de nomear seus conse-
lheiros de Estado não passou despercebido aos coevos, reiterando-se, em
impressos da época, o escândalo das escolhas do Imperador.

Antonio Luís Pereira da Cunha (um dos 10 conselheiros) figurou


em quatro listas provinciais, nas quais ocupava diferentes colocações. No
rol de sufragados pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais foi, em ambos os
casos, o 4º colocado; na Bahia, ocupou o 5º lugar; em Pernambuco foi o
17º colocado, província pela qual terminou sendo nomeado. O 17º lugar
correspondia, então, ao um total de 148 votos; número ínfimo em rela-
ção ao 1º, 2º, 3º e 4º colocados, em Pernambuco, com, respectivamente,
312, 287, 286 e 272 votos. Se os dois primeiros, José Carlos Mayrink da
Silva Ferrão e Antonio José Duarte de Araújo Gondim, foram escolhidos
para representar a província, os colocados entre a 3ª e a 8ª posições não
tiveram a mesma sorte; dentre estes destacavam-se Manoel Caetano de
Almeida e Albuquerque (3º colocado) e Gervásio Pires Ferreira (8º na
lista, com 235 votos). O conselheiro Pereira da Cunha perdia em votos
até mesmo para um dos antigos rebeldes com menor número de votos,
Felippe Nery Ferreira (15º colocado, com 154 votos)17.

Diante disso, ficam evidentes as razões que levaram d. Pedro a no-


mear o 17º colocado, e não o terceiro, já que não deveria fazer parte dos
17 – Felippe Nery Ferreira, Gervásio Pires Ferreira e Manoel Caetano de Almeida e Al-
buquerque participaram do movimento pernambucano de 1817, e Gervásio Pires ainda
fez parte da junta de governo, conhecida por seu próprio nome. Consultar COSTA, F.
A. Pereira da. Dicionário Biográfico de Pernambucanos Célebres. Recife: Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 1982, passim.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016 89


Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

planos do Imperador a nomeação de antigos rebeldes para um assento


na casa vitalícia do Legislativo. Para elucidar ainda melhor as manobras
praticadas pelo monarca na montagem do Senado, vale analisar a lista de
Minas Gerais, comparando-a com a do Rio de Janeiro e a de Pernambuco.

Da extensa lista de Minas Gerais, que contava 37 nomes, apenas o


17º, 23º, 24º, 25º, 26º, 28º, 29º, 30º, 32º, 33º, 35º e o 37º não alcançaram
uma cadeira senatorial, fosse por Minas ou qualquer uma das outras pro-
víncias do Império. Em compensação, desse total de 12 nomes preteridos
pelo monarca no que tange à Câmara alta, apenas um (caso de José Cae-
tano Gomes) deixou de tomar assento no Legislativo, uma vez que onze
dos doze mencionados alcançaram votações que lhes garantiram repre-
sentação na Câmara temporária.

O caso de São Paulo também merece consideração. Como afirma-


mos anteriormente, os seis primeiros da lista não foram feitos senadores.
Assim, o primeiro nomeado era o sétimo colocado da lista, Lucas Antônio
Monteiro de Barros; os três seguintes ocupavam o 9º, o 13º e 15º lugares
(ainda que mais bem posicionados em listas de outras províncias). Ou
seja, o monarca, em suas nomeações, não se pautou pelo número de votos
de cada candidato a senador, mas sim por preferências políticas próprias,
negligenciando a vontade do eleitorado.

A fim de melhor explicitar tal manobra, vale retomar brevemente


alguns casos ainda não devidamente mencionados. D. José Caetano da
Silva Coutinho, nomeado por São Paulo, em que figurava em 13º lugar,
também constava das listas do Rio de Janeiro e Minas Gerais, em 5º e 7º
lugares. João Severiano Maciel da Costa, por sua vez, escolhido senador
pela Paraíba (em que ocupava o 4º lugar dentre os eleitos), fora sufragado
também em outras cinco províncias, sendo que no Piauí fora o primeiro
colocado, no Pará ocupava a segunda posição, e em Minas, a terceira
(além do Rio de Janeiro e Pernambuco, em que constava, respectivamen-
te, na 5ª e 14ª posições)18.

18 – Podem ser citados também os casos de d. Francisco de Assis Mascarenhas, escolhido


por São Paulo, sendo o 9º da lista, mas foi o 1º na lista de Goiás e o 14º na lista de Minas;

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

Pelos exemplos citados, ainda que pontuais, é possível perceber que


Pedro I procurou nomear um Senado que lhe fosse majoritariamente fa-
vorável. Dos 50 nomeados, 20% haviam sido empossados conselheiros
de Estado em 13 de novembro de 1823. Como referido, em meados de
1825, Pedro I já tinha conhecimento das apurações de deputados e se-
nadores de uma série de províncias, entre elas o Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Bahia, que, somadas, correspondiam a 41 cadeiras na Câmara
baixa (40,2% do total) e 20 na alta (40%)19. Se consideradas apenas as
listas tríplices de senadores dessas três províncias, o monarca já poderia
considerar como certa a nomeação de seus conselheiros para o Senado
(uma vez que todos os dez apareciam, uma ou mais vezes, nas referidas
apurações). Se tal notícia poderia lhe parecer alvissareira, não era possí-
vel, tampouco, desconsiderar a futura composição da Câmara baixa, com
políticos que conhecidamente não lhe eram simpáticos. Nesse sentido,
não parece insignificante o fato de Pedro I, utilizando-se das prerrogati-
vas do Executivo (na ausência de uma Assembleia Geral), ter decretado,
em agosto de 1825, a elevação do ordenado anual dos conselheiros de Es-
tado, de 2:400$00020 para 3:200$000, ponderando que o valor anterior era
“insuficiente para a decorosa subsistência” de figuras de tal importância21.

José Egídio Álvares de Almeida tornou-se senador pelo Rio de Janeiro, figurando em 7º
da lista, sua pior colocação, já que foi o 2º do Rio Grande do Sul, o 3º da Bahia e o 6º de
Minas Gerais; e José Feliciano Fernandes Pinheiro, ainda que tenha sido o 1º da lista do
Rio Grande do Sul, foi nomeado por São Paulo, sendo o 15º da lista, mas constava tam-
bém como o 31º da lista mineira.
19 – Se somarmos as representações das sete províncias cujas listas já tinham sido divul-
gadas, os números tornam-se ainda mais significativos, já que elas possuíam 59 deputados
e 28 senadores, correspondendo, portanto, a 57,84% da casa temporária e a 56% da casa
vitalícia.
20 – “Hei por bem crear um Conselho de Estado [...] composto de dez membros: os meus
seis actuaes Ministros, que ja são Conselheiros de Estado natos, pela Lei de 20 de Outubro
proximo passado, o Desembargador do Paço Antonio Luiz Pereira da Cunha, e os Conse-
lheiras da Fazenda, Barão de Santo Amaro, José Joaquim Carneiro de Campos e Manoel
Jacinto Nogueira da Gama: os quaes terão de ordenado 2:400$000 annuaes, não chegando
a esta quantia os ordenados que por outros empregos tiverem”. Decreto de 13/11/1823 –
Cria um conselho de Estado e nomeia os respectivos membros. CLIB, 1823, parte 2, p.86.
21 – “Decreto de 08/08/1825 – eleva os ordenados dos Conselheiros de Estado”. Coleção
de Decretos, Cartas Imperiaes e Alvarás do Imperio do Brazil, 1825, parte 1. Rio de Ja-
neiro: Imprensa Nacional, 1885, p.77.

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

Se não bastasse o aumento do ordenado dos conselheiros de Estado,


em 12 de outubro do mesmo ano, Pedro I concedeu títulos de nobreza
tanto aos referidos conselheiros22 quanto a outros que também viriam a
compor o Senado e que ele, muito possivelmente, já sabia figurarem nas
listas tríplices provinciais23.

Enquanto José Egídio Álvares de Almeida foi feito visconde de San-


to Amaro, os outros nove conselheiros foram feitos viscondes com gran-
deza. Assim, os títulos ofertados a Manoel Jacinto Nogueira da Gama,
Luís José de Carvalho e Melo, José Joaquim Carneiro de Campos, José
Joaquim Carneiro de Campos, Antonio Luís Pereira da Cunha, Mariano
José Pereira da Fonseca, Clemente Ferreira França, João Severiano Ma-
ciel da Costa e Francisco Vilela Barbosa foram, respectivamente, de vis-
conde com grandeza de Baependi, de Cachoeira, do Fanado, de Inhambu-
pe de Cima, de Maricá, de Nazaré, de Queluz e de Paranaguá.

Como dito, além dos conselheiros, foram titulados também outros


11 futuros senadores. Quatro deles figuravam então em ao menos uma
22 – De acordo com o artigo 142 da Constituição, o Imperador era obrigado a consultar os
conselheiros de Estado sobre a nomeação dos senadores. Ou seja, os conselheiros nomea-
dos por d. Pedro I em 1823 seriam ouvidos para deliberar sobre suas próprias nomeações
para o Senado em janeiro de 1826. Contudo, uma vez que não estão disponíveis as atas
do Conselho de Estado para os anos de 1823 a 1827, não se sabe como esses conselheiros
votaram na nomeação dos primeiros 50 senadores, incluindo eles mesmos. RODRIGUES,
José Honório. Atas do Conselho de Estado, p.6.
23 – Esses títulos de nobreza não foram os primeiros ofertados por d. Pedro I, porém
foram os primeiros ofertados em número elevado e com evidentes razões políticas. Em
1822, Pedro I ofertou cinco títulos, em 1823, seis, em 1824, apenas três, e em 1825, 45,
dos quais 21 nobilitaram aqueles que seriam senadores em 1826, incluindo também os
dez conselheiros de Estado. Nessa ocasião, a maior parte dessas pessoas não ingressou na
nobreza imperial, recebendo o mais baixo dos títulos de nobreza, o de barão. Em ordem
crescente de hierarquia, os títulos de nobreza eram barão, barão com honras de grande-
za, visconde, visconde com honras de grandeza, conde, marquês e duque. As honras de
grandeza davam ao agraciado o direito de frequentar a Corte, passando a ser um grande
do Império, prerrogativa inerente aos condes, marqueses e duques. Assim, cinco pessoas
receberam títulos de barão, duas de barão com honras de grandeza, uma de visconde, doze
de visconde com grandeza e uma de marquês, caso do conde de São João da Palma. Para
uma análise mais detalhada, ver OLIVEIRA, Marina Garcia de. Entre nobres lusitanos e
titulados brasileiros: práticas, políticas e significados dos títulos nobiliárquicos entre o
Período Joanino e o alvorecer do Segundo Reinado. Dissertação de Mestrado. São Paulo:
FFLCH – USP, 2013, especialmente o capítulo 2.

92 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

lista, este era o caso de Domingos Borges de Barros, agraciado com o


título de barão da Pedra Branca, que constava na lista da Bahia (província
pela qual seria nomeado); José Teixeira da Fonseca e Vasconcelos, feito
barão de Caeté, e que integrava a lista de Minas Gerais (pela qual viria a
ser escolhido para a Câmara alta); Caetano Pinto de Miranda Montene-
gro, titulado visconde de Vila Real da Praia Grande com grandeza, que já
constava na lista de Minas Gerais, mas viria a obter sua cadeira senatorial
pelo Mato Grosso; e João Carlos Augusto de Oyenhausen, visconde de
Aracati com grandeza, que, à época, compunha a lista de São Paulo, ain-
da que futuramente viesse a ser nomeado pelo Ceará (e arrolado também
dentre os eleitos pelo Mato Grosso). Três apareciam em pelo menos duas
listas: Lucas Antônio Monteiro de Barros, doravante barão de Congonhas
do Campo, que havia sido eleito tanto por São Paulo, província pela qual
seria nomeado, como Minas Gerais24; Estêvão Ribeiro de Resende, barão
de Valença com grandeza, que figurava nas listas de São Paulo e de Minas
Gerais (vindo a representar esta última no Senado); e Felisberto Caldeira
Brant Pontes, visconde de Barbacena com grandeza, nomeado por Ala-
goas, e que constava também na lista da Bahia. Finalmente, outros dois
já apareciam em, no mínimo, três listas: José da Silva Lisboa, barão de
Cairu, constava nas listas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia (sendo
esta última a que viria representar); enquanto d. Francisco de Assis Mas-
carenhas, marquês de São João da Palma, já aparecia dentre os eleitos por
São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás, e viria a representar os
paulistas no Senado.

Ou seja, em 12 de outubro de 1825, ao titular essas nove figuras,


o monarca já sabia poder contar com seu apoio quando da abertura do
Legislativo. Os dois únicos nobilitados que, à época, pelo que se pode
depreender das notícias divulgadas pela imprensa coeva, não apareciam
nas listas existentes, eram João Inácio da Cunha, feito barão de Alcân-
tara, e Francisco Maria Gordilho Veloso de Barbuda, feito barão de Pati
de Alferes com grandeza. No caso de Inácio da Cunha, sua nomeação

24 – Seu nome também viria a compor a lista de Pernambuco, que, àquela altura, ainda
não era conhecida.

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

para o Senado não causou maior estranheza, uma vez que foi eleito em
segundo lugar na lista do Maranhão. O mesmo, contudo, não se pode
dizer de Veloso de Barbuda. O barão de Pati do Alferes seria incluído,
posteriormente, pelo Imperador, em 4º lugar na lista de Goiás, cujos três
nomes, quando das nobilitações, já eram conhecidos desde abril daquele
ano. Dada tal manobra, por parte de Pedro I, pode-se aventar a hipótese
de que ele pretendesse, a qualquer custo, se necessário, garantir a inclusão
de seus recém-titulados no Senado do Império.

Vale ainda ressaltar que todos esses nobres, como era o caso dos con-
selheiros de Estado, já haviam, quando de sua titulação, ocupado algum
cargo ou posição no governo ou no Paço. Dentre os nobilitados, além de
dez conselheiros, havia também dois antigos ministros25, dois presidentes
de província26, um regedor da Casa de Suplicação27, dois desembargado-
res do Paço28, um membro do Tesouro Público, dois gentis-homens do
Paço29; e um ministro em Paris30.

Se, em outubro de 1825, Pedro I já tinha notícia das listas “tríplices”


senatoriais de boa parte das províncias, é evidente que também conhecia
os eleitos para a Câmara dos Deputados; mas, neste caso, não lhe cabia
nenhuma interferência mais direta. Já era notório que tomariam assento,
em 1826, oposicionistas de peso como Antônio Ferreira França, Antônio
Paulino Limpo de Abreu, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Francisco
de Paula Sousa e Melo, Januário da Cunha Barbosa, Joaquim Gonçalves
Ledo, Silva Maia, José Custódio Dias, José Lino Coutinho, e Nicolau

25 – Estêvão Ribeiro de Resende e Caetano Pinto de Miranda Montenegro, que era tam-
bém gentil-homem e membro aposentado do Conselho da Fazenda. Almanach do Rio de
Janeiro para o ano de 1826. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1825.
26 – José Teixeira da Fonseca e Vasconcelos e Lucas Antonio Monteiro de Barros, que
também era desembargador do paço. Idem.
27 – João Inácio da Cunha. Idem.
28 – José da Silva da Lisboa e d. Francisco de Assis Mascarenhas, que, além de ser presi-
dente do desembargo do Paço, era também mordomo-mor. Idem.
29 – Francisco Maria Gordilho Veloso de Barbuda e João Carlos Augusto de Oyenhausen,
que era também membro do conselho da Fazenda. Idem.
30 – Domingos Borges de Barros. Idem, e SISSON, S.A. Galeria dos Brasileiros Ilustres.
Brasília: Senado Federal, 1999, vol. 2, pp.407-410.

94 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

Vergueiro31. Vale lembrar, contudo, que se as escolhas de Minas Gerais,


Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo já eram conhecidas, a deputação da
revoltosa província pernambucana (com um total de treze representantes,
o mesmo que a Bahia) ainda era uma incógnita.

Em algum momento, entre o final de 1825 e os primeiros dias de


1826, as apurações e a divulgação das listas completas de deputados e
senadores das províncias restantes devem ter ocorrido, uma vez que, em
22 de janeiro daquele ano, o monarca finalmente nomeou os 50 senado-
res. Além dos 21 titulados em outubro do ano anterior, outros 29 nomes
vieram a completar a representação no Senado32. Para além das manobras
do Imperador na nomeação dos primeiros senadores do Império, a esco-
lha dos representantes à Câmara alta também terminaria por influenciar
a composição da recém-eleita deputação; dos 50 senadores nomeados,
15 deles haviam sido eleitos deputados (um deles por duas províncias), o
que implicava que um total de 16 suplentes deveria assumir um assento
na câmara temporária33, alterando a configuração do que viria a ser a pri-
meira legislatura34.

31 – Sobre o posicionamento desses indivíduos, consultar, por exemplo, NEVES, Lúcia.


Corcundas e Constitucionais. Rio de Janeiro: Revan/Faperj, 2003; LUSTOSA, Isabel. In-
sultos Impressos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; OLIVEIRA, Cecília Helena. A
Astúcia Liberal. Bragança Paulista: EDUSF/ ÍCONE, 1999; PEREIRA, Vantuil. Ao Sobe-
rano Congresso. São Paulo: Alameda, 2010; PASCOAL, Isaías. José Bento Leite Ferreira
de Melo, padre e político: o Liberalismo moderado no extremo sul de Minas Gerais. Varia
história, vol.23/37, Belo Horizonte, 2007.
32 – Vale destacar a nomeação de Sebastião Luis Tinoco da Silva (ministro da Fazenda
em 1823 e da Justiça em 1825); Pedro da Costa Barros (ministro da Marinha em 1823);
José Feliciano Fernandes Pinheiro (presidente do Rio Grande do Sul de março de 1824
a janeiro de 1826); d. Nuno Eugênio Lóssio e Seilbitz (presidente de Alagoas, cargo que
assumira em julho de 1824); d. José Caetano da Silva Coutinho (bispo do Rio de Janeiro e
capelão-mor), presidente da Mesa de Consciência e Ordens; e Manuel Ferreira da Câmara
Bittencourt e Sá, membro aposentado do Conselho da Fazenda.
33 – Retomando, brevemente, o texto das “Instruções de 26 de março de 1824”, é neces-
sário lembrar que, à época, não havia exatamente candidatura oficial, de tal modo que os
eleitores votavam nos nomes que lhes fossem caros, o que, eventualmente, abria a possi-
bilidade de que um mesmo indivíduo figurasse tanto nas listas para o Senado quanto para
a Câmara dos Deputados, e não necessariamente pela mesma província.
34 – A formação do primeiro Legislativo do Império do Brasil não mereceu estudos mais
detalhados por parte da histografia, ficando os trabalhos restritos, em geral, a descrições
de quem eram os seus membros mais proeminentes e quais suas afinidades políticas. As-

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

Das 19 províncias, seis tiveram deputados eleitos nomeados para o


Senado. Ceará, Pernambuco, São Paulo e Cisplatina tiveram, cada qual,
um deputado eleito indicado para a Câmara alta; em se tratando da Bahia,
Rio de Janeiro e Minas Gerais, a situação mostrou-se bem mais com-
plexa, já que cada uma dessas províncias teve quatro de seus deputados
nomeados senadores. Faz-se necessário esclarecer, contudo, que muitos
desses deputados foram nomeados senadores por províncias distintas
daquelas que representariam na Câmara baixa. Tal foi o impacto dessas
nomeações, e o desfalque que causaram na casa temporária, que se tor-
nou necessário publicar na imprensa ofícios do Ministério do Império
pedindo que as províncias enviassem a relação dos respectivos deputados
suplentes35.

Em se tratando do Ceará, dos oito deputados eleitos, Pedro José da


Costa Barros foi nomeado senador (por acaso, pela mesma província),
sendo substituído na Câmara por José Gervásio de Queiroz Carreira. No
caso de Pernambuco, Antonio José Duarte de Araújo Gondim foi indica-
do para a casa vitalícia (também pela mesma província), permitindo que
Francisco José de Faria Barbosa tomasse assento na temporária. Em São
Paulo, José Feliciano Fernandes Pinheiro tornou-se senador, nomeado
pela província paulista, dando lugar a ninguém menos que Diogo Antonio
Feijó. A Cisplatina, que tinha direito a dois deputados, perdeu Damaso
Antonio Larrañaga, nomeado senador, substituído por Francisco Llambi.

sim, apesar de ter sido estudado por autores como Vantuil Pereira e Andréa Slemian,
não houve um aprofundamento no que se refere ao processo de eleição dos deputados,
tampouco da eleição e nomeação dos senadores. Descrevendo a montagem do Senado,
Vantuil Pereira afirma que “a nomeação se faria pelo Imperador (Poder Moderador) que,
mediante uma lista tríplice de eleição, escolheria o indicado para a vaga em questão, que
teria um mandado vitalício. Era da Câmara do Senado que saíam os membros do Conse-
lho de Estado, o que era uma importante distinção política e social, visto que aquele era
o órgão consultivo a ser ouvido pelo Imperador no exercício do Moderador”. PEREIRA,
Vantuil, op.cit., p.248; e SLEMIAN, Andréa. Sob o império das leis: Constituição e uni-
dade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2009.
35 – Bahia e Maranhão, por exemplo, foram cobrados, por meio de dois ofícios publi-
cados no Diário Fluminense de 28/02/1826, a enviarem as atas de suas eleições para
deputados, juntamente com os nomes dos suplentes que deveriam substituir os titulares
nomeados senadores no mês anterior.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

Caso numericamente muito mais representativo é aquele de Minas


Gerais. Quatro dos vinte deputados sufragados pela província tornaram-se
senadores também por Minas Gerais: caso de Antonio Gonçalves Gomi-
de, Estêvão Ribeiro de Rezende, Manuel Ferreira da Câmara Bittencourt
e Sá e José Teixeira Fonseca Vasconcelos; substituídos, respectivamente,
por Antonio Marques de Sampaio, Luis Augusto May, José Bento Leite
Ferreira de Mello e Custódio José Dias.

Da lista de deputados baianos, tomaram assento no Senado, Fran-


cisco Carneiro de Campos, José da Silva Lisboa e Domingos Borges de
Barros (os três pela Bahia), além de Manuel Ferreira da Câmara Bitten-
court e Sá, este escolhido para representar a província de Minas Gerais. O
senador por Minas foi substituído por José da Costa Carvalho na deputa-
ção baiana. Os outros três tiveram como suplentes, respectivamente, Luis
Paulo de Araújo Basto, Francisco Agostinho Gomes e João Ricardo
da Costa Dormund.
Ao contrário dos exemplos citados, já que a maior parte deles foi
indicada para representar, na Câmara alta, a mesma província pela qual
haviam sido eleitos deputados, há o caso do Rio de Janeiro. Dos oito de-
putados fluminenses, quatro foram nomeados senadores; nenhum deles,
porém, pela província fluminense. D. José Caetano da Silva Coutinho
tornou-se senador por São Paulo; José Joaquim Carneiro de Campos e
Luiz José de Carvalho e Melo, pela Bahia; e, finalmente, Antonio Luis
Pereira da Cunha, por Pernambuco. Em seu lugar entraram os seguintes
suplentes que, obviamente, constavam da lista de deputados suplentes
sufragados pelo Rio de Janeiro: José de Sousa Azevedo Pizarro e Araújo,
Luis Pereira da Nóbrega de Sousa Coutinho, Francisco Correia Vidigal e
Januário da Cunha Barbosa36.

36 – Januário da Cunha Barbosa foi eleito por Minas Gerais, mas também alcançou votos
como suplente na lista do Rio de Janeiro. Com a nomeação do então deputado fluminense
Antonio Luis Pereira da Cunha para a casa vitalícia, Januário assumiu a cadeira de depu-
tado pelo Rio de Janeiro, província de onde era natural e possuía residência, segundo seus
colegas de plenário. Na deputação mineira, Januário da Cunha Barbosa foi substituído por
João Joaquim da Silva Guimarães. APB-CD, segunda sessão preparatória, 30/04/1826.

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

Se, em razão das indicações para o Senado, foi possível a figuras


como Feijó, May, José Bento Leite Ferreira de Mello e Custódio José
Dias alcançarem um assento no Legislativo, os outros doze suplentes não
tiveram uma atuação destacada na Câmara. Boa parte deles manteve-se
praticamente silenciosa ao longo da primeira legislatura, outros tantos
pouco ou nada compareceram aos trabalhos, e alguns, como monsenhor
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, só se manifestaram em assuntos
diretamente de seu interesse; no caso do monsenhor, questões eclesiásti-
cas.

Dado o número de suplentes, e a problemática derivada da indica-


ção de deputados titulares para vagas no Senado por outras províncias, o
reconhecimento dos diplomas dos representantes à Câmara baixa não se
resolveu durante as sessões preparatórias37. Tal problema, contudo, não se
restringia à necessidade de diplomar os suplentes que deveriam preencher
as vagas dos senadores. Em 29 de abril de 1826, na primeira sessão pre-
paratória, foram remetidos à Comissão de Poderes38 45 diplomas, ou seja,
44% do número total de 102 deputados que deveria compor a Câmara
baixa. Na sétima e última sessão preparatória, em 05 de maio, haviam to-
mado assento apenas 55 deputados, ou 54% do total39. Porcentagem que,
ao final do ano legislativo, subira para 83% (na verdade, apenas ao final
das sessões de 1827 a câmara chegaria próxima à sua totalidade).

37 – Para exemplificar, Manuel Antonio Galvão, eleito pela Bahia, teve seu diploma
aprovado, apenas, em 19/08/1826, e Joaquim Marcelino de Brito, deputado cearense, em
26/04/1827. Contudo, ainda que pontuais, esses casos não representam a totalidade dos
deputados que demoraram a tomar assento. Caso dos mais sintomáticos é o da Paraíba, já
que, dos cinco deputados, um teve o diploma aprovado em agosto de 1826, três em 1827,
e o último não há indicativo de que tenha tomado assento.
38 – A Comissão de Poderes era formada por cinco membros eleitos, a saber, Nicolau
Vergueiro, Teixeira de Gouveia, Manoel Caetano de Almeida e Albuquerque, Januário da
Cunha Barbosa e Bernardo Pereira de Vasconcelos. Para verificar os diplomas dos cinco
membros dessa comissão, foi eleita outra comissão, com apenas três nomes, José da Cruz
Ferreira, Luis Paulo de Araújo Basto e João Gomes de Campos. APB-CD, primeira sessão
preparatória, 29/04/1826.
39 – Vale destacar que, em 05/05/1826, estavam presentes 54 deputados, tendo faltado,
apenas, Lino Coutinho. APB-CD, 05/05/1826.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

No caso do Senado, 30 dos nomeados já estavam presentes na pri-


meira sessão preparatória, em 29 de abril, ou seja, 60% do total de 50 re-
presentantes. No decorrer do ano, outros 13 tomaram assento, alcançando
um total de 86% dos senadores40.

Na abertura da Assembleia Legislativa, ocorrida em 6 de maio de


1826, 55 deputados e 33 senadores haviam tomado assento, respectiva-
mente 54% e 66% de cada casa. A despeito de um quórum relativamente
baixo, foram justamente os deputados e senadores que se apresentaram
logo nas sessões preparatórias que deram o tom de como a maioria dos
membros de cada uma das casas viria a se comportar ao longo da legis-
latura.

Dado o andamento dos trabalhos legislativos de 1826, o cuidado de


Pedro I ao nomear os senadores não se mostrou despropositado. Mesmo
que o número de deputados presentes estivesse longe de representar a
totalidade dos representantes eleitos, eles foram ágeis e, no que tange
à Câmara baixa, eficazes em propor projetos de lei que, se aprovados,
alterariam substantivamente o balanço do poder no País. Assim sendo,
somente um Senado fiel e coeso em torno do monarca seria capaz de
conter tais arroubos41.

Dentre os vários projetos apresentados em 182642, que ameaçavam


ou buscavam impor novos limites ao poder do monarca, podemos desta-
car, já em 09 de maio, a proposição de formação de uma comissão para
elaborar uma lei de responsabilidade dos ministros (cujo projeto foi apre-
sentado em 30 do mesmo mês). Em 11 de maio, Clemente Pereira apre-
sentou um projeto sobre a publicação das leis e seus efeitos; seis dias

40 – Apesar de Luis Correia Teixeira de Bragança, nomeado senador pelo Rio Grande do
Sul, ter falecido em 26 de janeiro de 1826, dias depois de sua nomeação, novas eleições
foram realizadas nessa província, de tal modo que, em 24 de julho, Antonio Vieira de
Soledade foi nomeado e seu diploma foi aprovado no dia 30 desse mesmo mês, assim,
Soledade já está incluído entre os 43 senadores que exerceram suas atividades no ano de
1826.
41 – Para uma análise do funcionamento do Legislativo no Primeiro Reinado, consultar
PEREIRA, Vantuil. Op.cit.
42 – Os projetos citados foram extraídos dos APB-CD de 1826.

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

depois foi realizada a segunda leitura do projeto sobre a naturalização dos


estrangeiros (apresentado no dia 12 pelo deputado Silva Maia); no dia 19,
Vasconcelos propôs a abolição do Juízo dos Ausentes; no dia 22, foi feita
a segunda leitura do projeto de lei para Regimento dos presidentes de pro-
víncia (apresentado por Cunha Mattos no dia 17); no dia 29, Vasconcelos
leu um projeto sobre a responsabilidade dos empregados públicos; e, no
dia 31, Couto Ferraz apresentou um projeto de revogação do decreto de
17 de novembro de 1824 sobre os meios de reconciliação.

No mês seguinte, a tônica dos projetos manter-se-ia semelhante. Em


03 de junho, Clemente Pereira apresentou as bases de um projeto de Có-
digo Criminal; em 10 de junho, Odorico Mendes apresentou um projeto
de abolição dos morgados e bens vinculados e Gonçalves Ledo propôs
um projeto de lei contra crimes por abuso da liberdade de imprensa. Em
julho, no dia 27, teve início a discussão sobre o projeto de abolição de
privilégios de foro pessoal. Menos de um mês depois, em 22 de agosto, os
deputados debateram a proposição de um Regimento para a Intendência
de Polícia e a fiscalização de suas rendas; finalmente, no dia 28, entrava
em discussão a dotação do Imperador.

A Câmara não era, contudo, a única casa a apresentar projetos. No


dia 30 de junho, os deputados discutiram um projeto de lei enviado pelo
Senado sobre a naturalização dos estrangeiros (tema que, como dito, tam-
bém havia sido objeto de proposta de regulamentação por parte de Silva
Maia), debate que tomaria conta de parte dos trabalhos do mês seguinte.
Assim, em 12 de julho, o projeto original do Senado, acompanhado de
diversas emendas feitas pelos deputados, foi devolvido à casa vitalícia43.

Também a proposta senatorial de um Regimento dos Conselhos Pro-


vinciais foi objeto de discussões e de uma série de emendas por parte da
deputação. Recebido na Câmara baixa em 11 de julho, foi devolvido ao
Senado, devidamente emendado, pouco depois, já no dia 17 do mesmo

43 – Sobre o debate a respeito da naturalização dos estrangeiros, ver POZO, Gilmar. Imi-
grantes Irlandeses no Rio de Janeiro: Cotidiano e Revolta no Primeiro Reinado. Disser-
tação de mestrado. São Paulo: FFLCH , 2010.

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

mês44. Em ambos os casos, os senadores recusaram as emendas dos depu-


tados, o que fez com que a Câmara passasse a pressionar a casa vitalícia
a fim de se realizar uma votação conjunta dos projetos e suas emendas.
Porém, em 03 de agosto, os deputados já mencionavam a negativa dos
senadores em assentir com tal proposta. Há que se lembrar que na Assem-
bleia Legislativa, ou seja, quando da reunião das duas casas, o voto era
uninominal, sendo que a Câmara tinha direito a 102 assentos e o Senado
50; ainda que, como visto, tenha demorado muito para que fossem diplo-
mados e tomassem assento todos os representantes eleitos, vitalícios e,
especialmente, temporários. Se, em 03 de agosto, 42 senadores já haviam
tido seus diplomas aprovados, na Câmara baixa, esse número chegava
a 72 deputados, de modo que, mesmo com tal defasagem, os deputados
ainda teriam ampla maioria de votos em uma eventual Assembleia con-
junta45.

Importante mencionar que a possibilidade de reunião conjunta do


Legislativo era matéria constitucional. Conforme o artigo 61 da Carta,
se “a Camara dos Deputados não approvar as emendas, ou addições do
Senado, ou vice-versa, e todavia a Camara recusante julgar, que o pro-
jecto é vantajoso, poderá requerer por uma Deputação de tres Membros a
reunião das duas Camaras, que se fará na Camara do Senado, e conforme
o resultado da discussão se seguirá, o que fôr deliberado”. Contudo, o
texto não determinava prazos para que isso ocorresse, o que possibilitou
a negativa dos senadores em marcar qualquer futura reunião46.

44 – O ofício elaborado pelos deputados continha o seguinte teor: “A Camara dos Depu-
tados envia ao Senado o seu Projecto de Regimento dos Conselhos Geraes de Provincia
com as Emendas juntas, e pensa que com ellas tem lugar pedir-se ao Imperador a Sancção
Imperial”. APB-CD, 17/08/1826, p.873.
45 – “A Commissão de Regimento Interno por ocasião de ponderar sobre o obstáculo
que se offerece ao Senado para a reunião das duas Camaras, que alias já se faz precisa,
dada a discordância a respeito das Emendas, que nesta se fizerao aos Projetos de Lei da
Natualisação dos Estrangeiros e do Regimento dos Conselhos Provinciaes, reconheceo
a necessidade urgente de prompta providencia para conseguir-se a ultimação dos ditos
projectos [...]”. APB-CD, 03/08/1826, p.1.115.
46 – SLEMIAN, Andréa. Op.cit., especialmente o subcapítulo “Os Governos das Provín-
cias”.

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

Finalmente, dois projetos de lei elaborados pelos deputados em 1826


não tiveram o assentimento dos senadores. A saber, um que fixava as for-
ças de terra e mar para o ano de 1827 e outro que explicava “a ordenação
do liv. 4º tit. 68” e determinava “que nas vendas dos prazos só competia
ao senhor directo o laudemio sobre o valor dos prazos e não sobre os das
bemfeitorias, excepto se houvesse clausula expressa nos contractos de
aforamento”47.

Contudo, o ano de 1826 não foi marcado apenas pelas tensões entre
as duas casas, mas também entre os deputados e os ministros indicados
por Pedro I. Foram constantes os pedidos de explicação acerca dos gastos
com a Guerra da Cisplatina, o envolvimento do monarca com a sucessão
portuguesa, e o tratado de reconhecimento da independência do Brasil
com Portugal, assinado em 182548. Tensão que só viria a piorar, ao final
do ano, quando se tornasse pública a assinatura do tratado de abolição do
tráfico de escravos com a Inglaterra, datada de 23 de novembro de 1826,
ou seja, pouco mais de dois meses depois de encerrados os trabalhos le-
gislativos.49

47 – Índice cronológico das leis e decretos, formulados pela Assembleia Geral Legislati-
va do Império do Brasil na sua primeira legislatura de 1826 a 1829, p. 20.
48 – Sobre essas questões, ver POZO, Gilmar. op.cit., PEREIRA, Vantuil. op.cit., e RI-
BEIRO, Gladys Sabina e PEREIRA, Vantuil. O Primeiro Reinado em revisão. In GRIN-
BERG, Keila e SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, vol. I (1808-1831). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
49 – Segundo Gladys Ribeiro e Vantuil Pereira, tal tratado foi recebido de maneira nega-
tiva pelos contemporâneos, inclusive pelo Legislativo, por perceberem que essa medida
era uma ameaça à economia do país, podendo provocar a “paralisia do desenvolvimento
econômico”. Já na interpretação de Tâmis Parron, a assinatura desse tratado, sem anuên-
cia do Legislativo, se configurou em mais um ponto de embate entre o Imperador e os
deputados. De acordo com o historiador, em outubro de 1826, “[...] Robert Gordon de-
sembarcou no RJ e acertou uma nova convenção com o marquês de Inhambupe, senador,
conselheiro de Estado, um dos redatores da Constituição de 1824, e então ministro dos
Estrangeiros. Esse ajuste, ao contrário do anterior, estipulou pontos não previstos pelos
deputados: no lugar dos prazos de 15, 6 ou 4 anos, fixou-se a abolição em um triênio.[...]
Quando o acordo, já vigente, foi submetido à apreciação formal dos deputados, suscitou
não apenas o problema da escravidão, mas também da soberania nacional e suas com-
petências. Depois dele, parecia inalcançável uma trégua entre a Câmara e d. Pedro I”.
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Ja-
neiro: Civilização Brasileira, 2011, p.64. RIBEIRO e PEREIRA, op.cit., pp. 159-160. O
tratado de 1826 está em BONAVIDES, Paulo e AMARAL, Roberto. Textos políticos da

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A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

Era evidente, portanto, a força da Câmara no questionamento tanto


dos projetos e do posicionamento dos representantes vitalícios quanto das
políticas levadas a cabo pelo Executivo nacional. Neste quadro, o apoio e
fidelidade dos senadores tornava-se ainda mais central para a viabilização
das pretensões do monarca; e d. Pedro não estava alheio ao fato.

Em 12 de outubro de 1826, o monarca nobilitou 20 senadores, dos


quais 19 já haviam sido agraciados no ano anterior. Dos dez conselheiros
de Estado, à exceção de Luís José de Carvalho e Melo, visconde da Ca-
choeira com grandeza em 1825 e falecido em junho de 1826, os outros
nove foram elevados diretamente a marqueses. Além deles, outros quatro
senadores receberam títulos de marquês, um de conde, dois de visconde
com grandeza e quatro de visconde50. A expressiva quantidade de títulos
de marquês, 13 ao total, ofertados aos senadores é ainda mais significati-
va se destacarmos que, nos anos anteriores, o Imperador havia concedido
apenas dois marquesados, um em 1823 e outro em 182551.

Se não bastasse ofertar elevados títulos de nobreza aos senadores,


onze marqueses tiveram o privilégio de receber uma mercê pecuniária
junto a seu título, no caso, o assentamento pago pelo Conselho da Fa-
zenda52. Se, até o ano anterior, era facultado ao Executivo aumentar o
História do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1996, vol. 1, p.559.
50 – Os senadores não foram os únicos nobilitados nos anos de 1825 e de 1826. Em 1825,
d. Pedro I concedeu 45 títulos, dos quais 15 eram de barão, 8 de barão com grandeza, 1
de visconde, 19 de visconde com grandeza, 1 de marquês e 1 vida no título (direito do
agraciado transmitir o título para o seu herdeiro). Já em 1826, foram ofertados 61 títulos,
dos quais 7 eram de barão, 1 de barão com grandeza, 7 de visconde, 9 de visconde com
grandeza, 8 de conde, 25 de marquês, 1 de duque, 2 honras de grandeza para barão e 1
vida. OLIVEIRA, Marina. op.cit.
51 – Respectivamente, Thomas Cochrane, marquês do Maranhão, e d. Francisco de Assis
Mascarenhas, marquês de São João da Palma. Ambos receberam também o assentamento
pago pelo Conselho da Fazenda, a mesma mercê pecuniária oferecida a uma parcela dos
marqueses de 1826.
52 – Os onze senadores agraciados com um título de marquês e com o assentamento pago
pelo Conselho da Fazenda eram Antonio Luis Pereira da Cunha, Caetano Pinto de Miran-
da Montenegro, Clemente Ferreira França, Felisberto Caldeira Brant Pontes, Francisco
Maria Gordilho Veloso de Barbuda, João Carlos Augusto de Oyenhausen, João Severiano
Maciel da Costa, José Egídio Álvares de Almeida, José Joaquim Carneiro de Campos,
Manuel Jacinto Nogueira da Gama, e Mariano José Pereira da Fonseca, respectivamente
os marqueses de Inhambupe de Cima, Vila Real da Praia Grande, de Nazaré, de Barbace-

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

ordenado dos conselheiros de Estado, agora, com o Legislativo em fun-


cionamento, tal medida deveria ser aprovada nas duas casas, cujos repre-
sentantes, por sua vez, não tinham poder sobre a concessão de títulos de
nobreza, tampouco sobre mercês pecuniárias já aprovadas por lei, ambas
prerrogativas do Executivo53. Assim, mais uma vez, o monarca mostrava
suas habilidades em interpretar a letra da Constituição a seu favor.

Se a nomeação dos senadores, em janeiro, já havia horrorizado seus


contemporâneos, a nobilitação desses senadores tampouco passou des-
percebida. Sobre isso, João Manuel Pereira da Silva comentou
D. Pedro I só um concedera até então, o [título] de Marquez do Mara-
nhão a Lord Cockrane, mas com o fundamento provado de relevantis-
simos serviços á causa da independência e da integridade do imperio:
Para que afrontar a opinião publica elevando no dia anniversario do
seu nascimento, cerca de quarenta cidadãos á titulares, marquezes,
viscondes e barões, quando se não podia em muitos dos agraciados
descobrir motivos para merecerem demonstrações tão significativas
de apreço? Para que assim diminuir o valor de um premio, que deve
exclusivamente pertencer á quem for digno delle, quando se não pode
francamente publicar os fundamentos? Irritou-se tanto mais a opinião
liberal, quanto observou na lista do agraciados, de mistura com varões
distinctos por serviços politicos e administrativos, e por posição so-
cial, criados do paço obscuros, cortezãos desconceituados, alguns dos

na, de Jacarepaguá, de Aracati, de Queluz, de Santo Amaro, de Caravelas, de Baependi, e


de Maricá. Outros dois senadores que se tornaram marqueses, mas não receberam a mercê
pecuniária, eram Francisco Vilela Barbosa e João Gomes da Silveira Mendonça, marque-
ses de Paranaguá e de Sabará.
53 – Tanto a caracterização da nobreza imperial quanto a concessão de rendimentos fi-
nanceiros eram matérias constitucionais. Assim, era atribuição do Poder Executivo “Con-
ceder Títulos, Honras, Ordens Militares e Distinções em recompensa de serviços feitos
ao Estado; dependendo as mercês pecuniárias da aprovação da Assembléia, quando não
estiverem já designadas, e taxadas por Lei”, ou seja, a oferta de rendimentos financei-
ros não era atribuição exclusiva do Executivo, dependendo, portanto, de aprovação do
Legislativo. Porém, a lei de 20 de outubro de 1823 garantia em vigor as leis aprovadas
anteriormente, o que assegurava a legitimidade da prática do monarca. Constituição do
Império, p.22. Consultar a lei de 20/10/1823 em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/
lei_sn/anterioresa1824/lei-40951-20-outubro-1823-574564-publicacaooriginal-97677-
-pe.html - acesso em 12/01/2016

104 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

homens que só se haviam tornado notáveis pelas idéas absolutistas


que professavam [...]54.

Contudo, o encerramento das atividades legislativas em setembro de


1826 e as nobilitações de outubro desse mesmo ano não representaram o
fim dos embates políticos internos ao Legislativo, e entre a câmara tem-
porária e o Executivo.

Se, em 1826, os projetos elaborados e discutidos na Câmara baixa


não eram caros ao Imperador, a situação não se alterou no ano seguinte;
os deputados continuaram apresentando projetos contrários aos interesses
do governo, encontrando, como dantes, no Senado uma barreira eficaz à
sua aprovação. Assim, em 1827, os deputados aprovaram o projeto de
extinção do Conselho da Fazenda, que, apesar de ter sido enviado aos
senadores no mesmo ano de 1827, foi, evidentemente, por eles rejeitado.
Para se entender a rejeição do projeto, é importante ter em mente que era
justamente o Conselho da Fazenda o órgão que pagava o assentamen-
to concedido aos senadores marqueses, de modo que, se o Conselho da
Fazenda fosse extinto, automaticamente eles perderiam essa mercê. Em
defesa de sua posição, os senadores alegavam que a extinção desse órgão
só deveria ser proposta e discutida em conjunto com a reorganização do
tesouro nacional55.

Outro projeto de lei proposto pelos deputados e bastante alterado


pelos senadores era o que previa a criação dos juízes de paz e determinava
suas atribuições. Em 09 de julho de 1827, os deputados aprovaram o pro-
jeto referente aos juizados de paz, enviado então à casa vitalícia, onde foi

54 – SILVA, Pereira da. op.cit., pp. 37-38. Evidente que, em termos de quantidade de
títulos de nobreza ofertados, os anos de 1825 e 1826 marcaram um ponto de inflexão
na política nobilitadora de Pedro I. Se, em 1822, o primeiro imperador concedeu apenas
cinco títulos, em 1823, seis títulos, e em 1824, três, esses números aumentaram significa-
tivamente em 1825, quando foram ofertados 45 títulos e em 1826, 61 títulos. Contudo, tais
números não se mantiveram elevados nos anos subsequentes, reduzindo a 1 único título
ofertado em 1827, a 10 em 1828, 11 em 1829 e 8 em 1830, totalizando 150 nobilitações
em 9 anos de reinado.
55 – Anais do Senado do Império do Brasil, 1827. Sobre a discussão desse projeto, ver
OLIVEIRA, Marina. op.cit.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016 105


Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

lido na sessão de 12 de julho. Os senadores debateram o projeto e fizeram


diversas emendas ao texto original, encaminhadas à Câmara em 22 de
agosto. Ainda que diversos deputados tenham reprovado veementemente
as emendas, pois consideravam que deturpavam por demais o conteúdo
original do projeto56, a maioria achou melhor ter alguma lei a respeito,
do que lei nenhuma (pois, caso rejeitassem as emendas dos senadores, já
antecipavam que muito demoraria até se realizar uma eventual votação
conjunta). Assim, em 28 de agosto, resolveram pela aprovação do texto
do Senado, ainda que ficasse óbvia a intenção de se apresentar, assim que
possível, alterações à lei a ser sancionada ou mesmo um novo projeto de
lei sobre os juizados de paz; o que, de fato, fez o deputado Paula Souza
em 182857.

Ainda em 1827, os deputados também discutiram as propostas de


extinção do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens,
debatidas no Senado no ano seguinte, e finalmente transformadas em lei
em 22 de setembro de 182858. Para exemplificar a atuação dos senadores
em relação aos projetos saídos da Câmara dos Deputados, vale mencio-
nar o discurso do deputado Lino Coutinho, em 02 de novembro de 1827,
56 – Em seu discurso, o deputado Odorico Mendes manifestou opinião compartilhada
pela maioria dos representantes que se pronunciaram na ocasião: “As emendas são taes
que se não podem admitir [...]; porque este projecto não pode passar com as emendas e o
que se segue, é que perdemos tempo, e este tempo julgava melhor empregal-o em outro
objeto. As emendas não prestão, como se mostrou, não há capitulação a fazer; é rejeital-as,
não há remédio. (Apoiados)”. APB-CD, 28/08/1827, p.256.
57 – Na sessão de 11/06/1828, consta a seguinte anotação nos Anais da Câmara: “O Sr.
Paula e Souza pedindo a palavra com urgência, offereceo um projecto de reforma dos
juízes de paz – Às commissões de justiça civil e de justiça criminal”. Pouco tempo de-
pois, em 4 de agosto do mesmo ano, Paula Souza, em meio à discussão do projeto de lei
proposto pelo governo de regulamentação das eleições dos Juízes de Paz, protestava, “À
vista da ordem, que tem tomado a discussão, achava que era melhor destacar esta idea da
lei, e que ficasse para o projecto, em que estamos trabalhando, sobre o augmeto das attri-
buições dos juizes de paz”. DANTAS, Monica Duarte. Dos Estados Unidos para o Brasil:
Edward Livingston e o primeiro movimento codificador no Império. Projeto Produtivi-
dade CNPq. São Paulo: agosto de 2015. APB-CD, 28/08/1827, p.256-259; 11/06/1828,
p.96; 04/08/1828, p.22. “Lei de 15/10/1827. Crêa em cada uma das freguezias e capellas
curadas um Juiz de Paz e supplente”, CLIB, 1827, Rio de Janeiro, Typographia Nacional,
1878, pp. 67-70..
58 – Consultar http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38218-22-se-
tembro-1828-566210-publicacaooriginal-89826-pl.html – acesso em 15/04/2013.

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Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

em que denunciava a prática dos representantes vitalícios de protelar as


discussões, não só de projetos e emendas oriundos da Câmara baixa, mas
inclusive de textos por eles mesmos propostos.

Tenho a fazer um requerimento. É preciso officiar ao senado sobre a


lei dos conselhos geraes, digo, sobre o regimento dos conselhos geraes
de provincia, que se acha adiado no senado desde o anno passado. Não
sei com que autoridade adia o senado uma lei destas, atando-nos por
esta maneira as mãos para não podermos propor uma outra emquanto
não for decidida naquella sua camara!!! Por isso é preciso uma de-
cisão sua, se approva ou não o projecto do regimento dos conselhos
geraes porque se o reprova, proporemos então outro projecto no anno
que vem. A camara do senado tem arrogado a si a attribuição de
adiar indefinidamente os projectos desta camara, attribuição que a
constituição lhe não dá, e que liga as mãos a esta camara como já
disse para propormos a mesma matéria debaixo de outra forma. Por
isso apelo a V.Ex. e a esta camara que se officie ao senado, pedindo-
-lhe que diga se approva ou não o projecto59.

Nesta ocasião, Lino Coutinho fazia referência ao, já mencionado,


projeto sobre os Conselhos Gerais de Província, cujo debate havia se ini-
ciado em 1826, mas que só seria sancionado pelo Imperador em 27 de
agosto de 1828, e tal qual elaborado inicialmente pelos senadores. Segun-
do Andréa Slemian, os deputados terminaram por retirar suas emendas
por considerarem a urgência da aprovação da lei60.

Outra estratégia dos senadores era, segundo Vantuil Pereira, a recusa


persistente na votação conjunta das duas casas, situação que só seria con-
tornada com a agudização dos conflitos em relação às políticas do monar-
ca e à entrada de novos membros na Câmara alta. Além dos 50 senadores
nomeados em janeiro de 1826, d. Pedro, ao longo de seu reinado, nomeou

59 – A redação do requerimento proposto e aprovado era a seguinte: “Visto que o regi-


mento commum não passou nesta camara, requeiro que se officie ao senado afim de que
decida acerca dos projectos, que elle contra a constituição tem adiado, dizendo se os ap-
prova ou rejeita”. APB-CD, 02/11/1827, p. 162. (grifos nossos).
60 – SLEMIAN, Andréa. Op.cit., especialmente o subcapítulo “Os Governos das Provín-
cias”. Consultar http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38193-27-
agosto-1828-566160-publicacaooriginal-89801-pl.html – acesso em 15/04/2013.

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Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

outros sete representantes vitalícios, sendo um ainda em 1826, três em


1827, dois em 1828, e um em 1829. Como esses novos senadores foram
nomeados em decorrência de vacância nas cadeiras senatoriais, eleições
provinciais foram convocadas com o propósito de preenchê-las. Porém,
se, em janeiro de 1826, como tratado, as listas usadas pelo monarca con-
tinham mais de três vezes a quantidade de nomes a que tinha direito cada
província, doravante, as listas foram de fato tríplices, o que reduzia e
muito o poder de escolha do Imperador.

Em julho de 1826, Antonio Vieira de Soledade foi nomeado pelo Rio


Grande do Sul, em substituição a Luis Correia Teixeira de Bragança (fa-
lecido em 26 de janeiro daquele ano). Em abril e setembro de 1827, Luís
Joaquim Duque Estrada Furtado de Mendonça e Manuel Inácio da Cunha
Menezes foram nomeados pela Bahia, substituindo, respectivamente, o
visconde da Cachoeira e o marquês de Nazaré (falecido, o primeiro, em
junho de 1826, e, o segundo, em março de 1827). Mesmo ano em que foi
escolhido, para representar o Mato Grosso na casa vitalícia, José Satur-
nino da Costa Pereira, em substituição ao marquês da Praia Grande, que
morrera meses antes, em 11 de janeiro de 1827. Em 1828, tornaram-se se-
nadores Manuel Caetano de Almeida e Albuquerque e Nicolau Vergueiro,
respectivamente, por Pernambuco e Minas Gerais, para os lugares de An-
tonio José Duarte de Araújo Gondin, e o marquês de Sabará (falecidos em
31 de janeiro de 1826 e 02 de julho de 1827). Finalmente, em 1829, o úl-
timo que teve o privilégio de ser nomeado senador pelas mãos de Pedro I
foi João Vieira de Carvalho, pelo Ceará, no lugar de Domingos da Mota
Teixeira, exonerado em 20 de setembro de 182761.

Assim, além de não poder garantir que os novos senadores fossem


caros à sua política, o monarca tampouco tentou cooptá-los por meio de
títulos de nobreza. É possível que, dada a atuação claramente oposicio-
nista de alguns deles quando de sua participação na Câmara baixa, a no-
61 – Das listas elaboradas para o preenchimento dessas sete cadeiras senatoriais, apenas
a do Mato Grosso continha cinco nomes, e não apenas três nomes. Sobre a eleição para o
senador pernambucano, ainda que Gondin tenha falecido em janeiro de 1826, as eleições
foram realizadas apenas em maio de 1827 e a nomeação tão somente em junho de 1828.
Notícia dos Senadores, op.cit. e TAUNAY, Afonso. Op.cit.

108 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

bilitação fosse uma opção não só estranha como eventualmente arriscada,


abrindo espaço para que os potenciais agraciados rejeitassem publica-
mente a distinção. Afinal, isso já ocorrera antes, e mais de uma vez62.

Dentre os sete senadores nomeados entre julho de 1826 e fevereiro


de 1829, um deles era, como mencionado, Vergueiro. Em 02 de julho de
1827, com a morte do marquês de Sabará, senador por Minas Gerais,
abriu-se uma vaga na representação dessa província, de modo que, em
abril do ano seguinte, foi eleita uma lista tríplice. Tal lista era formada por
João José Lopes Mendes Ribeiro (o mais votado), Vergueiro (em segun-
do) e, finalmente, Teixeira de Gouveia. Como a nomeação dos senadores
era atribuição do Moderador, o monarca era obrigado a ouvir o Conselho
de Estado. Em 10 de maio de 1828, o Imperador submeteu a lista tríplice
para apreciação dos conselheiros. O marquês de Queluz votou pelo pri-
meiro colocado; os marqueses de Santo Amaro, Inhambupe e Paranaguá
votaram pelo terceiro colocado; e, a favor de Vergueiro, se posicionaram
os marqueses de Caravelas, Baependi, São João da Palma e Maricá, além
do visconde de São Leopoldo63. Acatando o voto da maioria dos conse-
lheiros, Pedro I escolheu o então deputado Vergueiro. Era sabido que,
na Câmara, Vergueiro havia defendido os interesses liberais da bancada
paulista, sendo contrário, portanto, à política imperial e senatorial.

Se a lista de Minas Gerais era composta tanto por um oposicionista


quanto por um ministro (Teixeira de Gouveia), a de Pernambuco tam-
bém apresentava problemas para a consecução dos interesses do monar-
ca, o que talvez o tenha levado a protelar, por mais de dois anos (já que
Antonio José Duarte de Araújo Gondim falecera em janeiro de 1826), a
escolha do novo senador. O primeiro colocado dessa lista era Luiz Fran-
cisco de Paula Cavalcanti e Albuquerque, seguido por Manuel Caetano de
Almeida e Albuquerque e Gervásio Pires Ferreira. Nas atas do Conselho
62 – Pouco depois da independência do Brasil, em 1822, d. Pedro tentou nobilitar Fran-
cisco Gê Acaiaba de Montezuma, Joaquim Gonçalves Ledo e José Bonifácio de Andrada
e Silva, porém os três recusaram a oferta, muito embora as justificativas apresentadas
tenham sido bem distintas. Sobre isso, consultar OLIVEIRA, Marina. op. cit., especial-
mente o capítulo 2.
63 – RODRIGUES, José Honório. op.cit., p.47.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016 109


Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

de Estado, consta que Inhambupe votou no primeiro colocado, enquanto


a “pluralidade” dos conselheiros (ainda que nas atas não apareçam seus
nomes) votou pelo segundo da lista, opção confirmada pelo Imperador64.

Diante da entrada de novos senadores, especialmente dos antigos de-


putados Vergueiro e Albuquerque, Vantuil Pereira afirma que sua inclusão
na Câmara vitalícia facilitou o relacionamento entre as duas casas. Se a
entrada de dois oposicionistas já poderia alterar o jogo de forças no Se-
nado, não se deve esquecer que eles vinham a ocupar os lugares de fortes
aliados de Pedro I, o marquês de Sabará e Antonio José Duarte de Araújo
Gondin. Além deles, contudo, o Imperador também perdeu o apoio do
visconde de Cachoeira e dos marqueses de Praia Grande e Nazaré (fale-
cidos, o primeiro em 1826, e os dois últimos em 1827). Essa nova for-
mação, ainda que não tenha contribuído prontamente para que a Câmara
vitalícia aceitasse a votação conjunta das duas casas, certamente auxiliou
para uma maior celeridade das discussões dos projetos oriundos da casa
temporária65. Finalmente, mudanças mais significativas ocorreriam com a
posse da segunda legislatura e com a concordância do Senado em fazer a
primeira reunião conjunta em fins de 183066.

Diante de todas as ponderações feitas acerca do funcionamento do


Legislativo durante a primeira legislatura, é possível afirmar que a estra-
tégia inicial de d. Pedro, na “mal-aventurada escolha” do primeiro Se-
nado do país, foi bastante eficaz. Nesse sentido, coube aos senadores a
defesa dos interesses do monarca, sem que ele, por sua vez, precisasse se
expor demasiadamente no que tange aos projetos elaborados pelos depu-
tados. Assim, ao final da primeira legislatura, em 1829, o Senado rejei-
tou 15 projetos emanados da Câmara e manteve em discussão, sem votar
ou apresentar emendas, outros 26 projetos de lei e resoluções aprovados
pelos deputados; sem contar, é claro, todos os textos, enviados pelos re-
64 – Idem, p.49.
65 – PEREIRA, Vantuil. op.cit., p. 67.
66 – A reunião ocorreu em 17 de novembro de 1830, contou com a presença de 37 sena-
dores e 75 deputados, e teve como objetivo discutir as emendas feitas pelo Senado, e não
aprovadas pelos deputados, ao projeto de lei de orçamento para o ano financeiro de 1831
e 1832. APB-CD, 17/11/1830, p.650.

110 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

presentantes temporários, que foram profundamente alterados mediante


emendas dos senadores (que, como dito, se recusavam em assentir à vo-
tação conjunta). Coube, então, ao Imperador negar sanção a tão somente
doze decretos e resoluções67.

Retomando, portanto, o modo de proceder de d. Pedro desde a con-


vocação das eleições para o Legislativo, em 1824, até sua abertura, em
1826, é possível perceber um uso consciente e perspicaz de prerroga-
tivas garantidas ao Imperador, ou aos seus ministros, pela Constituição
de 1824, prerrogativas estas devidamente interpretadas, quando possível,
da maneira que mais lhe convinha. Como visto, d. Pedro nomeou os pri-
meiros senadores do país tendo por objetivo assegurar a inclusão de seus
aliados na casa vitalícia; e, embora, constitucionalmente, não pudesse
interferir na configuração da Câmara baixa, ao nomear para o Senado
vários deputados recém-eleitos, o Imperador acabou por alterar também a
composição da casa temporária.

Tal estratégia mostrou-se vital para o monarca, uma vez que os se-
nadores conseguiram conter vários dos projetos em discussão na Câmara
dos Deputados, assegurando a defesa dos interesses do Imperador. Se não
bastasse essa cuidadosa nomeação dos senadores, Pedro I também no-
bilitou um número elevado dos membros da casa vitalícia e concedeu, a
parte deles, uma mercê pecuniária como forma de ou bem remunerar, ou
garantir a fidelidade desses homens. Contudo, a saída de alguns senadores
e a consequente entrada de novos membros, já não tão caros ao monarca,
aliadas à posse da nova legislatura, impediram a manutenção da política
senatorial tal como efetivada nos primeiros anos de funcionamento do
Legislativo.

Esse cenário tornou-se ainda mais complexo após a abdicação do


Imperador, em 07 de abril de 1831, quando os deputados se puseram a
discutir com maior intensidade medidas que alteravam o funcionamento
do Estado, sem que os senadores fossem capazes de conter os avanços

67 – Índice Cronológico das leis e decretos formulados pela Assembleia Geral do Império
do Brasil na sua primeira legislatura de 1826 a 1830.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016 111


Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

liberais dos representantes temporários. Se a mudança no quadro dos


senadores, entre 1826 e 1829, já trouxera algum impacto na condução
dos debates na Câmara alta, a partir de 1832 tal situação se intensificaria
ainda mais mediante a nomeação de novos membros que vinham a subs-
tituir antigos defensores, devidamente nobilitados, da política de Pedro I.
José Martiniano de Alencar, por exemplo, nomeado em 1832 pelo Ceará,
entrou no Senado na vaga ocupada pelo marquês de Aracati, exonerado
em maio de 1831. Feijó, por sua vez, feito senador em 1833 pelo Rio de
Janeiro, tomou assento no lugar do marquês de Santo Amaro, que morrera
no ano anterior. Antonio Pedro da Costa Ferreira, senador pelo Maranhão,
em 1834, substituiu o visconde de Alcântara, recém-falecido. Com a mor-
te do visconde de Cairu (senador pela Bahia), em 1835, seria nomeado,
no ano seguinte, Cassiano Espiridão de Melo Matos. Naquele ano, An-
tonio da Cunha Vasconcelos também alçou a representação senatorial,
pela Paraíba do Norte, no lugar do marquês de Queluz, que morrera em
1833. Com o falecimento do marquês de Caravelas, senador pela Bahia,
seria a vez de Manoel Alves Branco, em 1837, tomar assento na Câmara
vitalícia. Outro dos nobilitados por Pedro I que veio a dar lugar a um novo
representante foi o marquês de Jacarepaguá, falecido em 1836, substituí-
do por José Rodrigues Jardim, nomeado em 1837 por Goiás.

Contudo, a renovação do Câmara vitalícia, na Regência, foi muito


além da substituição dos antigos viscondes e marqueses de Pedro I; outras
dez vagas se abriram mediante o falecimento de antigos senadores. Entre
1833 e 1837, tomaram assento Francisco de Paula Sousa e Melo (em
1833, por São Paulo), Manuel de Carvalho Pais de Andrade (em 1834,
pela Paraíba do Norte), José Bento Leite Ferreira de Melo (também em
1834, por Minas Gerais), José Custódio Dias (em 1835, também por Mi-
nas Gerais), Manuel dos Santos Martins Velasques (no mesmo ano, mas
pela Bahia), Manoel Inácio de Melo e Sousa (no ano seguinte, em 1836,
por Minas Gerais), e, em 1837, Teixeira de Gouveia (pelo Rio de Ja-
neiro), José Tomás Nabuco de Araújo (pelo Espírito Santos), Francisco
de Brito Guerra (pelo Rio Grande do Norte) e Pedro de Araújo Lima

112 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


A “mal-aventurada escolha”: d. Pedro I e a nomeação dos senadores em 1826.
Estratégias políticas na formação do Legislativo brasileiro.

(Pernambuco)68. Finalmente, como o Rio de Janeiro teve sua representa-


ção ampliada, em 1837 foi nomeado um novo senador, o antigo regente
Francisco de Lima e Silva69.

Assim, se, em 1827, os senadores haviam sido contrários à apro-


vação da extinção do Conselho da Fazenda, pouco depois da Abdicação
tal medida foi aprovada, já em 04 de outubro de 1831. No que tange à
Câmara baixa, se seus membros haviam aprovado, ainda que contraria-
dos, as leis de criação dos juízes de paz e dos conselhos provinciais (em
1827 e 1828), doravante, essas duas questões seriam incluídas no debate
mais amplo sobre, respectivamente, o Código de Processo Criminal e a
criação, mediante reforma constitucional, das Assembleias Provinciais.

Em 1828, o deputado Custódio Dias afirmara que, no Brasil, “nós


temos um esquadrão de marqueses [concentrados no Senado], que andão
á pista de ver quanto possa perpetuar a sua fidalguia, e levar á mais remo-
ta posteridade os relevantes serviços que têm prestado ao Brazil”70. Nos
anos subsequentes, esse “esquadrão de marqueses” teria seus efetivos
significativamente reduzidos, diminuindo, portanto, o seu poder de ação
dentro da casa vitalícia, de tal modo que os deputados, finalmente, conse-
guiriam imprimir sua marca na aprovação de diferentes projetos, como,
por exemplo, a extinção do Conselho da Fazenda, a aprovação do Código

68 – Esses dez senadores substituíram, respectivamente, d. José Caetano da Silva Couti-


nho, Estêvão José Carneiro da Cunha, Jacinto Furtado de Mendonça, Antonio Gonçalves
Gomide, Luís Joaquim Duque Estrada Furtado de Mendonça, Manuel Ferreira da Câmara
Bittencourt, José Caetano Ferreira de Aguiar, Francisco dos Santos Pinto, Afonso de Al-
buquerque Maranhão e Bento Barroso Pereira.
69 – Esses senadores não correspondem à totalidade dos nomeados pela Regência, porém,
considerando que o chamado “avanço liberal” ocorreu entre o início da Regência e a
ascensão de Pedro de Araújo Lima, inaugurando o Regresso Conservador, em 18 de se-
tembro de 1837, optamos por listar os senadores que se envolveram, de alguma maneira,
com as medidas debatidas nesse período. Sobre essas questões, consultar, entre outros,
DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial. São Paulo: Globo, 2005; MATTOS, Ilmar. O
tempo saquarema. Rio de Janeiro: Access Editora, 1999; e CARVALHO, José Murilo de.
A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
70 – APB-CD, 09/06/1828, pp.69-70.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016 113


Marina Garcia de Oliveira e Monica Duarte Dantas

de Processo Criminal, do Ato Adicional de 1834 e da lei de extinção dos


morgados e bens vinculados71.

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71 – Sobre os debates no Legislativo após a abdicação de Pedro I, consultar OLIVEIRA,
Marina. op.cit., especialmente o capítulo 3; DANTAS, Monica Duarte. Da Louisiana para
o Brasil: Edward Livingston e o primeiro movimento codificador no Império (o Código
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Texto apresentado em outubro/2015. Aprovado para publicação em


janeiro/2016.

116 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):77-116, jul./set. 2016


117

REPÚBLICA E SOBERANIA ANTES DE 1889


REPUBLIC AND SOVEREIGNTY BEFORE 1889
David F. L. Gomes1

Resumo: Abstract:
Este artigo aborda a história dos conceitos de re- This article discusses the history of the concepts
pública e de soberania no século XIX brasileiro. of republic and sovereignty in nineteenth-cen-
Em primeiro lugar, discute-se o conceito de re- tury Brazil. We first focus on the concept of re-
pública entre 1750 e 1850, tal qual apresentado public between 1750 and 1850 as presented by
pelo projeto Iberconceptos. Em seguida, foca-se the project Iberconceptos. We then examine Frei
nos escritos de Frei Caneca para analisar mais Caneca’s writings in order to analyze more spe-
especificamente o conceito de república no con- cifically the concept of republic in the context of
texto da Independência do Brasil e para rela- the Independence of Brazil so as to relate it to
cioná-lo ao conceito de soberania. Finalmente, the concept of sovereignty. Finally, we demon-
demonstra-se a articulação em geral entre os strate the general link between the concepts of
conceitos de república e de soberania da Inde- republic and sovereignty from the Independence
pendência do Brasil até o Manifesto do Partido of Brazil up to the Manifesto of the Republican
Republicano. Party.
Palavras-chave: República; Soberania; Brasil; Keywords: Republic, sovereignty, nineteenth
Século XIX. century.

I. INTRODUÇÃO
O presente texto aborda a história da república no Brasil antes de sua
proclamação oficial no fim do século XIX. O foco escolhido para tanto é
a história do conceito de república. Todavia, o principal argumento defen-
dido nas páginas seguintes é este: a história do conceito de república no
Brasil antes de 1889 não se compreende adequadamente se não ao lado
da história de um outro conceito, o conceito de soberania, de modo que
mesmo a articulação – em geral apresentada como fundamental pela his-
toriografia relativa ao tema – entre republicanismo e federalismo somente
adquire seu sentido completo à luz da história desse outro conceito.

Para sustentar esse argumento, começo retomando a história do con-


ceito de república entre 1750 e 1850, na linha do projeto Iberconceptos2.
1 –1 Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto da Universidade Federal de La-
vras. E-mail para contato: david.gomes@dir.ufla.br
2 –1 No site do projeto, é possível encontrar esta descrição: “O Projeto Ibero-americano
de História Conceitual, mais conhecido como IBERCONCEPTOS, tem como principal
objetivo estudar de maneira sistemática, a longo prazo e numa perspectiva comparada, os
mais importantes conceitos, linguagens, vocabulários, discursos e metáforas políticas que

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016 117


David F. L. Gomes

Em seguida, aprofundo a análise do contexto da Independência do Brasil,


com ênfase nos escritos de Frei Caneca. São esses textos de Frei Cane-
ca que me conduzem ao terceiro passo de minha argumentação. Em tal
passo, extrapolo os limites do próprio conceito de república para buscar
seu sentido prático em sua articulação com outros conceitos políticos fun-
damentais: mais especificamente, com o conceito de soberania. É com a
articulação entre esses dois conceitos – república e soberania – que chego
ao movimento republicanista das últimas décadas do Império brasileiro.

De um ponto de vista metodológico, valho-me em todos esses passos


das ferramentas fornecidas pelo Enfoque Collingwoodiano3 e pela Histó-
ria dos Conceitos tal qual desenvolvida por Reinhart Koselleck.

II. O CONCEITO DE REPÚBLICA ENTRE 1750-1850


Segundo Christian Lynch e Heloísa Starling, a história do conceito
de república entre 1750 e 1850 pode ser “sincronicamente dividida em
quatro grandes fases” (LYNCH; STARLING, 2009, p. 226). A primeira
delas iria da metade até o final do século XVIII, mais especificamente de
1750 a 1792:
o conceito esteve principalmente associado à tradição clássica que
remontava a Políbio e Cícero, que ao traduzir do grego o termo poli-
teía de Aristóteles como res publica, legara ao mundo latino o duplo
sentido do conceito. Mais amplo, o primeiro concebia a constituição
da comunidade voltada para o bem comum; ao passo que o segundo,
circularam no mundo ibero-americano nos últimos séculos. Nosso trabalho concentra-se
especialmente na fase de transição para a modernidade, a qual se estende das últimas dé-
cadas do século XVIII avançando bastante pelo século XIX, período que, não por acaso,
coincide com a fase crucial das revoluções liberais e de independência.” (IBERCONCEP-
TOS, 2015). Assim, o projeto debruça-se sobre a história conceitual nos seguintes países:
Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Espanha, México, Peru, Portugal e Venezuela. Os
resultados dos estudos desenvolvidos estão disponibilizados no Diccionario Político y So-
cial del Mundo Ibero-Americano, publicado em 2 tomos, em um total de 11 volumes, sob
a coordenação de Javier Fernández Sebastián (SEBASTIÁN, 2009; 2014). Em relação ao
Brasil, os primeiros resultados do projeto, contidos em seu primeiro tomo, podem ser tam-
bém consultados em FERES JÚNIOR, 2009a. Ali, antes dos verbetes, há uma introdução
sobre o Iberconceptos, com ênfase em sua base metodológica: FERES JÚNIOR, 2009b.
3 –1 Também conhecido como Contextualismo de Cambridge ou simplesmente Escola de
Cambridge. Cf. FERES JÚNIOR, JASMIM, 2006, p. 11.

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mais restrito, exprimia o de governo gerido por magistrados extraídos


da camada popular. (LYNCH; STARLING, 2009, p. 226)

Esse segundo sentido relacionava-se, em termos práticos, à autono-


mia administrativa local, que se materializava nas câmaras municipais e
que tinha como seus agentes os “homens bons da terra”, isto é, pessoas
que fossem naturais da colônia, dotadas de um grau mínimo de “civilida-
de” e possuidoras de bens. É essa acepção, cujo melhor exemplo vinha
de Veneza, na Itália mediterrânea, que estará na base do enfrentamento
entre pretensões autonomistas dos colonos e posturas restritivas da me-
trópole, atuando como motor ideológico de movimentos como a Guerra
dos Mascates, em 1710, e a Inconfidência Mineira, em 1789 (LYNCH;
STARLING, 2009, pp. 226-227).

Nesse mesmo ano de 1789, eclodia a Revolução Francesa. Seus ecos


nas Américas marcarão uma segunda fase do conceito de república, agora
entendida como sinônimo de democracia: “é apenas depois de 1792 que
se fixa no Brasil um sentido de república claramente para além daque-
le consagrado pela tradição clássica – aquele sinônimo de democracia.”
(LYNCH; STARLING, 2009, p. 229, destaque dos autores).

Associada às então chamadas “abomináveis ideias francesas”, essa


nova camada de sentido que se depositava no termo seria uma das res-
ponsáveis, no mundo colonial luso, pela resistência ímpar que o conceito
de república enfrentaria em sua fase seguinte, ou seja, no processo de
emancipação política do Brasil em face de Portugal:
O terceiro momento do conceito data de 1821, isto é, da chegada das
notícias da Revolução Constitucionalista do Porto e da proclamação
da liberdade de imprensa. (...) o significado que então prevaleceu foi
aquele que o fazia sinônimo de democracia ou de governo popular
efetivo. (LYNCH; STARLING, 2009, p. 231, destaque dos autores)

Em relação a esse terceiro momento, porém, a afirmação de Chris-


tian Lynch e de Heloísa Starling, conforme a qual teria prevalecido a con-
cepção do termo como sinônimo de democracia ou de governo popular
efetivo, requer alguns esclarecimentos.

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David F. L. Gomes

Desde a chegada, na colônia, das notícias da Revolução do Porto,


o Brasil passou a viver um período até ali inédito de efervescência po-
lítica. Em momentos como esse, a quantidade, a qualidade, a densidade
e o ritmo das mudanças expressam-se inevitavelmente no plano concei-
tual. Assim, tanto palavras velhas ganham novos sentidos como palavras
novas surgem – os neologismos. De igual modo, a rapidez das mudan-
ças ocasiona uma aceleração no tempo tal como percebido na vivência
cotidiana, dando origem a palavras também elas temporalizadas, isto é,
marcadas em sua própria estrutura pelo reflexo do tempo acelerado, o que
em geral consubstancia-se no acoplamento a essas palavras de um sufixo
apto a transmitir a ideia de movimento – no caso do Brasil, o sufixo-ismo
(KOSELLECK, 2006, p. 297; NEVES, 2003, p. 115-226). Além disso,
essa aceleração das mudanças e da correspondente percepção do tempo
torna a base de referência das palavras no mundo algo sem solidez, muito
mais situada na abstração das expectativas futuras do que na concretude
do presente, o que permite que tais palavras refiram-se a muitas coisas
ao mesmo tempo, inclusive a alguma coisa e a seu exato contrário, dan-
do margem a um intenso processo de crítica ideológica (KOSELLECK,
2006, pp. 301-303).

Tudo isso será verificado no Brasil do começo da terceira década


do século XIX, valendo, portanto, também para o conceito de república.
Por conseguinte, a primeira questão a ser destacada é o fato de que, em
geral, rótulos como república, republicanismo e republicano não eram
assumidos voluntariamente como traço identitário de pessoas, grupos ou
posturas políticas, sendo, antes, atribuídos por adversários para caracteri-
zarem uns aos outros, não a si mesmos. A isso, acresça-se que a acusação
de republicanismo era uma das imputações da moda no debate político
daquela época (CANECA, 2001d, p. 136). Raramente se assumia como
republicano, mas frequentemente se acusava outrem de sê-lo.

Uma segunda questão importante passa pela lembrança de que aqui-


lo a que essa acusação poderia referir-se no mundo prático variava enor-
memente, podendo relacionar-se a outros conceitos como federalismo,
feudalismo e inclusive despotismo:

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bispos sem papa, a que eu também chamarei os incompreensíveis. Es-


tes que não querem ser monárquico-constitucionais, que não podem
ser corcundas e que não querem ser republicanos de uma só república,
querem um governo monstruoso; um centro de poder nominal, e cada
província uma pequena república, para serem nelas chefes absolutos,
corcundas despóticos. (ANDRADA E SILVA, 2002, p. 174)

Nesse sentido, Christian Lynch e Heloísa Starling concluem: “Des-


se modo, federalismo se tornava feudalismo, e república, despotismo”
(LYNCH; STARLING, 2009, p. 233, destaques dos autores).

Uma terceira questão que não pode deixar de ser abordada diz res-
peito a que, embora o horror à república, exacerbado pelo isolamento
de uma monarquia cercada pelas repúblicas recém-emancipadas da Es-
panha, tenha feito prevalecer o sentido de república como sinônimo da
então temível e odiável democracia4, suas outras camadas de sentido não
estiveram ausentes do cenário político da Independência, como veremos
no próximo tópico ao tratarmos mais especificamente dos textos de Frei
Caneca.

Conquanto proclamada a Independência, outorgada a Constituição


de 1824 e massacrada a Confederação do Equador, as discussões em tor-
no do conceito de república não cessariam por completo, e o apogeu de
seu prestígio político seria a reforma constitucional de 1834 (LYNCH;
STARLING, 2009, p. 239). Ao mesmo tempo, porém, as decorrências
daquela reforma marcariam a passagem para a quarta e última fase da
história do conceito de república entre 1750 e 1850:

O quarto momento do conceito no Brasil começou justamente, então,


quando ficou claro que, ao invés de reduzir as ameaças de separa-
tismo, o experimento descentralizador e democratizante da reforma

4 –1 É importante lembrar que essa aversão à democracia nos séculos XVIII e XIX não era
privilégio do Brasil. Nos famosos Federalist Papers, textos escritos em prol da ratificação
da Constituição dos Estados Unidos durante o processo de discussão e votação da mesma
pelos então Estados confederados, a defesa da república é feita, muitas vezes, em conjunto
com a crítica da democracia entendida como seu oposto. Cf. HAMILTON; MADISON;
JAY, 1961.

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constitucional as havia antes fomentado, aprofundando a desordem, e


que o caminho para a paz estava na fórmula inversa – reforçar o po-
der do governo central e prestigiar o elemento monárquico. (LYNCH;
STARLING, 2009, p. 239)

Dentre os argumentos que eram levantados para justificar o aban-


dono dos ideais republicanos e federalistas5, destacam-se dois: a suposta
falta de civismo do povo brasileiro e a associação da república ao ímpeto
da mocidade, a uma opção irrefletida típica da juventude e que cedia na-
turalmente espaço à defesa da monarquia constitucional na medida em
que os anos passavam e a maturidade chegava. Quanto ao primeiro desses
argumentos, a permanência do regime escravocrata faria uma república
no Brasil soar como algo caricato, dada a ausência das virtudes cívicas
sem as quais nenhuma república era possível. Quanto ao segundo argu-
mento, é com base nele que alguém como Antônio Carlos de Andrada
Machado justificava sua trajetória política e a mudança de postura entre o
jovem revolucionário republicano de Pernambuco em 1817 e o moderado
defensor da monarquia constitucional já nos finais da década de 1830
(LYNCH; STARLING, 2009, pp. 239-240).

III. FREI CANECA, A REPÚBLICA E A SOBERANIA


Inelutavelmente, falar sobre o conceito de república no século XIX
brasileiro implica falar de Pernambuco:

Tanto pela persistência do ideal republicano clássico da aristocracia


rural como pela simpatia de alguns setores urbanos da capital, Recife,
pelo discurso igualitário jacobino, a tradição republicana encontraria
seu reduto por excelência durante a primeira metade do século XIX,
na província de Pernambuco. (LYNCH; STARLING, 2009, p. 230)
5 –1 Em geral, a interpretação do ideal republicano no Brasil do século XIX é feita desta-
cando-se a dependência desse ideal em relação às pretensões autonomistas das localidades
distintas do Rio de Janeiro. Assim, nessa interpretação, a república costuma, não poucas
vezes, permanecer à sombra do federalismo. Neste texto, afasto-me, ainda que apenas
parcialmente, de tal interpretação. Como mostrarei mais abaixo, sem dúvida as pretensões
autonomistas jogaram um papel de extrema importância na política brasileira do século
XIX. Mas mesmo elas não fariam sentido sem uma articulação mais complexa entre o
ideal republicano e a concepção correspondente de soberania.

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República e soberania antes de 1889

E falar de república em Pernambuco no século XIX não é possível


sem se referir a Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. As circunstâncias
históricas específicas em que viveu e escreveu fazem de sua obra um
lugar privilegiado para compreender-se o debate em torno do conceito
de república e o sentido prático desse debate em um momento crucial da
história do país, isto é, no momento mesmo em que se definia o que seria
o país então nascente.

Uma primeira observação importante pode ser mais bem compreen-


dida se se tem em mente uma preocupação característica de J. Pocock6:
“estabelecer o pertencimento de um determinado conceito a linguagens
políticas de seu tempo” (FERES JÚNIOR, 2009b, p. 13). Dentro dessa ló-
gica, buscar as tradições de pensamento que estavam na base dos escritos
de Frei Caneca e cujas linguagens específicas apareciam imiscuídas nes-
ses escritos contribui para o esclarecimento dos sentidos que os conceitos
utilizados em tais textos assumiam.

Uma das tradições de pensamento que mais nitidamente se destaca


na obra de Caneca é o republicanismo clássico. Logo, aquele duplo senti-
do do conceito, legado ao mundo latino pela tradução da politeía aristoté-
lica como res publica, atravessará toda essa obra. Por um lado, república
podia significar um governo conduzido pelos “homens bons da terra”;
por outro lado, todavia, podia significar simplesmente uma organização
social voltada para o bem comum.

Essa ambiguidade do conceito possibilitava, por exemplo, que Frei


Caneca, em discurso no qual celebrava concomitantemente a conceição
de Nossa Senhora e a aclamação de Pedro como imperador, escrevesse o
seguinte:

Enlaçando entre si os sentimentos, que hoje nos devem animar quanto


à religião e à política, na piedade cristã e na república civil, nossos co-
rações se devem inundar da mais afluente alegria e do mais completo
júbilo, pelo grande interesse que reina nos dois objetos da presente
solenidade: a conceição intemerata da imperatriz do céu e da terra, e a
6 –1 Cf. POCOCK, 2003, particularmente, pp. 63-82.

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aclamação do imperador constitucional do Brasil. (CANECA, 2001b,


p. 106)

Ou seja, era perfeitamente possível elogiar, a um só tempo, a repúbli-


ca civil e o imperador constitucional.

Nessa acepção, o conceito de república aproximava-se do conceito


de pátria. Não a pátria natural, o lugar de nascimento, mas a pátria já
redefinida por Caneca como preferencial, a pátria de direito, na qual se é
aceito como cidadão e a qual se escolhe para habitação e para a formação
de estabelecimentos econômicos (CANECA, 2001a, pp. 70; 75-84):
De tudo isso se conhece que não há coisa alguma no cidadão que se
não deva propor ao bem da pátria; e tudo se deve sacrificar à conser-
vação, lustre e glória da república.
Talentos, pensamentos, palavras, obras, tudo é da república.
Riquezas, propriedades, honras, lugares, em tudo tem um direito ina-
lienável a pátria. (CANECA, 2001a, p. 95)

Se a república e o imperador constitucional podiam ser elogiados


conjuntamente, outra observação relevante refere-se ao que se entendia
por império constitucional:

O império constitucional ou é uma concepção de uma inteligência


acima da dos mortais ou é uma dessas verdades sublimes com que
nos costuma presentear o acaso, ou, se nasceu da reflexão, é a obra-
-prima da razão, e o maior esforço do entendimento humano no artigo
política.
Império constitucional?
Colocado entre a monarquia e o governo democrático, reúne em si as
vantagens de uma e de outra forma, e repulsa para longe os males de
ambas. Agrilhoa o despotismo, e estanca os furores do povo indiscreto
e volúvel. (CANECA, 2001b, p. 117)7

Império constitucional exprimia, dessa maneira, o equilíbrio alme-


jado para a organização da sociedade política, opondo-se aos abusos e às

7 –1Sobre a aversão à democracia nos séculos XVIII e XIX, cf. nota 3 acima.

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República e soberania antes de 1889

arbitrariedades de um ou de muitos, alcançando com isso a preservação


do bem comum.

Diante de um império concebido a partir dessa leitura, Frei Caneca


recusava expressamente a acusação de republicanismo no sentido mais
restrito do termo república, a saber, no sentido que a compreendia como
um governo conduzido por “homens bons da terra” extraídos da popula-
ção em geral e, por consequência, oposto à monarquia:
Como, porém, fosse necessário ter um ponto de apoio, em que equili-
brasse a sua incendiária máquina, lança mão da imputação da moda,
de quererem os que não são Gama e seus aderentes estabelecer uma
república em Pernambuco.
(...)
Dize, malvado, se nós quiséssemos república, quem nos impediria de
fazer?
(...)
Se em 1817 fomos tão arrojados que não tememos todo o Brasil e
todo Portugal reunidos, e proclamamos uma república, como agora o
deixaríamos de fazer por medo de menos de um terço desse inimigo
de outrora? (CANECA, 2001d, pp. 136-137)

Se a razão para não se proclamar uma república não adivinha do


medo, ela precisava ser encontrada em outra ordem de motivações. Nova-
mente, adentrava a cena discursiva o conceito de império constitucional:

Sabes, portanto, que não proclamamos uma república porque não que-
remos; e não queremos, não por temor de nada, sim porque esperamos
ser felizes em um império constitucional; (...). (CANECA, 2001d, p.
140)

Isso poderia levar à conclusão de que a defesa da república nos anos


do processo da Independência não passava, como regra, da postura po-
lítica de vintistas extremados, “que somente premidos ao último limite
rompiam com a fórmula de transigência da monarquia constitucional”
(LYNCH; STARLING, 2009, pp. 236-237). Esta é a opinião de Christian
Lynch e Heloísa Starling: “Como conceito autônomo, portanto, a repúbli-
ca era bastante débil” (LYNCH; STARLING, 2009, p. 238).

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Uma tal leitura, contudo, parece inadequada, posto que não conside-
ra uma dimensão fundamental dos textos que se apresentam em alguma
medida como discursos políticos. Trata-se daquela dimensão a qual Q.
Skinner8 dedicou maior atenção, perguntando-se pelo quê os autores esta-
vam fazendo com os textos que escreviam. Em outras palavras, qual era o
sentido prático desses textos, a quem se dirigiam, com quem dialogavam,
quais efeitos esperavam produzir?

Se tomarmos o parágrafo completo da última passagem de Frei Ca-


neca citada acima, essa dimensão começa a ficar clara:
Sabes, portanto, que não proclamamos uma república porque não que-
remos; e não queremos, não por temor de nada, sim porque esperamos
ser felizes em um império constitucional; porquanto, no caso oposto,
sucederá entre Pernambuco e o sul o mesmo que s.m.i.c. disse a seu
pai na carta de 22 de setembro do ano passado que sucederia entre o
Brasil e Portugal, isto é, que Pernambuco será escravizado, mas os
pernambucanos não. (CANECA, 2001d, p. 140)

Ao lado da aceitação do império constitucional, e como elemento


constitutivo dessa aceitação, figurava a ameaça da ruptura. Essa mesma
estratégia argumentativa repetia-se em várias outras passagens, de diver-
sos outros escritos de Caneca. O que fica claro em todas elas é que, na
fórmula do império constitucional, o que importava mais era o adjetivo
“constitucional” e menos o substantivo “império”, isto é, que o império
constitucional era reconhecido e elogiado não por ser império, mas por
ser constitucional, e, tão logo deixasse de ser constitucional, estava justi-
ficada a resistência a ele e também o rompimento com ele.

Retornando ao discurso proferido para celebrar a aclamação de Pe-


dro como imperador, pode-se ler:

O imperador, podendo fazer todo o bem a seus súditos, jamais causará


mal algum, porque a Constituição com sábias leis fundamentais e cau-
telas prudentes tira ao imperador o meio de afrouxar a brida às suas
paixões e exercitar a arbitrariedade. (CANECA, 2001b, p. 117)
8 –1 Cf. SKINNER, 1985; SKINNER, 1986; SKINNER, 2002. Mais especificamente,
SKINNER, 1985, p. 11.

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O clímax dessa estratégia argumentativa consistia em trazer à cola-


ção palavras do próprio Pedro nas quais ele supostamente sustentaria o
mesmo ponto de vista defendido por Caneca, qual seja, o de que acima
dele, como poder pessoal, estava a Constituição, como ata do pacto social
(CANECA, 2001f, p. 459; 473):
Ali s.m. prometeu, de modo mais positivo, que o Congresso soberano,
representativo do generoso povo brasileiro, era quem havia de fazer
a Constituição do império. Leia-se este monumento da sabedoria, da
constitucionalidade de um príncipe que se sacrificou todo pelos brasi-
leiros (...). (CANECA, 2001f, p. 341)

Em outro texto:

Em todos os papéis que correm impressos, quer sejam feitos por


s.m.i.c., quer dirigidos a ele pelos povos e seus representantes, ou se
vê às escâncaras, ou se dá a entender, que a Constituição do império
há de ser feita pelo soberano Congresso, representante da nação, e não
pelo imperador. (CANECA, 2001e, p. 202)

O fato de a Assembleia Constituinte haver sido dissolvida pelo Im-


perador não obstaculizava o uso da estratégia, exigindo tão somente uma
reconfiguração dos argumentos apta a atribuir a responsabilidade pelos
atos arbitrários a outros atores políticos:
Amanheceu nesta corte o lutuoso dia 12 de novembro, dia nefasto para
a liberdade do Brasil e sua independência; dia em que se viu com o
maior espanto representada a cena do 18 de Brumaire (8 de novem-
bro), em que o déspota da Europa dissolveu a representação nacional
da França; dia em que o partido dos chumbeiros do Rio de Janeiro pôs
em prática as tramoias do ministério português, e conseguiu, iludindo
a cândida sinceridade de s.m.i., dissolver a suprema Assembleia Cons-
tituinte Legislativa do Império do Brasil. (CANECA, 2001f, p. 304)

Essa última passagem encontra-se no número I de O Typhis Pernam-


bucano9, datado de 25 de dezembro de 1823. Duas semanas depois, no
número III do mesmo periódico, logo no início vem estampado:
9 –1 Trata-se do periódico fundado, redigido e publicado semanalmente por Frei Caneca
entre dezembro de 1823 e agosto de 1824.

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Depois de se ter demonstrado nos números antecedentes a falsidade


do motivo que a perversa facção portuguesa teve a habilidade de em-
pregar para iludir e violentar a s.m.i. a acabar com a soberana Assem-
bleia Constituinte brasiliense, arriscando desta feição a integridade do
império com a desconfiança e a insurreição das províncias, e abrin-
do ao Brasil os abismos da anarquia e guerra civil (...). (CANECA,
2001f, p. 319)

Uma vez outorgada a Constituição de 1824 por Pedro, a estratégia


precisava novamente de uma reconfiguração. Aquele elogio pretérito ao
Imperador dava lugar a certo enfrentamento e a uma cobrança mais direta,
o que fica claro, por exemplo, no número XXV de O Typhis Pernambu-
cano, publicado em 8 de julho de 1824, isto é, o primeiro número depois
de proclamada a Confederação do Equador no dia 2 de julho daquele ano:
Como tem s.m. desempenhado o título de defensor perpétuo do Bra-
sil, título em que s.m. pôs toda a sua glória? Oh desgraça! A primeira
ocasião que se oferece de cumprir com esse dever, torce s.m., foge
a defesa e nos deixa em desamparo, entregues unicamente a nossos
recursos: quem tal pensara!
(...)
Que traição! Que perfídia!
E ainda dirá s.m. que é nosso defensor perpétuo?
Defensores desta qualidade são defensores? (CANECA, 2001f, p.
505)

De toda sorte, a estratégia argumentativa será reconfigurada, mas


não simplesmente abandonada. Capturado e interrogado, Caneca escreve
em suas memórias sobre o ocorrido:

Fui arguido de ter escrito no meu Typhis contra o imperador etc.; ao


que respondi negando toda a acusação; 1º) porque nos meus Typhis
somente a doutrina, que constantemente se achava era advogar a sa-
grada causa do império brasileiro, por dever de bom filho, amante da
pátria; 2º) porque nesse tempo havia liberdade de imprensa, mesmo
por decreto de s.m.i.; 3º) porque s.m. o imperador mesmo tinha orde-
nado em uma proclamação sua que advogássemos a causa do Brasil,
ainda mesmo que fosse contra a sua pessoa. (CANECA, 2001i, p. 604)

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Finalmente, na defesa formal apresentada à comissão militar pela


qual foi processado e condenado, lê-se:

Que a soberania reside na nação, que a nação é quem se constitui e por


meio dos seus representantes em Cortes – dois pontos cardeais em que
rola toda a doutrina do Typhis são duas verdades confessadas por s.m.
no decreto de 8 junho de 1822, no manifesto de 6 de agosto do mesmo
ano aos povos e nações amigas, além de outras ocasiões. (CANECA,
2001j, p. 629)

Se a estratégia argumentativa consistia em acatar o império cons-


titucional dando mais relevância ao adjetivo “constitucional” do que ao
substantivo “império” – ou seja, colocando-se a Constituição acima do
Império e, principalmente, da figura pessoal do imperador – e se o clímax
dessa estratégia era alcançado no momento em que se valia de decla-
rações do próprio Imperador nesse mesmo sentido, há algo, então, que
parece não fazer sentido: por que depois da outorga da Constituição de
1824, depois, portanto, que o Império tinha finalmente uma constituição
e era, pois, o almejado império constitucional, os ânimos não só conti-
nuaram acirrados, como houve inclusive um recrudescimento das ten-
sões, culminando na Confederação do Equador? Por que Confederação
do Equador se já havia constituição? Por que escritos contra o Império
e também já diretamente contra o Imperador se este havia dado àquele a
desejada constituição?

A resposta predominante a essas perguntas toma como chave ex-


plicativa as pretensões autonomistas locais, que viram suas expectativas
federalistas definitivamente frustradas frente ao Estado unitário e excessi-
vamente centralizado estabelecido pela Constituição de 1824.10

Sem dúvida, o elemento federalista jogou um papel fundamental no


desenrolar da trama. Mas essa trama não pode ser entendida sem um ou-
tro fio interpretativo, que já se faz presente em algumas das passagens
transcritas acima: trata-se do tema da soberania11. Com a fórmula do im-

10 – Cf., por todos, MELLO, 2001; MELLO, 2004.


11 – A relevância do conceito de soberania para a história política do século XIX brasi-

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pério constitucional, pretendia-se outra coisa que a simples organização


de uma monarquia por meio de uma constituição. Pretendia-se, antes de
tudo, um império cuja constituição fosse elaborada pelos representantes
da nação, não pelo próprio imperador. Pretendia-se, por conseguinte, uma
monarquia despida de seus elementos clássicos, esvaziada de seu eixo
fundamental, posto que a soberania não poderia ser entendida como deri-
vando da hereditariedade do sangue ou do desígnio de Deus, mas somente
da vontade dos povos. Pretendia-se, em suma, uma monarquia republica-
nizada, cuja tradução se dava nos termos de uma soberania nacional ou
popular12.

Já em suas Cartas de Pítia a Damão, redigidas em 1823, Caneca es-


creve:

Portanto, meu caro Damão, faze um serviço à humanidade e dá glória


a Deus, abrindo os olhos a esse pobre povo, em que vives. Dize-lhes
que a soberania não vem imediatamente de Deus, e sim dos mesmos
povos, como até confessa o mesmo imperador, no seu decreto de 3 de
junho do ano passado; (...). (CANECA, 2001e, p. 184)

Mas é em O Typhis Pernambucano que a questão assume um tom


mais definitivo. Em suplemento ao número XI do periódico, publicado no
dia 15 de março de 1824, Caneca afirma:

O poder soberano, isto é, aquele que não reconhece outro acima de si,
existe na nação. (...).
(...)
(...) residindo a soberania na nação, como até s.m.i.c. tem por muitas
vezes confessado à face do universo, e sendo unicamente a nação a
que se deve constituir, só ela usa de um direito seu inauferível na esco-

leiro, sobretudo no contexto da Independência, é reconhecida também, dentre outros, por


Lúcia das Neves, em sua tese de doutoramento posteriormente publicada como livro (NE-
VES, 2003, pp. 159-162), e por Lúcia das Neves, José Murilo de Carvalho e Marcello Ba-
sile, na introdução geral à coletânea em que recentemente foram publicados os panfletos
da Independência brasileira (CARVALHO; BASTOS; BASILE, 2014, especificamente v.
1, p. 35).
12 – A distinção entre soberania popular e soberania nacional não faz sentido no âmbito
dos textos de Frei Caneca. Abaixo, abordo essa distinção, relevante para a compreensão
do debate geral em torno da soberania no século XIX.

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República e soberania antes de 1889

lha das matérias que sejam o objeto do pacto social, ou imediatamen-


te, ou pela mediação de seus legítimos representantes em cortes, ou, se
tem cometido a alguém a esboçar o projeto da sua Constituição, este
sempre deve ser discutido e aprovado em cortes constituintes, pois só
aí é que há representação nacional. (CANECA, 2001f, pp. 393-394).

No número XXII, de 17 de junho do mesmo ano, vem descrita a


decisão tomada pelo conselho que havia se reunido para deliberar acerca
da ordem dada pelo decreto imperial de 11 de março de 1824, no qual se
mandava jurar o projeto de constituição elaborado por Pedro e por seu
Conselho de Estado:
Celebrou-se o conselho, e se decidiu por totalidade de votos, que se
não desse à execução o mencionado decreto de 11 de março deste ano
porque o projeto, além de ser uma carta imperial, na qual se estabele-
cia o mais detestável despotismo, que esta cidade havia jurado repul-
sar com todas as forças, viesse ele de onde viesse, era oferecido por
quem não tinha autoridade para o dar, portanto sendo uma atribuição
essencial da soberania da nação a escolha e arranjo da matéria do
pacto social, era esta escolhida e apresentada pelo imperador, que,
sendo criatura da nação, não tem soberania, e deve portanto receber
da nação a Constituição que esta lhe der (...). (CANECA, 2001f, p.
473, destaques do autor)

O conceito de soberania percorre um bom número das páginas de


Frei Caneca13. E, também no que diz respeito ao elemento federalista – às
pretensões autonomistas locais –, ele só adquire seu sentido e justificativa
plenos à luz da concepção de soberania expressa por Caneca:
O Brasil, só pelo fato de sua separação de Portugal e proclamação da
sua independência, ficou de fato independente, não só no todo como
em cada uma de suas partes ou províncias; e estas, independentes
umas das outras.

13 – Sem pretensão exaustiva: CANECA 2001d, p. 138; 2001e, pp. 183, 184, 185, 191,
197, 203, 204, 205, 206, 210, 248, 297; 2001f, pp. 304, 307-308, 311, 312, 314, 315, 319,
321, 331, 334, 335, 337, 338, 345, 353, 363, 367, 382, 393-395, 417-418, 434, 441, 443,
445, 446, 452, 454, 455, 458-459, 463-465, 473, 484, 503, 508-509, 518-519; 2001g, p.
542; 2001h, pp. 560, 563-564, 565, 566; 2001j, pp. 613, 629, 632, 635.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016 131


David F. L. Gomes

Ficou o Brasil soberano, não só no todo, como em cada uma das suas
partes ou províncias.
(...)
No meio dessas possibilidades, o Rio, pelo poder soberano que ti-
nha no seu território, aclamou s.m. imperador constitucional, e então
s.m. não ficou mais do que imperador do Rio de Janeiro. As outras
províncias, ou seduzidas pelos emissários do Rio, ou por seu mesmo
conhecimento, esperando que nesta forma de governo podiam achar a
felicidade a que aspiravam, foram-se chegando muito de sua vontade
aos negócios do Rio, aclamando a s.m. imperador constitucional, com
o que nada mais fizeram que declarar que se uniam todas para formar
um império constitucional, e que s.m. seria o seu imperador.
Daqui se conhece que duas são as condições da união das províncias
com o Rio de Janeiro, a saber, que se estatua império constitucional,
e que s.m. seja o imperador; de modo que, se o Rio de Janeiro quiser
coisas fora ou contrárias a qualquer destas duas condições, está des-
feita a união, que mal se achava esboçada, e cada província libérrima
para, pelo seu poder soberano no seu território, proclamar e estatuir
aquela forma de governo que bem quiser, como fez o Rio proclaman-
do império constitucional.
(...)
Já se deixa ver que os efeitos da falta do cumprimento dessas duas
condições são os mesmos, se acaso o imperador for o que as embara-
ce, contra o voto das províncias, como desgraçadamente sucedeu com
a dissolução despótica e à força de armas da soberana Assembleia.
(...)
Pelo que, está dissolvida a prometida e não consumada união das pro-
víncias; e, por esta razão, cada uma reintegrada na sua independência
e soberania. (CANECA, 2001f, pp. 463-465).

Se é verdade que a ênfase do programa da Confederação do Equador


era mais a federação do que a república14, a própria possibilidade da fe-
deração requeria o argumento de uma soberania nacional ou popular - de
uma soberania republicana15.

14 – MELLO, 2001, p. 39.


15 – Cf. nota 11.

132 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016


República e soberania antes de 1889

Como conclusão, se a história de um conceito não se confunde com


a história de uma palavra, se a história de um conceito somente pode ser
compreendida se se analisam tanto as distintas ordens de coisas no mundo
a que se refere uma mesma palavra quanto as distintas palavras que se
referem a uma mesma ordem de coisas no mundo (KOSELLECK, 2006,
p. 105), então a história do conceito de república – que é o tema do qual
aqui me ocupo – no Brasil do século XIX não pode ser adequadamente
entendida senão em conjunto com a história do conceito de soberania.

Assim, retornando a Q. Skinner, pode-se perceber que o que Frei


Caneca fazia com seus textos não era transigir com o Império, com a
monarquia constitucional, e revelar a debilidade do conceito autônomo
de república no século XIX brasileiro, como pretendem Christian Lynch
e Heloisa Starling (LYNCH; STARLING, 2009, pp. 236-237). Não se
tratava de aceitar o império no lugar da república. Mas, ao contrário, de
deixar claro que só se aceitaria o império como república. E que, se não
fosse assim, a resistência armada e a ruptura seriam, como acabaram sen-
do, a alternativa.

IV. A SOBERANIA, DA INDEPENDÊNCIA AO MANIFESTO DO


PARTIDO REPUBLICANO
Ainda que a argumentação do tópico precedente esteja correta, se
ela fosse válida apenas para Frei Caneca, ou para o âmbito restrito de
Pernambuco e adjacências, a conclusão de Christian Lynch e Heloísa
Starling acerca da debilidade da república como conceito autônomo não
estaria refutada: Caneca, Pernambuco e região poderiam ser a célebre
exceção que confirma a regra.

Entretanto, uma articulação semelhante entre república e soberania


– articulação que, como vimos mostrando, reposiciona o problema da
história do conceito de república no século XIX brasileiro – pode ser
verificada na cena política do nascente país como um todo. No Rio de
Janeiro, por exemplo, isso fica claro em episódios como aqueles refe-
rentes ao juramento prévio da Constituição portuguesa a ser elaborada

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016 133


David F. L. Gomes

pelas Cortes de Lisboa, à reunião da Praça do Comércio, ao juramento


das bases daquela que viria a ser a Constituição portuguesa e ao Conselho
de Procuradores.16

Se todos esses episódios situam-se antes da declaração de Indepen-


dência, declarada esta as tensões ganhariam força. Afinal, o que passava
a estar em jogo era o fundamento da política e do direito no novo país,
isto é, o fundamento da legitimidade do poder e da autoridade das leis no
Estado que acabara de surgir como tal no mundo.

Já imediatamente após a proclamação da Independência, por exem-


plo, as simbologias em torno da aclamação e da coroação do Imperador
dariam vazão ao confronto entre acepções distintas de soberania. Em cada
uma das cerimônias, detalhes como os passos seguidos na ritualística, as
pessoas presentes na celebração, o arranjo das posições dos indivíduos
que se faziam presentes, o caminho percorrido pelo Imperador, a ordem
das falas: tudo isso (NEVES, 2003, pp. 375-411) revelava, na diferença
entre uma cerimônia e outra, a disputa em torno da soberania que tinha
lugar naquele momento.

Enquanto a aclamação havia sido organizada pelo grupo liderado


principalmente por Gonçalves Ledo e José Clemente Pereira, a coroação
havia sido obra sobretudo do grupo liderado por José Bonifácio de An-
drada e Silva. Os primeiros, muitas vezes acusados de republicanismo,
eram adeptos de uma soberania popular; o segundo opunha-se a ela. Por
conseguinte, toda a dimensão simbólica por detrás da aclamação, cele-
brada no dia 12 de outubro, parecia querer dizer que Pedro somente era
imperador por vontade do povo e que, por causa disso, acima dele e antes
dele estava a soberania situada na nação. O ponto alto dessa posição po-
lítica era alcançado quando José Clemente Pereira, presidente do Senado
da Câmara do Rio de Janeiro, discursando antes de Pedro, apresentava as
razões pelas quais o Brasil se havia separado de Portugal e afirmava a ori-
gem popular do título ostentado pelo imperador (NEVES, 2003, p. 382).

16 – Em relação a esses acontecimentos, cf. GOMES, 2015.

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República e soberania antes de 1889

Não por acaso, logo depois da aclamação, uma reviravolta política,


cuja cumeada foi uma devassa extremamente arbitrária que passou à his-
tória com o nome de Bonifácia (LUSTOSA, 2004, p. 63), fez com que
o grupo de Ledo e José Clemente fosse afastado de modo praticamente
definitivo do cenário político do recém-nascido Império. Estava aberto o
caminho para que o grupo de Bonifácio organizasse uma nova cerimônia:
a coroação, a ser celebrada no dia 01 de dezembro.

Nessa nova cerimônia, o aspecto restrito e o tom sacro que a cercava


procuravam dizer o contrário do que havia sido expresso em 12 de outu-
bro: a soberania não residia no povo ou na nação, mas no monarca, por
desígnio de Deus. A culminação dessa nova cerimônia e de seu sentido
prático seria um discurso proferido por Pedro ao final de todo o ritual. Dos
balcões do Paço, espada em punho, Pedro terminaria dizendo que jurava
defender o Império do Brasil e a constituição liberal digna dele e do país.
Inspirado em Luís XVIII, tratava-se de uma espécie de antecipação da
fala com a qual o aclamado e coroado Imperador abriria os trabalhos da
Assembleia Constituinte no dia 3 maio de 1823 (NEVES, 2003, p. 409).

O que fica nítido nas distinções entre essas cerimônias e, principal-


mente, na aclamação e no desfecho trágico que os responsáveis por ela ti-
veram na política, é que Ledo e José Clemente não estavam simplesmente
transigindo com a monarquia, com a fórmula do império constitucional,
por debilidade da república como um conceito autônomo na política im-
perial. Uma vez mais, o que acontecia era uma tentativa, levada ao limite,
de defesa da república, de defesa de um império que só podia ser aceito
como república17. É isso inclusive que ajuda a explicar a violência a que

17 – Certamente, essa complexa teia de argumentação e prática política não prescinde de


uma base material que lhe agregue sentido. Dentro dessa lógica, os interesses na manu-
tenção do escravismo foram fundamentais para a união de grupos políticos distintos em
torno do Imperador. É essa a interpretação de Menelick de Carvalho Netto (1992), apoia-
do em Ilmar Rohloff de Mattos (2004). Todavia, essa interpretação não exclui o fato de
que, quando os elementos republicanos desses grupos, movidos por interesses materiais,
aproximaram-se do Imperador, essa aproximação ocorreu exatamente do modo como pro-
curo sustentar, isto é, como a aceitação de uma monarquia apenas na medida em que ela é
despida de seus elementos típicos, como a aceitação de uma monarquia republicanizada.
Sem dúvida, isso aponta para os limites do ideal republicano no Brasil do século XIX,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016 135


David F. L. Gomes

se recorreu contra aquele grupo logo em seguida. Se as circunstâncias não


permitiram que a palavra república se fizesse presente, ou fizeram com
que ela fosse expressamente recusada, isso não significa que sua semânti-
ca própria, que as camadas de sentido que compõem, não a palavra, mas
o conceito de república, estiveram ausentes. Também aqui, esse conceito
só revela sua história quando esta vem unida à história do conceito de
soberania e às disputas em torno desse conceito.

Essas disputas seguiriam seu turno e chegariam ao seu apogeu na


Assembleia Constituinte. Desde antes de sua abertura, ainda durante as
sessões preparatórias, a soberania já se mostrava o tema axial da Assem-
bleia (LUSTOSA, 2004): como se vestiria o Imperador ao vir à Assem-
bleia? Com ou sem as insígnias imperiais? Viria ou não acompanhado de
seus ministros? Estando presente, seu assento seria superior ou não ao
assento do presidente da Assembleia? E este deveria ou não oferecer uma
resposta em seguida à fala com a qual o Imperador abriria os trabalhos da
Assembleia? (BRASIL, 1973, pp. 1-13).

Chegava o dia 3 de maio e, em sua fala de abertura, Pedro retoma-


va as palavras que havia proferido no dia de sua coroação: defenderia a
pátria, defenderia a nação e defenderia a Constituição, se fosse digna do
Brasil e dele (BRASIL, 1973, pp. 15-19). Era o necessário para que as
sessões seguintes da Assembleia fossem fortemente marcadas pela dispu-
ta em torno da soberania: poderia o monarca recusar a Constituição a ser
elaborada pela Assembleia? A quem caberia decidir se essa Constituição
era ou não digna do Brasil e dele? Quem estava acima de quem? Quem
era o soberano de quem?

No calor da discussão, uma fala de Andrada Machado e Silva seria


bastante reveladora, sobremaneira em suas entrelinhas. Afirmava ele que

deixando claro que a almejada república, para boa parte de seus adeptos, não deveria sig-
nificar abolição da escravatura e uma inclusão social mais profunda. Mas nada se altera
em relação à argumentação que vem sendo desenvolvida neste texto: no limite, quando a
recusa expressa da monarquia não se fazia uma opção viável, a estratégia política consis-
tia em defender uma monarquia republicanizada, uma monarquia moldada na forma de
uma república, ainda que na forma de uma república extremamente excludente.

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República e soberania antes de 1889

povo e nação eram palavras diferentes, que não podiam ser confundidas,
sob pena de desordem. A nação abrangia o “Soberano e os Subditos”,
enquanto o povo compunha-se apenas dos “Subditos”. O “Soberano” era
a “razão social, collecção das razões individuais”. O povo era o “Corpo
que obedece á razão”. A confusão entre as duas palavras, conduzindo à
“almagação imphilosophica da Soberania e povo”, gerava consequências
que “ensanguentarão a Europa, e nos ameação tãobem”. Nesse sentido,
Andrada Machado e Silva solicitava que se substituísse povo por nação
sempre que se falasse de soberania (BRASIL, 1973, p. 31).

Com essa fala, somada aos outros acontecimentos e discursos até


aqui trabalhados, é possível perceber que pelo menos três posições prin-
cipais acerca da soberania concorriam entre si na política brasileira de en-
tão. Em um extremo do espectro, estavam os que entendiam que a sobera-
nia residia no próprio monarca. No outro extremo, os que entendiam que
a soberania situava-se no povo. No meio do caminho, os que distinguiam
entre povo e nação, entendendo que a soberania era um atributo da nação,
mas que esta, por sua vez, era composta pelo povo, como totalidade de
súditos, e pelo monarca. Para estes, embora a soberania fosse algo uno e
indivisível, o seu exercício deveria ser compartilhado entre o imperador e
os representantes do povo reunidos em Assembleia.18

O alerta de Andrada Machado e Silva, segundo o qual a junção en-


tre soberania e povo, que havia causado tantos males à Europa, também
ameaçava o Brasil, dá provas da força relativa de que o argumento da
soberania popular gozava naquele contexto. Certamente, pode-se pensar
que há certa dose de exagero e retórica em sua fala, e pode-se perguntar
o que também ele estava fazendo com aquelas palavras, o que ele exata-
mente fazia ao falar, na busca por hegemonia dentro da Assembleia e na
defesa de uma posição política específica. Mas, ainda assim, e por isso
mesmo, o exagero e a retórica, construídos em volta das alegadas amea-
ças representadas por uma concepção popular de soberania, somente fa-
zem sentido se se parte precisamente da força relativa que tal concepção
18 – Cf. notas 11 e 14. Em relação a essas três concepções distintas de soberania, cf. tam-
bém MOREL, 2005.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016 137


David F. L. Gomes

de fato já possuía. Do contrário, a retórica não passaria de retórica vazia;


e o exagero, de simples paranoia, contradizendo-se com sua própria fina-
lidade de servir de ferramenta para a competição política.

Diante de tudo isso, fica claro, acerca da história do conceito de so-


berania no século XIX brasileiro – precipuamente a partir de fins de 1820,
quando as notícias da Revolução do Porto chegam ao Brasil – o seguinte:
todo esse período será atravessado por uma tensão constante entre as va-
riadas concepções de soberania que circulavam à época, das quais aque-
las três resumidas acima, como modelos discursivos ideais, são as mais
destacadas. Essa tensão constante, essa disputa acerca da soberania, não
se resolverá ao longo de toda a história do Império. Haverá, sem dúvida,
momentos mais curtos ou mais longos de relativa estabilização dessas
tensões, prevalecendo uma ou outra concepção de soberania que, dadas
as circunstâncias específicas de cada um desses momentos, conseguia so-
brepor-se às outras. Mas essa prevalência jamais significará exclusivida-
de ou definição da disputa, durando apenas até que novas circunstâncias
venham outra vez alterar o equilíbrio de forças e reavivar as tensões que
estiveram por algum tempo latentes. Ou seja, não houve, em todo esse
período histórico, uma “mão mais poderosa” (GOMES, 2015). A perma-
nência dessa tensão, por sua vez, revela, ao mesmo tempo, a permanência
ativa do ideal republicano.

Entre maio e novembro de 1823, a Assembleia Constituinte e as rela-


ções dela com o Imperador seriam o principal foco das tensões em torno
da soberania. Em 12 de novembro, essas tensões culminariam na disso-
lução da Assembleia pelo Imperador. Se esse ato poderia parecer apontar
para o predomínio absoluto da soberania monárquica, para a efetivação
máxima do monarca como soberano, o decreto de dissolução e outras pro-
clamações imperiais que se seguiram a ele mostram bem que tal predomí-
nio não era possível nos quadros dos debates e práticas políticas daqueles
anos19. Em tais documentos, Pedro precisa buscar justificativas para o seu
ato acusado de arbitrário, e a justificativa principal é a promessa de uma
19 – Cf. DECRETO, 2008a, p. 557; DECRETO, 2008b, p. 559; MANIFESTO, 2002, p.
558; PROCLAMAÇÃO, 2002, pp. 741-742.

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República e soberania antes de 1889

nova Assembleia Constituinte e de uma Constituição ainda mais liberal


do que aquela que vinha sendo elaborada pela Assembleia dissolvida. Um
monarca soberano, que precisa justificar seus atos nesses termos, já colo-
ca em questão, no próprio ato de se justificar, a sua condição de soberano,
escancarando com isso o fato de que sua alegada soberania não estava
assentada em bases sólidas, mas permanecia em xeque.

Outorgada a Constituição de 1824, poucos meses depois eclodiria a


Confederação do Equador, com todo o seu fundamento, conforme visto
no tópico anterior, no problema da soberania. No texto da Constituição,
por outro lado, vinha escrito em seu artigo 11: “Os Representantes da Na-
ção Brazileira são o Imperador, e a Assembléa Geral” (BRASIL, 2015),
dando-se a entender que aquela concepção de soberania situada no meio
do caminho era a que prevalecia e estabilizava de algum modo as tensões
em jogo.

Bastou ter início a primeira legislatura para que as forças políticas


se reconfigurassem e aquela estabilização mostrasse toda a sua fragili-
dade. Institucionalmente, a tônica era dada pelo enfrentamento entre a
Assembleia e o Imperador. Para além das barreiras institucionais, das ruas
vinham também elementos de peso para a continuação das contendas:
a população passava a recorrer cada vez mais ao poder Legislativo por
meio de petições, nas quais em geral ele aparece nomeado como “Sobe-
rano Congresso” (PEREIRA, 2010).

Sete anos depois da outorga da Constituição de 1824, o desgaste da


relação entre Pedro e o Legislativo seria um dos motivos que levariam
a sua abdicação. Em seguida, conforme apontado por Christian Lynch e
Heloíisa Starling (LYNCH; STARLING, 2009, p. 239), o período regen-
cial e a reforma constitucional de 1834 representariam uma espécie de
apogeu para o prestígio político do conceito de república. Logo, também
ali, seja na reforma, no regresso conservador ou na reação liberal a esse
regresso, as tensões em torno da soberania manifestar-se-iam com todas
as suas cores.

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David F. L. Gomes

O golpe da maioridade e o início do reinado de Pedro II, porém, não


sepultariam o debate, não encerrariam as disputas, sendo apenas mais um
daqueles momentos de relativa estabilização das tensões. Retornando à
Constituição de 1824, se ela, por um lado, havia dividido a representação
da Nação entre o imperador e o Poder Legislativo, por outro lado havia
trazido, logo em seu preâmbulo, a afirmação de que Pedro era imperador
constitucional e defensor perpétuo do Brasil por graça de Deus e unâ-
nime aclamação dos povos. Essa dupla fonte alegada de legitimidade,
somando-se à previsão da figura do Poder Moderador nos artigos 10 e 98
a 101 (BRASIL, 2015), poderia significar que na verdade o monarca per-
manecia como soberano, posto que, na dualidade de sua legitimação – por
Deus e pelo povo – e de seu lugar institucional – como Poder Executivo
e como Poder Moderador –, ele se situava ao mesmo tempo dentro da
relação entre os poderes e acima de todos eles.

Essa linha de interpretação, contudo, desconsidera que a simples


previsão constitucional da figura do Poder Moderador não conseguia de-
finir de antemão seu sentido, seu fundamento e os limites e possibilidades
de sua prática: a busca dessa definição, que já se fazia objeto de disputa
no primeiro reinado, será uma das principais ocasiões para a continuida-
de dos enfrentamentos entre acepções distintas do conceito de soberania
ao longo do segundo reinado, como se percebe a partir do debate entre
Braz Florentino Henriques de Souza e Zacharias de Góez e Vasconce-
llos20. O que esse debate permite vislumbrar é que, para além da suposta
indistinção entre liberais e conservadores, concepções distintas acerca do
fundamento da política e do direito, acerca da legitimidade do poder e
da autoridade das leis, continuavam colocando políticos diferentes em
campos opostos.

Esse breve resgate histórico apresentado não é mais do que um pano-


rama do que foram aquelas décadas. Entretanto, quanto mais se aprofun-
da nos detalhes da política imperial brasileira, mais seus meandros dão
prova da plausibilidade da argumentação aqui desenvolvida.
20 – Sobre esse debate, cf. CARVALHO NETTO, 1992, pp. 59-85; REPOLÊS, 2008, pp.
35-66.

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República e soberania antes de 1889

Todavia, a maior prova dessa plausibilidade – a maior prova de que,


ao longo do século XIX brasileiro, acepções diversas do conceito de so-
berania permaneceram em tensão constante, sem que nenhuma tenha de-
finitivamente se sobreposto às outras, e que a república e a soberania
não se compreendem nesse século senão conjuntamente interpretadas – é
o Manifesto do Partido Republicano, de 1870: “Não reconhecendo nós
outra soberania mais do que a soberania do povo para ella appellamos.
Nenhum outro tribunal póde julgar-nos: nenhuma outra auctoridade pode
interpôr-se entre ella e nós” (MANIFESTO, 1998, p. 243).

Mais do que voltar a abordar expressamente a ideia de uma sobera-


nia que se situa exclusivamente no povo, o que o manifesto expressa é,
uma vez mais e como nunca havia deixado de ser, a relação interna entre
soberania popular e república.21

Referências bibliográficas

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21 – No corpo do manifesto, ficaria clara também a relação entre ambos esses conceitos
e a defesa do federalismo. Assim, o Manifesto do Partido Republicano reforça o que foi
alegado nas páginas precedentes: a defesa do federalismo somente adquire sentido e força
prática unida à determinada concepção de soberania.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):117-146, jul./set. 2016 141


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Texto apresentado em dezembro/2015. Aprovado para publicação


em março/2016.

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A MONARQUIA E OS BANHOS DE MAR: O CASO


BRASILEIRO
THE MONARCHY AND SEA BATHING IN BRAZIL
Paulo Francisco Donadio Baptista1

Resumo: Abstract:
Este artigo situa a atitude dos membros da fa- This article assesses the attitude of the members
mília real brasileira em relação às práticas de of the Brazilian royal family towards the prac-
banho de mar adotadas pelas realezas europeias. tice of sea-bathing, as adopted by European
Relata a presença de D. João, Carlota Joaqui- royalties. It discusses the presence of D. João,
na, Pedro I, Pedro II, Tereza Cristina e Isabel Carlota Joaquina, Pedro I, Pedro II, Tereza
nas praias de banho da Corte Imperial. Analisa Cristina and Isabel on the bathing beaches of
como o exemplo tímido dado pelos monarcas the Imperial Court. We analyze how the timid
brasileiros deixou a aristocracia do Rio de Ja- example given by the Brazilian monarchs left
neiro indiferente aos banhos de mar e atrasou a the aristocracy of Rio de Janeiro indifferent to
adesão dos cariocas à sua prática. sea bathing and delayed the adherence of the
Cariocas to this practice.
Palavras-chave: Banhos de mar; Monarquia; Keywords: Sea baths; monarchy; Rio de Ja-
Rio de Janeiro. neiro.

No século XIX, a prática dos banhos de mar estava consolidada na


Europa. A Inglaterra havia tomado a dianteira na restauração do gosto
aristocrático pelos costumes balneários desaparecidos no final da Anti-
guidade romana. Com a ajuda de viajantes ingleses, as praias da Europa
continental ganharam fama de estações elegantes, ao lado das estações
hidrominerais. Autorizados pela medicina neo-hipocrática, os aquáticos
procuravam a cura dos seus males na respiração dos ares marinhos e na
imersão nas ondas salgadas do mar. Junto com o uso terapêutico, fundou-
-se uma estética das praias, baseada no gosto pela paisagem pitoresca da
beira-mar. Instituiu-se o verão como estação preferida dos banhistas e se
estabeleceram os divertimentos praianos, natação, regatas, convescotes,
bailes, passeios e jogos. Codificaram-se, sobretudo, os procedimentos
para a manutenção do pudor balneário, as máquinas de banho, as bar-
racas, as cabines de aluguel para troca de roupas, além da própria indu-
mentária praiana. Ao final do século romântico, uma pujante economia
movimentava praias do Báltico, do Mar do Norte, do Canal da Mancha,
do Atlântico, do Mediterrâneo e do Adriático, com suas residências de ve-
1 –1 Doutorando em História Social. UFRJ.

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Paulo Francisco Donadio Baptista

raneio, seus hotéis de luxo, seus estabelecimentos balneários e uma varie-


dade de produtos e serviços para banhistas. Uma cultura praiana moderna
estava em vigor, atraindo diferentes setores da sociedade, a começar pelo
poder político.

Coube à aristocracia a primazia da reinvenção das praias balneárias.


Afastados da produção, vivendo da renda fundiária e sentindo-se fisica-
mente debilitados em meio a um mundo social revolucionado, muitos
nobres passaram a procurar, por meios próprios, a vilegiatura à beira-mar,
no intervalo entre uma guerra e outra. A burguesia em ascensão, à procu-
ra de prestígio e destinação para a riqueza recém-acumulada, não tardou
em imitar a nobreza nesse movimento rumo às praias. Com a revolução
tecnológica dos meios de transporte, o advento da navegação a vapor e,
sobretudo, a invenção das estradas de ferro, o acesso às estações praianas
começou a ser franqueado a uma população de classe média. Ao final do
século XIX, a regulamentação das férias e do descanso semanal permi-
tiu às classes trabalhadoras a adesão à moderna prática da fuga para as
praias.2 Num mundo de mobilidade social, a hierarquia funcionava como
um sistema de exemplaridade, em que o modelo fornecido pelo topo da
sociedade era seguido por setores subalternos em busca de afirmação.
O ócio conspícuo, para usar a expressão de um contemporâneo do final
desse século,3 sinalizava boa situação social, e as praias de banho serviam
perfeitamente à obtenção desse efeito.

Famílias reais e membros da alta aristocracia exerceram um papel de


proa nesse processo de difusão do costume por adesão à hierarquia. Reis
e rainhas, príncipes e princesas, duques e duquesas eram admirados pelos
súditos, que podiam acompanhar sua agenda de aparições por meio dos
jornais. Embora não exigisse a mesma pompa e o fausto das festividades
oficiais, a vida pessoal dessas figuras constituía parte indispensável dos
rituais monárquicos, cuja simbologia atuava na reafirmação do poder cen-

2 –1 CORBIN, Alain. O território do vazio, pp. 287-297; LENCEK, Lena e BOSKER,


Gideon. The beach, pp. 73-93.
3 –1 VEBLEN, Thorstein. Teoria de la classe ociosa.

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A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

tral.4 A presença de uma dessas celebridades lançava o olhar de todos para


o lugar que prestigiava, fosse um teatro de concerto, fosse uma estação
de cura. Nas praias de banho não era diferente, pois o veraneio dos reis
ensejava uma série de festas, a que compareciam tanto os nobres da Corte
como os plebeus e a gente simples da localidade.

Weymouth, ao sul da Inglaterra, no Canal da Mancha, começou a ser


procurada pelo rei Jorge III e seus irmãos no final do século XVIII. Um
deles, o duque de Gloucester, mandou construir um palácio que se torna-
ria residência real. Mas foi em Brighton, também na Mancha, porém mais
perto de Londres, que se estabeleceu, no início do século XIX, a estação
balneária preferida da família real britânica. No reinado de Guilherme
IV, o Pavilhão Real animou a vida nessa cidade praiana, que passou a ser
considerada uma segunda capital. Nos seus banhos, o príncipe de Gales
seguiu tratamento de saúde por mais de quarenta anos. A rainha Vitória
chegou a visitar o Chain Pier de Brighton em 1837 e 1843, quando, en-
tretanto, a crescente demanda pela praia começaria a afastar a realeza e
alta aristocracia.5

Na França, a moda elegante do banho de mar lançada pelos ingleses


se espalhou com a ajuda decidida de Maria Carolina de Bourbon-Sicília,
duquesa de Berry. Graças a ela, a praia de Dieppe, a partir dos anos 1820,
passou a ser identificada com a monarquia francesa. A cada verão, sua
chegada à cidade representava um triunfo, com salvas de canhão, ilumi-
nação ornamental, distribuição de presentes, programa de teatro e baile
oficial. O povo aclamava sua protetora e cantava canções compostas em
sua homenagem. A entrada da duquesa no banho de mar configurava um
verdadeiro espetáculo.6 Mais tarde, Dieppe conquistou a aprovação do
imperador Napoleão III. Já no Segundo Império, entretanto, sua esposa,

4 –1 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte.


5 –1 CORBIN, Alain. Op. cit., pp. 282-290; LENCEK, Lena e BOSKER, Gideon. Op. cit.,
pp. 72-90.
6 –1 CORBIN, Alain. Op. cit., pp. 290-292; MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida
privada burguesa, p. 231; RAUCH, André. Les vacances et la nature revisité, p. 85.

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Paulo Francisco Donadio Baptista

Eugenia, demonstrou predileção pelo banho de mar em Biarritz, que se


tornaria, a partir de 1850, a praia francesa da moda.7

A identificação das realezas com as estações balneárias se estendia


para outros países da Europa. No começo do século XIX, o rei da Prús-
sia, Frederico III, incentivou o desenvolvimento de balneários em Putbus,
Zoppot, Swinemünde, Warnemünde, Apenrade e Kiel, localidades da cos-
ta do Báltico. Em 1819, o rei da Suécia, Carlos XIV, frequentou Helsing-
borg. Por essa época, o príncipe Talleyrand foi a Nápoles tomar banhos.
Na Bélgica, Ostende ganhou importância a partir de 1834, quando o rei
Leopoldo I e a rainha Luisa-Maria passaram a temporada nessa praia.8 Na
Península Ibérica, em meados do século XIX, os banhos de mar também
eram procurados pelos monarcas. Isabel II, rainha de Espanha, foi a San
Sebastian em 1845 e a Barcelona, no ano seguinte. O rei de Portugal,
Fernando II, tomava banhos de mar mesmo em Lisboa. Já Luís I preferia
passar a temporada em Cascais, que frequentou assiduamente até o fim de
seu reinado, em 1889.9

Os monarcas que reinaram no Brasil, estabelecidos no Rio de Janei-
ro, de 1808 a 1889, também foram, ainda que não muito assíduos, usuá-
rios dos banhos de mar. A transferência da família real portuguesa para a
capital brasileira havia mudado a paisagem social da cidade. A chegada
da Corte portuguesa, um contingente de mais de quinhentas pessoas, en-
tre nobres e militares,10 e a chegada de muitos estrangeiros, provenientes
de diferentes países da Europa, a partir da abertura dos portos às nações

7 –1 WEBER, Eugen. França fin-de-siècle, p. 220; LENCEK, Lena e BOSKER, Gideon.


Op. cit., pp. 123-124.
8 –1 CORBIN, Alain. Op. cit., pp. 275; “Stokolmo”. In Gazeta do Rio de Janeiro, 25 de
setembro de 1819, p. 3; Idade d' Ouro do Brasil, 18 de setembro de 1818, p. 1; CORBIN,
Alain. Op. cit., pp. 294.
9 –1 “Notícias diversas”. In Diário do Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1845, p. 1; “Exte-
rior”. In Diário do Rio de Janeiro, 6 de julho de 1846, p. 1; “Extrato da correspondência
do Diário”. In Diário do Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1850, p. 2; “Correspondência
de Lisboa”. In Diário do Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1875, p. 1; “S. M. el-rei de
Portugal”. In O Paiz, 4 de setembro de 1889, p. 1.
10 – CAVALCANTI, Nireu. A reordenação urbanística da nova sede da Corte.

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A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

aliadas de Portugal, desencadearam um incremento e uma diversificação


na vida cultural carioca. No período joanino, antes da crise que devolve-
ria a família real a Lisboa, o Rio de Janeiro foi palco de grandes festejos
monárquicos. Batizados, casamentos, aniversários e outros eventos im-
portantes para a afirmação da realeza eram comemorados com fausto.
Dias consecutivos de festas atraíam o público para um variado programa
de diversões, incluindo touradas, cavalhadas, encamisadas, encenações
teatrais e óperas, com a cidade sob iluminação especial, ensurdecida pelo
espocar de fogos de artifício. Além dos festivais da Coroa, cresciam as
procissões devotas e se multiplicavam as diversões em residências parti-
culares, com bailes e recepções. Na segunda década do século, aparece-
ram as primeiras sociedades recreativas e o primeiro teatro da cidade, o
São João.11 O primeiro grande jornal carioca, a Gazeta do Rio de Janei-
ro, dava notícia desses e outros acontecimentos. Os banhos de mar, nas
praias da cidade, não eram de todo desconhecidos, mas a grande atração
balneária da época era a Flutuante, espécie de barca de banhos, com ca-
marotes privativos para banhistas, fundeada no largo do Paço.12

Carlota Joaquina e D. João tomaram banhos de mar no Rio de Ja-


neiro, mas não se banhavam juntos. A distância entre as praias escolhidas
por cada um correspondia à luta política que os separava: ela, na praia de
Botafogo, extremo sul da cidade; ele, na ponta do Caju, extremo norte. Na
segunda década do século XIX, esses pontos eram arrabaldes afastados
do núcleo urbano, de difícil acesso, devido à precariedade dos meios de
transporte e das vias públicas. Assim, se saíam da cidade para ir aos ba-
nhos, os Bragança não chegaram a criar nessas praias pontos de reunião
para onde se dirigiam sazonalmente a aristocracia e a elegância. Carlo-
ta passava a maior parte do tempo hospedada em Botafogo, sem exigir
frequentes deslocamentos. João morava no Paço, no centro da cidade, e

11 – EDMUNDO, Luiz. A Corte de D. João no Rio de Janeiro (1808-1820); SILVA, Ca-


mila Borges da. O Símbolo Indumentário; MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da
Rua do Ouvidor, p. 66.
12 – “Avisos”. In Gazeta do Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1811, p. 4; “Avisos”. In
Gazeta do Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1812, p. 4; “Avisos”. In Gazeta do Rio de
Janeiro, 22 de novembro de 1815, p. 4.

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Paulo Francisco Donadio Baptista

mandou construir um abrigo balneário para seu uso, perto da quinta da


Boa Vista, no Caju. Mas, notoriamente avesso à água, utilizou os banhos
de mar por pouco tempo e essa prática não chegou a atrair séquitos de
admiradores. Na verdade, fora das situações oficiais, João VI raramente
fazia aparições públicas junto aos súditos.13 Em contraste com os hábitos
balneários das casas reais europeias, o primeiro casal real residente no
Rio de Janeiro fazia um uso discreto dos banhos de mar, quase sem espec-
tadores e sem espetacularidade nenhuma.

Sobre as abluções de Carlota Joaquina quase nada ficou anotado nos


registros historiográficos, além do constante afastamento do Paço. Ela se
banhava na companhia das filhas, mas não ficou menção à presença do
futuro imperador nos seus banhos. Carlota também recorria aos serviços
balneários do capitão de fragata Antonio José de Carvalho.14 A época ain-
da não era dos exercícios de natação nas praias e as damas comumente
solicitavam o amparo de um cavalheiro para enfrentar a força das ondas.
Os banhos de mar estavam longe de exigir uma atitude desportiva dos
banhistas em geral e muito menos das representantes do belo sexo.

Os banhos de mar de D. João não duraram muito tempo, mas perma-


neceram na crônica curiosa do passado. O príncipe, a contragosto, sub-
meteu-se às imersões marinhas por ordem médica. Havia algum tempo,
tinha sofrido com uma inflamação na perna, provocada por uma mordida
de carrapato mal curada.15 Agora, a lembrança desse padecimento des-
pertou nele o temor de ser atacado, debaixo d’ água, por caranguejos e
outros expoentes da fauna aquática. Assim, mandou construir um original
engenho, que nada tinha a ver com as máquinas de banho de mar conhe-
cidas na Europa. Tratava-se de uma “espécie de banheira perfurada”16,
ou melhor, um “jamelão ou cocho de madeira, suspenso por meio de cor-
rentes de ferro, ligadas a turcos do mesmo metal”,17 por meio do qual o
13 – NORTON, Luiz. A Corte de Portugal no Brasil, p. 132; MONTEIRO, Tobias. Histó-
ria do Império: a elaboração da Independência, p. 84.
14 – NORTON, Luiz. Op. cit., pp. 132-135; MONTEIRO, Tobias. Op. cit., p. 91.
15 – PEREIRA, Antonio Batista. Figuras do Império e outros ensaios, p. 336.
16 – GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio, p. 214.
17 – MONTEIRO, Tobias. Op. cit., p. 91.

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A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

banhista era mergulhado no mar e em seguida içado de volta. Os turcos


de ferro, que sustentavam as correntes, eram “colocados além da linha
onde vinham rebentar as ondas sobre a praia”.18 As narrativas a respeito
não descreveram com detalhes o funcionamento desse mecanismo, nem
restaram vestígios arqueológicos que ajudem a esclarecê-lo. A despeito
disso, ou talvez por isso mesmo, a historiografia tomou gosto pelo episó-
dio, que foi incluído no anedotário de João VI e se transformou na lenda
segundo a qual ele teria usado os banhos para tratar as próprias mordidas
de carrapato.19

O herdeiro de João VI também conheceu os banhos de mar no Rio de
Janeiro, mas por motivos diversos. Enquanto o pai fazia uso da hidrote-
rapia por prescrição médica, o filho, sem se queixar de nenhuma moléstia
que justificasse uma temporada de cura, encontrava nas praias oportuni-
dade de recreação. Nem sempre se tratava, porém, de um prazer elegante,
como aquele sugerido pela atitude festiva da duquesa de Berry, em Die-
ppe. Chegado ao Brasil com 9 anos de idade, Pedro recebeu uma educa-
ção formal precária e foi criado mais ou menos livremente, na rua, entre
escravos e gente do povo. Adolescente, gostava de trabalhos braçais e se
ocupava voluntariamente com tarefas de cavalariça, entre as quais banhar
os animais na praia. Vivia mais tempo nos domínios da residência de São
Cristóvão e da fazenda de Santa Cruz, mas também conheceu Paquetá,
ilha do Governador e Praia Grande, em Niterói.20 Já imperador, Pedro I
frequentou, pelo menos algumas vezes, os banhos de mar em Botafogo,
onde brincava com as crianças e recebia o beija-mão dos banhistas. Nessa
praia, por iniciativa sua, foi construída uma edificação destinada à troca
de roupa dos frequentadores. Também usava uma chácara no Catete para
tomar banhos na praia do Flamengo.21
18 – EDMUNDO, Luiz. Op. cit., v. 1, p. 131.
19 – RENAULT, Delso. O Rio antigo nos anúncios de jornais 1808-1850, p. 26; GER-
SON, Brasil. Op. cit., p. 214.
20 – SOUSA, Octavio Tarquínio de. A vida de D. Pedro I, v. 1, pp. 77-81; LUSTOSA,
Isabel. D. Pedro I.
21 – DUNLOP, Charles Julius. Rio Antigo, v. 1, p. 33; EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e
seus arredores em 1824, p. 152.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016 153


Paulo Francisco Donadio Baptista

Esses banhos de mar de Pedro I, ou não foram muito frequentes, ou


não tiveram importância na relação do Imperador com os súditos, pois
não mereceram muita atenção de seus biógrafos. Os relatos mais ricos
de sua presença em Botafogo e no Flamengo foram deixados por dois
militares alemães, Ernst Ebel e Theodor Bösche, que atuaram como mer-
cenários, no Brasil, nos anos conturbados que se seguiram à proclamação
da Independência. Segundo o testemunho desses contemporâneos, o pri-
meiro imperador brasileiro costumava sair “a passeio, muito à vontade,
pela praia in puris naturalibus”.22 Contaram eles também que, certa vez,
durante uma recepção na residência do cônsul-geral da Prússia, no Catete,
aproximou-se da janela um grupo de senhoras “quando de repente, no
terraço do prédio fronteiro, apareceu o soberano do Brasil, completamen-
te nu, como um jovem Deus (...). As senhoras fugiram espavoridas... D.
Pedro, porém, soltou estrepitosa gargalhada, atirando-se em seguida ao
mar”.23

Essas narrativas talvez pertençam ao vasto rol de lendas que se pro-


duziu em torno do líder da Independência do Brasil. Sobretudo na obser-
vação de alguns estrangeiros, Pedro I foi apresentado como um homem
destituído de noções de pudor e de distinção social, capaz de se sentar à
mesa de refeições junto aos peões, quando lhe aprouvesse, ou de evacuar
na frente de uma tropa de soldados, certa ocasião em que se sentiu desar-
ranjado.24 Possivelmente, esses viajantes europeus, ao publicarem suas
aventuras em seus países de origem, procuravam fazer sensação junto a
um público puritano. Mas seus relatos a respeito da nudez balneária de
Pedro I nada tinham de inverossímeis.

Ao contrário do que sugere a anedota do rei nu,25 não havia nem lei
nem costume, no tempo das monarquias fortes, que impedisse um sobera-

22 – EBEL, Ernst. Op. cit., p. 152.


23 – Idem. Ver também: REZZUTTI, Paulo. D Pedro, a história não contada, p. 16.
24 – SOUSA, Octavio Tarquínio de. Op. cit., v. 1, p. 172; TAUNAY, Afonso de E. O Rio
de Janeiro de antanho: impressões de viajantes estrangeiros, pp. 151-152. Pedro I tam-
bém ganhou fama de boêmio nudista, mas longe das praias de banho: FREYRE, Gilberto.
Ordem e Progresso, p. LXXVII.
25 – “A roupa nova do imperador”, conto publicado por Hans Christian Andersen em

154 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016


A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

no de se desnudar perante o público. Nos séculos XVII e XVIII, reis e rai-


nhas de França ficavam nus diante de serviçais, de outros integrantes da
sua família e dos aristocratas que tinham o privilégio de assistir à toalete
real, no ritual do quarto, destinado a reafirmar as diferenças hierárquicas
da sociedade de corte.26 Fora dos palácios, a céu aberto, os soberanos
também estavam autorizados a se desnudar, como o fez Jorge III, num
cerimonial na praia de Scarborough.27 Por que razão o imperador Pedro I
se sentiria constrangido em se despir na praia de Botafogo?

Diferentemente do rei da Inglaterra, porém, em suas abluções nas


praias de Botafogo e do Flamengo, Pedro I não participava de nenhuma
cerimônia. Na ausência de uma justificativa ritual para o seu procedimen-
to, cabia a reação escandalizada das convidadas do diplomata alemão ao
se depararem com a inesperada nudez imperial. Desde o fim do século
anterior, uma moral pudica se instalava nas praias de banho europeias e a
liberdade dos homens para andarem nus estava sob ataque.

Possivelmente, Pedro estava consciente do privilégio dos monarcas


com respeito à nudez pública do corpo, quando se riu do susto tomado
por aquelas senhoras à janela do consulado prussiano. Mas certamente
não havia conhecido a desenvoltura nudista no convívio com a Corte ins-
talada no Rio de Janeiro. A juventude passada na companhia da gente
simples que ocupava as ruas da cidade colonial pode lhe ter ensinado essa
atitude da nudez balneária. Pois não era incomum nessa época, tanto nas
praias cariocas como nas praias da Inglaterra e da Europa continental, a
presença de homens nus ou seminus, pertencentes à localidade, traba-
lhando, banhando-se ou descansando.28 No Rio de Janeiro, incluíam-se
nesse extrato social os escravos e os libertos que lavavam cavalos, des-
pejavam lixo ou simplesmente folgavam nas praias centrais da cidade. O
espaço público não era destinado às mulheres que não fossem escravas,
1837. ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen.
26 – ELIAS, Norbert. Op. cit., pp. 58-62; LADURIE, Emmanuel Le Roy. Saint-Simon ou
o sistema da Corte, pp. 54-55.
27 – LENCEK, Lena e BOSKER, Gideon. Op. cit., p. 84.
28 – TRAVIS, John K. Continuity and change in english sea-bathing, 1730-1900: a case
of swimming with the tide; CORBIN, Alain. Op. cit., pp. 96-97.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016 155


Paulo Francisco Donadio Baptista

trabalhadoras ou prostitutas. Se ocorreu, de fato, o nudismo praiano de


Pedro I nada tinha de muito espantoso aos olhos da maioria dos cariocas.

Pedro II teve uma educação completamente diferente da do pai. Lon-
ge da liberdade das ruas, recebeu de seus preceptores uma formação eru-
dita, apropriada a um futuro estadista. Coroado aos 14 anos de idade, a
partir de então já não teria oportunidade de entrar em contato com o povo
fora da vidraça social que sua posição hierárquica impunha.

A primeira referência à presença de Pedro II numa praia de banhos


ocorreu na imprensa em abril de 1855, quando sua esposa, Tereza Cris-
tina, precisou fazer uso dos banhos de mar por prescrição dos seus mé-
dicos. Para isso, suas majestades se hospedaram por algumas semanas
na chácara do marquês de Abrantes, na praia de Botafogo. O Imperador
já havia conhecido o lugar pelo menos três anos antes, quando assistiu a
uma das regatas organizadas pelo mesmo marquês. Agora, para facilitar
o trânsito da carruagem imperial, foi providenciado pela municipalidade
o melhoramento do Caminho Novo de Botafogo (hoje rua Marquês de
Abrantes).29

Novas referências aos banhos de mar tomados pelos imperadores


do Brasil reapareceram em 1877. Dessa data até pelo menos 1883, Pe-
dro e Tereza Cristina fizeram uso regular de banhos de mar terapêuticos.
Mas agora preferiam se manter nos domínios domésticos que ligavam a
residência real de São Cristóvão ao balneário da ponta do Caju.30 Costu-
mavam sair de madrugada, desacompanhados dos camaristas e assistidos

29 – “Notícias diversas”. In Correio Mercantil, 8 de abril de 1855, p. 1; “Ilma. Câmara


Municipal”. In Diário do Rio de Janeiro, 16 de julho de 1855, p. 1; FLETCHER, James
Cooley e KIDDER, Daniel Parish. O Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo.
v. 1, pp. 282-283; LYRA, Heitor. História de D. Pedro II – Ascensão, p. 370; GERSON,
Brasil. Op. cit., pp. 374-375; RENAULT, Delso. Rio de Janeiro: a vida da cidade refletida
nos jornais 1850-1870, pp. 62-63.
30 – “Folhetim da Gazeta de Notícias”. In Gazeta de Notícias, 15 de novembro de 1877,
p. 1; “Tópicos do dia”. In A Folha Nova, 12 de novembro de 1883, p. 1.

156 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016


A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

apenas por alguns cadetes, praças do Exército e um capitão que os seguia


até o mar.31

Por essa época, a filha mais velha do casal, a princesa Isabel, também
fazia uso dos banhos de mar, como parte de um tratamento médico, em
resposta ao seu “temperamento linfático (...), a um certo grau de cloro-
-anemia que se notava em seu hábito externo, bem como aos sintomas
evidentes de um vício herpético”.32 Não era evidente a eficácia dessa tera-
pêutica, mas Sua Alteza insistiu nos banhos de mar. De 1886 a 1889, sem-
pre na primavera, Isabel instalou-se no seu palácio da rua da Guanabara,
em Laranjeiras, de onde saía, no final da tarde, para o banho da praia do
Flamengo, em companhia do esposo, o conde d’ Eu.33

Ao contrário do que se poderia esperar de uma realeza, todos esses


banhos de mar da família imperial brasileira foram muito discretos. Impe-
rador e imperatriz praticamente se escondiam na ponta do Caju. Princesa
Isabel, herdeira presuntiva do trono, personagem de importância política
depois da assinatura da lei do Ventre Livre, preferia o horário da tarde,
menos frequentado, para fazer a sua talassoterapia.34 Esses banhos, apesar
de públicos, não se ofereciam como oportunidade para os súditos verem e
cumprimentarem os soberanos. Assim, rara exceção constituiu o episódio
das baleias na praia de Copacabana, que, de resto, nada teve a ver com
banhos de mar propriamente ditos.35

Em agosto de 1858, circulou no Rio de Janeiro a notícia de que duas


imensas baleias tinham encalhado na praia da Copacabana. O acesso a
essa parte do litoral oceânico, todo cercado de montanhas, estava faci-
litado depois da abertura, três anos antes, da estrada do Barroso (atual

31 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador, p. 219.


32 – “Palestra médica”. In O Progresso Médico, 1877, p. 230.
33 – “Ao High-Life”. In O Paiz, 15 de abril de 1886, p. 4; Gazeta da Tarde, 13 de outubro
de 1887, p. 2; “Corte”. In Diário do Comércio, 11 de setembro de 1889, p. 1.
34 – “Ao High-Life”. In O Paiz, 15 de abril de 1886, p. 4.
35 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., p. 321; RENAULT, Delso. Rio de Janeiro: a
vida da cidade refletida nos jornais 1850-1870, p. 156; GERSON, Brasil. Op. cit., pp.
413; “Publicações a pedido - Copacabana - A mão de Deus”. In Diário do Rio de Janeiro,
2 de setembro de 1858, p. 3.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016 157


Paulo Francisco Donadio Baptista

ladeira dos Tabajaras), que, escalando o morro de São João, ligava o final
da rua Real Grandeza, em Botafogo, à primeira via traçada em Copaca-
bana, a rua do Barroso (atual rua Siqueira Campos). Agora, era possível
alcançar o lugar por meio de veículos, atenuando-se o sacrifício dos pe-
regrinos que demandavam a Igrejinha de Nossa Senhora de Copacabana,
única edificação da localidade, além das cabanas de pescadores que a
rodeavam.36 Nessas condições, parte do povo carioca se animou a ir ver
as famosas baleias. E o jovem Imperador, acompanhado da esposa e das
duas filhinhas, também se colocou a caminho, na manhã de 22 de agosto.

Na ida como na volta, Pedro e companhia percorreram a pé uma boa


parte do caminho, ao lado de outros curiosos. Um observador estrangeiro
ficou surpreso ao ver “a família imperial passeando rodeada pelo povo e
conversando com a maior afabilidade com as pessoas de todas as clas-
ses, que disputavam entre si a fortuna de se chegar para aquelas augus-
tas personagens”.37 Como os soberanos não eram escoltados por nenhum
guarda, as pessoas podiam se aproximar sem dificuldade. “O povo con-
corria a oferecer às princesinhas ora uma flor, ora uma fruta, e desobstruía
o caminho de qualquer empecilho que pudesse molestá-las no passeio”.38
Foi um dia de festa inusitado, cheio de piqueniques, num lugar diferente,
só recentemente descoberto pela cidade. As baleias, motivo da romaria,
não compareceram, mas nem por isso aquela gente se sentiu frustrada.
Pois foi uma das raras vezes em que os cariocas puderam exercer o seu
papel de súditos, num teatro improvisado, fora de qualquer data da mo-
narquia.

O povo brasileiro habitava um reino um tanto distante do modelo


monárquico europeu que deveria inspirá-lo. Faltava à monarquia solitária
das Américas a vida de corte brilhante que caracterizava esse tipo de so-
ciedade. Faltava ao monarca tupiniquim a disposição para assumir o pa-
pel espetaculoso, grandioso, luxuoso, que o trono lhe exigia. Assim, aos
36 – GERSON, Brasil. Op. cit., pp. 412-413; BERGER, Eneida e Paulo Copacabana –
História dos Subúrbios, p. 48; Copacabana 1892-1992 – subsídios para a sua história,
pp. 36-37.
37 – “Notícias diversas”. In Correio Mercantil, 24 de agosto de 1858, p. 1
38 – Idem.

158 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016


A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

súditos restava se contentarem com a escassez e a pobreza das cerimônias


oficiais do Império.

No começo do reinado, o jovem imperador chegou a promover gran-


des festas, em comemoração aos casamentos de integrantes da família
real, como ocorria no tempo do seu avô. Mas esse ímpeto inicial se per-
deu e, em 1852, pelo encerramento dos trabalhos nas câmaras, foi realiza-
do o último grande baile oferecido pelo imperador. A partir daí, Pedro II
passou a frequentar os bailes do Cassino Fluminense.39 Terminada a guer-
ra do Paraguai, aboliu o uso da indumentária real, do cetro e da coroa, e
passou a vestir seu célebre jaquetão.40 Nas cerimônias de gala oficiais, no
paço da cidade, colocava uma farda de marechal de exército. Em 1872,
extinguiu a prática do beija-mão.41 Com essas atitudes, Pedro II simples-
mente havia descartado o uso de um aparato simbólico indispensável à
sustentação das monarquias de então.

Não era por acaso, mas pela defesa deliberada de um estilo de vida
e ao mesmo tempo de uma política de Estado, que o monarca brasileiro
desprezava as oportunidades de conferir à sua vida pessoal a espetacula-
ridade em que investiam os seus colegas europeus para bem governar. Os
banhos de mar dos Bragança, no Rio de Janeiro, eram de uma intimidade
essencialmente burguesa.

Esses banhos, de fato, não tinham muita importância para a família


imperial. Funcionavam apenas como procedimento terapêutico, usado
quando necessário, por determinação médica. Não se transformaram num
prazer, como aquele sugerido por Pedro I. O gosto de Pedro II pendia para
o lado oposto ao mar: a serra.

A partir de 1850, Petrópolis substituiu a fazenda de Santa Cruz como


lugar de veraneio dos imperadores. Na sua cidade, Pedro se sentia bem.
Com o tempo, começou a morar quatro a cinco meses por ano em seu pa-
lácio de verão. Petrópolis era uma cidade europeia, sem pobreza exposta
39 – CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II, pp. 90-94.
40 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., pp. 320-322.
41 – CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 94.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016 159


Paulo Francisco Donadio Baptista

nas ruas, onde aristocracia e diplomacia podiam fazer valer sua elegância.
Aí Pedro II passeava à vontade ao lado dos súditos, como naquele dia em
Copacabana.42

Ora, Petrópolis, cidade serrana, havia sido construída de modo a


proteger a monarquia das epidemias que começavam a grassar no Rio
de Janeiro, cidade portuária, na estação do calor. A altitude e o clima
ameno prometiam saúde, no receituário da mesma medicina neo-hipocrá-
tica que prescrevia banhos de mar. Prometiam refrigério para a canícula,
igualmente procurado nas praias pelos banhistas. Petrópolis atraía a sua
população sazonal precisamente no verão, estação tradicionalmente con-
sagrada aos banhos de mar. Assim, ao carregar consigo o séquito da Corte
para a cidade serrana, todo verão, Pedro II esvaziava o Rio de Janeiro
e afastava a aristocracia das praias. Esse divórcio se acentuou nos anos
1880, quando, por um lado, a melhoria dos transportes abreviou a subida
para a serra e, por outro, o Boqueirão do Passeio assistiu ao aparecimento
da mania dos banhos de mar.

As praias de banho do Rio de Janeiro não se estabeleceram como


programa elegante do mesmo modo que nas praias europeias, onde a
aristocracia moldou o gosto praiano, antes que a burguesia dele se apro-
priasse. Como nas praias de banho da Europa, pescadores, marinheiros,
lavadores de animais e outros trabalhadores locais, além de toda sorte de
desocupados, foram expulsos desses trechos do litoral por uma crescente
massa de banhistas. Mas quem desencadeou esse processo não foram os
maiorais da Corte. Quase não houve, na crônica balneária carioca do sé-
culo XIX, menção a nomes de famílias da alta aristocracia. A ocupação
das praias centrais do Rio de Janeiro, nas três últimas décadas da centú-
ria, ocorreu por iniciativa da burguesia local, em que se incluíam desde
comerciantes endinheirados até empregados do comércio, pequenos fun-
cionários públicos e outros remediados; enfim, uma variedade de pessoas
que nem compunham a vasta pobreza carioca nem acompanhavam a no-

42 – SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. cit., pp. 231-244; CARVALHO, José Murilo de. Op.
cit., p. 95; KOSERITZ, Carl Von. Imagens do Brasil, pp. 61-68; RENAULT, Delso. O Rio
antigo nos anúncios de jornais 1808-1850, p. 236.

160 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016


A monarquia e os banhos de mar: o caso brasileiro

breza honorífica em sua vilegiatura petropolitana. Houve, assim, em com-


paração com o movimento praiano europeu, um grande retardo na adesão
dos cariocas à voga romântica dos banhos de mar e, em alguma medida,
contribuiu para isso o exemplo tímido fornecido pela realeza brasileira,
principalmente no Segundo Reinado, que durou quase meio século.

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Texto apresentado em março/2016. Aprovado para publicação em


junho/2016.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):147-164, jul./set. 2016 163


165

UM REPUBLICANO EM PLENA MONARQUIA.


A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS DE
RAMIZ GALVÃO NO IHGB
A REPUBLICAN IN THE MIDST OF THE MONARCHY:
CONSTRUCTING THE MEMORIES OF RAMIZ GALVÃO IN IHGB
Ana Paula Sampaio Caldeira1

Resumo: Abstract:
Esse artigo insere-se em uma pesquisa maior, This article is part of a larger research focused
centrada no estudo de um dos membros mais on the study of one of the most influential mem-
influentes do Instituto Histórico e Geográfico bers of the Brazilian historical and Geographi-
Brasileiro na passagem do Império para a Repú- cal Institute in the transition period from empire
blica: Benjamin Franklin Ramiz Galvão. Aceito to republic, namely Benjamin Franklin Ramiz
como membro do IHGB em 1872, Galvão per- Galvão. Accepted as a member of the IHGB in
maneceu 66 anos dentro do Instituto, mantendo- 1872, Galvão served actively at the Institute for
-se bastante atuante em boa parte desse período. 66 years. Together with Count of Afonso Celso
Compôs, junto com o Conde de Afonso Celso e and Max Fleiüss, he participated in the so-
Max Fleiüss, a chamada “trindade do Silogeu”, called “Trinity of the Silogeu”, a sort of funda-
uma espécie de núcleo fundamental, responsá- mental nucleus responsible for conducting the
vel pela condução dos trabalhos dentro da insti- work within the institution He also held posi-
tuição, além de ter ocupado cargos em diversas tions in various commissions, directed the IHGB
comissões, dirigido a Revista do IHGB e assu- Magazine and assumed the role of perpetual
mido o papel de orador perpétuo da agremiação. speaker of the association. He was, therefore,
Era, portanto, um especialista em memória: a specialist in memory, not only because of his
não só porque se dedicava, como acadêmico, à devotion as an academic to the construction of
construção da memória nacional, como também the national memory, but also because of his
pelo empenho na elaboração da sua memória e commitment to piecing together his memory
de seus pares. O tema da memória e, de maneira and that of his peers. Memory and, more specifi-
mais específica, o trabalho de construção me- cally, the memory construction work he carried
morialística de Ramiz Galvão dentro do IHGB out within the IHGB is the main object of study
é justamente o nosso objeto de estudo neste arti- in this article. We will try to analyze the process
go. Buscaremos analisar o processo de “enqua- of “framing” Ramiz Galvão´s memory within
dramento” da memória de Ramiz Galvão dentro the Institute, highlighting the creation of his im-
do Instituto, evidenciando a constituição da sua age as a legitimate republican intellectual. For
imagem como um legítimo intelectual republi- this, we will focus chiefly on some of the main
cano. Para isso, selecionamos, prioritariamente, homages bestowed on him by the IHGB between
algumas das principais homenagens feitas pelo 1918 and 1946
IHGB ao acadêmico entre 1918 e 1946.
Palavras-chave: Ramiz Galvão; Instituto His- Keywords: Ramiz Galvão; Brazilian Historical
tórico e Geográfico Brasileiro; Memória; Bi- and Geographical Institute; memory; National
blioteca Nacional. Library.

1 –1 Doutora em História pelo CPDOC/FGV. Professora Adjunta A do Departamento de


História da UFMG. E-mail: anapaula.sampaiocaldeira@gmail.com

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Ana Paula Sampaio Caldeira

Se há algo que efetivamente se pode afirmar sobre Benjamin Frank-


lin Ramiz Galvão é que ele fez parte do grupo de intelectuais longevos.
Em 1938, quando morreu, era um dos membros mais velhos do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), tanto no que se refere à idade –
pois viveu 92 anos – quanto ao tempo de permanência dentro da agremia-
ção: ao todo, 66 anos. Como era de se esperar, durante esse período, pôde
acompanhar de perto as diversas mudanças pelas quais passou o Instituto,
sendo a principal delas a necessidade de se adaptar às transformações
políticas do país. Criado durante a Monarquia, e essencialmente ligado à
tarefa de consolidação do Estado Imperial, o IHGB sofreu alguns reveses
quando da instauração do novo regime, mas conseguiu se afirmar como
legítimo e útil à ordem republicana. Não seria exagero dizer que Ramiz
foi um agente dos mais importantes, estando à frente dos diversos ajustes
e mudanças vividos pela agremiação na passagem de um regime a outro.

A trajetória desse intelectual começa justamente no Império e pro-


fundamente vinculada à figura do imperador D. Pedro II. Por seu inter-
médio, tornou-se diretor da Biblioteca Nacional (BN) em 1870, o que
representou um momento central em sua trajetória, na medida em que
alcançou notoriedade entre seus pares pelo tipo de trabalho intelectual
com o qual se ocupou, caracterizado não exatamente pela produção de
uma obra interpretativa, mas pelo trabalho cotidiano com as fontes, orga-
nização de eventos e viabilização de projetos editoriais.

Aclamado na BN, durante a Monarquia, é no IHGB que ele efetiva-


mente se consagrará como historiador na República e da República. Ten-
do entrado para o Instituto em 1872, Ramiz ocupou ali uma posição de
destaque, especialmente a partir de 1909, quando o Barão do Rio Branco
assumiu a presidência da instituição, sendo seguido por Afonso Celso,
outro intelectual muito próximo a Ramiz. A partir de então, não só as-
cendeu no cursus honorum da Casa, como recebeu diversas homenagens
em sessões especiais, num período em que o IHGB buscava dissociar-se
da forte marca de instituição monárquica, adaptando-se ao novo regime.
Acreditamos que esses momentos de celebração são particularmente in-
teressantes para se pensar a dinâmica de construção de sua identidade in-

166 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):165-196, jul./set. 2016


Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

telectual diante dessas mudanças políticas e institucionais. Afinal, nessas


ocasiões, a trajetória de vida, entendida como passado, é administrada e
domesticada, sendo conferida a ela alguns significados, que serão repeti-
dos ou ganharão outras nuanças em discursos posteriores.

Nesse artigo, analisaremos o trabalho de construção memorial de


Ramiz Galvão dentro do IHGB, buscando acompanhar o processo de en-
quadramento de sua memória no tempo.2 Para isso, selecionamos, prio-
ritariamente, algumas das principais homenagens feitas pelo IHGB ao
acadêmico: a comemoração de seu jubileu científico; a celebração dos
50 anos de Galvão no IHGB; as festividades pelo seu aniversário de 90
anos; os necrológios compostos quando de sua morte e a cerimônia pelo
seu centenário natalício.

SAI O IMPÉRIO, ENTRA A REPÚBLICA


Após doze anos dirigindo a Biblioteca Nacional, Ramiz Galvão dei-
xou a instituição logo após o término da Exposição de História e Geogra-
fia do Brasil, um dos eventos mais significativos realizados por ele. A par-
tir de então, passou a exercer a função de tutor dos netos de D. Pedro. Seu
magistério durou até o momento da Proclamação da República, quando
a Família Imperial teve de sair do Brasil. É interessante notar como a
transição de um regime político a outro acabou servindo como uma espé-
cie de “calcanhar de aquiles” na trajetória de Galvão. Isso porque todos
aqueles que se ocuparam desse intelectual acabaram, em algum momento
de suas narrativas, tendo de buscar respostas para a questão: afinal, teria
sido Ramiz monarquista ou republicano? A sua relação com a Monarquia
era inegável, o que pode ser comprovado pela própria trajetória desse
intelectual. Mas isso fazia dele um adepto do regime ou mesmo um “re-
publicano de última hora”?

2 –1 Utilizamos aqui a noção de “enquadramento da memória” tal como é utilizada por


Michel Pollak quando se refere ao esforço empreendido no sentido de interpretar o pas-
sado e controlar uma determinada versão acerca dele. No caso de Ramiz Galvão, seu
passado foi interpretado por pessoas autorizadas (e por ele mesmo) que produziram um
discurso igualmente autorizado e com grande poder de difusão.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):165-196, jul./set. 2016 167


Ana Paula Sampaio Caldeira

Em relação ao seu posicionamento diante das transformações políti-


cas de sua época, não se pode menosprezar o poder que Ramiz, que con-
vivia diariamente não só com a Família Imperial, mas com outros inte-
lectuais, tinha de fazer diagnósticos. Certamente, na posição de preceptor
dos príncipes, não cabia a ele engajar-se no apoio a um novo regime. Mas
era evidente à época que a Monarquia, mais cedo ou mais tarde, ruiria.
E, quando a previsão se confirmou, a República não pôde prescindir da
aproximação com aqueles que ocupavam uma posição de destaque no
campo político/ intelectual. Formuladores de projetos que ultrapassavam
qualquer regime político, homens como o Barão do Rio Branco, Joaquim
Nabuco, Conde de Afonso Celso e Ramiz Galvão tinham experiência su-
ficiente para circular de um regime a outro, oferecendo e sendo chamados
a oferecer seu capital cultural.

Assim, após o 15 de novembro, Ramiz, como tantos outros homens


de sua época e de sua estatura, conseguiu um cargo no novo regime. Foi
nomeado, por intermédio de Benjamin Constant, diretor de Instrução Pú-
blica.3 Ou seja, foi escolhido para presidir justamente um locus do poder
a que se atribuía a missão de “educar” os jovens cidadãos republicanos.
Aliás suas relações com o novo regime sempre se fizeram no campo da
educação e cultura. Ainda sob a República, exerceu as funções de vice-
-reitor do Conselho de Instrução Superior, chefe da Instrução Municipal
do Rio de Janeiro,4 conselheiro da Instrução do Distrito Federal e Reitor
da Universidade do Rio de Janeiro.5 Também nessa época, teve forte atua-
ção no IHGB, como veremos. Por ora, interessa-nos destacar a trajetória
de Galvão nesse momento de passagem de um regime político a outro,
o que fez adaptando-se bem às mudanças, apesar de alguns percalços. 6
3 – Revista do IHGB, v.171, pp. 413-415, 1936.
4 – GALVÃO, Ramiz. Necrológios de.... R.IHGB, 1932, v. 166, p. 749.
5 – A Universidade do Rio de Janeiro foi criada em 1920 a partir da junção da Faculdade
de Medicina, da Faculdade de Direito e da Escola Politécnica, sem que, no entanto, hou-
vesse uma integração maior entre elas. Em 1937, foi reorganizada e recebeu o nome de
Universidade do Brasil. Em 1965, passou a se chamar Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro. Ramiz foi reitor da instituição entre 1920 e 1925 (sobre o assunto, ver os trabalhos
de Maria de Lourdes Albuquerque Favero).
6 – Referimo-nos aqui ao envolvimento de seu cunhado, o almirante Luiz Felipe Sal-
danha da Gama, no episódio da Revolta da Armada, o que obrigou Ramiz a se exilar na
cidade de Campos entre 1893 e 1894.

168 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):165-196, jul./set. 2016


Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

Ramiz vivenciou, ainda na Monarquia e como diretor da Biblioteca


Nacional, um conjunto de mudanças que alteraram a feição do país; trans-
formações que acabaram por desembocar no golpe de 1889. Ideias aboli-
cionistas e republicanas mobilizavam os intelectuais e eram debatidas em
ambientes frequentados pelo bibliotecário, como saraus e encontros em
espaços como a Livraria Garnier, centro de sociabilidade da época.7 Jun-
tamente com essas novas ideias, consolidava-se um ideal meritocrático,
mais forte no final do Império e que irá se fortalecer ao longo da Repú-
blica. Isto significa dizer que, já nas últimas décadas do período impe-
rial, passou-se a valorizar o talento de alguns indivíduos, que ascendiam
socialmente não pela sua tradição familiar (como em um regime aristo-
crático), mas pelo seu mérito (como se pressupõe que aconteça em um
regime republicano). Foi este justamente o caso de Ramiz Galvão. Vindo
de família pobre, conquistou uma posição proeminente no meio letrado
brasileiro ainda nos tempos do Império, a partir de seus talentos e das
relações sociais estabelecidas. Chegou, inclusive, a receber do imperador
o título de barão, alcançando a nobilitação que lhe faltava.8 Ou seja, D.
Pedro II, de forma “absolutamente republicana”, teria sido capaz de ver
e valorizar o mérito de um jovem, dando a ele a oportunidade de estudar
gratuitamente no Colégio Pedro II e, depois, ocupar o cargo de diretor da
BN, selando assim seu futuro intelectual.

Ao longo de sua vida, Ramiz teve contato com intelectuais aberta-


mente partidários do republicanismo, como João Ribeiro, e compartilhava
com eles o ânimo e a crença no progresso da humanidade e na própria Re-
pública.9 Em escritos posteriores a 1889, Ramiz declarava publicamente
esta mesma ideia, e percebia o período imperial como uma passagem na
história do país para um sistema republicano de governo, considerado por
ele mais evoluído. Assim, no discurso que fez em 1921, na homenagem
7 –1 DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes Literários da República. História e identidade
nacional no Almanaque Brasileiro Garnier. Belo Horizonte: UFMG, 2005. pp. 24-5.
8 –1 Sobre a questão da nobilitação pelo mérito e da valorização de uma elite que se cons-
titui pela meritocracia, ver: CATROGA, Fernando. Nação, Mito e Rito. Religião civil e
comemoracionismo. Fortaleza: Museu do Ceará, 2005.
9 –1 HANSEN, Patrícia Santos. Feições e Fisionomia. A história do Brasil de João Ribei-
ro. Rio de Janeiro: Access, 2000. p. 25.

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Ana Paula Sampaio Caldeira

aos membros da Família Imperial, afirmou que “pela história, a República


tinha de predominar um dia no torrão único da América, em que tremula-
va o pendão monárquico”.10 Evidentemente, trata-se de um discurso pro-
duzido décadas depois da proclamação da República, quando a hipótese
do retorno do regime monárquico era impossível. Foi nesse contexto que
Galvão, num exercício de seleção de memória, não quis deixar dúvidas
em relação às suas simpatias republicanas desde o início do novo regime,
até porque sabedor de que não haveria um terceiro reinado. A “evolução”
havia ocorrido. No esforço de dar sentido a um ponto nebuloso de seu
passado, ele se esforça para produzir a imagem de um leal republicano,
porém grato ao Imperador.

Mas, apesar de seu discurso abertamente partidário do regime repu-


blicano, as relações de Ramiz com a Família Imperial e a admiração e
dívida que nutria para com o Imperador, muitas vezes deixavam dúvidas
sobre a filiação política do letrado. Tal fato exigiu de seus biógrafos e
confrades (além do próprio Ramiz, é importante dizer) um pesado in-
vestimento na construção de sua imagem como “legítimo republicano”.
Teria sido justamente esse espírito republicano que o regime monárquico
e o próprio Pedro II puderam reconhecer e premiar. É justamente esse
investimento memorial que buscaremos analisar a seguir. Antes, no en-
tanto, vale a pena nos determos nas condições de entrada e na atuação de
Galvão no IHGB.

AS DUAS ENTRADAS NO IHGB


O texto “Apontamentos sobre a Ordem Beneditina em geral e em
particular sobre o mosteiro no Brasil” habilitou Ramiz Galvão a fazer
parte do círculo de acadêmicos do IHGB. Entretanto, não podemos des-
prezar a atenção que o então jovem diretor da Biblioteca Nacional rece-
beu de D. Pedro II, especialmente no início da sua carreira e como isso foi
importante para sua entrada na agremiação. Se, em 1870, Ramiz Galvão
fora chamado pelo monarca para dirigir aquela que deveria ser a principal
biblioteca do país, em 1872, recebeu mais uma ajuda imperial. De acordo
10 – Revista do IHGB, t. 90, v. 144, pp. 657-666, 1921. p. 661.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

com o próprio acadêmico, sua indicação para novo membro do IHGB


veio logo após um encontro casual com o Imperador, no qual este fora
informado por Galvão do envio de um exemplar de seus Apontamentos...
para apreciação do Instituto. O trabalho que, ao que tudo indicava, dormia
esquecido em algum lugar do IHGB, reapareceu e foi rápida e positiva-
mente avaliado, fazendo do então diretor da BN o mais novo integrante
da instituição.11

De acordo com Galvão, a sessão em que foi empossado contou com


a presença do Imperador e de figuras importantes da política e da inte-
lectualidade da época.12 Convém salientar que, nesse momento, Ramiz
penetrava numa rede de sociabilidade bastante intrincada e que perpas-
sava, além de alguns órgãos do Governo Imperial, diversas instituições
de saber. Dessa forma, fazer parte do Instituto Histórico não indicava so-
mente o reconhecimento de um trabalho historiográfico pela comunidade
acadêmica mais respeitada de historiadores. Significava também adentrar
num círculo bastante fechado, cujos membros atuavam em importantes
instituições do período imperial e onde era possível constituir novas e
promissoras relações sociais.

Embora tenha entrado no IHGB ainda durante a Monarquia, só é


possível observar uma atuação mais enfática sua na instituição durante o
período republicano, especialmente a partir de 1909. Nesse ano, ascendeu
à hierarquia da agremiação e voltou a participar de forma mais efetiva de
suas atividades, das quais esteve distante durante algumas décadas. Esse
período de ausência é referido em alguns discursos de seus pares. José
Carlos de Macedo Soares, por exemplo, na cerimônia de celebração do
centenário de Ramiz, em 1946, afirmou que ele compareceu ao Instituto
“no dia 12 de outubro de 1909, depois de um afastamento de 26 anos”.13
O Conde de Afonso Celso, em discurso proferido em 1912, por ocasião
da inauguração do retrato de Galvão, afirmou que ele “esteve bastante
11 – GALVÃO, Ramiz. Gratas reminiscências. R.IHGB, t. 75, v. 152, pp. 859-61, 1925.
12 – GALVÃO, Ramiz. Discurso de Benjamin Franklin Ramiz Galvão... R.IHGB, t. 92, v.
146, pp. 506-16, 1922 [publicado em 1926].
13 – SOARES, J.C de Macedo. Centenário de RG. R.IHGB, v. 191, p. 294, abril a junho
de 1946.

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Ana Paula Sampaio Caldeira

tempo afastado do nosso convívio, mas foi como Aquiles, recolhido à


sua tenda, de onde saiu em ocasião própria, para alcançar novas vitórias,
porventura superiores às antigas”.14 Max Fleiuss nos dá a entender que o
afastamento de Galvão se deveu a certo desacordo com a direção do Insti-
tuto, embora não explicite quem era, de fato, o foco do desentendimento:
Quando Rio Branco assumiu a presidência do Instituto, não vendo
entre os sócios a figura do eminente brasileiro, cometeu-nos a grata
incumbência de convidá-lo a tornar ao nosso convívio de que fazia
anos se arredara, devido a desinteligência com um dos antigos presi-
dentes.15

Esse período de afastamento coincide com os últimos anos da di-


reção do Visconde do Bom Retiro (1875-1886) e com as presidências
de Joaquim Norberto de Souza Silva (1886-1891), Olegário de Aquino e
Castro (1891-1906) e do Marquês de Paranaguá (1906-1907). Trata-se de
um momento crítico na história do IHGB, desestabilizado e até atacado,
o que tem efeitos na queda de produtividade dentro da agremiação e na
diminuição considerável de seus recursos financeiros.

Em um importante estudo sobre o IHGB durante a Primeira Repú-


blica e início do governo Vargas, Lucia Paschoal Guimarães mostrou as
dificuldades enfrentadas pela agremiação na última década do Império e
durante os primeiros governos republicanos.16 Profundamente ligado às
elites imperiais e à figura do próprio monarca, protetor do Instituto, no
início do período republicano, o IHGB não contou nem com a simpatia
da República, nem com apoios de quaisquer tipos. A instituição viveu
uma época de decadência que ameaçou, inclusive, a sua sobrevivência.17

A reabilitação se deu, ainda segundo Guimarães, após os dois gover-


nos militares, com a chegada das oligarquias ao poder. Aos poucos, com

14 – R.IHGB, t. 75, v. 126, pp. 418-21, 1912.


15 – FLEIUSS, Max. Ramiz Galvão. R.IHGB, v. 171, p. 314, 1936.
16 – GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da Escola Palatina ao Silogeu: Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2006. p.
22.
17 – Ibidem. p. 24.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

a estabilização do regime, as autoridades republicanas se aproximaram


da antiga academia, admitindo alguns favores e fornecendo auxílios que
serviram para reerguer a Casa. Nesse processo, as administrações do Ba-
rão do Rio Branco e do Conde de Afonso Celso marcam o soerguimento
da instituição. Ela passou, a partir de então, a viver outro momento de
grande atividade intelectual. Em seu estudo acerca do IHGB durante o
período republicano, Hugo Hruby procura matizar um pouco essa ideia,
que associa o soerguimento do IHGB com as presidências de Rio Branco
e Afonso Celso. Ele destaca como a ampliação do ritmo de trabalho no
interior da instituição já poderia ser percebida desde a gestão de Olegá-
rio Herculano de Aquino e Castro, entre 1891 e 1906.18 Porém, o mais
importante a destacar, como afirma Angela de Castro Gomes, é que a
reconstrução do Instituto e sua aproximação com o governo republicano
assinalam igualmente as novas demandas historiográficas trazidas pela
República e o interesse – de dupla face – entre o IHGB e o novo regime,
o que significava “a ‘invenção’ de uma tradição política republicana para
a história desse novo Brasil”.19

Dessa forma, o que queremos demostrar é que o distanciamento de


Ramiz Galvão em relação ao Instituto, ao que parece, coincidiu com um
período de declínio em relação ao papel intelectual desempenhado pela
agremiação, que precisou se ajustar a outro contexto político e cultural.
Assim, acreditamos que, tão fortemente marcado pelas relações próximas
com o regime monárquico, Galvão escolheu se distanciar do IHGB, num
autoexílio prudente. Por outro lado, sua volta se deu justamente quando a
agremiação tomava novo fôlego e as redes se reconfiguravam a partir da
nomeação do Barão do Rio Branco para sua presidência. Esse momento
marcou, não só a ascensão de Ramiz em sua hierarquia, como também
se constituiu quase como uma segunda entrada na instituição. Se ele foi
introduzido, em 1872, pelas mãos de Pedro II, voltava ao IHGB, então

18 – HRUBY, Hugo. O templo das Sagradas Escrituras: o Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro e a escrita da história do Brasil (1889-1912). História e Historiografia, n. 2,
março de 2009.
19 – GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Ar-
gvmentvm, 2009. pp. 30-1.

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Ana Paula Sampaio Caldeira

republicano, pelas mãos do ministro das Relações Exteriores, o Barão do


Rio Branco. Certamente, não era mais o jovem de 26 anos. Tornara-se
um intelectual respeitado pela sua atuação: uma referência em matéria de
ensino e trato com livros. Soube, a partir de então, fazer daquela Casa o
seu segundo e mais longo lugar de consagração. Seu novo lar, sua nova
Biblioteca Nacional.

Neste caso, é importante atentar para algumas datas. Se em agos-


to de 1909 Galvão foi elevado a sócio honorário, apenas alguns meses
depois – em novembro do mesmo ano – foi indicado por seus membros
como sócio benemérito, o que simbolizava, na época, o topo da carrei-
ra de associado.20 Não é casual, portanto, que tenha sido, a partir dessa
“segunda entrada”, que Ramiz passou a ocupar uma posição de relevo
na condução da agremiação, formando, juntamente com outros dois aca-
dêmicos, o Conde de Afonso Celso e Max Fleiuss, a chamada trindade
do Silogeu.21 Com eles, e com o Barão do Rio Branco, compôs a elite da
elite que conduziu a sociedade do discurso que escreveria a História do
Brasil Republicano.

Afonso Celso, Max Fleiüss e Ramiz Galvão permaneceram 25 anos


à frente do Instituto Histórico. Essa aliança, que começou a ser moldada
durante a administração de Rio Branco, só teve fim em 1938, ano em que
Ramiz Galvão e, logo depois, Afonso Celso faleceram, ambos grandes
nomes do “grupo católico” existente no interior do IHGB. O conde e
Fleiuss mantinham relações muito próximas desde antes da presidência
do primeiro. Nessa época, Afonso Celso ocupava o cargo de orador do
Instituto, enquanto Max Fleiuss havia sido designado, por proposta desse
amigo, secretário perpétuo da academia.22 Foi em 1912, com a morte de
Rio Branco e a presidência do Conde, que Ramiz Galvão ocupou seu
lugar, passando ao posto de orador oficial. Três anos depois, é elevado à
categoria de orador perpétuo, grau que, até aquele momento, não havia
sido concedido a nenhum integrante da Casa. De acordo com Lucia Gui-

20 – GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Op. cit. p. 52.


21 – A expressão é utilizada por Lucia Guimarães na obra já referida.
22 – GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Op. cit. p. 48.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

marães, a atuação da Trindade do Silogeu era orquestrada, de maneira


que em cada reunião tornava-se clara a sintonia entre seus membros.23
O nome de Ramiz era presença obrigatória em todas as comissões e em-
preendimentos realizados nesse período, como as comemorações do Cen-
tenário de Descobrimento do Brasil; os congressos de história de 1914,
1922 e 1931; a elaboração do Dicionário Histórico, Geográfico e Etno-
gráfico; a fundação da Academia de Altos estudos/ Faculdade de Filosofia
e Letras do IHGB; e as comemorações da transladação dos restos mortais
dos imperadores D. Pedro II e D. Teresa Cristina. Também nesse momen-
to, dirigiu a Revista do IHGB, à frente da qual permaneceu durante 26
anos, exatamente entre 1912 e 1938. Ou seja, ocupando o posto de orador
perpétuo, Ramiz atuava como um secretário “extraordinário”, no duplo
sentido da palavra. Ele falava e fazia as coisas acontecerem.

Idoso, prestigiado e reconhecido, foi então objeto de diversas home-


nagens prestadas pelos seus consócios. Estes, em seus discursos, acaba-
vam não apenas louvando as ações de Galvão dentro do Instituto, como
também cunhando sua figura como um modelo de intelectual, de intelec-
tual republicano.

RAMIZ GALVÃO COMO MODELO DE HISTORIADOR REPU-


BLICANO
Como costuma ocorrer, o trabalho de construção da memória de Ra-
miz teve início ainda em vida, mas ultrapassou o período de sua existên-
cia. Ele também se fez por diversos veículos, fossem eles as notícias e
perfis divulgados pela imprensa, os discursos produzidos pelos seus pares
do IHGB, ou ainda os textos autorreferenciais, isto é, pronunciamentos
do próprio Galvão. Esse processo, que culminou na seleção de eventos
e na atribuição de significados que condensassem a trajetória desse inte-
lectual, não aconteceu de forma linear. Tampouco os agentes envolvidos
possuíam os mesmos critérios, interesses e visões acerca do personagem
sobre o qual falavam. Com isso, queremos dizer que, ao analisar a memó-
ria construída de Ramiz Galvão, devíamos sempre utilizar o substantivo
23 – Ibidem. p. 61.

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no plural: memórias. Isso porque, dentro do Instituto Histórico, o que se


percebe é que, a cada vez que a figura de Ramiz era celebrada, sua me-
mória se atualizava, na medida em que algumas características atribuídas
a ele, anteriormente, permaneciam ou eram atenuadas, enquanto novas
emergiam nos discursos.

Para percebermos essas nuanças, optamos por analisar nossa docu-


mentação obedecendo à cronologia dos eventos comemorativos. Tal es-
tratégia nos permite perceber as seleções, as repetições e as adequações
existentes nesse processo de consagração da sua memória dentro da agre-
miação. Optamos também por trabalhar os discursos produzidos sobre
Ramiz, juntamente com os documentos autorreferenciais, com o objetivo
de estabelecer um diálogo entre eles. Isso porque acreditamos que, como
muitos outros intelectuais, havia o interesse do próprio Ramiz em cons-
truir uma imagem pública de si.

Como nos lembra Angela de Castro Gomes, é justamente com a


emergência do indivíduo moderno que a vida do homem “comum”, ou
seja, daqueles que não ocupavam os papéis sociais de reis ou grandes es-
tadistas, ganha importância, a ponto de se querer conhecê-la e perpetuá-la
para a posteridade. E esse interesse, em muitos casos, parte do próprio in-
divíduo que, numa tentativa de ordenar a sua existência fragmentada, pro-
cura dar a ela coerência por meio da escrita. Sendo assim, cartas, diários
íntimos e “memórias” podem ser compreendidos como textos autorrefe-
renciais e espaços privilegiados de uma escrita de si.24 Mas não só eles.
No caso em que estamos estudando, os discursos proferidos por Ramiz,
nas solenidades em que era homenageado, também podem nos dizer mui-
to sobre a forma como ele mesmo buscava se construir perante os outros
membros do Instituto e sobre a imagem que queria legar à posteridade.
Sendo assim, destacaremos de que forma ele foi acrescentando e solidi-
ficando elementos à sua imagem, que, posteriormente, foram retomados
pelos seus pares, integrando esse processo de enquadramento da sua pró-
pria memória. Certamente, todos esses textos podem ser encarados como
24 – GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro:
FGV, 2004.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

elaborações memorialísticas. Mas, considerando as ideias de Yves Clot


e seu debate com Pierre Bourdieu, convém destacar que o interessante
aqui é justamente analisar os sentidos que os sujeitos dão à sua própria
história e esse papel organizador próprio do exercício memorialístico.25
Mais ainda, nos interessa perceber como esse processo ocorre quando
tratamos de um intelectual com uma trajetória com as características da
de Ramiz Galvão.

O IHGB é um espaço privilegiado de construção memorialística. Ou


seja, é uma instituição especializada em produzir e enquadrar memórias.
Por um lado, porque foi construtora da memória de determinados eventos
e personagens da história “brasileira”, alguns deles selecionados em tem-
po cronológico em que sequer seria possível falar em “Brasil”. Por outro
lado, a memória de seus integrantes também sempre mereceu sua atenção
especial. Periodicamente, o IHGB realizava eventos dedicados à exalta-
ção de seus historiadores, em especial por meio dos elogios, um gênero
que, como lembra Roger Chartier, em conjunto com as anedotas, antolo-
gias e miscelâneas, “visava perpetuar a recordação de um determinado
autor (reunindo seus escritos ou ditos espirituosos) e, para além do retrato
individual, traçar a imagem ideal do homem de letras”.26 Esse gênero – o
elogio – também foi objeto de estudo de Jean-Claude Bonnet, que perce-
beu na substituição das orações fúnebres por esse tipo específico de texto,
a valorização do ideal republicano do mérito, em detrimento dos antigos
ideais aristocráticos, baseados no nascimento. É justamente no interior
das academias que o elogio vai se desenvolver, construindo a trajetória de
seus membros e tendo como tônica não o berço, mas as virtudes morais e
méritos intelectuais de seus sócios.27
25 – CLOT, Yves. La outra ilusion biografica. Historia y Fuente Oral, Barcelona, n. 2, pp.
5-9, 1989; BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes
e AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 2002. pp.183-191.
26 – CHARTIER, Roger. O homem de letras. In: VOVELLE, Michel. O Homem do Ilu-
minismo. Lisboa: Editorial Presença, 1997. p. 150.
27 – BONNET, Jean-Claude. Les morts illustres: oraison fúnebre, éloge académique,
nécrologie. In: NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire. La Nation. Paris: Gallimard,
1986, pp. 217-241 (v. 3) e _____. Naissance du Panthéon. Essai sur le culte des grands
hommes. Paris: Fayard, 1998.

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Ana Paula Sampaio Caldeira

Não por acaso, existia, no interior do próprio Instituto Histórico, a


figura do orador perpétuo. Um sócio muito especial, cujo trabalho era
celebrar a memória dos outros membros da agremiação. Como vimos,
Ramiz ocupou essa posição por longos anos. Era, portanto, duplamen-
te profissional em memória: não só porque se dedicava à construção da
memória nacional, como também pelo empenho na elaboração e enqua-
dramento da memória de seus pares, assim como da sua. Dessa forma,
ele era estratégico para construir uma imagem desejada de historiador,
de historiografia e do IHGB. Mas o próprio orador perpétuo, que tanto
homenageava, teria que ser também homenageado. No caso de Galvão,
a primeira grande cerimônia a ele dedicada aconteceu em 1918, quando
foi celebrado o seu jubileu científico: o aniversário de 50 anos de forma-
do pela Faculdade de Medicina.28 Naquele momento, ele era o segundo
consócio em antiguidade no IHGB, perdendo apenas para o Conde d´Eu,
que entrou para a instituição em 1864, mas que não era atuante. Ou seja,
Ramiz era o decano da agremiação.

Nessa sessão, a palavra inicial ficou por conta do presidente Afonso


Celso.29 O pronunciamento principal, no entanto, ficou por conta de outro
consócio, Basílio de Magalhães. Nesse tipo de celebração, os discursos,
de modo geral, seguem a proposta de fazer uma biografia extremamente
elogiosa do homenageado e Magalhães não fugiu à regra. No entanto, nos
interessa aqui destacar os elementos da personalidade e da vida de Galvão
enfatizados, no sentido de compor sua memória.

Em sua exposição, Magalhães destacou momentos fundamentais da


trajetória de Galvão, apontando, já na sua infância, algumas caracterís-
ticas que o acompanhariam durante toda a vida, em especial o notável
engenho e inclinação para os estudos. Para corroborar essa ideia, o ora-
dor contou pequenas histórias que rememoravam, por exemplo, desde o
prêmio que Galvão recebeu aos 8 anos pelo seu bom aproveitamento nos
estudos, culminando no excelente desempenho durante o curso de Medi-
cina, onde “recebeu as notas mais elevadas em todos os exames finais, até
28 – Jubileu Científico de Ramiz Galvão. R.IHGB, t. 83, v. 137, pp. 554-82, 1918.
29 – Ibidem. p. 557.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

1868”. Segundo Magalhães, desde muito cedo Ramiz teria se mostrado


inclinado aos estudos. No entanto, apesar da erudição e de todo o reco-
nhecimento conseguido ao longo da sua vida, a modéstia e a simplicidade
também sempre foram características do homenageado. Foi para enfatizar
essa ideia, que o próprio Basílio, durante a sua fala, optou por se referir a
Galvão apenas pelo nome, subtraindo-lhe tanto o título acadêmico (dou-
tor) como o nobiliárquico (barão), pois afirmava que “o mais modesto, o
mais acessível, o mais simples dos homens” preferia não utilizá-los.30 É
interessante observar que a imagem do homem erudito, interessado des-
de cedo pelos estudos, e modesto, não foi atribuída somente a Galvão.
Como mostrou o trabalho de Rebeca Gontijo, ela serviu para caracterizar
outros intelectuais, como Varnhagen e Capistrano de Abreu. Este último,
em especial, teve a simplicidade elevada a um alto nível, chegando a ser
associada, muitas vezes, à fama de desleixado.31 O que queremos destacar
aqui é que esses são elementos recorrentes na caracterização de um deter-
minado tipo de intelectual ligado ao saber enciclopédico, que englobava
o conhecimento da História, o domínio das línguas antigas e modernas,
além de uma profunda dedicação aos estudos. No caso de Ramiz, igual-
mente ao magistério, o que retomaremos adiante. Por ora, nos interessa
observar outros elementos que aparecem no discurso de Magalhães, pro-
nunciado no primeiro evento dedicado exclusivamente à celebração da
vida e da obra de Galvão no IHGB.

Além de se caracterizar pela modéstia, dedicação aos estudos e pela


erudição, Ramiz Galvão é representado na exposição de Magalhães muito
mais como um homem das letras do que das ciências, apesar da sua for-
mação em Medicina. Essa inclinação para as letras e a história é aponta-
da, inclusive, no discurso que o próprio Galvão fez como orador, na sua
formatura pela Faculdade de Medicina. Em seu pronunciamento, Basílio
de Magalhães chegou a reproduzir um bom trecho desse documento, com
o objetivo de evidenciar a maneira como Ramiz lidava com eventos e

30 – Ibidem. p. 560.
31 – GONTIJO, Rebeca. O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e
biografia. Anos 90, Porto Alegre, v. 14, n. 26, pp. 41-76, dez. 2007.

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Ana Paula Sampaio Caldeira

referências históricas para justificar e engrandecer a necessidade da Me-


dicina. É o caso da passagem abaixo:

Se o flagelo epidêmico ameaça as cidades, a sorte dos exércitos e das


esquadras, surge o apóstolo da vida, e com ele os sinais da vitória se
erguem nos topes e nas ameias. (...) Se a civilização moderna reclama
a regeneração de uma raça escravizada e a abolição, embora lenta e
refletida, do elemento servil que mantém a riqueza produtiva de um
país, o higienista aparece, e, no meio dos apaixonados argumentos que
escurecem a verdade, ele difunde a luz dos seus conhecimentos positi-
vos, dá, por assim dizer, o fio de Ariadne, que conduz os governos no
labirinto dos problemas tão graves! Se os sábios procuram o túmulo
de um herói para conferir-lhe honras singulares, – o anatomista desce
ao fundo dos sarcófagos e na face dos ossos carcomidos lê a história
de um passado secular que esclarece e confirma as tradições.32

Embora para os padrões acadêmicos atuais seja curioso vermos um


médico como diretor da Biblioteca Nacional, além de membro do IHGB,
instituições consagradas à história e às letras, isso não constituía novida-
de para os critérios intelectuais do século XIX e das primeiras décadas
do XX. Pelo contrário. Justamente por não haver uma formação especí-
fica e universitária do profissional da história, muitos dos homens que se
dedicavam a esse conhecimento possuíam uma educação diversificada e
bastante ampla. Assim, os quadros do IHGB eram compostos por advoga-
dos, médicos, religiosos e militares, muitos dos quais atuavam não só no
estudo da história, da geografia e da língua pátria, mas também escreven-
do em jornais e lecionando. Sendo assim, quando Basílio de Magalhães
afirmou que Galvão foi mais um homem das letras do que um homem das
ciências, entendemos que ele utiliza um artifício retórico, com o objetivo
de agregar ao personagem a imagem do historiador que se dedicava ao
estudo do que interessava para compreender seu país e seu povo: o conhe-
cimento da sua língua e de seu passado, o que, aliás, não se desvincula das
práticas de um médico.

32 – Ibidem. pp. 563-4.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

Cabe salientar, ainda, mais outros três elementos que integram a


imagem que Magalhães construiu de Ramiz Galvão. O primeiro deles
é o papel que o cargo de diretor da Biblioteca Nacional ganhou em sua
biografia. O orador aproveitou a celebração do jubileu para lembrar as
condições precárias em que se encontrava a BN quando Ramiz a assumiu,
atribuindo a ele, portanto, o mérito de grande organizador e renovador
daquela instituição:
O que era a BN só se pode exprimir por esta palavra – caos. Frei
Camilo, em seus 17 anos de direção, não se revelava administrador,
mas bibliófilo. Encerrado no seu gabinete a deletrear incunábulos, a
decifrar paleótipos, a arrolar cimélios e a amontoar diversas produ-
ções arqueológicas e etnográficas. Pouco se lhe dava da desordem que
reinava na repartição. Ramiz esteva apenas 12 anos à frente do meri-
tório estabelecimento, e esses 12 anos ele os pode proclamar como os
mais fecundos e gloriosos da sua vida pública. Ele é que na realidade
foi o beneditino pela paciência, pelo devotamento e, sobretudo, pela
vis organizatria que revelou ali.33

No discurso, são lembrados ainda os funcionários que o auxiliaram


na BN; a reforma de 1876, que dividiu a biblioteca em 4 seções e encetou
a elaboração dos catálogos e a criação dos Anais; além da Exposição de
1881. A partir daí, a passagem pela Biblioteca Nacional foi assumindo,
nos diversos discursos pronunciados sobre Galvão, um lugar capital em
sua biografia, constituindo-se como um acontecimento biográfico: uma
espécie de divisor de águas entre o anonimato e o reconhecimento inte-
lectual.

O segundo elemento importante refere-se à atuação de Ramiz como


professor, função que corrobora e reforça a sua característica de letrado.
Além de afirmar que o homenageado possuía “comprovada vocação para
a nobre carreira magisterial”, ele lembrou suas passagens como professor
de zoologia e botânica na Faculdade de Medicina, de grego e retórica no
Colégio Pedro II e, já na República, de inspetor-geral da Instrução Públi-
ca Primária e Secundária. O orador chega ainda a comentar que a exclu-
são da cadeira de grego da lista dos preparatórios oficiais se deveu ao fato
33 – Ibidem. p. 563. A expressão encontra-se grifada no original.

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de o governo ter receado que “vindo nos faltar Ramiz Galvão, ninguém
mais soubesse e pudesse ensinar [essa língua] no Brasil”.34

Por fim, o terceiro elemento na caracterização que Basílio de Maga-


lhães faz de Ramiz aparece logo ao final do discurso, como um fechamen-
to. Ao terminar o seu depoimento enfatizando que o homenageado foi e
era um homem de “assombrosa capacidade de trabalho” e “profundamen-
te voltado para as letras”, Magalhães contou uma última historieta, envol-
vendo ninguém mais ninguém menos que o mais reconhecido historiador
do IHGB à época:
Encarregado pelo meu querido amigo que tão superiormente dirige os
destinos do Instituto, o Sr. Conde de Afonso Celso, de declarar a Ca-
pistrano de Abreu que a colaboração deste naquele vultuoso trabalho
[a comissão do Dicionário Histórico e Geográfico do Brasil] era por
ele e por todos nós reputada indispensável – foi me logo perguntando
o nosso maior historiador a quem é que teríamos por chefe em tal
empreendimento. E, apenas lhe declinei o nome de Ramiz Galvão,
não exitou Capistrano em prometer-nos o seu relevante auxílio, pro-
clamando que quem teve a sabedoria e a ponderação precisas para
o Catálogo da Exposição de História do Brasil, agora, mais do que
nunca, as houvera de ter para a obra titânica do Dicionário Histórico
e Geográfico do Brasil. Vós todos sabeis quanto vale em tal caso o
parecer de Capistrano de Abreu, cuja rude justiça brota espontânea de
um caráter sem jaça e de uma competência inigualável.35

Como se vê, no discurso de Basílio de Magalhães, Ramiz Galvão


aparece não só como um grande erudito, cuja vocação para o saber e
as letras se mostrava desde a mais tenra idade, mas também como um
homem simples e modesto. Na sua fala, o orador dá destaque não apenas
à passagem do homenageado pela Biblioteca Nacional, mas também à
sua atuação como professor. Finaliza, enaltecendo outras qualidades de
Ramiz, reconhecidas, inclusive, pelo grande historiador Capistrano de
Abreu: a de responsável pela organização, coordenação e gestão de gran-

34 – Ibidem. p. 569.
35 – Ibidem. p. 573. Os grifos constam no original.

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des empreendimentos culturais. Erudito, professor e gestor; essas são as


faces de Ramiz para Magalhães.

Mas, o que teria Ramiz a dizer sobre si mesmo em 1918? Que ele-
mentos de sua trajetória ressaltaria naquela época? Após Basílio de Ma-
galhães, foi a vez do próprio Ramiz Galvão subir à tribuna. Seu discurso é
extremamente “pedagógico”, pois ali expôs publicamente a sua trajetória.
Para ele, sua vida poderia ser dividida em três fases. A primeira com-
preenderia o período em que ministrava aulas e dirigia a BN, ao momento
inicial de sua carreira, quando emergiu como o jovem e promissor diretor
da Biblioteca Nacional. A segunda fase corresponderia à época em que
cuidou da educação dos príncipes, de 1882 a 1889. E, por fim, a terceira
estaria ligada à sua volta ao ensino, dessa vez no cargo de diretor da Ins-
trução Pública. Vale observar como, na própria compreensão que Ramiz
tinha de sua trajetória, a passagem pela BN ocupava um papel de divisor
de águas em sua biografia. O outro grande evento era o exercício do ma-
gistério. Embora ele perpassasse os três períodos traçados, tornando-se o
mote condutor de sua vida, o momento da educação dos príncipes teve
especial destaque. Essa divisão não aparece sem propósito em sua fala.
Antes, confirma a imagem de “velho batalhador da causa do ensino”, que
atribuiu fortemente a si mesmo e que, com certeza, queria estender para
além de 1918.36

A atuação como professor, que já fora mencionada no discurso de


Basílio de Magalhães, aparece na fala de Ramiz como a maior evidência
de seu patriotismo e espírito “democrático”, na medida em que se dedi-
cou a ensinar “desde os augustos filhos da realeza até os infelizes órfãos
nascidos e criados na triste penumbra da pobreza”.37 Ou seja, o magistério
emerge como uma “missão” civilizadora e patriótica, em moldes ilumi-
nistas e republicanos/ democráticos.

Como se disse, nesse aspecto, Galvão fez questão de lembrar algo


que não apareceu no discurso de Basílio de Magalhães, mas que o home-

36 – Ibidem. pp. 575-6.


37 – Ibidem. p. 576.

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nageado destacou: a atuação como preceptor dos príncipes. Num momen-


to em que a Monarquia não representava mais um perigo para o governo
republicano, Ramiz lembra sua proximidade com a família imperial, mas
converte o seu trabalho como tutor em um exercício patriótico do magis-
tério:
Chamado a dirigir a educação dos filhos da princesa Imperial, a se-
nhora D. Isabel, a esse novo empenho consagrei sete anos de afanosa
lida, sacrificando estudos prediletos e dando tudo quanto podia dar ao
preparo intelectual e moral de um futuro Imperador do Brasil. Não
desconheço de certo quanto era superior às minhas forças esta missão
sagrada, da qual podia depender mais tarde o futuro da Pátria; mandou
porém quem podia, e eu obedeci.38

Dessa forma, por meio de pequenas historietas de seu passado, ele


deixava muito claro a maneira como queria ser lembrado: pelo seu tra-
balho como professor, indissociável de seu sentimento patriótico. Qua-
tro anos mais tarde, na concorrida sessão que homenagearia os 50 anos
de entrada de Ramiz Galvão no IHGB, o patriotismo e o trabalho como
preceptor dos príncipes são incorporados ao discurso do orador oficial
da noite, Afrânio Peixoto. Também ele se apropria da divisão tripartite
estabelecida pelo próprio Ramiz para construir sua vida. Num discurso
permeado por diversas referências clássicas (o que remetia à própria for-
mação do homenageado, dedicada em grande parte ao estudo da cultura
e da língua gregas), Peixoto, assim como Basílio de Magalhães, também
destaca a simplicidade de Galvão e rememora casos já contados sobre a
sua inclinação, desde jovem, para os estudos.

Naquele momento, a ideia de um “homem das letras” já aparecia


fundida à imagem de Galvão. Da mesma forma, a sua representação
como professor e administrador da BN também se encontrava consolida-
da, como se fosse impossível abordar sua vida sem passar por esses dois
acontecimentos: a administração da Biblioteca Nacional e a sua atuação
como professor, especialmente, mas não somente, dos príncipes impe-
riais.
38 – Ibidem. p. 577.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

No entanto, o discurso de Afrânio Peixoto possui algumas nuanças


que nos ajudam a pensar como, ao mesmo tempo em que ele se apropria-
va de uma narrativa memorial que já vinha sendo cunhada, trazia ele-
mentos novos, que serviam para enriquecer a imagem do homenageado
produzida dentro do IHGB. Um dos mais interessantes diz respeito ao
fato de Afrânio Peixoto figurar Ramiz como um “homem de ação”:
Doutor noviço, começaste logo vossa faina, noviciado de educador,
ensinando em 69 e 70, Grego e Retórica no Pedro II. Daí vos tomaram
para vos dar a cidade dos livros, onde o jovem humanista se iria reve-
lar homem de ação, organizador, administrador, e vos faria, sem dei-
xar jamais a vossa vocação de eloquência, aproximardes dos vossos
outros louros de historiador, que não deparam na vossa coroa de hu-
manista. Também Tucídides, fugindo à praça pública, punha os mais
famosos discursos que fora capaz de fazer na boca de seus heróis...39

Nesse ponto de sua fala, Afrânio Peixoto lançou mão de uma ex-
pressão que nos chama a atenção: ele chamou Galvão de homem de ação.
Uma espécie de administrador diligente e eficiente que organizou – e, na
verdade, fez – a Biblioteca Nacional. Um antes e um depois para a BN e
para Ramiz. Ainda de acordo com ele, apesar desse fato decisivo, Galvão
jamais teria deixado de lado a eloquência, sendo, portanto, um homem
da palavra – um professor e orador – ao mesmo tempo em que era um
homem de ação.

A divisão entre homem de ação/ homem de palavra se tornou uma


espécie de “fórmula compartilhada” pelos integrantes da política repu-
blicana entre 1945 e 1964.40 Ela aparece, inclusive, nas entrevistas feitas
com Afonso Arinos de Melo Franco, nas quais ele trabalha com essas ca-
tegorias para se caracterizar como um “político de palavra”, um “homem
do parlamento”.41 Aqui, a expressão aparece nos anos 1920, em outro
contexto: o cultural. No entanto, como lembra Gomes, a diferenciação
39 – Ibidem. Grifos nossos.
40 – GOMES, Angela de Castro. Memória e história nos escritos autobiográficos de San
Tiago Dantas. In: PESAVENTO, Sandra; PATRIOTA, Rosângela e RAMOS, Alcides
Freire (Orgs). Imagens na História. São Paulo: Hucitec, 2008. pp. 181-96.
41 – ALBERTI, Verena. Ouvir e Contar. Textos em história oral. Rio de Janeiro: FGV,
2007. pp. 113-148.

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entre ação e palavra não deve ser tomada de forma rígida. No caso do
discurso de Afrânio Peixoto, o orador parece representar Ramiz Galvão
como um homem que circulava entre as duas esferas, a da eloquência e
a da ação.

Entretanto, como diretor da BN, Ramiz foi, para Afrânio Peixoto, um


“homem de ação”. Por isso, é comparado a Tucídides, que, como historia-
dor, colocou seus melhores discursos na boca de seus heróis. Assim, ele
agiu, organizando a instituição e possibilitando que outros explorassem
seu acervo e alcançassem a fama como historiadores. É fundamental ob-
servar como, na visão de Afrânio Peixoto, a atuação de Ramiz vai ganhar
um novo significado. Ele pode ser considerado uma espécie de mediador
cultural, pois embora não tenha escrito obras históricas de vulto, lidou o
tempo todo com documentos históricos e, mais do que isso, possibilitou
que outros intelectuais conhecessem o passado e, por meio desses do-
cumentos, fizessem progredir os estudos históricos no país. Teria sido,
portanto, dessa maneira singular que Ramiz, nas categorias propostas por
Sirinelli, detinha um poder de difusão e ressonância culturais, bem como
uma grande credibilidade no interior das redes de que participava.42

É necessário atentar para o fato de que certas construções memo-


rialísticas exigiram um forte investimento, envolvendo múltiplos agen-
tes, até se constituir em uma memória enquadrada. Foi isso que parece
ter acontecido com a ideia de “homem de ação”, expressão que aparece
num discurso de Afrânio Peixoto em 1922, mas que sofreu reelaborações
posteriores. Tais reelaborações, embora não se utilizem propriamente da
expressão, parecem reforçar a ideia que nos parece fundamental. Nesse
sentido, outro intelectual, também dos quadros do IHGB, contribuiu à
sua maneira para a construção de Ramiz Galvão como um “homem de
ação”. Referimo-nos aqui a José Honório Rodrigues, autor que se tornou
referência nos estudos historiográficos, em especial por ter plantado os
“alicerces para a edificação daquilo que viria a ser reconhecido como uma

42 – SIRINELLI, Jean-François. As elites culturais. In: RIOUX, Jean-Pierre e SIRINEL-


LI, Jean-François. Para uma História Cultural. Lisboa: Estampa, 1998. pp. 259-80.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

bem-sucedida linhagem historiográfica brasileira”.43 Essa “linhagem”, ou


panteão da historiografia nacional, foi se delineando na produção de Ro-
drigues à medida que ele selecionou e analisou autores e obras signifi-
cativas da produção histórica no país. E, na sua evolução da “pesquisa
histórica no Brasil”, há um lugar reservado para Ramiz Galvão.

Em Pesquisa Histórica no Brasil, livro de 1952, José Honório faz


algumas considerações sobre Ramiz, na segunda parte do livro, intitula-
da “A evolução da pesquisa pública histórica brasileira”. Ali, ao lado do
ex-diretor da BN, figuram outros intelectuais e instituições que teriam
contribuído para a “descoberta cuidadosa, exaustiva e diligente de novos
fatos históricos, a busca crítica de documentação que prove a existência
dos mesmos, [que] permita sua incorporação ao escrito histórico ou a
revisão e interpretação nova da história”.44 Nesse sentido, José Honório
retomou o trabalho de Ramiz para caracterizá-lo como “o maior e melhor
organizador da bibliografia brasileira”.45 Vale ressaltar que esse lugar re-
servado a Ramiz, por José Honório, na evolução da pesquisa histórica
no Brasil não se dá pelo viés de seus escritos, mas por outros serviços
prestados, como a descoberta de um vasto e novo material nos arquivos
estrangeiros, documentos que foram “revelados” aos eruditos brasileiros
e que possibilitaram diversos estudos:
Ramiz não pode copiar ou mandar copiar essas fontes, mas revelou
sua existência aos eruditos brasileiros (...) A missão Ramiz Galvão
presta ao Brasil vários e importantes serviços: a reforma da biblioteca,
a descoberta de novos documentos e a publicação dos melhores ins-
trumentos de pesquisa, bibliografia e catálogos. 46

Embora não utilize a expressão “homem de ação”, é nesse sentido


que José Honório parece compreender o lugar de Ramiz nos estudos his-
43 – FREIXO, André de Lemos. A arquitetura do novo: ciência e história da História
do Brasil em José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. Tese de doutorado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.
44 – RODRIGUES, José Honório. Pesquisa Histórica no Brasil. São Paulo: Editora Na-
cional, 1982. p. 21.
45 – Ibidem. p. 75.
46 – RODRIGUES, José Honório. Pesquisa Histórica no Brasil. São Paulo: Editora Na-
cional, 1982. pp. 75-6.

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toriográficos. Não por acaso, ele o inseriu na evolução dos estudos histó-
ricos no Brasil a partir da sua passagem pela Biblioteca Nacional. Afinal
foi ali que Ramiz executou sua maior ação como mediador cultural. Pa-
trocinou a construção do Catálogo da Exposição de História e Geografia
do Brasil, que, para Rodrigues, forneceu ferramentas para a elaboração
de inúmeros novos estudos acerca da história brasileira.

Como se vê, na homenagem feita em 1922, em função das come-


morações pelos 50 anos de entrada de Ramiz Galvão no IHGB, novos
elementos vão sendo incorporados à sua memória em franco processo de
enquadramento. Enquanto a erudição e alguns “eventos” de sua vida são
reafirmados, outras características vão se delineando. A divisão tripartite,
sugerida pelo próprio Galvão, é assumida por Afrânio Peixoto, que apre-
senta a sua percepção de Ramiz como um homem não só de palavra, mas
de ação.47 Outro ponto que nos parece fundamental destacar é a circula-
ção desses discursos, que acabam constituindo matrizes para a confecção
de pronunciamentos posteriores.

Outro exemplo disso é a homenagem que Galvão receberá do IHGB


em 1936, desta vez por ocasião das comemorações de seu nonagésimo
aniversário. Ao contrário das cerimônias anteriores, essa solenidade foi
composta por pronunciamentos rápidos, proferidos pelo próprio presi-
dente do IHGB, Conde Afonso Celso, e por Ramiz Galvão. A revista do
Instituto, no entanto, trazia ainda um texto escrito pelo terceiro compo-
nente da trindade, Max Fleiuss. O discurso proferido por Afonso Celso e
o texto escrito por Max Fleiuss não trazem grandes alterações à imagem
de Ramiz já projetada nas falas de Basílio de Magalhães e Afrânio Peixo-
to. Mais uma vez, ele é representado pela sua atuação ampla como profes-
sor, fundador do Instituto dos Bacharéis em Letras, diretor da Biblioteca
Nacional, preceptor dos netos de D. Pedro II e dirigente das instruções
municipal e federal. Mas vale ressaltar o discurso feito pelo próprio Ra-
miz na ocasião. Num pronunciamento emocionado, o homenageado se
disse apenas um “velho estudioso” e creditou todas as homenagens rece-

47 – PEIXOTO, Afrânio. Op. cit. 498 e 500.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

bidas ao livro, objeto que deu sentido à sua existência. Em sua fala, ele
mesmo percorreu sua biografia:

Chamado vezes para substituir nas cadeiras de grego e literatura os


respectivos professores, meus mestres, no sempre amado Colégio Pe-
dro II; de 1870 a 1882 diretor da Biblioteca Nacional, casa de livros
onde passei os dias tranquilos e mais deliciosos da minha existência;
professor, por espaço de onze anos, da Escola de Medicina do Rio de
Janeiro; preceptor dos príncipes brasileiros (...); por duas vezes diretor
da Instrução Municipal; mais tarde presidente do Conselho Superior
de Ensino e reitor da Universidade do Rio de Janeiro; diretor de um
grande estabelecimento de educação, o asilo Gonçalves de Araújo, por
espaço de 30 anos, – passei a vida, como vedes, a lidar com alunos
e professores, isto é, com os que fazem do livro a sua arma e o seu
incomparável encanto.48

Essa foi a última vez que Ramiz esteve presente a uma homenagem
no IHGB. Dois anos depois, quando morreu, sua imagem de homem das
letras, que viveu boa parte de seus 92 anos em meio aos livros e aos alu-
nos, movido por um profundo sentimento patriótico, parecia consolidada,
tal como ele mesmo gostava de ser lembrado.

Muitas das características constitutivas da imagem construída para


Ramiz Galvão vieram à tona no momento de sua morte. Essa data, mais
do que qualquer outra, permite uma retrospectiva da vida do homena-
geado e o estabelecimento de um sentido para ela. Dentro do Instituto
Histórico, o encarregado de fazer seu necrológio foi o ministro Alfredo
Valadão, que definiu o acadêmico como um “elo entre a monarquia e a
república”, em referência ao destaque que Ramiz possuía durante o Se-
gundo Reinado e ao fato de ter atuado em instituições dos dois regimes.49
Num discurso permeado por diversas referências às homenagens anterio-
res e por frases ditas pelo próprio Ramiz, Valadão reafirmou o que Basílio
de Magalhães e Afrânio Peixoto já haviam demarcado: a precocidade de

48 – Ibidem. p. 310.
49 – VALADÃO, Alfredo. Discurso do Sr. Alfredo Valadão, fazendo o necrológio dos srs.
Conde de Afonso Celso, Ramiz Galvão, barão de Studart... R.IHGB, v. 173. p. 882, 1938.

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Galvão; seu trabalho em prol da renovação da Biblioteca Nacional e sua


atuação como professor.50

Oito anos depois, em 1946, outra cerimônia em homenagem a Gal-


vão seria feita no IHGB, dessa vez, em comemoração dos cem anos de
seu nascimento. A ocasião contou novamente com uma fala de Alfredo
Valadão e com discursos de José Carlos de Macedo Soares, Braz do Ama-
ral, Pedro Calmon e Alcindo Sodré. Para nossos objetivos aqui, valem al-
gumas observações sobre o pronunciamento deste último acadêmico. Ele
é intitulado “O aio dos príncipes”, e trata exclusivamente deste momento
da vida de Galvão. Se lembrarmos que, em 1918, o papel de preceptor
foi mencionado apenas por Basílio de Magalhães, embora tenha recebido
destaque no discurso do próprio Galvão, podemos afirmar que Ramiz fez
um bom trabalho, ao tornar esse episódio um evento de destaque em sua
biografia. Nesse sentido, Sodré ressaltou alguns acontecimentos, como a
criação de três jornais que serviam como um “exercício espiritual” para
os jovens discípulos. Por meio deles, rememorava o trabalho de Galvão
e sua proximidade com a família imperial, mas, seguindo os discursos
produzidos anteriormente, incorpora esse episódio da trajetória de Gal-
vão, dando a ele um sentido eminentemente republicano: o de uma vida
devotada ao ensino e ao patriotismo.

Já mencionamos que, durante o período em que o IHGB foi presi-


dido por Rio Branco e Afonso Celso, a instituição teve de se adaptar aos
interesses e necessidades de um novo regime político, o que significou
também repensar um modelo de escrita da história e o próprio papel do
historiador. Dessa forma, um desafio constante para os historiadores do
IHGB era incorporar a essa nova história, republicana, o passado colonial
e, principalmente, imperial.51 Se essa questão estava presente na produção
e na discussão historiográfica no interior do Instituto, ela também não
escapava a esse processo de construção da memória de seus membros.
Assim, ao considerar a trajetória de muitos de seus sócios, era preciso

50 – Ibidem. p 877.
51 – GOMES, Angela de Castro. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Ar-
gumentum, 2009.

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Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

lidar também com a atuação que tiveram durante a vigência da Monar-


quia. Ramiz, como vimos, era certamente um desses casos, em que houve
um investimento em interpretar sua extrema proximidade com a Família
Imperial da forma mais republicana possível.

Sobre essa questão, cabe lembrar o trabalho de Rodrigo Turin acerca


do ethos do historiador oitocentista, notadamente marcado pela sinceri-
dade, a cientificidade e a utilidade. O autor percebe que esses elementos
constituíam a prática historiográfica e o perfil dos historiadores durante
o período imperial. Mas eles se preservam, embora com algumas modifi-
cações, durante a República.52 À relação verticalizada estabelecida entre
o Imperador e seus súditos, produtora de uma historiografia dirigida ao
Estado Imperial, deveria se sobrepor outra escrita da história, dirigida ao
povo brasileiro.53 Essa questão é interessante para a análise que estamos
fazendo dos discursos em homenagem a Ramiz, na medida em que eles
estão justamente construindo um modelo de historiador. Assim, é impor-
tante que nos interroguemos sobre a maneira como Ramiz constrói a si
mesmo e como o IHGB o constrói como modelo de historiador. Funda-
mental também é percebermos que essa construção se deu justamente
durante a Primeira República, muito embora alguns desses discursos te-
nham sido feitos em momentos que ultrapassam os marcos cronológicos
desse período. Entretanto, em relação aos pronunciamentos analisados
até aqui, parece-nos clara a importância das duas primeiras homenagens
recebidas por Ramiz na configuração de sua memória. As comemorações
pelo seu jubileu científico (1918) e pelos 50 anos de sua entrada no IHGB
(1922) foram exercícios memorialísticos em que é possível perceber um
trabalho de seleção e ordenação coerente da sua vida. Nesses dois mo-
mentos, os aspectos mais marcantes da memória desse intelectual foram
selecionados não só pelos seus pares, mas também por ele, que, como
vimos, atuava no sentido de fornecer caminhos e relembrar episódios que
caracterizassem sua trajetória. Daí por diante, esses aspectos foram, so-

52 – TURIN, Rodrigo. Uma nobre, difícil e útil empresa: o ethos do historiador oitocen-
tista. História e Historiografia, n. 2, 2009, p. 21.
53 – Ibidem. p. 22.

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Ana Paula Sampaio Caldeira

bretudo, reafirmados, mas, de modo geral, já estavam efetivamente “en-


quadrados”.

Nesses discursos, sua vida foi construída como tendo um sentido/


direção. Previsível, sem percalços ou incongruências. Da mesma forma,
momentos de sua vida foram selecionados de forma a condensar a ideia
de uma existência marcada pela dedicação ao estudo e à pátria, ao mesmo
tempo em que determinados eventos transformaram-se em verdadeiros
“acontecimentos” em sua biografia. É o caso, por exemplo, da passagem
pela Biblioteca Nacional, episódio que ganhou grande força na biografia
de Galvão.

Foi também nos discursos de Basílio de Magalhães, de Afrânio Pei-


xoto e nos pronunciamentos do próprio Ramiz que sua atuação como pro-
fessor foi não apenas valorizada, como também lida no sentido de atribuir
ao exercício dessa atividade as marcas da sua erudição. E foi justamente
pelo magistério que mais se ressaltava o espírito republicano de Galvão,
pois, além de evidenciar seu patriotismo, estava acima dos regimes po-
líticos. Somada à modéstia e à simplicidade, tal atuação como professor
revelava o engajamento de Ramiz à causa da educação e era exemplar de
uma vida de renúncia e abnegação, marcas fortes de ligação do historia-
dor com a nação.54 Assim, a própria atuação como tutor dos príncipes foi
lida na chave do “sacrifício pela pátria”.

Essas características, ressaltadas nas comemorações feitas em 1918


e 1922, consolidaram-se nos discursos posteriores, assim como algumas
historietas que passavam a ser repetidas em todas as solenidades em
homenagem àquele consócio, tornando-se indissociáveis da sua perso-
nagem. Em 1946, cem anos após seu nascimento, a memória de Ramiz
Galvão já estava consolidada no IHGB, de modo que “sua figura nobre e
calma” passava a pertencer às tradições do Instituto.

54 – TURIN, Rodrigo. Op. cit. p. 19.

192 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):165-196, jul./set. 2016


Um republicano em plena monarquia.
A construção das memórias de Ramiz Galvão no IHGB

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Texto apresentado em maio/2016. Aprovado para publicação em ju-


lho/2016.

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197

O QUE HÁ DE ERRADO COM O PORTUGUÊS?


O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO LINGUÍSTICA DE STEFAN
E LOTTE ZWEIG NO PAÍS DO FUTURO1
WHAT’S WRONG WITH PORTUGUESE? STEPHEN AND
LOTTE ZWEIG´S LANGUAGE ADAPTATION PROCESS IN THE
COUNTRY OF THE FUTURE
Maria das Graças Salgado2
e Eduardo Silva3

Resumo: Abstract:
Tanto o escritor austríaco Stefan Zweig quan- Both the Austrian writer Stefan Zweig and his
to sua jovem esposa alemã Lotte Zweig sabiam young German wife Lotte Zweig were able
falar, ler e escrever em diversas línguas. Stefan, to speak read and write in several languages.
além do alemão nativo, dominava com fluência Stefan, in addition to being a native German
italiano, francês e inglês. Também Lotte, além speaker, was fluent in Italian, French and Eng-
do alemão, dominava inglês e francês. Am- lish. And Lotte, besides German, also mastered
bos tinham, portanto, alto nível de interesse e English and French. Both, therefore, were lin-
conscientização linguística. Nenhum dos dois, guistically gifted and had a high level of linguis-
porém, dominava o estranho português, língua tic awareness. Neither of them, however, spoke
do país que amavam e escolheram como abrigo. Portuguese, the foreign language of the country
Neste trabalho, pretendemos examinar algumas they loved and chose to live in. In this paper
questões emocionais – dificuldades e bloqueios we intend to examine some emotional difficul-
– envolvidas com o aprendizado desta nova ties and blockages involved in learning this new
língua numa situação de exílio. Por que o por- language while in exile. Why does Portuguese
tuguês parece aos dois tão feio e complicado? sound so ugly and complicated to them? Is it
Será possível gostar do país e do povo e, ao possible to like a country and its people and, at
mesmo tempo, rejeitar a língua? the same time, reject its language?

Palavras-chave: Stefan Zweig; Charlotte Keywords: Stefan Zweig; Charlotte Zweig; exile
Zweig; exílio no Brasil; discurso; gênero; emo- in Brazil; speech; genre; emotion; Portuguese
ção; língua portuguesa. language.

1 –1 A primeira versão deste artigo foi apresentada no 12º Congresso Internacional da


BRASA – Associação de Estudos Brasileiros, realizado de 20 a 23 de agosto de 2014, em
Londres. No ano seguinte, 2015, tivemos a oportunidade de desenvolvê-lo como parte
de nossos projetos como Pesquisadores Visitantes do King´s College London, no Reino
Unido, com o apoio da Capes (Processo BEX 1884/14-0). Agradecemos aos historiadores
Anthony Pereira e Oliver Marshall a leitura cuidadosa do manuscrito.
2 –1 Doutora em Letras pela PUC/RJ. Professora adjunta de Língua Inglesa do Depar-
tamento de Letras e Comunicação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ); líder do Grupo de Pesquisa GEDIR (CNPq/UFRRJ)
3 –1 Doutor em História pela University College London. Pesquisador titular da Fundação
Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro; Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB); Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016 197


Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

Stefan Zweig e Lotte Zweig, oriundos da Europa central, tinham a


experiência do multilinguismo como parte da própria formação cultural.
Stefan, além do alemão nativo, dominava com fluência italiano, francês e
inglês. Quanto ao italiano, podemos imaginar que sua fluência fosse pra-
ticamente completa. Sua mãe nasceu em Ancona, na Itália, onde passou a
infância. Na casa do menino Stefan, portanto, a língua predominante era
o alemão, mas o italiano e o francês eram também usados com frequên-
cia. Em síntese, podemos dizer que o alemão ocupava o espaço central da
casa, mas a família era, como tantas famílias vienenses da época, multlín-
gue. No caso de Lotte, a língua nativa era também o alemão, mas ela cedo
aprendeu inglês e francês como parte de sua formação intelectual. Nem
Stefan, nem Lotte, contudo, dominavam o português, exatamente a língua
do país que escolheram como refúgio durante as grandes turbulências da
Segunda Guerra Mundial.

O objetivo deste artigo é examinar questões de gênero e emoção –


dificuldades e bloqueios específicos – associadas ao processo de aprendi-
zagem dessa nova língua, o português, numa situação de exílio. Por que
nossa língua parece aos dois tão feia e complicada? Como se desenvolveu
o processo de aprendizagem nos casos específicos de Stefan e Lotte? Será
possível gostar do país e do povo e, ao mesmo tempo, rejeitar a língua?

Na tentativa de obter uma resposta, ou, pelo menos, de enquadrar


melhor tais problemas, fomos levados, muito naturalmente, a uma pers-
pectiva interdisciplinar, algo entre a Linguística Discursiva e a História
Cultural. Abordamos, portanto, o processo de aquisição da língua portu-
guesa, e toda a emoção envolvida nesse processo, como práticas discursi-
vas histórica e culturalmente situadas.4

Nosso corpus principal de análise são as cartas escritas por Stefan


Zweig e sua esposa Charlotte (“Lotte”) durante o período em que se re-
fugiaram no Brasil. As cartas foram escritas originalmente em inglês e
4 –1 Uma revisão de literatura sobre emoção no discurso epistolar pode ser encontrada
em: SALGADO, Maria das Graças de Santana. Toda serra de longe é azul: o discurso da
emoção na interação cliente-empresa. Tese de Doutorado em Letras, PUC. Rio de Janei-
ro, 2003, pp.17-42.

198 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016


O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

endereçadas para familiares que ficaram na Inglaterra durante a Segunda


Guerra, cobrindo o período entre 1940 e 1942.5

DISCURSO, EMOÇÃO E LINGUAGEM


O exílio é a experiência multilinguística por excelência. Na tentati-
va de agilizar o trabalho da censura dos correios nos tempos difíceis da
Guerra, Stefan e Lotte foram forçados a abandonar o conforto da língua
nativa para se expressar em inglês, e no gênero tipicamente confessional
da epístola. Além das cartas em inglês, na vida prática do exílio, precisa-
vam se expressar em português e outras línguas. Tinham, portanto, que
exercitar diuturnamente sua competência multilinguística. Estudos recen-
tes mostram que falantes multilíngues têm ligações emocionais distintas
com cada uma das línguas que dominam. Nesse sentido, é importante
atentar para o valor emocional atribuído à língua nativa e para o valor
negativo atribuído às línguas das chamadas nações inimigas.6

No caso em estudo, houve problema mesmo com a língua do país


amigo. Lotte e Stefan achavam o Brasil lindo, mas o português uma lín-
gua feia e difícil. Ao mesmo tempo, passam a ter restrições também à pró-

5 –1 DAVIS, Darién J. e MARSHALL, Oliver (Orgs.). Stefan & Lotte Zweig: Cartas da
América: Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42. Tradução de Eduardo Silva e Maria
das Graças de S. Salgado. Rio de Janeiro, Versal, 2012 (Edição original: Nova York, Con-
tinuum, 2010). Trata-se de um conjunto documental riquíssimo, não só sobre o grande
escritor e sua esposa, mas sobre o Brasil que os abrigara, e que o próprio Zweig identificou
como “um país do futuro”. De Stefan Zweig sobre o Brasil, ver: ZWEIG, Stefan. Pequena
viagem ao Brasil. Organização Heike Muranyi; tradução Petê Rissatti. Rio de Janeiro:
Versal, 2016; Idem, Brazil: land of the future. London: Cassel and Company, 1942. Sobre
Stefan Zweig, além da magistral autobiografia The world of Yesterday (Tradução para o
inglês de Anthea Bell. Londres: Pushkin Press, 2011), três excelentes estudos biográficos
podem ser encontrados em: DINES, Alberto. Morte no paraíso: a tragédia de Stefan
Zweig. Rio de Janeiro, Rocco, 2004; MATUSCHEK, Oliver. Three lives: A biography of
Stefan Zweig. Tradução para o ingles de Allan Blunden. Londres, Pushkin Press, 2011; e
PROCHNIK, George. The impossible exile: Stefan Zweig at the end of the world. Nova
York, Other Press, 2014. Informações relevantes também podem ser encontradas em: MI-
CHAHELLES, Kristina (Org.). “Contei com sua palavra, e ela foi como uma rocha”;
como Stefan Zweig salvou Giuseppe Germani dos cárceres de Mussolini: cartas inéditas
de Zweig para Elsa Germani, 1921-1937. Rio de Janeiro, Gráfica Stampa, 2011.
6 –1 Ver, em especial, PAVLENKO, Aneta. Emotion and multilingualism. Cambridge,
Cambridge University Press, 2005.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016 199


Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

pria língua alemã, considerada a língua da “nação inimiga”. A experiência


era, sem dúvida, confusa e dolorosa, sobretudo para Stefan Zweig que
parece perder o encanto pela escritura em sua própria língua. A análise
do discurso epistolar do casal revela um sentimento profundo de perda da
língua alemã e, ao mesmo tempo, um cansaço igualmente profundo das
línguas estrangeiras.

AQUISIÇÃO E PERDA: O PORTUGUÊS DO FUTURO E O ALE-


MÃO DO PASSADO
Stefan, a princípio, parece animado com o exílio e vê com otimismo
a possibilidade de trabalhar com as muitas línguas que dominava. Parece
feliz inclusive com as aulas de português, certamente uma das línguas
dos “países do futuro”. Chega até a sugerir esse tipo de vida e essa nova
aprendizagem para o cunhado Manfred que, em Londres, no meio da
Guerra, distraía-se estudando línguas clássicas, como o grego. Em carta
escrita em setembro de 1940 Stefan mostra-se bastante animado e estimu-
lado pela novidade desafiadora da multiplicidade de línguas que teria de
usar em suas palestras no exílio. Na mesma situação estava o escritor e
missionário Kenneth Grubb, que Stefan acabara de encontrar.

E ele também dará em Buenos Aires uma pequena palestra em inglês


para o círculo inglês – evoluindo para um tipo de palestrante de quatro
ou cinco línguas. Não fosse pela ansiedade que sentimos por causa de
vocês, estes seriam os tempos mais felizes de nossas vidas! Por que
Manfred não dá palestras e por que estuda grego em vez das línguas
dos países do futuro? 7

Essa atitude segura e otimista muda drasticamente depois que o casal


viaja para os Estados Unidos e passa alguns meses (de janeiro a agosto
de 1941) em Nova York. Stefan não suporta aquilo que entende como
“superficialidade” norte-americana e resolve voltar imediatamente para
o Brasil, o seu idealizado paraíso tropical. A resolução coloca em pauta
7 –1 Carta de Stefan (em seguida à de Lotte) para Hanna e Manfred. Rio de Janeiro, 22 de
setembro de 1940. In: DAVIS, Darién J. e MARSHALL, Oliver. Stefan & Lotte Zweig:
cartas da América... Op. cit., p. 90. Toda correspondência citada a seguir foi retirada desta
edição em língua portuguesa.

200 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016


O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

a urgência absoluta de aprender uma nova língua, no caso, o português.


Stefan tinha pressa e, uma vez a bordo do S.S. Uruguay, retoma imedia-
tamente seus estudos de português, aproveitando muito bem os doze dias
de viagem em alto mar. “Eu já comecei a aprender português”, escreveu
ele ainda a bordo do navio.8

Depois da rápida “imersão” de cerca de seis meses durante a primei-


ra viagem do casal ao Brasil (de agosto de 1940 a janeiro de 1941) e mais
os doze dias de estudos intensivos no navio, Stefan e Lotte já chegam ao
Rio sabendo ler com desenvoltura e entendendo razoavelmente o portu-
guês. A tarefa agora era falar.

Enquanto estivermos no Rio veremos gradualmente nossos amigos


de novo e também pretendemos ter aulas de português. Nós lemos
fluentemente a língua e já a entendemos relativamente bem, mas agora
também temos que começar a falar o idioma.9

Mal chegam ao Rio de Janeiro, instalam-se no Hotel Central, co-


meçam a procurar uma casa em Petrópolis e, ao mesmo tempo, um pro-
fessor ou uma professora de português. No início de setembro, poucos
dias depois do desembarque, já estavam se instalando na pequena cidade
serrana de Petrópolis e também já haviam contratado um(a) professor(a)
de português. Não sabemos ao certo por que a língua inglesa não faz a
declinação de gênero, e por que nas cartas, infelizmente, não há nome ou
outra pista qualquer sobre a pessoa contratada. Seja como for, por causa
de suas aulas particulares e por causa das regras que regiam o sistema de
correios durante a Guerra, Lotte teve que interromper subitamente a carta
que escrevia para sua cunhada Hanna já no dia 04 de setembro de 1941.
“Tenho que terminar agora, primeiro de tudo, nosso[a] professor[a] de
português acabou de chegar; e segundo, o correio para o clíper de amanhã
vai fechar em alguns minutos.”10

8 –1 Carta de Stefan para “H&M” a bordo do S.S. Uruguay, 24 de agosto de 1941, pp.180-
1.
9 –1 Carta de Lotte para Hanna e Manfred. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1941, p.182.
10 – Carta de Lotte para Hanna. Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1941, p.184.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016 201


Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

O estresse da mudança, além da proverbial umidade de Petrópolis,


parece não ter feito muito bem ao casal. Logo nos primeiros dias Lotte
pegou um forte resfriado e Stefan teve que enfrentar graves problemas
odontológicos. Nada disso, contudo, teve o poder de afastá-los da firme
determinação de dominar a língua portuguesa. O plano de estudos que
estabelecem é intensivo, exigindo empenho e obrigações diárias. Exata-
mente por isso, talvez, o entusiasmo inicial de Stefan com a importante
língua “do futuro” parece diminuir com a rotina de cada lição. Também
para Lotte, o exercício de aprendizagem passa a ser visto como “um ne-
gócio muito chato”.

“Sobre nós não há muito que contar. Eu peguei um resfriado e quase


não saí a semana passada, e Stefan passa de quatro a seis horas por dia
no consultório do dentista”, escreve ela para os parentes na Inglaterra. As
aulas de português parecem compor um quadro mais amplo de dificulda-
des. “Nosso único ‘trabalho’ regular foram as aulas de português todos
os dias, um negócio muito chato porque nós não gostamos dessa língua e
isso nos amargura muito.”11

Ler e compreender português parece tarefa mais ou menos fácil, mas


o casal estranha, sobretudo, certas particularidades da língua de Camões.
“Espanhol teria sido tão mais prático e fácil, porque temos certeza de que
jamais dominaremos a pronúncia do português.” 12

Muitos brasileiros da elite dominavam o francês e, por isso, o casal


podia se comunicar sem problema. Mas, para iniciar vida nova no Brasil
com autonomia, o português revela-se absolutamente essencial, sobre-
tudo no que toca às tarefas do dia a dia. “De qualquer modo, isso tem
que ser feito porque, com o passar do tempo, os brasileiros naturalmente
preferem falar sua língua a falar francês, e para manter uma casa é abso-
lutamente necessário o português.” 13

11 – Carta de Lotte para Hanna e Manfred. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 1941, pp.
186-7.
12 – Idem, ibidem.
13 – Idem, ibidem.

202 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016


O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

Apesar de todas as dificuldades, o casal não desiste e, na verdade,


parece fazer grandes e rápidos progressos. No entanto, na medida em
que avançam no domínio da língua, revelam-se os bloqueios de caráter
emocional ou extralinguísticos. Tudo parecia perfeito, delicioso, pito-
resco e desfrutável no paraíso tropical, exceto, naturalmente, o idioma
ali praticado. Uma língua feia, de sintaxe arrevezada, cheia de “erres” e
“ãos” que parecem ríspidos e agressivos e, de qualquer forma, difíceis de
reproduzir.

Temos aulas de português todo dia e podemos, embora com muitos


erros, falar quase tudo que é necessário e até estabelecer uma con-
versação em português se não houver outra saída. Mas é uma língua
muito feia e é uma grande pena que exatamente esse país não pertença
ao grupo espanhol. O espanhol é muito mais fácil para nós e muito
mais bonito como língua. 14

QUESTÕES DE GÊNERO E APRENDIZAGEM


As dificuldades com a nova língua afetam o casal de modo muito
desigual, conforme o prestígio e área específica de atuação de cada um.
Stefan, bem ou mal, pode continuar a escrever e produzir sua literatu-
ra em alemão. Bem ou mal, consegue conversar com outros intelectuais
exilados pela Guerra e membros da elite nativa, em alemão ou francês.
Bem ou mal, consegue público no Brasil, Argentina e Uruguai para suas
palestras e conferências em alemão, francês, inglês, e por fim, até em es-
panhol. O grande intelectual é um homem da sociedade, das academias,
da imprensa, do mundo. Pobre Lotte é apenas sua companheira e secre-
tária. Cabe a ela, muito naturalmente, cuidar da casa e do bem-estar do
grande homem. Não que Stefan assim o exigisse, ou pedisse, ou mesmo
pensasse no assunto. Mas porque à época tal atitude ainda parecia “natu-
ral”, tanto no Brasil quanto na Áustria, Alemanha ou Grã-Bretanha. Além
de companheira e secretária, Lotte é também mulher e, por isso, assume
com toda naturalidade o papel de organizadora, mantenedora e provedora
do lar.

14 – Carta de Lotte para sua mãe. Rio de janeiro, 13 de setembro de 1941, pp. 188- 41.

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Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

Esse novo papel, essa nova jornada de trabalho, é assumida com na-
turalidade, dedicação e, na verdade, com extrema competência, expondo-
-a com mais frequência a situações de aprendizagem da língua portugue-
sa. Lotte faz compras no mercado, decide o cardápio do dia, dirige todo
o trabalho doméstico. Para colocar a casa em funcionamento ela precisa
desesperadamente daquela nova língua. Enquanto Stefan pode permane-
cer olímpico em seu escritório improvisado na varanda do bangalô, lendo
e escrevendo em alemão, Lotte tem que sujar as mãos na cozinha, tem
que aprender a usar um inadequado e primitivo fogão a lenha, tem que
relacionar-se com a “empregada”. Tudo isso dependia de comunicação
em língua portuguesa.

As cartas evidenciam seu embate cotidiano com a administração do-


méstica e com os empregados negros recém-saídos da escravidão e, por
isso mesmo, semiletrados, senão iletrados. Esse embate e desgaste coti-
diano passa necessariamente pela questão da língua. Por isso, aprender
português aparece como um exercício muito mais tenso e emocional para
Lotte. Para Stefan, trata-se de uma questão distante e quase teórica; para
Lotte trata-se de uma questão de sobrevivência cotidiana. As dificuldades
iniciais são tantas que Lotte, embora considerasse sua empregada (foi
apenas uma primeira impressão) extremamente confusa e despreparada,
resolveu não demiti-la simplesmente para não passar pelo constrangi-
mento de ter de entrevistar e acertar-se com outra empregada numa lín-
gua e cultura relacional que não conseguia entender ou fazer-se entender.
Entretanto, em janeiro de 1942, poucos meses depois do desembarque do
casal no Brasil, a vida começou a entrar nos eixos e Lotte parece aceitar
melhor a realidade e os costumes locais.
E também nos acostumamos com o nosso assim chamado jardinei-
ro (ele dificilmente faz mais pelo jardim do que podar as hortênsias
quando elas ameaçam tomar conta de tudo) e sua família, e também
com nossa empregada que só não mandei embora no primeiro dia por-
que não tinha coragem de entrevistar uma outra e enfrentar a tarefa de
introduzi-la aos nossos modos estrangeiros e ao meu estranho portu-
guês. 15
15 – Carta de Lotte para Hanna & Manfred. Petrópolis, 21 de janeiro de 1942, pp. 234-5.

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O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

A partir desse ponto, a relação do casal com a língua portuguesa pa-


rece subordinar-se inteiramente às fortes emoções do momento: o perigo
crescente da Guerra, o avanço alemão, o isolamento e estranhamento cul-
tural na “América do Sul”, isto é, para ser mais preciso, na pequena Pe-
trópolis. Quando a vida corre tranquila, Lotte se dispõe a falar português
com a empregada brasileira e estabelece com ela cumplicidades femini-
nas nas artes culinárias. Quando as coisas não correm muito bem, Lotte
cria estratégias de defesa, de modo que não precisasse falar ou explicar
nada em português. Um ano e poucos meses depois do desembarque no
Brasil, Lotte já conseguira grandes avanços em sua relação com a pobre
empregada ou “maid”.
Minha empregada não é um gênio, mas aprendeu (e eu também) a
fazer Palatschinken, Schmarren e Erdapfelnudeln e outros pratos ‘eu-
ropeus’. Quando tenho tempo e estou disposta tenho até prazer de
lhe ensinar coisas novas, se não, eu preparo o menu discretamente de
modo que não precise falar com ela.16

As relações com a “maid”, o desgaste da rotina e as condições pre-


cárias da cozinha, tudo isso só podia ser vivido por intermédio da língua
portuguesa. A “empregada” era, provavelmente, analfabeta. A abolição da
escravatura no Brasil se dera apenas 53 anos antes, em 1888. A distância
cultural que separava os empregados brasileiros do casal Zweig era um
fosso histórico imenso que provocava estranhamento, conflito e rejeição.
Não ao país ou ao povo, mas à língua. Lotte odiava ter que explicar tudo
em português para a empregada. Nossa língua lhe parecia, além de feia,
muito complicada. E ela confessa em carta para os familiares:

Há dias em que evito minha empregada porque detesto falar português


com ela e português é tão desnecessariamente difícil com sua gramáti-
ca e pronúncia complicadas que nem sempre tenho vontade. 17

No final de 1941, o casal já se sente mais seguro no Brasil e, com


isso, desaparecem as grandes urgências para o estudo do português. Ste-

16 – Carta de Lotte para Hanna. Petrópolis, 7 de novembro de 1941, pp. 202-4.


17 – Carta de Lotte para Hanna e Manfred. Petrópolis, 21 de janeiro de 1942, pp.234-5.

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Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

fan volta a escrever e Lote se dedica às mais diversas tarefas, negligen-


ciando totalmente o estudo convencional do português.

Além disso, estou jogando xadrez e lendo alguns clássicos, de modo


que o estudo do português ficou um pouco negligenciado, embora é
claro os jornais sejam todos em português e nosso rádio só pegue as
estações brasileiras.18

CHARLOTTE ZWEIG E ANA ALVARENGA


Na verdade, o casal parece não se dar conta dos avanços notáveis
que fazem a cada dia. Em poucos meses eles já conseguem acompanhar
o noticiário da Segunda Guerra pelos jornais e pelo rádio. Para Lotte, na
medida em que assume o papel feminino de manter a casa, as dificuldades
de comunicação com a “maid” continuam imensas. E tudo era, na verda-
de, linguagem e comunicação em português.
Em vez disso estou aqui em nosso pequeno bangalô, aprendendo de
novo a cozinhar quando mostro à empregada como fazê-lo, e a des-
peito das dificuldades da língua estou me sentindo bem, me ocupando
principalmente em reescrever partes da autobiografia para Stefan, e
quando o tempo está bom – até agora isso aconteceu muito pouco –,
saímos para fazer caminhadas. 19

A guerra na Europa e o papel feminino de prover o lar juntou na


mesma cozinha as mais improváveis parceiras. O espaço feminino daque-
la modesta cozinha de Petrópolis permitiu o encontro de dois extremos
da vivência feminina em meados do século XX. De um lado, fugindo da
Guerra, uma jovem senhora da Europa Central, sofisticada, multilíngue,
esposa e secretária de um dos mais festejados escritores do momento. De
outro lado, Ana Alvarenga, uma mulher negra brasileira, mãe de “pelo
menos cinco filhos” e vivendo de favor em um “barracão” [little hut]
atrás do bangalô alugado pelo casal. O marido trabalhava “o dia todo”
como operário numa fábrica e, nas horas vagas, fingia de jardineiro para

18 – Carta de Lotte para Hanna. Petrópolis, 7 de novembro de 1941, pp. 202-4.


19 – Carta de Lotte para Hanna. Petrópolis, 3 de outubro de 1941, pp.190-2.

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O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

os Zweigs, dando uma tosa periódica nas hortênsias quando estas amea-
çavam o próprio acesso à residência.20

A documentação epistolar, atenta ao dia a dia, nos permite conhecer


um pouco das tensões e estranhamentos que surgem entre essas duas mu-
lheres. É possível também perceber o aparecimento de um espaço femini-
no de cumplicidade construído em torno de um “primitivo” fogão a lenha.

A aprendizagem do português perde toda a urgência. A nova língua


passa a interessar principalmente em seu aspecto instrumental, atendendo
a propósitos bem específicos e prosaicos, como saber lidar com o barbei-
ro, no caso de Stefan, e, no caso de Lotte, saber se expressar no mercado
e fazer as compras da casa. No correr das cartas, podemos perceber que
subitamente as emoções parecem mais serenadas e, no nível prático das
necessidades do dia a dia, a língua portuguesa parece perfeitamente do-
minada.

Nós já estamos bastante acomodados aqui, Stefan tem seu barbeiro,


seus cafés, sua escrivaninha, e eu já conheço minhas lojas e a maioria
das expressões em português para as compras e para as atividades da
casa. 21

“Ter um barbeiro”, frequentar um café popular, fazer compras no


mercado, tudo isso implica competências linguísticas e culturais específi-
cas que indicam já um grau de normalidade e adaptação. Lotte parece que
não apenas ensinou, mas também aprendeu muita coisa com sua compa-
nheira de cozinha.

A cozinha passou a ser o ponto de contato do lar “europeu” dos


Zweigs com a realidade brasileira. Questões domésticas, inclusive suas
discussões e impaciências com a “maid” Ana Alvarenga, passam a ser as
principais preocupações expressas por Lotte em suas cartas. Ela própria
parece estranhar o fenômeno. Mas a verdade é que depois desse grande

20 – Carta de Stefan para Hanna e Manfred. Petrópolis, s.d. (provavelmente meados de


janeiro de 1942), pp. 231-2.
21 – Carta de Lotte para Hanna. Petrópolis, 3 de outubro de 1941, pp.190-2.

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Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

penfrentamento linguístico e cultural, Lotte encontra-se no auge da cora-


gem, não parecendo ter medo de mais nada.

Se eu encontro uma mulher, fico ansiosa para falar sobre trabalhos


domésticos, preços e receitas, e um dos meus livros favoritos é o li-
vro de receitas em português onde estou descobrindo as receitas mais
fascinantes.22

Apesar de todos os problemas de comunicação, parece que foi na


cozinha, em contato estreito com Ana Alvarenga, que Lotte adquiriu seu
português e recobrou forças para seguir em frente. “Ótimo saber que você
se interessa por meus relatos sobre os trabalhos domésticos”, escreveu ela
em dezembro de 1941. A grande notícia era que os problemas linguísticos
iniciais pareciam superados:
De qualquer modo, o pior dos meus problemas domésticos acabou, e
depois do difícil começo de ter que ensinar coisas que nem eu sabia
fazer muito bem a uma empregada que não sabia coisa alguma, e em
uma língua que eu mal conseguia entender e nunca havia falado antes,
não tenho mais medo de nada.23

STEFAN ZWEIG E SUA “WRITING TABLE”


Enquanto o português de Lotte progride na cozinha e no mercado,
Stefan não teve tanta oportunidade ou necessidade de contato com a lín-
gua viva do povo. Seus problemas de aprendizagem soam um tanto falsos
e artificias, parecem desculpas de mau aluno. “Nós tentamos falar por-
tuguês mas isso é difícil para mim por causa do meu espanhol que está
sempre interferindo.” 24

Sendo um escritor profissional, Stefan logo estabeleceu sua escri-


vaninha na varanda do bangalô. Passava o dia escrevendo e trabalhando
seus textos em alemão. Ou conversando com Lotte em alemão. Uma ou
duas vezes por semana, um bom papo em alemão com o jornalista Ernest

22 – Carta de Lotte para Hanna e Manfred. Petrópolis, 11 de outubro de 1941, pp.194-5.


23 – Carta de Lotte para Hanna. Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1941, pp. 218-21.
24 – Carta de Stefan para H e M. Petrópolis, s.d. (possivelmente final de outubro ou início
de novembro de 1941), pp. 197-8.

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O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

Feder. Uma ou outra vez, uma visita à grande poetisa chilena Gabriella
Mistral, quando podia exercitar um pouco o espanhol. Com a elite do país
e nas palestras e conferências formais, podia também exercitar o seu bom
francês. Além do alemão nativo, portanto, predominavam em seu dia a
dia línguas que aprendera na juventude e que dominava com relativa fa-
cilidade. Na correspondência, todavia, por motivo de segurança, ambos
usavam o inglês.

Sem a, digamos, “obrigação feminina” de enfrentar a cozinha, o fo-


gão a lenha e as compras no mercado, Stefan nunca se sentiu realmente
pressionado a falar português. Daí, aparentemente, ter ficado um pouco
para trás em sua aprendizagem. Consegue entender com esforço o por-
tuguês falado, consegue ler os jornais brasileiros em busca de notícias
sobre a Guerra, mas não se arrisca a falar. Fica claro, por exemplo, que
eles leem muito bem os artigos do jornalista Frederik Kuh que eram pu-
blicados no Brasil.
Se você encontrar Frederick Kuh diga a ele que, por um certo tempo,
foram publicados diariamente artigos dele no Correio da Manhã que
eu lia com grande interesse. Ultimamente eles têm publicado muito
poucos, o que lamento.25

Confirma-se, pela correspondência, que Stefan Zweig aprendeu por-


tuguês suficiente para fazer a leitura diária e ansiosa dos jornais brasilei-
ros em busca de notícias sobre a Guerra e o possível destino de amigos e
parentes.
Você pode imaginar como lemos os jornais – com todos os sentimen-
tos positivos e você sabe quão esperançoso eu estava desde o primeiro
dia; ficamos pensando nos nossos amigos e onde eles podem estar. 26

Em outra carta, Stefan confessa francamente a inquietude do casal


com relação à luta na Europa. “Nós acompanhamos cada linha que os
jornais publicam sobre a Inglaterra e a guerra.” 27
25 – Carta de Lotte para Hanna. Petrópolis, 7 de novembro de 1941, pp. 202-4.
26 – Carta de Stefan (em seguida à de Lotte) para Hanna. Rio de Janeiro, 3 de dezembro
de 1940, pp.126-7.
27 – Carta de Stefan para Hanna e Manfred. Petropolis, 21 de janeiro de 1942, pp.233-4.

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Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

Fora dessa leitura diária em busca de notícias, o português parece in-


teressar cada vez menos a Stefan Zweig. O tempo ia ficando cada vez mais
curto para a língua portuguesa. Stefan precisava escrever seus livros, mas
não conseguia evitar os frequentes convites para palestras, solenidades
oficiais e visitas inesperadas à moda brasileira. Sendo assim, praticamen-
te abandona o português e passa a aperfeiçoar o espanhol, preparando-se
intensamente para suas conferências no Rio da Prata.

“Stefan está se esforçando muito para trabalhar com regularidade,


mas no Rio é muito difícil, com todos os compromissos, convites e agora
os aspectos práticos da viagem”, justifica-se Lotte em carta para sua mãe.
E segue adiante:

Além disso, as pessoas têm muito tempo aqui e ainda existe o velho e
bom hábito de chegarem sem avisar para uma conversinha de fim de
tarde, e três vezes por semana Stefan tem aulas de espanhol porque
vai falar em espanhol em alguns lugares na Argentina e no Uruguai. 28

CHARLOTTE E SEU FOGÃO A LENHA


Lotte, como Stefan, também dominou rapidamente a leitura dos jor-
nais em português. Ao contrário de Stefan, contudo, vê-se obrigada a en-
frentar o português popular falado em sua cozinha e no mercado.

Enquanto Stefan isola-se em sua “writing table” (instalada no me-


lhor cômodo da casa) e trabalha em alemão, Lotte assume a tarefa de co-
locar a casa em funcionamento. Para tal, carta após carta, mostra-se capaz
de enfrentar todas as dificuldades, inclusive aprender o que a princípio
lhe parece intragável: a língua portuguesa. Para ensinar sua “empregada”
brasileira a fazer os pratos “europeus” de que tanto gostavam, para dar as
ordens na cozinha, para abastecer a casa e tudo o mais, precisava aprender
a língua e os costumes da terra. Precisava aprender as técnicas de manejo
de um fogão a lenha muito primitivo. Precisava se relacionar com Dona

28 – Carta de Lotte para “Dearst mother”. Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1940, pp. 103-
5.

210 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016


O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

Ana Alvarenga, sua empregada negra. Precisava aprender o nome das


coisas e o modo de comprá-las no comércio popular de Petrópolis.

Já tendo avançado nesse contato mais intenso com a língua e a cul-


tura popular brasileira, Lotte não se mostra interessada em abandonar sua
penosa conquista do português para acompanhar Stefan em seu repentino
interesse pelo espanhol. Ela já começava a dominar o português e as aulas
de espanhol só faziam complicar as coisas, misturando as duas línguas a
ponto de Lotte imaginar ter inventado o que chamamos hoje “portunhol”.
Eu desisti de assistir às aulas com ele. É impossível para mim separar
espanhol de português porque escuto e leio as duas línguas ao mesmo
tempo. Inventei uma língua própria que combina as duas e de alguma
maneira é compreendida. 29

Enquanto Lotte procura concentrar-se no português e com isso ga-


rantir o abastecimento e funcionamento prático da casa, Stefan mostra-se
orgulhoso de seus progressos em espanhol, língua que considera mais
fácil do que Português e outras línguas latinas. E antevê com prazer o su-
cesso e a surpresa que causaria em Buenos Aires quando soubessem que
falaria também em espanhol.
Meu espanhol progride bem e eu gosto da língua enormemente – a
mais fácil talvez de todas as línguas latinas. Fico imaginando o que
eles vão dizer em Buenos Aires quando eu estiver dando palestra em
espanhol. 30

Enquanto Stefan se mostra feliz por ter trocado as complicações do


português pela suavidade do espanhol, Lotte avança no seu conhecimento
da língua e cultura popular. A essa altura seu conhecimento de portu-
guês parece suficiente para acompanhar (com prazer) as inúmeras piadas
que circulam na sociedade brasileira sobre a guerra, todas demonstrando
apoio popular aos Aliados. O entendimento e comentário dessas piadas
em sua correspondência demonstram já alto grau de domínio da língua
portuguesa e boa capacidade de conversar e estabelecer vínculos com a

29 – Idem, ibidem, p. 104.


30 – Carta de Stefan para Hanna e Manfred, sem data. pp.105-6.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016 211


Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

população local. E demonstra também grande sensibilidade para perceber


o estado de espírito (“state of mind”) da população em apoio aos Aliados.

Aqui há grande alegria por toda parte pelo sucesso das ofensivas gre-
ga e inglesa, e o grande número de piadas que estão circulando sobre
os italianos é um bom exemplo desse estado de espírito. – Quem são
os corredores mais rápidos do mundo? Os gregos, porque eles batem
até os italianos. – Dizem que a grande colônia italiana em São Paulo
pediu proteção policial porque dois imigrantes gregos desembarcaram
no porto de Santos. – Alguém pede espaguete num restaurante e quan-
do é servido pede molho inglês. Quando o molho chega o espaguete
italiano já fugiu de medo do molho inglês, – etc. etc.. 31

Segundo confessou o próprio Stefan, não foi apenas o “isolamento”


social que o colocou em desvantagem no tocante à aprendizagem do por-
tuguês, mas também certa resistência íntima de sua parte.

Nosso isolamento tem como desvantagem o fato de que meu portu-


guês não faz progresso algum – há também em mim alguma repressão
interior; quando estudei francês, inglês e italiano aos 15 anos de idade,
eu sabia que estava fazendo um esforço que valeria por quarenta ou
cinquenta anos. Mas por quantos muitos, ou melhor, por quantos pou-
cos anos valeria meu estudo de português? 32

Stefan Zweig tinha consciência da superioridade do português de


Lotte. E tinha consciência também que isso se devia, principalmente, ao
papel feminino de colocar a casa para funcionar. “Lotte aprende bem me-
lhor porque as tarefas da casa a obrigam a conversar”, sintetizou ele pró-
prio em carta para os cunhados Hanna e Manfred. 33

No fundo, Stefan achava que não valia a pena estudar um idioma tão
desimportante e complicado quanto o português. Em suas cartas, ambos,
Stefan e Lotte viam a língua portuguesa como a principal barreira que os
impedia de trazer a sobrinha Eva para o Brasil.

31 – Carta de Lotte para Hanna. Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1940, pp. 133-5.
32 – Carta de Stefan para Hanna e Manfred. Petrópolis, 21 de janeiro de 1942, pp.233-4.
33 – Idem, ibidem, p.233.

212 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016


O que há de errado com o português? O processo de adaptação linguística
de Stefan e Lotte Zweig no país do futuro

Há bons colégios ingleses ou americanos aqui, mas existe a obriga-


toriedade de que todas as escolas aqui ensinem (principalmente) em
português e ela teria que aprender uma nova língua, e uma língua não
tão importante como o francês ou o espanhol. 34

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, podemos dizer – embora com certo exagero – que
para Stefan Zweig o Brasil era realmente um país do futuro, mas a língua
portuguesa era quase uma catástrofe: difícil, complicada e sem sal.

Linha após linha, o discurso epistolar reflete o encantamento sincero


do casal com o povo, a cultura popular e a natureza “exótica” de nosso
país. Mas é preciso compreender que o Brasil representava para eles tanto
um delicioso paraíso tropical quanto um fardo difícil de carregar. Fardo
composto de inúmeras dificuldades reais de adaptação, dentre as quais,
em lugar de destaque, a complexa relação do casal com a língua portu-
guesa.

Referências bibliográficas
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da América: Rio, Buenos Aires e Nova York, 1940-42. Tradução Eduardo Silva e
Maria das Graças de S. Salgado. Rio de Janeiro, Versal, 2012 (Edição original:
Nova York, Continuum, 2010).
DINES, Alberto. Morte no paraíso: a tragédia de Stefan Zweig. Rio de Janeiro,
Rocco, 2004.
MATUSCHEK, Oliver. Three lives: A biography of Stefan Zweig. Tradução para
o inglês de Allan Blunden. Londres, Pushkin Press, 2011.
MICHAHELLES, Kristina (Org.). “Contei com sua palavra, e ela foi como uma
rocha”; como Stefan Zweig salvou Giuseppe Germani dos cárceres de Musso-
lini: cartas inéditas de Zweig para Elsa Germani, 1921-1937. Rio de Janeiro,
Gráfica Stampa, 2011.
PAVLENKO, Aneta. Emotion and multilingualism. Cambridge, Cambridge Uni-
versity Press, 2005.

34 – Carta de Stefan (em seguida à de Lotte) para Manfred e Hanna. Rio de Janeiro, 12 de
janeiro de 1941, pp. 144-5.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):197-214, jul./set. 2016 213


Maria das Graças Salgado e Eduardo Silva

PROCHNIK, George. The impossible exile: Stefan Zweig at the end of the world.
Nova York, Other Press, 2014.
SALGADO, Maria das Graças de Santana. Toda serra de longe é azul: o discur-
so da emoção na interação cliente-empresa. Tese de Doutorado em Letras, PUC.
Rio de Janeiro, 2003.
ZWEIG, Stefan. Pequena viagem ao Brasil. Organização Heike Muranyi; tradu-
ção Petê Rissatti. Rio de Janeiro: Versal, 2016.
_____. Brazil: land of the future. London, Cassel and Company, 1942.
_____. The world of Yesterday. Tradução para o inglês de Anthea Bell. Londres,
Pushkin Press, 2011.

Texto apresentado em março/2016. Aprovado para publicação em


junho/2016.

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215

II – COMUNICAÇÕES
NOTIFICATIONS

UM PIONEIRO DA LIMNOLOGIA NO BRASIL:


HERMAN KLEEREKOPER (1910-2005)
A PIONEER IN THE FIELD OF LIMNOLOGY IN BRAZIL:
HERMAN KLEEREKOPER (1910-2005)
Melquíades Pinto Paiva1

Resumo: Abstract:
Este trabalho trata de Herman Kleerekoper This paper deals with Herman Kleerekoper
(1910 – 2005), um dos fundadores de estudos (1910 - 2005), one of the founders of limnologi-
limnológicos no Brasil (1936 – 1947). São cal studies in Brazil (1936 - 1947). We present
apresentados dados biográficos e lista dos seus biographical data and a list of his works about
trabalhos sobre o Brasil, com os comentários Brazil, accompanied by relevant comments.
pertinentes.
Palavras-chave: Herman Kleerekoper; Limno- Keywords: Herman Kleerekoper; limnology;
logia; Brasil. Brazil.

São poucas e esparsas as informações sobre a vida de Herman Klee-


rekoper (1910 – 2005), algumas vezes mesmo contraditórias. Quando isto
acontece, me oriento por seu curriculum vitae ou adoto aquela que me pa-
rece mais verossímil. Sem dúvida, a melhor fonte disponível de consulta
foi sua filha sobrevivente (2013), Catie Allan (nee Kleerekoper).

Este importante cientista nasceu em Amsterdam (Holanda), em 19


de dezembro de 1910. Era filho de Jacob Gerrit Kleerekoper e Elizabeth
van Es Kleerekoper. Casou-se com Coby van Neck Kleerekoper em 1933,
na Holanda (por procuração), e tiveram dois filhos.

Após concluir o curso de Agricultura no Ginasium de sua cidade


natal (1930), mudou-se para o Brasil (1932) a convite da família Guinle,
para cultivar orquídeas em Petrópolis (RJ). Ao aparecer como limnolo-

1 –1 Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo. Professor emérito da Universi-


dade Federal do Ceará. Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Melquíades Pinto Paiva

gista, suas pesquisas cobriram represas do Estado de São Paulo; depois,


trataram de lagoas costeiras do Estado do Rio Grande do Sul.

Foi contratado pela Escola de Agronomia de Viçosa (MG), onde fi-


cou por dois anos (1933 – 1935), na condição de professor. No ano se-
guinte (1936), começou sua carreira de limnologista na Repartição de
Águas e Esgotos de São Paulo (Figura 1), lotado na Represa de Santo
Amaro (hoje Represa de Guarapiranga), na zona metropolitana da cidade
de São Paulo (SP).

Somente em 1938 começou a trabalhar no Departamento de Botâ-


nica da Universidade de São Paulo, convidado pelo professor Felix Kurt
Rawitscher (1870 – 1957), seu fundador e primeiro chefe.

Em 1941 foi para o Sul, com o objetivo de estudar as lagoas costei-


ras da bacia hidrográfica do Rio Tramandaí (RS), onde fundou o Posto
de Piscicultura da Lagoa dos Quadros (Figura 2), que em 2011 recebeu
a denominação de FEPAGRO Aquicultura e Pesca – Centro de Pesquisa
Herman Kleerekoper, situado no município de Terra de Areia – desmem-
brado do município de Osório (RS).

Deixou o Brasil em 1947 e foi para a University of Michigan (USA),


cursando o mestrado (1947 – 1948), como bolsista do U.S. Department
of State.

Naturalizado brasileiro em 13 de maio de 1940, por Decreto do Pre-


sidente da República do Brasil (DOU de 15/05/1940, Seção I, p. 6).

216 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016


Um pioneiro da limnologia no Brasil: Herman Kleerekoper (1910-2005)

FIGURA 1 – Herman Kleerekoper (1910 – 2005). Foto tirada em novembro de 1936, na cidade de São Paulo
(Brasil). Cortesia de Catie Allan (nee Kleerekoper).

FIGURA 2 – Carro do Posto de Piscicultura da Lagoa dos Quadros (RS), usado de 1942 até 1947. Cortesia de
Catie Allan (nee Kleerekoper).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016 217


Melquíades Pinto Paiva

Em 1948 ingressou no corpo docente da McMaster University (Fi-


gura 3), em Hamilton – Canadá, como membro do seu Departamento
de Biologia, que chefiou nos anos de 1951 – 1960. Então, ensinava Ic-
tiologia, e pesquisava, principalmente, a fisiologia sensorial dos peixes.
Enquanto esteve no emprego canadense, obteve dois doutorados: na Uni-
versity of Michigan (USA) em 1950; na Université de Paris (França) em
1957. Também adotou a nacionalidade do Canadá. Professor Emérito,
após seu desligamento da McMaster University.

Por fim (1968), mudou-se para os Estados Unidos da América, tor-


nando-se professor titular (Full Professor) no Departamento de Biologia
da Texas A&M University (Figura 4), com aposentadoria em 1978. De-
signado seu professor emérito, em virtude dos trabalhos sobre o olfato
nos peixes.

Ainda esteve no Brasil em quatro ocasiões: três em missão de assis-


tência técnica da Canadian International Development Agency – CIDA
(1971 – 1978) junto ao Laboratório de Ciências do Mar da Universidade
Federal do Ceará (Fortaleza – CE); convidado para participar como con-
ferencista, do III Congresso Brasileiro de Limnologia (1990), realizado
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre – RS).

Pertenceu às seguintes instituições científicas: Animal Behavior


Society (USA); American Association for the Advancement of Science;
American International Association of Theoretical and Applied Limnolo-
gy; American Fisheries Society; American Society of Zoologists; Ameri-
can Society of Physiologists; Canadian Society of Zoologists; Ecological
Society of America; e, Royak Society of Medicine (London).

Teve longa vida (Figura 5). Morreu aos 12 de julho de 2005 em Re-
gina (Saskatchewan – Canadá).

AVALIAÇÕES SOBRE HERMAN KLEEREKOPER


– “His studies of fish orientation are, I consider, among the best that
have ever been done. He has been extraordinarily ingenious in the design

218 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016


Um pioneiro da limnologia no Brasil: Herman Kleerekoper (1910-2005)

and construction of equipment and thoroughly imaginative in the analy-


sis of his data and in deriving conclusions.” Carta do Professor Frank A.
Brown, Jr. da Northwestern University (Evanston – Illinois), com data de
01/03/1971, para Dr. J. van Overbeek, diretor do Institute of Life Science
(Texas A&M University).

– “Let me first say that he is a man with extremely wide interests and
great competence in a number of fields. During the last years, however,
he has made his contribution through pioneering instrumentation for the
investigation of sensory and behavior problems in fishes.” Carta do pro-
fessor John E. Bardach, da University of Michigan (Ann Arbor – Michi-
gan), com data de 01/03/1971, para J. van Overbeek, director do Institute
of Life Science (Texas A&M University).

FIGURA 3 – Herman Kleerekoper (1910 – 2005). Foto tirada em 1966 – Hamilton (Ontário – Canadá). Cortesia
de Catie Allan (nee Kleerekoper).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016 219


Melquíades Pinto Paiva

FIGURA 4 – Herman Kleerekoper (1910 – 2005), possivelmente do início dos anos 70 (século XX). Cortesia do
Departamento de Biologia da Texas A&M University (USA).

FIGURA 5 – Herman Kleerekoper (1910 – 2005). Foto tirada em Regina (Saskatchewan – Canadá) – 2003.
Cortesia de Catie Allan (nee Kleerekoper).

220 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016


Um pioneiro da limnologia no Brasil: Herman Kleerekoper (1910-2005)

– Dr. Kleerekoper’s works fall naturally into two sections. Those


relating to limnology… and those relating to sensory physiology and
behavior in relation to sensory stimuli. In both fields his work has been
characterized by imaginative approach, clever technique, bold investiga-
tion, and tenacity of endeavor culminated by synthesis in wich his own
researches have lent illumination to those reported in the literature.” Car-
ta do professor F. E. J. Fry, da University of Toronto (Canadá), com data
de 24/03/1971, para J. van Overbeek, diretor do Department of Biology
(Texas A&M University).

– “Kleerekoper pode ser considerado como o cientista que mais con-


tribuiu para a estruturação da limnologia nos primeiros anos desta ciência
no Brasil.” [ESTEVES, (1988) 2011:37].

Janet W. REID (1957:592 – 599) dedicou a Herman Kleerekoper o


tipo do novo gênero de copépodos do Brasil – Austrinodiaptomus novo
gênero, e a nova espécie A. kleerekoperi.

BIBLIOGRAFIA BRASILEIRA
KLEEREKOPER, H. – 1939 – Estudo Limnológico da Represa de
Santo Amaro em São Paulo. Bol. Fac. Phil. Sciên. Letr. USP – Botânica,
São Paulo, (2):11 – 151, 2 + 83 figs.

Extenso estudo conduzido nas águas de Guarapiranga (rio e lago),


entre outubro de 1936 e maio de 1939. Trata-se de represa urbana e sub-
tropical, situada no Estado de São Paulo (Brasil), com as coordenadas de
23º 43’ latitude sul e 46º 32’ longitude oeste; tem 740 m de altitude, 35
km2 de área inundável; e, capacidade de acumular 200 x 103 m3 d’água.
Foram feitas observações sobre o clima, a temperatura do ar e da água, a
cor da água e sua composição química, e por fim do plâncton. É pobre em
eletrólitos e produção biológica. Represa hidrelétrica e de abastecimento
d’água para a zona metropolitana da cidade de São Paulo. “Considering
that very little is known about subtropical lakes, the program of the inves-
tigation was organized in order to survey a number, as large as possible,
of interesting physical, chemical and biological factors.” (p. 139).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016 221


Melquíades Pinto Paiva

KLEEREKOPER, H. – 1940a – A economia do nitrogênio e do fós-


foro em águas do Estado de São Paulo. Jornal de Agronomia, Piracicaba,
3 (2) : 111 – 144, 4 figs. (em páginas não numeradas).

Apresenta dados sobre a economia do nitrogênio e do fósforo no rio


e represa de Guatiní (Jundiaí – SP). Demonstra o esmagamento de nitra-
tos na camada trofogênica e assinala a quase constância dos fosfatos na
represa e a existência de problemas de absorção, com o desaparecimento
dos nitratos pouco acima do fundo.

KLEEREKOPER, H. – 1940b – Um caso de mortandade de peixes


e sua causa. Ministério da Agricultura/Divisão de Caça e Pesca, 26 pp., 1
+ 4 figs., Rio de Janeiro.

Relata experimento sobre mortandades de peixes em aquários da Es-


tação Experimental de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura, em
Pirassununga (SP) – abril de 1940. A conclusão alcançada diz respeito à
quantidade de agressivo dióxido de carbono, que dissolve o zinco contido
na tubulação da água que chega aos aquários, formando carbonatos de
zinco e bicarbonatos.

KLEEREKOPER, H. – 1941 – Estudo limnológico da bacia do Rio


Mogi-Guassu. I – Observações limnológicas sobre a represa da Estação
Experimental de Caça e Pesca do Ministério da Agricultura em Emas,
Estado de São Paulo. Ministério da Agricultura/Serviço de Informação
Agrícola. 53 pp., [2] + 6 figs., IV ests., Rio de Janeiro.

Estudo minucioso de pequena represa existente na então denomina-


da Estação Experimental de Caça e Pesca (Pirassununga – SP). Contou
com a colaboração de muitos especialistas para a identificação do mate-
rial biológico coletado. Discute os parâmetros físicos, químicos e bioló-
gicos da represa, resultantes de observações efetuadas entre março/1940
e março/1941. Os valores extremos encontrados para os gases dissolvidos
foram: 34,8 mg de gás carbônico livre e 0,34 mg de oxigênio dissolvido
por litro d’água do fundo. Represa distrófica com insignificante produção

222 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016


Um pioneiro da limnologia no Brasil: Herman Kleerekoper (1910-2005)

biológica, apesar da presença de razoável quantidade de nutrientes. Estra-


tificações térmica e química foram frequentemente constatadas.

KLEEREKOPER, H. – 1944a – Instruções para a criação do peixe-


-rei. Ministério da Agricultura/Divisão de Caça e Pesca, 9 pp., Porto Ale-
gre.

Roteiro de estudos, observações e práticas sobre a criação do peixe-


-rei Odonthestes bonariensis (Valenciennes), nas lagoas da bacia hidro-
gráfica do Rio Tramandaí (RS). Intenta a divulgação de conhecimentos
necessários aos criadores deste peixe, e expansão da área de ocorrência,
com a distribuição de ovos embrionados e/ou alevinos.

KLEEREKOPER, H. – 1945b – Introdução ao Estudo da Limnolo-


gia. Ministério da Agricultura/Serviço de Informação Agrícola, 329 pp.,
15 figs., Rio de Janeiro.

Valioso livro didático, com muitos dados sobre as condições físicas,


químicas e biológicas de águas doces do Brasil, com destaque para os
açudes nordestinos e represas do Estado de São Paulo. No final se en-
contra extensa bibliografia. Tem por finalidade focalizar problemas de
interesse para a piscicultura no país.

KLEEREKOPER, H. – [1945] 1949 – O peixe-rei. Ministério da


Agricultura/Serviço de Informação Agrícola, 102 pp., 13 + IV figs., 2
mapas (um mapa em página não numerada), Rio de Janeiro.

“Na presente monografia foram apresentados os resultados de estu-


dos e trabalhos experimentais em torno da biologia, ecologia, reprodução
artificial, transporte, distribuição do peixe-rei da água doce, procedente
das lagoas litorâneas do Estado do Rio Grande do Sul e das possibilidades
de repovoamento dessas lagoas e povoamento de açudes e represas com
essa espécie de peixe.” (p. 99).

São apresentados dados da física e da química das águas das lagoas


litorâneas gaúchas, concluindo-se que a distribuição do peixe-rei é “em
parte, dominada pelo teor dos cloretos.” (p. 21).

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Melquíades Pinto Paiva

KLEEREKOPER, H. – 1955 – Limnological Observations in Nor-


theastern Rio Grande do Sul, Brasil I. Arch. f. Hydrobiol., Stuttgart, 50
(3/4) : 553 – 567, 1 fig.

Estudos limnológicos e biológicos conduzidos entre 1941 e 1947, na


área litorânea do nordeste do Estado do Rio Grande do Sul (Brasil). Os
dados obtidos nos diferentes biótopos existentes indicam que a bacia do
Rio Tramandaí, biogeograficamente, pertence à região do Rio da Plata.
Inventários da flora e da fauna foram realizados e o autor chama a atenção
dos leitores para os periódicos deslocamentos da boca do Rio Tramandaí.

Referências bibliográficas

Grande parte das informações biográficas sobre Herman Kleereko-


per, apresentadas neste trabalho, foram obtidas em conhecidas fontes vir-
tuais. Além disto, consultei os trabalhos abaixo relacionados.
BAYLEY, S. T. – 2008 – Biology at McMaster University 1890 to 1990. McMas-
ter University/Department of Biology, 166 pp., 2 + [41] figs., Hamilton.
ESTEVES, F. A. (coord.) – (1988) 2011 – Fundamentos da Limnologia. Editora
Interciência Ltda., 3ª ed., 826 pp., ilus., Rio de Janeiro.
NOMURA, H. – 1992 – Vultos da Botânica Brasileira – volume II. Coleção
Mossoroense, série C/volume 774, pp. 101 – 191, Mossoró. Nota sobre Felix
Kurt Rawitscher: pp. 128 – 129.
REID, J. W. – 1997 – Argyrodiaptomus nhumirim, a new species, and Austrino-
diaptomus kleerekooperi, a new genus and species, with redescription of Argyro-
diaptomus macrochaetus Brehm, new rank, from Brazil (Crustacea : Copepoda:
Diaptomidae). Proceedings of the Biological Society of Washington, Washing-
ton, 10 (4) : 581 – 600, 59 figs.
SCHWARZBOLD, D. A. – 2007 – Saudades Limnológicas: Herman Kleereko-
per. Boletim da Sociedade Brasileira de Limnologia, Rio Claro, 36 (2):58 –
59.

Agradecimentos: Sou grato às seguintes pessoas, por diferentes aju-


das que me prestaram, sem as quais não teria sido possível escrever este
trabalho: Antônio Carlos Gomes Lima, Catie Allan (nee Kleerekoper),
Francisco de Assis Esteves, Hitoshi Nomura, José Sávio Colares de Melo,

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Um pioneiro da limnologia no Brasil: Herman Kleerekoper (1910-2005)

Lieu Jean, Marcos Frederico M. Pinheiro, Marize Procópio, Quinn K.


Kleerekoper, Rebeca Woodworth e Thomas McKight.

Texto apresentado em abril/2016. Aprovado para publicação em ju-


nho/2016.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):215-226, jul./set. 2016 225


227

O 70º ANIVERSÁRIO DO FINAL DA SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL E O SEU SIGNIFICADO PARA O BRASIL1
THE 70TH ANNIVERSARY OF THE END OF THE
SECOND WORLD WAR AND ITS MEANING FOR BRAZIL
Sérgio Paulo Muniz Costa2

Resumo: Abstract:
No dia 8 de maio de 2015 se foram completa- 70 years have passed since the Allied victory
das 70 anos desde a vitória aliada sobre o nazi- over Nazi-fascism in Europe on May 8, 2015,
-fascismo na Europa, vitória da qual o Brasil a victory in which Brazil participated directly
participou diretamente na campanha marítima in the maritime campaign in the South Atlan-
no Atlântico Sul, com sua Marinha de Guerra tic with its Navy and Air Force, and also in the
e Força Aérea, e da guerra na Europa, na cam- war in Europe with the Brazilian Expeditionary
panha no Teatro de Operações da Itália, com a Force and the 1st Fighter Group participating
Força Expedicionária Brasileira e o 1º Grupo in the Italian Theater of Operations. This par-
de Aviação de Caça. Essa participação, ini- ticipation, initiated even before the declaration
ciada mesmo antes da declaração de guerra à of war to Germany and Italy in August 1942,
Alemanha e Itália em agosto de 1942, somada together with the task of defending its national
às exigências de defesa do território nacional e territory and protecting both the air and naval
de segurança das bases aéreas e navais cedidas bases ceded to the United States and the stabil-
aos Estados Unidos, bem como de estabilidade ity in the South American continent, particularly
no continente sul-americano, particularmente in the La Plata region, highlighted Brazil’s con-
na região do Prata, assinalou o ponderável es- siderable military effort to produce important
forço militar cometido pelo Brasil que haveria changes for the country, opening both abroad
de produzir mudanças importantes para o País, and at home new perspectives for its develop-
abrindo-lhe novas perspectivas, tanto externas, ment.
mundial e regionalmente, quanto internas, para
o seu desenvolvimento.
Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial; Keywords: Second World War; Brazilian Expe-
Força Expedicionária Brasileira; Defesa. ditionary Force; defense.

INTRODUÇÃO
Apreciar o significado da participação do Brasil na Segunda Guerra
Mundial, passados setenta anos do encerramento do conflito, é uma con-
tribuição importante para a compreensão da história do País, não só no
século XX, como ao longo de sua existência como nação independente.
Aproximando-se o final da guerra, o Brasil foi o único país realmente co-
gitado para ocupar uma eventual sexta cadeira no Conselho de Segurança

1 –1 Comunicação apresentada na CEPHAS do IHGB, no dia 13 de maio de 2015, no Rio


de Janeiro.
2 –1 Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016 227


Sérgio Paulo Muniz Costa

da ONU3, sem dúvida uma expressão de prestígio internacional, porém


insuficiente para traduzir a importância da participação do País no maior
conflito bélico da História segundo categorizações que contêm um poten-
cial de correlações válidas àquela época e que chegam aos nossos dias.

Na verdade, relacionar a importância ou o significado da participa-


ção do Brasil à sua admissão no círculo das grandes potências mundiais,
independentemente de haver ou não se concretizado essa hipótese, ex-
pressa um descolamento em relação às aspirações da sociedade brasileira,
seguida e manifestamente expostas nos diplomas legais de sua organiza-
ção política, bem como no tocante à sua identidade cultural. E se fosse
possível apontar um episódio ao fim da guerra que resumisse à perfeição
nossas aspirações e identidade, esse seria a recusa em atender aos líderes
militares norte-americanos que “desejaram que os brasileiros se manti-
vessem na Europa, por mais tempo, integrando as forças de ocupação”
(MACEDO, 1998, p. 162).4

O objetivo deste trabalho é apontar o significado da participação do


Brasil no conflito por intermédio da expressão característica de tempos de
guerra, a militar, a qual foi, como não poderia deixar de ser, condicionada
por fatores políticos, econômicos e psicossociais. E conquanto a parti-
cipação militar do Brasil tenha sido modesta em comparação a muitos
beligerantes, a forma pela qual ela se deu em determinado espaço explica
a sua efetividade, como se disse, medida não por um prestígio efêmero,
mas sim pelas mudanças que ela trouxe para o País, mundial, regional e
nacionalmente.

3 –1 “Mesmo ausente em Dumbarton Oaks, o Brasil foi o único país a ser cogitado naquela
Conferência como possível detentor de uma sexta cadeira permanente.” (GARCIA, 2012,
p. 20).
4 –1 Para uma apreciação da questão da eventual participação do Brasil no Conselho de
Segurança, é importante lembrar que entre a carta do embaixador Pedro Leão Velloso,
datada de 14 de maio de 1945, na qual reivindicava para o Brasil um lugar permanente do
conselho, e a resposta do secretário de Estado norte-americano E. R. Stettinius Jr., de 13
de junho, em que limitava a participação brasileira a um lugar não permanente, o governo
brasileiro negou a participação da FEB na ocupação da Europa, dando início ao repatria-
mento da força no dia 3 de junho.

228 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016


O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

A GUERRA MUNDIAL E O BRASIL


A deflagração da guerra em 1º de setembro de 1939 não pegou o Bra-
sil desprevenido. O Exército já vinha tomando uma série de medidas com
vistas ao aumento de seu poder de combate, como a aquisição de moderno
material de artilharia de campanha e antiaérea, reorganização da Aviação
do Exército, motorização e mecanização, incremento das radiocomunica-
ções e construção de rodovias e ferrovias no Sul do País. Paralelamente,
intensificaram-se as missões de cordialidade com o “propósito de serem
estreitadas as relações com os países vizinhos e, particularmente, entre o
Exército brasileiro e os das Nações sul-americanas mais próximas” (Ar-
quivo Histórico do Exército, 1939, p. 13).

Talvez o mais marcante episódio dessa diplomacia militar tenha


sido a visita ao Brasil do então subchefe do Estado-Maior do Exérci-
to dos Estados Unidos, o depois famoso general George Marshall, entre
25 maio e 7 de junho de 1939, retribuída pelo general Pedro Aurélio de
Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército Brasileiro, que se-
guiu para os Estados Unidos embarcado no encouraçado Nashville que
levava o general Marshall de volta aos Estados Unidos. O interesse de
Marshall era obter a concordância do Brasil em relação à instalação de
um dispositivo militar norte-americano no Norte e Nordeste brasileiro. O
general Góes Monteiro foi recebido nos Estados Unidos como hóspede
do governo americano e lá teve duas reuniões, a segunda secreta, com o
presidente Roosevelt, de quem ouviu três recomendações: 1ª) ele contava
com uma visita do presidente Vargas aos Estados Unidos; 2ª ) o Brasil
devia auxiliar o Paraguai; 3ª) a guerra arrebentaria naquele ano de 1939
(DUARTE, 1971, p. 61).

No final de 1939, com a Polônia já dividida entre a Alemanha e União


Soviética e com esta última atacando a Finlândia, a posição do Brasil
pode ser apreciada pela conclusão do relatório do ministro da Guerra,
general Eurico Gaspar Dutra, ao presidente da República, Getúlio Vargas.

A situação geral da politica mundial é de precaução contra os insultos


ostensivos de força, que, violentando o princípio das nacionalidades,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016 229


Sérgio Paulo Muniz Costa

postergam direitos, suprimem liberdades, rompem tratados, deixando


à mostra, em plena expansão, o princípio egoísta de espaços vitais e
da luta pela existência, que nada respeita nem mede contemplação aos
direitos alheios (Arquivo Histórico do Exército, 1940, p. 68).

A derrota da França em maio de 1940 perante as tropas alemãs cau-


sou profunda impressão nas nações ocidentais, inclusive o Brasil, e pre-
cipitou a adoção das medidas defensivas pelos norte-americanos. Se o
afundamento do encouraçado de bolso alemão Graf Spee defronte a Mon-
tevideo havia provocado, em dezembro de 1939, a 1ª Reunião de Consul-
ta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas no
Panamá, na qual se proclamou a neutralidade do continente, a ocupação
alemã da França e da Holanda, países que tinham colônias na América do
Sul, gerou, em julho de 1940, nova conferência, a de Havana, em que se
firmou um pacto entre as nações americanas pelo qual qualquer ataque a
uma delas seria considerado uma agressão a todas elas.

Em março deste ano, o Exército brasileiro realizou uma importante


manobra no campo de instrução de Saican, no Rio Grande do Sul, dirigi-
das pelo general Leitão de Carvalho, Comandante da 3ª Região Militar,
reunindo três divisões de Cavalaria. No dia 11 de junho, aniversário da
Batalha de Riachuelo, a bordo do encourado Minas Gerais, o presidente
Getúlio Vargas fez um desconcertante discurso que foi tomado como uma
manifestação de satisfação com a derrota francesa na Europa, impressão
que só a muito custo foi desfeita pelo ministro das Relações Exteriores,
Oswaldo Aranha, e pelo chefe do Estado-Maior, general Góes Monteiro.
No final do ano, o general Góes Monteiro viajou novamente aos Estados
Unidos, atendendo ao convite formulado pelos Estados Unidos para uma
reunião dos chefes de Estado-Maior das nações sul-americanas. Na via-
gem, confessando as reflexões que fez sobre o que se passara na Europa,
o general Góes Monteiro escreveu ao seu substituto interino, “recomen-
dando mudanças radicais nos planos de guerra” (DUARTE, 1971, p. 76).
Durante a estadia, Góes Monteiro deu início aos entendimentos com a
Panair do Brasil para a construção e melhoria das pistas de pouso que
interessavam aos norte-americanos no Norte e Nordeste (Ibid., p. 75).

230 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016


O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

No ano de 1941 a Alemanha alcançou o clímax de seu poder. Em


junho, rompendo o abjeto Pacto Molotov-Ribentrop, ela atacou a URSS.
Antes, já dominara os Bálcãs e a Grécia, e em fevereiro de 1941 fizera
desembarcar em Trípoli, na Líbia, a força comandada pelo general Erwin
Rommel, dando início à campanha do Norte da África que se estenderia
até 1943, com repercussões no Atlântico Sul. O sucesso de Rommel na
sua ofensiva desencadeada contra os ingleses em março deste ano, soma-
do às notícias de submarinos alemães operando a partir das Canárias, em
frente à costa marroquina, e ao domínio francês de Vichy em Dakar, no
Senegal, debruçada sobre o estreito do Atlântico Sul, aumentou a ansie-
dade norte-americana em relação à construção de bases no Nordeste bra-
sileiro. De um lado, os norte-americanos apontavam a possibilidade de os
alemães ocuparem rapidamente o Nordeste brasileiro, de onde seria difí-
cil expulsá-los, e, considerando insuficientes os meios militares do Brasil
para defender a região, pleiteavam sua ocupação com as próprias tropas,
onde construiriam bases aeronavais. Por sua vez, os brasileiros, que já
vinham mobilizando consideráveis efetivos para a 7ª Região Militar, com
seu Quartel-General sediado em Recife, recusavam-se a aceitar a presen-
ça de grandes contingentes terrestres norte-americanos em seu território,
solicitando, nos termos de acordos já estabelecidos com outros países,
o fornecimento de material bélico moderno pelos Estados Unidos para
equipar suas tropas que garantiriam a defesa da região e a segurança das
bases aéreas norte-americanas e brasileiras. A extensão, complexidade e
gravidade da situação militar do Brasil em 1941 podem ser apreciadas no
relatório do Ministro da Guerra ao Presidente da República.
De conformidade com sua ética política, o Brasil não hesitará e pôr-
-se-á necessariamente ao lado dos povos na luta sem tréguas imposta
pelo imperialismo aos países que não se resignaram abrir mão de suas
soberanias e independência. Sempre foi este o clima político, dentro
do qual viveu e progrediu, no seio da comunidade americana de na-
ções livres, e, na hora amarga, em que a agressão armada insinua uma
ponta de lança no coração do Novo Mundo, nossa Pátria não poderia
formar noutras fileiras senão naquelas onde reina a Justiça e o Direito.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016 231


Sérgio Paulo Muniz Costa

Infelizmente, porém, nossa situação militar não nos permite sequer a


defesa do Brasil metropolitano quanto mais atitude agressiva que exi-
giria uma declaração de guerra às nações nazi-fascistas-imperialistas.

Nossa situação geográfica é, em face da guerra mundial, bem difícil e


complicada. Para um país que não possue uma grande esquadra, nem
tem um grande exército, a vastidão do seu litoral e sua extrema área
são condições desvantajosas para sua defesa eficaz.

Além disso se atentarmos nas dificuldades momentâneas do comércio


exterior devido à guerra; a falta de mercado onde possamos adquirir,
em condições vantajosas, os suprimentos de que carecemos: a existên-
cia em nosso território de grandes aglomerações estrangeiras e a enor-
me dificuldade de adquirir, no exterior, os armamentos de que temos
urgentemente necessidade, se pensarmos em tudo isso, com critério e
patriotismo, verificaremos que a nossa atitude deve ser, acima de tudo,
de suma prudência e da mais meticulosa cautela.

E há de sobejo razões para isto.

A Comissão Mista americano-brasileira, reunida para encarar a pos-


sibilidade de defesa conjunta do Continente, vem encontrando certas
dificuldades na solução das questões que motivaram sua reunião, por
causa da falta de apoio sólido onde se possam arrimar as negociações
em curso, sem quebra da nossa soberania e dentro dos verdadeiros
princípios de cooperação pan-americana.

Como já tive a oportunidade de participar a Vossa Excelência, seme-


lhantes negociações só poderão prosseguir-se em havendo ambiente
favorável e espírito de inteira compreensão das realidades objetivas
da comunidade internacional de forma que, de parte a parte, se façam
concessões razoáveis e equânimes, que conciliem os postulados da
nossa segurança coletiva.

Nossos representantes militares julgaram oportuno suspender pro-


visoriamente as negociações até que se encontrem, por outras vias,
melhorias no ambiente político a ponto de favorecer, sem perigo para
nossa segurança geral, o prosseguimento das transações.

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

Não podemos, mesmo sob o falaz pretexto da defesa comum do he-


misfério abdicar dos sagrados e inalienáveis direitos, que nos assistem
de defender, como já tantas vezes o temos feito, nosso torrão natal.

A situação do Brasil está neste pé: ou viveremos com honra ou su-


cumbiremos corajosamente, antes que cedermos a quem quer que seja
uma parcela sequer de nossa Pátria. (Arquivo Histórico do Exército,
1941, pp. 125-126).

As melhorias no ambiente político a que o ministro da Guerra aludia


viriam em 1942, com a III Reunião de Consulta dos ministros das Rela-
ções Exteriores das Repúblicas Americanas, ocorrida no Rio de Janeiro,
entre 15 e 28 de janeiro de 1942, em seguida ao ataque a Peal Harbor (7
de dezembro de 1941) e à declaração de guerra da Alemanha aos Estados
Unidos (11 de dezembro), ao final da qual o Brasil rompeu relações diplo-
máticas com Alemanha, Itália e Japão.

Seguiram-se, em fevereiro, o afundamento por submarinos alemães


dos navios mercantes brasileiros Buarque e Olinda, ao largo da costa
norte-americana, e o desaparecimento do navio Cabedelo, provavelmente
também por ação de submarino alemão ou italiano. Em março, foram
afundados o Arabutã e Cairu; em maio, o Parnaíba, o Comandante Lira
e Gonçalves Dias; em junho, o Alegrete e o Pedrinhas; e em julho, o Ta-
mandaré, o Piave e o Barbacena, totalizando até aquele momento treze
navios afundados por submarinos do Eixo em águas afastadas da costa
brasileira, sem que fossem ouvidos os protestos diplomáticos do governo
brasileiro.

Nesse meio tempo, o Brasil e os Estados Unidos se puseram de acor-


do sobre as medidas de defesa do hemisfério que caberiam aos dois paí-
ses, firmando no Rio de Janeiro o acordo de 27 de maio “para regularem
o concurso de suas forças militares e econômicas da defesa comum do
continente americano” (MACEDO, 1998, p. 164).

Depois de recuar de um plano de ataque geral aos portos brasileiros,


com canhoneamento e minagem das barras, Hitler autorizou um ataque

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Sérgio Paulo Muniz Costa

de submarinos à navegação costeira brasileira a ser realizado em agos-


to de 1942. Entre os dias 15 e 19 de agosto, o U-507, comandado pelo
capitão-de-corveta Harro Schacht, afundou ao largo da foz do Rio Real
em Sergipe e na costa da Bahia, o Baependi, o Araraquara, o Aníbal Be-
névolo, o Itagiba, o Arará e a embarcação Jacira, com a perda de 607
vidas. No dia 22 de agosto, o governo brasileiro “reconheceu o estado de
beligerância imposto pela Alemanha e Itália” (MACEDO, 1998, p. 141),
no dia 31 foi declarado estado de guerra e no dia 16 de setembro decreta-
da a mobilização geral do País para a guerra.

Com a declaração de guerra, a Marinha do Brasil (MB) e a Força


Aérea Brasileira (FAB) entraram na batalha do Atlântico Sul, comboian-
do 3.164 navios, desde Trinidad-Tobago a Florianópolis, dos quais 1.577
eram brasileiros. No decorrer dessas operações de comboio, patrulha e
bloqueio de mercantes alemães a MB teve 66 contatos de combate com
a Marinha de Guerra alemã e a FAB destruiu um submarino alemão, dos
maiores e mais modernos, o U-199. Até o final da guerra, seriam afun-
dados mais onze navios mercantes brasileiros, totalizando trinta e dois
navios perdidos, com 972 mortos ou desaparecidos. A Marinha de Guerra
perdeu o transporte Vital de Oliveira, torpedeado, a corveta Camaquã,
por acidente, e, depois de encerrado o conflito, em 4 de julho de 1945, o
cruzador Bahia, em trágico incidente, acumulando 486 mortos ou desa-
parecidos.

A PERSPECTIVA DE TRÊS GUERRAS


a. A defesa do Nordeste

Em julho de 1941 se iniciou a convocação de reservistas no Nordeste


(DUARTE, 1971, p. 136), sendo a infantaria das novas unidades a serem
ali empregadas totalmente mobilizada e armada na região, enquanto as
unidades de artilharia, de cavalaria, a maior parte da engenharia, e de
comunicações foram transportadas do Rio de Janeiro, conforme depõe
em suas Memórias, o general Mascarenhas de Moraes, comandante da 7ª
Região Militar (Recife-PE) desde 21 de junho de 1940. Em pouco mais

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

de um ano, o efetivo da 7ª RM, ainda de acordo com o seu comandan-


te, subiu de cerca de 6.000 para 50.000 homens, sendo aquele comando
inspecionado, em setembro de 1941, pelo ministro da Guerra, general
Dutra, e em abril de 1942, pelo general Leitão de Carvalho, comandante
do Teatro de Operações de Este e Nordeste (TO – E/NE) que compreendia
os Estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia. Em 16 de abril começava a ocupação militar
de Fernando de Noronha. O Brasil completara a ocupação militar do Nor-
deste e estava agora pronto para firmar o acordo de cooperação militar
com os Estados Unidos, pelo qual as forças norte-americanas instalariam
bases aéreas e navais na região.

A 4ª Frota norte-americana estabeleceu sua base em Recife e dali,


contando com unidades navais brasileiras, deu início às suas operações
de guerra no Atlântico Sul. Foram estabelecidas diversas bases aéreas
norte-americanas e brasileiras na região, as principais em Parnamirim,
no Rio Grande do Norte, e em Recife, das quais se lançaram patrulhas de
detecção e combate à navegação inimiga, e mais tarde, depois da invasão
aliada no Norte da África, em novembro de 1942, estabeleceu-se uma via
aérea até Dakar.

Mesmo depois da invasão aliada no Norte da África, quando se ex-


tinguiu a ameaça de um ataque alemão ao saliente nordestino, a presen-
ça militar brasileira continuou expressiva, em efetivos e equipamentos,
representando o sustentáculo da soberania brasileira na região pela qual
fluiu um dos maiores esforços militares da História contemporânea.

Para o Exército brasileiro, que chegou a desdobrar duas divisões de


infantaria completas, com as respetivas artilharias orgânicas, a mobili-
zação para a defesa do Nordeste se constituiu em valiosa oportunidade
para a modernização da força, na medida em que foram recebidos e ali
empregados materiais novos, blindados e mecanizados e motorizados que
constituiriam, posteriormente, o núcleo de modernidade do Exército.

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Sérgio Paulo Muniz Costa

b. A ameaça no Sul

Era antiga a preocupação brasileira com uma agressão militar da Ar-


gentina, dado o conhecido inconformismo de setores da sociedade daque-
le país com a configuração geopolítica vigente no Prata. Com a aproxi-
mação de nova guerra mundial, esse receio aumentou em vista da nítida
aproximação de lideranças civis e militares argentinas com a Alemanha
e a Itália. Paralelamente, a pressão norte-americana pela cessão de bases
no Nordeste colocava o governo brasileiro diante de uma difícil decisão
de carrear meios militares para aquela região, em detrimento da defesa
de outra tradicionalmente ameaçada. Após a visita do general Marshall
ao Brasil, em maio e junho de 1939, o general Góes Monteiro, chefe do
Estado-Maior do Exército brasileiro, começou a estudar cuidadosamente
a questão, atento à garantia da soberania nacional no Norte e Nordeste do
País onde os norte-americanos pleiteavam a construção de bases aéreas e
navais mantidas por suas forças terrestres, inicialmente com vistas à de-
fesa do Canal do Panamá e, posteriormente, para constituir o denominado
“trampolim da vitória” que levaria aviões, homens e suprimentos para a
luta que os Estados Unidos travariam na Europa e na Ásia.

No Sul do País, a existência de núcleos de colonização alemã e ita-


liana resilientes à cultura brasileira e permeados pela ação subversiva das
embaixadas alemã e italiana no Brasil que, a partir de 1937, passaram
a dispor “ao lado da representação diplomática, de uma representação
partidária” (SEITENFUSS, 2003, p. 51), potencializava a ameaça à segu-
rança nacional, o que levou à tomada de medidas preventivas, não só de
aprestamento militar como também de absorção cultural desses contin-
gentes de imigrantes não assimilados, e mais tarde, depois da declaração
de guerra, a medidas drásticas, como o isolamento coercitivo de alguns
desses grupos. Mas a preocupação real no Sul era com a Argentina, que
o governo brasileiro sabia, no início de 1942, “em franca, ativa e rápi-
da mobilização de suas forças armadas, auxiliada por numerosos agentes
militares e técnicos, industriais alemães, italianos e japoneses” (GAMA;
MARTINS, 1985, p. 361). No entanto, a relativa estabilidade interna da
Argentina, a manutenção de um efetivo considerável do Exército brasi-

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

leiro na região5 e uma intensa diplomacia, inclusive militar, mantiveram


essas preocupações no nível de cuidadosa atenção.

Em 1943, a situação mudou drasticamente, com a denominada re-


volução de 3 de junho que derrubou o governo constitucional da Argen-
tina, substituído por um governo militar presidido pelos generais Arturo
Rawson e Pedro Pablo Ramirez. O problema que surgia era bem maior
do que uma ditadura militar, pois, conforme constava do documento obti-
do pelo Adido Militar brasileiro em Buenos Aires (Arquivo Histórico do
Exército, 3 de setembro de 1943), o novo presidente, general Ramirez, e
o seu ministro da Guerra, o general Farrel, eram apoiados pelo Grupo dos
Oficiais Unidos (G.O.U), um grupo ultranacionalista de militares argenti-
nos com posicionamentos fascistas e expansionistas, já influente antes do
golpe e agora no poder. Era figura proeminente do G.O.U o coronel Juan
Domingo Perón, que fora Adido Militar da Argentina na Itália entre 1939
e 1941, colocado agora à testa do Departamento Nacional do Trabalho do
governo Ramirez, onde criaria sua base política populista que alavancaria
sua ascensão definitiva ao poder. Com a queda do general Ramirez em 25
de fevereiro de 1944, assumiu a presidência o seu ministro da Guerra, ge-
neral Edelmiro Farrel. Com isso, Perón se tornou vice-presidente e minis-
tro da Guerra, acumulando esses cargos com o de secretário do Trabalho,
empolgando incontestável poder no novo regime.

A situação na região se complicou seis meses depois, com um golpe


de estado na Bolívia, desencadeado em 20 de dezembro de 1943 pela “lo-
gia Razón de Patria (Radepa), organizada por exprisioneros de la Guerra
del Chaco y por el MNR6, partido político que por primera vez llegó al
poder, a pesar de estar cuestionado por los Estados Unidos y por fuerzas
internas del país” (AGUIRRE, 1999, p. 60). A junta governativa boliviana
presidida pelo major Villaroel foi logo reconhecida pelo regime que havia
se instalado em Buenos Aires desde junho (Arquivo Histórico do Itamara-
5 –1 A mobilização militar para guarnecer o Norte e o Nordeste se fez principalmente com
a criação de novas unidades do Exército organizadas no Rio de Janeiro e com outras já
existentes que foram transferidas para aquelas regiões. As unidades do Sul permaneceram
em suas guarnições.
6 –1 Movimento Nacionalista Revolucionário.

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Sérgio Paulo Muniz Costa

ty, janeiro de 1944), o que levantou suspeitas dos norte-americanos sobre


um conluio de interesses contrários aos das Nações Unidas.

A insatisfação norte-americana com a Argentina provinha da sua re-


sistência em romper as relações com os países do Eixo, o que acontece-
ria, depois de grandes pressões, somente em janeiro de 1944, o que, na
opinião de historiadores, custaria ao general Ramirez a perda do poder
para seu ministro da Guerra e a radicalização do regime. Com isso, a
frustração norte-americana com a Argentina daria lugar a uma crescente
irritação, verbalizada mais tarde pelo próprio presidente Roosevelt, em
30 de setembro de 1944, que se referiu à “crescente aplicação de métodos
nazifascistas num país desse hemisfério” (COSTA, 2004, p. 343).

O Brasil já se aproximara da Bolívia no governo anterior, do general


Enrique Peñaranda, que visitou o País em junho de 19437, logo depois do
golpe na Argentina, e agiria com rapidez e habilidade para conter o agra-
vamento da situação decorrente do golpe de dezembro em La Paz. Em 29
de junho de 1944, o ministro da Aeronáutica, Dr. Joaquim Pedro Salgado
Filho, visitou a Bolívia (Arquivo Histórico do Itamaraty, 5 de julho de
1944), sendo alvo de diversas honrarias. A ação brasileira favoreceu as
garantias que o novo regime boliviano vinha procurando dar no sentido
de reafirmar o seu alinhamento com as Nações Unidas, desanuviando a
situação.

No entanto, como se viu acima, na Argentina, ao longo de 1944, a si-


tuação continuou a se agravar e o Brasil procurou usar o Comitê Consul-
tivo de Emergência de Montevideo, tanto como um canal de comunicação
com Buenos Aires, evitando-se o seu completo isolamento que agravava
o risco de guerra, como para a superação da crise boliviana. A impren-
sa portenha falava abertamente em guerra contra o Brasil e os Estados
Unidos fizeram demonstrações navais no Prata. Em 4 de maio de 1944,

7 –1 É digno de nota o discurso de improviso com o qual o presidente Vargas respondeu


à saudação do general Penãranda no banquete oferecido pela Embaixada da Bolívia em
27 de junho de 1943: “Os países exacerbados por nacionalismo exaltados e imperialistas
fecharam-se em autarquias de toda natureza, vedando qualquer colaboração, intercâmbio
ou aproximação de boa fé” (BRASIL, 1943).

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

o ex-chefe do Estado-Maior do Exército, general Goés Monteiro, ago-


ra enviado especial do governo brasileiro à Comissão em Montevideo,
escrevia da capital uruguaia para seu amigo general Dutra, informando
que escrevera para o presidente Vargas e para seu chanceler, o ministro
Oswaldo Aranha, “sobre a situação na bacia do Prata, a qual permanece
estacionária no presente, porém sempre inquietadora para o futuro con-
forme as circunstâncias que decorrem da guerra” (Arquivo Histórico do
Exército, 4 de maio de 1944). Também de Montevideo, o Delegado bra-
sileiro escrevia ao general Goés Monteiro, dando conta das grandes ma-
nobras do Exército argentino em Córdoba e das declarações atribuídas ao
coronel Perón, já vice-presidente e ministro da Guerra, de que “a Guerra
entre a Argentina e o Brasil era uma contingencia ineluctavel do destino
dos dois povos” (Ibid., 6 de novembro de 1944).

Independentemente de sua consistência, as ameaças argentinas fo-


ram levadas em conta pelo governo brasileiro que tomou medidas para
a “cobertura no Sul”, transferindo em 1944 o 1º e o 2º Regimento Mo-
tomecanizado e o 3º Batalhão de Carros de Combate do Rio de Janeiro
para Santo Ângelo, Porto Alegre e Santa Maria, respectivamente, no Rio
Grande do Sul (Arquivo Histórico do Exército, 1944, p. 14), onde já vi-
nha criando novas unidades de todas as armas, dentre elas o II Grupo
do 4º Regimento de Artilharia de Divisão de Cavalaria, atual 27º Grupo
de Artilharia de Campanha, em Ijuí, cidade de forte colonização alemã
(fevereiro de 1943). No que diz respeito à Marinha de Guerra, o Brasil
transformou, em 24 de abril de 1944, o antigo grupo de patrulha naval do
Sul em Força Naval do Sul (GAMA; MARTINS, 1985, p. 300), reforçan-
do-o com corvetas da classe Felipe Camarão e a Corveta Jaceguai, em
face dos seguidos incidentes com navios argentinos que denunciavam os
comboios escoltados pelos navios brasileiros (Ibid., p. 323). A seriedade
com que o governo brasileiro tomou as ameaças argentinas pode ser me-
dida pelo fato de que o chefe da Subcomissão brasileira, general Leitão
de Carvalho, só anunciou estar autorizado a participar dos estudos para
a constituição de uma força expedicionária do Brasil para combater fora
do continente depois que foi aprovada pela Comissão Mista em Washing-

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Sérgio Paulo Muniz Costa

ton a recomendação nº 15, de 12 de abril de 1944, pela qual se “definia


a colaboração dos Estados Unidos no caso de um ataque à região sul do
Brasil, durante a guerra que se sustentava contra as potências do Eixo”
(DUARTE, 1971, p. 329), reforçando o que previa o Acordo de 27 de
maio de 1942.

Imediatamente antes do embarque da FEB para a Itália e enquanto


ela entrava em combate na Itália, o Brasil enfrentava no Prata a possibili-
dade de outro conflito de consequências imprevisíveis. Por mais inveros-
símil que isso possa parecer, confirmando as palavras do presidente Roo-
sevelt, a continuidade da influência de Perón, reforçada com sua eleição
em 1946, faria com que a tensão militar persistisse no Prata ao longo de
todo o seu governo (deposto em 1955), durante o qual a Argentina em-
barcou num ambicioso e custoso projeto armamentista que esvaiu todas
as suas reservas monetárias acumuladas durante a guerra e terminou por
inviabilizar sua economia.

Não obstante a atitude da Argentina durante a guerra e as preocu-


pações que ela causou ao governo brasileiro, este empenhou os maiores
esforços para superar as fortes resistências que se levantaram contra a
admissão daquele país nas Nações Unidas.

c. A guerra na Europa

A participação brasileira na guerra na Europa nasceu efetivamen-


te na reunião da Comissão Mista de Washington8, em 20 de janeiro de
1943, na qual se tratou da cessão ao Brasil de armamento pelos Estados

8 –1 Em 27 de maio de 1942, três meses antes da entrada do Brasil na Guerra, foi firmado
pelo ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha e o embaixador Jefferson Caffery
o Convênio Político-Militar entre os Estados Unidos do Brasil e os Estados Unidos da
América, pelo qual os dois países combinavam medidas para a defesa comum do con-
tinente americano. Dentre as medidas acertadas, previa o acordo a organização de duas
comissões técnico-militares mistas brasileiro-americanas, uma no Brasil e outras nos Es-
tados Unidos (art. I); o emprego das forças brasileiras dentro de seu território, e só excep-
cionalmente, em outros pontos do continente; a organização de bases aéreas e navais que
podiam ser ocupadas por forças norte-americanas; e a assistência americana ao Brasil no
caso de ele ser agredido por outra República americana considerada pelos Estados Unidos
como simpática às potências do Eixo ou por elas instigada. (MACEDO, 1998, p.164).

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

Unidos para a defesa do Norte e Nordeste. Argumentando que “com a


posse do norte da África pelas forças anglo-americanas, que lá haviam
desembarcado, cessavam os motivos para se temer um ataque inimigo
importante contra o Nordeste do Brasil” (DUARTE, 1971, p. 326), o con-
tra-almirante Spears, da Subcomissão norte-americana, rejeitou o projeto
de Recomendação nº 14 preparado pela Subcomissão brasileira, pelo qual
os Estados Unidos forneceriam material bélico para equipar três divisões
brasileiras incumbidas da defesa daquelas regiões, e “insinuou que ‘se a
preocupação do Brasil era obter material bélico, o caminho mais seguro
para tal objetivo era o de tomar parte com os aliados, na ofensiva que
estes projetavam contra a Europa’ ” (Ibid., p, 327).

Diante do impasse, a Subcomissão brasileira, chefiada pelo general


Leitão de Carvalho, não dispondo de autoridade para assumir compro-
missos além dos previstos no acordo de 27 de maio, optou por uma so-
lução intermediária e protelatória segundo a qual as “três Divisões [...]
constituiriam uma força apta a ser empregada em outras operações, de
colaboração com as forças americanas, segundo decidir do Governo bra-
sileiro” (Ibid.). O presidente Getúlio Vargas apoiou9 a decisão do general
Leitão de Carvalho e o cumprimentou, em carta datada de 29 de março
de 1943, na qual recomendava que se adicionasse às três divisões uma
divisão motorizada. A proposta de acréscimo brasileira não foi aceita pelo
general Ord, chefe da Comissão Mista de Washington, fixando-se a com-
posição da força expedicionária em um corpo de exército composto por
três divisões de infantaria. Mais tarde, o general Ord informou que só
poderia garantir a entrega de material para uma divisão apenas, o que,
aliado às dificuldades brasileiras para mobilizar e treinar o efetivo de um
corpo de exército, terminaria por limitar a futura força expedicionária
brasileira a uma única divisão de infantaria. Ficou acertado também que a

9 –1 Anteriormente, em 31 de dezembro de 1942, “por ocasião de almoço de confrater-


nização das classes armadas, o presidente Vargas assim se manifestou, em discurso, a
respeito de nossa intervenção militar fora do continente: … não devemos cingir-nos à
simples expedição de contingentes simbólicos. Queremos ser eficientes e, para isso, pre-
cisamos dispor de forças completamente treinadas e aparelhadas…” (MORAES, 1969, p.
115).

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força brasileira deveria estar pronta em um ano e que ela seria empregada
na Itália, que seria invadida pelas forças aliadas em julho de 1943. No
final do ano, uma comitiva brasileira chefiada pelo general Mascarenhas
de Morais, comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), via-
jou ao Norte da África e Itália para conhecer as peculiaridades do Teatro
de Operações do Mediterrâneo, onde combatia, na Itália, o 4º Corpo de
Exército dos EUA, ao qual em breve iria se juntar à 1ª Divisão de Infan-
taria Expedicionária (1ª DIE) da FEB.

Entre a visita da comitiva brasileira no final de 1943 e a entrada em


combate do Destacamento FEB (5.075 homens), em setembro de 1944, a
situação no teatro de operações italiano havia evoluído. Em nove meses,
depois da queda de Roma, do desembarque aliado na Normandia e do
novo desembarque aliado no Sul da França, a Itália passou de única frente
de luta aliada na Europa a front secundário, do qual foram extraídas seis
divisões aliadas, em meados de junho, para combater na França e que dei-
xou de ser prioritário também para o provimento de material bélico. Além
de ser o teatro de operações mais letal para as forças norte-americanas10
durante a Segunda Guerra Mundial, ali, por ocasião da entrada em linha
das forças brasileiras, os efetivos aliados e alemães se equivaliam, cada
qual em torno de 22 a 26 divisões, devendo as forças aliadas manterem
a ofensiva a todo custo a fim de impedir a transferência dos efetivos ale-
mães para as frentes ocidental e oriental. Assim, a 1ª DIE que chegou ao
front entre julho e outubro de 1944, constituiu-se em reforço importante
num momento crítico da guerra na Itália, onde lutavam apenas 7 divisões
de infantaria norte-americanas (MORAES, 2005, p.337).

A entrada em linha da força brasileira, embora bem-vinda num mo-


mento difícil para os aliados na Itália, trazia sérias preocupações para o
comando do V Exército norte-americano ao qual elas se incorporariam.
A propaganda nazista menosprezava o valor combativo da FEB e um re-

10 – No Oeste europeu, a média por divisão [americana] foi de 1.871 mortos, 5.954 feri-
dos e 1.232 prisioneiros. No Pacífico, a média por divisão foi de 736 mortos, 1.705 feridos
e 552 prisioneiros. Na Itália, a média por divisão foi de 5.543 mortos, 15.276 feridos e
2.854 prisioneiros. (MORAES, 2005, p. 337).

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

vés das inexperientes forças brasileiras teria consequências militares e


políticas desastrosas para o esforço de guerra aliado. Havia precedentes
inesquecíveis. Em abril de 1918, os alemães, na abertura de sua grande
ofensiva, identificando as tropas sem experiência do Corpo de Exérci-
to Português, concentraram sobre ele o peso do ataque, dizimando-o na
Batalha de La Lys. Os próprios norte-americanos experimentaram um
memorável revés na estreia de suas tropas na batalha do Passo de Kasse-
rine, em fevereiro de 1943, quando sofreram pesadas baixas e originaram
questionamentos do próprio presidente Roosevelt.

A atuação da FEB na Itália pode ser dividida em cinco fases. A pri-


meira, no Vale do Serchio, entre 15 de setembro e 30 de outubro de 1944,
em que o Destacamento FEB, constituído à base no 6º Regimento de
Infantaria, perseguiu o inimigo em retirada para a sua nova linha defen-
siva, a famosa linha Gótica, quase inteiramente bem-sucedida, com as
conquistas de Camaiore, Monte Prano e Barga, à exceção do revés sofrido
em Castelnuovo di Garfagnana, por falhas na reorganização da tropa após
a conquista de objetivos, o que traria importantes lições para a FEB.

A segunda fase, a defensiva-agressiva no Vale do Reno, entre 5 de


novembro e 12 de dezembro de 1944, contou com toda a divisão, sob o
comando do general Mascarenhas de Moraes, agora integrada também
pelos 1º e 11º Regimentos de Infantaria, recém-chegados do Brasil e
com seu treinamento e equipamentos incompletos. Devido à carência
de tropas aliadas e à necessidade de manter a pressão sobre o inimigo,
a 1ª DIE foi prematuramente empenhada numa extensa frente de quinze
quilômetros, com encargos missões de defesa e ataque superiores ao seu
poder de combate. Foi um período de grandes sacrifícios para a FEB,
com a realização de ataques sucessivos a Monte Castelo, em 24 e 25 de
novembro pela Task Force 45 norte-americana, contando com o III/6º RI
e o Esquadrão de Reconhecimento brasileiros, e a 29 de novembro e 12
dezembro, pela 1ª DIE, sem sucesso e com consideráveis baixas.

A terceira fase seria a da estabilização, entre 13 de dezembro de 1944


e 18 de fevereiro de 1945, depois do “malogrado ataque de 12 dezembro

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a Monte Castelo [...] o último da série de reveses que os aliados vinham


sofrendo na Itália” (MORAES, 1969, p. 230), durante a qual a FEB se en-
rijeceu, suportando um rigoroso inverno nos Apeninos e empreendendo
uma guerra de patrulhas contra o inimigo alojado nas alturas que domina-
vam a rodovia 64. Na noite de 25 de dezembro, repetindo o que fizeram
nas Ardenas, os alemães, tendo reunido 32 divisões contra as 24 aliadas,
desencadearam um ataque de surpresa no flanco esquerdo do V Exército,
sobre a 92ª Divisão norte-americana, que os levou até Barga, anterior-
mente conquistada pelo Destacamento FEB, sendo detidos a muito custo.

A quarta fase, entre 19 de fevereiro e 6 de março de 1945, seria a


da realização do Plano Encore do IV Corpo de Exército norte-americano
que enquadrava a 1ª DIE. Tratava-se de ataques preliminares à projetada
ofensiva de primavera em abril, com o objetivo de conquistar boas po-
sições de partida para a grande ofensiva e que liberassem a rodovia 64,
fundamental para o apoio ao avanço na direção de Bolonha. No dia 21 fe-
vereiro, atuando em coordenação com a 10ª Divisão de Montanha norte-
-americana, a 1ª DIE conquistou Monte Castelo, seguindo-se as vitória de
La Serra (23 de fevereiro) e Castelnuovo (5 de março).

A quinta fase, depois que a FEB foi transferida para o Vale do Pana-
ro, foi a da ofensiva da primavera, ocorrida entre 9 de abril e 2 de maio
de 1945, data em que se encerrou a guerra na Itália. Durante esse período,
a FEB, com tropa e comando experimentados, explorou ao máximo as
oportunidades que se lhe ofereceram, ultrapassando o papel que lhe havia
sido reservado nos planejamentos originais do 4º Corpo de Exército e do
V Exército norte-americanos. Foi assim que ela assumiu um papel dinâ-
mico, por iniciativa de seu comandante, aprovada pelo escalão superior,
na proteção do flanco esquerdo do ataque principal da 10º Divisão de
Montanha, obtendo a grande vitória de Montese (14 de abril), o primeiro
triunfo aliado na grande ofensiva. Em seguida, iniciada a perseguição do
inimigo que fugia na direção do Vale do Pó, a FEB surpreendeu aliados e
inimigos, embarcando sua Infantaria nas viaturas da Artilharia para blo-
quear (Collecchio, 26 e 27 de abril), cercar e bater (Fornovo, 28 de abril)
a vanguarda da 148ª Divisão alemã, levando à rendição dessa grande uni-

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

dade, dos remanescentes da 90ª Divisão Panzer Grenadier, veterana do


Afrika Korps, e da Divisão Bersaglieri Italia, com a captura (29 e 30 de
abril) de mais de 19.000 homens e farto equipamento, sendo a única di-
visão aliada que obteve tal êxito. No dia 2 de maio se encerrava a guerra
na Itália, com a capitulação de todas as forças alemãs naquele teatro de
operações.

O Brasil também enviou ao teatro de operações da Itália, o 1º Grupo


de Aviação de Caça, equipado com aviões P-47 Thunderbolt. Na ofensi-
va aérea aliada desencadeada entre 6 e 29 de abril de 1945 na Itália, os
caças brasileiros voaram 5% das missões do XXII Comando Aerotático
norte-americano, sendo-lhes creditados, no entanto, “15% dos veículos
inimigos, 85% de depósitos de munição danificados, 36% dos depósitos
de combustíveis e 28% das pontes atingidas” (FILHO, 2012, p. 18). A
atuação do 1º Grupo de Aviação de Caça nessa jornada lhe valeu a indica-
ção para a Presidential Unit Citation, condecoração finalmente concedida
pelo presidente Ronald Reagan em 1986, “sendo o nosso grupo de caça a
terceira unidade, não pertencente às Forças Armadas Americanas, a rece-
ber essa comenda.” (Ibid.).

O SIGNIFICADO DA PARTICIPAÇÃO DO BRASIL NA SEGUN-


DA GUERRA MUNDIAL
É ponto pacífico que a participação do Brasil na Segunda Guerra
Mundial foi de grande importância, consideradas a quantidade e a exten-
são dos acontecimentos que ela provocou no País; políticos, econômicos,
militares e psicossociais. Como resultado da guerra, o Brasil assumiu
uma feição democrática com a Constituinte de 1946, deu início ao seu
desenvolvimento e experimentou uma modernização em vários aspectos
de sua vida social, perceptíveis na educação, nos transportes, no consumo
de bens e serviços e nos hábitos da população, inclusive no seu cresci-
mento e mobilidade. Seria um exagero afirmar que as mudanças profun-
das observadas nessas grandes categorizações colocam a participação do
Brasil na Segunda Guerra Mundial num patamar de importância histórica

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016 245


Sérgio Paulo Muniz Costa

equivalente ao da vinda da Família Real em 1808? Se for uma provoca-


ção, que ela suscite reflexão.

As mudanças referidas decorreram de um sucesso, não apenas por


estar o Brasil do lado vencedor, mas principalmente pela forma como o
País atuou desde antes do início do conflito. Da gravidade dos aconteci-
mentos que, paulatinamente, envolveram o país infere-se, sem grandes
dificuldades, que uma atitude passiva do Brasil durante a guerra poderia
ter levado à perda de soberania e de território. Arroubos e decisões intem-
pestivas, por outro lado, poderiam ter provocado consideráveis prejuízos
e sacrifícios ao País, que sairia do conflito em condições não tão favorá-
veis como as que se deram de fato.

O Brasil, como se viu, quando já ia acesa a guerra com a perspectiva


de uma vitória do nazismo, posicionou-se ao lado das democracias para
tomar parte efetiva do conflito contra um inimigo vitorioso, lidando ao
mesmo tempo com um aliado poderoso e com um vizinho problemático.
Graças a essa atuação, que combinou prudência e ousadia, o Brasil emer-
giu da Segunda Guerra Mundial com maior prestígio, poder e controle de
seu destino.

Mas, passados setenta anos do encerramento do conflito, esquecidos


ou desconhecidos esses acontecimentos pela sociedade brasileira, quais
seriam as correlações das mudanças experimentadas no imediato pós-
-guerra com a nossa atualidade? Em outras palavras, como se define, nos
dias de hoje, a importância da participação do Brasil na Segunda Guerra
Mundial? A resposta é simples: pela memória.

Sem a lembrança do que foi realizado diante de grandes limitações


e riscos, sem a recordação do sacrifício cometido pelos que serviram nas
frentes de guerra e sem o reconhecimento dos êxitos alcançados, o Bra-
sil hoje corre o risco de não ter consciência do que é, e, principalmente,
do que pode ser. Esse é o significado da participação do Brasil num dos
acontecimentos mais importantes da História que foi esquecida pela sua
sociedade: o papel da memória.

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

1939

Visita do general Marshall


Maio de 1939

Retribuição do general Góes Monteiro


julho de 1939

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Sérgio Paulo Muniz Costa

1940

Figura 1. Vargas assiste as manobras do Exérci- Figura 2. Junho de 1940, a França


to brasileiro em Saicã, RS, março de 1940. é vencida.

Figura 3. 11 de junho de 1940, o polêmico


discurso de Vargas a bordo do Minas Gerais.

Figura 4. A Pan-American inaugura suas linhas


para a América do Sul.

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O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

1941

Os alemães na África do Norte.

A África no início do século XX.

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Sérgio Paulo Muniz Costa

A ENTRADA DO BRASIL NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Figura 2. Conferência de chanceleres


americanos – janeiro de 1942.
Figura 1. A ataque a Pearl Harbor
7 de Dezembro de 1941.

Figura 4. Baependi, 1ª vítima do U-507


Figura 3. Comissão Mista 15 de agosto de 1942.
Brasil EUA.

Figura 5. A Marinha do Brasil inicia Figura 6. Catalina da FAB


o sistema de comboios. que afundou o U-199.

252 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016


O 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial
e o seu significado para o Brasil

A DEFESA DO NORDESTE

A AMEAÇA NO SUL

Golpes na Argentina e na Bolívia, em junho e dezembro de 1943.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):227-254, jul./set. 2016 253


Sérgio Paulo Muniz Costa

A GUERRA NA EUROPA

Setembro de 1944 a maio de 1945.

Texto apresentado em outubro/2015. Aprovado para publicação em


fevereiro/2016.

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D. JOÃO III, D. CATARINA E O RIO DE JANEIRO


D. JOÃO III, D. CATARINA AND RIO DE JANEIRO
Fernando Lourenço Fernandes1

Resumo: Abstract:
A presença francesa na Guanabara, ao tempo da The French presence in Guanabara at the time
aventura de Villegagnon e da França Antártica, of Villegagnon´s adventure and the Antarctic
já era antiga e bem sabida tanto em Portugal France was already established and well known
quanto em grande parte da Europa atlântica e both in Portugal and in much of Atlantic and
mediterrânea. Não era, portanto, uma novidade Mediterranean Europe. It was, therefore, no
que pudesse assombrar a corte de D. João III. novelty that could have haunted the court of
Por que Lisboa tardou para agir contra a mano- King John III. Why did Lisbon delay acting
bra francesa de apropriação de seu território co- against the French maneuver of appropriating
lonial e por tão longo tempo? Que implicações its colonial territory and why for so long? What
geopolíticas o caso ensejava e que não teriam geopolitical implications were behind it and
sido percebidas pelo almirante Coligny, o men- why weren´t they perceived by Admiral Coligny,
tor do plano francês para La Ravardière. O texto the mentor of the French plan for La Ravard-
a seguir procura examinar o contexto dos acon- ière? The text seeks to examine the context of
tecimentos que levaram à fundação da cidade do the events that led to the founding of the city of
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Franceses; Rio de Janeiro; im- Keywords: French in Rio de Janeiro; geopoliti-
plicações geopoliticas; D João III. cal implications; King John III.

1 – O FORT DE LA CAROLINE E O FORT COLIGNY


Coincidência, ou não, a fundação da cidade do Rio de Janeiro ocor-
reu no mesmo ano de 1565 em que os espanhóis, de seu turno, desbara-
taram a Henriville, erigida pelos protestantes franceses na Flórida, o Fort
de la Caroline, e encetaram a edificação de San Agustin, considerada hoje
a mais antiga cidade dos Estados Unidos.

Não obstante as reclamações espanholas contra a presença de inva-


sores procedentes da França – e como ocorria na Guanabara, huguenotes
articulados no projeto de colonização do almirante Gaspard de Coligny
– Catarina de Médicis (a regente de Carlos IX) não tomou qualquer me-
dida a respeito, levando Filipe II a enviar Pedro Menendez de Avilés para
expulsar os intrusos.

O Villegagnon da Florida havia sido Jean Ribauld que logo ao che-


gar a território americano em 1562 ergueu um posto de defesa, o atual
1 –1 Sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Fernando Lourenço Fernandes

Charlesfort na Carolina do Sul, despachando mais tarde o segundo em


comando da expedição, René Goulaine de Laudonnière com 200 homens,
para erguer uma cidadela na costa meridional, não muito longe dali, o
Fort de la Caroline.

Em resumo, o Fort de la Caroline, assim designado em homenagem


a Carlos IX o rei da França – de onde derivam igualmente os nomes dos
estados americanos da Carolina do Norte e do Sul – ocupava original-
mente um espaço de aproximadamente 25 por 30 metros, ampliado para
o dobro pouco depois, com a construção de uma paliçada em todo o perí-
metro, onde foi utilizado o resistente cedro da Virgínia.

A armada de Pedro Menendez atingiu a costa da Flórida em 28 de


agosto de 1565, dia de San Agustin, o Santo Agostinho de Hipona, pa-
droeiro de Avilés, a terra natal do comandante da expedição. Imediata-
mente deu início à construção do aldeamento que, da mesma maneira
que o do Rio de Janeiro, com o nome de seu padroeiro São Sebastião, foi
denominado San Agustin.

Não perdeu muito tempo Menendez logo determinou o início das


operações contra o Fort de la Caroline, umas trinta e poucas milhas ao
norte, ataque firme que desbaratou os franceses. Os que se renderam, com
exceção de mulheres e crianças, foram passados no fio da espada e o forte
arrasado.

Os espanhóis, em San Agustin, a atual Saint Agustine perto de Jack-


sonville, construíram e progressivamente reforçaram a posição fortificada
original, erigida, como no Cara de Cão, em madeira. Mais tarde, já no sé-
culo XVII, acabaram por levantar, da mesma forma como os portugueses
no Rio, uma fortaleza de pedra e cal.

O episódio ocorrido em San Agustin, além das simpáticas evocações


às “cidades-irmãs” nascidas no mesmo ano de 1565, por idênticos mo-
tivos e circunstâncias, demonstra alguns fatos importantes – e até agora
não apreciados – com referência ao quadro geopolítico de então, aos inte-
resses fundados nas relações entre as potências ibéricas e, tão importante

256 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016


D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

quanto estes, às pretensões da França e ao olhar estratégico do então lu-


minar político e militar dos protestantes calvinistas, o almirante Coligny.

Um primeiro ponto a destacar, ao revelar a mudança de planos fran-


ceses quanto à Guanabara – tal o desbaratamento do velho esquema por
eles ali mantidos e, em particular, os do projeto desenvolvido por Ville-
gagnon – mostra muito mais, ou seja, a mudança total na estratégia do
almirante Coligny, também convencido da ampla vitória lusa em toda
a costa fluminense e a impossibilidade de alimentar qualquer esperança
quanto a fazer reviver o projeto.

Convém lembrar que os huguenotes ou protestantes franceses não li-


deraram o plano de Henrique II, a operação capitaneada por Villegagnon,
mas entraram a reboque nele cerca de dois anos depois, em 1557.

Ao que parece, o erro de Coligny com a nova campanha militar-


-colonial, agora na Carolina e Flórida, parece residir em ter avaliado a
ação portuguesa na Guanabara totalmente desligada da vigilância estra-
tégica da outra potência ibérica. Da mesma forma, o almirante claudicou
ao avaliar a capacidade de reação do inimigo, caso um esquema idêntico
ao da França Antártica despontasse nas regiões setentrionais atribuídas à
soberania da Espanha pelo Tratado de Tordesilhas.

Ao defender e assumir o projeto de ocupação, apelou para um con-


fiável comandante de operações huguenote, Jean Ribauld, elegendo terri-
tórios pouco frequentados pelos navios castelhanos na América continen-
tal. Ao contrário do Rio de Janeiro – e em tais circunstâncias – a presença
de estranhos ficaria bem mais difícil de ser percebida e, assim, ganhariam
tempo os expedicionários para construírem um firme baluarte em terra e
ampliarem a margem de oportunidade para os huguenotes na Europa co-
letarem recursos e despacharem reforços no apoio ao Fort de la Caroline.

Esse erro de avaliação ou de planejamento de Coligny iria custar


muito caro aos calvinistas e, em particular, ao corajoso Jean Ribauld, que
encontrou a morte nas mãos dos espanhóis, em 1565. Desta vez, o Estácio
de Sá era francês.

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Fernando Lourenço Fernandes

No caso do Rio de Janeiro, a falha maior pode ser atribuída a quem


planejou a ocupação da Guanabara com um estabelecimento colonial, se
não apenas nas barbas dos portugueses, nas dos espanhóis, arqui-inimigos
jurados da França e de suas ambições coloniais e imperiais.2 Na sequência
dos acontecimentos, isso também não foi percebido pelo almirante Gas-
par de Coligny, de malas prontas para se passar totalmente para o lado da
Reforma, de Calvino ou Jean Cauvin.

Não se deve perder de vista o fato importante de que os espanhóis já


se encontravam estabelecidos na Argentina desde, pelo menos, 1534 (par-
te norte), e que Buenos Aires havia sido fundada por Pedro de Mendoza
em 1536, o Puerto de Santa Maria de Buen Ayre. O rio Paraná, devassado
por eles e com instalação do forte de Corpus Christi, franqueara o acesso,
corrente acima, ao Paraguai, o que redundou no estabelecimento de As-
sunção em 1537.

As rotas de acesso abertas permitiam ligações com a “Serra da Prata”


em Potosí, no Peru e, não obstante os êxitos da expansão testemunhasse
inesperados fracassos (como o despovoamento de Buenos Aires ordenado
por Irala em 15413), o território argentino estava ocupado por núcleos de
colonização castelhana que se projetavam para o interior até Tucumán e,
note-se, provindos originalmente do Peru já conquistado.

É no Peru, como ocorreria no México pouco tempo depois, o en-


contro da fonte de riqueza tão procurada, as jazidas de prata com o im-
pacto econômico de expressão logo tornada grandiosa, como grandiosa
a expressão de riscos pela cobiça estrangeira. Para Carlos V e Felipe II,
não era com Portugal, mas com os franceses, ingleses e com a pirataria
no mar, isto é, com os caminhos do mar o foco de suas preocupações e
nestas, a rota do Atlântico Sul.

2 –1 Em 10 de agosto de 1557 os espanhóis, com Filipe II à frente, infringiram aos france-


ses uma derrota decisiva em Saint-Quentin, o que os levou às negociações de paz concluí-
das em 1559 com o tratado de Cateau-Cambrésis. No entanto, as tensões não deixaram de
prosperar.
3 –1 Somente em 1573 seria Buenos Aires reocupada.

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D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

Quando Villegagnon enceta a primeira viagem ao Brasil, a Cabo


Frio, em 1554, não somente os negócios dos castelhanos com a prata
peruana haviam crescido de maneira extraordinária, como em termos de
desenvolvimento social a cidade de Lima mostrava um padrão de relevo
cultural, com a universidade já constituída em 1551.

De seu turno, o conhecimento pelas monarquias ibéricas dos acessos


por terra, a partir das costas Sudeste e Sul brasileiras às regiões andinas
e ao Pacífico, era suficientemente difundido para ser levado em conta nas
avaliações estratégicas espanholas e portuguesas. Os chamados Peabirus,
os caminhos antigos a varar o continente, constituíam foco de preocupa-
ção, o que já vinha de longe.4

Em outros termos, a vulnerabilidade do flanco oriental das colônias


espanholas na América do Sul, ao levar-se em conta o presumível descaso
com a segurança da Guanabara por parte daqueles que a jurisdicionavam,
seria um elemento a mais a acrescentar ao problema, sobretudo ao revelar
uma aparente despreocupação de Lisboa com a estrutura logística dis-
ponível no lagamar carioca, capaz de oferecer apoio a meios navais e a
atividades militares do invasor, tão logo senhoreasse a região – além das
facilidades apontadas, a rede de comunicações terrestres para o interior,
os peabirus.5

A larga experiência alcançada na administração daqueles territórios


do outro lado da linha de Tordesilhas, os seus interesses ali e as crises

4 –1 Jaime Cortesão, ao narrar a extraordinária aventura do náufrago Aleixo Garcia, tri-


pulante português da armada espanhola de Solis – o qual, a partir de Santa Catarina e
largando do Paraná à frente de dois mil guaranis, foi atingir os redutos incas, antes de
Pizarro, cerca de 1522 – pergunta: Como explicar a profundíssima penetração de Aleixo
Garcia, num continente, cujo interior era totalmente desconhecido? Pouco antes, o autor
observara: “Com Aleixo Garcia seguiram quatro ou cinco náufragos, seus companheiros,
e uns dois mil guaranis, os quais de há muito, segundo Enrique de Gandia, conheciam não
só a existência do opulento império incaico, mas os caminhos que aí levavam, graças a
emigrações anteriores.” A Fundação de São Paulo, capital geográfica de Brasil, Livros
de Portugal, Rio de Janeiro, 1955, pp. 34 e 35.
5 –1 Quanto a este último destaque, é conveniente rememorar o papel de Inhaúma como
ponto inicial de uma importante rede de peabirus na Guanabara. Cfr. A Primeira feitoria
portuguesa no Brasil, Academia de Marinha, Lisboa, 1996, pp. 26 a 29.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016 259


Fernando Lourenço Fernandes

enfrentadas tanto nas colônias sul-americanas como na Europa não po-


deriam trazer expectativas simpáticas da Espanha quanto ao projeto de
Henrique II na Guanabara, exatamente por se tratar de envolvimento
francês. Para engrossar ainda mais a preocupação, as implicações com a
heterodoxia religiosa.

Um fato bem esclarecedor está contido na ordem recebida pelos ca-


pitães de navios espanhóis para atacarem, sem maiores considerações,
qualquer embarcação francesa encontrada nas águas do Brasil. Mas, do
lado português havia também cautelas, o que significa preocupações con-
jugadas com as de Madrid. Isso acontece, ao menos, quanto à rede de
comunicações terrestres, os peabirus no flanco oriental castelhano.

Ao vedar o plano do sacerdote Manoel de Nóbrega de transferir o


colégio jesuíta de São Vicente – da costa para o planalto de Piratininga –
comunicado pelo padre em carta de 1553, Tomé de Sousa, o governador-
-geral, adotava medida cautelar para manter fechada a rota do Paraguai
ou, pelo menos, restringir o acesso e desmotivar a criação de uma área
de vulnerabilidade. No entanto, a ordem (ou aconselhamento) de Tomé
de Sousa não prosperou, e com os jesuítas no planalto de Piratininga,
fundava-se também a cidade de São Paulo em 1554.6

Ocorrem, no entanto, a latere, outros aspectos a considerar.

As circunstâncias do momento em que se produz a ação militar de


Villegagnon no Rio de Janeiro encontram o cenário político luso cami-
nhando em paralelo ao do ambiente cultural da nobiliarquia portuguesa.
Uma tendência hoje conhecida como “castelhanização”.

Aquilo que Frei Luís de Sousa denominou a “segunda parte da vida


de D. João III” (a partir de 1540) é o período marcado pelo absenteísmo
do soberano acabrunhado pela morte do último de seus nove filhos e pela
transição progressiva, até se tornar completa, dos poderes reais para as

6 –1 SERAFIM LEITE, S.J., Nóbrega no dia 25 de janeiro de 1554, Revista do Instituto


Histórico e Geográfico Brasileiro, jan./mar. 1955, v. 226, pp. 354 a 361.

260 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016


D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

mãos da rainha D. Catarina. Vale recordar: espanhola, irmã de Carlos V, e


competente na ação política.

O próprio núncio papal em Lisboa esclarecia ao cardeal Alessandro


Farnese, em carta de 1545, com quem estava o mando em Portugal. “Era
a rainha quem governava”, dizia ele sem subterfúgios. Também em carta,
e sem rodeios, informava D. Catarina ao admirado irmão ter recebido de
D. João III os poderes da “governação para poder descansar”.7

De seu turno, o que pode parecer inércia portuguesa em agir para


deter os contrabandistas franceses desde logo, antes mesmo do episódio
França Antártica, reclama ser ponderado sob a perspectiva da situação
corrente em Lisboa, em especial naqueles primeiros anos após a subida
ao trono de D. João III, então um jovem de 19 anos.

Vale recordar alguns aspectos importantes dos acontecimentos e de-


safios de então. O refazimento da política quanto à presença militar lusa
no Norte da África, que também tardou, era um desses.

Vinculado a isso, a assiduidade da pirataria marroquina – encorpada


pela companhia de outros tantos assaltantes europeus – enxameando a
costa do Algarve na expectativa de barcos lusos desgarrados, solitários,
de regresso da Índia, da África e do Brasil, acrescentavam elementos im-
portantes às questões postas então diante do novo e jovem soberano.

Para engrossar o caldo de preocupações, um outro problema de segu-


rança dos mares, ainda mais sério, agitava as águas dos Açores infestadas
com pirataria oceânica em busca dos galeões espanhóis no regresso das
Índias. Naturalmente, os barcos lusos não seriam desprezados pelos as-
saltantes, obrigando Portugal a enfrentar o problema mediante a decisão
de el-rei de caçar os bandidos, resolução discutida com seus conselheiros

7 –1 A figura política de D. João III suscitou posicionamentos divergentes entre os his-


toriadores portugueses, tendo início com as acusações de incompetência disparadas por
Alexandre Herculano. De maneira oposta, da menos crítica à moderadamente crítica, sur-
giram bem mais adiante apreciações que se iniciam, grosso modo, com a de Alfredo Lopes
Pimenta.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016 261


Fernando Lourenço Fernandes

que nem sempre concordavam com ele. Portugal iria trabalhar para os
espanhóis?

E o que deveria ser colocado na lista de prioridades, com a ulterior


irrupção da armada turca pelo Mediterrâneo Ocidental e, para rematar o
pesadelo, ainda pelo Índico adentro? Os reflexos no comércio internacio-
nal de especiarias não demoraram a se manifestar, em prejuízo direto dos
interesses portugueses.

Transparece nisso tudo uma explicação para o que concorreu com a


postergação desse outro problema, o dos franceses na costa brasileira e,
mais especificamente, na Guanabara. A evolução do processo, sem em-
bargo de sua importância, transcorria em meio a um desafio bem maior: o
do futuro político do próprio Brasil e os reptos aí implicados, onde o dos
franceses era um desses.

O Brasil não se desenhava como um território de pequenas dimen-


sões, do outro lado do Mediterrâneo, mas de um espaço continental acima
e abaixo do equador confrontante com territórios e ambições espanholas
e estas, com a dos portugueses quanto a regiões consideradas suas. É
interessante notar, no amplo jogo de fatores envolvidos, um aspecto sin-
gular e estratégico para aqueles tempos. A costa brasileira, em termos de
duração de uma viagem a vela, mostrava-se bem mais próxima de Lisboa
do que, por exemplo, a da Guiné, a qual poderia ser alcançada mais rapi-
damente a partir do Brasil do que de Portugal.8

O encaminhar de soluções para as vulnerabilidades enfrentadas no


Brasil passou por várias etapas – por sinal bem conhecidas da historio-
grafia – que, ou se esgotaram ao longo do tempo e do decurso das cir-
cunstâncias, ou simplesmente fracassaram no todo ou em parte. Em ou-
tras palavras, os modelos de defesa e proteção, como a primeira delas,
as patrulhas ou expedições punitivas ao longo da costa – Martim Afonso
de Sousa, Cristóvão Jacques, etc. – não dissuadiram os contrabandistas e
violadores da costa.
8 –1 JAIME CORTESÃO, História do Brasil nos Velhos Mapas, Rio de Janeiro, DIP, 1965
e 1971.

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D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

A chamada fase, ou ponto de evolução do processo das Capitanias


Hereditárias (em Portugal denominadas capitanias-donatarias) e seu mo-
delo privatizador da colonização, não obteve os resultados aguardados.
O processo veio a ser atalhado pela instituição dos governos gerais, onde
o nome dos Sousa volta a aparecer com o primeiro governador. E é com
o terceiro governador, Mem de Sá, no Brasil a partir de 1558, que irão
surgir novas perspectivas políticas para a Guanabara, o Rio de Janeiro.

Por certo, essa mesma historiografia dá vulto de significância à cria-


ção do sistema de governo geral, notadamente, da etapa de instituição ao
término do mandato de seu terceiro titular, Mem de Sá. Quanto ao item
guanabarino, surge de maneira quase invariável como reação “causa-efei-
to” ao aparecimento no Rio de Janeiro de Villegagnon com seu projeto de
constituir o que denominou França Antártica.

Em outras palavras, um contexto bastante simplificado, como se a


criação da cidade do Rio de Janeiro atendesse apenas a esse fator e à
decisão episódica de Mem de Sá, o governador-geral. Por outro lado, na
historiografia portuguesa Villegagnon é uma nota de rodapé, quando não
com sua aventura localizada incorretamente.

2 – REALINHAMENTO E PERSONAGENS
Seria interessante reexaminar, sob um outro enfoque, o desempenho
de alguns personagens já aludidos aqui. Agora no contexto das circuns-
tâncias do ambiente político de Lisboa, naquela fase em que, para alguns
historiadores lusos, despontava o “redescobrimento” do Brasil.

O primeiro de tais personagens é Martim Afonso de Sousa. Sob a


nova perspectiva, o mais controvertido entre os governadores do império
português na Ásia (1542-1545) e também um dos principais representan-
tes da família Sousa na história colonial lusa do Oriente.9 Aliás, o prin-
cipal.

9 –1 SUBRAHMANYAM SANJAY, L'Empire portugais d'Asie, 1500-1700. Editions


Points, 2013, p. 162 (Tradução de Marie-José Capelle).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016 263


Fernando Lourenço Fernandes

Destacado membro de nobreza familiar do norte de Portugal, Mar-


tim Afonso, sobressaiu-se não apenas no também chamado “recomeço do
Brasil” com a sua conhecida viagem, como também nas intensas ativida-
des administrativas e de controle comercial na Ásia, como são narradas
na historiografia portuguesa.

Amigo do rei, de quem foi pajem nos tempos de príncipe-herdeiro,


jamais enfrentaram qualquer abalo na afeição assim cultivada. Tal ami-
zade prolongou-se com o casamento de D. João III, tornando-se Martim
Afonso de Sousa pessoa da mais alta consideração da rainha D. Catarina,
espanhola como a esposa desse nobre também conhecido na historiogra-
fia lusa como “governador das terras do Brasil”, isto em decorrência da
missão iniciada em dezembro de 1530 .

No seu retorno da Índia, achegou-se paulatinamente às correntes po-


líticas do assim chamado “partido espanhol” então vicejantes na corte
portuguesa, o que lhe aumentou ainda mais o prestígio pessoal junto à
rainha. Esta, por sua vez, viria a atribuir a Martim Afonso um papel de
rara importância nos assuntos de Estado10, exatamente nos anos 1960, a
década de fundação do Rio de Janeiro em 1565.

O prestígio desse homem seria ainda muito maior se forem levadas


em conta as críticas desfechadas contra ele11 em alusão à sua passagem
pela Índia e que não produziram maior efeito. De seu turno, não se deve
perder de vista, na tessitura dos laços familiares, o círculo de amizades aí
produzido e que desembocavam em outros destacados nomes, nomes que
combinavam, como espelho, o clã dos Sousa aos do Sá. Em outras pala-
vras, integravam facções ou partidos aliados e são nomes bem presentes
nessa fase histórica do Brasil quinhentista.

Com Martim Afonso, instalou-se no Oriente Português um claro fa-


voritismo ou uma indiscutível tendência, na designação para os cargos
públicos de pessoas desses dois ramos. E é quando regressa a Portugal
10 – SUBRAHMANYAM SANJAY, obra citada, p. 162.
11 – Com uma única exceção, entre os cronistas e historiadores quinhentistas, a de Diogo
do Couto.

264 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016


D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

que fica ainda mais evidente o relevo de seu nome junto à família real,
conduzido à assessoria dos monarcas.

Ali integrado, irá participar dos debates e discussões nos cenários


políticos da Corte sobre a condução dos negócios do reino, tanto da ad-
ministração quanto dos interesses comerciais. Acendia-se a polêmica
acidulada quando o assunto de pauta indagava se o melhor caminho na
condução de tais negócios não seria o de adotar-se a “fórmula” espanhola,
o que seus defensores chamariam hoje de privatização das atividades, en-
tregando-as a particulares, aos pares do reino. Não envolvimento direto,
apoiavam seus combativos patronos, mas envolvimento nas concessões e
nos resultados das taxações.

Em uma fase na qual a realeza enfrentava graves dúvidas quanto ao


tema e, ao mesmo tempo, ao que cabia como política de Estado quanto
à Índia, ao Brasil e à África do Norte (recordar o sonho cruzadístico de
D. Manuel) é que, justamente, Martim Afonso de Sousa está presente na
Corte e ligado ao “partido espanhol” no qual se integrava o próprio irmão
e conselheiro do rei, o infante D. Luís.

É precisamente nos anos do decênio de 1560 que os negócios por-


tugueses no Extremo Oriente ganham um vulto fantástico puxados pelo
comércio privado “à espanhola”, em especial pelas transações com a pra-
ta nipônica. Os centros aduaneiros de Goa e Malaca, onde é tributada,
acumulam cada vez maiores receitas. São os negócios da China, como se
refere o brocardo, e com o Japão.12

Assim, nessa etapa de intensificação da progressiva influência das


tendências espanholas de administração e dos debates na Corte sobre os
caminhos da política ultramarina, que irá se desenvolver e implementar
as sucessivas medidas inovadoras quanto ao Brasil, na adoção do governo
geral e a designação de titulares do cargo de governador-geral, comparti-
lhados mais uma vez pelos Sousa e pelos Sá.13
12 – A esse respeito, ver a análise de causas e consequências na obra citada de S. Sanjay,
pp. 186 e 187.
13 – Vale recordar o fato de que, antes disso, na criação do modelo privatizante das Capi-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):255-272, jul./set. 2016 265


Fernando Lourenço Fernandes

O que se poderia designar como um processo de reorientação dos ne-


gócios de Estado, aqui enfocando os assuntos do Brasil e os de Comércio
no Oriente, coincidirá com o progressivo realinhamento de interesses na
Península Ibérica, de Portugal com a Espanha de Carlos V.

O realinhamento irá se mostrar bem mais nítido com o falecimento


de D. João III em 1557, a regência de D. Catarina, a avó do rei-criança
nascido em 1554, e o chamamento da Rainha ao Cardeal D. Henrique,
com todas as suas ambiguidades, para compor o esquema dos conselhei-
ros. É ela o segundo mas, na verdade, o mais importante personagem
entre os aqui observados.

O papel ascendente de D. Catarina na Corte e na política portuguesa


já vinha de longe e, se for levada em consideração a narrativa de Frei Luís
de Sousa, pelo menos desde 1542, por ocasião do debate sobre o casa-
mento de D. Maria – filha dos reis portugueses – com Filipe das Astúrias,
o filho de Carlos V, futuro Felipe II. A escolha desse partido pela rainha
definiu a questão, um assunto de Estado.

A decisão do consórcio com o herdeiro espanhol deflagrou a cólera


de Francisco I o rei francês. Sem maior cerimônia, descarregou toda a
sua raiva sobre o embaixador de Portugal, acusando D. João III de casar
a “filha com o filho de um seu inimigo” e isto sem lhe prestar contas ou
satisfações.14

D. Catarina não se abalou. A ascendência cada vez mais nítida nos


negócios do reino e sobre D. João III (talvez já acometido pela doença
que um certo tempo depois iria tornar-se clara) é testemunhada pelo pró-
prio núncio papal em Lisboa, em carta de 1545 ao cardeal Alessandro
Farnese. “Era a rainha quem governava”, dizia ele em declaração aberta,
sem subterfúgios.
tanias Hereditárias, adotado em 1534, Pero Lopes de Sousa e seu irmão Martim Afonso
receberam cinco capitanias. Pero, com as de Itamaracá (PE e PB), Santo Amaro (SP) e
Santana (SP e SC); Martim Afonso, São Vicente I (RJ e SP) e São Vicente II (SP e PR). A
de São Vicente I abarcava, portanto, a Guanabara.
14 – Consultar Ana Isabel Buescu, D. João III, Círculo de Leitores (...), 2008, pp. 250 a
252.

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D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

Nada de mais em uma correspondência pessoal, quando é apreciado


o que a própria rainha afirmava em missiva a seu irmão, Carlos V, ao
declarar sem rodeios ter recebido de sua Alteza, D. João III, as rédeas da
“governação para poder descansar”.15 Eufemismos à parte, mostrava-se
claramente para o Imperador onde residia o grande aliado, ou a grande
aliada, para seus projetos quanto a Portugal.

A tragédia em D. João, com a perda sucessiva dos filhos, parece ex-


plicar o sucumbir na tristeza, abatendo o monarca no que a crônica e a
Corte denominavam “cansaço”. É uma época de mudanças, das mutações
ideológicas como as denomina Ana Isabel Buescu16, que, afloradas no
ambiente da Espanha, conduzem ao advento da Inquisição e ao prestigia-
do ingresso dos jesuítas em Portugal e no império português.

D. João vai se distanciando de tudo isso, do mundo, da vida.17

O acabrunhamento do monarca alavancou, naturalmente, o papel e o


poder de D. Catarina, que não se apartara do aliado familiar, o culto irmão
do rei, D. Luís, outra daquelas personalidades de relevo.18 No seio da fa-
mília, como foi dito, chamou também o cunhado, o inconstante cardeal D.
Henrique. O mecanismo dos negócios de Estado continuou nas mãos do
secretário Pedro de Alcáçovas, leal ao rei e partidário da rainha naquelas
circunstâncias.19

15 – Idem, p. 250.
16 – Ibidem, p. 259.
17 – O processo depressivo do rei, a desagregação da saúde física, inicia-se em 1540 –
como a historiografia parece estabelecer – com a morte do filho mais novo, depois de uma
ceifa trágica entre descendentes e irmãos naquele ano. Iria perdê-los a todos.
18 – Muito embora, com o episódio que envolveu a escolha do consorte de D. Maria, a
filha dos reis portugueses, D. Catarina, e D. Luís estivessem agastados um com o outro. O
irmão do rei quisera assumir o papel de pretendente à mão da princesa, fato que despertou
no soberano luso irritada contestação. D. Luís iria falecer em 1555.
19 – Para uma boa parte da historiografia, o período de relevo de D. Catarina ganha evi-
dência apenas durante a fase de regente do neto, D. Sebastião, entre 1557 e 1562.

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Fernando Lourenço Fernandes

3 – CONCLUSÕES
A castelhanização de Portugal, de que nem sempre se cogita no de-
senrolar dos estudos sobre a política ibérica de então, parece ter um su-
gestivo papel nesse relacionamento dos dois países ibéricos no decorrer
dos anos quinhentos, se considerarmos aí os laços conjugais da monar-
quia lusa, desde D. Manuel, com a coroa de Castela.

Os sucessivos matrimônios cruzados com as mulheres das famílias


reinantes, seja dos monarcas, seja dos príncipes herdeiros das coroas ibé-
ricas, traziam implicações óbvias para a linha de sucessão. Talvez em
Portugal o tema fosse encarado com naturalidade ou com uma certa in-
diferença, em consideração de que a prole das casas reais era invariavel-
mente expressiva.

No entanto, o já tradicional modelo de casamento de reis portugue-


ses com princesas espanholas ocasionava condicionantes peculiares para
o ambiente da corte. Além do falar castelhano da noiva, chegava também
o do séquito de damas que com ela transmigravam, o caso de D. Catarina
nos esponsais com D. João III.

Em síntese, o castelhano era língua habitual na Corte, mais comum


ainda por se derramar entre os nobres, os eruditos, os letrados, poetas, os
pregadores, os comerciantes e outros tantos elementos do corpo social, e
não de pouco tempo antes.

Com D. João III, a tendência ainda mais evoluiu. O Humanismo cris-


tão, nas contribuições do Esramismo de uma Espanha anterior ao clima
persecutório da Inquisição, disseminara-se no reino luso em castelhano,
ainda que, muitas vezes, nada mais fossem tais escritos do que pincela-
das intencionais de meros exercícios de erudição. A imprensa, ou seja, a
tipografia, constituiu outro elemento da difusão do idioma que, nos mo-
dismos do tempo, passava também por elegante e culto. Certamente, não
escapou aos historiadores ser língua palaciana de uma corte, por assim
dizer, “bilíngue”.

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D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

Por outro lado, viria a ocorrer o processo de sedimentação daquilo


que Ana Buescu chamou de inflexão ideológica,20 o caminho que levaria
a um olhar religioso de crescente intolerância, ao introito da Inquisição.
Entretanto, conduziria também a um novo conceito de Missionação e ca-
tequese, com a Companhia de Jesus.

É também a etapa do reinado de D. João III em que se firma a tendên-


cia de novos componentes no elenco de assessores, por certo plebeus, nas
salas palacianas. Foi o caso de António Pinheiro, um alpinista de cargos
proeminentes, castelhanizado e exemplo de adesão às novas tendências
ideológicas, fidelidade não menor, por exemplo, do que a do próprio car-
deal D. Henrique, cunhado de D. Catarina, o inquisidor-geral do reino
desde 1539.

Não seria em tal ambiente que faltariam à Espanha ouvidos atentos


às suas ponderações na Corte portuguesa, ainda mais se dissessem res-
peito a interesses políticos e de defesa comuns. Tudo indica que o Rio de
Janeiro foi um desses.

E importante.

20 – Ana Isabel Buescu, obra citada, pp. 258 a 261.

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Fernando Lourenço Fernandes

A Flórida Francesa
La Caroline e S. Augustin (ao sul)

Bibliothèque nationale de France (BnF) – Gállica

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D. João III, D. Catarina e o Rio de Janeiro

Fort le la Caroline (1)

(1) – Na concepção arrojada de John Ogilby (apoiado nos desenhos de Arnoldus Montanus). Publicado em
Londres, 1671.

D. Catarina, Rainha de Portugal

Texto apresentado em dezembro/2016. Aprovado para publicação


em abril/2016.

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273

III – DOCUMENTOS
DOCUMENTS

E-236 – PASTORAIS E EDITAIS. 1742-1838. UM CÓDICE


SOBRE RITUAIS NO ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA
DO RIO DE JANEIRO
E-236 – PASTORALS AND EDICTS. 1742-1838. A CODEX ABOUT
RITUALS IN THE ARCHIVE OF THE METROPOLITAN CURIA OF
RIO DE JANEIRO
Beatriz Catão Cruz Santos1

Resumo: Abstract:
O trabalho é um instrumento de pesquisa que This research study presents the book or codex
apresenta o livro ou códice E-236 – Pastorais E-236 - Pastorals and Edicts 1742-1838 locat-
e Editais, 1742-1838, localizado no Arquivo da ed in the Archive of the Metropolitan Curia of
Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Con- Rio de Janeiro. It contains, among other docu-
tém um inventário que reúne pastorais, editais, ments, an inventory that includes pastorals,
pautas, provisões, portarias, um interdito, entre edicts, guidelines, provisions, ordinances and
outros tipos de documentos, sob a rubrica “Pas- an interdict, all under the heading “Pastorals
torais e Editais”. Eles foram produzidos e/ou and Edicts.” Produced and / or published by
publicados pelo Bispado do Rio de Janeiro en- the bishopric of Rio de Janeiro between 1742
tre 1742 e 1838 e destinavam-se aos párocos e and 1838, they were intended for parish priests
seus fregueses. O inventário vem acompanhado and their patrons. The inventory is accompanied
de uma introdução, que identifica os diversos by an introduction that identifies the various is-
assuntos tratados pelo códice e seu potencial sues addressed by the codex and its potential for
de análise. Entre esses assuntos, destacam-se analysis. Feasts and rituals stand out in the fore-
as festas e rituais, de forma que o códice 236 ground so that codex 236 can be characterized
pode ser caracterizado como uma espécie de as a sort of panorama of the rituals and feasts
panorama dos rituais e festas da diocese no pe- of the diocese in the period. The publication of
ríodo. A publicação desse instrumento resulta this study results from a research on “Fraterni-
da pesquisa “Irmandades, Capelas e Rituais no ties, Chapels and Rituals in 18th century Rio de
Rio de Janeiro do século XVIII”, desenvolvida Janeiro” conducted at the Federal University of
na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em Rio de Janeiro. In general terms, the study is
termos gerais, ele é importante para a história da important for the history of Portuguese America
América portuguesa e sua inserção no Império and its insertion in the Portuguese Empire.
Português.
Palavras-chave: Bispado; pastorais; editais; Keywords: Bishopric, pastoral, edicts, rituals,
rituais; festas. feasts.

1 –1 Doutora em História pela UFF. Professora Associada da UFRJ. Email: biacatao@


gmail.com.

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Beatriz Catão Cruz Santos

No ano passado, foi publicado o índice comentado do livro ou códice


E-278 – Ordens Régias 1681-1809 localizado no Arquivo da Cúria Me-
tropolitana do Rio de Janeiro.2 Num movimento semelhante, apresenta-se
à publicação o índice do E-236 – Pastorais e Editais. Livro 1 1742-1838,
que reúne pastorais, editais, pautas, provisões, portarias e um interdito,3
entre outros tipos de documentos, sob a rubrica “Pastoral e Edital” já em-
pregada em 1915 num inventário dos livros do Arquivo da então Câmara
Eclesiástica do Arcebispado.4 A expressão alude à presença de cartas pas-
torais, ou seja, instruções que os bispos como pastores escreviam a suas
ovelhas, ofícios do bispo. Os editais eram os papéis onde se lançavam os
éditos, a própria escritura e tendem, na passagem do século XVIII para
o século XIX, a se aproximar de éditos, que são mandatos do príncipe,
ou magistrado, manifestados ao povo. No caso, editais do bispo ou re-
transmitidos por ele e seus auxiliares, para que se tornassem públicos.
No entanto, a rubrica “Pastorais e Editais” esconde a riqueza dos tipos
documentais a exemplo do interdito mencionado e/ou das pautas, que sig-
nificavam um índex e, também, sua base material.5 No caso das pautas de
2 –1 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. E-278 – Ordens Régias 1681-1809. Um códice do Ar-
quivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista Topoi: Rio de Janeiro, v. 16, n.30,
p.8-54, jan./jun. 2015. Disponível em: <http://www.revistatopoi.org/topoi30/Documento.
php> acesso em: 5 abr.2016.
3 –1 Interdito é definido como “Censura Eclesiástica, que proíbe o uso dos Sacramentos,
os ofícios divinos, & a sepultura na Igreja. O interdito, que se põe em algum lugar par-
ticular, ou geral, chama-se interdito local. O que se põe para uma, ou muitas pessoas,
chama-se interdito pessoal”. O significado, verossímil para o documento em questão, foi
selecionado a partir da consulta aos seguintes dicionários: BLUTEAU, Rafael (1638-
1734). Vocabulario Portuguez e Latino.Collegio das Artes da Companhia de Jesu. Lisboa
Occidental: Off. de Pascoal da Sylva, 1712-1728. 1713, v.4; SILVA, Antonio de Moraes.
Diccionario da lingua portugueza. Lisboa: Off. S.T. Ferreira, 1789. v. 1.
4 –1 A informação é dada pelo então secretário do Arcebispado que faz referência aos 1º
e 2º livros de Ordens régias, respectivamente 1681 à 1809 e 1809 à 1862; ao livro “De
Pastoraes e Editais” L. 1º 1742 à 1838, significando que o título já era utilizado naquela
época. SANTOS, Antonio Alves Ferreira dos. A Archidiocese de São Sebastião do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1914. p.42.
5 –1 Para os significados coevos de “carta pastoral”, “edital” e “pauta” e mudanças ocor-
ridas nesses termos entre os séculos XVIII e XIX, fiz uso não apenas da documenta-
ção apresentada, mas do repertório apresentado nas seguintes obras: BLUTEAU, Rafael
(1638-1734). Vocabulario Portuguez e Latino. v. 1-2, 1712; v. 3-4, 1713; v. 6-7, 1720;
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portuguesa. v-1; No caso do termo
“pauta” acrescenta-se, além das duas obras citadas, a de VIEIRA, Domingos. Grande

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

Corpus Christi, lista que convocava à participação das diversas institui-


ções públicas a participar da procissão, documentação por meio da qual
historiadores podem contabilizar, por exemplo, o número de confrarias e
instituições congêneres existentes na cidade.6

Os documentos foram expedidos pelo bispado do Rio de Janeiro


entre 1742 e 1838, portanto compreendem os governos de quatro prela-
dos, a saber, Dom Frei João da Cruz (1740-1745), Dom Frei Antônio do
Desterro (1745-1773), Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Cas-
telo Branco (1773-1805) e Dom José Caetano da Silva Coutinho (1807-
1833).7 Um período bastante longo e significativo, em que a América por-
tuguesa constituía um dos principais domínios do Império Português e em
que a Igreja e seus agentes buscavam assegurar o monopólio das almas e
dos corações de seus habitantes. Em fins do século XVIII e inícios do sé-
culo XIX, parte do território colonial, que compreendia o Rio de Janeiro
e regiões conectadas à capitania, conquistou autonomia econômica, que
se traduziria na vinda da corte para a cidade do Rio de Janeiro e constitui-
ção do Brasil como corpo político independente.8 Em termos mais gerais,
a documentação situa-se prioritariamente no Antigo Regime, quando a
Igreja Católica e os bispos, em particular, de Portugal e do Império são
instrumento estratégico para a afirmação da autoridade monárquica e da
ordem social, marcada pela hierarquia, pela escravidão e por comporta-
Diccionario Portuguez Ou Thesouro da Lingua Portugueza.Porto: E. Chardron e B.H. de
Moraes; Rio de Janeiro: A.A. da Cruz Coutinho; Pará: A.R. Quelhas, 1871-1874. v. 2-4:
1873.
6 –1 No trabalho de Louzada, pode-se verificar este último uso das pautas e/ou tabelas,
como a autora cognominava esses documentos, para identificar o número de confrarias e
irmandades da cidade de Lisboa no século XVIII. LOUSADA, Maria Alexandre. Espaços
de sociabilidade em Lisboa, finais do século XVIII a 1834. 1995. Dissertação (doutora-
mento em Geografia Humana), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa.
p. 251, v. 1.
7 –1 Sobre os bispos e seus governos tomamos como referência os seguintes textos: PAI-
VA, José Pedro. Os Bispos de Portugal e do Império. 1495-1777. Coimbra: Universidade
de Coimbra, 2006, apêndice; NÓBREGA, Apolônio. Dioceses e bispos do Brasil. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v.222, jan./mar. 1954. Deu-se prioridade
às datas indicadas por Paiva, cujos critérios são a data da preconização e a data da morte,
resignação ou suspensão do titular.
8 –1 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Centros e periferias no mundo Luso-brasileiro. Revista
Brasileira de História, v.18, n. 36, pp.187-249, 1998.

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Beatriz Catão Cruz Santos

mentos prescritos pela doutrina e pelos ritos. Mas assiste-se à passagem


da época moderna para a contemporânea, que traria novos desafios à Igre-
ja Católica, associados ao liberalismo, a uma relativa secularização da
ordem social e ao reforço do valor do trabalho.

A preparação do índice do códice E-236 – Pastorais e Editais. Livro


1. 1742-1838 faz parte de um projeto intitulado “Irmandades, Capelas e
Rituais no Rio de Janeiro do século XVIII”, que vem elaborando inven-
tários de mais dois códices (E-278 – Ordens Régias 1681-1809, Códice
E-279 – Ordens Régias. Livro 2. 1809-1862) do Arquivo da Cúria Metro-
politana do Rio de Janeiro, com o auxílio de estudantes de graduação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.9 O trabalho deve-se também à
colaboração inestimável de Silvia Regina de A. Souza, Marcia Regina de
Mello Freire e Paulo Lavandeira Fernandes, a começar pela informação
sobre o potencial dos referidos códices para o estudo do culto católico no
bispado do Rio de Janeiro.

Como indicado anteriormente, esses códices (236, 278 e 279) estive-


ram desde sempre na Cúria, advindo da antiga Câmara Eclesiástica. Não
há informações sobre o momento de confecção da brochura, que reúne
documentos avulsos de natureza vária.10

A relevância desses documentos para a história do bispado do Rio de


Janeiro, assim como do Império português, é inegável. Isto é perceptível
no recorte temporal indicado nos livros, que dá acesso à regulamentação
da vida religiosa desde fins do século XVII ao século XIX, como na ex-
tensão geográfica porque transcende os limites do que fora o bispado do
Rio de Janeiro no século XVIII.11 Em 1745, o Bispado do Rio de Janeiro

9 –1 Sou grata a vários alunos que trabalharam ao longo do tempo neste projeto, como
Anna Beatriz Sarcedo Dias, Mayara Novaes Valverde, Lucas Domingues Torres do Nas-
cimento e, particularmente, à Laís Morgado Marcoje.
10 – SANTOS, Beatriz Catão Cruz. E-278 – Ordens Régias 1681-1809. Um códice do
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Doravante, farei menção aos códices
apenas pelo número.
11 – Em 1575 foi criada a prelazia do Rio de Janeiro. Um século depois, por intermédio
da bula Romani Pontificis pastoralis sollicitudo (1676), a prelazia foi elevada a bispado de
São Sebastião do Rio de Janeiro, sufragâneo da Bahia, que no mesmo ano torna-se arqui-

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

compreendia o que hoje constitui os Estados do Rio de Janeiro, de São


Paulo, de Minas Gerais, de Goiás, do Mato Grosso, do Paraná, de Santa
Catarina, do Rio Grande do Sul e ainda incluía a Colônia do Sacramen-
to.12

Mas, afinal, o que é específico do códice 236? Além das indicações


sobre o governo episcopal pode-se afirmar que este códice oferece um
panorama dos rituais e das festas do bispado do Rio de Janeiro entre 1742
e 1838. Considerando o diálogo necessário e profícuo entre a História e a
Antropologia, particularmente a teoria antropológica dos rituais, define-
-se rito ou ritual como toda ação simbólica passível de interpretação e
festa como uma atividade social agradável, expansiva, com caracterís-
ticas rituais, que tem uma correlação importante com a organização do
tempo.13

Esse panorama dos rituais e festas do bispado pode ser percebido


tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Num conjunto de 243
documentos que incidem sobre a jurisdição eclesiástica, que partem do
bispado ou são refratados por ele, visto que há documentos pontifícios,
há cerca de 102 documentos sobre festas (41,9%) e 50 (20, 6%) sobre
ritos não festivos, como é o caso de documentos que regulamentam a
Quaresma.14 A maior parte destes refere-se a tabus alimentares no perío-

diocese. O bispado do Rio de Janeiro só se tornaria arquidiocese em 1892. HOLANDA,


Sérgio Buarque de Holanda (dir.) História Geral da Civilização Brasileira. tomo I (A
época Colonial). São Paulo: Difel, 1985. pp.51-87, v.2.
12 – É possível consultar o mapa “Os bispados do Brasil na época de criação de novas
dioceses” (1745) em: RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Expansão territorial e ab-
solutismo estatal (1700-1822). Santa Maria: Palotti, 1988. v-3. Segue o documento que
inclui na jurisdição do Bispado a área desde o sul do Rio São Francisco até a Colônia do
Sacramento. ACMRJ, E-278 – Ordens Régias 1681-1809. doc. 417, f.187.
13 – Seguem algumas referências de síntese sobre ritual e festa: ASAD, Talal. Toward a
genealogy of the concept of ritual In: Genealogies of the Religion; discipline and reasons
of power in the Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993.
pp. 55-79; VALERI, Valerio. Rito; Festa. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1994. v.30, pp. 324-359, pp.402-414.
14 – No corpo do texto, diz-se cerca de, pois nem todos os documentos foram transcritos,
de forma que pode haver alguma inexatidão numérica a partir dos títulos. Seguem al-
guns documentos sobre a Quaresma: doc. 21, f.21v-24v, doc. 198, f.160v-162v; doc. 206,
f.170v-171; doc. 230, f.188v-189v doc. 232, f.197v-198; doc. 233, f.198v.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):273-316, jul./set. 2016 277


Beatriz Catão Cruz Santos

do. Resumindo, cerca de 152 (62,5 %) documentos estão relacionados a


rituais. A maioria desses rituais obviamente tem uma natureza religiosa,
visto que fazem parte do calendário católico para a diocese. Ao observar
os documentos em conjunto, constata-se uma enorme densidade de rituais
e festas no calendário do bispado, à semelhança do que Gouveia observou
nas dioceses portuguesas entre os séculos XVI e XVIII. O historiador, no
caso, partiu da análise das constituições diocesanas e do calendário da
Universidade de Coimbra de 1559 apontando a forte presença de dias de
guarda-jejum e os domingos. Esses ainda se somariam “às devoções indi-
vidualizadoras de freguesias, santuários, famílias religiosas, instituições,
Casa Real ou do próprio Estado”. Contudo, por razões várias, o mesmo
reconhece, durante o final do século XVIII e todo o século XIX, a redução
dos dias festivos e santificados.15 No códice 236, há uma grande varieda-
de temática a abordar, com concentração em rituais e festas, um tipo de ri-
tual. Nele pode-se consultar a Pastoral com que se dispensão alguns dias
Santos para se poder melhor trabalhar depois de ouvida a Missa, como
abaixo se declara, de 8 de agosto de 1811,16 que reduz o número de dias
festivos, liberando os “Artífices, os Jornaleiros e a gente pobre das classes
inferiores” para o trabalho em dias santos. Os dias santos em que os fiéis
eram dispensados para trabalhar, contanto que fossem à missa eram, se-
gundo o documento, 15 e, no caso da cidade do Rio de Janeiro, somavam
17 no total. Os dias santos, em que não havia dispensa, não fazem parte
do cômputo. Este é o caso do domingo, reforçado no período em que o
valor do trabalho e a mentalidade racionalista são incrementados.17

15 – GOUVEIA, António Camões. O controlo do tempo. In: GOUVEIA, António Ca-


mões e MARQUES, João Francisco (Coord.) História religiosa de Portugal. Humanis-
mos e Reformas. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, vol.II, pp.317-322.
16 – Passarei a denominar os códices ou livros do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio
de Janeiro (ACMRJ) apenas pelo número para simplificar a referência, exceto se não fizer
parte do 236. No caso: doc. 200, f.162v-166v. Há outras pastorais de Dom José Caetano
da Silva Coutinho impressas no arquivo.
17 – BERCÉ, Yves-Marie. Fête et revolte. Des mentalités populares du XVIe au XVIIIe
siècle. Paris: Hachette, 1976. pp. 152-156; VALERI, Valerio. Festa. In: Enciclopédia Ei-
naudi. v.30, pp. 402-414.; SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Os senhores do tempo: a inter-
venção do bispado na procissão de Corpus Christi no século XVIII. Tempo. Revista do
Departamento de História da UFF, v. 16, pp. 165-190, 2012. Disponível em: http://www.
historia.uff.br/tempo/site/?p=1529 Acesso em: 29 abr. 2016.

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

No 236, há um grande conjunto de documentos sobre festas ordiná-


rias, ou seja, aquelas que fazem parte do calendário cíclico e repetido: é o
caso das procissões de Corpus Christi,18 cujos editais e pautas permitem
analisar esta festa real19 como um rito de separação no Rio de Janeiro
do Antigo Regime. Eles dispõem os moradores da cidade numa ordem
tripartida e hierárquica e, ao mesmo tempo, sublinham distinções, espe-
cialmente, entre clero e leigo.20 Entre as festas de santos, cujas procissões
foram incorporadas ao calendário ritual do bispado no século XVIII: São
Sebastião21 e Nossa Senhora do Patrocínio22. Vale fazer menção à fes-
ta de São Francisco Borja23, santo da Companhia de Jesus, que como a
última nasce associada ao terremoto de Lisboa e é abortada no Rio de
Janeiro.24 O terremoto de 1 de novembro de 1755 também reforçou o dia
18 – doc. 3, f. 5-5v; doc. 91, f.90-91;doc. 110; f.112v; doc. 121, f.119v-120; doc.
122.F.120-120v; doc. 125, f.122; doc. 32 f.128-129; doc. 135 f.132v; doc. 136, f. 133;
doc. 139,133v; doc. 146, f. 134doc. 169,f.144; doc. 171,f.144; doc. 172,f.144; doc. 184,
f.149; doc. 187, f.150-151; doc. 194, f.158v; doc.199, f.162v; doc. 214, f.177; doc. 217.
f.178.
19 – As festas ou procissões reais eram de acordo com as Ordenações do Reino, Cor-
pus Christi, Visitação de Nossa Senhora (Santa Isabel) e o Anjo Custódio. Ordenaçoens
do Senhor Rey D. Manuel. Disponível em: Liv. I, tit. 78http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/
verlivro.php?id_parte=89&id_obra=72&pagina=631; Disponível em: Codigo Philippi-
no ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal recopiladas por mandato de E-l ReyD.
Philippe I. Liv. I, tit. 66 http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=84&id_
obra=65&pagina=213. Acesso em: 22 abr. 2011. Sobre as procissões reais em Salvador
ver: SCHWARTZ, Stuart B. Ceremonies of public authority in a colonial capital. The
king’s processions and the hierarquies of power in the seventeenth century Salvador.
Anais de história de além-mar, Centro de História de Além-Mar da Universidade de Lis-
boa, v.5, pp.7-26, 2004.MENDES, Ediana Ferreira. Festas e Procissões reais na Bahia
colonial: séculos XVII e XVIII. 2011.Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal da Bahia: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador.
20 – SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Os senhores do tempo: a intervenção do bispado na
procissão de Corpus Christi no século XVIII. Tempo. Revista do Departamento de Histó-
ria da UFF, v. 16, pp. 165-190, 2012.
21 – doc. 26, f.30-30v; doc. 89, f.88v-89, doc. 138, f.133v; doc. 141, f.134; doc. 143,
f.134; doc. 145, f.134; doc. 147, f.134; doc. 149, f.134v; doc. 159,f.140v;doc. 163, f.141v;
doc. 170, f.144; doc. 174,f.145, doc. 178, f.146, doc. 201,f.176, doc. 205, f. 169v, doc.
216, f.178; doc. 218, f.178; doc. 229, f.188-188v; doc. 237,f.200.
22 – doc. 85, f.85-85v, doc 88, f.88-88v; doc. 92, f.91-91v; doc. 109, f.112v; doc. 130,
f.127v.
23 – doc. 84, f.83-85.
24 – Sobre as festas de São Francisco Borja e Nossa Senhora do Patrocínio, que foram
estabelecidas por ordem régia em 1756, há um bom resumo, que aponta as dificuldades de

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Beatriz Catão Cruz Santos

dos Defuntos/ Todos-os-Santos, regulamentado no códice.25 É de se notar


a frequência da forma ritual procissões no códice e no Antigo Regime,
muitas vezes, partindo do padrão de Corpus Christi, como a historiografia
comenta a partir dos documentos. Além das festas reais mencionadas, há
festas de santos que não constam entre as reais, pois entre os padroeiros,
além de São Sebastião e São Francisco Borja, há Sant’Ana.26 É impor-
tante mencionar as festas extraordinárias, relacionadas a um determinado
evento como as comemorativas de nascimentos, batismos, matrimônios
e exéquias de membros da família real.27 Por vezes, a festa é única, como
a que foi convocada pelo Cabido para celebrar na catedral a extinção da
Companhia de Jesus,28 por vezes, ela irá se repetir num tempo linear.

Portanto, ao focalizar os documentos sobre festas, o códice 236


oferece ao historiador uma grande diversidade. Já houve iniciativas que
apontaram para a pluralidade de experiências e significados, enfim, para
a importância da análise historiográfica da festa no Antigo Regime.29 O
uso das fontes que ora se apresentam sobre esta forma de sociabilidade no
bispado do Rio de Janeiro poderá trazer novidades.

execução das mesmas na Bahia: MENDES, Ediana Ferreira. Festas e Procissões reais na
Bahia colonial: séculos XVII e XVIII. pp. 51-52.
25 – doc. 87, f.87-87v e doc. 111, f.112v.
26 – Sobre a procissão de Santa Ana, seguem os documentos encontrados no códice: doc.
99, f.102 e doc. 102, f.105v-106. Sobre a festa e procissão de São Sebastião sugiro os tra-
balhos e pesquisa em andamento de Vinicius Cardoso, que sugere a existência da procis-
são na cidade do Rio de Janeiro antes do século XVIII e qualifica a festa como celebração
do patronímico da cidade e, simultaneamente, festa real. Ver especialmente: CARDOSO,
Vinicius Miranda. O Padroeiro principal da terra: poderes locais e o culto político-re-
ligioso a São Sebastião no Rio de Janeiro, 1710-1713. 2015. Qualificação (Doutorado
em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em
História. mimeografado.
27 – doc. 129. f.126v-127v; doc. 222, f.184; doc. 223, f.184-184v;doc. 64, f.63-63v.
28 – doc. 128, f.126-126v. Sobre a exclusão dos jesuítas das relações sociais e temas cor-
relacionados a eles há outros documentos como:doc.94, f.94-96; doc. 95, f.96-96v.
29 – Para além das indicações bibliográficas já fornecidas, há coletâneas resultantes de
eventos, que tiveram como tema festas no período: SANTOS, M. H. Carvalho dos (org.)
A festa. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII – Universitária Edi-
tora, 1992; JANCSÓ, István e KANTOR, Iris. (org). Festa: cultura & sociabilidade na
América portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp:
Imprensa Oficial, 2001. 3 vols; JACQUO, Jean; KONIGSON (éd.)Elie. Les Fêtes de la
Renaissance. Paris: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1975. v. 3.

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

Há ainda vários registros que merecem investigação a respeito das


visitações que ocorriam em diversas localidades do bispado, como nas
capitanias de Minas, do Espírito Santo e de Goiás.30 Sabe-se que as visita-
ções eram instrumento importante no disciplinamento social e confessio-
nalização.31 Elas permitiam investigar o trabalho realizado pelo pároco e,
por seu intermédio, os costumes e comportamentos locais, a partir do qual
a missão religiosa podia ser continuada. Os sacramentos (batismo, ma-
trimônio, confissão, eucaristia, extrema-unção e ordem)32 estão entre os
temas recorrentes dos documentos. Neste sentido, pode-se lembrar que o
bispado dá continuidade às diretrizes do Concílio de Trento, que legislou
a favor da uniformização dos ritos de passagem no âmbito familiar, refor-
çando a função sacerdotal.33 Há no 236, entre esses documentos, interes-
santes pastorais como a de D. Frei João da Cruz, de 30 de maio de 1742,
e a de D. Antônio do Desterro, de 18 de novembro de 1748, que renova a
obrigação dos párocos com relação aos assentos de batismo, casamento e
óbito.34A análise da primeira pastoral, que compreende um rol variado de
assuntos – sacramentos, festas, mulheres etc. – destinados à publicação
nas freguesias, sublinha a necessidade de acesso dos escravos aos ritos

30 – doc. 1, f.2-4; doc. 32, f.34-34v; doc. 68, f.66-67v; doc. 69 f.68-68v; doc. 81, f.81-
81v; doc. 123.f.120v; doc. 231, f.189v-197v
31 – Os conceitos de disciplinamento social e confessionalização tem origem na Ale-
manha protestante dos anos 60 do século passado, a partir de Gehard Oestreich e Ernst
Walter Zeeden respectivamente. Sobre a definição desses conceitos, sua genealogia e apli-
cabilidade a contextos católicos: PO-CHIA HSIA, Ronald. Disciplina social y catolicismo
en la Europa de los siglos XVI y XVII. Manuscrits, n. 25, pp. 29-43, 2007. Em termos
sintéticos, disciplinamento social (Sozialdisziplinierung), “o processo/ato de disciplinar”
aponta não somente para a transformação das estruturas políticas e sociais, mas provoca
uma mudança, a longo prazo, de posturas, de normas e de comportamentos e, confessio-
nalização (Konfessionalisierung), “o processo/ato de confessionalizar”, interiorizar nos
indivíduos uma convicção interna baseada na moral cristã, que é levada sobretudo pelos
agentes eclesiásticos. SONJAJÄRVI, Hanna. O Disciplinamento Social e a Confessiona-
lização como conceitos-chave da historiografia da Idade Moderna na Alemanha. mimeo-
grafado.
32 – doc.44; f.43-44; doc. 51,f.51-52; doc. 46, f.45-45v; doc. 127, f.124v-125v; doc. 215,
f.177-178; doc. 242, f.207-209.
33 – GOUVEIA, António Camões. A sacramentalização dos ritos de passagem. In: GOU-
VEIA, António Camões e MARQUES, João Francisco (Coord.). História religiosa de
Portugal. Humanismos e Reformas.vol.II, pp. 334-345.
34 – doc. 9, f.8v-13;doc.44; f.43-44.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):273-316, jul./set. 2016 281


Beatriz Catão Cruz Santos

funerários (orações, sepultamento) e aos sacramentos.35 Neste ponto, vale


lembrar que estes dois bispos, como outros do século XVIII, foram in-
fluenciados por correntes reformadoras – a jacobeia e o jansenismo – que
em Portugal e na América Portuguesa assumem tons locais, em termos
teológicos e eclesiológicos, mas que parecem se unificar no sentido da
preconização de um rigorismo moral em termos religiosos e comporta-
mentais.36 A alusão a estas novas correntes de pensamento religioso pode
trazer luz à interpretação de vários documentos concernentes à reforma
dos clérigos,37 a seus comportamentos, inclusive em matéria de vestimen-
ta para os distinguir dos leigos38 e na convocação de párocos ausentes de
suas funções.39 De forma geral, no 236, as irmandades comparecem como
coadjuvantes das festas, mas há um documento que convoca aos irmãos
de São Pedro dos Clérigos para assistir os moribundos, um de seus ofí-
cios.40 Por fim, há diversos documentos sobre divisões administrativas,

35 – A necessidade de enterrar e fornecer os sacramentos aos escravos também pode ser


localizada nos seguintes documentos além da pastoral de D. Frei João da Cruz: doc. 37,
f.37v; doc. 80, f.80-81; doc. 106, f.110-110v.
36 – Sobre a jacobeia e sua influência no episcopado: PAIVA, J. Pedro. D. Sebastião
Monteiro da Vide e o Episcopado do Brasil em tempo de Renovação (1701-1750) In:
FLEITER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: normas e Práti-
cas durante a Vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo:
Editora Unifesp, 2011. pp. 29- 59; SOUSA, Evergton Sales. Mística e Moral no Brasil do
século XVIII. Achegas para a história dos jacobeus. In: BELLINI, Ligia; SOUZA, Everg-
ton Sales de; SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Formas de Crer: ensaios de história religiosa
do mundo luso-afro-brasileiro, séculos XIV- XXI. Salvador: Corrupio, 2006. pp.107-
128. Foram utilizadas as referências contidas no seguinte texto para refletir sobre o Jan-
senismo: SOUZA, Evergton Salles. Jansénisme et réforme de l’Église dans l’Amérique
portugaise au XVIIIe siècle.Revue de l'histoire des religions 2, pp. 41-66, 2009. Sobre a
trajetória e o caráter reformista de D. Antônio do Desterro: SANTOS, Beatriz Catão Cruz.
Reflexões sobre um percurso de pesquisa: o Mosteiro de São Bento e o culto de São Gon-
çalo de Amarante. In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; SAMPAIO, Antonio Carlos
Jucá. (Org.). Arquivos Paroquiais e História Social na América Lusa. Métodos e técnicas
de pesquisa na reinvenção de um corpus documental. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mauad Edito-
ra Ltda., 2014, pp. 303-328.
37 – doc. 133, f.129v-131; doc. 134,f.131-132v; doc. 207, f.171-173v; doc. 208,
f.173v-175.
38 – doc. 105, f.108v-110.
39 – Ver documentos entre doc. 113, f.113v-114 e doc. 119, f.118-118v.
40 – doc. 86, f.86-86v.

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

parte importante do governo de uma diocese, cuja rede populacional se


adensa sobretudo na cidade do Rio de Janeiro e regiões adjacentes.41

Sugere-se ao pesquisador uma leitura transversal da lista porque a


indicação realizada nesta introdução não é completa e a classificação atri-
buída aos documentos é, aliás, como toda classificação, limitada.42

ASPECTOS FORMAIS
É importante observar certos aspectos formais dos títulos dos docu-
mentos que constam do 236. Como é costumeiro na época, há uma enor-
me variedade de grafias no interior do códice, que mantivemos como no
original. Por isso, selecionamos os exemplos, localizados nos respectivos
documentos. São eles: Syqueyra (doc. 14); Siqueira (doc. 7 e 81); Proci-
ção (doc. 87); Processão (docs. 174, 178, 179, 180, 214, 216, 217, 218,
237); provizão (docs. 2, 6, 115, 117, 118, 119); Provizam (docs. 33 e 116);
Provisam (doc. 215); Jubileo (docs. 17, 58, 72, 190 e 191); Jubileu (doc.
24, 59 e 101); Corpus Christi (docs. 91, 98, 101, 124, 131, 134, 135, 138,
145 e 178); Corpuz Christi (doc. 169); Corpuz Chrizti (doc. 155); Corpo-
re Christi (docs. 171 e 172); Parocho (docs. 69 e 79); Parocos (docs. 90 e
107); Parocoz (doc. 104); Parochos (docs. 32, 35, 37, 38, 40, 74, 80, 103,
106, 162 e 183); Parochoz (doc. 127); Martyr (docs. 161 e 163); Editaes
(docs. 184, 194, 214, 216, 217, 218, 224, 225, 237); Editais (docs. 199,
203 e 210); Devizão (doc. 238); Divizão (docs.66 e 210); Divisão (doc.
225). Em todos os casos, mantivemos um respeito ao documento.

41 – doc.66, f.64-65; doc. 166, f.143-144; doc. 188,f.151v-152; doc. 169, f.152v-153;
doc. 193, f.158v; doc. 197, f.159v-160; doc. 201, f.166v-167; doc. 204, f.168-169; doc.
209, f.175v-176; doc. 211, f.176v; doc. 238, f.200; doc. 239,f.200v-201. Para dados po-
pulacionais sobre a cidade do Rio e capitania sugere-se: CAVALCANTI, Nireu. O Rio
de Janeiro setecentista. a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada
da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. pp. 253-258. Considerando a imprecisão dos
dados demográficos disponíveis, Cavalcanti informa que, em 1760, a sua população era
de 32.746 indivíduos, entre 1779 e 1789, de 38.707 e, em 1808, atingia a cifra de 60.000
habitantes, tornando-se a 29ª cidade entre as trinta maiores do mundo.
42 – Veja, por exemplo, a coincidência entre a véspera do dia de São Matias, marcada
pelo jejum, e o entrudo que determina uma ação antecipatória por parte do bispado no
calendário. doc. 67, f.65-65v. A véspera do Santo não pode ser festiva, no sentido que
empregamos no corpo do texto.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):273-316, jul./set. 2016 283


Beatriz Catão Cruz Santos

Por fim, é importante mencionar que, na elaboração desse instru-


mento de pesquisa, foram usadas as Normas técnicas para transcrição e
edição de documentos manuscritos43 de acordo com a Comissão de Sis-
tematização e Redação do I Encontro Nacional de Normatização Paleo-
gráfica (São Paulo: 28 e 29 de novembro de 1990) e II Encontro Nacional
de Normatização Paleográfica (São Paulo: 16 e 17 de setembro de 1993).
A partir daquelas normas, que visam unificar as edições paleográficas,
usamos as seguintes:

1. Respeito total ao documento.

2. O S caudado duplo será transcrito como SS e o simples como S.

3. O R e S maiúsculos, com som de rr e ss serão transcritos R e S


maiúsculos, respectivamente.

4. As letras ramistas b, v, u, i, j serão mantidas como no manuscrito.

5. Aos enganos, omissões, repetições e truncamentos, que compro-


metam a compreensão do texto, recomenda-se o uso da palavra latina
[sic] entre colchetes e grifada.

6. Todas as abreviaturas serão desdobradas.

7. Os sinais especiais de origem latina e os símbolos e palavras mo-


nogramáticas serão desdobrados, por exemplo, &rª = etc.; IHR = Chris-
tus.

8. Os sinais de restos de taquigrafia e notas tironianas serão vertidos


para a forma que representam, grifados.

9. O sinal de nasalização ou til, quando com valor de m ou n, será


desdobrado.

10. Quando a leitura paleográfica de uma palavra for duvidosa, co-


locar-se-á uma interrogação entre colchetes depois da mesma: [?].
43 – Disponível em: http://www.arquivonacional.gov.br/Media/Transcreve.pdf Acesso
em: 4 maio 2016.

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

11. As maiúsculas e minúsculas serão mantidas.

12. A ortografia será mantida na íntegra, não se efetuando nenhuma


correção gramatical.

13. As palavras que se apresentam parcial ou totalmente ilegíveis,


mas cujo sentido textual permita a sua reconstituição, serão impressas
entre colchetes.

14. As palavras ilegíveis para o transcritor serão indicadas com a


palavra ilegível entre colchetes e grifada: [ilegível].

15. As linhas ou palavras danificadas por corrosão de tinta, umida-


de, rasgaduras ou corroídas por insetos ou animais serão indicadas, por
exemplo, pela expressão corroído entre colchetes e grifada com a menção
aproximada de seu número:[corroído ± 6 linhas ou mm]

16. Os elementos textuais interlinhares ou marginais autógrafos que


completam o escrito serão inseridos no texto entre os sinais <...>.

A seguir, os documentos que constam do Códice 236:

1) Registro do Edital que Excelência Reverendíssima Mandou pas-


sar para a vizita da Cappitania das Minas Gerais. [f.2-4]

2) Registro da provizão de Sua Magestade pela qual ordena que os


presos pela jurisdição eclesiástica sejam recolhidos nas cadeyas Secula-
res. [f.4v-5]=

3) Pastoral para a Procissão do Corpo de Deus da Vila de Macacu.


[f.5-5v]

4) Faculdades de Sua Excelência Reverendíssima Concede ao Re-


verendo Doutor Gonsalo Jozé [?] da Silva Guedes vigário da Vara da
Comarca dos Goyazes enquanto servir a ocupação. [f.5v-6] 

5) Em 22 de Mayo de 1742 Se passou Edital para que todos os Sacer-


dotes assistão [sic] a procissão de Corpo de Deus quinta feira Seguinte,

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Beatriz Catão Cruz Santos

e tão bem as Irmandades e Comunidades que Costumão acompanhar as


procissões Solemnes [f.6]

6) Provizão de Sua Excelência Reverendíssima Há por bem mandar


passar para a criação dos officios dos Registos das Comarcas. [f.6-7]

7) Assento que Sua Excelência Reverendíssima Mandou fazer [cor-


roído 26mm x 10mm] Reverendos Ministros e Doutores na Junta que se
fez sobre a [censura] [que] [acorreo] Francisco Cordovil de Siqueira e
Mello. [f.7-7v] 

8) Ordem que Sua Excelentíssima Reverendíssima Foy servido man-


dar passar aos Reverendos vigários da Vara do Cuyaba e Mato Grosso a
respeito dos salários que hão de levar daquelles destritos. [f.8]

9) Pastoral que Sua Excelentíssima Reverendíssima Há por bem


mandar passar para se publicar nas freguesias desta cidade em que se
prohibe os abuzos e mais couzas nella contheudos etc. [f.8v-13] 

10) Ordem que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar


[f.13]44

11) Em 20 de Setembro de 1742 Se passou Edital de [corroído 18mm


x 10mm] em que Sua Excelência Reverendíssima há por bem de mandar
passar para a Capella da Senhora Santa Anna, citta na fazenda de Manoel
Ferreira da Sylva [f.13]

12) Edital que Sua Excelência Reverendíssima Há por bem mandar


passar para os Capellães da Sê Residirem Com Cuidado e compostura etc.
as Suas Capelanias como se vê abaixo. [F.13-13v]

13) Em 13 de Novembro de 1743 Se passou edital de patrimonio,


para a freguesia da Sé, a favor de Gonçalo Gomes de Mello filho legiti-
mo de José Gomes de Miranda e de Sua mulher Dona Inácia de Mello, e
Vasconcellos [f.13]

44 – Quando o título não informa o assunto, ele será indicado na medida do possível.
Neste caso, trata-se das contas para o novo Convento de Nossa Senhora da Ajuda.

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

14) Em 15 de Novembro de 1743 Se passou edital de patrimonio,


para a freguezia da Candelaria, a favor de Pedro de Syqueyra de Onhão,
filho legitimo de Phelipe de Siqueyra de Onhão, e de Josefa de [Valença]
de Magalhães [f.13v]

15) Em 6 de Junho de 1743 Se passou Edital na forma costumada


para assistirem os clerigoz e Irmandades [a] procissão de Corpo de Deos
a 13 de Junho etc. [f.13v-14]

16) Edital que Sua Excelência Reverendíssima Há por bem mandar


passar para se fazer collação da Igreja Nova Collonia do Sacramento na
pessoa do Padre João de Almeida Cardozo. [f.14]

17) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar para se publicar o Jubileo de 40 horaz na Sê Cathedral do dia 19
do corrente athé 21 por faculdade Apostólica na forma abaixo declarado
etc. [f.14-14v]

18) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar para a collação da Igreja de São Thiago de Inhauma na pessoa do
Padre Francisco Caetano Galvão Taborda. [f.15]

19) Edital [f.15v-17]45

20) Em Roma 1741 Na impressão da Reverenda Camera Apostho-


lica. Constituição do Reverendíssimo Senhor Benedicto decimo quarto
em que se determina a ordem e forma que nos Juizos das Cauzas Ma-
trimoniais sobre se declarar a validade ou nulidade dos Matrimonios se
deve observar. Benedicto Bispo Servo dos Servos de Deos para perpetua
[Lembrança] [f.17-21v]

21) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


publicar a Constituição = Non abigimus, e a Constituição em Suprema do
Suma Pontificie Benedito 14 sobre a observância dos jejuns da Quaresma
e mais dias do anno. [f.21v-24v] 

45 – O edital é sobre matrimônio.

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22) Edital porque Vossa Excelência Reverendíssima he servido man-


dar publicar a Constituição Regularis disciplina = de Santíssimo Papa
Benedito 14 sobre observancia da clausura regular etc. [f.24v-27]

23) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


publicar a Constituição Quanta Cura, et [ilegível] Santíssimo Papa Be-
nedito 14 acerca das negações feitas com as esmollas da Missa na forma
nella Contheuda. [F.27-28v]

24) Edital em o qual manda publicar Sua Excelência Reverendíssima


hum jubileu de quarenta horas na Igreja de São Pedro nos dias vinte seis,
vinte sete e vinte e outo. [f.29-29v]

25) Ordem de Sua Excelência Reverendíssima que o que foy bem e


fielmente trasladada [?] na forma Seguinte. [f.29v-30]46

26) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar para todos os Clerigos Confrarias e Religioens acompanharem a
procissão do Glorioso Martir São Sebastião. [f.30-30v] 

27) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar pella qual Se prohibem os penitentes de asoute. [f.30v-31]

28) Registro de huma portaria que Sua Excelência Reverendíssima


houve por bem mandar passar para os Reverendos Doutores Vigários da
Vara das Comarcas das minas para que tenhão Cuidado não deichem [sic]
introduzir alguns Sacerdotes das Igrejas pertencentes a Nossa [?] Jurisdi-
ção que estao dentro [sic] nos Limites do governo Secular. [f.31v]

29) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar. - <A 1ª Pastoral>47 [f.32-32v]

46 – Trata sobre obras e consertos para a conservação do Aljube, prisão eclesiástica.


47 – O uso dos sinais <> está de acordo com as regras paleográficas. Indica a ocorrência
de título ou informações escritas à margem ou fora da linha do documento, que são impor-
tantes para a compreensão do mesmo. De agora em diante, toda vez que os sinais aparece-
rem, a situação ocorre. Esta pastoral do Bispo D. Antônio do Desterro trata da extirpação
dos vícios e salvação das almas dos fiéis, assim como das obrigações dos sacerdotes.

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
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30) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar para que todos os clerigos, digo, Sacerdotes observar o disposto
nella. <‘Exame dos Padres Confessores e Pregadores’> [f.32v-33]

31) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar aos Religiosos Capuxinhos do theor seguinte<“Indulgências”> 
[f.33v-34]

32) Portaria que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


para o Reverendo Vizitador o Doutor Henrique Moreira de Carvalho sem
chegar a huma das villas avizar aos Reverendos Parochos, digo, vigário
da Vara e seus Escrivães para que lhe apresentem os authos das testamen-
tarias na forma seguinte. <Convento da Ajuda.> [f.34-34v]

33) Registo de huma provizam que o Reverendo Procurador da Mi-


tra ao Ilustríssimo Excelentíssimo Gomes Freire de Andrade Capitão Ge-
ral desta Capitania do Rio de Janeiro e Minas o qual He do theor seguin-
te [f.34v-35]

34) Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima a qual he do theor


seguinte pela qual confirma [ilegível] Excelentíssimo Senhor Dom Frei
Antonio de Guadalupe <sobre batuques etc.> [f.35-36]

35) Edital pelo qual Sua Excelência Reverendíssima ordena que se


não aceitem nas minas parochos postos pelo Bispado de São Paulo e he
do theor seguinte <E trata de limites dos Bispados de São Paulo e Maria-
na> [f.36-36v]

36) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar em que prohiba estar em abertas as Igrejas em a 5° feira mayor de
noute e para que senão peção [sic], nem vendam as iguarias nella decla-
rados he do theor seguinte. [f.36v-37v] 

37) Edital pello qual Sua Excelência Reverendíssima ordena [sic],


que os senhores mandem Sacramentar, e enterrar os seus Escravos em
Sagrado, e que não os mandem Lansar na valla, nem no Campo, Sem

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Serem emcomendados pellos Reverendos Parochos de suas freguesias, o


coal He o seguinte. [f.37v] 

38) Pastoral, pella qual Sua Excelência Reverendíssima ordenna que


os Reverendos Parochos de qualquer Igreja do Seo Bispado principal-
mente os das Minas não deixem [Cantar] em [Suas] Igrejas muzicos sem
[Saber] Sam Examinados: [corroído 22mm x 12mm] [f.37v-38v] 

39) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar em q determina se observem todos os papeis que fosem asignados
somente com sua Rubrica. [f.38v]

40) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar So-


bre a instrução <de parochos por São Paulo> nas Igrejas das Minas Junío-
la [sic] povos [?] altos, Campanha, Baypendi, e Carrança <Limites dos
Bispados de São Paulo e Mariana> [f.38v-40v]

41) Pastoral da oração mental. [f.40v-42]

42) Interdicto que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar –


<Sobre terras dos Bispados do Rio de Janeiro e Marianna (Freguesia do
Engenho e Bento Pereira)>–<Saber o Bento Pereira se chamasse depois
de Simão Pereira que eu conheci e onde estive em 1845. +Bispo D. Pe-
dro> [f.42-42v]

43) Portaria que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


passar na forma seguinte. [f.42v-43]

44) Registo da Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima Mandou


passar a respeito dos assentos dos baptizados dos Confessados dos Casa-
mentos e mortes he o seguinte. [f.43-44] 

45) Registo de hum Edital que Sua Excelência Reverendíssima Man-


dou prohibir as festas em casas particulares e nos oratórios das ruas desta
cidade. [f.44-45] 

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46) Registo de huma Pastoral que Excelência Reverendíssima Se-


nhor Dom Frei Antonio de Guadalupe mandou publicar os Requisitos que
os pertendentes devem ter para ordens [f.45-45v].

47) Registro de huma Pastoral que Excelência Reverendíssima Se-


nhor Dom Frei Antonio de Guadalupe he do theor seguinte. <”Regula-
mento para a Diocese já vizitada.”> [f.45v-49]

48) Edital que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem mandar


publicar o Breve que Sua Santidade mandou para que se possão celebrar
tres Missas dia da Comemoração geral de todos os defuntos na forma
seguinte. [f.49-50]

49) Ordem que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar para


Se tirarem esmolas para o Seminario de Coimbra [f.50-50v]

50) Registro da Santidade [?] de Altar privilegiado a favor devotos


de [Santa] [Anna] da freguesia de Pillar [f.50v-51]

51) Registo de huma Pastoral do Excelentíssimo Senhor Bispo Dom


Frey Antonio de Goadalupe em que prohibe a esses sacerdotes confessas-
se com religioso da Conceiçam. [f.51-52]

52) Registo do modo e tratamento Como se escreveu Aos Senadoz


[f.52]

53) Registo da [delatoria] para o [ilegível] Vereador que foy de Goyas


E mais que concorrerão para agravissima precucão [sic] Reverendíssima
Magestade da Vara e Matris de Santa Anna [f.52v-53]

54) Registro da ordem que Sua Excelência Reverendíssima mandou


passar ao Reverendo Doutor Joam de Almeida Silva para o sobredito
caso [f.53-54]

55) Registro de Carta [Dellatoria] que Se passou para a [Parahiba]


[f.54v-56]

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56) Em 29 de Abril de 1750 Se passou Pastoral para como nas de


Cuyaba e Goiases para efeito de todos os fieis [torna-lo] orantes como
[ilegível] Seos Senhores para os mesmos tomem a bulla [sic] da Santa
Cruzada e a São João os Matios [ilegível] o pr.em do negocioante por
impedimento [?] que o escrevy. O nosso Escrivão dos Registos integrara
[sic] Este livro nosso Reverendo Escrivão da Camera, na qual se farão de
hoje em diante os Registos que ao dito livro pertensem: Rio de Janeiro 29
de Abril de 1750. [f.56]

57) Edital sobre a Rezolução de Sua Majestade a Respeito das du-


vidas, que havia sobre Este Bispado, e o de São Paulo a Respeito das
comarcas do Rio Grande, Santa Catharina, e Nova Colonia. [f.56-56v]

58) Pastoral, em que Sua Santidade conceda [sic] aos Fieis Catholi-
cos irem a Roma ao jubileo do Anno Santo [f.56v-58]

59) Jubileu para [corroído 26mm x 10mm] 48 [f.58v-59]

60) Edital por que Sua Excelência Reverendíssima he servido man-


dar publicar a conssesam de Sua Santidade para que as três Missas dia da
commemoração dos Defuntos se passam dizer ainda duas horas depois do
Meyo dia. [f.59-59v]

61) Registo da Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima mandou


passar de Indulgencia plenaria para a hora da Morte. [f.59v-61]

62) Modus â Smo D. Nostro Benedicto Papa XIV. aprobatus, pro


opportunitate temporis Servandus, ut infra in Rubrucis notatur, ad imper-
tiendam benedictionem in articulo mortis constitutis, ab his, qui faculta-
tem habent à Sede Ap.ca delegatam49 [f.61-61v]

48 – Sobre suspensão de graças e indulgência plenária em anos santos, de 30 de maio de


1750.
49 – Modo [Modus] aprovado pelo Nosso Senhor Santíssimo o Papa Bento XIV, para ser
observado conforme as circunstâncias do tempo, como é indicado nas rubricas abaixo,
para que seja dada uma bênção aos colocados em artigo de morte [in articulo mortis], por
aqueles que têm a faculdade delegada pela Sé Apostólica. Tradução por D. Henrique de
Gouvêa Coelho, Faculdade São Bento.

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63) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar


para que toda a pessoa que tiver alguma cousa pertencente aos cativos o
entreguem ao mosteiro. [f.62-62v]

64) [Pastoral] que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar


para que todos os clerigos trouxessem Luto e dicessem as missas pela
alma do Senhor Rey Dom Joao o 5° no seguinte. [f.63-63v]

65) Portaria que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar


para que o Reverendo Doutor Juiz dos Residuos Antonio José dos Reis
Pereira e Castro Sirva de Provisor Vigario Geral Juiz dos Casamentos,
[ilegível] deste Bispado. [f.63v]

66) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar so-


bre a divizão das quatro parochias desta cidade. [f.64-65]

67) Registo do Edital, em que Sua Excelência Reverendíssima trans-


ffere o dia de jejum, que no anno de 1751 cahio em dia de Entrudo, por ser
véspera do Appostolo São Mathias para o Sabbado Antecedente. [f.65-
-65v] 

68) Edital para o qual fez Sua Excelência Reverendíssima notório


ato [dos] seus subditos a graca de Sua Santidade que foi servido [Con-
cederlhe] [de] Lograrem as Indulgências do anno Santo vindo visitar as
quatro Freguesias desta cidade dentro do tempo de Seis meses e Seguinte.
[f.66-67v]

69) Portaria para o Reverendo visitador Antonio Francisco Biten-


cur vizitador da visita do Norte faser notificar ao Reverendo Parocho da
Cappitania do Espirito para que em Seis dias nomeie hum clérigo para
Coadjuntor da Capella de Nossa Senhora da Conceipção da Serra a qual
He da forma seguinte [f.68-68v]

70) Edital que Sua Excelência Reverendíssima deve por bem mandar
passar Sobre a providencia para todos os Seos Subditos alcancarem o
Jubilo e Anno Sancto o seguinte [f.68v-69v]

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71) Edital porque Sua Excelência Reverendíssima deve por bem de-
clarar algumas duvidas Sobre se ganhar o Jubilo de anno Santo. o Seguin-
te. [f.69v-70v]

72) Edital que Sua Excelência Reverendíssima devesse [sic] por bem
conceder aos Reverendos Vigários da Vara das Comarcas deste Bispado
para se poder ganhar [sic] o Jubileo do Anno Sancto deputando lhes as
Igrejas para as visitas he o Seguinte [f.71-72v]

73) Registo de huma Portaria que Sua Excelência Reverendíssima na


qual determina mandar Missionários por todo o seo Bispado e Seguinte
[f.72v-73v]

74) Registro de hum Edital que os Reverendos Parochos não deixa-


rem dizer Missa a clerigo algum sem lhe apresentar Licença [f.73v-74v]

75) Edital em que Sua Excelência faz patente a todos [graças] e in-
dulgencias ainda que verdadeiramente sam concedidas a ordem tercei-
ra de Sam Francisco na forma da Bulla de Sua Santidade hoje Reynan-
te [f.75-77]

76) Portaria que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar


para que o Meyrinho Geral, Seu Escrivão, Meyrinho do Campo, e Seu
Escrivão observarem o que nella se contem o Seguinte [f.77-77v]

77) Provisão que Sua. Excelência Reverendíssima concedeu para Se


poder celebrar Missa no oratório das Casas da Relação desta cidade o
Seguinte [F.78]

78) Edital de Pragmática [sic] que Sua Excelência Reverendíssima


mandou passar [f.78v-79]

79) Edital Sobre os despoticos procedimentos dos Reverendos Ca-


pellães administradores de muitas Capellas o Seguinte [ilegível] [Se] [de-
senterrar] cadaver alguns sem licensa do proprio Parocho [f.79-80]

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80) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar So-


bre escravos que Seos Senhores Lançavão fora sem avizar os Parochos
para ordenarem sepultura eclesiástica [f.80-81] 

81) Portaria que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar pela


qual nomeia na Sua [sic] ausencia da vizita por governadores do Bispado
ao Nosso Reverendo Doutor Luis da Silva Borges Oliveira Thesoureiro
Mor da Sé e ao Nosso Reverendo chantre da mesma o Doutor Manoel de
Andrade Werneck e ao Reverendo Conego Antonio de Siqueira Quintal o
seguinte [f.81-81v]

82) Registro de hum [sic] <edital> para que os Sacerdotes e clerigos


e cristãos [sic] ao [ilegível] em suas freguesias e acompanhem ao Santis-
simo Sacramento quando sair fora por viático seguinte [f.82] 

83) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar a


respeito da falta de Aviamento de que podião usar na dita falta o Seguinte
[f.82v-83]

84) Edital que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar sobre


ser São Francisco de Borja da Companhia de JESUS Protector e Patrono
Principal dos Reinoz e Dominioz de Portugal com o theor do Breve por-
que Sua Santidade concede Rezar-se delle com Rito duplez de primeira
classe na forma que nella se declara [f.83-85]

85) Edital que Sua Excelência Reverendíssima foi servido mandar


passar Sobre a procissão Solemne que se ha de fazer na Cathedral e Igre-
jas do Bispado no Domingo de Novembro em que se celebra o Patrocinio
de Nossa Senhora com jejum no Sabbado antecedente na forma que nella
se declara [f.85-85v] 

86) Pastoral porque Sua Excelência Reverendíssima exhorta e man-


da aos Irmãos da Venerável Irmandade de São Pedro que não faltem aos
actos e funções da Irmandade principalmente na assystencia dos mori-
bundos [f.86-86v] 

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87) Edital que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar para


se fazerem preces tres dias continuoz nas Igrejas [Matrizes] desta cidade
e procição de preces no dia de todos os Santos na Cathedral com In-
dulgencia plenaria para todas [sic] as [sic] pessoas [sic] que visitar [sic]
qualquer dessas Igrejas [f.87-87v] 

88) Edital que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar para


todo o clero Religiosos, Irmandades e Confrarias acompanharem a Pro-
cissão do Patrocínio de Nossa Senhora [f.88-88v]

89) Edital da procissão de São Sebastião que Sua Excelência Reve-


rendíssima mandou passar o teor seguinte [f.88v-89] 

90) Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima em que Recomenda


que todos os Seus Subditos tomem a Bulla da Santa Cruzada, e que os
Reverendos Parocos desem disso conta [F.89-90]

91) Edital para a Procissão de Corpus Christi [f.90-91]

92) Edital para o Patrocinio de Nossa Senhora [f.91-91v] 

93) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima foi servido. [f.91v-


-93v]

94) Pastoral porque Sua Excelentíssima Reverendíssima Exhorta


Recomenda, e manda a todos os seus subditos que apartem de toda a
qualquer communicação com os Religiosos Jezuitas e copia da Carta de
Sua Magestade por onde se provão chefes da conjuração contra Sua Real
pessoa [f.94-96] 

95) Edital que Sua Excelentissima Reverendíssima foi servido man-


dar passar para que toda a pessoa que tiver subnegado os bens e alfaias
das Igrejas que forão dos Religiosos da Companhia de Jesuz ou disso
noticia tiver os denuncie com pena de Excomunhão mayor [f.96-96v]

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96) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima foi servido mandar


publicar com o theor de [huma] Bulla ou Constituição Apostolica Sobre
os Indios, e Suas liberdades [f.97-100]

97) Pastoral pela qual Sua Excelência Reverendíssima foi servido


prohibir com pena de Excomunhão Maior ipso facto incurrenda e de du-
zentos crusados para a Bulla e fabrica da Se á todos os Sacerdotes, e
Clerigos deste Bispado a aceitarem Ser capellães do Choro da Freguesia
da Candellaria desta cidade com obrigação de applicarem as Missas pela
alma do Instituidor pela congrua taxada aos Capellães; e de baixo das
Mesmas penas aos Irmãos do Santissimo Sacramento da dita Freguezia
administradora do dito choro, aprovarem as Referidas Capellanias com a
dita condição na forma que Se Segue [f.100-102]

98) Edital para a Procissão de Corpus Christi [f.102] 

99) Edital para a Procissão de Santa Anna [f.102] 

100) Edital para as festas das desposorias sereníssima senhora Prin-


ceza do Brazil com o sereníssimo senhor Infante Dom Pedro [f.102-104] 

101) Edital de Jubileu universal concedido pello Illustríssimo Dom


Clemente 13 na sua assumpçam ao Pontificado [f.104v-106]

102)Edital que Sua Excelência Reverendíssima he servido fazer pas-


sar a concessão de Sua Santidade para a Glorioza Santa Anna fez padroei-
ra desta Cidade e de todo o Bispado na forma assima para Vossa Exce-
lência ver, e assignar com a Rubrica de Sua Excelência Reverendíssima
[f.105v-106]50

103) Edital para os Reverendos Parochos mandarem rol dos que


mais morrem com herdeiros menores Etc. [f.106-107]

104) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima há por bem man-


dar, debaixo das penas nelle declaradas, que todos os Parocoz, e Capel-

50 – O título do documento encontra-se no final da página 106 no meio do documento. O


documento começa antes do título.

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lães em Suas Igrejas, e Capellas, fação ao Povo Praticas, Doutrinaez, e


que ezte assizta a ellas, [como] tambem que Pays, Senhores, tutores, e
Meztres de Escollas mandem e obriguem a essa assistencia os filhoz, Es-
cravos, pupilos e discípulos [sic] na forma que nelle Se Conthem [f.107-
-108v]

105) Pastoral que Sua Excelência Reverendíssima hê Servido man-


dar passar, para a Reforma doz Ecclesiásticos a Respeito doz Vestidos,
trajes, e Ornamento exterior [f.108v-110] 

106) Pastoral pella qual he Vossa Excelência Reverendíssima Servi-


do admoestar aos seoz Subditos a que se abstenhão da inhumanidade, o
detestavel procedimento que praticão alguns Senhores com os corpos dos
seos escravos defuntos mandando os de noite, e sem darem parte aos seos
Reverendos Parochos Lançarem monturas e Adros das Igrejas debaixo de
Excomunhão mayor, e mais penas nellas declaradas [F.110-110v] 

107) Pastoral em que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem de


prohibir debaixo de Excomunhão mayor âz mulheres o entrarem denoite
nas Igrejas, ou eztarem as suas portas em qualquer occaziam na for digo
ocazião, e mandar aos Reverendos Parocos, e maiz pessoaz que eztão
encarregadaz dellaz az fechem a essaz horaz [f.110v-111v]

108) Edital em que, digo para Se fazerem Preces em todas as fregue-


sias deste Bispado, e todas as mais demonstrações de afeição, de graças,
e de Aplauzo pello Nascimento do Serenissimo Senhor Infante na forma
abaixo [f.111v-112v]

109) Edital para a Procissão do Patrocinio de Nossa Senhora [f.112v]

110) Edital para a Procissão de Corpus Christi [f.112v]

111) Edital para as Precez, e Procissão de dia de Todos os Santos


[f.112v]

112) Edital que Sua Excelência Reverendíssima foi servido mandar


fixar na porta da Igreja de Vila Boa de Goias pello tempo de noventa dias

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para todo o sacerdote secular que se quizer opor a dita Igreja recorrer no
dito tempo [f.113-113v]

113) Alvará de Editos que Sua Excelência Reverendíssima he servi-


do mandar passar em cumprimento da Provisão Regia de seis de Junho de
mil setecentos e sessenta e nove, para citação do Padre Jorge Manoel da
Mota ausente da Igreja de Santa Crus de Porto-Seguro, de que he vigario
colado para no termo de seis mezes se recolherá residencia dela sob pena
de privação da mesma na forma de Direito [f.113v-114]

114) Alvará de Editos que Sua Excelência Reverendíssima he ser-


vido mandar passar em cumprimento da Provizam de Sua Magestade de
seis de Junho de mil setecentos e sessenta e nove para se publicar e fixar
na Igreja de São Mateus deste Bispado para citarem ao Padre Antonio
Jose Baptista vigario della auzente em Portugal, sem se saber a terra ou
domicílio certo onde assiste, para se recolher a residencia da dita fregue-
sia no termo prefixo de seis mezes com a cominasão de não o cumprindo
afim se proceder à priviam [?]da mesma Igreja na forma de Direito, como
abaixo milhor se declara [f.114-114v]

115) Alvara de Editos que Sua Excelência Reverendíssima he ser-


vido mandar passar em cumprimento da Provizão de Sua Magestade de
seis de Junho de 1769 para se publicar e fixar na Igreja de São Pedro e
São Paulo da Paraiba deste Bispado para citarem o Padre Luis Damião
vigário della, e auzente em Portugal, sem se saber a terra ou domicílio
certo, onde assiste, para se recolher a residencia da dita Igreja no termo
prefixo de seis mezes com a cominasão de nosso cumprindo afim se pro-
ceder à privação [sic] da mesma Igreja na forma de Direito como abaixo
se declara [f.115-115v]

116) Alvará de Editos que Sua Excelência Reverendíssima he ser-


vido mandar passar em cumprimento da Provisão de Sua Magestade de
seis de Junho de mil setecentos e sessenta e nove para se publicar e fixar
na Igreja de São Salvador do Mundo da Guaratiba deste Bispado, para
citaçam do Padre Antonio de Almeida vigario della, auzente em Portugal

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sem se saber a terra ou domicilio certo, onde assiste, para se recolher a


residência da referida Igreja no tempo prefixo de seis mezes com a comi-
naçam de não o cumpindo assim de proceder à privação [sic] da mesma
Igreja na forma de Direito, como abaixo se declara [f.115v-116]

117) Alvará de Editos que Sua Excelência Reverendíssima hê servi-


do mandar passar em cumprimento da Provizão de Sua Magestade de seis
de Junho de mil sette centos e sessenta e nove para se publicar e fixar na
Igreja de Santo Antonio de Jacutinga deste Bispado para citação do Padre
Antonio Pinto, que foi provido nella, auzente em Portugal, sem se saber
a terra ou domicilio certo, onde assiste, para se recolher a residencia da
referida Igreja no termo prefixo de seis mezes, com a cominação de não o
cumprindo assim se proceder a privação [sic] da mesma Igreja na forma
de Direito, como abaixo milhor se declara [f.116v-117]

118) Alvará de Editos que Sua Excelência Reverendíssima he servi-


do mandar passar em cumprimento de Provizão de Sua Magestade de 6
de Junho de 1769 // para se publicar e fixar na Igreja de Nossa Senhora de
Loreto de Jacarepaguá deste Bispado para citação do Padre Bento Pinhei-
ro da Horta da Silva Cépeda, vigário della auzente em Portugal sem se
saber a terra ou domicilio certo, onde assiste, para se recolher a residencia
da referida Igreja no termo prefixo de seis mezes, com a cominação de
que não o cumprindo assim se proceder a privação [sic] da mesma Igreja
na forma de Direito, como abaixo se declara [f.117-118]

119) Alvará de Editos que Sua Excelência Reverendíssima he servi-


do mandar passar em cumprimento da Provizão Regia de [corroído 10mm
x 5mm] de Junho de 1769 // para se publicar e afixar na freguesia ou Igreja
de Nossa Senhora dos Remedios da Vila de Parati deste Bispado, para ci-
tação do Reverendo Padre Manoel Rodrigues de Carvalho, vigário colado
dela, auzente em Portugal, sem se saber terra, ou domicilio certo onde as-
siste, para se recolher a residencia da referida Sua Igreja no termo prefixo
de seis mezes, com a cominação de não o cumprindo afim se proceder à
privasão da mesma Igreja, como abaixo se declara [f.118-118v]

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120) Edital, pelo qual Sua Excelência Reverendíssima foi servido


mandar passar Preces pela [ilegível] viagem de Nau de Guerra Nossa Se-
nhora dos Prazeres, e maiz navioz; que Sahirão em Sua companhia [f.119]

121) Edital, que Sua Excelência Reverendíssima foy Servido man-


dar passar para a Procissão do Corpo de Deoz, de 30 de Mayo de 1771
[f.119v-120]

122) Tabella da Solemne Procissão do Corpo de Deus, dezta Cidade


do Rio de Janeiro; E forma [sic], com que hão de hir as Confrarias, Irman-
dades, Comunidades, Cavalheiroz, e Clero , anno de 1771 [F.120-120v]

123) Em 30 de Setembro de 1771 Se [corroído 25mm x 10mm] Por-


taria de faculdade ao Padre Jozê Manuel Coelho, vizitador [nomeado]
para a Capitania de Goyas, na fôrma da que Se acha Registrada [sic] nezte
Livro a folha 113 [ilegível] de que fiz ezte Regizto Nosso. Trinta de Se-
tembro de mil Sette Centos Settenta, e hum annoz. E eu [f.120v]

124) Alvará de Editos para por elle ser Citado o Reverendo Antonio
Josê Malheiro Conego Cura da Sê dezte Bispado, para dentro do termo de
seis mezes vir Rezidir pessoalmente no Seu Beneficio com a cominação
de se proceder athé privação [sic] do dito Beneficio [f.120v-121v]

125) Pauta da Procissão <Solene> de Corpus <Christi> desta Cidade


do Rio de Janeiro. E forma, com que hão de ir as Confrarias, Irmandades,
Comunidades, Cavalleiroz, e Clero. Anno de 1772 [f.122]

126) Pastoral, pela qual foi Vossa Senhoria servido mandar, que se
conservem nos Empregos, e Ocupações do Bispado os providos pelo Ex-
cellentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Antonio do Desterro
Bispo, que foi do mesmo, ora fallecido, e que durem as Licenças, e graças
feitaz em sua vida pelo tempo concedido, Sômente como obrigação [de]
as aprezentarem a Vossa Senhoria, tudo na forma abaixo [f.123-124]

127) Pastoral, pela qual foi Vossa Senhoria servido inhibir aoz Re-
ligiozos, se Santo Antônio desta Provincia, da Jurisdição de confessar, e
Pregar neste Bispado, e para que oz Reverendos Parochoz delle, Sachris-

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taes, e Administradores de quaesquer Igrejas, ou Capellaz, os não consin-


tão, e aos Diocezanos senão confessem com elles, tudo com a cominação
das penaz nella declaradas, na forma abaixo [f.124v-125v]

128) Edital, porque o Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor Cabido


Sé [sic] de vacante em execução da Carta Regia mandou publicar, que
Domingo vinte e tres do currente Se havia celebrar na Igreja Cathedral
huma Solemnidade em acção de Graças a Deus Nosso Senhor pelo Sin-
gular beneficio de illuminar o Nosso Senhor Padre Clemente XIV para
extinguir a Companhia chamada de Jesus na forma abaixo [f.126-126v]

129) Edital que Sua Excelência Reverendíssima foi servido mandar


publicar em assam de graças, pela mercê que o onipotente Senhor fes
no Reino de Portugal dando nos huma nova Infanta, na forma abaixo
[f.126v-127v]

130) Em 5 de Novembro de 1774 Se passou Edital para a Procissão


do Patrocinio de Nossa Senhora na forma de que Se acha Registrado,
neste livro a folha 91, Com pena de obediencia, e de dez tustõez de multa
para a Fabrica da Sê, de que foi este Registro [f.127v]

131) Em 21 de janeiro de 1775 se passou Edital para a Procissão de


São Sebastiam, na forma de que se acha [registrado] neste livro a folha
88, com pena de obediencia, e de dez tustoez de multa para a fabrica da
Sé, de que fiz este Registo. [R.o] era ut supra E eu digo para a Fabrica da
Sê na forma Seguinte [f.127v-128]

132) Edital que Sua Excelência Reverendíssima há por bem man-


dar publicar sobre a ordem, que se deve observar na Procissão Solene
de Corpus[sic]Christi no dia 15 do presente mes, e ano na forma abai-
xo [f.128-129] 

133) Pastoral pela qual he Sua Excelência Reverendíssima Servido


Convocar à todo o Clero para exames, e Theologia Moral [f.129v-131]

134) Pastoral pela qual Sua Excelência Reverendíssima ha por bem


contradizer aos Sacerdotez Regularez deste Bispado haverem de pregar

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da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

nas Igrejas desta Dioceze, e ainda nas de Suas proprias cazas Sem expres-
sa licença, e bensam de Sua Excelência na forma do Sagrado Concílio
Tridentino [f.131-132v]

135) Em 29 de Mayo de mil Sette Centos Settenta, e Seiz Se passou


Edital para a Procissão de Corpus [sic] Christi do dia 6 de Junho na forma
da que se acha Registrada nezte Livro a folha 128 Ryo 30 de Mayo de
1776 E eu [f.132v]

136) Pauta para a Procissão Solemne de Corpus Christi desta cidade


do Ryo de Janeiro, e fôrma com que hão de hir as Confrarias, Irmandades,
Comunidades, Cavalheiroz, e Clero. Anno de 1776 [f.133]

137) Em 31 de outubro de 1776 Se passou Edital para a Procissão


do Patrocinio de Nossa Senhora, do dia 10 de novembro do dito anno na
fôrma do que se acha Registrada neste Livro a folha 129. E que fiz este
registro. E eu [f.133v] 

138) Em 17 de janeiro se passou Edital para a Procissão de São Se-


bastião no dia 2a feira 27 do corrente [sic] pelas 3 horas da tarde na fôrma
do que Se acha Regiztrada neste livro a folha 127 [ilegível] R.o era ut
supra. E eu [f.133v] 

139) Em 23 de Mayo de 1777 Se passou Edital para a Procissão de


Corpus Christi, do dia 29 do dito mez como na fôrma do que se acha Re-
gistrado neste livro a folha 128; E a pauta na forma da que se acha neste
mesmo livro a folha 133. Nosso era ut Supra. E eu [f.133v] 

140) Em 30 de [Outubro] de mil Sette Centos Settenta e Sette Se


passou Edital para a Procissão se passou Edital para a Procissão do Pa-
trocinio de Nossa Senhora no dia 9 de Novembro do dito anno, na [sic]
fôrma da que Se acha Registada neste Livro a folha 129, [em] nome do
Illustríssimo Reverendíssimo Senhor Cabido, de que foi ezte Registo E
eu [f.133v] 

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141) Em 17 de Janeiro de 1778 Se passou Edital para a Procissão de


São Sebastião na 3° feira 27 do Corrente [sic] na forma do que se acha
Registrado neste livro a folha 127. R.o era ut supra. E eu [f.134] 

142) Em 6 de Novembro de 1779, Se passou Edital para a Procissão


Solemne de Patrocinio de Nossa Senhora na forma do que Se acha Regis-
trado neste livro afolha 129. R.o era ut Supra. E eu [f.134] 

143) Em 27 de janeiro de 1780 se passou Edital para a Procissão So-


lemne do Martir São Sebastião na forma do que se acha Registrado neste
livro a folha 127. R.o era ut supra. E eu [f.134] 

144) Em 4 de novembro de 1780 Se passou Edital para a Procissão


de Patrocinio de Nossa Senhora no dia 12 do dito mes na forma de que Se
acha neste livro a folha 120 em nome de Sua Excelência Reverendíssima
de que fis este Registro E eu [Jose] Marques o escrevy. a folha 129 [f.134] 

145) Em 19 de janeiro de 1781 Se passou Edital para a Procissão


Solemne de São Sebastião na forma do que Se acha Registrado neste livro
a folha 127. [ilegível] E eu [Jose] Marques o escrevy [f.134] 

146) Em 6 de Junho de 1781 se passou Edital da Procissão de Corpus


Christi que se acha Registado neste livro a folha 128. E eu [Jose] Marques
o padre maior da Camera Ecclesiastica o escrevy [f.134] 

147) Em 16 de janeiro de 1782 Se passou Edital para a Procissão


Solemne de São Sebastião que se ha de fazer no dia 27 do dito mez pelas
3 horas da tarde na forma do que se acha Registada neste Livro a fo-
lha 127 [ilegível] e eu [f.134] 

148) Em 3 de Novembro de 1782 Se passou Edital para a Procissão


de Patrocinio de No Senhora que se ha de fazer no dia 10 do dito mez na
forma do que se acha Registado neste Livro a folha 129. E eu [f.134v] 

149) Edital da Procissão de São Sebastião [f.134v] 

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da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

150) Em 3 de Novembro de 1785 Se passou Edital para a Procissão


de Patrocinio de Nossa Senhora que se ha de fazer Domingo 13 do cor-
rente, na forma do que Se acha Registada neste livro a folha 129. E eu
[f.135] 

151) Em 16 de dezembro de 1785 Se [passou] Sentença de [orató-


rio] privado a Anna de Jesus Maria por Breve Apostolico de que fis este
Registo [f.135]

152) Edictal [sic] de Excomunhão que Sua Excelência Reverendíssi-


ma mandou publicar aos 12 de Novembro de 1785 para que descubrissem
o que soubessem sobre os bens dos Religiosos do Carmo [f.135-136]

153) Funda no Seminario huma Cadeira para Sagrada Escriptura de


manhã e Conferencias de Moral da tarde e determina regras sobre estu-
dos, exames etc. <do clero> [f.136v-139]

154) Em 5 de Novembro de 1796 Se passou Edital para a Procissão


de Patrocinio de Nossa Senhora, que se ha de fazer no dia 13 do corrente -
Vay a folha 140 [f.136] 

155) Em 4 de Junho de 1800 Se passou Edital para a Procissão de


Corpuz Chrizti na 5° feira 12 do corrente na forma do Registro a fo-
lha 128 deste livro [f.136] 

156) Adiante vai a declaração de haver o Santo Padre Pio 6 a instan-


cias da Rainha concedido para Portugal e Dominios as Festas da Dedica-
ção da Igreja do Coração de Jesus, das Princesas Sandra e Theresa, oita-
vario fechado do Santíssimo Sacramento, a nome da Rainha e Sucessores
no Canon da Missa [f.140-140v]

157) Em 17 de Janeiro de 1793 Se passou Edital para a Procissão de


São Sebastiam a Ser dirigida pela Rua do Rosário athe [sic] a Rua direita,
e Seguir por Palacio, e Rua da Cadeya, e Continuar pela Rua da Ajuda,
e Ladeira que vay junto ao Seminário de São Josê thê Se Recolher na
Antiga Cathedral [f.140v] 

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158) Em 5 de Novembro de 1796 Se passou Edital para a Procissão


do Patrocinio de Nossa Senhora,  que Se ha de fazer Domingo 13 do
Corrente [f.140v]

159) Em 15 de Janeiro de 1799 Se passou Edital para a Procissão de


São Sebastião no dia 27 do corrente, na forma do Registro que eztâ nezte
livro a folha 139 que [?] E eu [f.140v] 

160) Em 4 de Novembro de 1799 Se passou Edital para Se fazer a


Procissão de Patrocinio de Nossa Senhora [f.140v] 

161) Em 21 de Janeiro de 1800 Se passou Edital para a Procissão


Solemne do Glorioso Martyr São Sebastiam no dia 27 do Corrente pelaz
trez horas da tarde, na forma do Registro folha 128 dezte Livro [f.141] 

162) Edital, para oz Reverendos Parochos,  coadjutorez e Capellãez


daz Igrejas em que Se festeja o Divino Ezpirito Santo,  não Consentirem,
que dentro das ditas Igrejas, ou Capellaz Se apregoem, Comprão, ou ven-
dão Couza alguma, debaixo das penaz abaixo declaradaz [f.141-141v]

163) Em 16 de Janeiro de 1801 Se passou Edital para Se fazer a Pro-


cissão Solemne de Glorioso Martyr São Sebastiam no dia 27 do corrente
[f.141v]

164) Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima, em que permitte


aoz Reverendos Sacerdotes, o uzo daz fivellas, Ezporas e botoenz de pra-
ta Liza, e Sem ornato algum de pedras, que Sejão, ou pareção preciozas, e
permita os Barretes a todoz os clérigos de ordenz Sacras, ao Thenoristaz
Beneficiados ou Economos, aoz Familliares domezticoz, e aoz Semina-
ristas [f.141v-142]

165) Paztoral em que Sua Excelência Reverendíssima hâ por bem


porhibir que Se possão fazer Novenas e ajuntamentos noturnos nos Tem-
ploz antez do nascimento, e depoiz do occazo do Sol; e a qualquer cleri-
go de qualquer Graduação que officiar, Pregar, ou [para] qualquer modo
assistir Solemnemente âs praticas de acçoenz Contrarias ao Ezpirito da
Santa Igreja, na forma Seguinte [f.142-143]

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da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

166) Edital em que Sua Excelência Reverendíssima hê Servido Se-


parar, [dividir], e dezmembrar da Igreja Matriz da Sacra Famillia da Ipu-
ca, todo o terreno que Se Comprehende entre a Serra, e o Ryo de Bacachâ
principiando do Ryo da Aldea Velha para cima, para a Nova Igreja de
Nossa Senhora da Lapa, na forma abaixo declarada [f.143-144]

167) Em 6 de Novembro de 1801 Se passou Edital para a Procissão


Solemne do Patrocinio de Nossa Senhora [f.144]

168) Em 19 de Janeiro de 1802 Se passou Edital para Se fazer a Pro-


cissão Solemne de São Sebaztião no dia 27 do Corrente [f.144]

169) Em 9 de Junho de 1802 Se passou Edital para a Procissão de


São Sebaztião,  digo, de Corpuz Christi [f.144]

170) Em 16 de Janeiro de 1804 se passou Edital para a Procissão de


São Sebastião no dia 27 do Corrente mêz [f.144] 

171) Em 19 de Março [?] de 1804 se passou Edital para a Procissão


de Corpore Christi - <1805> [f.144]

172) Em 1º de junho se passou Edital para a processão de Corpore


Christi [f.144]

173) Pastoral, para qual o Illustríssimo e Reverendíssimo Senhor Vi-


gário Capelar [?] prohibe aos Reverendos Sacerdotes e mais Pessoas Ec-
clesiásticas o uzo de qualquer outro habito, que não seja talar [f.144v-145]

174) Em 9 de Janeiro de 1806 se passou Edital para processão de São


Sebastião no dia 27 do Corrente [f.145]

175) Pastoral pela qual o Ilustríssimo Revereníssimo Cabbido, Se


de Vacante foy servido publicar para que se conservasse tudo assim e
da mesma forma determinada para Sua Excelência Reverendíssima e ap-
provado para [ilegível] Reverendos Vigários Capitulares, falecidos como
abaixo se declara. [f.145-145v]

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176) Aoz 27 de Junho de 1806 se registrarão mais quatro Pastoraes


do mesmo theor supra para se remetterem para as [ilegível] do Reconca-
vo, para as do Continente do Norte, para os do Sul deste Bispado e para
a Comarca de Santa Catharina De que fiz este Registro Eu Joaquim Joze
Vianna o escrevy [f.145v]

177) Em 4 de Setembro de 1806 se passou Edital para a Procissão do


Patrocinio [f.146]

178) Em 14 de Janeiro de 1807 se passou Edital para a Processão de


São Sebastião [f.146]

179) Em 16 de Maio do anno se passou Edital para a processão do


Corpus Christi [f.146]

180) Em 9 de Outubro do dito anno se passou Edital para a processão


do Patrocinio [f.146]

181) Edital,  para que Sua Excelência Reverendíssima ha por bem


declarar in perpetuum dia Santo de Guarda o dia 27 de Setembro de cada
hum <anno> para se festejar o Santo Padroeiro da Matriz de São João
Marcos [f.146-146v]

182) Em 28 de Setembro de 1808 se passou Edital para ser privile-


giado o Altar de Nossa Senhora do Terço [oracto] na Matriz da Villa de
Parati para tempo de dez annos. [f.146v]

183) Pastoral pela qual Sua Excelência Reverendíssima ordena aos


Parochos fação Preces publicas, e a oração = pro Papa = como nella se
contem [f.146v-148v]

184) Em 27 de Maio de 1809 se passarão Editaes para [os] quatro


Vigários desta Cidade, e juntamente [ilegível] das Irmandades Comunida-
des, Cavalleiros, e o Clero, para a Procissão de Corpo de Deus na forma
abaixo Registada [f.149]

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

185) Edital [f.149-149v]51 

186) Edital em que Vossa Excelência Reverendíssima foy servido


mandar passar para se formalizar a Procissão de Corpo de Deus na forma
acima [f.149v]

187) Pauta da Procissão Solemne de Corpo de Deus desta Corte do


Rio de Janeiro, e forma com que hão de hir as Confrarias, Irmandades,
Comunidades, Cavalheiroz e Clero = Anno - 1809 - [f.150-151]

188) Edital de erecção e demarcação dos limites da nova Freguezia


de São João da Lagoa desmembrada da Freguesia de São Joze desta cida-
de, na forma, que abaixo se declara  [f.151v-152]

189) Edital de erecção e demarcação dos limites da nova Freguezia


de Nossa Senhora da Lappa, desmembrada de Nossa Senhora do Desterro
da Ilha de Santa Catharina, na forma que abaixo se declara [f.152v-153]

190) Registo da Pastoral da Publicação do Jubileo de tres meses do


presente anno de 1809, como abaixo se declara [f.153-156v] 

191) Pauta Dos Reverendos Missionarios que hão de pregar em oito


Igrejas desta Cidade do Rio de Janeiro em todos os Domingos e dias
Santos de tarde desde 21 de setembro athe 21 de Dezembro por ocazião
do Jubileo concedido aos Povos do Brazil no presente anno de 1809 pelo
Santo Padre Pio VII [f.156v-157] 

192)<Preces publicas pelo Santíssimo Padre Pio 7> [f.157-158v]

193) Em 17 de Abril de 1810 Se passou Edital de erecção da nova


freguesia de Piratinim desmembrada da freguesia de São Pedro do Rio
Grande com os Limites Seguintes =  o Territorio, que vai da Lagoa de
Marim [?], é barrade Piratinim the [sic] o arroio da Palma, Seguindo este
[Rumo] das [ilegível] pela Serra de Santa Maria the [sic] Taguarão, e des-
te the [sic] intestar com os Limites do Rio [?] Pardo [?], e da Capella do
Cangussum [?] the intestar com o rio Piratinim na mencionada barra de
51 – Edital para a procissão de Corpus Christi.

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Beatriz Catão Cruz Santos

mirim por Provisão Regia de 3 de Abril de 1810. Do que fiz ezte Registro.
E eu o Padre Francisco dos Santos Pinto, Escrivão da Camera o escrevy
[f.158v]

194) Em 2 de Junho de 1810 se passarão Editaes, e Pautas para a


Procissão de Corpo de Deus para as freguezias desta Cidade na forma da
que se acha registado neste Livro a folha 149 et seg [f.158v]

195) Em 14 de Julho de 1810 á instancia do Principe Regente Nosso


Senhor se passou Edital em que se declarou dia Santo o dia dezaseis de
Julho, em que Se faz a Festa da Senhora do Carmo, como Orago da Fre-
guesia do Paço; somente para a freguesia da Real Capella, e Ministros da
mesma: do que fiz esfe Registro. E eu o Padre Francisco dos Santos Pinto,
Escrivão da Camara o escrevy [f.158v]

196) Edital, pelo qual Sua Excelência Reverendíssima manda con-


tinuar as Preces pelo Senhor Padre Pio 7º na forma, que nelle se declara
[f.158v-159]

197) Edital que Sua Excelência Reverendíssima houve por bem


mandar passar para a erecção e demarcação da nova freguesia do Senhor
Bom Jesus do Monte da Ilha de Paqueta [f.159v-160]

198) Pastoral de Dispensa para se comer Carne na Quaresma deste


presente anno de 1811 com a excessão de certos dias, e outras graças na
mesma declaradas [f.160v-162v]

199) Em 15 de Mayo se passarão Editais para a Procissão do Corpo


de Deoz, na forma do que se acha registrada a folha 144 e Seguintes E eu
o Padre Francisco dos Santos Pinto fis este Registo [f.162v]

200) Pastoral em que se dispensão alguns dias Santos para se po-


der nelles trabalhar depois de ouvida a Missa como abaixo se decla-
ra. [f.162v-166v]

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

201) Edital para a nova erecção da Igreja de São Sebastião em Matris


desmembrada da Igreja de São Gonçalo dos Campos dos Goytacazes na
forma abaixo declarada. [f.166v-167]

202) Edital que Sua Excelência Reverendíssima houve por bem


mandar passar para a illuminação, e repiques de Sinos em todas as Igre-
jas, e Capellas desta Corte na forma abaixo. [f.167-167v] 

203) A 30 de outubro de 1811 se passarão Editais para a Procissão


[sic] do Patrocinio, que se ha de fazer na tarde do dia 10 do Seguinte mez
de novembro na forma do que se acha passado a folha 129 deste Livro do
que fis este Registro. Eu o Padre Francisco dos Santos Pintos, escrivão da
Camara, o subscrevi e assignei. [f.167v]

204) Pastoral digo Provisão de Erecção da Nova Freguesia de Santa


Anna do Pirahi desmembrada das Freguesias de São João Marcos, e Nos-
sa Senhora da Conceiçam da Vila de Resende na forma abaixo [f.168-
169]

205) Aos 15 de Janeiro de 1812 se passarão Editaes para a Processão


[sic] de São Sebastião na freguesia do que se acha Registrado neste Livro
do que fis este Registro. E eu o Padre Francisco dos Santos Pinto, Escri-
vão da Camera o escrevi, e assignei [f.169v]

206) Pastoral, em que Se publicão Missoens nesta Corte, e Cidade


[durante] a Quaresma deste prezente anno de 1812 na forma abaixo –
<missões> [f.169v-170v]

207) Pastoral de Dispensa para se comer carne na Quaresma desse


prezente anno de 1812 com a excepção de certos dias, como abaixo se
declarão [f.170v-171]

208) Pastoral pela qual Sua Excelência Reverendíssima he servido


Regular as Conferencias Scientificas do clero deste Bispado existente, e
Rezidente nas Commarcas mais populozas deste Bispado na forma, que
abaixo se declara [f.171-173v]

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Beatriz Catão Cruz Santos

209) Pastoral pela qual Sua Excelência Reverendíssima houve por


bem regular os Estudos dos Ordinandos; e o mais que na mesma se con-
tém [f.173v-175]

210) Edital que Sua Excelência Reverendíssima houve por bem


mandar passar para a Erecção e Demarcação da Nova freguesia de São
Francisco de Paula desmembrada da freguesia de São Pedro do Rio Gran-
de [f.175v-176]

211) [A] 19 de Janeiro de 1813 se passarão Editais para a Procissão


de São Sebastião [corroído 4mm x 4mm] que para constar, fis este Regis-
tro. Eu, o Padre Francisco dos Santos Pinto Escrivão da Camera fis este
registro e assignei [f.176]

212) Aos 13 de Fevereiro de 1813 se passou Edital para a nova erec-


ção, e divizão do [destrito] [rio] do cangossú para nelle se constituir huma
nova Parochia na Capella de Nossa Senhora da Conceição descentrada da
freguesia de São Pedro do Rio Grande, ficando a nova freguesia com Nor-
te o Rio Camacuan = Pelo Sul do Rio, que nasce da Serra, e vai desaguar
no Rio Piratinim = Pelo nascente [f.176v]

213) Aos 15 de Fevereiro de 1813 se passou Edital para a nova erec-


ção da Arroio grande em Parochia, dividida da freguesia de São Pedro do
Rio Grande com a invocação do Divino Espirito Sancto, tendo por Assen-
to, e Igreja Parochial interinamente a Capella da Guarda da Lagoa, e com
os Limites Seguintes = A Lagoa de Mirim = a Fronteira Hespanhola, e os
Limites da Freguezia da Conceição do Piratinim do que para constar este
Registro, que assignei [f.176v]

214) Ao 1º. de Março de 1813 se passou Portaria ao Padre Francisco


Pereira digo de Paula Pereira para Mestre de Cantochão, Orgão, Muzica
do Collegio de São Joaquim como [sic] ordenado de cincoenta, e sinco
mil, e Seiscentos dois, convem à saber = trinta mil Reis de Cantochão,
e vinte e cinco mil, e seiscentos reis de Mestre de órgão, Musica pa-
gos pelos Rendimentos do Collegio, de que fiz este registro que assignei.
[f.176v]

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E-236 – Pastorais e Editais. 1742-1838. Um códice sobre rituais no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro

215) Aos cinco de Junho de 1813 se passarão Editaes para a Pro-


cessão de Corpo de Deos na forma [ilegível] do que fis este Registro que
assignei [f.177]

216) Provisam pela qual Sua Excelência Reverendíssima houve por


bem declarar, quando devem, ou não Celebrar-se os Matrimonios, e Ba-
tismos Solemnes nos Oratorios privados [f.177-178]

217) A 15 de Janeiro de 1814 Se passarão Editaes para a Processão


de São Sebastião na forma do que Se acha Lançado a folha 102 [?] [ile-
gível] com a diferença [ilegível] expressar nos [ilegível], o que Se acha
Subsignado por baixo: do que fis este Registro. Rio 15 de Janeiro de 1814
[f.178]

218) A 28 de Maio de 1814 se passarão Editaes para a Processão


Solemne de Corpo de Deos: do que fiz este Registro: Era, et supra [f.178]

219) A 18 de Janeiro de 1815 se passarão Editaes da Processão de


São Sebastião: do que fis este Registro [f.178]

220)<Algumas determinações litúrgicas [sic] na Cathedral> [f.178-


-179v] 

221)<Substituições capitulares na Cathedral> [f.179v-180] 

222)<Oratórios de Missa> [f.180-184] 

223) Aos Vinte e Seis dias do mez de Outubro de mil de mil oito cen-
tos e quinze me foi apresentada a Certidão de Baytismo do Serenissimo
Senhor Infante Dom Sebastiam Gabriel Carlos José Francisco. Xavier de
Paula Miguel Bartholomeu de São Gemianno Rafael Gonzaga [sic] que
nasceo aos quatro de Novembro de mil oito centos, e onse, e foi baptizado
pelo Diocesano, e Capellão Mor aos dezasette de Dezembro Senhor In-
fante Dom Pedro Carlos de Borbom, e de Bragança, e da Muita Augusta
Princesa Senhora Dona Maria Theresa; Forão Padrinhos o Serenissimo
Principe Regente, e a Fidelissima Rainha de Nossa Senhora, de que fiz

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Beatriz Catão Cruz Santos

este Registro E eu o padre Francisco dos Santos Pinto, Escrivão da Came-


ra o subscrevi, e assignei [f.184]

224) Em outra Certidão do mesmo Reverendíssimo Conego Cura da


Real Capella Consta, que aos trese do mez de Mayo de mil oitocentos,
e nove, nesta Capella Real de Nossa Senhora do Monte do Carmo, pe-
las Seis horas da tarde na presença do Excelentissimo, e Reverendissimo
Bispo desta Diocesse, Capellão Mor Se Receberá em Matrimônio per
palavras de presente na forma do Sagrado Concilio tridentino, e Consti-
tuiçoens Diocessanas o Muito Alto, e Muito Poderoso Principe o Serenis-
simo Senhor Infante Dom Pedro Carlos de Bourbon, e de Bragança, Filho
legitimo dos Muitos Altos, e Poderosos Principes o Senhor Infante de
Espanha Dom Gabriel, e da Senhora Infanta Dona Mariana Victoria: Com
a muito Alta Poderosa Princesa Senhora Dona Maria Theresa Filha le-
gitima do Muito Alto, Muito Excelente, e Muito Poderoso Principe Dom
João por Graça de Deos Principe Regente de Portugal, e dos Algarves, e
Principe do Brasil, e da Muito Alta, Muito Excelente, e Muito Poderosa
Princesa do Brasil a Senhora Carlota Joaquina de Bourbon, e Infanta de
Espanha, e Principe da Beira Dom Pedro Alcantara; de que fiz este Re-
gistro E eu o Padre Francisco dos Santos Pinto, Escrivão da Camera o
subscrevy, e assignei [f.184-184v]

225) A Editaes para a Processão de São Sebastiam a 9 de Janeiro de


1816 na freguesia do que se acha a folha 132 deste Livro do que fis este
Registro que assignei. [f.185]

226) O Editaes para a Processão do Corpo de Deos a 27 de Maio


de 1816 na forma de que se acha a folha 149 deste Livro do que fis este
Registro [f.185]

227) Edital da Divisão da Igreja de Santa Anna e Erecção da mesma


em Parochia na forma abaixo declarada <desta corte> [f.185-185v]

228) Pastoral porque Sua Excelência Reverendíssima há por bem dar


as providençias sobre a Celebração das Missas; caindo as festas de São

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Joze e da Annunciação em quinta feira maior na forma abaixo [f.185v-


-187v] 

229) Provisão em que Vossa Excelência Reverendíssima mandou


passar em que confirma a Benção do Hospital dos Lazaros na forma abai-
xo [f.187v]

230) Edital para quando se transfere a Procissão de São Sebastião na


forma abaixo. [f.188-188v]

231) Pastoral, pela qual Sua Excelência Reverendíssima dispensa


para que se possa comer carne na presente Quaresma [f.188v-189v]

232) Pastoral de Sua Excelência Reverendíssima em que annuncia a


vizita do prezente anno de 1819 na forma abaixo. [f.189v-197v]

233) Pastoral de Dispensa para se comer carne na Quaresma deste


prezente anno de 1820 com a excepção de certos dias, como abaixose
declara. [f.197v-198]

234) A 18 de Março de 1821 se passou Pastoral em que Sua Excelên-


cia dispensa a abstinência da carne na prezente Quaresma com a mesma
formalidade da que se passou no anno de 1819 transcrita a folha 188
[ilegível] em diante do que fis este Registo. E eu o Padre Francisco dos
Santos Pinto Escrivão da Camera o escrevy [f.198v]

235) Edital que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar em


que declara dia Santo in perpetuum o dia 24 de Março que nelle se Ce-
lebrar a festa do Santíssimo Sacramento titular da Igreja da Sé na forma
abaixo. [f.198v]

236) Edital que Sua Excelência Reverendíssima mandou passar dis-


pensando nos dias Santos de guarda para poderem trabalhar os Emprega-
dos no Arsenal [sic] Real na forma abaixo. [f.199] 

237) Ordem de Sua Excelência Reverendíssima circular relativa-


mente ao Nome do Imperador no Canon, e Collecta. [f.199-120]

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Beatriz Catão Cruz Santos

238) A 19 de Janeiro de 1827 se passarão Editaes para a Solemne


Processão de São Sebastião do que fis este Registro [f.200]

239) Edital da erecção, e Limites da Freguezia de São João Baptista


da Villa da Nova Friburgo na forma abaixo. [f.200]

240) Edital pelo qual Nossa Excelência Reverendíssima ha por bem


declarar a devizão e Erecção da Nova Parochia de São Jozé de Serra como
abaixo se declara [f.200v-201]

241) A todos os que a presente minha Pastoral virem, e della tiverem


noticia, Saude, e Paz em Jesus [sic] Christo Nosso Senhor, que de todos,
he o verdadeiro remedio e salvação. [f.201-202v]

242) Carta Pastoral de Vigario Capitullar Sé de Vacante do Illustríssi-


mo Reverendíssimo Conego Narcizo da Silva Nepomuceno. [f.203-206v]

243) Pastoral pela qual o Ilustríssimo Reverendíssimo Conego Viga-


rio Capitular Sé [sic] de Vacante, Narcizo da Silva Nepomuceno, houve
por bem dirigir aos Muitos Reverendos Arciprestes Vigarios das Varas,
Parochias, Curas e Coadjutores a fim de prevenirem os abuzos que se
continuão a commetter na practica das Habilitações Matrimoniais [f.207-
209]

Texto apresentado em abril/2016. Aprovado para publicação em ju-


nho/2016.

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V – RESENHAS
REVIEW ESSAYS

COSTA, Marcus de Noronha da. D. Marcos de Noronha e


Brito, 8º Conde dos Arcos (Elementos para uma biografia).
Apresentação de Eduardo Morais de Castro. Prefácio de Arno
Wehling. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2011, 423p.
Armando Alexandre dos Santos1

O historiador português D. Marcus de Noronha da Costa, membro


da Academia Portuguesa da História e sócio-correspondente do IHGB,
é o atual proprietário do Palácio do Salvador, que está situado no bairro
lisboeta de Alfama e pertenceu, na passagem do século XVIII para o XIX,
a seu hexavô D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos e último
vice-rei do Brasil.

Juntamente com o imóvel avoengo, D. Marcus herdou de seu quase


homônimo antepassado um arquivo muito rico, com cópia da volumosa
correspondência ativa e passiva e demais atos administrativos referentes
aos períodos em que foi, sucessivamente, governador da Capitania do
Pará e Rio Negro (1803-1806), vice-rei do Brasil (1806-1808), gover-
nador da Bahia (1810-1818), ministro da Marinha e do Ultramar de D.
João VI (1818-1820), ministro do Reino e dos Estrangeiros do príncipe-
-regente D. Pedro (1821) e, por fim, membro do Conselho de Estado da
Monarquia lusa até morrer, aos 57 anos de idade, em 1828.

Era costume do tempo os administradores se servirem de amanuen-


ses para tirarem cópias em grandes cadernos denominados “copiadores”
da correspondência ativa e passiva, dos relatórios expedidos aos superio-
res, dos atos administrativos em geral, para, depois de cessadas as funções
do cargo, conservarem a memória do seu período de governo. E também,
le cas échéant, para se defenderem, caso sofressem investigações ou de-
1 –1 Sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Armando Alexandre dos Santos

vassas quanto aos atos praticados no cargo. Esta última preocupação era
bem compreensível, pois com frequência invejas e rivalidades davam azo
a procedimentos investigatórios por vezes bastante desagradáveis. Tal
aconteceu, aliás, com o próprio Conde dos Arcos, que chegou a ser apri-
sionado na Torre de Belém, em Lisboa, e precisou prestar contas de seus
atos no Brasil, sendo inocentado e até nomeado, depois disso, membro do
Conselho Privado do Rei D. João VI.

Para historiadores, os copiadores são uma fonte preciosíssima de in-


formações. Permitem uma visão de conjunto, ao mesmo tempo genérica
e particularizada, das administrações.

O autor do livro possui os copiadores de seu ilustre antepassado e,


não contente com isso, realizou também pesquisas em arquivos portugue-
ses (o da Torre do Tombo, o Histórico Ultramarino e o do Ministério da
Marinha) e no Arquivo Nacional do Brasil, assim como em ampla biblio-
grafia concernente ao personagem e à época focalizada. Dispôs, assim,
de documentação abundante para historiar as atividades de D. Marcos
de Noronha e Brito em suas sucessivas funções a serviço da monarquia
lusa. É precisamente no Conde dos Arcos enquanto administrador e polí-
tico que concentrou o foco de seu estudo, optando por não escrever uma
biografia cabal do personagem, mas se propondo, modestamente, a reunir
“elementos para uma biografia”.

O volume é aberto por uma mensagem de apresentação do Dr. Eduar-


do de Morais Castro, presidente da Associação Comercial da Bahia – en-
tidade fundada pelo 8º Conde dos Arcos e até hoje sediada num edifício
que ele construiu. Foi com o patrocínio da ACB que a Academia Portu-
guesa da História publicou a obra, em alentado volume de 423 páginas.

Vem em seguida o prefácio, que tem por título “O Conde dos Arcos,
um governante ilustrado na crise do Antigo Regime”. Nele, o prof. Arno
Wehling, presidente do IHGB, mostra como nas últimas duas décadas
vem sendo revalorizado o gênero biográfico, que esteve longo tempo co-
locado à margem dos debates historiográficos de ponta; faz depois uma

318 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):317-324, jul./set. 2016


D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos (Elementos para uma biografia)

breve revisão da bibliografia acerca do Conde dos Arcos; e contextualiza


a época em que ele viveu e atuou, prolongamento natural da segunda
metade do século XVIII, quando na Europa e na América apareceram
administradores “inspirados pela Ilustração, (que) tinham interesse no
progresso material e cultural dos povos sob sua responsabilidade, e viam
a si próprios como os instrumentos para a realização desses fins”. É bem
esse, prossegue o prefaciador, “o caso do Conde dos Arcos, uma espécie
de arquétipo de governante desse tipo no Brasil, com a agravante, para
ele, de não mais viver nos tempos do incontestado ‘despotismo esclare-
cido’, mas na transição para o novo mundo constitucional, povoado de
jacobinos e bonapartistas”.

O prefácio é curto e denso, apresentando uma síntese muito feliz do


personagem e chamando convenientemente a atenção do leitor para os
aspectos principais a serem considerados nos capítulos da obra, a qual foi
estruturada pelo seu autor em partes que correspondem às várias fases da
carreira do Conde dos Arcos.

De início, é exposta e analisada a “administração civil, política, mi-


litar e econômica do 8º Conde dos Arcos no Pará e Rio Negro”. A essa
enumeração de aspectos, poder-se-ia acrescentar a atuação cultural e edu-
cativa do governador, também focalizadas no capítulo.

O capítulo seguinte é dedicado ao período em que o Conde dos Ar-


cos foi Vice-Rei do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, sendo igualmente
analisados os vários aspectos de sua atuação.

O período em que foi exercido o governo da Bahia é mais ampla-


mente explanado, não só porque mais prolongado, mas também porque
foi na Bahia que o Conde dos Arcos pôde exercer uma atividade adminis-
trativa mais intensa e diversificada. Até hoje conservam os baianos boa
recordação do Conde dos Arcos e de seu período de governo, que de certa
forma representou uma espécie de “Idade de Ouro”, nome do jornal que
ele fundou na capital baiana.

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Armando Alexandre dos Santos

Ainda como governador da Bahia, o Conde dos Arcos precisou in-


terferir com energia total em Pernambuco, para debelar a Revolução de
1817, que ameaçou seriamente a estabilidade política e institucional, as-
sim como a unidade territorial do Reino do Brasil. O extremado rigor com
que atuou naquela emergência fez com que, em Pernambuco, até hoje
fosse bem menos simpática a memória do Conde dos Arcos. A exposição
e a explicação dos atos do Conde dos Arcos, em Pernambuco, ocupa todo
um extenso capítulo do livro.

A seguir, vem o período em que, de volta ao Rio de Janeiro, foi mi-


nistro de D. João VI e, depois, do Príncipe Regente D. Pedro. Após o re-
torno a Portugal, enfrentou severo processo investigatório, foi inocentado
e assumiu posição de confiança, junto a D. João VI.

O livro é fechado com uma curiosa confrontação de dois pareceres


antagônicos, emitidos por dois conselheiros de D. João VI – o 8º Conde
dos Arcos e o 1º Conde de Subserra (Manuel Inácio Martins Pamplona
Corte Real – 1760-1832) – sobre se Portugal deveria ou não mandar ao
Brasil uma expedição militar para combater o Império e restaurar o status
quo ante. O Conde de Subserra era favorável ao envio dessa expedição,
enquanto o Conde dos Arcos a desaconselhava, porque temia não só as
incertezas de uma confrontação militar, mas, sobretudo, que essa atitude
extrema impedisse que, mais para a frente, voltassem a se reunir na mes-
ma pessoa as duas coroas da Dinastia de Bragança.

Em linhas muito gerais, esse é o conteúdo do livro, que apresenta di-


versos pontos de interesse para os leitores de nossos dias. A um estudioso
da História Militar, por exemplo, quase todos os capítulos oferecem ele-
mentos bastante ricos para análise. O Conde dos Arcos conhecia profun-
damente princípios de estratégia e tática, tanto de combate em terra quan-
to no mar, estava atualizado com os avanços que a “arte da guerra” fazia
em seu tempo e preocupava-se sobremaneira com a defesa do Brasil.

Um aspecto que surpreende é seu conhecimento de Teologia, fican-


do claro, em mais de uma passagem, que não lhe eram desconhecidos

320 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):317-324, jul./set. 2016


D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos (Elementos para uma biografia)

manuais de Teologia Moral e compêndios de Casus Conscientiae. Isso é


revelado, por exemplo, quando um padre solicitou transferência da paró-
quia distante em que trabalhava, alegando que estava havia 4 anos sem
avistar outro sacerdote e, assim, sem poder confessar-se. O Conde dos
Arcos negou a transferência, argumentando que, de acordo com a Teolo-
gia Moral, mesmo sem confissão sacramental o postulante podia e devia
ter contrição perfeita de seus pecados, e isso bastava para habilitá-lo a
permanecer no local, cumprindo seu dever...

Demonstra também profundos conhecimentos de Direito, tanto nos


princípios filosóficos que o fundamentam quanto na sua aplicação práti-
ca, nas Ordenações do Reino e no Direito das Gentes. Mais de uma vez,
fundamenta decisões administrativas na legislação pertinente ao caso sob
exame.

Para estudiosos de História Cultural e do que se costuma chamar


“História das Mentalidades”, também há interesse na documentação so-
bre o Conde dos Arcos coligida por seu descendente. A preocupação que
manifestava com a educação, com a cultura, com o esplendor da vida
social, com espetáculos públicos, até mesmo com as modas no vestuário,
tudo isso o livro contém, embora um tanto à margem do foco central, que
é o administrativo e político.

Sobre a vexata quaestio da escravidão, é singular a posição do Con-


de dos Arcos. Ele se revela a esse respeito, de um lado, liberal e bastante
avançado para seu tempo, de outro lado conservador em toda a medida do
possível. Reconhece que a escravidão é um mal e deve ser eliminada, mas
compreende que sem a mão de obra escrava o Brasil era economicamente
inviável. Que solução propõe? Que fossem trazidos escravos da África e,
em aqui chegando, fossem imediatamente libertados e empregados como
homens livres, com todo o apoio e toda a sustentação de que necessi-
tassem para de fato se inserirem gradualmente na sociedade colonial. A
proposta, ao mesmo tempo autoritária e liberalizante, é bem característica
do personagem.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):317-324, jul./set. 2016 321


Armando Alexandre dos Santos

Na verdade, o Conde dos Arcos era um homem de seu tempo; ele


viveu numa era de grandes transformações históricas, na passagem da
Idade Moderna para a Idade Contemporânea, assinalada pela Revolução
Francesa e pelas múltiplas consequências que, em cadeia, essa Revolução
trouxe para o mundo inteiro. Nascido em 1771, era jovem de 18 anos
quando caiu a Bastilha. Tinha 22 anos quando foi guilhotinado Luís XVI,
e 36 para 37 anos quando, em decorrência da invasão de Portugal pelas
tropas de Junot, a Família Real portuguesa se deslocou para o Brasil.

Sua obra administrativa, nos sucessivos cargos de governo que exer-


ceu, foi por muitos lados modernizante e até revolucionária; já a repres-
são enérgica da revolução pernambucana o mostra como conservador e,
mais ainda, como reacionário. Também foi conservador seu papel como
ministro e conselheiro do príncipe D. Pedro, procurando evitar ao máxi-
mo a separação política com Portugal; depois de consumada esta, opôs-se
a que Portugal tentasse retomar militarmente o controle do Brasil, porque,
como salientado mais atrás, assim se criaria um clima psicológico de res-
sentimento mútuo que tornaria impossível, mais tarde, uma reunião das
duas monarquias independentes sob a égide de um mesmo monarca.

Por um lado, o 8º Conde dos Arcos anteviu, preparou e influenciou


grandes transformações políticas, e a esse título foi revolucionário. Mas,
visto em outra perspectiva, foi reacionário, no sentido de que reagiu efe-
tivamente aos excessos revolucionários, preservando os valores e, na me-
dida do possível, as instituições do passado, impedindo um rompimento
brusco que teria sido extremamente danoso.

O cinza, posto ao lado do preto, parece branco. E, posto ao lado do


branco, parece preto. Essa a dificuldade para se entender e julgar serena
e adequadamente um personagem típico e atuante de uma época de tran-
sição.

O Conde dos Arcos viveu numa sociedade sobre a qual atuavam duas
forças opostas, agindo à maneira de dois vetores, o conservador e o trans-
formador, procurando ambos um ponto de equilíbrio. E esse confronto

322 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):317-324, jul./set. 2016


D. Marcos de Noronha e Brito, 8º Conde dos Arcos (Elementos para uma biografia)

não se dava apenas na sociedade, mas se dava também no interior das


mentes. Dentro de cada pessoa se notava essa dicotomia, esse enfrenta-
mento.

Bismarck, chanceler do Reich alemão, dizia, na segunda metade do


século XIX, que sentia em sua cabeça todo um parlamento. Dentro da ca-
beça dele, todas as tendências políticas e ideológicas coexistiam e, de vez
em quando, uma delas tomava a dianteira sobre as demais. Às vezes, era
o radical revolucionário que se manifestava, às vezes era o conservador
tradicionalista, às vezes, o moderado ou o centrista. E todos, juntos, iam
conduzindo no dia a dia o chanceler de ferro que fez o II Reich.

Fenômeno parecido se dá em muitas cabeças, especialmente em


fases de transição. Isso explica que muitas rupturas desemboquem em
continuidades, e que muitas continuidades de repente sofram inesperadas
rupturas.

Duas frases do clássico italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em


“Il Gattopardo”2, exprimem bem as mentalidades correspondentes a es-
ses dois vetores.

O jovem Tancredi, adepto dos tempos novos e voluntário garibaldi-


no, dizia a seu tio Don Fabrizio:

─ Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi ─


Era esse o discorso de um membro da elite revolucionária napolitana da
época: tudo mudar... para tudo permanecer como está.

E o príncipe Don Fabrizio, o conservador, prudentemente respondia:

─ Dopo sarà diverso, ma peggiore ─ o que virá depois será diferen-


te, mas será pior...

Essas duas forças, que agiam nas elites da época, agiram dentro da
cabeça dos circunstantes do nosso processo de Independência, como D.
Pedro, José Bonifácio, o Conde dos Arcos. É indispensável se entender
2 –1 TOMASI DI LAMPEDUSA, Giuseppe. Il Gattopardo. Roma: Filtrinelli, 1961.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):317-324, jul./set. 2016 323


Armando Alexandre dos Santos

isso para se compreender a realidade histórica cambiante daquela época


de transição.

Texto apresentado em dezembro/2015. Aprovado para publicação


em março/2016.

324 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):317-324, jul./set. 2016


325

ALCÂNTARA, Dora Monteiro e Silva de. BRITO, Stella


Regina Soares de. SANJAD, Thais Alessandra Bastos Caminha.
Azulejaria em Belém do Pará. Inventário. Arquitetura Civil e
Religiosa. Século XVIII ao XX. Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – Brasília, Iphan, 2016
Cybelle de Ipanema1

Três especialistas se reúnem para oferecer publicação, o mais abran-


gente possível, sobre a técnica da azulejaria na Belém dos anos 1700 a
2000.

Inventário riquíssimo publicado pelo Instituto do Patrimônio Histó-


rico e Artístico Nacional – IPHAN, com alguns desdobramentos, como
tudo esclarecido na folha competente das responsabilidades. Ensejado
pelos 80 anos da instituição, criada em 1937 no governo Getúlio Vargas,
Ministério da Educação e Saúde, de Gustavo Capanema.

Fartamente ilustrado, com exemplos dos vários tipos de decoração,


utilizados, como do objetivo da obra.

Cumpre destacar os alentados currículos (resumidos como convém)


para se avaliar defronte de obra definitiva – tanto quanto o pode ser – para
ilustrar a decoração ajulejística da cidade de Belém.

Dora Monteiro e Silva de Alcântara é arquiteta pela Faculdade Na-


cional de Arquitetura, da Universidade do Brasil, e livre-docente pela Fa-
culdade de Arquitetura e Urbanismo da UNFR, professora e pesquisadora
da FAU e da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, consultora do Iphan. Sócia titular do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, como correspondente do de Petrópolis, da Acade-
mia Brasileira de Artes, com homenagens e galardões do IAB, da FAU e
CREA. Autora de livros e artigos.

1 –1 Sócia emérita do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):325-328, jul./set. 2016 325


Cybelle de Ipanema

Stella Regina Soares de Brito é graduada em Arquitetura e Urbanis-


mo pela Universidade Federal do Pará, especialista em Conservação e
Restauração de Monumentos e Conjuntos Históricos pela mesma Univer-
sidade. Consultora de Projetos, com títulos e homenagens, além de obras
publicadas.

Thais Alessandra Bastos Caminha Sanjad é formada pela Univer-


sidade Federal do Pará. Doutora em Ciências nas áreas de Geologia e
Química pela UFPA. Professora e pesquisadora em Projetos. Coordena o
Grupo de Pesquisa do CNPq em Ciências, Tecnologia e Inovação, com
experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em conser-
vação. Prêmios e láureas; livros e artigos publicados.

Independentemente da descrição e explicação detalhada dos tipos de


azulejos que embelezam e complementam imóveis civis e igrejas na cida-
de eleita, uma das unidades-ícones nesse tipo de decoração, no rico Nor-
deste do país, o livro se desdobra em complementos capazes de os eluci-
dar. Além do Pará, Maranhão é outro repositório de coleções de azulejos,
aliás também estudados por Dora, em especial na cidade de Alcântara.

Edição caprichada a marcar as oito décadas do Iphan (1937-2017)


comporta 343 páginas, parando o estudo na 99, na fig. 102. Para enrique-
cê-lo, seguem-se Apêndices com minúcias de detalhes: Fichas: Inventá-
rio de Azulejos em Belém do Pará; Mapas: Imóveis azulejados por Bair-
ros da Cidade de Belém-PA; 4 (quatro) Planilhas: Tipologias – Padrões
de Azulejos; Guarnições (Cercaduras e Frisos); Registros devocionais; e
Painéis e Elementos Ornamentais – Painéis Publicitários; Azulejos: Ca-
tálogos: Fábricas de Azulejos; 2 (duas) Tabelas: Navios – Importação de
Azulejos; e Anúncios de jornais.

Todos os Apêndices comportam ilustrações, não deixando o leitor


órfão.

Estamos diante de trabalho completo em sua finalidade: mostrar ao


interessado tudo o que lhe compete saber em decoração de imóveis – civis

326 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):325-328, jul./set. 2016


Azulejaria em Belém do Pará. Inventário.
Arquitetura Civil e Religiosa. Século XVIII ao XX

e religiosos –, num largo recorte temporal, com esse tipo de ornamenta-


ção.

As autoras também se responsabilizam, individualmente, por muitas


das fotos: não se poupam nos mínimos detalhes, com competência e preo-
cupação do esclarecimento global. Esclarecimento de endereços, bairros,
tudo esmiuçado na cidade como um todo.

A bibliografia utilizada é outro elemento marcante da especificidade


do trabalho. Figuram, como era de se esperar, guias, atlas, obras antigas e
modernas, ao lado de manuais técnicos e indicação de materiais indispen-
sáveis ao labor e adestramento de profissionais especializados.

Dora Alcântara encabeçou o lançamento pelo Iphan, no IHGB, em


julho de 2016, e em Belém, juntamente com as outras duas autoras.

Belém pode orgulhar-se de levantamento tanto quanto completo de


sua decoração azulejal.

Texto apresentado em junho/2016. Aprovado para publicação em ju-


lho/2016.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (472):325-328, jul./set. 2016 327


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