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A primeira questão que Ana Paula Maia indica é a questão do trágico. Apesar de
estar longe, em termos de gênero, do drama ou da tragédia clássica, a autora suscita a
diferenciação Aristotélica4 entre tragédia e comédia, onde a primeira é a imitação de
indivíduos de alta índole e a segunda a imitação de indivíduos de baixa índole. Este é
um dos critérios apontados por Aristóteles para ajudar a identificar se um texto é trágico
ou não.
No texto de Ana Paula Maia encontramos, logo em seu começo, uma introdução
ao conteúdo de sua novela:
1
Trabalho realizado para a disciplina de Teoria da Literatura do mestrado em Letras da FURG.
2
Mestrando em Letras pela FURG. Bolsista Capes.
3
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010. p. 176.
4
ARISTÓTELES. Poética. 7ª Ed. [S.L]: Imprensa Nacional, Casa da moeda. 2003. p. 105.
Acostumou-se aos gritos de desespero, ao sangue e à morte. Quando
começou a trabalhar, descobriu que nesta profissão há uma espécie de
loucura e determinação em salvar o outro. Seus atos de bravura não o fazem
julgar-se herói. No fim do dia, ainda sente os seus impactos. É na tentativa de
preservar alguma esperança de vida em algum lugar que todos os dias ele se
levanta e vai para o trabalho5.
É justamente essa banalidade que é analisada por Kosik6, que o permitirá dizer,
ao menos no primeiro momento, que se vive hoje em uma época pós-heroica e que resta
excluída a própria possibilidade do trágico. Não é que Ernesto Wesley não seja um
herói, ou mesmo que não realize atitudes heroicas, mas que
significa apenas que tudo que se faz de bom, grande, corajoso e heróico, tudo
que se cria de belo e poético, é arrastado na correnteza da banalização e da
desindividualização, perdendo sua originalidade e sua força7.
É levando em conta as palavras de Kosik que é possível entender que a banalização dos
atos de Ernesto Wesley se encontra intimamente ligadas com sua profissão, de
bombeiro, que ocasiona em sua desindividualização. Além dele, várias outras pessoas
trabalham em conjunto, diariamente, realizando atos dignos de serem representados.
Ainda assim, a própria personagem não é mais capaz de reconhecer a grandiosidade de
seus atos.
5
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011.A edição utilizada foi digital,
publicada pela Record, na qual não consta numeração das páginas.
6
KOSIK, Karel. O SÉCULO DE GRETE SAMSA: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do
trágico no
nosso tempo. Disponível em: http://www.pgletras.uerj.br/matraga/nrsantigos/matraga8kosik.pdf Acesso
em 17/12/2017.
7
Ibid. p. 3-4.
8
Ibid. p. 7.
ressaltar agora é somente que, a partir de Kosik, a banalidade dos atos de Ernesto
Wesley podem ser significados a partir da intersubjetividade criadora dos seus pares.
Ronivon acredita que o homem deve retornar ao pó, pois do pó foi criado.
Não concorda com as cinzas finais. Para ele, tornar-se pó é necessário. As
cinzas são subversivas. Uma ossada, restos de tecido orgânico, fios de cabelo,
entre outros, são indícios que perdurarão por anos. Restarem só as cinzas é
não ter vestígio algum. É não ter túmulo, moradia póstuma, flores no dia dos
mortos e a visita de nenhum ente. Os restos são reconhecíveis ao menos num
laboratório. Reduzido a cinzas, não é mais possível identificar a origem; se de
um homem ou de um animal9.
O que está em jogo nesta passagem é justamente a antiga questão que envolve os termos
gregos zoé e bíos. Segundo Agamben10
os gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos
dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e
morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um ético comum: zoé,
que exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais,
homens ou deuses, e bíos, que indicava a forma ou maneira de viver própria
de um individuo ou de um grupo
A vida como bíos é uma vida qualificada. A vida das cinzas é completamente
desqualificada, não permanecendo qualquer vestígio das pessoas. Como não é possível
reconhecer a diferença entre as cinzas humanas e não humanas, como acontece com a
diferença das ossadas de animais humanos e não humanos, também resta indiferente
aquilo que separava bíos e zoé. A cinza desqualifica a vida humana.
Essa indiferença não acaba neste ponto. É por isso que, sobre o trabalho de
Ronivon no crematório, pode-se dizer que
9
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011
10
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010. p. 9
provenientes de muitas cremações e guarda-as num galão de plástico. Depois
são moídas de modo uniforme e repõem a falta dos grãos perdidos dos
outros11.
O processo de individualização, que já não era possível em vida segundo Kosik, ocorre
também após a morte. As cinzas são intercambiáveis e toda qualificação da vida
humana está perdida. Não se trata, é claro, de reivindicar qualquer tipo de diferenciação
típica das sociedades modernas, como classe ou critérios étnicos. Trata-se tão somente
de apontar para a impossibilidade de qualquer alteridade.
11
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011
12
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:
Martins fontes, 1999, p. 292-293.
13
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010, p. 119.
Na obra de Ana Paula Maia a biopolítica e a tanatopolítica aparecem fortemente
na figura ambiental. A preocupação com a vida e com a morte aparece como fonte de
um sistema:
A morte que ainda pode gerar morte é representativa de certa forma mentis dessa
política que já não retoma a ideia de pólis grega. Como tão bem demonstrou Antígona
de Sófocles ou mesmo Édipo em Colona, o sepultamento faz parte da organização da
cidade. A contaminação do solo e da água pelos mortos somente é possível pois uma
das características da política moderna é a preocupação excessiva com o momentâneo e
com o imediato. O impacto ambiental das práticas do capitalismo não faz parte da
biopolítica. A vida que importa é aquela que está no presente.
calor gerado pelos fornos crematórios passa por uma tubulação ligada a um
conversor termoelétrico, que transforma o calor em energia elétrica. O calor
dos mortos ajuda a suprir parte da energia usada tanto no crematório quanto
no hospital que fica a um quilômetro dali, além de em alguns
estabelecimentos comerciais da redondeza. Os mortos do hospital,
principalmente os indigentes, são cremados no Colina dos Anjos e seu calor
transformado em energia para abastecer os vivos. Os vivos de Abalurdes
sabem aproveitar bem os seus mortos 15
Os mortos são reinseridos na dinâmica da vida através da energia elétrica gerada a partir
de sua cremação. Não existe qualquer relação de respeito, como na Grécia Antiga, ou
mesmo de medo e culto como em outras sociedades. A degeneração do tecido social
impede que mesmo os mortos estejam imunes aos caprichos do sistema capitalista.
14
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011
15
Ibid.
indigentes e bêbados morrem durante o frio da madrugada em toda a
circunvizinhança”16. Esta pequena passagem joga luz para as três figuras apresentadas
anteriormente e que estão relacionadas com a pesquisa de Agamben e que agora devem
ser analisadas.
Quando Ana Paula Maia retrata os indigentes e bêbados que morrem de frio e
são cremados para gerar calor para a cidade, o que está sendo retratado é também esse
paradigma biopolítico: não se mata essas pessoas diretamente, no fazer morrer, mas sim
existe uma relação de abandono dessa vida, que é deixada morrer. Ela somente é
incluída nos cálculos do poder através de sua exclusão da normalidade.
16
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011
17
AGAMBEN, GIORGIO. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010 p. 76.
18
Ibid. p. 85.
concentração19. Esses seres humanos da qual falou a autora possuem mais valia quando
incluídos no paradigma biopolítico após sua morte. Eles não são sacrificáveis, pois não
podem morrer dignamente, não são objeto do fazer viver do soberano. São apenas
matáveis, através de sua total exclusão da vida política, que engendra as condições de
sua morte.
A produção desse Homo sacer reaparece quando Ana Paula Maia retrata os
trabalhadores de uma carvoaria:
A vida nua, neste caso, ganha a materialização através das sombras que se tornaram os
seres humanos obrigados a trabalhar em condições que ressaltam sua característica de
ser matável. Eles não usam equipamento de proteção, trabalham tempo demais em uma
mina de carvão sem qualquer segurança e se tornam cada vez mais indiferenciáveis com
relação ao seu meio de subsistência.
É possível dizer que a escrita de Ana Paula Maia reforça as ideias propostas por
Agamben. Ao retratar a vida que é vivida por aqueles que estão separados da
normalidade, excluídos, ela joga luz sobre as dinâmicas da exceção que constitui o
paradigma biopolítico da modernidade. A sua cidade, Abalurdes, não se diferencia de
qualquer cidade grande ocidental, senão pelo fato de ser fictícia.
19
Ibid. p. 173.
20
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011
Referencial bibliográfico
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010.