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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

A BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA:


UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE MULHERES NEGRAS

por

CONSUELO ALMEIDA MATOS

SALVADOR
2008
CONSUELO ALMEIDA MATOS

A BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA:


UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE MULHERES NEGRAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudo de Linguagens do
Departamento de Ciências Humanas da UNEB
– Campus I, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Estudo de Linguagens.

Orientadora: Profª. Drª. Márcia Rios da Silva.

SALVADOR
2008
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaboração: Biblioteca Central da UNEB
Bibliotecária: Helena Andrade Pitangueiras– CRB: 5/536

Matos, Consuelo Almeida.


A Bahia de Hildegardes Vianna: um estudo sobre a representação de mulheres negras.
Salvador. / Consuelo Almeida Matos. – Salvador, 2008.
118f.

Orientadora: Profª Drª Márcia Rios da Silva.


Dissertação (Mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências
Humanas. Campus I. 2008.
Contém referências.

1. Negras na literatura. 2. Negras. 3. Folclore. 4. Hildegardes Vianna. I. Matos, Consuelo


Almeida. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas.

CDD: 809.801
A todas aquelas que são guerreiras na vida.
A todas as almas dos negros e negras das diversas nações africanas, que vieram nos porões
fétidos dos navios,
que nos deixaram tanta herança e nos fizeram ser Brasil,
país lindo e plural, mas que esquece daqueles que deram o suor, o sangue e a própria vida
para construir essa nação.
Deixo minha pequena contribuição à sua memória...
A todas aquelas mulheres negras que não têm vergonha de assumir sua etnia,
deixo minha admiração.
AGRADECIMENTOS

À Maria Helena, minha mãe e amiga, que me faz seguir em frente, ajudando-me a realizar
sonhos.
A João Martins, meu pai, amigo e exímio incentivador do meu crescimento intelectual, que
mesmo ausente fisicamente esteve sempre me inspirando nas minhas escritas.
A Luís Paulo, meu esposo e meu amor, pela eterna curiosidade pelo meu tema, pelo incentivo
e primeiras leituras, sempre críticas e pontuais, obrigada pela co-autoria desta dissertação, em
energia, tempo, conselhos e conhecimento.
A Alexandre, meu irmão, por acreditar em mim.
À vovó Alcina, que seguiu a triste sina de muitas mulheres negras, “o fogão do branco”, mas
que nunca deixou de sorrir e encher de carinhos os netos queridos.
À Maria das Neves, minha querida sogra, que com seu conhecimento viabilizou o
empréstimos de livros na biblioteca da UFBA.
À Profª. Drª. Yeda Pessoa de Castro, pelo estímulo a tentar na época da seleção e que sem
saber deu-me a idéia, levando-me ao tema.
À minha turma de Mestrado, pelas discussões sem fim, inesquecíveis.
Aos amigos, pela torcida.
Aos profissionais do arquivo e biblioteca da Academia de Letras da Bahia que, muito
acessíveis, permitiram-me ter acesso ao material que me ajudou nesse trabalho.
A Profª. Drª. Márcia Rios, minha orientadora, pela confiança, paciência, carinho e, sobretudo,
pela acessibilidade, assessoria e maneira tranqüila e risonha de me ajudar a ver as coisas.
A essa ilustre banca por ter disponibilizado tempo na leitura desse texto.
Ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da UNEB, meu berço acadêmico.
À Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Salvador por tornar possível a redução da
minha carga horária de trabalho.
A todos aqueles que, por desejo ou compromisso, se arrisquem a ler essa grafia.
Ao silêncio e ao canto dos passarinhos, que durante a minha escrita se fizeram presente.
RESUMO

Neste estudo propõe-se analisar as crônicas produzidas pela escritora e folclorista Hildegardes
Vianna, publicadas no jornal A Tarde, no período de 1955 a 1999, com vistas a entender as
representações produzidas sobre as mulheres negras na Bahia no início do século XX. Nesse
sentido, faz-se um esboço da formação intelectual dessa folclorista, traça-se um panorama
histórico e cultural da cidade de Salvador, no período tratado nas crônicas, bem como se
considera os contextos de produção das crônicas de Hildegardes Vianna. Por fim, interpretam-
se criticamente as produções textuais da cronista que trazem representações da mulher negra,
marcadas por uma visão racista e sexista.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher negra, Hildegardes Vianna, Salvador, representação,


estereótipo.
ABSTRACT

In this study it is proposed to analyse chronicles produced by the writer and folklorist
Hildegardes Vianna published in the newspaper A Tarde, in the period from 1955 to 1999,
with sights to understand the representations produced on the black women in the Bahia in the
beginning of the century XX. In this sense, do to him a sketch of the intellectual formation of
this folklorist, draw a historical and cultural view of Salvador's city, in the period treated in
chronicles, as well as one considers the contexts of production of the chronicles of
Hildegardes Vianna. Finally, there are interpreted critically the textual productions of the
columnist that bring representations of the black woman, marked by a racist vision and
sexista.

KEY-WORDS: Black woman, Hildegardes Vianna, Salvador, representation, stereotype.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Negra mercando, fotografia de Guilherme Ballalai de Carvalho. 10


Figura 2 - Pelourinho em 1900, fotografia retirada de http://www.wikipedia.org. 40
Figura 3 - Vendedoras do século XVII, gravura Cristiano Jr., www.unb.br. 74
Figura 4 - Tabuleiro completo. Itapuã, fotografia de Noeme Maria Passos Xavier. 87
Figura 5 - Negra baiana do XVII (Acervo da Livraria Kosmos). 89
Figura 6 - Mulher negra baiana (1912), cartão postal. 91
Figura 7 – Negra doméstica (Acervo da Livraria Kosmos). 102
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO I

NAS SACADAS DOS SOBRADOS DA VELHA BAHIA NASCE UMA CRONISTA 14

CAPÍTULO II

A BAHIA JÁ FOI ASSIM: UM RETRATO EM “PRETO E BRANCO” 38

CAPÍTULO III

MULHERES NEGRAS NA BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA: DA COZINHA DO


BRANCO ÀS RUAS E LADEIRAS DA CIDADE 69

“MULHERES DE SAIA”: A ARTE DE MERCAR NAS RUAS DA CIDADE 74

AS NEGRAS DOMÉSTICAS 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS 109

REFERÊNCIAS 112
INTRODUÇÃO
___________________________________________________________________________

Até chegar o dia em que a cor da pele de


um homem não tenha mais importância do
que a cor de seus olhos, haverá guerra.

Bob Marley1

As representações sobre a mulher negra na sociedade brasileira provêm de um


processo histórico da colonização que permanece até os tempos atuais em outros moldes. No
Brasil Colônia, a função da “mulher de cor” se restringia ao trabalho da lavoura, aos afazeres
domésticos, à manutenção da cozinha e bem-estar da “sinhá”, como ama ou mãe preta, além
de objeto sexual dos senhores de escravo, salvo algumas exceções de escravas libertas e
vendedoras. Porém, passados séculos do escravismo no Brasil, é comum presenciar nos dias
de hoje a semelhança entre as atividades da mulher negra daquela época e a mulher negra
inserida na economia do mercado de trabalho atual. Sendo assim, torna-se ainda comum
reproduzir a idéia de que a cozinha e o trabalho doméstico são espaços sociais da mulher
negra.
Nesse sentido, o esboço de um projeto de estudo das crônicas de Hildegardes Vianna
começou a ser gerado quando da leitura do livro de crônicas A Bahia já foi assim. A análise
de cada texto passou a fazer parte de um trabalho noturno, sempre que retornava da aula
ministrada em uma escola pública. Parecia instigante o fato de uma folclorista escrever uma
obra que contemplava a presença da africanidade na cidade de Salvador, seja através do povo,
da gastronomia e do cotidiano. No entanto, surpreendentemente diversos questionamentos
passaram a atormentar as noites antes tão sossegadas. O primeiro deles era entender a
necessidade dessa autora em produzir um texto voltado para o início do século XX. E o
segundo, bem mais angustiante, refere-se à maneira como a cronista representa em seus
escritos a população afro-descendente da cidade soteropolitana.
Então, depois da primeira leitura do livro, optei por retomar a obra com um olhar mais
apurado, concentrando a atenção nas crônicas que apresentavam a população negra. A
suspeita de que os textos faziam referência a uma fase em que os negros eram responsáveis
pelos serviços subalternos e considerados, pela elite branca, cidadãos de segunda categoria se
confirmou.

1
Da canção War, de Bob Marley.
Negras, “mulatas”, vendedoras de iguarias culinárias como cuscuz, mingau, acaçá e
abará, “baianas” mercadoras de acarajé, amas-de-leite, lavadeiras, cozinheiras, costureiras,
etc. Todas, mulheres sofridas, personagens das crônicas de costume de Hildegardes Vianna.
Ao abrir o livro A Bahia já foi assim, vislumbra-se um panorama de onde se podem ver essas
mulheres desfilando pelas ladeiras e becos da antiga cidade de Salvador, mercando vísceras
de animais, iguaria alimentícias, frutas, verduras, caldo de cana e tudo mais que coubesse na
sua gamela.2 No passar das páginas, muda-se o cenário e ancora-se na cozinha do branco,
negras lavando, passando, cozinhando, amamentando e cuidando de crianças alvas. Esse é o
lugar que Hildegardes Vianna destina às mulheres negras em suas crônicas.
Conhecida como folclorista pela sociedade baiana, por escrever sobre os aspectos
culturais da Bahia, Hildegardes Cantolino Vianna era membro da Academia de Letras da
Bahia, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e colunista do jornal A Tarde3, com
publicações de crônicas e artigos, no transcurso de 44 anos ininterruptos. O sucesso com a
coluna semanal em que apresentava as crônicas foi tamanho, que impulsionou a cronista a
selecionar vários textos e publicar dois livros, A Bahia já foi assim (1973) e Antigamente era
assim (1979).
Publicar crônicas de costume durante um periódico de 44 anos (1955 – 1999) acaba
por gerar uma produção vasta e multifacetada, logo, é necessário fazer escolhas. Sempre é. E
fiz. Pelo desejo, pela falta e até pelo acaso escolhi as crônicas que representam as mulheres
negras para analisar no meu projeto de pesquisa para o curso de mestrado. A mulher negra,
por olhar ao espelho e enxergar meus ancestrais maternos, minha mãe impossibilitada de
estudar por ter que cuidar dos irmãos, enquanto minha avó, neta de escravos, seguia a sina que
Hildegardes Vianna apresenta em suas crônicas, trabalhar na cozinha do branco. O certo é que
consegui interromper o ciclo. E devo a elas, minhas senhoras negras, estar aqui me
debruçando sobre essas linhas e tentando entender o que leva uma mulher formadora de
opinião recordar com saudosismos tempos de tanto sofrimento e poucas oportunidades aos
não-brancos.
As crônicas também foram escolhidas como objeto de estudo, tendo em vista o seu
longo período de circulação continuada, aliada ao fato de serem vinculadas na terceira página
do caderno principal de um periódico de grande circulação na capital baiana. Logo, o que se
encontra aqui são as pegadas de um longo percurso que teve início quando da leitura de uma

2
De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), a gamela é uma vasilha rasa de madeira
ou de barro.
3
Fundado por Simões Filho em 15/10/1912, desde 1930, o jornal A Tarde tem sido o periódico baiano de maior
circulação no estado.
das obras de Hildegardes Vianna, A Bahia já foi assim. A pesquisa que resultou nessa
dissertação tem por objetivo examinar o processo de representação e de produção de
identidades das mulheres negras presentes nas crônicas.
Extrapolando o universo da obra A Bahia já foi assim, o objeto de análise foi
construído tomando como fontes primárias uma média de 1.500 (mil e quinhentas) crônicas
publicadas no jornal A Tarde, no período de 1955 a 1999. Foram selecionadas, então, 29
(vinte e nove) crônicas que descrevem especificamente as práticas culturais das mulheres
negras na cidade do Salvador, no início do século XX. A maioria delas foi publicada em dois
livros, A Bahia já foi assim e Antigamente era assim. O primeiro, o mais importante deles, por
apresentar maior número de textos com o recorte da pesquisa, a autora utiliza, na 3ª edição,
uma fotografia de 1930 que retrata o labor da mulher negra no Dique do Tororó, já denotando
o interesse pela temática.4

Figura 1 – Negra mercando5

4
Segundo Risério (2004), Dique do Tororó, comumente reduzido para Dique, é uma lagoa artificial localizada
em Salvador, no estado da Bahia, no Brasil. É delimitada atualmente pelo bairro do Tororó em sua margem
esquerda, pelo do Engenho Velho de Brotas em sua margem direita, ao Norte, pelo Estádio Octávio Mangabeira,
conhecido por Fonte Nova, e, ao Sul, pelo bairro do Garcia. É margeada pelas avenidas Presidente Costa e Silva
e Vasco da Gama que ao Sul convergem para Avenida Centenário e o Vale dos Barris.
5
Fotografia de Guilherme Ballalai de Carvalho, retirada da capa do livro A Bahia já foi assim (2000), de
Hildegardes Vianna.
No que toca à fotografia escolhida pela cronista para ilustrar a capa do seu livro,
observa-se uma mulher negra com o tabuleiro, sobre a cabeça, andando pela rua da cidade
para vender o produto que irá garantir o seu sustento.6 A vestimenta, amplamente analisada
pela folclorista em diferentes crônicas, demonstra a maneira de trajar das negras no período
evocado por Hildegardes Vianna, primeiras décadas do século XX.
Tendo como objeto empírico deste estudo as crônicas escritas de Hildegardes Vianna,
deu-se início à pesquisa a partir de uma visita à Academia de Letras da Bahia, para conhecer o
arquivo da acadêmica. Para felicidade do trabalho, foram identificadas crônicas sobre as
mulheres negras que não haviam sido publicadas nos livros. A partir dessa visita, decidi
catalogar todas as crônicas de Hildegardes Vianna que seriam objeto de estudo, tendo como
referência a data de publicação no jornal A Tarde. Após a identificação das datas de
publicação, fez-se uma leitura minuciosa para analisar o modo pelo qual as mulheres negras
estão representadas.
Nesse sentido, vale ressaltar que o interesse dessa pesquisa é entender como a
continuidade do pensamento tradicional, ancorado em um passado em que as relações entre
brancos e negros eram demarcadas por posições e lugares pré-estabelecidos, permanece se
inscrevendo nos anos 1950, fase em que a Bahia já avançava significativamente nas relações
inter-raciais. Tal interesse funda-se no fato de as produções textuais em foco começarem a ser
publicadas na metade da década de 1950 e apresentarem uma época em que o negro é
identificado somente por sua força do trabalho e destituído de qualquer cidadania.
Na Academia de Letras da Bahia também foram encontrados o diário íntimo de
Hildegardes Vianna, cartas e entrevistas a periódicos em que a cronista relata sobre a infância
e a vida profissional. A partir desses, apoiadas nas contribuições dos pressupostos teóricos
sobre memória apresentados por Le Golf (2003) e Eclea Bosi (2007), leu-se e redesenhou-se,
no primeiro capítulo intitulado Nas sacadas do sobrado de uma velha Bahia nasce uma
cronista, um panorama sucinto do percurso intelectual de Hildegardes Vianna. Como está se
tratando de uma folclorista, o capítulo também se destina a analisar os princípios que norteiam
os estudos folcloristas e a concepção que os pesquisadores dessa área têm sobre cultura
popular. Para tanto, alicerçou-se nos estudos de Jesús Martín-Barbero (2003), Nestór García
Canclini (2003) e Renato Ortiz (2006), teóricos que apresentam contribuições sobre a cultura
popular e suas transformações ao longo dos anos.

6
O tabuleiro é um utensílio em que são depositados os alimentos a serem comercializados pelas ruas de
Salvador.
Após a leitura e interpretação das crônicas publicadas no jornal A Tarde, fez-se no
capítulo II, A Bahia já foi assim: um retrato em “preto e branco”, um panorama do contexto
histórico e econômico da Bahia das primeiras décadas do século XX, especificamente até
1990, tomando como base os estudos sobre a Bahia do antropólogo Antônio Risério (2004),
dos historiadores Walter Fraga (2006) e Kátia Matoso (1978, 1988 e 1992) e do sociólogo
Donald Pierson (1945), para entendimento do contexto político, cultural e social ao qual a
cronista se refere até o período em que as crônicas são publicadas.7
Os estudos realizados pelas pesquisadoras Florentina de Souza (2005) e Patrícia Pinho
(2004) também foram bastante relevantes para compreender as conquistas obtidas pela
população, tomando como ponto de vista o negro como protagonista desse processo.
As questões da construção identitária apresentadas nas crônicas sobre as relações inter-
raciais foram abarcadas nesse segundo capítulo, ao se discutir a cultura popular negra na
perspectiva da diáspora dos povos africanos, por meio das reflexões de Paul Gilroy (2001) e
Stuart Hall (2005).
No Capítulo III, Mulheres negras na Bahia de Hildegardes Vianna: da cozinha do
branco às ladeiras da cidade de Salvador, procedeu-se à análise das crônicas, tomadas como
documento de história cultural e interpretadas pelas contribuições da teoria das representações
sociais de Moscovicci (1961). Nesse sentido, é importante demarcar que, mesmo se tratando
de um estudo sobre mulheres, o interesse dessa pesquisa é compreender as representações e
apoiar-se em algumas questões sobre gênero a partir dos estudos das ativistas Lélia Gonzalez
(1983) e Bell Hooks (1995, 1996 e 2005).
A teoria das representações sociais é proposta em 1961, por Serge Moscovici que, ao
modernizar a ciência social, remodela o conceito de representações coletivas durkheimiano
para representações sociais, a fim de atualizar o conceito e trazê-lo para as condições de hoje,
de sociedades contemporâneas imersas na intensa divisão do trabalho. Para defender a tese de
que o indivíduo muda a sociedade, Moscovici apoiou-se nos fundadores dessa corrente na
França e na Alemanha, especialmente, Durkheim e Weber.8

7
Apesar de não concordar com teórico norte-americano Donald Pierson no que tange à discriminação como um
fato social e não racial, o capítulo II se apóia na pesquisa realizada pelo sociólogo sobre a distribuição espacial
das classes e grupos étnicos na cidade de Salvador até a primeira metade do século XX, fase em que esteve em
Salvador para escrever seu livro Brancos e pretos na Bahia (1945). Para entender as representações elaboradas
por Hildegardes Vianna, nas crônicas de costumes, foram observados os aspectos sociais do povo negro descritos
por Donald Pierson.
8
Segundo Farr (2003), a teoria das representações sociais é uma forma sociológica de psicologia social,
originada na Europa com a publicação, feita por Moscovici (1961), de seu estudo La Psychanalyse: Son image et
son public.
Por serem ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e “verdadeiras”, as representações
podem ser consideradas matéria-prima para análise do social, pois retratam e refratam a
realidade, segundo determinado segmento da sociedade. Porém, é importante observar que as
representações sociais não conformam à realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdade
científica, reduzindo a realidade à concepção que o ser humano faz dela. As representações
estão presentes tanto no mundo como na mente. Logo, somente vale a pena estudar uma
representação social se ela estiver relativamente espalhada dentro da cultura em que o estudo
é feito, pois cada grupo social faz da visão macro uma representação particular, de acordo
com a sua posição no conjunto da sociedade. Essa caricatura é portadora também dos
interesses específicos desses grupos e classes sociais.
A partir da perspectiva da representação social, esse estudo tenciona questionar se as
representações de mulheres negras identificadas nas crônicas de Hildegardes Vianna são o
retrato de uma sociedade do período pós-abolição, como também alertar para a importância de
se pesquisar as idéias como parte da realidade, ou seja, para a necessidade de se compreender
a que instância do social a autora está subordinada, tendo em vista que a ação humana é
significativa nas representações sociais. Assim, esse campo teórico possibilitou compreender
a autoridade que o contexto social e ideológico exerce sobre a obra.
Dessa forma, nesse terceiro capítulo, faz-se uma análise e interpretação das crônicas que
representam as mulheres negras no mercado de trabalho. Para tanto tais textos foram
separados em duas categorias profissionais. Na primeira, estão as vendedoras, mulheres que
mercavam pelas ruas de Salvador. Na segunda, as domésticas, negras que trabalhavam nas
residências da elite branca.
Nessa dissertação procurei examinar criteriosamente as crônicas de Hildegardes Vianna,
textos recheados de um pensar distorcido, de impressões inadequadas sobre o outro e
percepções incompletas e defeituosas que ignoram as diferenças internas. Um pensar que tem
a convicção de que, como afirma, questionando, Gilberto Gil (1984), “mesmo depois de
abolida a escravidão, negra é a mão de quem faz a limpeza, lavando a roupa encardida,
esfregando o chão [...]” e que essas atividades devem continuar sendo exercidas pelas mãos
negras.9

9
Trecho da música A mão da limpeza de Gilberto Gil, (http://www.letras.mus.br), em 13 de outubro de 2008.
.
CAPÍTULO I

NAS SACADAS DOS SOBRADOS DA VELHA BAHIA NASCE UMA CRONISTA


___________________________________________________________________________

Não tive filhos e não gosto dos afazeres


domésticos, o que realmente me agrada são
as escritas dos meus textos.

Hildegardes Vianna10

Hildegardes Cantolino Vianna nasceu em Salvador a 31 de março de 1919, filha do


acadêmico Antônio Vianna11, é conhecida no eixo nordestino como folclorista, por ter
dedicado toda a vida intelectual, assim como seu pai, aos estudos sobre a chamada cultura
popular da Bahia, chegando a se tornar membro da Academia de Letras da Bahia. Segundo os
registros encontrados em seu diário, Hildegardes Vianna fez o curso primário e ginasial no
extinto Instituto Baiano de Ensino, no Campo da Pólvora12. Bacharel em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Faculdade Livre de Direito (depois incorporada à UFBA), formou-se em Direito
com 21 anos, chegou a exercer a profissão, mas dedicou-se à música, diplomando-se,
posteriormente, em piano pela Escola de Música de Pedro Jatobá.
Quando questionada em uma entrevista ao jornal A Tarde (19/08/1975) sobre a origem
do interesse pelo folclore, Hildegardes Vianna respondeu: “O folclore está no meu sangue, foi
geneticamente herdado.” Essa declaração demarca a influência que o pai exerceu na escolha
de sua carreira.
Para a cronista, uma das maiores influências para o ingresso nesse campo foi ter
“saboreado” histórias de contos de fadas e ouvir os mais velhos lembrarem, com saudades,
dos tempos passados e criticar a modernidade. Essas pessoas foram responsáveis por
preencherem a infância de Hildegardes Vianna com a presença de um mundo mágico de
fantasias e mistérios e despertarem a observação dos acontecimentos.
Tal afirmação torna-se possível porque, segundo a pesquisadora Eclea Bosi:

10
Extraído de uma entrevista concedida pela cronista ao jornal A Tarde de 19/08/1975.
11
Antônio Vianna nasceu no dia 27 de julho de 1884, na cidade de Salvador, BA. Poeta, jornalista, cronista,
membro da Academia de Letras da Bahia, folclorista, publicou na área do Folclore Casos e coisas da Bahia
(1950) e A festa das Escadas (1968), além de ensaios e artigos em revistas e jornais. Faleceu no dia 30 de
dezembro de 1952, na cidade de Salvador, BA.
12
O Campo da Pólvora é um logradouro localizado no centro da cidade de Salvador.
A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha
suas raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade
que tomaram parte da socialização. Sem estas haveria apenas uma
competência abstrata para lidar com os dados do passado, mas não a
memória. Enquanto os pais se entregam às atividades da idade madura, a
criança recebe inúmeras noções dos avós e dos empregados. Estes não têm,
em geral, a preocupação do que é ‘próprio’ para crianças, mas conversam
com elas de igual para igual, refletindo sobre acontecimentos políticos,
históricos, tal como chegam a eles através das deformações do imaginário
popular. (BOSI, 2007, p. 73).

As idéias de Bosi se confirmam nos escritos de Hildegardes Vianna encontrados nos


arquivos da Academia de Letras da Bahia, em que a autora afirma que o fato de ter morado
em uma casa muito grande, repleta de quartos, habitados por parentes solteiros e, um porão
ocupado pela “ama-de-leite de sua mãe e uma moça que carregava o balaio de pão”,
possibilitou o contato com histórias de outrora. Essas pessoas tiveram a função de memória da
família, do grupo e da sociedade.
As lembranças descritas nas crônicas representam o modo de pensar do núcleo
familiar ao qual Hildegardes Vianna estava agregada. Lembranças de um grupo doméstico
que persistem matizadas em cada um dos seus membros e constituem uma memória ao
mesmo tempo una e diferenciada, construída a partir de opiniões e diálogos que guardam
vínculos difíceis de separar.
A partir destas informações, pode-se deduzir, inicialmente, que o interesse da autora
pelo dia-a-dia do povo baiano, reportando-se ao passado, deu-se pelo contato com pessoas que
vivenciaram o cotidiano da cidade de Salvador até mais ou menos 1940. “Minhas crônicas são
baseadas em muitas coisas que ainda alcancei, e também em informes preciosos de amigos
prestimosos [...]” (VIANNA, 1973, p. 10).
Para o entendimento das crônicas de Hildegardes Vianna, memórias de pessoas
conhecidas, como afirma a própria, faz-se necessária a compreensão do conceito de memória
segundo Le Golf (2003). A memória caracteriza-se não só pela ordenação de vestígios ou
lembranças, mas por uma releitura destes vestígios com base no meio, no tempo e nas
condições psíquicas em que o indivíduo ou grupo está localizado.
Quando da leitura dos escritos de Hildegardes Vianna, pode-se imaginar claramente
que a transcrição dessas memórias são como uma operação coletiva dos acontecimentos e das
interpretações do passado que a elite soteropolitana quer salvaguardar. Esses registros se
integram, de certa forma, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre as diferentes coletividades
apresentadas: os trabalhadores de rua, as domésticas, as famílias, etc. Dessa forma, a
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem
uma sociedade, para definir seu lugar respectivo e suas oposições irredutíveis.
Assim, Bosi (2007) afirma que à memória é atribuida uma função decisiva no processo
psicológico total, posto que a memória permite a relação do corpo presente com o passado e,
ao mesmo tempo, interfere no processo de representações. Pela memória, o passado não só
vem à tona, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, desloca
estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. “A memória aparece como uma força
subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.” (BOSI,
2007, p. 47).
No entanto, Halbwachs (apud Bosi, 2007, p. 63) adverte sobre o processo de
“desfiguração” que o passado sofre ao ser remanejado pelas idéias e pelos ideais presentes,
pois a “pressão dos preconceitos” e as preferências podem modelar o passado e recompor um
história seguindo padrões e valores ideológicos. A partir dessa premissa, pode-se afirmar que
Hildegardes Vianna, membro da elite branca soteropolitana, apresenta em suas crônicas mais
do que memórias saudosistas, mas sim um lamento da elite pela perda do status.
A escrita saudosista de memórias não é prerrogativa somente de Hildegardes Vianna.
Segundo Albuquerque Júnior (1990), a falência da antiga sociedade agrária nordestina e a
crise dos códigos culturais da região, na segunda metade século XIX, levaram os intelectuais
e artistas locais a elaborarem uma idéia de Nordeste permeada de lirismo e saudade,
idealizando um lugar que já não mais existia (se é que existiu e para quem). É por essa razão
que as supostas tradições da região foram sempre procuradas em fragmentos de um passado
rural e pré-capitalista. Essas tradições foram buscadas em padrões de sociabilidade e
sensibilidade patriarcais, muitas vezes recheadas de heranças escravistas. Tal busca
desencadeou “uma verdadeira idealização do popular, da experiência folclórica, da produção
artesanal, tidas sempre como mais próximas da verdade da terra” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 1990, p. 48). Para esses intelectuais, como Rachel de Queiroz e José Lins do Rego,
o folclore era o inventário do inconsciente regional, uma espécie de estrutura ancestral que
permitia o conhecimento espectral da cultura nordestina.
A visão de Hildegardes Vianna sobre cultura e a escolha da modalidade escrita,
crônica, definida como um gênero híbrido que transita entre a literatura e o jornalismo e
acompanha a sucessão de fatos no tempo, ora acompanhando os fatos no tempo presente, ora
resgatando-os do passado, denunciam o espírito nostálgico da cronista.13
Assim, Hildegardes Vianna produziu as crônicas para apresentar à sociedade
soteropolitana as histórias de que tinha conhecimento, deslocando a memória coletiva do
campo meramente auditivo para o campo visual, o que possibilitou uma releitura dos
acontecimentos, ou seja, após passar pelo crivo das suas próprias interpretações, a cronista
registra as cenas de uma Bahia de “outrora”, testemunhada por amigos.14 Logo, através de sua
ótica, reforçou a visão de inúmeros leitores de periódicos e, posteriormente, de seus livros.
Essa influência só foi possível porque a crônica dos jornais impressos, mesmo
apresentando uma visão recortada da realidade, é um documento de valor histórico para a
sociedade. A memória jornalística, ainda fazendo uso das idéias de Le Goff, surge como “a
entrada em cena da opinião pública [...] que constrói também a sua própria história” (LE
GOFF, 2003, p. 261). Assim é que as crônicas jornalísticas configuram-se como um lugar de
memória diretamente relacionada ao meio social onde o indivíduo se encontra. Mais do que
isso, a cultura hegemônica escolhe para si um modelo de produção textual, que deve veicular
as crenças, os símbolos, os significados que ela lhes atribui e que compõem seu imaginário.
Quando um grupo precisa constituir seu discurso identitário, recorre à memória
histórica para fixar os elementos que, no passado, constituíram a vida grupal e foram
utilizados para caracterizá-los. Castoriadis, ao definir a sociedade, afirma:

A imagem de si mesma que se dá a sociedade comporta como momento


essencial a escolha dos objetos, atos, etc., onde se encarna o que para ela
tem sentido e valor. A sociedade se define como aquilo cuja existência
pode ser questionada pela ausência ou escassez de tais coisas e,
correlativamente, como atividade que visa a fazer existir essas coisas em
quantidade suficiente e segundo as modalidades adequadas [...] Essa
escolha é feita por um sistema de significações imaginárias que valorizam e
desvalorizam, estruturam e hierarquizam um conjunto cruzado de objetos e

13
Segundo Massaud Moisés (1998, p. 131), no início da era cristã, a crônica se limitava aos anais, registro dos
eventos, sem caráter interpretativo. Na Idade Média, adquiriu o cunho de documento, mas, a partir do
Renascimento, os assuntos nela tratados passaram da mera descrição, ou da narração objetiva, para a reflexão
que o cronista, com sua análise e julgamento, faz sobre o fato, o que fez também com que a crônica ganhasse
foros de história. A significação moderna do termo surgiu no século XIX e deu o estatuto de literatura aos textos
que “só longinqüamente se vinculam à primitiva crônica”. O professor de Teoria da Literatura da USP Davi
Arrigucci (1987, p. 64) declara que “a crônica é a forma complexa e única de uma relação do eu com o mundo
(...) uma arte narrativa, cotidiana e simples, enroscada em torno do fato fugaz, mas liberta no ar, para dizer a
poesia do perecível”. E nessa possibilidade de perecimento, a crônica se aproxima do gênero jornalístico.
Todavia, há que observar que as narrativas que o sujeito faz das experiências do cotidiano, embora as elabore da
forma mais conveniente a si próprio, são representações da memória social.
14
Segundo o historiador francês Le Goff (2003), a memória coletiva se apresenta em uma sociedade e é
composta por várias memórias individuais.
de faltas correspondentes, e no qual pode-se ler, mais facilmente que em
qualquer outro, essa coisa tão incerta como incontestável que é a orientação
de uma sociedade. (CASTORIADIS, 1982, p. 182-181).

Nessa perspectiva, constantemente adaptadas e atualizadas, as crônicas de Hildegardes


Vianna, com o objetivo de atender aos interesses e necessidades da elite soteropolitana, são o
desenho identitário da sociedade que as consome.
Considerado como espaço privilegiado para emergência e expressão das
“significações imaginárias”, o jornal, onde são veiculadas as crônicas, é uma instituição
social, aqui compreendido a partir de Castoriadis (1982, p. 159), como uma “rede simbólica
socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um
componente funcional e um componente imaginário”, haja vista que, segundo o autor, cada
sociedade constitui o conjunto de seu universo simbólico. Assim, cada grupo social, em cada
época, seleciona um conjunto de textos que serão apresentados e institucionalizados como
expressões do seu simbolismo e do seu imaginário. No conjunto de significações escolhidas
por Salvador, para compor os textos dos periódicos, marcado pelos preconceitos dos grupos
hegemônicos, não cabem discursos que não compactuem com seus ideais sexistas e racistas.
No que toca ao início da carreira de Hildegardes Vianna, em entrevista ao jornal A
Tarde (19/08/1975), a cronista confessa que, aos doze anos, iniciou a produção de seus
escritos, que ficaram restritos ao âmbito familiar, vindo, aos quinze anos, publicar o primeiro
trabalho no jornal Imparcial. A recepção desses textos por parte da população soteropolitana
não foi positiva, pois supunha-se que a narrativa seria de autoria do pai, Antônio Vianna,
folclorista conhecido na cidade por suas publicações de poesias e crônicas. Constrangida, a
ainda menina recolheu o interesse pelas produções das crônicas, só retornando para os estudos
do folclore em 1948, quando Renato Almeida pediu a Pedro Calmon, na época presidente da
Academia de Letras da Bahia, um nome para coordenar a Comissão Baiana de Folclore,
instituição ligada ao IBEC, órgão da Unesco. Nessa época, o pai é indicado ao cargo e confere
à filha o título de colaboradora da Comissão.
De acordo com o Art 1º do Regimento Interno da Comissão Baiana de Folclore
(28/12/1978), a Comissão foi fundada em 22/08//1948, como uma entidade cultural, sem fins
lucrativos, no Salão Ruy Barbosa do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, com o
objetivo de incentivar e coordenar as pesquisas, os estudos, a promoção, a defesa e a
divulgação do folclore no Estado da Bahia. Inicialmente, os encontros dos associados à
Comissão se davam de modo informal, sem registros em atas, em um espaço da Academia de
Letras da Bahia, até que em 28/12/1978 é aprovado o primeiro regimento interno, que
posteriormente é publicado no Diário Oficial do Estado em 15/02/1979. O certo é que a
Comissão só adquiriu visibilidade através das publicações das crônicas de Hildegardes Vianna
no Jornal A Tarde.
A atual presidente da Comissão, Profª Drª. Edil Silva Costa, afirma que “a vida de
Hildegardes Vianna se confunde muito com a vida da Comissão Baiana de Folclore”.15
Atuando como presidente desde a morte de seu pai Antônio Vianna, em 1952, até
praticamente o final de sua vida, a cronista só transfere o cargo, em 13/07/2004, para a Profª.
Drª. Doralice Fernandes Xavier Alcoforado, quando se encontra com a saúde muito
debilitada, vindo a falecer em 13 de junho de 2005.
Na Comissão Baiana de Folclore, Hildegardes Vianna deu seus primeiros passos
realizando trabalhos com perspectiva de registro e conservação das tradições, que eram
posteriormente enviados à Comissão Nacional de Folclore. Em seguida, fez uma pesquisa
intitulada Contribuição ao estudo da cozinha baiana. Sem intencionar, a autora deu novos
rumos ao estudo da cozinha, extrapolando os mistérios das receitas e descrevendo os
costumes, os usos da arte de cozinhar. A repercussão da obra fez com que o trabalho fosse
aproveitado, posteriormente, por Câmara Cascudo no livro A História da alimentação no
Brasil, o que gerou muito orgulho para a cronista, pois os estudos folclóricos de Câmara
Cascudo, que são referência no Brasil, foram seguidos por ela ao “pé da letra”.16
Antes de lançar-se no mercado editorial, Hildegardes Vianna, nos anos 1940, publicou
várias crônicas referentes à Bahia, no jornal A Tarde, nas páginas literárias, editada na época
por Heron de Alencar. Nos anos 1950, também nas páginas literárias, que passara a ser
editada por Junot Silveira, assinava uma seção quinzenal intitulada Notas Folclóricas. A
partir de janeiro de 1955, estréia um ciclo que só se interrompeu em 1999: a publicação
semanal, na terceira página do mesmo periódico, das crônicas de “costumes”. Sobre o tema,
Jorge Calmon, no jornal A Tarde de maio de 1991, escreveu uma nota intitulada Nossos
Colaboradores:

No jornal A Tarde de 1955, na 3ª página (que era, então, a página editorial,


correspondente à 6ª página de hoje) apareceu a primeira crônica sobre festas
populares, Festa do Bonfim, de autoria de Hildegardes Vianna. Não era um

15
A Profª. Drª. Edil Silva Costa, presidente da Comissão Baiana de Folclore, concedeu essas informações em
entrevista realizada no dia 27/10//2008 no 2º andar do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, sala
onde funciona provisoriamente a Comissão.
16
Luís Câmara Cascudo foi historiador, antropólogo, folclorista e jornalista, dedicou sua vida aos estudos das
atividades culturais brasileiras. O folclorista fez um inventário das tradições brasileiras.
nome novo, pois nos anos 40 tivera publicado, nas páginas literárias,
editada por Heron de Alencar, vários textos sobre a Bahia. (CALMON, A
Tarde, 1991, p. 7).

As crônicas tornaram-se um sucesso de leitura em todo estado baiano, impulsionando


a carreira de Hildegardes Vianna, como era conhecida intelectualmente. Em uma entrevista ao
jornal A Tarde, 19/08/1979, a autora declara que no ano de 1956, e posteriormente em 1959,
esteve fora da Bahia, trabalhando como free-lance com adaptações para a televisão,
escrevendo para diversos jornais brasileiros e publicando crônicas na revista O Cruzeiro.17
Assim, através de seus escritos, tornou-se membro do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia e veio a ser a segunda mulher a ingressar na Academia de Letras da Bahia, ocupando a
cadeira de nº. 36, no dia 31 de março de 1981.
Hildegardes Vianna ainda organizou e dirigiu, por algum tempo, o Museu da
Associação Baiana da Imprensa. Em 1948, ingressou, quando da sua instalação, na Comissão
Baiana de Folclore – IBEEC, órgão brasileiro da UNESCO, organizado e dirigido pelo pai
Antônio Vianna. Foi membro correspondente da Academia Goiana de Letras, da Academia
Norte Rio-Grandense de Letras, Academia Sorocabana de Letras, do Instituto Histórico e
Geográfico de Goiás e da Sociedade Tucumana de Folklore na Argentina. Thales de Azevedo
tece alguns elogios sobre a cronista no jornal A Tarde:

Os trabalhos da Profª. Hildegardes, que é mestra porque ensina na


Universidade e porque é uma autoridade em seu campo, dispersam-se por
muitas dezenas, quiçá centenas de artigos que, há quinze anos, publica na
imprensa diária desta capital e noutros órgãos da imprensa diária e
especializada. [...] a sua produção ultrapassa a de simples registro ou
narrativa de folguedos, de festejos, de refrões e ditados, de canções e
quadras, mas alarga-se à memória de costumes tradicionais e populares em
síntese, ao mesmo tempo de cronista e de historiadora social. (AZEVEDO,
A Tarde, 11/10/1969).

Esse artigo de Thales de Azevedo foi escolhido pela cronista como prefácio do livro A
Bahia já foi assim, em 1973. A obra constitui-se de crônicas que retratam a Bahia até 1940, os
textos descrevem a forma como as famílias da elite soteropolitana dividiam os aposentos da
casa da elite, as reações das pessoas frente à morte, a relação entre compradores e vendedores
de produtos comercializados nas ruas da capital baiana, explicações sobre as comidas e as
relações entre negros e brancos, em Salvador, nos primeiros anos da República. Com
repercussão positiva na sociedade letrada baiana, o livro teve mais duas edições. Em 1979, a

17
Periódico de prestígio nacional na década de 1950.
2ª edição, com o acréscimo de algumas crônicas, e em 2000, a 3ª, idêntica à anterior. Segundo
a autora, em entrevista ao jornal A Tarde (19/12/2000), a publicação da obra deu-se pelo fato
de a edição anterior ter se esgotado e os leitores terem solicitado uma reedição.
Em 1994, a cronista também publicou outro livro de crônicas intitulado Antigamente
era assim. Pode-se deduzir, inicialmente, que os textos selecionados para compor a obra não
tiveram a mesma aceitação do público como aqueles de A Bahia já foi assim. Tal afirmativa
torna-se possível porque a obra só teve uma edição e, durante a pesquisa realizada em jornais
e revistas encontrados na Academia de Letras da Bahia, só se identificou uma nota da
jornalista Myriam Fraga, ao jornal A Tarde de março de 1994.18 Na nota, a jornalista assevera
que tanto o livro quanto as crônicas publicadas semanalmente são sucesso garantido, com o
“público sempre fiel e interessado”.
Apesar do sucesso do livro A Bahia já foi assim, vale destacar que esse não foi o
primeiro livro de Hildegardes Vianna. Em 1955, a autora publicou sua primeira obra pela
UFBA, A Proclamação da República na Bahia, todavia não teve repercussão no mercado
editorial. Obstinada nos assuntos relacionados ao folclore baiano, em 1956 a autora reelabora
a pesquisa sobre “Contribuição ao estudo da cozinha baiana” e lança o livro A cozinha
baiana: seus folclores, suas receitas, marcando assim o seu ingresso no universo nacional dos
folcloristas, posto que a obra é definida pelos críticos como inovadora. 19
A repercussão de A cozinha baiana: seu folclore, suas receitas deu visibilidade aos
trabalhos de Hildegardes Vianna no âmbito dos estudos folclóricos. Atuou como professora
de música, pela antiga Escola de Música, dirigida pelo maestro Pedro Jatobá, especializou-se
em Etnologia, no Centro de Estudos de Etnologia em Lisboa, foi orientadora de pesquisas
folclóricas da Secretaria Municipal de Educação de Salvador, assessora de folclore na
Superintendência de Turismo de Salvador. Fez inúmeras pesquisas pelo Arquivo Público do
Estado da Bahia, professora do Instituto de Música da Universidade Católica do Salvador.

18
A baiana Myriam Fraga é poetisa e contista. Em 1985, tornou-se membro da Academia de Letras da Bahia e,
desde 1986, dirige a Fundação Casa de Jorge Amado.
19
Fernando Sales, na revista A Cigarra, de maio de 1956, ressaltou que a edição da autora era uma das obras
mais completas já realizadas sobre a arte culinária da “Boa Terra”. Otto Schneider, em 28 de abril de 1956, em
um artigo publicado em O Jornal, exaltou o livro, destacando que a obra é uma contribuição preciosíssima para
o estudo do folclore baiano, que abarca tanto o interesse gastronômico como o da pesquisa. Eneida de Moraes,
em 1/07/1956, escreveu em sua coluna Encontro Matinal, jornal A Tarde, sobre o lançamento do livro A cozinha
baiana: seu folclore, suas receitas, ressaltando a importância da obra, que apresenta histórias e crendices e
ensina o valor de cada utensílio culinário. A jornalista conclui o artigo aconselhando aos leitores a aquisição de
um exemplar. Astério Campos, em um jornal carioca, adjetivou o livro de metódico, homogêneo, documentado e
suculento, considerando como uma excelente contribuição aos estudos da culinária baiana. O jornalista destacou
em seu artigo que, ao ser apresentada no 1º Congresso Brasileiro de Folclore, a obra foi elogiada e considerada
por Mariza Lira um trabalho de real valor folclórico e patriótico.
Aposentou-se como professora adjunta da Universidade Federal da Bahia e técnica em
assuntos culturais da Secretaria de Cultura do estado.
Em sua trajetória acadêmica, ministrou cursos de Introdução às Ciências do Folclore e
Folclore Brasileiro, com o apoio financeiro da Companhia de Defesa do Folclore (MEC) em
várias universidades do Brasil. Participou ativamente, com trabalhos aprovados em plenário,
de Congressos de Folclore, Etnografia, História e Literatura Oral no Brasil, Portugal e
Uruguai.
Hildegardes Vianna ainda lançou em 1960 Festas de Santos e Santos Festejados,
pouco divulgado e desconhecido pelo povo da cidade de Salvador, e Calendário de festas
populares da Bahia, livro em que descreve 16 (dezesseis) festas populares de Salvador,
partindo de um panorama histórico para acompanhar as evoluções e transformações do evento
popular. O ineditismo de escrever um livro sobre as festas baianas rendeu algumas críticas
positivas à cronista. Foi encontrada uma nota ao jornal A Tarde, em que um leitor anônimo
define seu livro como “muito bom pelo ineditismo em abordar as manifestações populares da
Bahia mês após mês.”
Pela Universidade Federal da Bahia, ainda publicou os livros Breve notícia sobre
acontecimentos da Bahia do início do século XX (1983) e As aparadeiras, as sendeironas, seu
folclore (1984). Sem dúvida, de todos os títulos citados, pode-se deduzir que das produções
que tiveram maior êxito e receptividade do público foram as crônicas publicadas no jornal A
Tarde, graças à diversidade de temas, desde a vida do “povo” com seus hábitos
gastronômicos, vestuário, festas populares até a arquitetura e decoração dos casarões
tradicionais. Tal afirmação torna-se possível, tendo em vista a permanência da publicação da
coluna ao longo de 44 anos e o manancial de cartas de leitores que se dizem “assíduos e fiéis”,
as quais podem ser encontradas nos arquivos da Academia de Letras da Bahia, quase todas
solicitando a continuidade das temáticas abordadas nas crônicas.
Nessa diversidade de crônicas, Adroaldo Ribeiro Costa (24/02/1973), em um artigo
intitulado Bonde e Avião, explicita sobre a receptividade de um texto de Hildegardes Vianna
que trata dos bondes que circulavam em Salvador. Segundo o jornalista, a cronista recebeu
inúmeras cartas de leitores da geração de “antigamente”, louvando-a e pedindo mais. No
entanto, com a prudência dos cronistas “tarimbados”, Hildegardes Vianna teve o cuidado de
evitar a saturação do assunto e preferiu interromper a série daquelas reminiscências,
enveredando para o aparecimento dos aviões, tema que causou mais sucesso ainda.
Nota-se nesse artigo de Adroaldo Ribeiro Costa que os leitores de Hildegardes Vianna
também são movidos pelo sentimento de nostalgia, saudade do passado, fato que poderia
justificar a perpetuação da publicação de suas crônicas, durante um longo tempo no jornal A
Tarde.
A partir dessas tessituras que objetivam delinear uma biografia intelectual da vida de
Hildegardes Vianna, observa-se que a cronista e folclorista foi enveredando para o universo
dos estudos folclóricos à medida que ia escrevendo sobre as peculiaridades do cotidiano da
população soteropolitana, tomando como referência as escutas de amigos e colaboradores que
sofrem do mesmo mal: saudades de uma Bahia tradicional.
A negação do presente e a evocação do tempo de “outrora”, como se a vida boa
estivesse cristalizada no que já aconteceu, é uma perspectiva marcante dos folcloristas. Ortiz
(2006) afirma que, quando pesquisadores que estudavam tradições populares aceitaram, no
século XIX, a palavra folk-lore para denominar a sua área de estudos, pensavam que a palavra
criada artificialmente por William John Thoms, em 1846, sintetizava o seu conceito e,
portanto, estaria isenta de controvérsias. A palavra folclore, grafada inicialmente folk-lore,
fora formada a partir das velhas raízes saxônicas em que folk significa “povo” e lore “saber”.
Assim, segundo o seu criador, a palavra significaria sabedoria do povo.20
No entanto, logo começaram as discussões. Primeiro, questionava-se o sentido do
vocábulo saber e os seus limites. Para alguns folcloristas, a cultura material estava excluída -
artesanato, técnicas populares como a culinária, a arquitetura e a confecção de instrumentos
musicais estariam fora do conceito e do campo de estudo. Para outros, a cultura material
somente estaria integrada ao folclore quando estivesse ligada à cultura não-material - estudos
da música folclórica incluiriam os instrumentos musicais e o estudo das festas tradicionais
incluiria a sua culinária etc. Nessa segunda perspectiva, as técnicas populares só fariam parte
dos estudos folclóricos se estivessem atreladas às manifestações da cultura popular.
No Brasil, em uma tentativa de sistematizar o conceito de folclore, Renato Almeida21
apresentou no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado em 1951, uma carta intitulada
Carta do Folclore Brasileiro. Em 1995, durante o VIII Congresso Brasileiro de Folclore,
houve uma releitura desse texto epistolar, objetivando sua atualização, considerando a

20
O historiador James Clifford (1994) assume uma atitude irônica frente ao folclore, pois, segundo o teórico, os
estudos etnográficos na pós-modernidade são mais específicos, pois é pensado a partir das ambigüidades,
indeterminações e complexidades da vida humana, abarcando toda a sua diversidade, enquanto o folclore gera
um mal-estar aos pesquisadores, pois ainda apregoa a tradição e a cristalização dos fatos. Para Clifford, a
etnografia é uma atividade interpretativa, uma “descrição densa”, voltada para busca de significações.
Boaventura Sousa Santos (2005, p. 241) também acredita que as práticas sociais são práticas de conhecimento,
mas só podem ser reconhecidas como tal na medida em que são o espelho do conhecimento científico. “Seja qual
for o conhecimento que não se adéqüe à imagem refletida no espelho, é rejeitado como uma forma de
ignorância.”.
21
O baiano Renato Almeida dedicou grande parte de sua vida a incentivar os estudos sobre folclore. Organizou
em 1948 a Comissão Nacional de Folclore, com sede no Itamarati, e outras comissões em várias partes do país.
incorporação das contribuições de estudos das ciências humanas e de letras, bem como a
adoção de novas tecnologias, especialmente na comunicação, e das transformações da
sociedade brasileira. Decidiu-se então re-conceituar, considerando que:

Folclore é o conjunto das criações culturais de uma comunidade, baseado


nas suas tradições expressas individual ou coletivamente, representativo de
sua identidade social. Constituem-se fatores de identificação da
manifestação folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade,
funcionalidade. (COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE. 1995).

Vale ressaltar que, apesar da iniciativa da Comissão Nacional de Folclore, a


atualização do conceito dos estudos folclórico surtiu pouco efeito na sociedade, pois já estava
sedimentada e assimilada pelo senso comum a noção de cultura popular como tradicional e
atrasada.
A carta também estabelece o seguinte:

[...] reconhece o estudo do Folclore como integrante das ciências


antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar como
folclórico o fato espiritual e aconselha o estudo da vida popular em toda sua
plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto espiritual;

Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um


povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação e que não sejam
diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se
dedicam ou à renovação e conservação do patrimônio científico, artístico e
humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica;

São também reconhecidas como idôneas as observações levadas a efeito


sobre a realidade folclórica, sem o fundamento tradicional, bastando que
sejam respeitadas as características de fato de aceitação coletiva, anônima
ou não, e essencialmente popular. (COMISSÃO NACIONAL DE
FOLCLORE. 1995, grifos nossos).

Identificam-se na carta elementos que denunciam o interesse em sustentar o caráter


essencialista e conservador dos estudos folclóricos. Nela, expõe-se a noção de que, para se
manter a qualidade das manifestações populares, é necessário se conservar a sua pureza, não
devendo se misturar com as práticas da modernidade. A renovação de idéias é negada pelos
folcloristas tradicionais. Dessa forma, é importante que a cultura popular seja “preservada
pela tradição e não seja influenciada pelos círculos eruditos”.22

22
Peter Burke (1989), no livro Cultura popular na Idade Moderna, destaca que o termo “cultura popular” dá
uma falsa impressão de homogeneidade e que seria melhor usá-lo no plural ou substituí-lo por uma expressão
como “cultura das classes populares”.
Pautada nos princípios estabelecidos pela carta, a ilustre e também representante do
folclore baiano, Hildegardes Vianna, em consonância com as idéias de Renato Almeida,
defende no artigo Folclore palavra do século, ao jornal A Tarde (19/ 08/1967), que o folclore
se firma pela “criação espontânea do povo”, por elementos genuinamente populares, ou seja,
constitui-se da expressão de sabedoria do povo com seus mitos, lendas, histórias, cantos,
gestos, danças, teatro, festas tradicionais, magias, tabus e jogos. Elege, ainda, como
manifestação “popular” os objetos e vestimentas que ornam os representantes dessa cultura, as
rendas e bordados, o próprio “povo” com suas figuras ilustres, como benzedeiras e baianas de
acarajé, a culinária, comidas que identificam os costumes da população. Para a cronista e
folclorista, a Bahia é uma fonte inesgotável de mistérios e exotismo:

O Folclore se expandiu, invadindo terrenos jamais imaginados pelo criador,


significando a maneira de pensar, de agir e de sentir de um povo. As danças,
as canções, a poesia, os folguedos infantis, as crendices, a medicina
popular, as artes e técnicas domésticas, a comida, o traje, o linguajar, a
cerâmica, os trançados, em fim todos os aspectos da vida popular passaram
a ser folclore. (VIANNA, A Tarde, 19/08/1967).

Nessa perspectiva, são ricas e múltiplas as abordagens que Hildegardes Vianna faz, em
suas crônicas, da cultura popular baiana. De maneira geral, os escritos fazem referência, com
maior ou menor rigor, à formação cultural do entorno do Recôncavo Baiano, em todas as suas
facetas: o cotidiano, as festas, a capoeira, as “características” do povo e a comida, sendo a
culinária um dos temas mais recorrentes em muitas de suas crônicas, tendo em vista a
publicação de um livro de receitas. A chamada gastronomia baiana é festejada pela autora
com muita propriedade. Os gêneros alimentícios se sobressaem a partir da riqueza de detalhes
com os quais são descritas as especiarias utilizadas para preparar o abará, o acarajé e outros
alimentos específicos da “Boa Terra”.23 As técnicas utilizadas para confeccioná-los também
não foram esquecidas.
A autora dedica várias crônicas à temática da culinária. E quando confere uma certa
visibilidade às mulheres negras, a maioria delas está representada como mão-de-obra
trabalhadora, na feitura de quitutes e sua comercialização nas ruas da cidade de Salvador. Tais
atividades por sinal são descritas de forma mais poética do que os sujeitos executantes. A
crônica Da arte de fazer cuscuz (23/09/1969) ilustra bem essa afirmativa:

23
Segundo o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), o acarajé é um bolinho feito com feijão-
fradinho, frito no azeite-de-dendê e servido com camarão seco e pimenta. O abará é uma iguaria feita também
com feijão-fradinho, enrolada em folha de bananeira e cozida no vapor.
Antigamente, fazer cuscuz era uma arte. O seu preparo, em muitas ocasiões,
principiava de véspera. O milho ou o arroz tinha de ser posto de molho para
amolecer. No dia seguinte, ou melhor, madrugada seguinte, alguém
acordava antes do nascer do sol para ralar na pedra ou socar no pilão o
milho. Poucas mulheres utilizavam o pó de milho comprado já pronto em
uma tulha qualquer... O gosto não era o mesmo, apesar de ficar algumas
horas dentro d’água para tomar corpo e cozinhar melhor. E dava trabalho,
pois tinha que ser escorrido num pano e ser pendurado a ensombrar, até o
ponto de poder ser secado para não formar grumos.

O arroz podia ir para pedra ou para o pilão, mas havia quem usasse uma
garrafa ou uma bilha (no caso apenas um rolo de madeira de abrir massa)
para esmagar o arroz inchado espalhado sobre um pano grosso. O inhame
dava melhor trabalho, mas tinha de ser aferventado, esfriado para depois ser
ralado.

Ralar coco nunca foi tarefa fácil. Quebrar, descascar, lavar e ralar. Quando
era cuscuz, sem compromisso dentro de casa, sem preocupações de agravar
ou não a quem comesse, o coco podia ser, depois de lavado, guardado
dentro de uma vasilha com água, para posterior ralação. Também podia ser
ralado de noite, salpicando-se um tantinho de sal moído por cima para não
azedar. Mas cuscuz para vender exigia tudo fresco. Tudo do mesmo dia.

Tirar leite de coco tinha ou ainda tem sua técnica. O leite sem água
conseguia-se, como hoje, pondo-se as porções do coco ralado dentro de um
pano e apertando-se muito bem, até escorrer o líquido alvo e saboroso.
Conforme o mister a que se destinasse, levava, e ainda leva, água quente,
não muito quente, mais para morna, para iguarias que dependessem da
gordura do coco para amaciar a massa. Água fria para determinados tipos de
mingau ou canjica e até de cuscuz de inhame-fubá, por exemplo.

O leite tirado com a primeira água era reservado para ser fervido com sal e
açúcar. O Bagaço que ficava era, então, misturado na massa. Bem
espremido, se fosse para cuscuz de tapioca e um pouco úmido se para
milho, mandioca ou inhame. Quanto trabalho dava esbrugar o bagaço até
ficar soltinho [...]

Pronto o bagaço, pronto o fubá ou o que fosse, era iniciada a fase de mistura
em que os dedos tinham função precípua. Além de mexer tudo muito bem,
uniformizando a distribuição do sal e do açúcar, os dedos tinham o dever de
sentir o grau de umidade requerido para que saísse um cuscuz correto.

Era a hora do cuscuzeiro de barro com um guardanapo ou toalhinha fina à


guisa de forro. As profissionais tinham pano adequado par o cuscuzeiro em
forma de quadrado, nem muito grosso nem muito fino. A massa ia sendo
colocada de um jeito todo especial, as palmas das mãos se movendo uma
contra a outra, esfarinhando tudo para não formar batoques. Acabada a
operação e coberta a superfície da massa com as pontas dos panos ou
guardanapo, o cuscuzeiro era adaptado à tampa de uma panela de barro
cheia de água até certa altura. A calefação era feita para evitar que
escapasse algum vapor d’água quando fervesse, utilizando para tal fim uma
pouco de farinha de guerra molhada. (VIANNA, A Tarde, 23/09/1969,
grifos nossos).
As observações tecidas acerca da preparação do cuscuz são riquíssimas de detalhes, ao
se destacar, passo a passo, todas as etapas realizadas até que o alimento fique pronto,
ressaltando a técnica mais adequada para a iguaria ficar mais saborosa. Os utensílios
utilizados para realização das tarefas, bem como as especiarias, também não são esquecidos,
posto que a cronista discorre minuciosamente sobre cada um deles ao longo do texto,
enumerando a funcionalidade e importância. Dessa forma, tem-se uma receita completa do
alimento que faz parte da tradição da culinária baiana.
Todavia, constata-se na mesma crônica que os sujeitos responsáveis pela execução das
tarefas realizadas na produção do cuscuz ficam no anonimato. As mulheres negras estão
“escondidas’ pelo pronome indefinido “alguém” e pelo substantivo “as profissionais”. Assim,
quem são essas mulheres? De onde vieram? Onde vivem? Como vivem? São perguntas
impossíveis de serem respondidas ao longo da crônica.
Defensora contumaz das tradições, Hildegardes Vianna temia que a modernidade
destruísse os costumes populares.24 No artigo Agosto, mês do folclore, publicado no jornal A
Tarde (06/08/1978), a cronista denuncia que o progresso e as novidades do mundo moderno
contribuíram significativamente, ao longo do tempo, para a descaracterização do folclore.
Numa perspectiva tradicional, a autora alerta que o crescimento demográfico, as revoluções
sociais e a exploração da indústria turística seriam “inimigos terríveis do folclore”.

Mesmo ameaçados por inimigos terríveis tais como o crescimento


demográfico, as revoluções sociais e a exploração da indústria turística, sua
grande corruptora, o povo encontra em antigas motivações, modificadas ou
renovadas pela recomposição, um veículo para expressar o seu modo de
pensar, agir e sentir. (VIANNA, A Tarde, 06/08/1978).

Concebe-se, assim, uma pretensa autenticidade das manifestações populares que irá
radicalmente se opor a qualquer movimento de transformação da realidade social. Essa
perspectiva é um traço marcante nos estudos sobre o Folclore, que se volta para a cristalização
do passado.
Em outra perspectiva teórica, Canclini (2003) examina como se reformulam hoje, ao
lado de uma visão tradicional, outros traços identificados com o popular: seu caráter “local” e
seu caráter associado ao nacional e ao subalterno. Segundo o teórico, a elaboração de um
discurso científico sobre o popular é um problema recente no pensamento moderno, posto que

24
A palavra tradição é tomada aqui no sentido de cristalização do passado, a perpetuação de costumes e práticas
estratificadas pela elite soteropolitana.
os estudiosos do tema limitaram-se a tornar visível a questão do popular por interesses
ideológicos e políticos.
Visando defender suas idéias, Canclini realizou uma análise da origem do conceito de
“popular”, que remete ao século XVIII e início do século XIX, período em que o povo
começou a existir como referência no debate moderno, devido à formação, na Europa, de
estados nacionais que trataram de abarcar todos os estratos da população. A pesquisa do
teórico explica que, diante da nova concepção, a elite européia começou a perceber que esse
povo ao qual se deve recorrer para legitimar um governo secular e democrático é também
portador daquilo que a razão quer abolir: a superstição, a ignorância e a turbulência. Assim,
“o povo interessava como legitimador da hegemonia burguesa, mas incomodava como lugar
do inculto por tudo aquilo que lhe faltava.” (CANCLINI, 2003, p. 208).
A noção política de povo como instância legitimante do governo civil, como gerador
de nova soberania, é interpretada por Martín-Barbero:

[...] no âmbito da cultura como uma idéia radicalmente negativa do popular,


que sintetiza para os ilustrados tudo que estes quiseram ver superado, tudo
que vem varrer a razão: superstição, ignorância e desordem. Contradição
que tem a sua fonte na ambigüidade que a figura mesma do povo tem em
sua acepção política. O povo é fundador da democracia não como
população, mas apenas como ‘categoria que permita dar parte, enquanto
garantia, do nascimento do Estado moderno’. (MARTÍN-BARBERO, 2006,
p. 34).

O povo interessa para constituir uma sociedade moderna, mas permanece nessa
história como o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja
conservado; os artesões que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem participar do
mercado de bens simbólicos; aqueles incapazes de ler e olhar a cultura porque “desconhecem”
a história dos saberes e estilos. Ou seja, todos aqueles que pertenciam a uma categoria
considerada “inferior” em relação à elite européia.
Para Canclini (2003), os românticos, ao perceberem essa contradição e na tentativa de
reconhecer o popular como espaço de criatividade, foram os primeiros a tentar dirimir a
quebra entre político e cotidiano.25 Assim, vários escritores dedicaram-se a conhecer os
costumes populares e impulsionaram os estudos folclóricos. Canclini ainda cita três pontos
das contribuições inovadoras dos românticos, sintetizadas por Renato Ortiz:

25
Os românticos são aqui apresentados como sendo os primeiros que “descobriram” o povo, como uma
exaltação revolucionária do popular e do nacional e representação de uma nação.
[...] frente ao iluminismo que via os processos culturais como atividades
intelectuais, restritas às elites, os românticos exaltaram os sentimentos e as
formas populares de expressá-los; em oposição ao cosmopolitismo da
literatura clássica, dedicaram-se a situações particulares, sublinharam as
diferenças e o valor do local; frente ao desprezo do pensamento clássico
pelo ‘irracional’, reivindicaram aquilo que surpreende e altera a harmonia
social, as paixões que transgridem a ordem dos ‘homens honestos’, os
hábitos exóticos de outros povos e também dos próprios camponeses.
(ORTIZ, 1985, apud CANCLINI, 2003, p. 208).

A inquietude de escritores e filósofos, por conhecerem empiricamente as culturas


populares, formaliza-se na Inglaterra quando é fundada, em 1878, a primeira Sociedade do
Folclore.26 Comungando das idéias de Canclini, Martín-Barbero encontra uma explicação
para a emergência da noção de popular:

A invocação do povo legitima o poder da burguesia na medida exata em que


essa invocação articula sua exclusão de cultura. E é nesse movimento que se
geram as categorias ‘do culto’ e ‘do popular’. Isto é, do popular como
inculto, do popular designando, no momento da sua constituição em
conceito, um modo específico de relação à totalidade do social: a da
negação, a de uma identidade reflexa, a daquele que se constitui não pelo
que é, mas pelo que lhe falta. (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 35).

Dessa forma, o “povo” se apresenta como aquele sujeito que está excluído tanto da
riqueza quanto da política e da educação. Logo, toma-se o local do inculto e define-se como o
ser a que falta tudo (razão, educação, riqueza etc.). A citação ainda provoca uma discussão no
que tange a uma renovação do conceito de cultura. É inegável que os românticos construíram
um novo imaginário, no qual a cultura que vinha do povo adquiriu status, convocando um
alargamento do horizonte histórico e da concepção de humanidade ao se aceitar a existência
de uma pluralidade de culturas e diferentes modos de vida social. No entanto, ao mesmo
tempo em que imprimiram um novo conceito de cultura, também demarcaram limites para a
cultura popular, tendo em vista que essa era antagônica à cultura hegemônica e oficial e não
deveria se contaminar. Assim sendo, “ao negar a circulação cultural, o realmente negado é o
processo histórico de formação do popular e o sentido social das diferenças culturais: a
exclusão, a cumplicidade, a dominação e a impugnação.” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p.
40).
Perdendo de vista o sentido histórico da noção do popular, o que se resgata acaba
sendo uma cultura que não pode olhar senão para o passado, cultura patrimônio (herdada), ou

26
Posteriormente, A Sociedade do Folclore passou a ser o nome utilizado para designar na Itália e na França a
disciplina que se especializava no saber e nas expressões subalternas.
seja, folclore. Logo, culturalmente falando, pode-se afirmar que, o “povo”, na perspectiva
romântica, é o passado. E o atraso das classes populares, através da negação da modernidade,
o condena à subalternidade. A partir dessa perspectiva, Martín-Barbero apresenta,
questionando, um conceito de Folclore:

Folklore capta antes de tudo um movimento de separação e coexistência


entre dois mundos culturais: o rural, configurado pela oralidade, as crenças
e a arte ingênua, e o urbano, configurado pela escritura, a secularização e a
arte refinada: quer dizer nomeia o tempo da cultura, a relação na ordem das
práticas entre tradições e modernidade, sua oposição e às vezes sua mistura.
(MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 38).

E Canclini ainda assevera:

O popular como resíduo elogiado: depósito da criatividade camponesa, da


suposta transparência da comunidade cara a cara, da profundidade que se
perderia com as mudanças ‘exteriores’ da modernidade. Os precursores do
folclore viam com nostalgia que diminuía o papel da transmissão oral frente
à leitura de jornais e livros; as crenças construídas por comunidades antigas
em busca de pactos simbólicos com a natureza se perdiam quando a
tecnologia lhes ensinava a dominar essas forças. O popular como
tradicional. (CANCLINI, 2003, p. 209).

Nessa vertente, manifestações folclóricas são narradas lendariamente e cristalizadas no


tempo e no espaço, esquecendo-se dos conflitos em meio aos quais se formaram as tradições.
O povo é resgatado, mas não é reconhecido. Convergindo para essa direção, Hildegardes
Vianna, ao apresentar nas suas crônicas uma visão nostálgica, está imprimindo também uma
marca específica dos folcloristas mais tradicionais.27 Ao longo das crônicas que apresentam as
negras, produzem-se estereótipos dessas mulheres, ao passo que não se problematizam as
questões imbricadas no processo de subalternidade presente nas vidas descritas.
Ao adotar uma concepção romântica do popular, aliada aos componentes ideológicos
de racismo e sexismo das políticas conservadoras soteropolitanas, Hildegardes Vianna orienta
uma leitura que inviabiliza que seu público leitor pense sobre a complexidade existente nos
conflitos sociais. O “povo”, nessa perspectiva, converte-se em uma entidade não analisável
socialmente, não traspassável pelas divisões e pelos conflitos, ou seja, um sujeito que só tem a
possibilidade de se apresentar como subalterno à elite baiana. Retoma-se, de certa forma, o

27
Vale ressaltar que, segundo estudos de Martín-Barbero e Canclini, há uma nova idéia sobre os estudos
folclóricos, na qual se reconhece a pluralidade do cultural a partir da circulação dos movimentos, em que o novo
se mistura como antigo. Essa perspectiva de cultura popular aceita a modernidade e acha possível a relação entre
o passado e o presente.
argumento de Martín-Barbero, que focaliza que o grande problema dos folcloristas é a
dependência com o passado e que, ao negar a circulação da cultura e sua conexão com o
moderno, o realmente negado é o processo histórico de formação do popular e o sentido social
das diferentes culturas: a exclusão, a cumplicidade, a dominação e a impugnação não são
problematizadas.
Essa ênfase no caráter tradicional do patrimônio popular, na maioria das vezes, pode
ser considerada uma posição conservadora diante da modernidade. Renato Ortiz (2006), em
consonância com as idéias de Canclini e Martín-Barbero, aponta que o folclore foi uma
necessidade histórica da burguesia européia. Assim, para Ortiz, ao se definir cultura popular
como um saber tradicional das classes subalternas das nações civilizadas, como faz William
John Thoms, implicaria associá-lo à dimensão de atraso.
De acordo com Canclini:

Em países díspares como Argentina, Brasil, Peru, e México os textos


folclóricos produziram, desde o final do século XIX, um amplo
conhecimento empírico sobre os grupos étnicos e suas expressões culturais:
a religiosidade, os rituais, a medicina, as festas e o artesanato. Em muitos
trabalhos vê-se a identificação profunda com o mundo indígena e mestiço,
esforço para lhe dar um espaço dentro da cultura nacional. (CANCLINI,
2003, p. 210).

No entanto, observa-se, pelo menos no Brasil, a preservação do elemento conservador,


ao se valorizar a tradição como presença do passado e todo progresso implicando em um
processo de dessacralização da sabedoria popular.28 Todavia, o folclore brasileiro se
diferencia da concepção européia, por não se apresentar como uma necessidade da burguesia
e sim, sobretudo, como “uma forma de saber que se associa, de início, às camadas tradicionais
de origem agrária”. Identificam-se tais características a partir de Gilberto Freyre e Câmara
Cascudo. (ORTIZ, 2006, p. 71).
Renato Ortiz (2006) ainda constata que os intelectuais que se dedicaram aos estudos
da cultura popular apropriaram-se da miscigenação como símbolo para representar e expressar
a situação das populações menos favorecidas do país. Assim, mesmo com a associação de
folcloristas e antropólogos, transformando os estudiosos das culturas populares em
intelectuais reconhecidos, os estudos folclóricos se deram fora das universidades, em centros

28
Renato Ortiz (2006) constata que os estudos folclóricos brasileiros fixaram o terreno da nacionalidade na fusão
do negro, do índio e do branco, isto porque o conceito de povo que predominava junto aos intelectuais brasileiros
do final do século XIX era o da mistura racial. Brasileiro se apresentando como raça mestiça.
tradicionais como os Institutos Históricos e Geográficos, que têm uma visão anacrônica e
desconhecem as técnicas modernas do trabalho intelectual.
Apoiando-se nos princípios tradicionalistas do folclore, Hildegardes Vianna, em 1955
(período no qual inicia a publicação das cônicas no jornal A Tarde), volta-se para o passado
com intuito de descrever o povo e a cultura soteropolitana.29 Portanto, destaca-se na sua
escrita a presença de elementos que sinalizam um sentimento de nostalgia e de
tradicionalismo.
Por isso, à medida que toda estrutura social que se pensava sólida se desmanchava no
ar, crescia em Hildegardes Vianna a necessidade de organizar o passado, reconstituindo os
fatos e coisas que ainda lhes pareciam familiares e reconhecíveis. Assim, suas crônicas
revisitam e recriam as tradições culturais de um modo de vida soteropolitano, recordam seus
lugares de memória, como o traçado das ruas do velho centro e dos casarões antigos que,
mesmo modificados, contam a história da cidade. Para a folclorista confere-lhe “identidade”
manter “viva” esta memória social, esteticamente selecionada na tradição cultural baiana.30
Dessa forma, nas crônicas, a repetição de palavras como “antigamente” e “outrora”
marca de maneira explícita a distância imputada entre o tempo descrito e a atualidade, como
se autora rechaçasse os rumos da história, como se não existissem mais lavadeiras,
cozinheiras e domésticas, como se as mulheres negras e suas atividades estivessem
cristalizadas em um tempo passado, o que pode ser observado na citação: “Era naquele bom
tempo em que havia aquele ditado Quando eu nasci já se bebia mingau. Mingau vendido ao
clarear do dia por uma mulher que mercava por mercar, porque era fácil fazer freguesia
certa”. (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969). Ou ainda:

Era naquele tempo feliz em que Salvador era ‘um doce recanto bonançoso’.
Ruas pacatas com corredores de casas de duas janelas e uma porta, aqui e
ali um sobradinho, mais adiante um casarão, vez ou outra um arremedo de
chalé, com telhado de duas águas e um terreninho que chamava ‘Jardim na
frente’. Tudo família. Cada qual integrado em sua categoria social sem
recalques ou revolta. (VIANNA, 1994, p. 49).

29
Os escritos de Hildegardes Vianna se diferenciam de forma peculiar dos de Câmara Cascudo e Gilberto
Freyre, no sentido de que a autora concentrou a maioria dos seus escritos na representação da vida urbana. Tendo
em vista o conceito de folclore, como cultura que vem do povo, os representantes da cultura popular
soteropolitana são a população negra e mestiça. Assim, majoritariamente, a autora traz como sujeitos sem voz
das suas crônicas as negras que circulavam pela cidade.
30
O recurso da memória, segundo Albuquerque Júnior (1990, p. 78) “[...] é, na verdade, uma tarefa de
organização do próprio presente, este presente que parece deles escapar, deles prescindir [...]”.
O tom nostálgico é revelador, trata-se de uma luta contra o tempo. Identifica-se à idéia
de salvação, a missão é agora congelar o passado, recuperando-o como patrimônio histórico.
Assim, os folcloristas, reconhecendo a radicalidade das mudanças em curso, se voltam para
uma operação de resgate, recordando o passado e armazenando em seus museus e bibliotecas
a maior quantidade possível de uma beleza morta, os objetos utilizados nas práticas populares.
As descrições presentes na citação são identificadas em diferentes escritos associados
aos estereótipos sobre a mulher negra endossados pela cronista. Em tais estereótipos, as
mulheres deixam de ser sujeitos para serem objetos batizados pela categoria profissional à
qual pertencem. Hildegardes Vianna se posiciona como uma representante do “povo”, visto
que fala sobre o “povo” e para o “povo”, mas numa perspectiva que permanece sempre como
exterioridade. O distanciamento autor, público e personagem é uma constante, como se
constata nas crônicas em que as mulheres negras aparecem como tipos: a “lavadeira”, a
“mulher do mingau”, a “ama-de-leite”, etc. O “povo” é o personagem principal da trama
discursiva, mas, na realidade, se encontra ausente. Não há vida interior desses sujeitos, dilui-
se a dimensão dos indivíduos, e com isso a própria existência é preterida, muitas vezes, diante
dos objetos artesanais: a vestimenta da baiana, o tabuleiro, os utensílios utilizados na
confecção dos alimentos e outros. A distância entre a folclorista e seu objeto de estudo é
referendada na crônica Pesquisa da dança folclórica:

Vale acentuar que o portador de folclore não é folclorista. Folclorista é o


homem de ciência que pesquisa, estuda, compara, interpreta, tira
conclusões, reconstruindo as trajetórias ou a estrutura do fato histórico.
Portador de folclore, de acordo com a visão de Renato Almeida, é o homem
primitivo, o homem do povo, cujo modo de pensar, de sentir e de agir
corresponde e traduz a mentalidade empírica da coletividade de que faz
parte. Às vezes o portador de folclore não é analfabeto. Existe gente, como
ressalta Renato Almeida, que não é iletrado, ágrafo, mas cuja mentalidade é
folclórica, como a de qualquer analfabeto sem tirar nem por. (VIANNA, A
Tarde, 27/08/1973).

A partir desse entendimento, pode-se inferir que a cronista endossa os princípios dos
estudos folclóricos, tendo em vista que o saber popular é visto como uma propriedade de
grupos subalternos, cujas técnicas simples e a pouca diferenciação social os preservariam das
ameaças modernas. Nessa perspectiva, interessam mais os bens culturais – objetos, lendas,
músicas – que os agentes que o geram e consomem. Essa fascinação pelos produtos, o descaso
pelos processos e agentes sociais que os geram, leva à construção de estereótipos sociais.
Em sua pesquisa, Donald Pierson (1945) identifica que na Bahia a classe letrada era
relativamente pequena. A maioria do povo da cidade era iletrada e se incluía no que era
comumente denominado de folk, ou ao menos num estágio intermediário entre a “cultura de
folk” e a “civilização”. Nessa perspectiva, define-se a cultura popular como a cultura das
classes trabalhadoras e dos pobres. Esse segmento social, ao qual Hildegardes Vianna faz
referência em suas crônicas, constitui-se de africanos e seus descendentes.
Sobre o caráter tradicional do folclore, Canclini (2003) assevera que, ao insistirem em
uma fidelidade ao passado, os folcloristas tornam-se cegos às mudanças que redefiniram as
sociedades industriais e urbanas. Suas dificuldades teóricas e epistemológicas, que limitam
seriamente o valor de seus informes, persistem até a atualidade, tendo em vista que há um
recorte do objeto de estudo. Adepta desse princípio, Hildegardes Vianna, ao focar em suas
crônicas as primeiras décadas do século XX, termina por enevoar o avanço industrial que
impulsionou a Bahia nos primeiros anos da década de 1950, uma vez que, segundo a cronista,
“o avanço é um inimigo do folclore”.
De forma contrária, a proposta de Canclini e Martín-Barbero é que as novas narrativas
tenham uma configuração menos essencialista e que permitam a vivência de diversas
identidades culturais e não apenas um conjunto de referências estáveis e estereotipadas. Os
estudiosos propõem que se compreenda a cultura popular por nova perspectiva, em que o
moderno pode coabitar com o tradicional, a comunidade pode coexistir com a sociedade. Não
há uma anulação de uma modalidade antiga para a substituição de uma outra e sim uma
realidade que permite que diferentes temporalidades ocupem o mesmo espaço e estas possam
ser vivenciadas concomitantemente pelos agentes sociais.
Hildegardes Vianna, em 1981, ainda apregoa, em seus estudos sobre a cultura popular,
que é praticamente impossível identificar a origem do folclore baiano, devido à presença de
inúmeros elementos de etnias diversas, isto é, não poderia se especificar se a cultura foi
herdada dos brancos ou negros. Para a folclorista, o povo baiano se constitui basicamente da
cultura européia ao tempo em que considera que a contribuição africana, em conjunto, é
menor que a do índio, mesmo na cidade de Salvador, onde os negros têm uma presença
marcante. Segundo a cronista:

A tendência do negro em adotar novos hábitos, integrando-se no meio


ambiente, o repatriamento de antigos escravos e seus descendentes após
Abolição, a luta contra o preconceito racial, a repressão policial e outros
fatores determinaram o enevoamento de certos traços de influência africana.
O dócil negro sudanês, em geral, pouco ou quase nada deixou ao folclore,
absorvendo-se ou adaptando-se à cultura do branco [...] Os bantos,
entretanto, congos, moçambiques e, principalmente, os de Angola, por sua
natureza irrequieta, deixaram marcas mais profundas: a roda de samba, a
capoeira, a congada, o bate-pau. A mulher negra foi a companheira do
branco, criando seus filhos, imperando na cozinha [...] (VIANNA, 1981,
s/p. grifos nossos).

Encontra-se presente no artigo a idéia de “docilidade” como um estereótipo em que o


grupo dos sudaneses foi incapaz de produzir cultura e só lhes coube a possibilidade de
assimilar o conhecimento do branco, identificado como o responsável pela criação e
recomposição da cultura popular. Nessa perspectiva, é reforçada a visão exotizante e
discriminatória de que os negros só haveriam contribuído com a preservação do panorama
lúdico, aprendendo e conservando folguedos brancos e jogos da sorte que teriam desaparecido
se não fossem assimilados. Já as mulheres negras são vistas como “companheiras do branco,
criando seus filhos, imperando na cozinha”, reforçando a idéia de subalternidade, passividade
e dominação.
Contrariando as idéias de Hildegardes Vianna, a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro
afirma que “o espaço africano é a matriz mais importante na configuração do perfil da
nacionalidade brasileira, no que pese a ancestralidade de seus povos indígenas e a densa
influência, neste século, de imigrantes europeus e asiáticos no Sul do país”. (CASTRO, 2006,
s/p.).
O folclorista Renato Almeida (1968), no artigo O folclore negro no Brasil, para
Revista Brasileira de Folclore, também reconhece a importância das contribuições africanas
para o folclore brasileiro:

As contribuições africanas para o folclore brasileiro foram inúmeras,


variadas e diferentes. Em todas as manifestações do nosso folclore, quer na
cultura espiritual, quer na material, a presença do negro é constante. Eis
porque se deve considerar a participação do negro no folclore brasileiro
como elemento constitutivo e não contribuinte. Assim, é incontestável o
valor da contribuição do negro, não só nos contos, mas em tantos outros
setores da literatura oral. (ALMEIDA, 1968, p. 105-106).

E ainda continua:

O negro fecundou todo folclore brasileiro. Fecundou nos ritmos, nos


coloridos, na religiosidade, na densa carregação da magia, na variada
coreografia, no bater dos tambores e no percutir de instrumentos, nas
comidas saborosas e apimentadas, nas manifestações de sua arte, no traje
espetacular da baiana nos cortejos e nas embaixadas dramáticas, nas
histórias que as mães pretas contaram e ajeitaram. (ALMEIDA, 1968, p.
117).

O pesquisador alagoano Arthur Ramos (2007) também atesta a importância do negro


no folclore brasileiro em seus estudos sobre O folclore negro no Brasil. O teórico identificou
que “os sudaneses, como os iorubanos e os jejes, introduziram criações mitológicas bem
adiantadas e que se emparelham com velhos mitos da humanidade.” (RAMOS, 2007, p. 9).
Para Ramos, a mitologia sudanesa é riquíssima e exerceu muita influência no Brasil.
De acordo com a sua pesquisa, os contos africanos que exerceram influências no
folclore brasileiro reconhecem várias gêneses. O primeiro grupo se constitui de contos que
apresentam entidades mitológicas, antepassados, heróis criadores, civilizadores e
transformadores. O segundo grupo engloba elementos “totêmicos”, figuras de animais heróis
e animais deuses. A terceira categoria é a dos contos com mensagens de moralidade, meio
lendário, refletindo preocupações e anseios da comunidade em que os griot31 estavam
inseridos.
Os negros também contribuíram na dança e na música. De acordo com a pesquisa
realizada por Ramos (2007), a dança e a música que os africanos introduziram no Brasil
tiveram uma “origem religiosa e mágica”. Surgiram dos templos fetichistas e dos cerimoniais,
rituais da vida social. “A música e poesia, intrinsecamente ligadas ao gesto e à dança, saem de
encantação mágica, nos ritos religiosos e sociais.” (RAMOS, 2007, p. 103). Além dessas
modalidades, os negros africanos deixaram o legado do samba, do batuque e do samba de
roda.
Dessa forma, vale destacar que antes mesmo de Hildegardes Vianna defender a idéia
de que o negro não contribui significativamente para o folclore brasileiro, o pesquisador
Arthur Ramos já apresentava as contribuições significativas do negro para a cultura brasileira.
Dessa forma, se avançar na questão e aproximar os estereótipos de negras construídos pela
cronista-folclorista ao contexto histórico, em que situa suas histórias, período que teóricos
como Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Euclides da Cunha acreditavam que a presença do
negro no Brasil inviabilizava a civilização branca, pois esse era tido como sinônimo de atraso
e que a solução para o desenvolvimento da nação estava na uniformização de uma raça pura,
pode-se imaginar as seqüelas que tais idéias imprimiram na população afro-baiana, uma vez

31
Griot é um termo francês utilizado pela mitologia ioruba para designar o contador de história, o responsável
por transmitir o conhecimento à tribo.
que, ao negar a humanidade ao indivíduo, impede-o de desenvolver um senso de dignidade
humana.
O certo é que os povos de matriz africana não foram responsáveis somente pelo
povoamento do território brasileiro e pela mão-de-obra escrava. Marcaram e marcam, de
forma irreversível, a formação social, histórica e cultural do Brasil, estando presente em quase
todos os movimentos sócio-políticos que se desenrolaram no país. São responsáveis pela
adequação de técnicas pré-capitalistas, aplicadas na mineração, agricultura, cerâmica,
nutrição, metalúrgica e estratégias de construção, assim como na elaboração do português
africanizado e da religião com sua cozinha sagrada e seus princípios filosóficos.
Desse modo, Hildegardes Vianna deixa como herança textos repletos de uma visão
machista, racista e segregadora da elite baiana. Como mulher branca e representante da “nata”
da sociedade soteropolitana, a cronista observa das sacadas do sobrado onde habitava o ir e
vir das negras pelas ruas de Salvador. E é justamente com esse “olhar de superioridade” que
as representa de forma estereotipada. Lança-se nos textos um véu sobre a vida social e pessoal
das negras, representadas como mão-de-obra barata. Imagens modeladas por uma gama de
preconceitos, encobertos por eufemismos que contornam o discurso maleável da cronista.
Assim é que os textos de Hildegardes Vianna que apresentam as mulheres negras estão
repletos de traços legitimadores de preconceitos existentes na sociedade soteropolitana
ligados à cor da pele, às feições do rosto, ao tipo de cabelo, ao lugar que a população negra
deve ocupar no mercado de trabalho e a uma gama infindável de elementos que desqualificam
ou desmerecem o indivíduo. O modo pelo qual destaca e se refere a esses traços fortalece
argumentos sobre a pretensa inferioridade dos africanos e de seus descendentes.
CAPÍTULO II

A BAHIA JÁ FOI ASSIM: UM RETRATO EM “PRETO E BRANCO”


___________________________________________________________________________

Nas sacadas dos sobrados, da velha São


Salvador há lembranças de donzelas, do
tempo do Imperador.
Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer
bem a Bahia tem um jeito que nenhuma
terra tem!

Dorival Caymmi32

No final do século XIX, com a decadência do mercado da cana-de-açúcar, a Bahia,


grande produtora da especiaria, parecia, sob muitos ângulos, uma cidade paralisada, tanto que
nas primeiras décadas do século seguinte foi considerada a capital brasileira que apresentou as
menores taxas anuais de crescimento populacional. 33
Segundo Risério (2004), o declínio na demanda externa do açúcar implicava na queda
da demanda interna dos produtos industrializados. Tendo em vista que a cidade do Salvador
possuía umas poucas fábricas que se concentravam na produção de tecidos grossos para vestir
escravos e ensacar mercadorias, por conseguinte atrelada à cultura da cana-de-açúcar, a
decadência da exportação conduziu a Bahia ao desmantelamento progressivo do nascente
parque industrial.
As fábricas baianas estavam subordinadas ao comércio e ao movimento de
exportação/importação, sustentado, principalmente, pelo açúcar e o fumo, ou pelo algodão e
cacau. Assim, Risério (2004, p. 463), com muita propriedade, explica: “[...] as empresas
baianas manufatureiras não se expandiram por conta do nosso próprio sistema econômico, que
era estruturalmente agrário-mercantil.”
32
Estrofe da música Você já foi à Bahia? A música foi lançada pelo compositor baiano Dorival Caymmi em
1941. A letra da música possibilita interpretar que a descrição feita é da cidade de Salvador chamada de “Bahia”.
Segundo Pierre Verger (1999), o nome “Bahia” tem sido utilizado tanto por brasileiros como por estrangeiros
para se referir à cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos, a capital do estado da Bahia. Devendo seu
nome à baia em torno da qual se localiza o Recôncavo, bem como à data de todos os santos, quando foi
descoberta e batizada pelos portugueses em primeiro de novembro de 1501, a cidade que aí cresceu tornou-se
conhecida como Bahia. Tanto para aqueles que vivem no interior do estado, quanto para aqueles que vivem no
exterior do país, Salvador tornou-se intencionalmente conhecida como “Bahia”. Baseada nessa designação
previamente estabelecida, toma-se nessa dissertação de mestrado a liberdade de utilizar o nome “Bahia” para
referir-se a Salvador.
33
Risério (2004) informa que os recenseamentos oficiais demonstram que, de acordo com a realidade
demográfica da Bahia entre 1920 e 1940, o crescimento populacional foi de 0,2%.
Outro fator preponderante contribui para o desânimo que assolava a Bahia. O governo
federal deixa o estado de fora do impulso industrial que se deu na nação com o advento da I
Guerra Mundial. Nessa época, a industrialização brasileira avançou significativamente,
principalmente pela impossibilidade de continuar importando produtos de países que estavam
envolvidos com a guerra.
Em 1920, o surgimento da Siderúrgica Belgo-Mineira e da Companhia de Cimento
Portland, em São Paulo, marca uma nova fase brasileira, com o governo envidando maiores
esforços para a industrialização do país e superação dos entraves ao crescimento industrial. 34
No entanto, as iniciativas ficaram restritas ao eixo sulista.
O quadro se agravou mais ainda entre as décadas de 1920-1940, período que balizou o
momento em que a depressão baiana foi mais profunda. No período do Estado Novo, da
ditadura de Vargas, a Bahia vivia um ostracismo industrial, com uma política econômica que
não beneficiava a elite baiana, e quando o governo federal passou a dar prioridade às
atividades que estavam fora do universo econômico da região. Antônio Risério, ao descrever a
Revolução de 1930, explicita o motivo que levou o presidente a boicotar o estado baiano:

[Carlos] Prestes bateu Getúlio Vargas na disputa presidencial. Mas a


oposição, em movimento armado, reunindo os políticos tradicionais da
Aliança e os tenentes, impediu a posse do presidente eleito e a de seu vice, o
baiano (e governador da Bahia) Vital Soares. Esse processo político-militar,
que acabou conduzindo Getúlio Vargas ao poder, ficou conhecido como a
‘Revolução de 30’. Começava a morrer ali, naquele ano, a velha estrutura
republicana brasileira. E tinha início a ‘Era Vargas’, que passaria pela
implantação da ditadura do ‘Estado Novo’ (uma variante tropical –
atenuada – do fascismo europeu), para se estender até 1945. (RISÉRIO,
2004, p. 484).

Dessa forma, descortina-se o mistério que fazia com que Vargas esquecesse
economicamente a Bahia. A elite política baiana era anti-Vargas. Afinal, se não fosse o golpe,
Vital Soares, que renunciara ao governo da Bahia a fim de ser vice de Carlos Prestes, teria se
tornado vice-presidente do Brasil e o estado não ingressaria no marasmo econômico.
Fragilizada pela ausência de recursos financeiros, a classe dominante soteropolitana parecia
simplesmente perdida. Vivia numa região potencialmente riquíssima, mas carente em
transporte, energia e mergulhada no desprestígio político, com o Governo Federal exercendo
uma política fiscal de refração.

34
De acordo com o antropólogo Antônio Risério (2004), a carência de uma indústria de base foi um dos maiores
entraves para o desenvolvimento industrial do país.
Se comparada ao século XIX, pode-se afirmar que a estrutura urbana de Salvador
permaneceu inalterada nos primeiros anos do século XX. Assistiu-se, do decorrer do período,
ao melhoramento de algumas ruas, muitas vezes patrocinadas por particulares; introdução de
alguns serviços de transportes, asseio e limpeza, iluminação e distribuição de água, mas nada
de muito significativo que representasse uma mudança substancial na estrutura da cidade.
Quanto à arquitetura, persistiam as fachadas dos casarões senhoriais, com estado precário de
conservação, que se associavam à insalubridade e má conservação do centro comercial da
cidade.

Figura 2 - Pelourinho em 190035

De acordo com reportagens do periódico O Diário de Noticias36 (31/01/1912), outro


aspecto que caracterizava as ruas da cidade era a estreiteza e a topografia do terreno
acidentado. Realizava-se a construção de moradias de acordo com a vontade do executante,
sem nenhuma preocupação com a circulação, fosse do ar, da luz ou dos transeuntes. Criavam-
se assim ruas mal calçadas e estranguladas, com pouca luminosidade e ventilação. A partir
dessas descrições, observa-se que a vida na cidade não era tão fácil, com ruas estreitas e
insalubres, ameaça constante de epidemias e endemias e os ineficientes serviços de
transportes e saneamento urbanos.
Em 1912, a aristocracia ficou esperançosa com a primeira fase do governo de J. J.
Seabra, pois seus planos de reformas civilizadoras, progressistas e modernizadoras,

35
Fotografia retirada de http://www.wikipedia.org.
36
Fundado em Salvador em 1875, O Diário de Notícias na década de 1910 tornou-se o jornal de maior tiragem e
circulação da cidade.
prometiam uma Salvador próspera. O Diário de Noticias traz o depoimento sobre a
expectativa com as eleições 37:

O povo da Bahia sempre viveu desiludido, nada esperou dos seus homens
dirigentes, nada esperou das suas administrações. Nessa apathia, nesse
torpor, nessa descrença, veio elle, o povo dessa grande terra até que se deu o
momento reacionário. Todas as armas foram empregadas, todos os esforços,
todas as energias: a imprensa, a tribuna, o comício popular, a barricada, os
combates nas ruas. Afinal venceu. Sem sangue, sem desordem, sem
arruaças, foi eleito, estrondosamente eleito, a 28 do mês expirante, o Dr. J.
J. Seabra, o bahiano ilustre, o bahiano honesto, o bahiano benemérito, que
muito há de fazer pela sua terra, como já tem feito, aliás. (DIÁRIO DE
NOTÍCIAS, 31/01/1912).

Tão profunda empolgação, demonstrada no texto, expressa, segundo o jornal, a


esperança que “o povo da Bahia” depositava ao governo de J. J. Seabra. No entanto, baseado
no reformismo urbano carioca, o urbanismo seabrista foi predatório. Tendo como meta
dinamitar o Centro Histórico e erguer sobre as ruínas uma cidade moderna, iniciou a ofensiva
demolidora com a derrubada da Sé da Bahia, pois acreditava que a demolição da igreja
resolveria o problema de tráfego.38 Insurgiu nessa fase uma luta contra os sombrios e
decadentes casarões coloniais, as ruas estreitas e insalubres, a ameaça constante de epidemias
e endemias, os ineficientes serviços de transportes e saneamento urbanos. Acrescentava-se a
essa etapa liberar as ruas da predominante tez escura da população, dos costumes
africanizados largamente difundidos e da "licenciosidade" das mulheres pobres. Higienizar o
espaço público era tarefa que exigia novos padrões de sociabilidade, com vistas à
reorganização radical da família, do trabalho e dos costumes. Nessa perspectiva, o projeto de
reforma urbana tinha como objetivo melhorar a qualidade de vida da população e preparar o
espaço público para o livre tráfego das “famílias de bem”.39
Dentro dessa conjuntura, Donald Pierson (1945) ratifica que a Bahia teve poucas
mudanças sociais com a chegada do século XX. De acordo com esse sociólogo, até a chegada
de 1940, Salvador,

37
J. J. Seabra foi ministro da Justiça de Rodrigues Alves, quando ele realizou a reurbanização do Rio. Eleito
governador da Bahia, transplantou para cá a experiência carioca, influenciada por Paris.
38
Segundo Risério (2004), a Sé foi um monumento histórico. A construção da Igreja da Sé da Bahia era dos fins
do século XVI, período da construção de Salvador.
39
Mais informações sobre a reforma seabrista, consultar FILHO, Alberto Heráclito Ferreira. Desafricanizar as
ruas: elites letradas, mulheres pobres e cultura popular em Salvador (1890 – 1937). Afro-Ásia nº21, 1998, p.
239-256.
[...] cidade velha, bem consciente e orgulhosa de suas antigas tradições,
com o comportamento costumeiro, que originalmente desenvolvera em
respostas às necessidades da vida colonial, ainda persistia orientando a vida,
quase pelos mesmos e familiares caminhos. [...] Salvador tinha sido, há
muito tempo, uma cidade relativamente isolada; o isolamento intensificou
as relações pessoais e, assim, promoveu o desenvolvimento de costumes
locais, em resposta às circunstâncias e condições particulares. (PIERSON,
1945, p. 94).

Para Pierson, a Bahia, até 1940, era uma área “culturalmente passiva”, onde existia
uma estabilidade e uma ordem que lembrava a Europa da Idade Média. Em cada ponto da
cidade, dominava uma igreja, não havia prédios modernos de escritórios, nem edifícios
industriais. A igreja exercia sobre a população um relativo controle, além de o prestígio
militar ser elevado. As famílias constituíam-se como um grande símbolo de uma sociedade
pré-industrial, com sua organização patriarcal, em que o homem mais velho era o chefe da
casa e todos lhe deviam obediência.
Nesse contexto, em que as forças tradicionais definhavam e a Bahia presenciava, com
a abolição da escravatura, o lançamento sobre o mercado de trabalho de um forte contingente
de população trabalhadora livre, que disputava emprego, as elites baianas tornam-se
intolerantes e fecham-se dentro de um esquema de estratificação rígida, que adota como linha
de demarcação a cor da pele. De um lado, os senhores brancos, do outro, os negros pobres.
Assim, Hildegardes Vianna recorda uma época em que a distribuição da população da
cidade se dava por grupos étnicos e a sociedade aristocrática preservava lugares e posições
demarcadas para a população negra. Segundo Pierson (1945), ao longo das elevações, na
cidade de Salvador, hoje identificada como Cidade Alta, situavam-se as ruas principais, com
as mais importantes linhas de transportes (bondes, ônibus e automóveis). No que tange à
facilidade de acesso, eram os lugares mais convenientes para residências, ali se encontravam
as casas das classes superiores, os descendentes da velha aristocracia, os grandes
proprietários, os intelectuais da cidade, os médicos, os advogados e políticos. Essas famílias
possuíam inúmeras propriedades e muitos empregados.
Os vales, Cidade Baixa, eram os lugares das residências menos confortáveis. Ali, o
calçamento desaparecia e os moradores utilizavam-se de trilhos, onde, após a chuva, a argila
vermelha aparecia e tornava-se escorregadia e perigosa. Nesses locais, viviam as classes
sociais inferiores, ou seja, de baixo poder aquisitivo. As habitações eram simples, casebres
constituídos por uma armação de madeira recoberta de barro, com chão de terra, recoberto
com areia fresca da praia. O teto era na maioria das vezes feito com folhas de palmeiras. A
mobília constituía-se de bancos ou tambores rudimentares, às vezes uma cadeira barata e
esteira para dormir. O fogão era feito de lata de óleo sem fundo, nem tampa. Sobre os
habitantes dessas residências, Pierson descreve:

[...] homens, mulheres e crianças de todas as idades, a maior parte descalça


ou calçando simples tamancos, trazendo muitas vezes na cabeça, com
facilidade, cestas ou bandejas de doces, frutas, legumes ou flores para o
mercado, grandes trouxas de roupa para serem lavadas em um lago
próximo, latas de Standard Oil cheias de água, jacas, melancias, cachos de
banana, sacos de farinha de mandioca; [...] De aparência notável eram as
baianas que passavam – pretas altas e graciosas, acostumadas desde a
infância a carregar com facilidade grandes pesos na cabeça [...] (PIERSON,
1945, p. 102, grifos nossos).

A partir dessa descrição, pode-se inferir que os moradores dos bairros pobres da
cidade de Salvador se constituíam, na sua maioria, por negros e, como define Pierson, por
“pretas altas e graciosas”, “de aparência notável”, enquanto os lugares mais agradáveis e bem
localizados, que ficavam na parte alta da cidade, eram ocupados pela elite soteropolitana,
constituída de brancos. Pierson ainda afirma:

[...] os brancos e os mestiços mais claros ocupavam os altos da cidade, que


eram mais confortáveis, saudáveis e cômodos, onde, portanto, os imóveis
eram mais caros; ao passo que os pretos e os mestiços mais escuros
residiam geralmente nas áreas baixas, menos convenientes e saudáveis, bem
como nas áreas afastadas, menos acessíveis, onde, portanto, os imóveis
eram mais baratos. Em outras palavras, os ‘altos’ dos ricos correspondiam,
em geral, às áreas residenciais dos brancos e dos mestiços mais claros,
enquanto que os vales dos pobres e as regiões adjacentes correspondiam,
em grande parte, às áreas residenciais da parte mais escura da população.
(PIERSON, 1945, p. 105).

Nesse contexto de desigualdades, não é de se surpreender que os negros se


concentrassem nos empregos de baixo status e de pequeno salário, enquanto os brancos
atuavam em trabalhos de uma escala superior, com remuneração que lhes garantia manter um
padrão de vida satisfatório.
A partir desse breve panorama, constata-se que a vida da população negra, na cidade
de Salvador, na primeira metade do século XX, não era das mais fáceis. Isso se devia aos
princípios tradicionais do tempo da escravidão, que ainda permeavam as relações na cidade
soteropolitana, definindo desigualdades sociais e raciais, forjando valores, etiquetas de mando
e obediência.
Acredita-se que o trabalho escravo foi determinante para estabelecer regras de
convivência entre brancos e negros. A propósito do tema, Hildegardes Vianna escreve a
crônica Antigamente gente de cor (19/03/1968), um retrato significativo de como se davam as
relações inter-raciais na Bahia. Logo ao iniciar o texto, descreve a situação da população
negra com um verso pejorativo que habitualmente era declamado pela elite soteropolitana:
“Branco, branco na janela/ Mulato no corredor/ E negro no Cagador.” E continua: “[...] no
século passado e em boa parte do atual, o negro era massacrado, espezinhado, reflexo natural
dos tempos da escravidão”.
Na crônica, expõe-se a banalização do racismo, reduzindo-o à esfera de meros
preconceitos da sociedade ou “reflexo natural da escravidão”. A idéia de subestimação do
racismo objetiva criar a impressão de que tudo vai bem na sociedade, imprimindo um caráter
banal às distorções socioeconômicas entre as populações de diferentes etnias. Ao mesmo
tempo, legitima a posição social ocupada pelas elites soteropolitanas.
Essa incapacidade de perceber a discriminação racial existente no Brasil tende a
reforçar um tipo de racismo camuflado e não assumido de uma sociedade que, querendo-se
parecer harmônica e democrática, não pode esconder que lida mal com a cor que tem. Por
esse motivo, as imagens depreciativas sobre os negros precisam ser reiteradas por estereótipos
que asseguram aos não-negros as qualidades negadas aos “de cor”.
Tal idéia é reforçada quando Hildegardes Vianna, ainda na crônica, descreve que
“gente de cor” (aqui entendida como negra) tinha que reparar e tomar cuidado com o modo de
pisar, de falar, de proceder na casa alheia. Se fosse casa de rico, o cuidado tinha que ser
maior. Não era hábito se posicionar em frente de uma pessoa da elite de cor branca, mesmo
sendo convidado:

Gente de cor, normalmente pobre, a não ser que fosse mal educada ou
mal compreendida, não se sentava na frente de uma pessoa de situação
superior à sua, ainda que estivesse doente e fosse convidado com insistência
a tomar assento. Mesmo quando incitado, desfazia-se em desculpas,
relutando se devia ou não obedecer às pernas que pediam descanso ou ao
que era determinado pela convenção social. (VIANNA, A Tarde,
19/03/1968, grifos nossos).

Na crônica Antigamente gente de cor chama atenção o destaque dado pela cronista ao
identificar que o status econômico ocupado pelas pessoas negras “normalmente é pobre”. A
autora também afirma que o branco que não tivesse condições financeiras favorável passava a
pertencer à mesma categoria do negro. “O branco pobre, socialmente nivelado ao negro, não
raro se tornava subserviente, humilhado, como se a pele clara fosse uma sobrecarga.” Assim,
de acordo com Hildegardes Vianna, a discriminação ultrapassava a questão racial.
A crônica ainda expõe as relações étnico-raciais, em que os negros também evitavam
intimidades com os brancos de categoria “superior”, pois, conforme ensinamento de seus
ascendentes africanos, o negro tinha de se respeitar e apresentar noção de dignidade, exceto se
fosse “mal educado” ou “mal compreendido”. Se havia pessoas que se vangloriavam de nunca
ter apertado uma mão de “gente de cor”, não haveria motivos para que os negros
dispensassem atenção aos brancos.

[...] negro que se assuntasse evitava maiores expansões ou intimidades com


os brancos de categoria superiores. Conforme o ensinamento dos mentores,
o negro precisava saber guardar conveniências, por que negro que não se
assuntava era negro duas vezes. (VIANNA, A Tarde, 19/03/1968, grifos
nossos).

O termo “se assuntasse” pode ser entendido que o negro deveria manter-se em seu
lugar e aceitar a inferioridade. Hildegardes Vianna afirma que, mesmo mantendo os valores,
os descendentes de africanos que trabalhavam em casas de família, logo após a saudação de
entrada, deveriam seguir direto à cozinha, nas pontas dos pés, para de lá só sair em
atendimento a chamados ou prestar algum serviço subalterno. Já na porta da rua tirava os
chinelos e colocava-os entre os dedos com as mãos escondidas nas costas, por constituir falta
de respeito permanecer de pés calçados em frente de senhores e senhoras de “consideração”.
A atitude de não retirar os sapatos era inadmissível na época, visto que estar calçado
sinalizava uma marca de emancipação. Logo, poderia ser interpretado como ausência de
submissão aos proprietários das residências.
Vale destacar que no Brasil colonial e imperial os sapatos eram proibidos para os
cativos. Assim, algumas imagens do período mostram, no exemplo mais típico dessa situação,
africanos vestidos com luxo e colorido, porém descalços, segurando cadeiras de arruar.40 Esse
aspecto parece ter sido uma das últimas barreiras a serem transpostas pelos que conseguiam
ascender socialmente. Quando se tornavam livres, podiam usar sapatos. Com as mulheres, o
rigor era menor. Algumas podiam usar chinelas de couro, baixa e cobrindo as pontas dos
pés.41

40
As cadeiras de arruar eram um meio de transporte usado pelos senhores de engenho na época colonial. Estes
se sentavam em uma cadeira e eram carregados pelos escravos.
41
Raul Lody (2003, p. 28) atribui origem muçulmana a essa chinela outrora comum, que se caracteriza como “
chinelos de pontas de couro branco, couro lavrado, o chamado changrim”.
As “mulheres de cor” só tinham destaque nos funerais ou cerimônias católicas de
batismo, por terem servido com devoção a certas famílias e terem se tornado amigas antigas.
Hildegardes Vianna explica:

As mulheres de cor, nos dias de enterro, integravam o cortejo fúnebre,


carregando as bandejas de flores ofertadas ao defunto. Nos batizados eram
convocadas para segurar a criança. Se era uma pessoa muito dedicada e de
muitos préstimos, era tomada como madrinha de apresentação42.
Compreenda-se, entretanto, que esse compadrio não queria dizer que suas
regalias aumentassem ou suas restrições diminuíssem. Comia na cozinha e
nunca passava da copa nos dias de gala. (VIANNA, A Tarde, 10/03/1968).

Sobressai-se na crônica a explicação sobre o distanciamento que deveria ser mantido


entre negros e brancos, mesmo quando esse “merecia” um destaque no espaço familiar em
que trabalhava. A demarcação do espaço geográfico residencial que as negras deveriam
ocupar (a cozinha ou a parte dos fundos da casa) apresenta-se no texto como uma fronteira
entre brancos e negros.
Na crônica Reminiscência de negra velha (13/05/1955), Hildegardes Vianna apresenta
uma negra nonagenária, filha de “carigés”, que descreve como o negro era tratado.43 O leitor
atento observa que autora atribui à senhora comentários indicadores de que a população negra
vivia um momento de igualdade racial:

Quem é que diz que essas negrinhas, minhas parceiras, parceiras delas
mesmas, são netas de ‘Carigés’? Está tudo vivendo feito gente. No meu
tempo de negrinha, negro era escravo da velha, filho de porco que não
suspendia os olhos do chão. [...] No meu tempo negro se enterrava na
Massaranduba, onde os caranguejos roíam os defuntos antes da missa do 7º
dia . Negro agora é gente. Agora é que deviam festejar o 13 de maio. Agora
que acabou o cativeiro. (VIANNA, A Tarde, 13/05/1955).

Destaca-se no trecho a atenção dada pela cronista à frase da senhora negra: “Negro
agora é gente”. Tem-se o conhecimento de que no período de publicação da crônica, 1955, a
população negra já tinha adquirido algumas conquistas, como liberdade para se locomover
para onde bem desejasse e direito a freqüentar a escola. No entanto, no Brasil, o negro ainda
estava distante de gozar de todos os direitos de um cidadão livre.
Sobre a inferiorização do negro apresentada na crônica, é imprescindível entender que,
durante a segunda metade de século XIX, as teorias raciais deterministas chegam ao Brasil,

42
Segundo Hildegardes Vianna (1971), a madrinha de apresentação é a mulher que representa um dos padrinhos
na cerimônia do batismo, quando este não pode comparecer.
43
“Carigés” é a denominação empregada para definir no período da escravidão os escravos libertos.
difundindo a idéia de que os negros e indígenas pertenciam a uma categoria inferior aos
brancos e que os primeiros eram incivilizáveis, logo, não pertenciam ao grupo dos seres
humanos. Lílian Schwarcz esclarece:

Modelo de sucesso na Europa de meado dos oitocentos, as teorias raciais


chegam tardiamente ao Brasil, recebendo, no entanto, uma entusiasta
acolhida, em especial nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e
pesquisa, que na época se constituíam enquanto centro de congregação da
reduzida elite pensante nacional. As teorias raciais seriam um reflexo das
doutrinas utilizadas pelos ideólogos do imperialismo, justificando o
domínio europeu sobre os demais povos. (SCHWARCZ, 1993, p. 14).

A análise de Renato Ortiz acerca da disseminação das teorias raciais no Brasil também é
relevante:

O que surpreende o leitor, ao se retomar as teorias explicativas no Brasil,


elaboradas em fins do século XIX e início do século XX, é a sua
implausibilidade. Como foi possível a existência de tais interpretações, e,
mais ainda, que elas tenham se alçado ao status de Ciências. A releitura de
Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues é esclarecedora na
medida em que revela esta dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa
surpresa, por que não um certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas
origens. A questão racial tal como foi colocada pelos precursores das
Ciências Sociais no Brasil adquire na verdade um contorno claramente
racista [...] (ORTIZ, 2003, p. 13).

Assim, mesmo após 1870, fase em que as teorias chegaram ao Brasil, as idéias racistas
permaneceram presentes no universo soteropolitano. Em 1933, Nina Rodrigues (apud
SCHWARCZ, 1993, p. 208) foi um dos responsáveis por disseminar essas teorias na Bahia,
defendendo que “os grupos negros eram considerados em seu conjunto e em nome da
imparcialidade da ciência um impedimento à civilização branca, ou melhor, um dos fatores de
nossa inferioridade como povo”.44
Segundo Schwarcz (1993), Nina Rodrigues, aceitando a premissa básica do racismo e da
superioridade da raça branca, defendia a idéia de que os não-brancos ameaçariam a
civilização, pois o atraso psíquico dos negros, que ainda não haviam ultrapassado o estado

44
Segundo Schwarcz (1993), Nina Rodrigues, através do estudo de crânios, defendia a idéia de que os negros e
os indígenas pertenciam à categoria dos seres inferiores. O negro tenderia à loucura, à paranóia e ao crime
devido à presença de caracteres retrógrados no cérebro. Fundador da “Escola Nina Rodrigues”, dentro da
Faculdade de Medicina da Bahia, congregou um núcleo de médicos responsáveis pela instalação da medicina
legal no Brasil. Os profissionais que integravam a “Escola Nina Rodrigues” defendiam que a raça ou o
cruzamento racial explica a criminalidade, a loucura e a degeneração.
infantil da humanidade, aproximava-os dos animais. Antes de Schwarcz, Pierson já
denunciava em seu livro alguns pensamentos racistas de Nina Rodrigues:

Em 1900, aproximadamente, Nina Rodrigues, conhecendo intimamente


certos africanos na Bahia e impressionado pelo passo vagaroso com que
eles e seus descendentes estavam abandonando as formas culturais africanas
e sendo assimilados ao mundo branco, e, também influenciado em grau
considerável por estrangeiros, levantou com toda seriedade a questão da
incapacidade do negro para se adaptar às civilizações de raças superiores.
(PIERSON, 1945, p. 254).

As idéias desse pesquisador e médico maranhense, que primavam em atestar a


incivilidade da população negra, desdobraram-se em outros conceitos racistas a partir de
traços fenotípicos. Essas apreciações associavam os corpos dos negros às trevas e à escuridão
por apresentarem a cor da pele escura. As linhas do rosto, tidas como grosseiras,
representariam supostamente o caráter e o comportamento também tidos como rudimentares e
atrasados. Assim, os ex-escravos são excluídos não apenas por terem ocupado a posição
degradante de escravos, mas porque são considerados, pelos discursos científicos, inferiores,
incapazes e responsáveis pelo atraso do país diante das nações européias brancas.
Essa visão discriminatória do negro está endossada na crônica O feio da raça, em que
Hildegardes Vianna inicia o texto com um comentário preconceituoso de Afrânio Peixoto. 45
O acadêmico declara o receio de que o alisamento eliminasse o torço da baiana e que o feio da
raça negra ou mestiça era o cabelo e não a cor. Os comentários racistas da autora prosseguem,
citando seu pai, Antônio Vianna, que enumerou depreciativamente os apelidos das cabeças
“portadoras de carapinhas”: “Cabeça seca, cabeça fria, cabeleira de xoxô, cabelo de romper
fronha, cabelo de perder missa, cabelo amoroso ao casco, cabeleira de sebo, cabeleira
teimosa, etc”. 46 (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969).
Hildegardes Vianna considera o cabelo crespo um problema que não pesava tanto aos
homens, pois poderiam cortá-lo, deixando-o rente ao couro cabeludo. No entanto, os homens
que conservassem os cabelos compridos eram tidos como desordeiros, que faziam uso da
cabeleira para guardar as armas do delito. Assim, a primeira providência da polícia, ao
prendê-los, era raspar os cabelos para verificar o que havia dentro. Os meninos negros tinham
pavor de ter as cabeças raspadas para não serem confundidos com ladrões.

45
Afrânio Peixoto (Júlio A. P.), médico legista, político, professor, crítico, ensaísta, romancista. Terceiro
ocupante da Cadeira de número 7 (sete) na Academia Brasileira de Letras, eleito em 7 de maio de 1910, na
sucessão de Euclides da Cunha.
46
Xoxô - óleo retirado da amêndoa do coco dendê.
O cabelo duro, para o homem de cor, não pesava tanto, a ponto de se
transformar em um problema. Bastava cortar o cabelo bem rente ao casco.
Só os mandiguerotes, ladrões, desordeiros, malandréus ou que nome
tivessem, cultivavam uma vasta gaforrinha, sem complexos de espécie
alguma. O verdadeiro matagal de fios duros emaranhados servia para
acomodar a navalha traiçoeira, surgida em momentos críticos, ou algum
cilindro pequeno com pó venenoso destinado a sortilégios. Por isso a
primeira providência da polícia, quando fisgava um marginal, era tirar os
botões de sua calça para evitar a fuga. Em seguida raspar a cabeça para ver
o que é que havia. (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969).
.
Já as mulheres, segundo a autora, não tinham a mesma sorte, uma vez que “os cabelos
eram uma verdadeira cruz”. Se os cabelos eram “fêmeos”, dando para prender, o caso não era
tão grave. Mas se os fios fossem “machos”, às vezes não dava para fazer trança, então tinham
que usar como artifício uma rotina antiga, usada nos tempos da escravidão: um pano na
cabeça para esconder a cabeleira.47
De acordo com a cronista, desde criança começava o martírio das mulheres negras. Se
as meninas tivessem quem cuidasse, mantinham os cabelos arrumados em uma trança nagô,
rente ao couro cabeludo. Já as “catarinas”, crianças responsáveis por executar as mais
variadas funções dentro da casa dos patrões, como não possuíam o privilégio de ter uma
pessoa que tratasse das madeixas, tinham os cabelos “tosados” rentes ao couro cabeludo, uma
exigência do branco para manter a higiene no ambiente doméstico. As “catarinas”, na maioria
das vezes, não eram remuneradas e suportavam o sofrimento de realizarem tarefas impróprias
à idade, em troca de comida e um teto para dormir, pois haviam sido “doadas” pela mãe para
trabalhar como ama-seca ou doméstica.48

As negrinhas e mulatinhas que tinham quem lhes chorassem, ficavam com o


cabelo do tamanho que Deus lhe dera, machos ou fêmeas, acomodados em
trabalhosas trancinhas que emprestavam ao couro cabeludo um aspecto
semelhante ao de uma moderna planta urbana com ruas e vielas. As
catarinas tinham os cabelos tosados totalmente como um João qualquer
[...] (VIANNA, A Tarde, 10/03/1969, grifos nossos).

Algumas mulheres que tinham os cabelos mais crespos sofriam com as trancinhas,
pois tinham que apertar bastante para fixar, chegando a arrancar os cabelos em volta da face e

47
Os termos “macho” e “fêmea” eram empregados para caracterizar os tipos de cabelos das mulheres negras. O
cabelo “macho” referia-se aos fios mais crespos e difíceis de pentear. Já o cabelo “fêmea” apresentava fios mais
maleáveis.
48
Segundo Hildegardes Vianna, a ama-seca na maioria das vezes se constituía de negras que, ao secar o leite,
permaneciam na casa, cuidando da criança branca. Mas no caso da criança branca não ter tido uma “mãe de
leite”, os pais contratavam uma menina negra para realizar a função de ama-seca.
do pescoço, eram chamadas “cabeças roídas”. Para ocultar as feridas no contorno do rosto,
tinha-se uma fita preta larga em volta da cabeça.

O cabelo pelado era uma medida de higiene para evitar a proliferação dos
piolhos e uma forma drástica de evitar perda de tempo. Pentear cabelo duro
era uma maratona para o dono e para o penteador.49 Logo só com a
puberdade, ou pouco além, dependendo da boa vontade da patroa, a
rapariga ensaiava deixar o cabelo crescer. Caso contrário, passavam a usar
um torço, para evitar que presenciassem sua humilhação. (VIANNA, A
Tarde, 10/03/1969).

Ainda na crônica O feio da raça, Hildegardes Vianna emprega palavras que conotam
desumanização, ao comparar o cabelo das negras ao pêlo de animal. O termo “tosados” é
usualmente empregado para se referir ao corte ou apara de pêlos em animais. Evidencia-se,
mais uma vez, a visão depreciativa em relação às negras e sua vinculação a características de
animais.50 Outro aspecto a ser considerado é a identificação das meninas com um “João
qualquer”. A apropriação de tal expressão conota um abandono, um ser sem identidade,
masculinizado, sem família, ou seja, sem importância na sociedade, “um qualquer” que
“depende da boa vontade da patroa”. Produz-se assim, uma invisibilidade da negra na
sociedade.
Esses e outros estereótipos reforçam no imaginário da população que lia as crônicas
uma representação de mulher negra baseado em valores pejorativos, mas que se sedimentam,
a partir de sua repetição, tornando-se assim características usuais quando se trata da definição
dos perfis desses atores sociais. Entretanto, não se pode deixar de destacar que o modo pelo
qual Hildegardes Vianna insere tais figuras em suas crônicas é fruto evidentemente da forma
como essas representações também se afixaram, tanto no seu imaginário quanto no da maioria
das pessoas expostas a essa construção imagística. Para Homi Bhabha, a construção do
estereótipo

[...] é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que


está sempre no lugar já conhecido e algo que deve ser ansiosamente
repetido [...] Como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial

49
O “penteador” é o cabeleireiro que ia pela freguesia arrumando o cabelo das negras que podiam pagar. Eram
os tios da Costa, que cortavam , entrançavam ou aplicavam sanguessugas em caso de doenças.
50
Segundo Roberto Ventura (2000), a teoria das desigualdades raciais se difundiu no Brasil, nas últimas três
décadas do século XIX, junto com os ideários positivistas, naturalistas e evolucionistas. Redefinidas e adaptadas
às condições locais, deram origem a modelos de pensamento que desvalorizam a figura do negro, comparando-o
a animais.
liberdade sexual do africano, que não precisam de prova, não pudessem
jamais ser provadas no discurso. (BHABHA, 2001, p. 119).

O estereótipo funciona como uma simplificação, não é uma falsa representação de


uma realidade, uma forma presa, fixa, que nega a alteridade e recalca as diferenças culturais.
Assim, o primeiro movimento da formação do estereótipo consiste em projetar no Outro tudo
que causa rejeição e repulsa. Bhabha (2001), ao definir o estereótipo como algo que está
sempre no lugar já conhecido e que deve ser repetido, recorre a Freud do Fetichismo e a
Fanon de Pele negra, máscaras brancas, propondo uma explicação para a representação
fetichista do estereótipo, define-o como “um aparato que se apóia no reconhecimento e
repúdio de diferenças raciais, culturais e históricas”. O fetiche e o estereótipo aproximam-se
na “recusa à diferença” (BHABHA, 2001, p. 116).
As questões colocadas por Bhabha permitem entender como são fixados atitudes e
pensamentos recalcados e “defeitos” que passam a traços predeterminados do Outro. Desse
modo, os traços fenotípicos das mulheres negras são associados à feiúra, por não
corresponderem ao padrão socialmente aceito de beleza. Logo, no imaginário da elite branca,
dentro desse contexto de feiúra, um dos lugares que a negra deve ocupar na sociedade é a
cozinha do branco.
A pesquisadora Florentina da Silva Souza (2005, p. 56) afirma que a reprodução
cotidiana de uma representação estereotipada, além de interferir na construção da auto-
imagem, gera uma vivência “neurotizante”, uma vez que, a todo o momento, o indivíduo
precisa estar contestando e lutando contra a imagem de si mesmo, cristalizada no imaginário
da elite e até no seu próprio imaginário.
Pensar em relações raciais focada na mulher negra tem uma dupla especificidade, pois
trata-se de um indivíduo atingido profundamente pelo racismo e pelo sexismo. É nesse
sentido que afirma Lélia Gonzalez: “Para nós o racismo se constitui como uma sintomática
que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com
o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular.” (GONZALEZ, 1983,
224).
É frente a esse plano de análise que essa pesquisa se depara com o texto excludente,
racista e sexista de Hildegardes Vianna, que representa uma identidade feminina marcada pelo
estereótipo de inferioridade e passividade. Negras, mulheres sem nome, destituídas de beleza,
de educação e de racionalidade, estas são as “personagens” das crônicas analisadas.
Reforçando o preconceito e reafirmando os estereótipos sobre o negro a partir do
cabelo, Hildegardes Vianna publica mais uma crônica, Do cabelo duro (17/03/1969):
Para moça de bom cabelo nunca houve problemas, mesmo quando os fios
fossem muito finos ou de contextura pesada, dificultando o penteado. Mas
cabelo duro era diferente, antes de já haver o alisamento, quem tinha cabelo
duro, mesmo abundante, sofria, nem sempre com resignação, uma rotina
antiga herdada dos tempos da escravidão. Era a cabeça amarrada num lenço
para encobrir o cabelo, tivesse o nome de torço ou apenas de pano
amarrado.

Quem andava com o cabelo descoberto tinha seu modo próprio de lavar,
enxugar e lubrificar a cabeleira, depois do que fazia suas mutucas ou
trancinhas, tal como as que tinham cabelo macho.51 Na hora de pentear,
desmanchava tudo, passava e repassava o pente, tornando a dividir a coifa
em quatro partes, que eram acomodadas em quatro tranças enredadas mais
tarde na parte traseira da cabeça. O torço ou pano era então posto bem
apertado, para acamar o penteado, até o momento de sair ou ser exibido. Já
dizem os engraçadinhos que cabelo duro não se cortava nem se penteava.
Acamava-se.

Cabeça amarrada, sem arejar, era prejudicial ao cabelo, da mesma forma


que as trancinhas apertadas de quem tinha cabelo macho. O fio enfraquecia
e caía. Picotar ou cortar as pontas dos cabelos e enfiar no olho do filhote da
bananeira era uma providência acertada. Era uma simpatia para o cabelo
crescer e encher. Esperar a maré de enchente do quarto crescente, para jogar
aparas do cabelo na terceira onda que quebrasse na praia, era também efeito
garantido. Mas nem todas tinham resultado positivo. (VIANNA, A Tarde,
17/03/1969).

A cronista assegura que a negra teria que se resignar com a sua situação e a única
solução era usar um pano na cabeça para ocultar a feiúra dos fios. Nessa perspectiva, são
descritos os artifícios a que essas mulheres recorriam para amenizar o sofrimento de ter
“cabelo duro”. Se o cabelo crespo, na época a que a autora se refere, era visto como mais uma
forma de expor a imagem das negras, o tratamento a ele conferido nas crônicas é importante
para deixar transparente aos leitores a feição assumida pela folclorista.
Dando prosseguimento, observa-se que os comentários difamatórios não ficaram
restritos ao tipo de fio dos cabelos das negras, pois, segundo Hildegardes Vianna, outro
problema enfrentado pelas mulheres negras eram os piolhos e as caspas. Para solucionar a
inconveniência, tentava-se embebedar os piolhos, despejando cachaça ou álcool entre os
cabelos e amarrando a cabeça com um pano grosso. Momentos depois, passavam um pente
fino. Para os piolhos renitentes havia várias fórmulas: pisava-se a folha da cicuta macerada no
álcool, o caroço de pinha posto de infusão na cachaça ou torrado e misturado com azeite de
coco.

51
“Mutucas”, segundo Hildegardes Vianna, são pequenas porções de cabelo bem retorcidas e presas em
miniaturas de coque.
A autora conclui a sua crônica celebrando o surgimento do ferro, uma técnica de
alisamento, que “salvou” a mulher negra do cabelo duro: “Mas o sol nascera para todos. O
ferro entrou em ação”. (VIANNA, A Tarde, 17/03/1969). No entanto, mesmo com o ferro, a
autora destaca que as mulheres negras ainda estavam distantes de alcançar o ideal de beleza:
“Eram horríveis os primeiros alisamentos, os fios esticados, lambuzados de óleo, cortados
como vassouras de piaçava, lembrando vassouras usadas para lavar urinórios”.52 A analogia
feita pela cronista entre o cabelo da mulher negra e a vassoura de piaçava apresenta de forma
cruel o processo de discriminação vivenciado pelas negras, à medida que eram “obrigadas” a
adotar padrões de higiene e beleza incompatíveis com a sua realidade.
As representações negativas do negro no Brasil têm suas origens no período da
escravidão. A idéia de que a população negra era feia se desenvolveu na maioria das cidades
brasileiras que receberam escravos. A cor escura da pele, em contraste com a alvura da pele
branca, tornou-se sinônimo de sujeira e sub-humanidade. Tudo que representava a negritude
era visto como negativo.53 Os traços físicos e os cabelos crespos passam a ser associados à
agressividade e falta de refinamento. Tais imagens pejorativas, associando a mulher negra à
feiúra, foram produzidas durantes décadas. A figura da “nega maluca” com os cabelos
desgrenhados ilustra bem o pensamento que se tinha dos cabelos das negras. Dessa forma, a
busca do alisamento funcionou como uma alternativa para a construção de uma identidade
que se aproximasse dos padrões exigidos. No entanto, essa construção dilemática de negação
da própria etnia dinamiza a construção de uma auto-imagem distorcida, em busca do
afastamento da realidade física.
O cabelo da negra, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade que
recai sobre as mulheres. Ver o cabelo da mulher negra como “ruim” e o da branca como
“bom” expressa de forma emblemática esse conflito. Por isso, mudar de cabelo significa a
tentativa de sair do lugar de inferioridade, um sentimento de autonomia, expresso nas formas
ousadas e criativas de usar o cabelo.

52
De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), a piaçava é uma palmeira de onde se
extrai fibras resistentes para o fabrico de vassouras, que, por sua vez, serão usadas para retirar o lixo das
residências.
53
A noção de negritude aqui apresentada é no sentido biológico ou racial, apresentado por Munanga (1986) no
livro Negritude: usos e sentidos. Tudo que tange à “raça” negra. É a consciência de pertencê-la. A negritude
também é entendida por Munanga como um movimento que prega o resgate de valores da civilização africana,
recuperando a memória africana para trazer orgulho ao negro. Segundo a escritora Elisa Nascimento (1981), o
movimento surgiu primeiramente na literatura, como uma forma de recusa à dominação da cultura européia e
como tentativa de retorno àquilo que seria primordial da “raça negra”, representado pelas tradições e valores
africanos. “O movimento da negritude é primeiramente de proclamar a originalidade da organização sócio-
cultural dos negros para, depois, sua unidade ser definida através de uma política de contra-aculturação, ou seja,
desalienação autêntica.” (MUNANGA, 1986, p. 56).
A intelectual negra norte-americana Bell Hooks destaca a riqueza de sua experiência
no ritual de alisamento dos cabelos:

Para cada uma de nós, passar o pente quente no cabelo é um ritual


importante. Não é símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não
existem brancos em nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de
sermos mulheres [...] Antes que se alcance a idade apropriada, usaremos
tranças; tranças que são símbolos de nossa inocência, juventude, nossa
meninice. O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um
espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias,
atribulações, fofocas – um lugar onde ser acolhida e renovar o espírito.
Entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo
ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. Essas existiam
concomitantemente. Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e
político em que surge o costume entre os negros de alisarmos nossos
cabelos – essa postura representa uma imitação da aparência do grupo
branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um
ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima.

Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras


continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é
considerado um assunto sério. Por meio das diversas práticas insistem em se
aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito do
nosso valor na sociedade da supremacia branca.

Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha
de aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados
por mulheres negras revelam comumente como nosso cabelo é percebido
na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós
tendemos a interiorizar esse medo. (HOOKS, Revista Gazeta de Cuba,
janeiro-fevereiro de 2005, grifos nossos).

A catarse da pesquisadora apresenta os sentimentos de insegurança e medo das negras


que convivem de forma dilemática com a prática de negar-se a si mesma ao alisar os cabelos.
Como os estereótipos deixam marcas na auto-estima dessas mulheres que querem se
aproximar do padrão de beleza branco determinado pela mídia. O quanto é atemorizante o
fato de não ser aceita pela cultura dominante branca. A consciência ou o encobrimento desse
conflito vivido na estética do corpo negro marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por isso,
para a mulher negra, a intervenção no cabelo é mais do que uma questão de vaidade ou de
tratamento estético. É identitária. Assim, o que Hildegardes Vianna considera como fatos de
“antigamente” permanecem presentes na vida da população negra.
As lutas dos movimentos e organizações negras em diversas partes do mundo têm
trazido ganhos significativos, invertendo imagens negativas em positivas. Em resposta a
discriminação estético-racial, na Bahia, os blocos afros têm contribuído para incentivar a
população negra a cada vez mais se valorizar. Impulsionado pelo movimento Black is
Beautiful, o bloco Ilê Aiyê inicia uma profunda renovação estética nos habitantes negros de
Salvador. A principal delas é adoção dos cabelos crespos, com penteados black power ou
compostos por trançados.
Ao criar novas formas de beleza, a estética afro tem contestado os valores
estabelecidos no senso comum, em que predominam os padrões eurocêntricos, comprovando
que a beleza é passível de transformação e redefinição, uma vez que, a partir dessa
perspectiva estética, as mulheres negras passam a se sentir belas e aceitarem os cabelos
crespos.
No que se refere ao cheiro da mulher negra, Hildegardes Vianna, na crônica Cheiro de
suor (03/12/1968), aborda outro tipo de preconceito sofrido pelas negras. O cheiro do suor
que sai dos corpos das “catarinas” que trabalhavam nas casas das famílias brancas era tido
como desagradável e comparado a odores de animais. Segundo a autora, essas meninas foram
responsabilizadas durante muito tempo por transmitirem o mau cheiro do suor para as filhas
da patroa. Branca não podia brincar com filha de empregada, pois “Catinga é própria do
negro, gemiam as bonitas senhoras [...]” (VIANNA, A Tarde, 03/12/1968).
O cheiro do corpo das pessoas de descendência africana tornou-se um motivo a mais
para classificá-las como mais próximas dos animais do que dos seres humanos. A palavra
“catinga”, de origem Tupi, era o termo usado para descrever o odor que seria “característico”
dos negros, dos índios e dos animais. Assim, a negritude era associada à feiúra, sujeira e
odores corporais. Até hoje, a noção racista de que o corpo negro cheira mal tem resultado em
uma vigilância constante para muitas pessoas negras, que se esforçam para manter o corpo
desodorizado e asseado, a fim de negar o estereótipo. Manipular a aparência torna-se então
uma necessidade, uma forma de controlar o medo da repugnância e rejeição.
Destaca-se também nas crônicas de Hildegardes Vianna a maneira utilizada pelos
brancos para se dirigir às pessoas negras. Segundo a cronista, qualquer pessoa de cor branca
era sempre tratada de “vosmincê”. O “mulato” e o negro, por sua vez, eram tratados pelo
branco de tu e você, respectivamente. Um afro-brasileiro não abraçava um branco, ombro a
ombro, abaixava-se e cingia as pernas ou, quando muito, os quadris. Curvar a cabeça e
escolher as palavras eram uma constância na vida dessas pessoas. Na crônica A benção, tem-
se uma ilustração do tratamento entre brancos e negros:

Embora o negro fosse considerado integrante da escala social mais baixa,


havia o negro tu, o negro você e o negro vosmincê. O negro tu era o escravo,
o agregado, o afilhado, criado com carinho no meio de uma família; negro
que por seu préstimo e modos, se faziam merecer certo destaque. O negro
você era o negro comum, escravo ou liberto, carregador, ganhador ou o que
fosse, sem maior valia que as forças dos seus músculos para trabalhar e
alcançar o sustento da vida. O negro vosmincê era o endinheirado, o chefe
do grupo, o feiticeiro, o que conseguia se elevar no meio de onde viera,
estudando e lutando por um destino melhor; era a negra velha das famosas
casas de mestras, a negra idosa que se fazia respeitar pelo seu procedimento
e virtudes morais. (VIANNA, A Tarde, 30/04/1968).

Na crônica a autora não apresenta qualquer posicionamento crítico sobre as relações


étnico-raciais, limita-se a descrevê-las, endossando ao final: “E ainda há quem diga que não
estamos vivendo hoje uma perfeita integração racial [...] O povo antigo que o diga.”
(VIANNA, A Tarde, 30/04/1968). Assim, ao acompanhar a construção dessa mentalidade
racista e preconceituosa, vê-se que essas idéias foram incorporadas no cotidiano baiano,
gradativamente, até se naturalizarem.
Nos anos 1930, no Brasil, num contexto de consolidação do Estado Nação, um
discurso de democracia racial começa a circular com o escritor Gilberto Freyre no livro Casa
Grande e Senzala (1933). Em busca de um símbolo que representasse a nacionalidade
brasileira, Freyre traz em sua obra o mito de que no Brasil as três “raças” branco, negro e
índio vivem de forma harmônica e as relações inter-raciais possibilitaram, através da
miscigenação, a criação do povo brasileiro, o mestiço.54
Esse discurso pretensamente “democrático” e institucionalizado apregoou a
inexistência de racismo ou discriminação. No entanto, contraditoriamente, estabeleceu a
manutenção de estruturas sócio-econômicas nas quais as profundas desigualdades se
cristalizaram. O antropólogo Kabengele Munanga (1999) entende o silêncio sobre as
desigualdades raciais como um traço da ideologia da democracia racial brasileira, que leva os
brasileiros a negarem a existência da discriminação.
O certo é que o mito da democracia racial tem uma penetração muito profunda na
sociedade brasileira, exalta a idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades
e impedindo os membros das comunidades não-brancas de terem consciência dos sutis
mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade. Tal mito encobre os conflitos

54
A grande contribuição de Freyre é ter mostrado que negros, índios e mestiços tiveram contribuições positivas
na cultura brasileira, influenciaram profundamente o estilo de vida da classe senhorial em matéria de comida,
indumentárias e sexo. A mestiçagem, que na visão de Nina Rodrigues causava danos irreversíveis ao Brasil, era
vista por Freyre como uma vantagem.
raciais, possibilitando a todos se reconhecerem como brasileiros, e afasta das comunidades
subalternas a tomada de consciência de suas características culturais.
O tratamento dispensado aos negros pela elite baiana não passou despercebido aos
visitantes e pesquisadores estrangeiros que aqui estiveram nas primeiras décadas do século
XX. A antropóloga norte-americana Ruth Landes, em 1938, ao realizar pesquisa na Bahia
sobre as mães-de-santo faz a seguinte constatação:

As pessoas da classe alta, em geral bem educadas e exercendo profissões


liberais, gostam imensamente dos negros e adoram exibi-los. Quando dizem
‘negro’, designam apenas o tipo que vi nas ruas – a gente trabalhadora mal
remunerada, que se distingue pelas roupas, pelas músicas e por outras
características incomuns. Não pretende indicar meramente indivíduos de
determinada cor; e, de fato, geralmente dizem ‘africanos’ ou ‘afro-baianos’,
em vez de ‘negro’ que é considerado pejorativo. Um termo preferido é
‘preto’. Mas nem ‘preto’, nem ‘negro’, nem ‘africano’ são usados com
referência a pessoas desse tipo físico que ocupem posições nas classes
superiores. A educação ou o dinheiro, isolada ou conjuntamente, retiram o
indivíduo do pitoresco grupo dos ‘negros’. (LANDES, 2002, p. 53).

A partir das observações de Landes (2002), apresentam-se pistas de quanto a negritude


estava associada à situação de pobreza. A ascensão social era sinônimo de libertação do
estigma de marginalidade. Através da promoção social, os negros passavam a pertencer a uma
categoria intermediária e eram mais aceitos pela elite.
É justamente desse contexto das relações étnico-raciais que Hildegardes Vianna vai
tratar. O surpreendente é que, quando se identifica o período em que as crônicas foram
publicadas, 1955 a 1999, constata-se que já havia uma mudança significativa na economia
baiana. A Bahia ingressara, paulatinamente, na expansão do movimento industrial brasileiro.
A partir de 1950, com a criação de um setor petroleiro e o incentivo do Governo Federal,
através de uma política de isenção tributária, via SUDENE, demarca-se significativamente
uma nova fase baiana. A implantação da Petrobrás significou um volume de investimento
inédito em toda história econômica desse estado.55
Risério atesta que os salários pagos pela empresa eram maiores do que o mercado
baiano costumava oferecer, chegando a provocar elevação de preços em áreas de
concentração petroleira. “O volume de investimentos e a massa de salários, numa região
marcada pela escassez habitacional, resultou no crescimento da indústria da construção civil
[...]” (RISÉRIO, 2004, p. 514). Deste modo, a Petrobrás foi para Cidade da Bahia, sinônimo

55
A Petrobrás, inicialmente, constituiu-se como uma empresa estatal, fundada em 1953, com a proposta de
monopolizar a exploração e produção do petróleo.
de mudança e enriquecimento, com a construção de estradas na área petrolífera e o
surgimento de pequenas indústrias.
A SUDENE, Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, origina-se de uma
intervenção estatal no sentido de combater o atraso técnico e econômico da região nordestina,
ou seja, medidas para superar o desequilíbrio regional brasileiro, com sua conseqüente
disparidade nos níveis de renda. Então, o Governo Federal entra em cena e providencia,
através de incentivos fiscais, a oferta de capitais à montagem de um setor industrial na região.
Essa política “sudeniana” de captação de recursos, em 1960, sentenciou a industrialização
nordestina. De acordo com Risério, pessoas jurídicas nacionais poderiam abater 50% do
imposto de renda devido, caso o montante fosse aplicado em empreendimentos nordestinos.
Posteriormente, o estímulo foi concedido também às empresas estrangeiras sediadas no Brasil.
Assim, o Nordeste passou a ser concebido como uma possibilidade de negócio atrativo.
A Bahia, por conseguinte, nas décadas de 1960 e 1970, foi quem mais se beneficiou
com essa onda de investimento. Risério afirma ainda que o estado absorveu mais da metade
dos investimentos feitos no Nordeste, na área da metalurgia, da mecânica, da borracha e da
química. Resumindo, a expansão do capitalismo brasileiro para a região nordestina engendrou
uma nova realidade baiana. O jornal de A Tarde ilustra bem a importância da SUDENE para
região nordestina:

O Conselho Deliberativo da SUDENE em 1968 aprovou 148 projetos


industriais com investimentos no montante de 955,6 milhões de cruzeiros
novos [...] Estes projetos possibilitarão a criação de mais 21.472 empresas
diretas e estáveis na região, beneficiando mais de cem mil pessoas quando
instaladas as indústrias. (A Tarde, 11/01/1969, p. 5).

Dentro dessa nova realidade, com a instalação de novas indústrias e com aumento
significativo da oferta de empregos, encontra-se a população negra baiana. A década de 1970
foi momento decisivo na história das relações étnico-raciais, reavivando as discussões
originadas em 1930, época em que a Frente Negra Brasileira na Bahia insurge no estado.56
Os anos 1970, período da ditadura militar no país, foram marcados por momentos tensos e
intensos, numa conjuntura que leva ao questionamento sobre a imagem do Brasil e dos

56
Segundo Risério (2004), A Frente Negra Brasileira na Bahia foi um movimento que surgiu no estado,
reivindicando educação e respeito à negritude. Cursos de alfabetização, datilografia, música e línguas são
oferecidos, visando preparar a população para o mercado de trabalho. Criada por um operário e dirigida por
“pretos” e mestiços de condição bastante modesta, o movimento teve, exclusivamente, a participação de
trabalhadores.
brasileiros, na política, no cinema, na música popular, na religião e no carnaval, com vistas à
construção de um país democrático.
No que tange à movimentação negromestiça, detonou-se uma ação em prol de marcar
a diferença em ser negro, a partir da ideologia do pluralismo cultural. As décadas de 1970 e
1980 marcam a consolidação de uma classe média negra na Bahia. O aumento da oferta
educacional e o crescimento econômico do Brasil viabilizam a ascensão social individual de
uma minoria afro-baiana, alargando a possibilidade de participação na economia e na
sociedade. De acordo com Risério (2004), a expansão da estrutura educacional e a reforma
universitária geraram um aumento de matrículas, e a instrução se mostrou como um
mecanismo favorecedor da mobilidade social do negro. O Movimento Negro Unificado
Contra a Discriminação Racial57 é filho deste crescimento educacional e da introdução do
povo afro-baiano nas universidades. 58
Na cidade de Salvador, em 1970, com a consolidação de uma minoria que
representava a classe negra, iniciou-se uma agitação política e cultural dos negromestiços na
direção de um “etnocentrismo negro”, nos termos de Antônio Risério. Surgiu, então, o
movimento denominado por Risério de “triplo esforço de apropriação”: apropriação do
próprio passado, apropriação do presente africano e apropriação do presente negro norte-
americano.
No que se refere à apropriação do passado, Risério (2004) considera que houve uma
tentativa de esvaziar a data do 13 de maio, dia em que a princesa Izabel assinou o decreto que
abolia o trabalho escravo no Brasil, para instituir o 20 de novembro como o Dia Nacional da
Consciência Negra, em homenagem a Zumbi dos Palmares, tido como o herói da resistência
negra.
Sobre a apropriação de modelos norte-americanos, destaca-se o campo estético em que
a juventude afro-baiana se apropriou de “signos vestuais e gestuais”, além de ter incorporado
o slogan black is beautiful. Por fim, a apropriação da África. Houve uma grande mudança no
modo de olhar esse continente. Alguns brasileiros passam a perceber a África como um
espaço plural, com povos diversos que falam línguas diferentes e têm visões de mundo e
modos de vida bem distintos entre si.
57
Segundo Abdias Nascimento (1982), o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU)
surge, enquanto movimento politico, em 7 de julho de 1978, com um ato público organizado em São Paulo
contra a discriminação sofrida por quatro jovens negros no Clube de Regata Tietê.
58
O termo “negromestiço” é empregado por Risério (2004) em A Cidade da Bahia para identificar um segmento
da população constituído da miscigenação entre brancos e negros. Por aproximar-se mais das características
físicas dos brancos, os negros mestiços tiveram mais facilidades em se apropriar de certos símbolos de status,
como circular livremente pelas festas da elite baiana. Assim, à medida que subia de classe, o mestiço passou a
ocupar situação intermediária, diferente tanto do branco dominante quanto do negro escravizado.
No entanto, alguns pesquisadores contrapõem-se a Risério e consideram que as
conquistas da população negra não estão imbricadas apenas ao desenvolvimento econômico
do país, mas sim ao surgimento, ao longo da história do Brasil, de inúmeras organizações
negras que procuraram reagir ao racismo e a exclusão. O professor Clovis Moura (1989)
apresenta algumas revoltas que ocorreram ao longo da história do Brasil em que o negro se
fez presente:

Nas lutas pela expulsão dos holandeses, nas lutas pela independência e a sua
consolidação, na Revolução Farropilha, nos movimentos radicais da plebe
rebelde, como a Cabanagem, no Pará, no Movimento Cabano, em Alagoas,
ele esteve presente. Também na Inconfidência Mineira, na Inconfidência
Baiana, para lembrarmos mais alguns, a sua presença é incontestável como
elemento majoritário ou como participação menor. Após o fim da
escravidão e do Império, o negro se incorpora aos movimentos da plebe,
como Canudos, na comunidade do beato Lourenço, e, mais destacadamente,
na revolta de João Cândido. Desde as primeiras lutas sociais do Brasil que o
negro, ao delas participar, conseguiu ampliá-las e transformá-las em lutas
sócio-raciais. Isto é, colocou um componente novo, abriu o leque de
participação e reivindicações, porque uniu essas lutas de exploração às
reivindicações de etnia negra, que além de explorada era discriminada
racialmente. (MOURA, 1989, p. 39-40).

Assim, observa-se que em todos ou na maioria dos movimentos sócio-políticos que se


desenrolaram no país durante a sua trajetória social e histórica houve a contribuição do negro.
Quer na Colônia, quer no Império, a população negra esteve presente e está presente até os
tempos atuais em todas as lutas travadas ou projetadas nessa nação, demarcando seu lugar e
lutando por uma sociedade mais justa com direitos iguais para todos os cidadãos brasileiros,
independente de sua etnia.
Patrícia Pinho (2004) também considera que a ascensão social da população negra,
mesmo de forma tímida, deu-se pelos diversos movimentos sociais projetados em que o negro
se fez presente reivindicando mais direitos. Sem desmerecer os vários e importantes exemplos
de reação organizada de negros no Brasil, que existem desde a época Colonial com o
nascimento dos quilombos e das irmandades religiosas, a pesquisadora destaca que é possível
considerar a década de 1930 como o período em que se iniciou o “movimento negro
brasileiro”.
A Frente Negra Brasileira (FNB), principal expressão negra dos anos 1930, nasce de
iniciativas de jornais como O Clarim e Alvorada que começam a denunciar as práticas
discriminatórias contra os negros, existentes na procura de emprego, no ensino, nas atividades
e lugares de lazer. Apesar de protestar contra a situação desprivilegiada do negro, revelava em
seu discurso uma assimilação da ideologia do branqueamento. Nesse sentido, ao mesmo
tempo em que se estimulava uma identidade especificamente negra, buscava integrar o negro
à sociedade brasileira. Tratava-se assim de uma identidade que combinava “a busca por
aceitação com o reconhecimento de uma diferença”, baseada na percepção do tratamento
desigual dado aos negros, especialmente no mercado de trabalho. A Frente defendia que o
negro se tornasse adequado ao mercado de trabalho, através da manipulação de sua aparência.
Pinho (2004, p. 87) rememora em sua pesquisa que nos anos 1940 e 1950 o
movimento ainda carregava algumas das características da década anterior, pois continuava
considerando que o negro deveria buscar dentro de si qualidades que o ajudariam a superar as
dificuldades impostas pela sociedade. Nessa direção, a alegria, a espontaneidade e a
criatividade, características tidas como inatas do negro, passaram a ser exaltadas. Bastante
influenciado pelo movimento literário da Negritude, o Teatro Experimental do Negro (TEN),
fundado por Abdias do Nascimento, buscou enfatizar valores do povo negro, invocando as
qualidades que lhe seriam próprias: a emotividade, a passionalidade e a teatralidade.59 A
repercussão do TEN colaborou para criação de uma intelectualidade negra, valorizando a
educação como valor de promoção social dos negros excluídos. Com base nas idéias do pan-
africanismo, essa educação priorizava o ensino da história da África como maneira de mostrar
ao negro a sua origem grandiosa, dando-lhe motivos para que se sentisse bem com sua própria
negritude, possibilitando o surgimento de uma identidade negra baseada no orgulho das
origens africanas.
Nos anos 1960, nos Estados Unidos e no resto do mundo a centralidade da África para
a formação das identidades negras eclodiu com os ideais Black is Beautiful. Esse movimento
inverteu os sinais dos símbolos corporais associados aos negros (pele escura, cabelo crespo,
glúteos avantajados) até então vistos como pejorativos, os quais tornaram-se símbolo de
beleza. A influência desse movimento, aliado às repercussões no Brasil das lutas pela
independência ocorridas em diversas colônias africanas, desembocaram, em 7 de julho de
1978, em São Paulo, do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, o

59
Segundo Clovis Moura (1983), o movimento literário da negritude foi inaugurado por volta de 1934 e
concebido por estudantes africanos e antilhanos, em Paris. Esse movimento estético se derivou da necessidade de
concretização da ideologia da negritude, no entanto esse propósito foi alargado de tal maneira a confundir a
proposta estético-literária com as propostas sociais, econômicas e culturais mais abrangentes. O termo
"Negritude" aparece pela primeira vez escrito por Aimé Césaire, em 1938, no seu livro de poemas, "Cahier d'un
retour au pays natal", que está intimamente associado ao trabalho reivindicativo de um grupo de estudantes
africanos em Paris, nos princípios da década de 1930, no qual se destacam como principais responsáveis e
dinamizadores Léopold Sédar Senghor (1906), senegalês, Aimé Césaire (1913), martinicano, e Leon Damas
(1912), ganês. Estes autores da Negritude legaram-nos uma obra literária da máxima importância, mas foi
Senghor que, com a presidência do seu país (Senegal) e uma larga aceitação Ocidental (política literária e
acadêmica), contribuiu decisivamente para a divulgação da Negritude.
MNUDR, que mais tarde viera a se tornar MNU. Predominaram, na fundação do MNU, as
influências dos movimentos negros norte-americanos e a idéia da “volta às raízes africanas”,
além da denúncia aberta ao racismo brasileiro. O processo de miscigenação racial passa a ser
visto como resultado da exploração violenta da mulher negra pelo homem branco e como
perpetuação do racismo brasileiro. Rompendo com o silêncio atrelado ao mito da democracia
racial, o MNU exalta o orgulho da “raça negra” como forma de explicitar as diferenças entre
negros e brancos no Brasil. Este contexto possibilitou a construção de identidades negras
orgulhosas.
As publicações de artigos com o intuito de reclamar os direitos do povo negro também
fizeram parte dos movimentos negros. De acordo com a pesquisadora Florentina da Silva
Souza, em todo Brasil as décadas de 1970 e 1980 são marcadas pelo crescimento de jornais e
revistas que se dedicaram à publicação de artigos para divulgar as atividades e reivindicações
das entidades negras.

Influenciados pelo universo político-cultural do período e dele participantes,


e, ainda, utilizando um processo alternativo de edição e distribuição de
textos, muito em voga nas épocas de setenta e oitenta, os editores e autores
dos CN e do Jornal do MNU filiam-se mais diretamente ao que denomino
de uma tradição textual alternativa, que há muito tempo faz uso desses
expedientes com objetivo de pôr em circulação textos, jornais e revistas
produzidos por negros e mestiços em algumas cidades do país. (SOUZA,
2005, p. 31).

Os periódicos Cadernos Negros - CN e o Jornal do Movimento Negro Unificado –


MNU, à época denominado Nego, surgiu em 1978 e 1981 respectivamente.60 Os textos
publicados tinham o objetivo de se insurgir contra os tradicionais sistemas de representação,
visando à reformulação de conceitos e imagens da população negra, como também almejavam
apresentar reivindicações contra a exclusão.
Especificamente, encontram-se nos Cadernos Negros textos com depoimentos de uma
geração de escritores que exigiam um espaço para a voz negra na vida cultural e na literatura
brasileira. Para tanto, são tematizados vários aspectos da vida cotidiana do afro-brasileiro em
particular, tais como necessidade de construção de uma auto-imagem positiva, o resgate das
tradições de origem africana e o combate às manifestações cotidianas de discriminação e
preconceito racial na escola e no trabalho.

60
Segundo Souza (2005), os CN começaram a ser publicados em 1978, em São Paulo, com a participação de
escritores negros procedentes de vários estados brasileiros.
Os escritores abordam nos Cadernos Negros os temas em uma perspectiva crítica,
visando alterar o sistema e as relações tradicionais de representações, nos quais a categoria
“negro” é construída tendo como fundamento os estereótipos depreciativos. Trata-se agora de
idealizar outra representação e problematizar a exclusão dos negros.
Segundo Florentina da Silva Souza:

Os elementos da etnicidade negra, como cor da pele, passado histórico,


ancestralidade africana, tradição religiosa e linguagem ritual aparecem e
fixam-se como componentes dos textos impulsionado pelas experiências e
dramas vivenciados no cotidiano e na história dos afro-brasileiros que, em
vários momentos, expressam o desejo de incluir outros excluídos e de
interferir nos sistemas de determinação de valor. Pretendem instalar uma
outra pedagogia, munidos de símbolos e de histórias que permitam a
construção de outro discurso valorativo e de outros paradigmas críticos e de
análise. (SOUZA, 2005, p. 68).

Ainda de acordo com a pesquisadora, nas décadas de 1970 e 1980 houve certo
interesse de intelectuais brasileiros para o estudo e a revisão da história do negro no Brasil.
Assim, no universo acadêmico ocorreram diversas publicações de pesquisas diretamente
ligadas à história e cultura negra no país, como O Nagô e a morte, de Juana Elbein Santos
(1975); Escravidão e racismo, de Octavio Ianni (1977); Ser escravo no Brasil, de Kátia
Mattoso (1982) e outros.
Já o Jornal do Movimento Negro, além do esforço de conscientizar os leitores da
necessidade de reconfigurar a auto-imagem e redefinir o papel do negro na história de
construção do Brasil, também aborda aspectos sócio-econômicos da vida cotidiana dos afro-
descendentes na sociedade brasileira.
Indubitavelmente, a segunda metade do século XX foi um momento em que o
paradigma do pluralismo passou a permear todo campo discursivo na Bahia, com o negro
situando-se no palco das atenções, possibilitando, apesar de uma minoria, a mudança da
situação de subalternidade para a possibilidade de ascensão social e intelectual.
Nesse contexto de efervescência em ser negro, a festa carnavalesca foi o principal
canal de afirmação étnica. Os blocos afros e os afoxés convergiram na campanha contra o
sincretismo religioso, concomitante com iniciativas dos Movimentos Negros para garantir os
direitos dos negros na sociedade. Tudo isso se viu integrado em um mesmo movimento,
considerado de “racialista” ou “afrocentrista” extremado. O negromestiço queria ser aceito em
sua singularidade, em sua diferença, com direitos e deveres garantidos pela sociedade.
Os blocos afros, a partir de 1970, contribuíram significativamente para enriquecer o
processo de reafricanização do carnaval baiano, divulgando uma variedade de elementos da
nova “estética afro”, que então se criava. Tranças, roupas coloridas, bijuterias feitas de
61
conchas, contas e palhas da costa passaram a fazer parte do cenário da cidade. Os afoxés,
por sua fez, escandalizavam a elite branca baiana, ao levar às ruas os ritmos e símbolos do
candomblé, através de uma estratégia de enegrecer o corpo para conferir auto-estima e
dignidade.62
De certa forma, os blocos afros alinham a identidade racial com o africanismo cultural.
O renascimento do movimento político negro nas décadas de 1970-1980 denuncia o racismo
no país, ao mesmo tempo em que se iniciava o processo de reafricanização de algumas
manifestações de origem negra. Em 1974, surge em Salvador o bloco afro Ilê Aiyê, mais tarde
seguido pelo Olodum, Malê Debalê e Araketu.
Na sua primeira apresentação nas ruas de Salvador, durante o carnaval de 1975, o Ilê
Aiyê enfatiza a beleza negra, veste uma indumentária inspirada nas vestimentas africanas e
canta:
[...] é o mundo negro
que viemos mostrar para você
Somos crioulos doidos
Somos bem legal
Temos cabelo duro
Somos black pau.63

Em 1980, os blocos afros ampliam seus objetivos, deixando de atuar apenas no


campo lúdico do carnaval para elaborarem estratégias de alcance social com a promoção do
negro. Tais estratégias consistiam em desenvolver, durante todo ano, atividades sociais,
culturais, pedagógicas e educacionais, visando melhorar a condição de vida da população
negra e fortalecer a prática dos direitos humanos e a defesa dos interesses da comunidade
afro-brasileira.
Vale destacar, segundo Risério (2004), que, antes mesmo de surgir esse movimento de
afirmação nas décadas de 1970 e 1980, na década de 1930 os candomblés já se constituíam
como pontos de resistência. A partir de um crescimento considerável em números, passaram a

61
Segundo Kátia Mattoso (1988), faz parte da “estética afro” símbolos que remetem à África. O termo afro é
utilizado para designar aquilo que, apesar de ter sido construído fora da África, tem a função de remeter ao
continente africano ou ao que se pensa dele.
62
De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), o afoxé, também chamado de
Candomblé de rua, é um cortejo de rua que sai durante o carnaval. Trata-se de uma manifestação afro-brasileira
com raízes no povo iorubá, em que seus integrantes são vinculados a um terreiro de candomblé. O termo afoxé
provém da língua iorubá.
63
Letra da música, Que bloco é esse?, de Paulinho Camafeu.
ocupar as áreas urbanas de Salvador. De forma estruturada, encontravam-se dentro desses
espaços verdadeiros centros comunitários, organizações hierárquicas bem definidas e
rigorosas, em que a autoridade do líder e a solidariedade intergrupal eram normas dominantes
e indiscutíveis.
No livro Cidade das Mulheres, Landes (2002) identifica que o período de 1937 é
marcado pela tendência de aumento do poder feminino no candomblé, a exemplo dos terreiros
tradicionais do Gantois e Axé Opo Afonjá. Segundo a antropóloga, “a vontade das mulheres
de construir trajetória independente dentro do candomblé e, significativamente, na sociedade
envolvente em geral é marcante.” (LANDES, 2002, p. 24). Assim, a sua pesquisa identifica
que o matriarcado não é exclusividade das “famílias de santo”, termo consagrado por Vivaldo
da Costa Lima (1977), mas existe também nas famílias negras e pobres, nas quais a mulher,
na sua grande maioria, é responsável por prover a casa.
Na contramão dessa onda “afrocentrista” dos anos 1970 e 1980 que denuncia que a
Bahia ainda é preconceituosa, Hildegardes Vianna se volta para o início do século XX,
trazendo à tona lembranças de uma época em que a população negra só tinha como alternativa
a realização do trabalho braçal. No prefácio do livro A Bahia já foi assim, observa-se o
sentimento saudosista: “A Bahia já foi assim, até mais ou menos 1940. Depois, tudo mudou.”
(VIANNA, 1973, s/p.). Assim, a cronista escreve de forma nostálgica sobre uma Bahia
considerada pelos historiadores de “paralisada e tradicional”, que, com o declínio da
economia agroexportadora e a irrealização do sonho da industrialização, amargava dias de
marasmo e estagnação e continuava produzindo o preconceito racial.
As representações da população negra estigmatizada de negatividade levaram a
cronista, em 1997, a ser acionada pelo Centro de Educação e Cultura Popular, CECUP, no
Ministério Público por crime de racismo.64 Ao publicar em 08/09/1997, na sua coluna
semanal a crônica O destino de Lúcifer, uma lenda sobre a criação do homem, escrita pelo
folclorista paulista Aloísio de Almeida, Hildegardes Vianna cita trechos da lenda original, em
que o autor declara que o homem negro teria sido feito pelo Diabo: “De fato o Chifrudo achou
muito bonito o primeiro homem. Foi fazer o dele, mas tinha acabado o barro branco. E o pior
é que o preto já saiu brigando com quem o fez. Também levou um tapa que lhe esborrachou o
nariz para sempre”. (ALMEIDA, apud VIANNA, 1997).

64
Centro de Educação e Cultura Popular (CECUP) é uma entidade privada, sem fins lucrativos e sem vinculação
partidária ou religiosa. Com a finalidade de promover a defesa e a garantia dos direitos humanos, o CECUP,
fundado há 22 anos em Salvador (BA), mantém programas de políticas públicas e direitos humanos, etnia e
educação e cultura.
A citação de trechos da lenda de Lúcifer, sem constar de nenhuma posição crítica da
autora sobre o preconceito racial, ao contrário, o endossou, causou uma repercussão negativa
na comunidade de pesquisadores negros. Notas com críticas sobre o racismo da autora foram
publicadas em 16/09/1997, no jornal A Tarde, mesmo periódico em que fora vinculada à
crônica. Manoel de Almeida Cruz, sociólogo, e a coordenadora pedagógica da Escola
Criativa Olodum, Gerusa Bispo dos Santos, denunciam que Hildegardes Vianna não fez uma
leitura crítica do texto e reproduziu valores desfavoráveis ao negro, contribuindo para a baixa
auto-estima e fortalecimento de imagens preconceituosas. Para professora Gerusa Bispo dos
Santos:

O artigo publicado nesse conceituado jornal de autoria da professora


Hildegardes Vianna, intitulado ‘O destino de Lúcifer’, trata o negro de
forma preconceituosa e racista, uma vez que o negro é visto de forma
negativa e está associado ao mau, o diabo. A professora Hildegardes não faz
uma leitura crítica do texto, dessa forma reproduz valores desfavoráveis ao
negro, contribuindo para baixa auto-estima do negro, que tem a sua cor
relacionada ao negativo, introduz valores negativos e como conseqüência
perda da sua auto-estima. (SANTOS, A Tarde, 16/09/1997).

Já o sociólogo Manoel de Almeida Cruz escreve:

A propósito da matéria publicada nesse jornal datada de 8 de setembro,


intitulada ‘O destino de Lúcifer’, assinada pela professora Hildegardes
Vianna, folclorista e docente da Universidade Federal da Bahia, onde relata
trechos da obra do folclorista paulista Aloísio de Almeida, na qual expressa
conteúdos preconceituosos desfavoráveis ao negro, atribuindo que Lúcifer
teria criado o ser negro, a professora Hildegardes, infelizmente não
manifesta em sua matéria uma visão crítica dos referidos conteúdos
racistas, colhidos pelo cônego e folclorista Aloísio de Almeida.
Procedimentos desta natureza só fazem reforçar a imagem preconceituosa
contra o negro na sociedade brasileira. (CRUZ, A Tarde, 16/09/1969).

Sobre as críticas à crônica O destino de Lúcifer Hildegardes Vianna defende-se:

Escrevo crônicas para esse jornal desde o ano de 1955. Nunca escrevi
contra religiões e política. Procurei sempre me limitar a temas referentes à
cultura popular. Não sou pedagoga nem socióloga. Sou apenas folclorista,
cronistas de costumes. Tenho certeza de nunca ter acrescentado comentários
que introduzem valores negativos no ânimo do negro, reforçando a imagem
preconceituosa que possa atingir A ou B. (VIANNA, A Tarde, 17/09/1997).

A despeito da importância dos registros de Hildegardes Vianna quanto às práticas


culinárias, ricas descrições minuciosas sobre a preparação dos alimentos comercializados,
observa-se pouca familiaridade da cronista com o universo da população negra, tendo em
vista não considerar que seus escritos apresentam os afro-descendentes de forma
estereotipada, representando as mulheres negras sempre como subordinadas à elite branca,
esquecendo-se de que, além de desempenharem as modalidades de trabalho destacadas nas
crônicas, têm uma vida que não se resume às atividades do labor, com a presença marcante na
comunidade e na religião que professavam.
Sobre a posição ocupada pelas mulheres negras, Landes descreve:

Uma distinta sacerdotisa da Bahia chamou a sua cidade de ‘Roma Negra’,


devido à sua autoridade cultural; foi aí que as mulheres negras atingiram o
auge de eminência e poder, tanto sob a escravidão como após a
emancipação. Controlando os mercados públicos e as sociedades religiosas,
também controlaram as suas famílias e manifestaram pouco interesse no
casamento oficial, por causa da conseqüente sujeição ao poder do marido.
As mulheres conquistaram e mantêm a consideração dos seus adeptos
masculinos e femininos pela sua simpatia e equilíbrio, bem como pelas suas
capacidades. Não somente não tem notícia de rejeição por parte dos homens
das atividades das mulheres, como indícios surpreendentes da sua estima
pelas matriarcas. (LANDES, 2002, p. 351).

Enquanto Ruth Landes valoriza essas mulheres pelo poder que exercem, vivenciando
um matriarcado, Hildegardes Vianna, folclorista, dá mais atenção às práticas do labor
exercidas pelas mulheres negras. Ruth Landes, antropóloga, se aproxima estreitamente do
cotidiano do candomblé para conhecer de forma mais profunda a vida das sacerdotisas negras,
observando que, além de transitarem entre as residências dos brancos e as ruas da cidade,
comercializando alimentos, atividade muitas vezes ligada às obrigações religiosas, essas
mulheres também eram muito respeitadas pelos homens negros e exerciam poder dentro das
casas de santo. Landes inaugura uma nova visão sobre a mulher negra, em que se dá uma
inversão de poderes, no qual as sacerdotisas negras têm o papel ativo na comunidade e gozam
de prestígio social fora e dentro dos terreiros de candomblé, contrariando a posição submissa
e subalterna das personagens de Vianna.
Hildegardes Vianna desconhece o cotidiano das mulheres negras ao se limitar a
descrever o dia-a-dia das negras nos espaços domésticos das casas dos brancos e nas ruas da
cidade. A visibilidade segregada conferida ao negro, no dizer de Stuart Hall, tornou-se
possível, com a mediação de amigos que freqüentavam a residência da cronista,
conseqüentemente pessoas da mesma classe social de Hildegardes Vianna. Assim, a cronista
produz uma representação social sobre o negro contaminada por uma lógica escravocrata,
reproduzindo uma dominação, em que o negro ainda é tido como objeto, um corpo/máquina.
De acordo com Weber:

[...] algumas Representações Sociais são mais abrangentes em termos da


sociedade como um todo e revelam a visão de mundo de determinada
época. São as concepções das classes dominantes dentro da história de uma
sociedade. Mas essas mesmas idéias abrangentes possuem elementos de
passado na sua conformação e projetam o futuro em termos de reprodução
de dominação. (WEBER, 1974 apud MINAYO, 2003, p. 109).

Hildegardes Vianna elabora uma representação sobre mulheres negras a partir da


conjuntura social na qual está inserida, a da elite baiana. Os valores identificados nas suas
crônicas são defendidos pela cronista, mas perpassam o conjunto da sociedade ou de
determinado grupo social, como algo anterior e habitual, que se reproduz a partir das
estruturas e das próprias categorias de pensamento do coletivo ou dos grupos. Assim, embora
essas categorias apareçam como pensadas por Hildegardes Vianna, elas são uma mistura das
idéias das elites, expressão das contradições vividas no plano das relações sociais de
produção. Por isso mesmo, nos textos estão presentes valores tanto de dominação (as negras
simbolizando a subalternidade), como de resistência (as vendedoras mercando nas ruas da
cidade, enfrentando todo o preconceito imposto às mulheres). Identificam-se, assim, textos
recheados de contradições e conformismo.
CAPÍTULO III

MULHERES NEGRAS NA BAHIA DE HILDEGARDES VIANNA: DA COZINHA DO


BRANCO ÀS RUAS E LADEIRAS DA CIDADE
___________________________________________________________________________

Minha mãe era baixa de estatura, magra,


bonita, a cor era de um preto retinto e
sem lustro, tinha os dentes alvíssimos
como a neve, era muito altiva, geniosa,
insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio – era quitandeira,


muito laboriosa, e mais de uma vez, na
Bahia, foi presa como suspeita de
envolver-se em planos de insurreição de
escravos, que não tiveram efeito.

Luís Gama65

No Brasil, o cativeiro da população negra vigorou durante mais de três séculos (1532 –
1888) e sabe-se que a diáspora foi tão grande que um terço da população africana foi obrigada
a deixar seu continente de origem para servir de mão de obra escrava nas Américas. O
conceito de diáspora é aqui interpretado, de acordo com Gilroy (2001), não só como
deslocamento geográfico, mas principalmente como uma circunstância de vida de parcela
significativa da população do país, teoricamente vista como membro da nação e, entretanto,
excluída e discriminada por uma sociedade que a vê como inumana ou não cidadã devido à
sua ascendência africana.
Fizeram parte dessa diáspora homens e mulheres que tinham papel de destaque no país
de origem como reis, rainhas, príncipes, chefes religiosos, donos de terra, e que foram
submetidos à condição de propriedade e, portanto passíveis de serem leiloados, vendidos,
comprados, permutados por outra mercadoria, doados ou legados. Significava viver sob o
domínio de seus senhores e trabalhar de sol a sol nas mais diversas ocupações, nas lavouras e
nas ruas das metrópoles brasileiras. Um deslocamento dessa monta acabou alterando cores,
costumes, definiu desigualdades sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e etiquetas de

65
Luís Gama, importante poeta do Brasil de meados do século XIX, escritor, republicano, abolicionista e
advogado. Nesse poema o autor revela sua origem e se orgulha desta ao descrever sua mãe, uma mulher negra
que, assim como as mulheres descritas nesse capítulo, trabalhou arduamente na comercialização de gêneros
alimentícios. Nota-se a valorização da identidade negra e o reconhecimento das raízes africanas.
mando e obediência nos estados brasileiros que protagonizaram a escravidão, como Minas
Gerais e Bahia. Sobre a questão afirma Schwarcz:

A escravidão, que supõe ser a posse de um indivíduo por outro, legitimou


com sua vigência a hierarquia social, naturalizou o arbítrio e inibiu toda
discussão sobre cidadania. Além disso, o trabalho manual acabou ficando
limitado exclusivamente aos escravos, e a violência e as desigualdades se
disseminaram nessa sociedade. (SCHWARCZ, 2001, p. 15).

Durante o período escravocrata, a Bahia foi um dos estados que mais corroborou para
a perpetuação desse sistema. Recebeu inúmeros africanos para trabalhar nas lavouras de cana-
de-açúcar, algodão e café. Tantos negros e negras que, em meados do século XIX, quando foi
abolido o tráfico, pois a maior parte dos escravos eram nascidos na África, os africanos
representavam cerca de 63% (sessenta e três) da população escrava de Salvador. (MATTOSO,
1988).
Segundo o historiador Walter Fraga Filho (2006), nos dias imediatos à abolição da
escravatura, houve uma intensa movimentação de homens e mulheres, egressos da escravidão,
dos engenhos de açúcar no Recôncavo baiano para as grandes cidades.66 Com o fim do
cativeiro, formalmente, deixou de haver restrição ao movimento dos ex-escravos e esses não
se sentiam mais obrigados a pedir “consentimento” aos ex-senhores para sair das localidades
em que viveram cativos. Assim, os libertos não estavam mais obrigados a permanecer presos
a um lugar por vontade ou decisão de outrem.
Por conta disso, com a imigração em massa dos ex-escravos habituados ao trabalho
das lavouras, nas cidades constitui-se uma imensa população despreparada e pouco instruída,
que participava de um processo de competição desigual, sobretudo pela insurgência da nova
mão de obra imigrante. Assim, os negros continuavam a trabalhar nas atividades braçais. Em
cidades como Salvador, ocupavam-se do transporte de pessoas e mercadorias, exerciam
atividades como pedreiros, carpinteiros, estivadores, cocheiros e carroceiros. As mulheres, na
condição de domésticas, cozinhavam, limpavam, arrumavam, lavavam, engomavam e
passavam roupas. Como amas-de-leite, aleitavam e cuidavam das crianças brancas.
Nas ruas, hostilizadas por estarem em espaços em que só era permitida a presença
masculina, as negras vendiam vísceras de animais, temperos, cuscuz, cocadas, caldo de cana,
bolos, carurus e outras comidas de origem africana, atividades que já pertenciam ao cotidiano

66
O Recôncavo baiano é uma região histórica, localizada em torno da Baia de Todos os Santos, formada pela
região metropolitana de Salvador, onde está capital do estado da Bahia. Outras cidades importantes que fazem
parte do Recôncavo: Cachoeira, São Felix, Santo Amaro, São Francisco do Conde, Candeias e outras.
das negras desde o século XVII. Documentos do Arquivo Municipal de Salvador indicam que
em 1631, pouco tempo após a fundação da cidade, as escravas de ganho já eram obrigadas a
ter licença para poder vender nas ruas. Luís da Câmara Cascudo (2004) detecta a venda
ambulante de alimentos desde 1584 e a formação do costume de apregoar doces em meados
do século XVIII, sendo o primeiro registro pertencente a Salvador.
Ainda sobre a profissão dos ex-escravos nas cidades, Walter Fraga Filho considera o
seguinte:

É possível que parte dos egressos da escravidão que migraram dos engenhos
para Salvador estivessem engajados em profissões urbanas autônomas.
Tudo indica que, após a abolição, houve crescimento desse setor,
especialmente de vendedores ambulantes de doces de frutas e iguarias em
gamelas e tabuleiros, engraxates e vendedores de bilhetes de loteria. Os
governos republicanos estabeleceram rígido controle policial e fiscal sobre
os que mercavam na cidade. Basta dizer que, no final do século, os
ambulantes não podiam mercadejar sem licença paga à Câmara Municipal.
(FRAGA, 2006, p. 336).

Assim, os homens e mulheres que abandonaram os engenhos, após a abolição,


enfrentavam uma conjuntura de crescente controle das profissões tradicionalmente exercidas
por pessoas de cor negra, por parte dos poderes municipal e provincial. Desde o final do
século XIX, principalmente com o declínio da escravidão, nas cidades, as autoridades baianas
vinham adotando medidas enérgicas para disciplinar o trabalho e os trabalhadores urbanos, a
maior parte deles negras egressas da escravidão. A matrícula das “ganhadeiras” fazia parte da
política de controle do poder público municipal. 67
Ao trazer esse passado em suas crônicas, Hildegardes Vianna reportou-se até mais ou
menos 1940, para escrever sobre o “povo” e os costumes da cidade de Salvador na
perspectiva dos estudos folclóricos.68 Entre os diversos tipos humanos existentes nos seus
escritos, encontra-se a mulher negra, saída do cativeiro imposto pela escravidão. Nas crônicas
analisadas foram identificados elementos que confirmam que, no decorrer do século XX,
persistiu a visão de que estava reservada à mulher negra, considerada destituída de atrativos, a
condição de trabalhadora braçal.

Quando se pensa nas representações sobre as mulheres negras e suas realidades


específicas na sociedade brasileira, é fácil perceber que as negras aparecem de forma

67
A matrícula era a licença concedida, através de pagamento, à Câmara Municipal para comercializar nos
espaços públicos.
68
Hildegardes Vianna não fixa uma data de início para suas “recordações”, apenas estabelece que os fatos se
reportam a uma Bahia de até 1940.
simplificada, apenas como serviçais prontas a servir à mesa e à cama, arrumar a casa e
desaparecem enquanto indivíduos constituídos de sentimentos, desejos e vontade.

Configuram-se nessa construção discursiva de Hildegardes Vianna representações


sociais estereotipadas. Serge Moscovici (2007, p. 65) enfatiza que a tendência para classificar,
seja pela generalização, seja pela particularização, não é, de modo algum, uma escolha
puramente intelectual, antes reflete uma atitude específica com um objeto, “um desejo de
defini-lo como normal ou aberrante”. Para o teórico, o que está em jogo em todas as
classificações das coisas não familiares é a necessidade de defini-las como conformes ou
divergentes da norma.69
Para maior compreensão das crônicas apresentadas nesse capítulo, faz-se necessário
entender o conceito de representação social cunhado por Moscovici:

Representar significa, a uma vez e ao mesmo tempo, trazer presente as


coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo que satisfaçam as condições
de uma coerência argumentativa, de uma racionalidade e integridade
normativa do grupo. É, portanto, muito importante que isso se dê de forma
comunicativa e difusa, pois não há outros meios, com exceção do discurso e
dos sentidos que ele contém, pelos quais as pessoas e os grupos sejam
capazes de se orientar e se adaptar a tais coisas. Conseqüentemente, o status
dos fenômenos das representações sociais é o de um status simbólico:
estabelecendo um vínculo, construindo uma imagem, evocando, dizendo e
fazendo com que se fale, partilhando um significado através de algumas
proposições transmissíveis e, no melhor dos casos, sintetizando em um
clichê que se torna um emblema. (MOSCOVICI, 2007, p. 216).

Esse conceito de representação social de Moscovici permite entender que, a partir da


normalização de conceitos, os estereótipos construídos sobre os grupos populares se
fortalecem até se tornar um clichê: “a mulher da rua”, “a doméstica”, “a mulher de saia” e
outros.

Para Moscovici,

69
Moscovici (2007), a partir do conceito de representações coletivas de Durkheim (1978), desenvolveu o
conceito de representações sociais. Moscovici afirma que a noção de representação coletiva de Durkheim
identifica uma categoria que deveria ser explicada a um nível inferior, ou seja, em nível de Psicologia Social.
Para um contexto mais moderno, em que as sociedades são mais complexas e plurais, Moscovici achou mais
adequado empregar a noção de representação social.
[...] a teoria das representações sociais toma como ponto de partida a
diversidade dos indivíduos, atitudes e fenômenos, em toda sua estranheza e
imprevisibilidade. Seu objetivo é descobrir como os indivíduos e grupos
podem construir um mundo estável, previsível, tomando como referência tal
diversidade. (MOSCOVICI, 2007, p. 79).

A partir dessa necessidade de definir as coisas e as pessoas, Moscovici especifica que


as representações são frutos da vivência das contradições que permeiam o dia-a-dia dos
grupos sociais, sua expressão marca o entendimento deles com seus pares e contrários. Na
verdade, a realidade vivida é representada, e através dela, os atores sociais se movem,
constroem sua vida e explicam-na mediante seu estoque de conhecimento.
Dessa forma, as representações sociais são construídas inicialmente do interesse de um
grupo, ou seja, o autor de uma obra pode ser influenciado pelo contexto social que o cerca,
pelo lugar que ocupa na sociedade, pois, segundo Moscovici (2007, p. 30), “nós percebemos o
mundo tal como é e todas nossas percepções, idéias e atribuições são respostas e estímulos do
ambiente em que vivemos”. Isso significa que as representações sociais são sempre inscritas
dentro de um “referencial de um pensamento preexistente”, por conseguinte, dependente de
um sistema de crenças ancorado em valores, tradições e imagens do mundo.

Boaventura de Sousa Santos (2005) acredita que a interpretação e avaliação são alguns
dos limites da representação, pois as ações de interpretar e avaliar dependem do conhecimento
dos agentes em questão, no caso dos autores, das práticas de seu conhecimento sobre o tema
que deseja representar e principalmente do objetivo que almeja alcançar com a representação.

Logo, ainda que Hildegardes Vianna se coloque como “porta-voz da cultura do povo
baiano”, em geral, as crônicas que descrevem a lida, comportamento e atitudes das mulheres
negras estão embriagadas de interesses e percepções de uma parcela muito “especial” de
indivíduos baianos. Entre eles encontravam-se a elite culta, formada de políticos, intelectuais
e doutores, indivíduos acostumados a lerem o jornal A Tarde e exercerem atividades
profissionais de prestígio, representantes da mais “nobre estirpe” soteropolitana. O leitor
atento encontra, nas crônicas, pistas que denunciam que a autora escrevia como uma
representante dessa parcela da população, e que, através das representações ancoradas em
valores de um passado escravo e destituídas de posicionamento crítico, reforça a visão de que
o negro é inferior e subalterno.

Hildegardes Vianna não dá voz às “pretas” e “mulatas” em suas multifaces e nas


variadas situações e papéis sociais que vivenciaram no cotidiano de Salvador. A autora limita-
se a destacar os aspectos econômicos, dando ênfase sobre dois setores fundamentais do
trabalho urbano: as atividades exercidas nas ruas e os serviços domésticos. O primeiro, de
responsabilidade das “ganhadeiras” ou “vendedeiras”.70 Já no segundo, realizado no espaço
residencial da elite baiana, descortina-se uma guisa de estereótipos sobre as cozinheiras, as
amas-de-leite, as lavadeiras e as “catarinas”.

“MULHERES DE SAIA”: A ARTE DE MERCAR NAS RUAS DA CIDADE

A presença da mulher negra foi sempre destacada no exercício do comércio em vilas e


cidades do Brasil colonial. Desde os primeiros tempos, estabeleceu-se em Salvador uma
divisão de trabalhos assentada em critérios sexuais na qual o comércio ambulante nas ruas da
cidade representava ocupação preponderantemente feminina. Na cidade de Salvador, no
período descrito por Hildegardes Vianna, há quase que exclusivamente uma presença de
mulheres de descendência africana no mercado de gêneros alimentícios.

Figura 3 - Vendedoras do século XVII71

Segundo o antropólogo Roberto DaMata (1997), a rua, apesar de ser considerada pelo
branco ambiente perigoso, devido à presença expressiva de negros e desclassificados sociais,

70
Para o historiador Vilhena (1969), o termo “ganhadeira” vem desde a época da escravidão, em que tanto as
mulheres escravas eram colocadas pelos seus proprietários no “ganho da rua”, como as negras libertas lutavam
para garantir o sustento com a venda de produtos alimentícios e outros. A “ganhadeira” era a escrava que se
movia no mercado, como vendedora ou artesã, e repartia com seu senhor a renda que conseguia, através de um
acordo previamente ajustado. O que excedesse o valor combinado era apropriado pela escrava, que podia
acumular para comprar sua liberdade ou gastar no seu dia a dia.
71
Fonte: Cristiano Jr., www.unb.br, em 13 de outubro de 2008.
era o principal palco da vida das mulheres negras nas cidades.72 Sujeitas à violência e
agressividade relacionadas ao seu gênero, à sua cor e classe, essas mulheres respondiam com
comportamento aguerrido, enfrentando situações difíceis, pois ousadia e agressividade eram
comportamentos necessários para enfrentar a opressão social e o racismo.

As “ganhadeiras” agiam em defesa própria, na tentativa de preservar sua autonomia


nos espaços em que atuavam socialmente. De forma muito apropriada, DaMatta faz um
paralelo entre o ambiente da rua e o da casa, proporcionando a observação sobre as
dificuldades a que as negras estavam sujeitas:

A rua indica basicamente o mundo com seus imprevistos, acidentes e


paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as
coisas estão nos seus devidos lugares. A rua implica movimento, novidade,
ação, ao passo que a casa subentende harmonia e calma. Assim, os grupos
sociais que ocupam a casa são radicalmente diversos daqueles da rua. Na
casa, têm-se associações regidas e formadas pelo parentesco e relações de
sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou
implicam essa possibilidade. Assim, as relações em casa são regidas
naturalmente pela hierarquia do sexo e das idades, com homens mais velhos
tendo a precedência; ao passo que na rua é preciso algum esforço para se
localizar e descobrir essas hierarquias. Uma conseqüência disso é que na
rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não sabidas ou não
percebidas. E para escapar do cerco daqueles que nos querem iludir e
submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a
malandragem. (DAMATTA, 1997, p. 91)

Já para Sodré (1988, p. 146), a rua era mais do que um ambiente hostil. Era um espaço
de socialização e criatividade, em que o universo musical do negro brasileiro aflorava, lugar
onde as negras esbanjavam, com liberdade, seus trejeitos e falares. São nos redutos das praças
e das ruas que ocorrerão os encontros dos negros. Assim, “essa rua tão temida, é o espaço de
proximidade entre a vida cotidiana e a produção simbólica, lugar de atmosfera emocional e
afetiva.”

É justamente nesse espaço público, ambiente paradoxalmente constituído de intensa


hostilidade e criatividade, que as negras garantiam seu sustento. Majoritariamente de origem
iorubá, essas mulheres ocupavam cotidianamente as ruas e praças destinadas ao mercado
público e feiras livres. Sem chapéus ou espartilhos, vestindo “saias de decência suspeita” e
“camisus com decotes desguelados”, segundo Hildegardes Vianna, circulavam com

72
De acordo com Roberto DaMata, enquadram-se no grupo dos desclassificados sociais as pessoas pobres e
desamparadas que viviam pelas ruas das cidades: as prostitutas, os mendigos, os vendedores ambulantes, etc.
tabuleiros, gamelas e cestas habilmente equilibrados sobre a cabeça. A presença dessas
“pretas” nas atividades de mercar era tanta, que o historiador Luís dos Santos Vilhena, no seu
livro A Bahia no Século XVIII (1969, p. 65), definiu as feiras livres de Salvador como lugares
“onde se juntam muitas negras para vender tudo que trazem”.

Desse modo, o comércio baiano no período colonial, imperial e republicano se


caracterizou pela presença massiva das negras, fato comum, tendo em vista que na África as
mulheres dominavam esse tipo de atividade. Na venda de comida, predominava a herança
africana, quer nas iguarias comercializadas, como acarajé, abará, mingau, cocada, acaçá,
bolos e outras, quer na indumentária e na prática de “mercância”, com pregões como: “São
Francisco, meu pai, quem me benze? / São Francisco, meu pai, quem me quer hoje?/ São
Francisco, meu pai, vem benzê.” (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

Nos escritos de Hildegardes Vianna, as “ganhadeiras” são apresentadas como


“mulheres de saia”. O uso desse tipo de vestimenta, ser mulher de saia, indicava baixa posição
social. Essa desqualificação pode ser identificada na crônica Mulheres de saia (13/03/1969).
No texto, a autora assinala o pouco valor que as vestimentas dessas mulheres tinham na
década de 1930, considerada pela elite como “roupa de negra e de mulata”. As mulheres
brancas que usavam esses trajes eram consideradas de pouca sorte, jogadas ao desprezo,
criaturas humildes, desempenhando serviços intitulados de inferiores e inadequados ao sexo
feminino:

Ainda presumivelmente há uns quarenta anos, lá pela década de trinta, o


hoje chamado traje de baiana era simples roupa do cotidiano, sem maiores
qualificações, marcando uma classe de mulheres sem vinculação religiosa
obrigatória. Era roupa de negra ou mulata, só esporadicamente envergada
por alguma branca sem sorte, jogada ao desprezo de si própria. Usar saia,
ser mulher de saia, determinava a sua baixa posição social. Era mulher
humilde, desempenhando tarefas subalternas e por vezes inadequadas ao
seu sexo, emaranhada em um meio hostil. O conceito derivava da
mentalidade criada pelas profundas diferenças entre escravos e livres,
negros e brancos. Negras e mulatas, sujeitas ou libertas, tinham por anos
seguidos desenvolvido atividades, honestas, mas humilhantes, convivendo
em ambientes heterogêneos de mercados, feiras livres, lidando com gente
de toda laia. (VIANNA, A Tarde, 13/03/1969).

Esse preconceito se agravava ainda mais pelo fato de que, até o século XIX, as
mulheres raramente eram vistas nas ruas ou em lugares públicos, sendo o lar considerado
como seu lugar próprio. A norma oficial ditava que a mulher deveria ser resguardada em casa,
ocupando-se dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da
família, trabalhando nos espaços da rua. A partir dessa lógica sexista, a mulher tem a casa e o
homem tem o mundo. A elite machista, legislando em causa própria, elaborou conceitos que
legalizaram seu direito de posse e autoridade sobre mulheres e crianças.

Kátia Mattoso (1992) destaca que a reclusão das mulheres brancas era fruto do
sistema social herdado do período escravista, e que nas classes média e alta as mulheres
viviam recolhidas, saindo só para a igreja, ao Passeio Público com a família ou a reuniões
sociais, sempre na companhia do marido, de algum parente ou acompanhante.73 Boa parte de
viajantes estrangeiros que estiveram na Bahia notaram e registraram que só se via nas ruas as
humildes “ganhadeiras”, à cata de clientes. Landes afirma que, em Salvador, presenciou,

[...] tarde da noite, quando a maioria das famílias se preparavam para


dormir, algumas negras velhas vagueavam pelas ruas sombrias e, olhando o
céu baixo, entoavam cantos, de melodias claras e melancólicas de origem
africana, e de versos em parte africanos e em partes portugueses,
comercializando as guloseimas, comidas, bebidas, que tinham para vender.
Esses cantos pesarosos eram ternos ao ouvido, embalavam a cidade.
(LANDES, 2002, p. 53).

A censura às mulheres que circulavam nos espaços públicos também é ratificada na


crônica Moleque comprador de tempero (13/02/1968) 74:

Onde alguém de compreensão e juízo iria conceber uma senhora ou


senhorinha da família e consideração, andando pelos açougues, vendas
armazéns, tulhas, quitandas, padarias ou quejandos, a comprar comida,
acotovelando-se com pessoas de outras classes sociais? (VIANNA, A
Tarde, 13/02/1968).

Em se tratando das mulheres de descendência africana, a visão machista de que o lar


era o espaço reservado à mulher estava longe de retratar a realidade, pois é um estereótipo
calçado nos valores da elite colonial, pois as negras sempre estiveram nas ruas, trabalhando
para garantir seu sustento.

73
Segundo Vilhena (1969), o Passeio Público de Salvador localiza-se ao lado da Praça de Aclamação. Foi
inaugurado em 1810 pelo 8º Conde dos Arcos Dom Marcos de Noronha e Brito, então governador da Bahia,
ornado de árvores frutíferas e flores, transformou-se em um espaço de lazer e local onde a elite ia passear e
tomar ar puro.
74
Vale destacar a despeito do título da crônica Moleque comprador de tempero. Moleque era o nome dado aos
filhos das negras. “Figura fácil de identificar pelas ruas” de Salvador, os meninos saiam sempre para comprar
temperos e atender a outras necessidades das senhoras brancas, suas patroas.
O fato é que a “mulher de saia” foi uma expressão pejorativa difundida na imprensa
republicana para denominar às mulheres trabalhadoras de rua. As críticas publicadas em
periódicos associavam as negras aos costumes africanos e à escravidão, que, por sua vez,
eram agregados à barbárie, ao atraso e à falta de higiene.

O suor que se desprendia dos corpos das negras e o contato das mãos no fabrico desses
alimentos passaram a ser considerados porta de entrada de doenças. A qualidade das comidas
das ruas tornou-se uma obsessão, a partir do pensamento higienista da época. Assim, as
“mulheres de saia” são apresentadas como:

Mulheres de gamela, vendendo fato de boi, peixe, mingau, mulheres de


tabuleiro, mercando cuscuz, cocada, bolo; mulheres de balaio ou
ganhadeiras, negociando pão, verduras, produtos da Costa da África;
caixinheiras, mascateando rendas e bicos de almofada, palas de camisa e
barras de crochê, artigos de procedência africana e tudo mais que coubesse
no baú; mulheres compradeiras de tempero e todas as demais integrantes de
profissões de mais ínfima categoria, eram mulheres de saia. (VIANNA, A
Tarde, 13/03/1969).

Na crônica Mulheres de saia, faz-se um paralelo entre o comportamento das mulheres


de saia, consideradas “desqualificadas”, e as que também usavam saias, mas eram tidas como
de “respeito”:

[...] algumas se notabilizavam pelo destempero da linguagem, liberdade de


gesticulação e embrutecimento da inteligência. Essas usavam uma roupa de
todo dia, como traje de trabalho, um taco de saia e uma camisa, sabe lá
Deus até que ponto desgüelado, deixando-as seminuas. Descalças, dedos
dos pés arreganhado, cuspinhando saliva de fumo ou axá (tabaco de cão),
enrolando descomposturas [...]

Mas as outras eram mulheres de respeito que as contingências da vida


atiravam na rua, para labutar pela sobrevivência. Muitas eram senhoras
honestas no procedimento, comedidas na palavra e no gesto, que se
sujeitavam ao trato com gente de toda laia, desde que pudessem alcançar o
sustento seu e de sua família. (VIANNA, A Tarde, 13/03/1969).

A descrição de comportamentos e atitudes diferencia as mulheres de saia em duas


categorias profissionais distintas. As negras que mercavam nas ruas da cidade recebiam a
pecha de mulheres desqualificadas por apresentarem um comportamento aguerrido e
características tidas como “amorais” pela sociedade aristocrata. As que se aproximavam do
padrão “senhora de família” eram mais aceitas. No entanto, percebe-se que em nenhum
momento da crônica o fato de essas mulheres sobreviverem ao ambiente hostil das ruas da
cidade, obrigando-as a se tornarem “embrutecidas”, é associado pela autora a uma tentativa de
resistência a uma submissão imposta às mulheres da elite baiana, que persistia nas primeiras
décadas do século XX. E ainda mais grave, a autora silencia ante a falta de cidadania, pois à
mulher negra, devido à sua forma de inserção na sociedade escravista, foi negada a sua
condição precípua de mulher, tornando-a, dessa maneira, mais uma mercadoria senhorial.
Assim, o cotidiano da negra no mundo dos homens impunha procedimentos que visavam
auto-proteção e luta pela sobrevivência.
Entre os comportamentos considerados pela elite branca como amoral estava o
movimento do corpo, o molejo, realizado pelas negras quando andavam pelas ruas mercando
os produtos. Na tradição de origem africana, o corpo tem papel e função bastante diferentes
daquele cultivado pela tradição ocidental. O corpo móvel, elástico e gingado será visto como
exótico e imoral por uma cultura na qual, desde a infância, a mulher tem o corpo trabalhado
para a imobilidade, tolhido em seus movimentos e na expressão de seus desejos. Assim, a
liberdade de movimentos do corpo negro é desprestigiado e reprimido pelo sistema religioso
ocidental e hegemônico, forçando as mulheres a “calar” o corpo.
Segundo a pesquisadora Lúcia Osana Zolin (2003), há duas categorias que rotulam o
comportamento feminino frente aos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal: “mulher
sujeito” e “mulher objeto”.75 Dentro do primeiro grupo, encontra-se a “mulher de saia”, que se
notabiliza pelo “destempero”, pela insubordinação, pela subversão da ordem, dos padrões
estabelecidos, pelo seu poder de decisão e de imposição da sua vontade, enquanto a “mulher
objeto” é marcada pela resignação, pela conformidade de sua condição inferior, definindo-se
pela submissão e pela subserviência, conseqüentemente, desprovida de voz.
Em se tratando de representações de gênero e raça, não é difícil chegar à conclusão de
que as duas categorias encontram-se presentes nas crônicas de Hildegardes Vianna: as
“mulheres de saia”, que se destacavam pela ousadia e o “destempero”, e as negras que se
comportavam passivamente, conforme os padrões vigentes no período.
Vale salientar que muitas negras que não atendiam aos padrões estabelecidos da época
conseguiram ascensão financeira com a atividade de “mercância”. Outras possuíam um
“protetor” português rico e andavam pelas ruas da cidade, bem vestidas e com adereços de
ouro por todo o corpo. Essas eram consideradas “felizardas”, pois se tornavam donas de

75
Segundo Zolin (2003), mulher objeto e mulher sujeito são conceitos no âmbito da critica literária feminista
que classificam a posição da mulher inserida em uma sociedade patriarcal.
quitanda sortida de produtos e participavam das procissões da religião católica que ocorriam
na cidade soteropolitana. 76
A negra que vendia mingau de porta em porta nas ruas da “cidade da Bahia” também
era designada “mulher de saia”. Na crônica A Mulher do mingau (16/09/1969), Hildegardes
Vianna inícia o texto apresentando as vendedeiras de mingau como mulheres “mais ou menos
iguais”, negras ou “mulatas”, que exerciam ofício de “mercar” pela facilidade encontrada para
obter freguesia: “Mingau vendido ao clarear do dia por uma mulher que mercava por mercar,
porque era fácil freguesia certa. [...] Elas eram todas mais ou menos a mesma coisa. Pretas ou
mulatas. Metidas em suas saias rodadas, os pés descalços [...]” (VIANNA, A Tarde,
16/09/1969).
Constata-se em tal crônica um desmerecimento dessa atividade quando a autora faz
alusão ao oficio de vender mingau: “mercava por mercar” e “Elas eram todas mais ou menos
a mesma coisa.” Pode-se inferir, a partir dessas afirmativas, que as mulheres negras exerciam
o trabalho de comercializar pelas ruas da cidade por terem uma vida ociosa, sem algo mais
importante para realizar ou porque a atividade era muito fácil. Quanto ao segundo comentário,
de que eram todas “a mesma coisa”, deixa pistas para se pensar que as mulheres negras ainda
eram consideradas “coisas”, “peças” e “objetos”, como no tempo da escravidão.
No entanto, na crônica, estabelece-se uma contradição no que toca à descrição do
trabalho executado pelas negras e mulatas, pois Hildegardes Vianna, ao descrever as etapas
pelas quais o mingau tinha que passar até ficar pronto, acaba por apresentar ao leitor o quanto
a atividade de preparar a iguaria é trabalhosa. Dessa forma, quando se pensa nas descrições
minuciosas e detalhistas que a cronista faz ao se referir ao preparo do mingau, não se pode
imaginar que as negras “mercavam por mercar”.

Todos os dias, as vendedoras de mingau acordavam de madrugada e


atravessavam as ruas desertas à espera dos fregueses, que, ao acordarem,
compravam a quantidade certa de mingau que complementaria o farto café
da manhã. Em sua gamela redonda de pau, assentada sobre a grossa rodilha
de pano de saco que lhe protegia a cabeça, a vendedeira equilibrava o latão
com o mingau fervente[...] Vendiam anos a fio, indiferente aos males que a
velhice acarretava. Algumas não ultrapassavam, entretanto, a maturidade.
Sumiam. Depois se sabia que tinham morrido ou cegado. Cegavam por
causa daquela quentura permanente na cabeça, explicavam as companheiras
(VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

76
Segundo a etnolingüista Yeda Pessoa de Castro (2005) no livro Falares africanos na Bahia: um vocabulário
afro-brasileiro, quitanda é uma palavra de origem banto, utilizada para designar o local onde se comercializavam
frutas e diversos produtos comestíveis.
Dando continuidade à descrição, Hildegardes Vianna cerca-se de minúcias sobre as
tarefas pertinentes à preparação do mingau:

Milho, arroz, bem catados e lavados, eram postos de molho na véspera. De


madrugada, começava a tarefa de ralar os grãos. Ralar talvez não fosse o
termo apropriado. Usavam uma pedra retangular ou quadrada com a
superfície superior recoberta por pequenos sulcos feitos com auxílio de um
prego. A mão era mais ou menos a vinte centímetros, também de pedra,
quanto mais roliça melhor. As mãos apoiadas firmemente nela, os pulsos
num contínuo flexionar, e, em poucos minutos, estava tudo triturado.

Depois do ralar , enquanto o pó assentava, vinha o coco com seu fatigante


roteiro de quebrar, tirar do casco, descascar a parte escura, lavar e ralar. As
vendedoras de mingau ou cuscuz tinham as unhas, praticamente roídas e os
polegares escalavrados de tanto ralar coco. Além disso, aquele interminável
mexer com o colherão de pau, esperando abrir a fervura, acabar a ‘espuma’,
tomar o ponto, não podia conservar mãos de princesa. (VIANNA, A Tarde,
16/09/1969).

Apesar da descrição do fatigante trabalho das vendedoras de mingau, um ar nostálgico


permeia toda crônica, com a autora clamando pelo retorno dos “bons tempos”: “Era naquele
bom tempo [...] O mingau daquelas mulheres madrugadeiras é hoje recordado com o tempero
que a saudade empresta a tudo que já passou.” (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969). Não obstante,
A mulher do mingau não deveria proporcionar tanta nostalgia, pois na crônica destaca-se que
o oficio exigia o uso prolongado dos latões quentes de metal que cegavam essas mulheres. O
próprio trabalho de carregar as latas pesadas e quentes na cabeça já era sofrimento bastante
para que seja um alívio vê-lo eliminado. 77
Ainda nessa crônica, a autora ensaiou uma exaltação às vendedoras de mingau,
descrevendo-as como heróicas mulheres, por serem sempre “solícitas” e “limpas”, como se
espera de um subalterno, residirem em lugares insalubres e sustentarem a família inteira:
filhos, netos e até um “companheiro inútil por invalidez ou falta de caráter”:

Vendedeiras de mingau, vendedeiras de cuscuz, todas elas tinham o mesmo


lidar. Acordavam antes das quatro da madrugada. Moravam em um porão,
socavão ou numa casinha, numa das muitas rocinhas que salpicavam o
centro da cidade, em outras eras. Muitas faziam a sua venda no mesmo
cômodo em que dormiam.Tinham seus fogareiros, seus tachos e ‘bumbas
meu-boi’78, suas colheres de pau, pilão, ralo grande com cabo de madeira, e
pedra, cuscuzeiro, um verdadeiro arsenal.

77
Na atualidade, a venda do mingau continua, só que os latões foram substituídos por carrinhos metalizados
sobre rodízios, onde se tem escrita a palavra mingau. Os horários não são mais o mesmos de “antigamente”, pois
pode-se encontrar a vendedora de mingau em qualquer horário do dia.
78
Bumba-meu-boi é definido pela própria cronista como panela grande usada para cozinhar o mingau.
Anos a fio, as vendedeiras de mingau cumpriam a sua sina. Sempre
madrugadeira, sempre pontual, sempre asseada, sempre solícita. Mulheres
que davam um exemplo de disciplina e honestidade comovedora. Mulheres
que, se hoje vivessem, seriam assuntos para reportagens e não sei mais o
quê. (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).

Uma análise da crônica com o objetivo de desnudar os atributos ideológicos


relacionados às personagens negras faz-se necessária. Primeiro, observa-se que a motivação
para a exaltação à mulher negra se deu pela condição de subalternidade, considerada uma
“sina” pela cronista. Tal afirmativa se comprova a partir da repetição de trechos que
descrevem características tidas como positivas ao trabalho da vendedora: “madrugadeira”,
“pontual”, “asseada” e “solícita”, ou seja, sempre pronta para servir. Em um segundo plano, a
contemplação se firma no modo vivendi das negras. Hildegardes Vianna caracteriza a
vendedora de mingau como passiva, tendo em vista a aceitação da condição social que ocupa
na comunidade, em suma, morar em lugares insalubres como os porões e trabalhar no mesmo
local em que dorme.
A vendedora de cuscuz é outra categoria de trabalho da mulher apresentada nos
escritos de Hildegardes Vianna. Em consonância com as idéias apresentadas na crônica
Mulher do Mingau, retoma-se o estereótipo da mulher negra como serviçal. Os atributos
destacados para a vendedora de mingau se repetem na crônica A arte de fazer cuscuz
(23/09/1969), em que a autora, dando continuidade à sua estratégia de descrição das práticas,
pela ótica dos folcloristas, concentra-se em detalhar a técnica empregada’ cv para cozinhar o
cuscuz, desde a escolha do milho, do arroz e do inhame, até ralar o coco, retirar o leite e
vender a iguaria. Assim como a vendedora de mingau, a mulher que vendia o cuscuz também
acordava de madrugada para mercar o produto e iniciava o preparo de véspera. 79

As vendedeiras de cuscuz, assim como as de mingau, saíam com a gamela


ou um tabuleiro na cabeça de porta em porta vendendo o cuscuz ou ficavam
no fundo da casa, despachando a freguesia que vinha com o prato e a moeda
para adquirir o alimento. Assim muitas delas sobreviveram e sustentaram
filhos e netos. (VIANNA, A Tarde, 23/09/1969).

79
Segundo Gerlaine Torres Martini (2007, p. 113), em sua tese Baianas de Acarajé: a uniformização do típico
em uma tradição culinária afro-baiana, a origem do cuscuz é mourisca, alcançando outras regiões da África do
Norte. Sua base era, inicialmente, sêmola de trigo, arroz ou sorgo, sem leite de coco (Cascudo, 2004, p. 187). Ele
faz parte do repertório muçulmano que adentrou Portugal antes das navegações e que compreendia novos estilos
de tessitura, vestuário e grande parte de sua doçaria. “No Brasil, re-entrelaçam-se elementos culturais
muçulmanos via Portugal com os que são trazidos por africanos em contato com o Islã. O cuscuz baiano reside
nesse encontro, adaptando-se a ingredientes nativos e outros replantados e elegidos como indispensáveis pelo
gosto local que se consolidava”. Assim, essa iguaria se tornou prato matinal e merenda em Salvador, podendo
ser incorporada à atividade de comercializar o mingau.
Pela leitura das crônicas, constata-se que a venda do mingau e do cuscuz era árdua e
comprometia a qualidade de vida das negras e “mulatas” que a executavam. Moradoras de
lugares insalubres, essas mulheres também eram responsáveis por manter a família inteira
com o dinheiro que conseguiam com as vendas. E, ao retornarem para casa, reiniciavam todo
o trabalho para a venda do próximo dia.
Tão ilustre como as senhoras apresentadas anteriormente, a vendedora de acaçá
também foi descrita por Hildegardes Vianna.80 Na crônica O tempo do acaçá (08/11/1971), a
folclorista discorre sobre a difícil tarefa de preparar o acaçá e destaca que esse tipo de ofício
ficou sempre a cargo das mulheres negras:

O acaçá era em geral feito e vendido por mulher. Uma receita simples [...]
Primeiro, descascar as espigas de milho, debulhar os grãos, limpar todos os
cabelos ou barbas do sabugo. Em seguida, lavar cuidadosamente,
escolhendo os caroços, escolhendo os carunchos, até não haver vestígios e
impurezas. Cabelo de milho sempre teve fama de desandar ponto em
comida de milho. Lembre-se, leitor, que não havia água encanada nem
torneira. Era uma série de potes e gamelas que funcionava na limpeza.

Depois de tudo lavado, o milho posto de molho para amolecer, a mulher


(sempre a mulher) apanhava as palhas, varria o chão, enxugava o que
estivesse molhado naquele jeito asseado que era comum das negras. Negras,
sim, porcas nunca – diziam com orgulho. Mesmo quando envergavam uma
roupa velha e enodoada, marchando para o mato à cata de folhas de
bananeiras. As mais afortunadas tinham um chuço. As outras, que não
possuíam posses para tais luxos, amarravam uma faca amolada na ponta de
uma varinha e tudo se resolvia. Tirar folhas de bananeiras era cansativo,
dependendo da boa ou da má qualidade da touceira, da freqüência das
chuvas e da ventania local. Cortadas as folhas, decepados os talos, levadas
para a casa em rolos, eram selecionadas e passadas no fogo, esfregadas com
pano seco e cortadas em tamanhos padrões.

O acaçá só podia ser feito com milho fermentado. Escorria a água,


triturados os grãos na pedra ou pilão, passado tudo na peneira, esperar que o
pó assentasse era grande demora. Mas você que me lê sabe o que é cozinhar
milho em pó, meia hora, uma hora, lutando com várias tarefas? Por lenha ou
carvão para alimentar o fogo, abanar as brasas, mexer a panela sem parar,
desde o momento que ia para o lume até quando o ponto atingia o desejado?

Para o acaçá ficar lustroso, vidrado sem bolotas, trêmulo e consistente,


elástico nos movimentos era preciso cozer com bastante água, sempre com
cuidado de não ficar duro como angu de consistência grosseira. Para o acaçá
ficar uma finura, requeria uma hora de mexe-mexe, muito suor, braços
ardendo, algumas queimaduras de praxe no pula-pula da fervura. Pronto
afinal, ainda havia o serviço de embrulhar em pequenas porções, ainda
quente, nas folhas da bananeira. Aí o que restava era tomar banho, trocar de

80
Segundo Hildegardes Vianna (1973), o acaçá pode ser considerado um pudim de milho branco, consistente,
tradicionalmente envolvido em folha de bananeira.
roupa, sair para vender, andar quilômetros, subindo ladeiras e escadas de
sobrados altos [...] (VIANNA, A Tarde, 08/11/1971).

No que toca às atividades das vendedoras de mingau, de cuscuz e de acaçá, todas


guardam características similares, quanto à descrição do labor: iniciam as atividades no dia
anterior às vendas, executam tarefas árduas na produção dos alimentos, o que compromete a
qualidade de vida, e têm que enfrentar a discriminação da elite soteropolitana com os produtos
vendidos nas ruas.
Com a política de higienização implantada pelo governador J. J. Seabra, a qualidade
da comida vendida na rua passou a ser preocupação constante, pois o contato manual com as
iguarias vendidas e as condições de fabricação das comidas, segundo o pensamento higienista
em voga, eram a porta de entrada para os miasmas e, posteriormente, dos micróbios e dos
vírus, que tanto debilitavam a precária saúde dos baianos. Sucessivos governos municipais e a
imprensa local, em diversos momentos, engajaram-se em campanhas para afastar as
vendedoras de alimentos das ruas centrais, sob a justificativa de higienizar e melhorar a
circulação da cidade.
Em seu livro Encruzilhadas da liberdade, Walter Fraga Filho (2006, p. 337) destaca
que o Jornal de Notícias (15/09/1900) denunciou o comércio de bandejas, tabuleiros e
gamelas na Praça Castro Alves. E que, em agosto de 1904, o mesmo periódico festejou a
decisão do poder municipal de retirar das proximidades do mercado da Baixa dos Sapateiros a
infinidade de cestos, gamelas e tabuleiros de verduras e legumes, dispostos sobre as calçadas
da referida rua.81
Na crônica Todo mundo gosta de abará (22/01/1973), Hildegardes Vianna expõe a
discriminação sofrida pelas mulheres que mercavam nas ruas de Salvador e o que a elite
baiana pensava sobre a comida de origem africana. E ainda nessa crônica declara ter
enfrentado preconceitos das famílias baianas ao publicar no livro A cozinha baiana: seus
folclores, suas receitas82 o modo de fazer o abará:

[...] trouxe a lembrança do abará que nem todo menino de família tinha
licença de comer. Não só pela pimenta, que era posta dentro da massa,
como também por ser vendido a desoras. Sem falar daquele preconceito de
que quem comia no meio da rua não tinha educação doméstica. Passo por
cima do esnobismo de uns tantos núcleos familiares que não admitiam

81
A Baixa dos Sapateiros, trecho existente entre a parte baixa da ladeira do Taboão e a Rua da Vala, foi
considerado o centro comercial da cidade de Salvador, com um grande tráfego de ônibus e pessoas, e onde
também circulava muito dinheiro. Hoje acabou transformando-se em um local quase abandonado.
82
Em 1956, Hidegardes Vianna lança o livro A cozinha baiana: seus folclores, suas receitas, que alcança
repercussão nacional, ao apresentar uma pesquisa sobre a culinária da Bahia.
comida de negro, azeitaradas, que conspurcavam a suposta nobreza de suas
bocas, maltratando seus aparelhos digestivos doentios por tradição.
(VIANNA, A Tarde, 22/01/1973, grifos nossos).

Como havia publicado, tempos atrás, um livro sobre a cozinha baiana, a cronista sai
em defesa da culinária afro-baiana, vindo a criticar o esnobismo da elite baiana, grupo esse de
que ela faz parte. Segundo a cronista, a culinária baiana encontrada nas ruas de Salvador não
era muito apreciada pela aristocracia. A despeito de ter como cozinheiras as mulheres negras,
a elite baiana desconhecia os pratos de origem africana, tão comumente consumidos nas casas
dos negros. Na casa dos brancos não se encontravam habitualmente petiscos africanos como
abará, acarajé, acaçá, caruru, xinxim, etc., preparados de acordo com receitas transmitidas por
ancestrais da África, os quais levavam temperos africanos, a exemplo do azeite de dendê,
ataré, iru, pejericum, ierê e egussi.83 No tempo evocado por Hildegardes Vianna em suas
crônicas, os hábitos alimentares da elite eram predominantemente de origem européia.
A letra da música A preta do Acarajé de Dorival Caymmi (1939) ilustra bem o
desinteresse da elite soteropolitana pelas práticas de preparar o abará e os gêneros
alimentícios vendidos pelas ruas da cidade:

Na rua deserta
A preta mercando
Parece um lamento
Ê o abará
Na sua gamela
Tem molho é cheiroso
Pimenta da costa
Tem acarajé
Ô acarajé é cor
Ô la lá io
Vem benzer
Tá quentinho

Todo mundo gosta de acarajé


O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de abará
Todo mundo gosta de acarajé

83
Segundo pesquisa realizada por Pierson (1945, p. 284), o azeite de dendê é um óleo feito de coco da palmeira
dendê; o ataré importado da África pelos negros baianos é uma variedade de pimenta; egussis são sementes de
abóbora ou de melão; ierês são sementes semelhantes às do coentro; iru e pejerecum (ou bejerecum) são
variedades de feijões pequenos.
Dez horas da noite
Na rua deserta
Quanto mais distante
Mais triste o lamento
Ê o abará

Composta no final dos anos 1930, a letra da música de Caymmi exalta a atividade de
mercar, dando destaque ao labor no preparo do alimento, assim como o horário em que as
negras mercavam, arriscando a vida nas ruas desertas da cidade. Caymmi fez a composição
porque a “preta” pontual passava toda noite pela rua, tabuleiro à cabeça, entoando o pregão
nagô. Era um fato cotidiano na vida da metropole. Para ele, Salvador era a cidade do samba-
de-roda, das velhas igrejas, do pé de guiné no caco de barro, da batida do agogô no afoxé,
como também a “Bahia” das sedas e das rendas, das feiras e dos casarios, das mulatas e
malaguetas.
No entanto, apesar de Caymmi afirmar que “todo mundo gosta de acarajé”, a verdade
é que a perseguição sofrida pelas mulheres que mercavam foi tamanha que, com o avanço do
século XX, os vendedores de gêneros alimentícios perderam-se de vista, e o serviço passou a
ser realizado por estabelecimentos comerciais, restaurantes e padarias. O acarajé foi um raro
produto que não desapareceu nem perdeu totalmente seu comércio ambulante. Também era
vendido como comida pronta. No entanto, seu preparo na própria rua sobrepujou o costume
de vendê-lo pronto na gamela. Na crônica Acarajé quentinho (21/06/1976), a folclorista
descreve essa mudança na comercialização do acarajé, salientando o transtorno desse novo
hábito no cotidiano das ruas da cidade:

Vocês que andam na rua, todos os dias, acostumados com o irritante


esbarra-esbarra dos que disputam um lugar nos passeios, não estranham a
presença da mulher do acarajé, com seu tabuleiro, seu fogareiro e a
conseqüente desordem em volta. O cheiro do dendê fervente desagrada a
muito forasteiro que não seja do tipo de ‘pituitária educada para resistir
alterações olfativas súbitas’. Também há quem lamente ter que suportar
aquele odor penetrante durante todo o dia, queixando-se de náuseas [...]
Garanto que as próprias mulheres de acarajé gostariam de vender à moda
antiga [...] O tabuleiro coberto por uma cúpula baixa de vidro e madeira. O
acarajé era frio, com o molho semelhante ao dos vendidos às dez da noite.
(VIANNA, A Tarde, 21/06/1976).

A citação expõe que, mesmo após anos, a atividade de mercar exercida pelas negras
continuou sendo discriminada e mal vista pela elite soteropolitana. Contudo, certos tipos de
comidas preparadas antecipadamente em casa ainda permaneceram como últimos
remanescentes das ruas, as mais resistentes acabaram sendo absorvidas pelo tabuleiro da
baiana de acarajé.

Figura 4 - Tabuleiro completo. Itapuã84

O certo é que, como mostra a foto, alguns produtos que povoavam as gamelas sobre as
cabeças protegidas com turbantes e rodilhas passaram a habitar os tabuleiros. Assim, o
tabuleiro não é só do acarajé, mas também do abará, das cocadas, de outros doces e bolinhos,
do peixe e da “passarinha”.85
Para caracterizar a figura mais emblemática das ruas, a popular baiana de acarajé, que
se sobressai até hoje na cidade de Salvador, Hildegardes Vianna escreveu, ao longo dos anos,
diversas crônicas, uma delas intitulada As mãos da baiana (02/09/1996). No texto destaca-se
o interesse da folclorista pelo traje da baiana, concebida como “bizarra”.86 Posterior a essa
etapa, as mãos da mulher negra passam a ser objeto da atenção e são descritas como: “[...]
mãos nodosas, de unhas incertas. Estragadas, mas limpas. Contrastam com os braços sedosos
e roliços de suas donas. Mãos de quem trabalham, não são mãos atraentes nem desejáveis,
mas são mãos encantadas. Mãos de fadas.”. Observa-se nessa crônica uma operação
metonímica, em que a mulher é representada por uma parte do corpo que executa o trabalho,
as mãos.
Ainda na crônica, Hildegardes Vianna enumera todos os quitutes presentes no
tabuleiro, apresentando um traço marcante, tido como dos folcloristas, em que os objetos e
indumentárias se sobressaem à figura humana. As mulheres negras circulam nos textos como
meras coadjuvantes, o sofrimento e dificuldade que o labor imputava aos corpos não são

84
Fotografia retirada da dissertação de mestrado A baiana de acarajé como símbolo identitário da Bahia e sua
apropriação pelo turismo, de Noeme Maria Passos Xavier (2007).
85
De acordo com o dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), a passarinha é uma iguaria feita com o
baço do boi que é temperado com limão e depois frito. É dividida em cortes longitudinais, formando marcas que,
no momento da venda, são cortadas, constituindo, cada tira, uma porção.
86
O dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), define esse termo como: “de aspecto ou
comportamento estranho, excêntrico.”.
questionados. Tal afirmativa se intensifica na crônica em que a baiana é suprimida, e o traje
torna-se o foco da atenção:

É o tecido enfeitado que dá um tom principesco às vestes da baiana. É ele


que embeleza a gola do cabeção ou camisa. Que enriquece o pano que
trazem embrulhando os ombros ou em volta da cintura. Que se repete no
paninho que amarram na cabeça. Tecido enfeitado aprendido pelas mais
velhas nas extintas ‘casas de mestra’ e que vão sendo ensinadas às
mocinhas de mais capricho. (VIANNA, A Tarde, 02/09/1966).

A perspectiva dos estudos folcloristas identificada na crônica As mãos da baiana


também se repete no texto Baianas da Conceição (05/12/1967), tendo em vista que, ao
escrever sobre a presença das baianas na festa da Conceição, a cronista suprime a imagem da
negra e enfatiza, mais uma vez, as vestimentas que ornam o corpo:87

As negras da Bahia sempre louvaram a Conceição. Negras e mulatas


vestidas com ricas saias de cetim branco, becas de liniste finíssimo e
camisas de cambraia ou cassa, bordadas de forma tal que vale o favor 3 ou 4
vezes mais que a peça e tanto é o ouro que cada uma leva em fivelas,
cordões, pulseiras, colares ou braceletes e bentinhos [...] davam o maior
brilho às festas de nossa terra. (VIANNA, A Tarde, 5/12/1967, grifos
nossos).

Na crônica Baianas da Conceição, ganha destaque a guisa de adereços utilizados pelas


baianas. E, a partir desses, é de espantar o rico trajar, com ornamentos de ouro e de renda com
os quais essas mulheres desfilavam pelas ruas das cidades. A impressão que se tem é de que
todo luxo e sensualidade em exagero, vetados às mulheres brancas, era canalizado para o
corpo daquelas que consideravam suas serviçais. No entanto, esse costume recebia uma
conotação escandalosa, diante da Igreja Católica Apostólica e Romana, que pregava a
discrição e proibia a exibição de riqueza. Segundo Verger (1992), em 1636 foi baixada uma
portaria real, proibindo o “luxo exagerado” das escravas do “Estado do Brasil”.
Parece estranho, mas as negras “ganhadeiras”, nas ruas, experimentavam, então, uma
mistura de pobreza e opulência, opressão e mobilidade, além da inveja das senhoras brancas, e
as piores condições possíveis de sobrevivência. Foram essas mulheres que, vivenciando uma
espécie de duplicidade, criaram o visual da baiana de turbante e saia rodada. De certa forma, a

87
A festa de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na cidade de Salvador, segundo Risério (2004), inicia-se ao
final de novembro com as novenas que acontecem todas as noites na igreja matriz da cidade-baixa. A celebração
envolve uma missa campal e a procissão, paralelamente ocorre a tradicional festa, nas imediações do Mercado
Modelo, com barracas de comidas típicas e bebidas.
atividade de comercializar está relacionada com ao porte e à altivez dessa mulher das ruas
que, por oposição aos modos contidos daquela outrora considerada sua senhora e sua superior,
desfilava elegantemente nos centros urbanos, equilibrando sobre a cabeça as gamelas, onde
estavam depositados os produtos que mercavam.

Figura 5 - Negra baiana do XVII (Acervo da Livraria Kosmos) 88

Na imagem da negra baiana do século XVII, percebe-se a riqueza de detalhes com as


quais as baianas se vestiam desde essa época: os dedos repletos de anéis, braceletes nos dois
braços, diversos colares em torno do pescoço e as orelhas enfeitadas com argolas. Na crônica
A baiana (I), a cronista destaca: “Tanto era o ouro que cada uma trazia em seus cordões,
pulseiras, colares e pendentes que seriam suficientes para comprar 2 ou 3 negros ou mulatos

88
A figura foi retirada do livro O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão de Luis Viana Filho
(2008, p. 134).
escravos.” (VIANNA, A Tarde, 11/08/1997). Ao andar pelas ruas da cidade de Salvador,
ainda pode-se observar que o esmero e o cuidado com o traje persistem em algumas baianas
até os tempos atuais.
Sobre a moda feminina na Bahia, no início do século XX, Pierson (1945) afirma que
entre as classes “altas” a moda de Paris e de Hollywood ditava em grande parte a natureza das
vestes das mulheres, sempre compostas de vestidos e chapéus elegantes. Já as negras usavam
a vestimenta da “baiana”.

Este traje se compõe de uma saia muito rodada, de várias cores combinadas,
medindo geralmente cerca de 2 a 4 metros de roda na bainha, usada bufante
e armada por uma anágua, ou saia de baixo muito engomada; uma bata, isto
é, blusa branca comprida e solta, em geral de fazenda de algodão, mas às
vezes de seda, usualmente enfeitada de renda larga, às vezes usada muito
frouxa no pescoço e deixada escorregar de uns dos ombros; um pano da
costa, isto é, um comprido manto de algodão listrado, às vezes atado sobre
um dos ombros e preso debaixo do braço oposto, outras vezes enrolado com
uma ou duas voltas em uma grande faixa em torno da cintura e amarrado
bem justo; um torso ou turbante, de algodão ou seda, atado à volta da
cabeça; simples chinelas sem presilhas, de saltos baixos; muitos colares de
coral, búzios ou contas de vidro, às vezes tendo corrente de metal,
usualmente prata; brincos de turquesa, coral, prata ou ouro; e muitos
braceletes de búzios, ferro, cobre ou outro metal. (PIERSON, 1945, p. 282).

Pierson (1945) ainda informa que, como variante da bata, uma blusa branca era usada
por dentro da saia, e o pano da costa era substituído por um xale de lã ou seda. Os calçados
eram os tamancos de sola de madeira e bico de couro ou chinelos de pano. Muitas baianas
andavam descalças. O torso usado por essas mulheres é de origem árabe, trazido para o Brasil
pelos negros de descendência haussá e outros negros, adeptos de Maomé. Pierson ainda
afirma que a portadora do traje típico de baiana, na maioria das vezes, era uma “preta” alta,
graciosa, de físico notável, andar seguro, fisionomia inteligente e jovial.
As informações de Pierson podem ser comprovadas na fotografia retirada de um cartão
postal com a imagem da baiana com a indumentária mais atual do século XX. Nela podem ser
notados os detalhes da saia rodada, das batas, o pano da costa e os colares e braceletes que
ornam o contorno do pescoço e dos braços.
Figura 6 - Mulher negra baiana (1912) 89

No que toca às duas imagens de baiana, destaca-se a postura diferenciada da gravura


de 1912, em que a negra apresenta-se de forma mais à vontade, com as mãos na cintura, gesto
freqüente e marcante nas pessoas de origem africana. Observa-se, ao contrário da imagem
anterior, em que a baiana encontra-se representada em uma postura mais conformada e

89
Cartão postal de título: Uma crioula da Bahia, do editor J. Melo. Data de envio do postal 06/08/1912. Pertence
à coleção do Museu Tempostal, na Rua Gregório de Matos, 33 – Pelourinho.
emoldurada, aproximando-se do traço europeu, que na imagem do cartão postal, a negra está
mais inserida no contexto afro-baiano.
Na imagem do postal, a “baiana” parece representar a sensualidade atribuída à Bahia
(e a ela própria), a terra do prazer e “de todos os pecados”, sensualidade evocada com
freqüência através da dança, dos cheiros, e mesmo da comida, que são caracterizadas como
“quentes” e apimentadas. Uma “baiana” que torna-se personagem cúmplice da cidade, mestra
na arte do feitiço e dos quitutes picantes, que elabora e executa sem parar de “mexer”.
Segundo o historiador baiano Cid Teixeira, a denominação “baiana” para designar a
vendedora ambulante é recente e ele explica que a sua geração, oriunda dos anos 1920, não
conhecia outra forma senão “crioula,” para designar a vendedora de pratos típicos daquela
época. E Teixeira acrescenta: “Ora, baiana ela já era, antes de qualquer coisa! Nós
importamos a designação “baiana”, que era utilizada, sobretudo no Rio de Janeiro.”.90
O antropólogo baiano Thales de Azevedo, em trabalho publicado em 1953, também
discorre sobre o assunto, o que reitera a declaração de Cid Teixeira:

Aos filhos de africanos nascidos no Brasil, chamava-se de crioulos, termo


ainda hoje aplicado na sua forma feminina às pretas e mulatas que se vestem
como ‘baianas’, com torso à cabeça, saia muito ampla, camisa alva bordada e
muito decotada e um chale de cores nos ombros, indumentária trazida pelos
africanos do Dahomey e até os nossos dias usada, com certas modificações
locais, pelas mulheres ligadas aos ritos religiosos de origem africana, os
candomblés. As crioulas típicas baianas são figuras típicas das ruas das
cidades, onde podem ser vistas ao transitarem para os centros de culto
fetichistas ou sentadas junto a tabuleiros em que expõem à venda,
especialmente durante as festas populares, os manjares da famosa cozinha
local, em grande parte de origem africana. (AZEVEDO, 1996, p. 37).

Dorival Caymmi também se rendeu à imponência dessas mulheres e, em 1938,


descreveu de forma minuciosa o traje das negras que vendiam acarajé nas ruas de Salvador na
música O que é que a baiana tem?

O que é que a baiana tem?


Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem!
Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem!
Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem!
Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem!
Tem graça como ninguém

90
Essa informação foi obtida em um conversa informal com o historiador Cid Teixeira, na Academia de Letras
da Bahia, em 20 de outubro de 2008.
Como ela requebra bem!
Quando você se requebrar .
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
O que é que a baiana tem?
Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem! Tem brincos de ouro, tem!
Corrente de ouro, tem! Tem pano-da-Costa, tem!
Tem bata rendada, tem! Pulseira de ouro, tem!
Tem saia engomada, tem! Sandália enfeitada, tem!
Só vai no Bonfim quem tem
O que é que a baiana tem?
Só vai no Bonfim quem tem
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim
Oi, não vai no Bonfim

Nas crônicas de Hildegardes Vianna que dão foco à mulher negra, as baianas do
acarajé são as mais “homenageadas”, tendo em vista o número de publicações que tratam do
tema e os apontamentos das aulas ministradas pela folclorista, identificados nos arquivos da
Academia de Letras da Bahia. Nas apostilas estão descritas com riquezas de detalhes as
vestimentas das negras “baianas”. No entanto, isso não surpreende, visto que, segundo Risério
(2004), entre as décadas de 1950 e 1980, Salvador se tornou uma cidade centrada na
“economia do turismo”. A preocupação com essa nova perspectiva de exploração foi
tamanha, que, em 1968, o governo estadual criou a Bahiatursa.91 Então, Salvador
transformou-se em um dos maiores pólos turísticos nacionais. Sobre o tema, Risério apresenta
algumas informações:

Os brasileiros queriam viajar para as praias da cidade histórica. Para lugares


que tivessem ‘comidas típicas’, ‘folclore’, ‘festas tradicionais’. Ora,
Salvador era, ao mesmo tempo, praiana e histórica, possuindo ainda a sua
culinária, uma cultura popular carregada de ‘exotismo’, e festas, muitas
festas. (RISÈRIO, 2004, p. 581).

91
Órgão oficial de turismo da Bahia, responsável pela coordenação e execução de políticas de promoção,
fomento e desenvolvimento do turismo no estado.
Nesse contexto de consolidação, procurava-se desenvolver uma mentalidade turística e
promover visitas à Bahia. O tipo de divulgação requerido para atingir esse objetivo foi
fundamentado, então, em uma espécie de “imagem cotidiana baiana”, que foi sendo
construída envolvendo representações afro-baianas. Em vista disso, um dos signos escolhidos
como símbolo cultural de baianidade foi a baiana do acarajé, uma vez que boa parte das
iguarias que representam a culinária baiana é comercializada até hoje nos tabuleiros destas
senhoras.
A partir desse novo olhar sobre as mulheres que são força de trabalho e ao mesmo
tempo viabilizam a projeção da Bahia no mercado externo, Hildegardes Vianna, em 1997,
escreve a crônica A baiana (I) (11/08/1997). Recorrendo a uma vertente diferenciada, porém
sem deixar de frisar que a mercância do acarajé é predominantemente feito pelas mulheres
negras ou “mulatas”, a autora exalta os atributos físicos das vendedoras.
O texto surpreende por apresentar traços ignorados nas crônicas dos períodos
anteriores. Tem-se agora o enobrecimento dos traços estéticos da mulher negra. As baianas
são tidas como altas e bem aprumadas, fato que a autora confere à descendência sudanesa:
“Descendentes de escravos sudaneses – raça bonita e inteligente – possuía beleza, porte,
elegância, asseio e maneiras gentis.” Acrescenta ainda que traziam sempre um ar de “grande
senhora”, mesmo quando estavam com um tabuleiro sobre a cabeça. Apresentam uma
aparência feliz, sempre sorridente. E conclui: “Sua imponência não estava somente no traje.
Era também o garbo com que se vestia nos grandes dias, na maneira de caminhar, na forma de
falar, na maneira de tratar as pessoas. Talvez por isto um famoso escritor disse um dia que não
havia nada mais pitoresco que uma ‘baiana’.” (VIANNA, A Tarde, 11/08/1997).
De acordo com Verger (1992), especificamente o porte altivo das mulheres negras da
Bahia seria uma postura herdada das mercadoras nagôs, vindo dos modos urbanos adquiridos
na África, no território restrito da Iorubalândia.92 Ainda sobre o tema, o antropólogo elucida:

O que determina esse porte altivo da mulher negra da Bahia é o hábito que
ela tem de transportar na cabeça os mais diversos fardos que vão desde as
trouxas de roupa para lavar até os cestos repletos de mercadorias, passando
pelos tabuleiros, bandejas enfeitadas com rendas sobre as quais elas
dispõem para a venda, nas esquinas das ruas, produtos alimentares e
guloseimas. Andam assim, com o busto erguido, os ombros e a nuca
suportando sua carga, conservando uma linha horizontal e estável.
(VERGER, 1992, p. 105).

92
Segundo Verger (1992), a Iorubalândia é uma região africana que compreende parte da Nigéria e do Benin,
antigo Daomé, habitada pelo povo iorubá.
De certo modo, vale destacar que a glamorização da baiana do acarajé termina por
ocultar o sofrimento da mulher negra, visto que a descrição da elegância das vendedoras da
rua algumas vezes foi atribuída à sua postura, conseqüência direta do fato de carregarem tudo
à cabeça.
Apesar de toda exaltação de Hildegardes Vianna ao porte da baiana, ainda se observa
na crônica A baiana (I) que a autora não se desfaz da posição de folclorista ao valorizar as
práticas e indumentária, visto que dedica alguns parágrafos para rememorar as vestimentas
das baianas no século XVIII e, em outra crônica, com a mesma temática, A baiana (II)
(18/08/1997), ressalta o traje da baiana e a riqueza gastronômica presente no tabuleiro:

Quando a baiana se sentava, as anáguas duras de goma emergiam de sob as


dobras da imensa saia de chitão ou de seda. Que lindas anáguas! O tecido
enfeitado que hoje é identificado como crivo, dava um ar principesco às
vestes da baiana. Ele embelezava a gola do cabeção, o pano que trazia
embrulhando os ombros, substituindo o clássico pano da Costa, as barras
dos lencinhos, tantas e tantas peças, para não falar apenas das anáguas.
(VIANNA, A Tarde, 11/08/1997).

O tabuleiro da baiana tinha cocada, amendoim torrado, amendoim cozido,


fubá de milho torrado e açúcar, farinha de tapioca com coco, beijos de
estudante e, mais raramente acarajé e abará. Acarajé e abará comidos frios
mesmo e ninguém reclamava. Acarajé quentinho só pra lá das dez da noite.
(VIANNA, A Tarde, 18/08/1997).

O interesse da cronista pelo traje é tão evidente, que, para enaltecer as vestes da
baiana, transcreve uma parte do texto As mãos da baiana, de 1969, para a crônica A baiana
(II) de 1997: “É o tecido enfeitado que dá um tom principesco às vestes da baiana. É ele que
embeleza a gola do cabeção ou camisa. Que enriquece o pano que trazem embrulhando o
ombro [...]”. Dessa forma, o tabuleiro e o traje ocupam o papel central, “esquecendo-se”,
assim, de enumerar os atributos da mulher negra, na subjetividade.
Outro tipo “pitoresco” que mercava pelas ruas de Salvador é também representada nas
93
crônicas de Hildegardes Vianna, as “tias da Costa”. Na crônica Caixinhas e embrulhos
(23/07/1968), essas negras são descritas como mulheres que circulam pelos bairros da cidade,
levando sobre a cabeça uma caixinha, em que acomodam

[...] palas de crioula feitas com rendas de almofada, crochê, tecido


enfeitado, bordado cheio ou aberto, com acabamento em ilhós de corrente e

93
Segundo Hildegardes Vianna, as negras recebiam o nome de “Tias da Costa” por venderem produtos de
origem da Costa da África.
perfilados caprichados; lenços de esguião com barras de tecidos enfeitados
ou de crochê prontas para posterior aplicação em anáguas; barras de crochê
para toalhas de mãos; espelhos de fronhas; vestidinho de cassa francesa
bordada; camisas de pagão; e uma série de produtos oriundos da África.
(VIANNA, A Tarde, 23/07/1968).

De acordo com Hildegardes Vianna, as “caixineiras” ou “tias da Costa” vendiam em


domicílio e eram consideradas “criaturas” de “bom princípio”, ocupavam a categoria de
mulheres recatadas, “mulher objeto”, pois, apesar de ganharem a vida no comércio ambulante,
furtavam-se ao convívio com “peixeiras”, “fateiras”94 e “ganhadeiras”, “criaturas”
consideradas de palavreado inconveniente e gestos descomedidos. Assim, as negras
caixineiras eram vistas com bons olhos pela elite soteropolitana por apresentarem recato no
modo de trajar e falar.
O termo “criatura”, empregado pela autora para denominar as recém-egressas da
escravidão e suas descendentes que exerciam atividades no comércio e iam de encontro às
convenções sociais e morais da época, tende a diminuir a mulher e sugere que as negras não
foram geradas do ventre materno e, sim, surgiram do nada. Sabe-se que, de acordo com
alguns estudiosos, a presença dessas mulheres nas ruas representava as chagas de um país que
viveu intensamente o processo escravocrata.
Fugindo dos padrões estabelecidos pela sociedade aristocrática soteropolitana, as
negras ameaçavam o projeto de construção de uma nação civilizada, tendo em vista que não
se casavam civilmente, assumiam o papel de chefe de família, devido à ausência dos homens
nos lares constituídos pela população afro-brasileira, e mostravam pouco “recato” na maneira
de trajar e falar, pois tinham que se defender da rudeza dos ambientes externos. Por mais
corriqueira que tenha se tornado a presença das afro-baianas nas ruas de Salvador, o trabalho
doméstico dentro das casas das elites brancas, também era responsabilidade das negras.

94
Eram denominadas de “fateiras” as vendedoras de vísceras de animais, popularmente designadas de fato.
AS NEGRAS DOMÉSTICAS

Negra é a vida consumida ao pé do fogão


Negra é a mão nos preparando a mesa,
limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão de imaculada nobreza.
Na verdade a mão escrava passava a vida limpando o que o branco sujava.
Imagina só o que o branco sujava.
Imagina só o que o negro penava.
Eta branco sujão!

Gilberto Gil95

A mulher negra foi explorada como mão-de-obra pela elite branca em diversos setores
da economia brasileira, principalmente nas atividades domésticas, trabalhando como
arrumadeira, lavadeira, cozinheira, ama-de-leite e costureira. Sobre essas tarefas, Walter
Fraga Filho afirma o seguinte:

Por motivos óbvios, o serviço de ama-de-leite era dominado por mulheres.


Também cuidar das crianças, engomar, costurar e lavar eram atribuições
reservadas inteiramente às pessoas do sexo feminino. Em parte, essa
predominância feminina refletia a preferência dos amos. (FRAGA, 2006, p.
334).

Em sua pesquisa, o historiador identificou que o serviço doméstico era um setor


predominantemente ocupado por pessoas de cor negra ou mestiça; “estas representavam
93,8% dos que cozinhavam, lavavam e cuidavam das crianças dos moradores dos sobrados
urbanos.” Ainda de acordo com a pesquisa de Fraga, “criadas e criados brancos” eram raras
exceções. No entanto, esse número ínfimo dava-se porque, segundo os anúncios de empregos
publicados em jornais da época, os patrões manifestavam preferência por serviços de pessoas
negras.
Tendo em vista que Hildegardes Vianna retrata uma sociedade recém-saída do
processo escravocrata, a cronista não poderia deixar de mencionar as mulheres que exerceram
as tarefas do lar. Na crônica No tempo da casa d`ama (15/11/1969), descreve os trabalhos
realizados pelas afro-baianas. Segundo a cronista, “antigamente” as negras eram as
responsáveis por desempenhar diversas atividades nas casas de família. Se fossem
cozinheiras, tinham que saber lidar com os diversos temperos; as arrumadeiras, por sua vez,
varriam, limpavam e lavavam a casa.

95
Trecho da letra da música A mão da limpeza (1984).
De acordo com a cronista, trabalhar em “casa d`ama” significava ter emprego de
doméstica:

Trabalhar em casa d’ama queria dizer, antigamente, ter emprego de


doméstica. Procurar casa d’ama, sair da casa d’ama, dormir em casa
d’ama, encontrar um casa d’ama significavam procurar emprego, dormir
por lá mesmo, desempregar-se ou empregar-se respectivamente. Era raro
uma cozinheira ou uma lavadeira pronunciar meu patrão, minha patroa.
Minh’ama e meu amo eram expressões correntes. Patroa e a branca se
generalizaram, depois que se foi a Abolição da escravatura. (VIANNA. A
Tarde, 15/11/1969, grifos do autor).

O noção de que os negros eram propriedades se manteve em Salvador ainda nos


primeiros anos após a Abolição da Escravatura, tendo em vista o caráter de subserviência que
a expressão “ama” conota para as domésticas. Disseminava-se a cruel idéia de que “uma boa
casa d’ama valia tanto quanto um seguro de vida.” (VIANNA, A Tarde, 15/11/1969). Assim,
de certa forma, vê-se a naturalização das relações por conta das funções ocupadas pelos
negros, ou seja, a impossibilidade que a elite baiana enxergue a população negra fora de
papéis sociais subalternos, isto é, como homens e mulheres livres com direito a remuneração
por seus serviços, direito de apresentar suas condições e, antes de tudo, de exigir tratamento
digno. Assim,

[...] arranjar uma casa d’ama não era difícil. Dependia como hoje, do
candidato ou candidata ter habilidade no desempenho de suas tarefas,
sobretudo ser fiel nos trocos e curto na língua. A cozinheira precisava saber
lidar com aqueles temperos complicados em que manteiga vermelha
(manteiga de vaca com sal), banha, toucinho e azeite doce, concorriam
generosamente para tornar as pessoas gordas e aparentemente sadias. Para a
arrumadeira, varrer e sacudir tudo muito bem e lavar a casa aos sábados
eram suas obrigações principais.

Arrumar uma empregada, arranjar uma ama, como se dizia, também não
era difícil. Dependia, como hoje, de se ter dinheiro para pagar e paciência
para agüentar os dias de adaptação. Fidelidade era requisito principal
invocado, quando se pedia para alguém inculcar uma ama. O verdureiro, o
açougueiro, o freguês de banana ou a freguesa do acaçá, enfim aquele
bando de gente que vinha à porta vender, era convocado para inculcar uma
ama boa. (VIANNA, A Tarde, 15/11/1969, grifos do autor).

Nessa crônica, No tempo da casa d`ama, Hildegardes Vianna ressalta que muitas
domésticas optavam por retornar para suas residências no período da noite e entrar para
trabalhar antes do café da manhã. As que permaneciam no emprego, muitas vezes pela
ausência de um lar, ao fim de um dia árduo se ajeitavam em uma tábua ou esteira forradas
com retalhos de cobertores e xales velhos. Havia a possibilidade de deitarem-se em camas,
que eram armadas na cozinha, na sala de jantar ou na entrada da porta da rua, para receber de
manhã o pão, o leite e o mingau. Durante a noite, o descanso não era totalmente possível,
visto que eram despertadas para atenderem às solicitações dos patrões.
De acordo com a cronista, algumas mulheres, quando tinham “sorte”, conseguiam uma
folga por semana, que era utilizada para outros serviços e complementar a renda como
lavadeiras ou se tornarem “ganhadeira ou vendedeira”. Outras, mais afortunadas, segundo a
cronista, conseguiam um canto no porão ou um quartinho nos fundos da casa, para onde
levavam toda família. Os filhos iam sendo “aproveitados” para moleques de recado ou
compradores de tempero. As meninas, conhecidas como as “catarinas”, ajudavam no trabalho
ou eram encaminhadas para casas dos conhecidos, onde teriam o mesmo destino da mãe.
Tendo em vista que nem todas as pessoas tinham condições econômicas de manter
uma empregada doméstica, as famílias que se encontravam nessa situação possuíam uma
catarina. Desde criança, as meninas negras já se viam introduzidas nas atividades domésticas.
Algumas eram obrigadas a fazer todas as tarefas da casa, outras só brincavam com as crianças
brancas que residiam no mesmo domicílio e ajudavam, quando solicitadas por um adulto. A
crônica As catarinas (25/04/1988) ilustra a penosa situação nas quais viviam essas crianças:

As catarinas trabalhavam de sol a sol, desempenhando as tarefas mais


variadas, maltratadas [...] Acostumavam-se com as birras, os insultos, as
sobras de prato que tinham de comer, os trapos que tinham que vestir.
Caladas, resmunguentas, respondonas, cada uma cumpria sua sina como
podia. (VIANNA, A Tarde, 25/04/1988).

Na crônica, podem ser identificados sentimentos díspares. Ao tempo em que se


apresenta uma compaixão pelo sofrimento imposto a essas crianças, há um entendimento de
que o trabalho infantil realizado pelas meninas negras é “uma sina”: “as catarinas
acostumavam-se com as birras [...]”. Assim, de acordo com Hildegardes Vianna, as crianças
negras já nasciam, mesmo após a Lei do Ventre Livre96, sentenciadas a trabalharem para
ajudar na renda da família ou para terem um teto e um prato de comida. Dessa forma, a vida
não se tornará menos dura para essas mulheres com a assinatura da Lei Áurea.
Dando continuidade à descrição das tarefas realizadas pelas negras no espaço interno
das residências, Hildegardes Vianna, na crônica Da cozinha e do seu conceito (02/09/1969),

96
A Lei do Ventre Livre foi assinada no dia 28 de setembro de 1871, pelo Visconde do Rio Branco,
determinando que todo filho de escrava que nascesse a partir daquela data seria livre.
ressalta o desprestígio que o trabalho doméstico tem na sociedade aristocrática,
principalmente aqueles realizados no espaço da cozinha:

Trabalhar na cozinha era considerado ‘destino triste’, as senhoras brancas


resistiam a executar a tarefa de cozinhar, assim sempre tinham uma
menina preta, dada de presente para aprender a trabalhar, que
exerciam as tarefas do lar. Cozinha era o lugar mais baixo existente na
casa. [...] a cozinha se fizera para negro e negra ruim. (VIANNA, A
Tarde, 02/09/1969, grifos nossos).

Chama a atenção o trecho da crônica em que autora informa que as “meninas pretas”,
as catarinas, eram “dadas de presente” para aprenderem a trabalhar. Tal afirmação denuncia
que a elite baiana não se habituou facilmente com a idéia de que os trabalhadores não eram
sua propriedade. Assim, o branco poderia se dispor dos negros quando bem aprouvesse, até
porque não foram protegidos pelo Estado.97 Assim, dentro da mentalidade da aristocracia, os
negros continuavam ocupando o lugar de “peças” que poderiam ser descartadas e
manipuladas de acordo com seu interesse.
Quanto ao trabalho executado no espaço destinado ao cozimento dos alimentos, a
cozinha, segundo a cronista, era considerada o “lugar mais baixo da casa”, pois a emissão de
uma fumaça escura pelo fogão à lenha contaminava o espaço, deixando-o com paredes e pisos
encardidos e os vidros das janelas com uma cor quase preta. O telhado também não escapava,
pois compunha-se de um emaranhado de teias de aranha, impossíveis de serem retiradas
devido à altura. Assim, a cozinha não era o local mais agradável de se trabalhar. Ao contrário,
era destinada para “negro e negra ruim”. Sobre a cozinha, Hildegardes Vianna descreve:

As velhas cozinhas, pobres ou ricas, limpas e besuntadas, salvo umas


poucas que possuíam teto baixo, ostentavam bambinelas de teias de aranha,
enegrecidas, verdadeiras cortinas pendentes das vigas. Cordões de pucumã
faziam arabescos nas paredes encardidas. Os vidros das janelas eram quase
pretos, como quase preto era o chão. Assoalhadas ou de tijolos, de chão
batido ou raramente de cimento ou ladrilhos, quase sempre de telha vã, não
dos lugares atraentes. Mobiliário? Todas as casas tinham fogão construído
junto à parede ou no centro da peça. Talvez, então, as prateleiras, a mesa e
raramente bancos ou cadeiras. A mesa de madeira de feitio tosco, mesmo
quando de fabricação sólida, servia para muitos misteres. Na mesa da
cozinha se engomava, se tratava a carne, se lavava prato, se dava banho em
menino. Banco e cadeira? Só gente muito organizada e humana punha
assentos na cozinha. Sentar de cócoras para comer não era postura difícil
para quem estava acostumado a nunca ter onde descansar as pernas.

97
Muitas crianças negras eram dadas pelas mães para trabalharem nas casas de famílias brancas, pois essa era
uma alternativa diante do sofrimento de não poder sustentar em filhos.
Também o serviço andava mais depressa sem bancos e cadeiras. (VIANNA,
A Tarde, 02/09/1969).

Outro aspecto a ser considerado são as atividades realizadas no espaço da cozinha.


Todas demandavam muita energia e esforço físico, visto que, nas primeiras décadas da
República, ainda não havia o manancial de utensílios e eletrodomésticos utilizados na
atualidade para facilitar as atividades. Como esse espaço era ocupado pelas negras, eram elas
que permaneciam um dia inteiro trabalhando sem ter direito ao descanso, uma vez que,
segundo a cronista, nas cozinhas não havia cadeiras nem bancos. Assim, “a cozinha já foi o
fim. Fim em tudo e por tudo! Fim em localização, fim em asseio, fim em trabalheira, fim em
tudo e tudo. Ir para cozinha era desdouro.” (VIANNA, A Tarde, 02/09/1969).
As mulheres que exerciam as atividades domésticas, assim como as vendedoras de rua,
também eram consideradas pela elite “mulheres de saia”. Cozinheiras, arrumadeiras, amas-de-
leite, engomadeiras, lavadeiras e amas-secas, todas faziam parte dessa categoria de
trabalhadoras, só que desfrutavam de uma situação mais favorável, no entendimento da
cronista, por trabalharem dentro de casa, protegida da hostilidade dos espaços públicos.
O trabalho no espaço doméstico algumas vezes trazia certo status às negras
domésticas. Quando os patrões morriam, eram elas que se responsabilizavam em carregar a
bandeja com flores, que seria ofertada ao falecido. No entanto, não era permitido a qualquer
negra realizar essa tarefa. Só às negras de confiança que já trabalhavam na casa há muito
tempo era dada essa “honraria”. Na crônica Convidados e bandejas (07/11/1969), Hildegardes
Vianna comenta a sua participação nos funerais:

Dálias, rosas, angélicas, saudades, suspiros, cravos de defunto, galhos de


crótons, caládios e folhas de palmeira eram arrumados sobre as bandejas
com alguma arte. Era raro se encontrar carregador com tais bandejas, a não
ser que fosse criado da casa do ofertante. O que se usava era ser conduzida
por uma mulher de saia, muito bem vestida, com cabelos muito bem
ajeitados. Com suas sandálias bordadas, suas saias duras de goma, seu xale
dobrado e o indefectível lenço empalmado, as mulheres de saia entravam
ondulantes, carregando as bandejas floridas, que iam sendo armazenadas em
lugar arejado até a hora do enterro. (VIANNA, A Tarde, 07/11/1969, grifos
do autor).

Observa-se que, para fazer parte desse ritual, as negras deviam se vestir com bastante
esmero, pois para elas era um privilégio ser escolhida para carregar a bandeja com as flores
que seriam depositadas no jazido do patrão. Além dos parentes, os convidados do enterro
também tinham o hábito de ofertar flores e geralmente levavam suas “negras com boa
aparência” e bem vestidas para carregarem o presente, destacando que “a boa aparência”
caracterizava a riqueza, o prestígio e o poder do seu senhor.
Apesar do suposto glamour que essa atividade parecia ter, as negras continuavam
sendo, no dizer de Lélia Gonzalez (1983, p. 230), “[...] domésticas, nada mais do que mucama
permitida, a da prestação de serviços, ou seja, o burro de carga que carregava sua família e
dos outros nas costas.” Logo, o fato de serem escolhidas para levar as bandejas não pode ser
encarado como exaltação.

Figura 7 - (Acervo da Livraria Kosmos) 98

A imagem apresenta uma negra doméstica em traje de festa, usado em batizados,


procissões e funerais dos senhores brancos. Assim, como nas imagens que apresentam as
“baianas” de acarajé, observa-se a riqueza do detalhes com as quais as mulheres se

98
A figura foi retirada do livro O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a escravidão de Luís Viana Filho
(2008, p. 134).
arrumavam para essas ocasiões, destacando-se as jóias que ornavam os braços e o pescoço da
doméstica.
Na crônica Casa de Mestra (13/01/1974), a autora ressalta a posição tida, de certo
modo, como privilegiada das mulheres que exerciam trabalhos domésticos, que se destacavam
das que mercavam nas ruas da cidade. Para a cronista, o ambiente interno da casa, associado
ao contato com os brancos, tornavam as negras menos “embrutecidas”. Logo ao iniciar o
texto, Hildegardes Vianna apresenta uma definição para essas negras. Na sua maioria, eram
católicas praticantes freqüentando regularmente a igreja, porém sem nunca se confundirem
com as beatas, que eram mulheres brancas. Vestiam-se e penteavam-se com discrição,
falavam pouco, em tom meio velado, sobre alguns assuntos, quando permitida a sua
intromissão. E ainda continua:

Quem era a mestra? Excepcionalmente poderia ser encontrada uma mulher


branca como Mestra. Reparem bem que está escrito Mestra, não
Professora. A maioria esmagadora era de mulheres negras ou mestiças. O
estado civil pouco importava. Havia muitas velhas honestas, casadas, viúvas
e umas tantas com protetor ou ‘dono de casa’ dentro da maior discrição e
respeito possível. Todas procedendo nos limites da compostura, debaixo de
um severo regime de vida, ocupando as horas do dia com coisas julgadas
úteis e valiosas na época.

Em troca de uma razoável remuneração, a Mestra se propunha a ensinar


qualquer menina a varrer a casa, sacudir os móveis, lavar louça, arrumar
gavetas e arcas, fazer fogo, temperar panelas, ralar coco, bater bolo, lavar
roupa, engomar, além do ofício de costureira. (VIANNA, A Tarde,
13/01/1974, grifos nossos).

No trecho “Reparem bem que está escrito Mestra, não Professora.”, nota-se que a
cronista faz questão de frisar a distinção da classe social ocupada pela professora, uma vez
que as negras que exerciam a função de mestras tinham a finalidade de ensinar às meninas
negras os serviços domésticos que elas, posteriormente, iriam executar nas casas dos brancos,
ao passo que as professoras, mocinhas brancas, responsabilizavam-se por ensinar a ler e
escrever às crianças brancas.
A partir das informações de Hildegardes Vianna, sabe-se que a mestra ocupava uma
categoria superior, pois era responsável pela perpetuação da ordem. No entanto, apesar do
local de destaque que ocupavam, as mestras cumpriam socialmente suas obrigações,
mantendo-se distanciadas das senhoras brancas, limitando-se apenas a dar parabéns ou
pêsames, em ocasiões que se fazia necessário. A fisionomia nesses momentos era sóbria, não
demonstrando ostensivamente os sentimentos. Sobre esse comportamento, Vianna reafirma:
“Freqüentavam nas ocasiões precisas as casas de pessoas de nível mais alto, sem ultrapassar a
linha divisória que a sociedade então impunha. Como sabia conduzir-se, e jamais dava lugar a
censuras ou reparos, era bem acatada e até elogiada”. (VIANNA, A Tarde, 13/01/1974).
Hildegardes Vianna reitera o mito da “democracia racial”, em que brancos e negros
convivem harmoniosamente, desde que os segundos permaneçam responsáveis pela execução
das tarefas que exigem esforços físicos e não ultrapassem a fronteira que separa os brancos do
não-brancos. Assim, nesse texto a cronista expressa o sentimento de complacência que a
“sociedade” aristocrática soteropolitana, leia-se os brancos, tinha com as mulheres negras, as
quais mantinham uma postura servil e guardavam distância das pessoas consideradas de
posição social “superior”. Sobre o assunto Thales de Azevedo afirma:

Numa sociedade de tradições aristocráticas, como a baiana, a etiqueta no trato


entre pessoas de níveis sociais diferentes é muito importante. Uma pessoa
‘adiantada’, que ultrapassa os limites que são fixados por seu status ou por
sua situação de estranho, usando inadequadamente de maneiras que revelam
intimidade ou identidade de posição, é sempre mal vista mesmo que seja
branca. Pior ainda se é de cor, porque não só é tida como mal educada, porém
como ‘ousada’, capaz de ‘tomar muita liberdade’ com pessoas que não
conhece ou que ‘não são da sua classe’. E usada neste sentido a palavra
‘classe’ significa posição social muito baixa. (AZEVEDO, 1996, p. 69).

Na crônica, a autora ainda questiona a assimilação pelas negras do comportamento


“civilizado”, indicando que isso não seria possível de encontrar no universo afro-baiano,
exceto através do contato com a própria elite.

Onde tinham aprendido tal comportamento? Na classe havia de tudo. Umas,


antigas escravas de estimação, bem ensinadas e bem tratadas, tinham sido
alforriadas sem grandes esforços. Outras, embora com vínculo de sujeição a
determinada família ou pessoas, pagavam regularmente um tributo em
trabalho ou dinheiro para gozar relativa liberdade. Umas tantas tinham sido
nascidas e criadas em casa de pessoas direitas que tinham cuidado dos seus
modos e educação. Umas poucas, crescendo em casas de mestras tinham se
identificado com a maneira de viver, tornando-se gente de casa, herdando
por morte as discípulas e o bom conceito. (VIANNA, A Tarde, 13/01/1974,
grifos nossos).

Destaca-se no trecho o termo "pessoas direitas” para enobrecer as mulheres brancas,


com seus valores da cultura burguesa que, durante séculos, foram beneficiadas pelos serviços
prestados pelas negras e que, por interesse próprio, ensinaram-lhes alguns modos, ditos
“civilizados”, posto que as negras exerciam atividades domésticas e, esporadicamente,
adentravam no ambiente da sala. Na visão da cronista, as mestras só tinham uma postura
educada porque foram ensinadas pelas famílias brancas, “tornando-se gente de casa”.
O certo é que para os senhores, as negras eram consideradas seres humanos inferiores,
por mais que fossem adestrados na cultura e tradição branca. Por maior habilidade que
demonstrassem no processo de tradução cultural, eles constituíam apenas uma “diferença que
é quase a mesma, mas não exatamente, quase o mesmo, mas não brancos.” (BHABHA, 2007,
p. 130).
As amas-de-leite também constituíam o grupo das domésticas, uma atividade que vem
desde o período da escravidão. Era uma ocupação que exigia muita proximidade com a
família, pois a ama era a mulher responsável por cuidar e alimentar com o próprio leite
materno, da criança do branco. Negras de seios grandes, que eram providas de muito leite,
faziam dessa atividade um meio de sobrevivência. Trabalhavam amamentando os filhos das
senhoras brancas frágeis, desprovidas de saúde. Para serem contratadas, eram exigidos alguns
atributos. Fazia-se necessário terem boa saúde, para não transmitir doenças às crianças, ter
“boa aparência”, de preferência mulatas e crioulas, e não serem muito velhas.
Fraga (2006, p. 333) destaca que a Câmara de Salvador, respondendo aos “reclamos
do público”, elaborou algumas “posturas”, regulando a relação entre amos e criados. Uma
delas, a postura de número 15, determinava que a ama-de-leite que ocultasse moléstia ou
tivesse reconhecida a incapacidade de amamentar criança incorreria na pena de 20$000 réis
ou cumpririam quatro dias de prisão. Além disso, não se poderia recusar o exame médico. A
ama-de-leite que abandonasse a criança antes de concluído o prazo de contrato (período de
amamentação) seria multada em 30$000 réis ou cumpriria oito dias de trabalho forçado.
Na crônica Amas-de-leite (22/09/1986), Hildegardes Vianna informa que as mulheres
negras, que tinham tido filho recentemente, tornavam-se amas-de-leite por indicação ou por
anúncios em jornais da cidade, chegando a amamentar mais de uma criança no mesmo
período. Segundo a folclorista:

Havia grande procura de ama-de-leite, mulheres em condição de dar de


mamar a crianças filhas de mães frágeis ou em condições físicas nada
recomendáveis. Além da vantagem que ofereciam de desfrutar de boa mesa,
ter à disposição ‘vinhos de sustância’, adquirindo uma boa amizade se para
tal tivesse merecimento. (VIANNA, A Tarde, 22/09/1986).

A boa alimentação era um cuidado do branco, considerado como “vantagem” para


Hildegardes Vianna, para que a negra que amamentasse também estivesse saudável, evitando
assim transmitir doenças aos filhos do contratante. Caso a mulher tivesse leite suficiente para
alimentar dois bebês e o patrão permitisse, levava o filho consigo. Se isso não fosse possível,
o filho da ama-de-leite ficava sob os cuidados de uma vizinha ou alguém conhecido e passava
a ser alimentada com leite cozido à base de farinha de mandioca. E a pobre mãe, farta de leite,
recorria a uma alternativa para diminuir a quantidade do líquido que lhe pesava a mama:
.
As mulheres com muito leite e que, por qualquer circunstância, não pudesse
dar de mamar a mais de uma criança ficava em situação aflitiva.
Conseguiam, com muita sorte um filhote de cachorro para pôr ao seio,
aliviando a situação. Em desespero de causa com o vazamento do líquido,
as dores, os vergões, e até febre, tinham que recorrer à ‘simpatia’.
(VIANNA, A Tarde, 22/09/1986).

Ser ama-de-leite significava muitas vezes abrir mão da maternidade, pois muitos
senhores não permitiam que as negras dividissem o leite entre seus filhos e os delas. Quando a
criança branca crescia, às vezes, essas amas tornavam-se amas-secas. Então, passavam a
morar na casa da família na qual trabalhavam, com direito a uma folga para verem o filho
esporadicamente. Caso contrário, engravidavam novamente para prestarem serviço a outras
famílias e garantirem o trabalho por mais dois a três anos.
As negras que exerciam a profissão de ama-de-leite, apesar de não estarem nos
espaços da rua, também sofreram discriminações desde o meado do século XIX. Segundo
Fraga (2006), muitos médicos passaram a reprovar o leite materno das mulheres negras. As
“mães de leite”, de modo geral, foram vistas como “elemento” corruptor da família, sendo
acusadas de trazer para dentro da casa todo tipo de doenças infecciosas como a sífilis, que
podia ameaçar a vida das crianças brancas. Assim, desenvolveu-se uma campanha em defesa
da amamentação pela própria mãe branca, e a figura da ama-de-leite foi desaparecendo das
cidades.
As lavadeiras também se somavam à categoria das mulheres que exerciam atividades
domésticas. Hildegardes Vianna, nas crônicas As lavadeiras faziam assim (16/12/1969) e
Ainda as lavadeiras (24/12/1969), retrata o cotidiano das negras que dedicavam uma vida à
execução de um trabalho hercúleo, o de lavar roupa, por falta de alternativa para sobreviver.
Segundo a cronista, as lavadeiras se constituíam de

[...] um grupo de mulheres negras, mulatas descalças, andando pelas ruas da


cidade, quase sempre as segundas-feiras, com trouxas de roupa à cabeça.
Andava pelas ruas, saias meio arregaçadas, seguida a curta distância por um
filho ou filha de pouca idade, carregando galhos secos miúdos ou pontas de
madeiras de desmancho reunidos em um feixe. Esta era a mulher que lavava
para fonte, tipo que está gradativamente desaparecendo.
As que lavavam na casa da patroa, isto é, na casa d’ama, dormiam fora, não
tendo horário muito rígido. Em lares organizados, em que havia dia e hora
para tudo, a lavadeira tinha dias preestabelecidos para molhar a roupa. Em
outras, entretanto, era um inferno, toda hora descendo roupa para lavar.

Se, em algumas residências as pias de cimento, chamadas lavanderias, eram


bem construídas, até que o serviço não era dos piores. Mas, se era para lavar
no banheiro ou no tempo, sem gamela nem lugar para quarar a roupa, a
situação não era de causar inveja. (VIANNA, A Tarde, 16/12/1969).

Quanto à realização da tarefa, as lavadeiras podiam ser classificadas como “as que
lavavam na casa da patroa e as que lavavam na fonte; as que lavavam por peça e as que
lavavam por mês; as que apenas lavavam e as que lavavam e passavam, além das que lavavam
e engomavam.” (VIANNA, A Tarde, 16/12/1969).
No entanto, todas atravessavam o mesmo sofrimento, as mãos bastante maltratadas,
pois havia as roupas grossas ou muito sujas que exigiam longas esfregas, ferindo as cutículas
das unhas. Para ajudar na retirada da sujeira, usavam sabão com substâncias químicas
agressivas que irritavam a pele e ocasionavam lesões e ferimentos. Os dedos infeccionavam
em volta da unha e supuravam. As unhas apodreciam e caíam. O terrível “unheiro” resistia
aos remédios caseiros que eram utilizados, pois as lavadeiras, durante todo sofrimento
causado pelos machucados, não paravam de lavar, pois essa era a única fonte de renda.99
Hildegardes Vianna descreve que, quando mais velhas as negras ficavam asmáticas,
reumáticas, cardíacas, mas nunca deixavam as atividades, pois tal atitude implicaria privações
para ela e sua família. “As lavadeiras cumpriam seu fardo, sem grandes paixões. Nada de
queixas, nada de lamúrias. O que elas iriam fazer? Se nascia lavadeira, lavadeira se tinha de
morrer.” (VIANNA, A Tarde, 16/09/1969).
Em muitas crônicas, Hildegardes Vianna apresenta a situação da mulher negra como
irreversível. Na falta da implementação de políticas, por parte do Estado, a circunstância
deveria ser aceita com resignação. A idéia de aceitação do sofrimento imposto pelas
atividades domésticas e pelo trabalho de rua se repete em diversas crônicas em que a autora
apresenta as negras como submissas e consternadas, demonstrando poder suportar qualquer
penúria. Nessa perspectiva, o sexismo e o racismo atuam juntos, perpetuando uma iconografia
de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a idéia de que ela está
nesse planeta principalmente para servir aos outros de modo abnegado.

99
No dicionário Aurélio Buarque Holanda Ferreira (1999), unheiro está definido como uma inflamação em volta
das unhas.
De forma emblemática, a crônica No tempo da mulata velha (16/12/1985) reflete
muito bem esse modo de pensar hildegardiano. O traço de submissão e conformidade é
demarcado pela similaridade que a cronista atribui haver entre a Bahia de “antigamente” e a
“mulata velha”. Segundo Hildegardes Vianna, a Bahia foi assim denominada por muitos anos
por apresentar um “clima ameno e ter um ambiente ordeiro”. Se comparado às demais
crônicas que apresentam as mulheres negras, o texto deixa margem para a interpretação de
que as senhoras negras mais velhas aceitavam o destino do trabalho doméstico com
passividade e conformismo, ou seja, “uma sina”, como define a própria autora nas crônicas
analisadas nesse estudo. Segundo a cronista, “é bom recordar. Melhor ainda é tentar
reconstruir as lembranças de um velho e bom tempo.” (16/12/1985). Tempo, diga-se de
passagem, em que as negras não tinham oportunidades, exceto o trabalho subalterno. Logo,
bom tempo para uma minoria que pertencia à elite e utilizava-se da mão-de-obra negra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
___________________________________________________________________________

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é


coisa de americano. Aqui não tem diferença
porque todo mundo é brasileiro, acima de tudo,
graças a Deus.
Mulher negra, naturalmente, é cozinheira,
faxineira, servente, trocadora de ônibus ou
prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e
ver televisão. Eles não querem nada. Portanto
têm mais é que ser favelados.

Lélia Gonzalez100

Recordar. Essa foi a principal demanda de Hildegardes Vianna. Durante boa parte de
sua vida, a cronista e folclorista se dedicou a recordar uma Bahia de outrora, como se
desejasse cristalizar um tempo passado. Negando-se a enxergar a modernidade que invadia a
cidade na década de 1950, prefere rememorar uma Bahia onde negros e brancos tinham
lugares demarcados. Bahia das ruas e ladeiras estreitas e mal iluminadas.
Das sacadas do sobrado de onde residia, a cronista observava o ir e vir das negras que
desfilavam sobre as ruas e ladeiras da velha Bahia, mercando acaçá, abará, acarajé, mingau,
cuscuz e todas as guloseimas saborosas que coubessem em suas gamelas. Vestidas em suas
saias rodadas e “camisus desguelados”, elas se dirigiam à casa dos patrões para cozinhar,
lavar, passar e até amamentar. Bastava esperar, que pontualmente iriam aparecer. Sem saber
que estavam sendo vigiadas, passavam cantarolando seus pregões, todos os dias. Mal sabiam
que seriam imortalizadas nas crônicas de Hildegardes Vianna.
É uma pena, mas foram imortalizadas com olhar estereotipado e segregador. Foi assim
que a folclorista viu seu “objeto de pesquisa”. Impregnada de uma visão racista, sexista e
elitista, Hildegardes Vianna se “esqueceu” de conferir visibilidade às mulheres negras e
perpetuou em suas crônicas o estigma de que trabalho é coisa de escravo, escravo é negro,
negro é peça; logo, o único lugar a ser ocupado pela população negra é o do serviço
subalterno.
A escrita dessa dissertação permitiu retomar e repensar, de certa forma, o que foi a
Bahia nas primeiras décadas do século XX, principalmente no que diz respeito à relação entre
brancos e negros. A contradição de viver em um país teoricamente democrático, com direitos

100
Retirado do artigo Racismo e sexismo na cultura brasileira (1983).
iguais para todos, e ao mesmo tempo perceber o quanto foram discriminados os cidadãos que
possuíam a tez escura e eram desprovidos de recursos financeiros.
Lembrança foi uma palavra que ajudou a repensar essa Bahia, principalmente porque
nesse vocábulo parece residir a certeza de que todos os acontecimentos e fatos existiram. No
entanto, a lembrança diz respeito ao passado, e quando ele é contado, a memória se atualiza
sempre a partir de um ponto de vista presente. Para quem não viveu, como eu, nesse período
narrado por Hildegardes Vianna, restou a tarefa de relê-lo através dos estudos daqueles que
estiveram ou se empenharam em escrever sobre essa Bahia. Leu-se então a fala histórica de
Antônio Risério, Donald Pierson, Thales de Azevedo, Clovis Moura, Kátia Matoso e outras
mais atuais, como a das pesquisadoras Florentina de Souza e Patrícia Pinho. Todos, de
alguma maneira, empenharam-se em descrever as transformações ocorridas na Bahia de
“brancos e pretos”, em denunciar o processo de discriminação vivenciada pelos negros e as
lutas e conquistas para garantir um espaço de respeito, com a concretização plena da
cidadania, na sociedade soteropolitana.
Recorrer a esses estudos não foi difícil, pois as transformações que se processaram na
Bahia ao longo do século XX provocaram várias investigações. Mas é importante não
esquecer que grande parte dessas mudanças, apesar de serem atribuídas à emergência
industrial e econômica da cidade, foram conquistas da própria população afro-brasileira. A
organização de movimentos contra o combate ao racismo e a busca de direitos iguais garantiu
de forma significativa o ingresso do negro no mercado de trabalho e na educação. A busca da
auto-estima e o respeito aos traços fenotípicos foram heranças deixadas pelos blocos afros que
afirmavam, nas letras das músicas, que a pele negra também tem beleza. Nesse caso, vale
ressaltar que, em sua maioria, as leituras sobre a Bahia, de uma forma ou de outra, acabaram
esbarrando na temática das relações raciais.
Nesse sentido, não apenas a distância, mas também esses pressupostos teóricos
pesquisados permitiram apontar para caminhos outros de leitura. Lélia Gonzalez (1983, p.
223-244), no texto intitulado Racismo e sexismo na cultura brasileira, com a propriedade que
tem sobre o assunto, despertou em mim um olhar mais aguçado para que, nas interpretações
das crônicas, pudesse perceber o quanto era segregadora a escrita de Hildegardes Vianna
sobre as negras.
Homi Bhabha (2007, p. 117) permitiu compreender que os estereótipos sobre as
mulheres negras presentes nas crônicas são uma falsa representação de uma realidade, uma
forma presa e fixa, que nega a alteridade e recalca as diferenças presentes na sociedade. No
entanto, vale destacar que essas representações são influenciadas pelo contexto sociocultural
da cronista, pois, a partir de Moscovici (2007), pôde-se entender que as representações sociais
são construídas inicialmente do interesse de um grupo, ou seja, o autor é influenciado pelo
lugar que ocupa na sociedade. Logo, sendo Hildegardes Vianna uma mulher branca da elite
soteropolitana e folclorista, optou por escrever sobre a mulher negra em uma perspectiva
racista, sexista e estereotipado.
Atrelando-se ao local ocupado pelo enunciador, destaca-se que os escritos de
Hildegardes Vianna são considerados pertencentes à cultura popular, folclore. Nesse sentido,
seu interesse em recordar o passado também se justifica, tendo em vista que os estudos
folcloristas têm como uma das premissas básicas o registro de fatos, objetivando conservar as
tradições. Assim, segundo Martín-Barbero (2006) e Canclini (2003), as manifestações
folclóricas são narradas lendariamente e cristalizadas no tempo e no espaço, esquecendo-se
dos conflitos. No caso em estudo, a cronista se volta para as primeiras décadas do século XX
para descrever os serviços realizados pelas negras. Nessa sentido, as crônicas têm pouco a
dizer sobre as mulheres negras, seu “homem”, seus filhos, suas práticas religiosas, sua vida
social, exatamente porque lhe negam o estatuto de sujeito humano, tratando-as sempre como
objeto.
Dessa forma, essa dissertação de mestrado cumpre o papel de revelar uma escrita
estereotipada sobre o povo negro, a qual se perpetuou, ao longo de quarenta e quatro anos, no
caderno principal do jornal A Tarde. Tais crônicas poderiam ter exercido um papel de
denúncia, se não fosse o tom pejorativo com o qual a folclorista se refere às negras. O dever
da imprensa é delatar qualquer tipo de preconceito sofrido pelo cidadão. No entanto, durante
um longo tempo, funcionou como instrumento de incentivo e perpetuação do racismo e do
machismo da elite soteropolitana.
O certo é que estou feliz por ter concluído uma etapa, mas uma certeza permanece, a
de que “A Bahia ainda continua assim”. Posso não ver as negras subindo e descendo as ruas
e ladeiras de Salvador, com suas gamelas sobre a cabeça, mas vejo-as todos os dias nas praias
e nas esquinas com seus tabuleiros, mercando acarajé, abará e cocada. Leio os jornais
solicitando “boa aparência” para executar atividades que impliquem em lidar com o público.
E principalmente, porque ainda muitas de nós precisam permanecer escondidas na cozinha do
branco, trabalhando como domésticas, cozinhando, arrumando e lavando. Temos opções, mas
ainda são poucas, pouquíssimas, mas isso é uma história que pretendo contar mais tarde.
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2 OBRAS DE HILDEGARDES VIANNA:

2.1 Livros publicados:

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______. A Proclamação da Republica na Bahia. Salvador: Editora da UFBA, 1955.

______. Festas de Santos e santos festejados. Salvador: Progresso, 1960.

______. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). Salvador; BA: Itapuã, 1973.

______. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). 2. ed. São Paulo: GRD/Instituto
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______. Folclore brasileiro – Bahia. Funarte/Instituto Nacional de Folclore, 1981.

______. Calendário das festas populares da Bahia. Salvador: Departamento de Cultura da


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______. Breve notícia sobre acontecimentos na Bahia no início do século XX. Salvador:
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______. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador/BA: Fundação Cultural do
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______. A Bahia já foi assim (crônicas de costumes). 3. ed. São Paulo: GRD/Instituto
Nacional do Livro. 2000.

2.2 Crônicas e artigos publicados em jornal:

VIANNA, Hildegardes. Reminiscência de negra velha. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de


maio de 1955.

______. Folclore palavra do século. In: Jornal A Tarde. Salvador, 19 de agosto de 1967.

______. Baianas da Conceição. In: Jornal A Tarde. Salvador, 05 de dezembro de 1967.

______. Moleque comprador de tempero. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de fevereiro de


1968.

______. Antigamente gente de cor. In: Jornal A Tarde. Salvador, 19 de março de 1968.

______. A benção. In: Jornal A Tarde. Salvador, 30 de abril de 1968.

______. Caixinhas e embrulhos. In: Jornal A Tarde. Salvador, 23 de julho de 1968.

______. Cheiro de suor. In: Jornal A Tarde. Salvador, 03 de dezembro de 1968.

______. O feio da raça. In: Jornal A Tarde. Salvador, 10 de março de 1969.

______. As mulheres de saia. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de março de 1969.

______. Do cabelo duro. In: Jornal A Tarde. Salvador, 17de março de 1969.

______. Da cozinha e do seu conceito. In: Jornal A Tarde. Salvador, 02 de setembro de 1969.

______. A Mulher do Mingau. In: Jornal A Tarde. Salvador, 16 de setembro de 1969.

______. A arte de fazer cuscuz. In: Jornal A Tarde. Salvador, 23 de setembro de 1969.

______. Convidados e bandejas. In: Jornal A Tarde. Salvador, 07 de novembro de1969.

______. No tempo da casa d`ama. In: Jornal A Tarde. Salvador, 15 de novembro de 1969.

______. As lavadeiras faziam assim. In: Jornal A Tarde. Salvador, 16 de dezembro de 1969.

______. Ainda as lavadeiras. In: Jornal A Tarde. Salvador, 24 de dezembro de 1969.

______. O tempo do acaçá. In: Jornal A Tarde. Salvador, 08 de novembro de 1971.


______. Todo mundo gosta de abará. In: Jornal A Tarde. Salvador, 22 de janeiro de 1973.

______. Pesquisa da dança folclórica. In: Jornal A Tarde. Salvador, 27 de agosto de 1973.

______. Casa de Mestra. In: Jornal A Tarde. Salvador, 13 de janeiro de 1974.

______. Acarajé quentinho. In: Jornal A Tarde. Salvador, 21 de junho de 1976.

______. Agosto, mês do folclore. In: A Tarde. Salvador, 06 de agosto de 1978.

______. No tempo da mulata velha. In: Jornal A Tarde. Salvador, 16 de dezembro de1985.

______. Amas-de-leite. In: Jornal A Tarde. Salvador, 22 de setembro de1986.

______. As catarinas. In: Jornal A Tarde. Salvador, 25 de abril de1988.

______. As mãos da baiana. In: Jornal A Tarde. Salvador, 02 de setembro de 1996.

______. A baiana (I). In: Jornal A Tarde. Salvador, 11 de agosto de 1997.

______. A baiana (II). In: Jornal A Tarde. Salvador, 18 de agosto de 1997.

______. O destino de Lúcifer. In: Jornal A Tarde. Salvador, 08 de setembro de 1997.

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